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FICHAMENTO DE NUNES, Benedito. Narrativa histórica e narrativa ficcional. In: RIEDEL, Dirce C. (ORG). Narrativa: ficção e história. Rio de Janeiro: Imago, 1988. p. 9-35. I. Contraponto (1) “As diferenças entre narrativa histórica e narrativa ficcional sobressaem em contraste com o velho parentesco que as une ao mito no Medievo a História não deixava de ser história (story), como crônica de fatos que também podiam ser feitos legendários. (...) A primeira dicotomia da História – Profana e Sagrada – seguiu-se, no séc. XVII, depois que os humanistas do Renascimento situaram os estudos históricos na vizinhança Retórica, o delineamento de uma segunda bifurcação: a História- arte e a História-ciência, a narração e a pesquisa, definidas e separadas no século XIX.” (p. 10). “A História-arte é, sobretudo uma narrativa de acontecimentos, que os recria como se fossem presentes. Fazendo do historiador ‘um contemporâneo sintético e fictício’ do que ocorreu, fornece-nos imagens do passado, recuperado, tornado visível. Ela não se exime, portanto, do esforço da imaginação projetiva, que acusa a vivência particular do historiador, parente próximo do artista.” (p.10). “(...) Mas a História-pesquisa, possibilitada pela ‘ideia de uma não-coincidência do conhecimento e da percepção, conquista, no que tem de essencial, da revolução científica dos séculos XVI e XVII, é antes de tudo uma História da História, uma história do acesso ao passado, de que não oferece senão um conhecimento mediato, indireto, e, portanto fora da esfera do visível, mediante traços ou vestígios (documentos, monumentos) visíveis e presentes. Conhecimento mediato incorporando o processo crítico das fontes que o valida é ao mesmo tempo justificação do alcance de seus próprios meios, empregados numa reconstrução conceptual do passado. Aqui a imaginação projetiva parece ausentar-se, a vivência particular do historiador substituída pela ordem das razões, como garantia da objetividade de sua reconstrução.” (p. 11). 1

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FICHAMENTO DE NUNES, Benedito. Narrativa histrica e narrativa ficcional. In: RIEDEL, Dirce C. (ORG). Narrativa: fico e histria. Rio de Janeiro: Imago, 1988. p. 9-35.

I. Contraponto (1)

As diferenas entre narrativa histrica e narrativa ficcional sobressaem em contraste com o velho parentesco que as une ao mito no Medievo a Histria no deixava de ser histria (story), como crnica de fatos que tambm podiam ser feitos legendrios. (...) A primeira dicotomia da Histria Profana e Sagrada seguiu-se, no sc. XVII, depois que os humanistas do Renascimento situaram os estudos histricos na vizinhana Retrica, o delineamento de uma segunda bifurcao: a Histria-arte e a Histria-cincia, a narrao e a pesquisa, definidas e separadas no sculo XIX. (p. 10).

A Histria-arte , sobretudo uma narrativa de acontecimentos, que os recria como se fossem presentes. Fazendo do historiador um contemporneo sinttico e fictcio do que ocorreu, fornece-nos imagens do passado, recuperado, tornado visvel. Ela no se exime, portanto, do esforo da imaginao projetiva, que acusa a vivncia particular do historiador, parente prximo do artista. (p.10).

(...) Mas a Histria-pesquisa, possibilitada pela ideia de uma no-coincidncia do conhecimento e da percepo, conquista, no que tem de essencial, da revoluo cientfica dos sculos XVI e XVII, antes de tudo uma Histria da Histria, uma histria do acesso ao passado, de que no oferece seno um conhecimento mediato, indireto, e, portanto fora da esfera do visvel, mediante traos ou vestgios (documentos, monumentos) visveis e presentes. Conhecimento mediato incorporando o processo crtico das fontes que o valida ao mesmo tempo justificao do alcance de seus prprios meios, empregados numa reconstruo conceptual do passado. Aqui a imaginao projetiva parece ausentar-se, a vivncia particular do historiador substituda pela ordem das razes, como garantia da objetividade de sua reconstruo. (p. 11).

DUALIDADES Essas duas espcies bifurcadas de uma mesma disciplina assinalam pelo menos, segundo Pomiam, a ambiguidade cognoscitiva da histria oscilando entre duas epistemologias no coincidentes a implcita do historiador escritor, e aquela, algumas vezes explicitada, do historiador pesquisador.... Tal dualidade epistemolgica teria favorecido a passagem da histria ao mbito das Cincias Sociais, que alargaram para os fatos presentes, reconstrudos, o alcance do conhecimento mediato. A prtica institucionalizada do conhecimento histrico, assimilando a desconfiana das Cincias Sociais aos acontecimentos, acabaria, em consequncia, por abandonar a narrativa. (p.11).

Em princpio, a Histria e a Fico se entrosam como formas de linguagem. Ambas so sintticas e recapitulativas; ambas tm por objeto a atividade humana. (...) Enquanto obras de imaginao, no diferem os trabalhos do historiador e do novelista. Diferem enquanto a imaginao do historiador pretende ser verdadeira. (p. 11-12).

QUESTES IMPORTANTES DO TEXTO Como entra o tempo na Teoria da narrativa? Como entra a narrativa na teoria da Histria? Como Histria e Fico se interpenetram? So as respostas de Ricoeur a essas indagaes que exporemos e comentaremos a seguir. (p. 12-13).

II. Narrativa, discurso e tempo

Para Ricoeur, fenomenlogo de origem, todo sistema, sendo unidade sinttica portadora de sentido, remonta a uma atividade organizadora configurante; como princpio de inteligibilidade ou compreenso, o enredo (mise en intrigue), que participa do carter de ato da mmesis uma operao de configurao: integra fatos dispersos na totalidade de uma histria, liga num s conjunto fatos heterogneos, e ainda terceira funo mediadora sintetiza a dimenso episdica dos fatos com a dimenso da histria como um todo. Desse ltimo aspecto, inseparvel dos demais, do enredo aristotlico, que foi transformado em modelo extensivo, abrangente dos elementos formadores e funcionais da tragdia carter ou personagem, dico, pensamento, mudana de fortuna e catarse sobressai, de dois modos, o vetor temporal da narrativa. (p. 14).

Iniciada por Emile Benveniste, a reabilitao do discurso, primeiro passo na direo de uma lingustica da fala (parole), foi o cerne da crtica de Ricoeur ao estruturalismo. Em oposio linguagem enquanto sistema, o discurso atualiza em frases mesmo um complexo mais extenso do que a frase as significaes virtuais de um repertrio finito. O sistema intemporal. O discurso, que tem a natureza de acontecimento, temporal; ato do sujeito como interlocutor, que se comunica com outrem a respeito de alguma coisa, combina sentido e referncia. Essa funo transitiva subsiste modificadamente ao se objetificar na escrita, convertendo-se em texto, prioritariamente tratado como obra literria individualizada pelo estilo e condicionada aos padres histricos dos gneros. Por um lado, a escrita interrompe o aqui e agora da interlocuo, por outro, a mmesis abala o nexo referencial do discurso. Nessas condies, a significao do texto no pode corresponder mais inteno do autor nem referncia s coisas e objetos que a linguagem ordinria descreve. A significao autnoma e a perturbao do senso do real introduzem no discurso a brecha da fico, por onde se configura o mundo da obra atravs do enredo. Esse plano da configurao tambm o das estruturas formais e do sentido imanente ao texto. (p. 15).

Podemos, depois disso, reconsiderar a relao entre narratividade e temporalidade. Tudo o que se conta, acontece no tempo, toma tempo, sobre o fundo discursivo da compreenso narrativa que j temporal. Portanto, aquilo que se desenrola no tempo pode ser contado, ou antes pode ser reconhecido como temporal na medida em que suscetvel de articular-se na forma discursiva do enredo. Integrando fatos dispersos, ligando num s conjunto fatos heterogneos, essa articulao aparenta-se operao do juzo reflexivo kantiano. forma discursiva, configurante do enredo, atribuir-se- funo anloga da imaginao transcendental, intuitiva e genrica, que elabora os esquemas do Entendimento. Nesse sentido, a narrativa pertenceria famlia das formas simblicas. A universalidade do gnero autorizara Ricoeur a afirmar que em todas as culturas a narrativa prov forma da experincia do tempo. Contando histrias, os homens articulam sua experincia do tempo, orientam-se no caos das modalidades potenciais de desenvolvimento, carcam com enredos e desenlaces o curso complicado das aes reais dos homens. Deste modo, o homem narrador torna narrador inteligvel para si mesmo a inconstncia das coisas humanas, que tantos sbios, pertencendo a diversas culturas, opuseram ordem imutvel dos astros. (p.16).

III. Tempo, ao e mmesis

(...) Mas como no se pode dizer com propriedade que h trs tempos, a intentio dever condens-los num nico momento: o presente do presente, o presente do passado e o presente do futuro. Eis o primeiro paradoxo.Esse presente triplicado concentraria a alma num s ponto, o presente do presente, por onde o tempo passa e pelo qual pode ser medido, de modo que o futuro vai se tornando passado medida que se abrevia a expectativa e alonga-se a memria. Origina-se da o segundo paradoxo que o conceito de distentio resolveria.A distentio confere ao prprio esprito atravs da memria, da ateno e da expectativa, tomadas como atos de uma s inteno. Assim, sem possuir extenso terceiro paradoxo o tempo se especializaria. O exerccio da memria, que conserva as impresses do que passou, e o da ateno que permite medi-lo acrescentam, com o quarto paradoxo, um elemento de passividade atividade do esprito. Finalmente, do imutvel presente (nunc stans) a existncia divina, que para o Santo Doutor solucionaria o enigma da existncia temporal, surge o contraste maior entre o tempo e eternidade. (quinto paradoxo)Esses cinco paradoxos imprimem distentio animi o cunho de discordncia na concordncia, numa dialtica interna anloga mas inversa da narrativa, segundo o modelo aristotlico de enredo, que organizando fatos heterogneos, dando sucesso de episdios sem excluir a mudana de fortuna dos personagens para o prazer do espectador o efeito catrtico equilibrador de suas paixes extremas compe a harmonia de foras contrrias da concordncia na discordncia. (p.18-19). claro que a narrativa no resolve as aporias do tempo no sentido estrito de soluo filosfica, especulativa, a um problema da Razo. Executado na clave aportica de categorias mutuamente irredutveis instante e momento presente, tempo vivido e tempo natural e eternidade o trabalho que compete tanto narrativa histrica quanto narrativa ficcional um trabalho de harmonizao e de concordncia dos contrrios. Porm a elucidao do lao recproco entre narratividade e temporalidade, que se apoia principalmente no resultado desse trabalho, depende do alcance da mmesis. (p.20)

A mmesis, que no se esgota na configurao, primeiramente imitatio, no sentido de que comea no mbito da ao e da cultura, carregando para a obra a pr-compreenso de uma e a armao simblica da outra. Aquela inculca narrativa a estrutura intencional da ao: reconhecimento antecipado de fins, motivaes dos agentes condicionadas a circunstncias, interao participativa ou conflitiva, e consequncias felicidade ou desdita independentemente dos fins visados. Mas levando-se em conta que a antecipao dos fins uma projeo do futuro, que as motivaes dos agentes implicam numa experincia retrospectiva (passado) e as circunstncias condicionais execuo de atos num dado momento (presente), lcito concluir que essa estrutura inteligvel da prtica tem por base uma pr-compreenso temporal. (p. 20).

Seria um equvoco ver no enredo um modelo puramente formal. Recondicionando-no os tipos, resultantes das obras singulares, e os gneros. Enquanto paradigmas, formas, gneros e tipos, produzem efeitos cumulativos reguladores a sedimentao sob o fundo da qual se concretiza o desvio das inovaes, fonte de outras regras, suscetveis de se tradicionalizarem. De acordo com essa alternncia entre sedimentao e inovao, o enredo, se lhe dermos a acepo ampla que a Potica de Aristteles autoriza incluindo o carter e o pensamento, alm dos episdios e acidentes no abandonar a cena literria. (p. 21).

Posto que o texto narrativo um convite para ver a nossa prxis como ordenada por tal ou qual enredo articulado em nossa literatura, essa projeo se d quando a inteligibilidade pratica, subjacente compreenso narrativa, despertando no leitor o entendimento de sua prpria ao, leva-o a retomar o mundo da obra no mundo histrico, efetivo, em que est situado. Com essa retomada, afirma-se o inteiro poder da leitura; efetuando o balano entre sedimentao e inovao, ela capaz de refigurar a realidade, inclusive e principalmente sob o aspecto temporal. Mas assim como a realidade refigurada passa pela inteligibilidade prtica que a obra absorveu, assim tambm o tempo em particular, articulado pelo enredo, traz a marca da intemporalidade que inerente ao. (p. 21).

IV. Tempo e fico

(...) A dualidade temporal, reconhecida pela Teoria da Literatura, que da se origina o tempo do narrado e o tempo do narrar , segundo a distino inaugurada por Gnther Mller, e que reaparece, com diferente terminologia, em outros autores, tem mais do que um alcance semntico como sistema de transformaes temporais. O sistema de interdependncias das variaes prospectivas ou retrospectivas (anacronias), enquanto formas de discordncia entre duas ordens temporais, por um lado, e das variaes quanto durao, que vai dos acontecimentos imaginrios aos discursos, uma experincia temporal fictcia, favorecida por outras molas da arte de narrar, como ponto de vista e a voz. Aquele obriga o leitor a dirigir seu olhar no mesmo sentido que o autor ou o personagem; a ltima, correspondendo ao ato de narrar, assinala o presente da narrao a partir do qual o mundo do texto apresentado ao leitor. (p. 24).

(...) Ricoeur devolve ao pretrito pico a sua funo temporal, exercida porem no nvel do efeito de distanciamento esttico. Dentro da experincia fictcia, o irreal e o passado se equivalem. Essa equivalncia rege o pacto ficcional entre o autor e o leitor. Ler um conto, uma novela ou um romance, inclui a crena de que os acontecimentos reportados pela voz da narrativa pertencem ao passado dessa voz. Por conseguinte, o passado afiana a crena que garante a leitura da fico como fico. nesse caso, comparado com o passado real da Histria, um quase-passado. (p. 24).

EXPERINCIA FICTCIA DO TEMPO (...) Ela se realizaria atravs do jogo entre os tempos, como parte principal da refigurao da realidade na retomada da obra pelo leitor. (...) Resumimos em duas as postulaes bsicas, constantes dos escritos hermenuticos de Ricoeur, que resolveriam esse dilema: a realidade sui generis da fico e o alcance redescritivo da experincia fictcia do tempo.

A primeira postulao firma-se no quadro conceptual j nosso conhecido, da metfora como predicao impertinente, que restabelece a vigncia da noo de imagem enquanto uso semanticamente inovador da linguagem, sob o pressuposto da equivalncia entre mmesis e poiesis. O primeiro efeito da imagem semanticamente inovadora, integrada ao discurso feito obra, e que decorre da mmesis, a suspenso da referncia pelo prprio mundo que a obra fabricou ou fingiu. (p. 24)

(...) impe-se concluir que a irrealidade do que chamamos fico uma forma de redescrio do real tomando-se porm essa ltima palavra no mais no sentido de realidade emprica. Ampliando a concluso, diremos que a fico est para o discurso potico assim como a fora heurstica dos modelos est para a teoria cientfica. (p. 25).

O tempo: Mrs. Dalloway, A montanha mgica, La recherche du Temps Perdu

De tudo isso resulta que nada constrange o tempo ficcional a no ser a prpria estrutura da narrativa que o articula; as anacronias interrompem e invertem o tempo cronolgico, deslocando o presente, passado e futuro; e a sucesso pode contrair-se num momento nico, acrnico e intemporal. Essas modalidades de experincia temporal esto vedadas Histria, sobre a qual pesa o constrangimento do tempo cronolgico. irrealidade sui generis da Fico com o seu quase-passado, ope-se o passado real da Histria. (p. 25).

V. Tempo e Histria

Para a Histria, o movimento regressivo da investigao hermenutica, feito de encontro rica florao terica dessa disciplina, vai da explicao compreenso, da conexo causal dos fatos forma do enredo, da trama das estruturas sociais aos acontecimentos, e das entidades abstratas, impessoais, a agentes concretos. De maneira inversa, esses passos do recuo interpretativo, custa do desbaste crtico do positivismo nomolgico e do ramo frondoso da cole des Annales , que rejeita a narratividade da Histria, e, bem como das ousadas posies narrativistas mais recentes que lhe restringem ou negam o carter cientfico, permitem derivar do enredo, e por intermdio deste, da prtica, os conceitos e categorias do conhecimento histrico. (p. 27).

(...) Dependente da organizao do heterogneo, e portanto do enredo, o conhecimento histrico, (...) essencialmente historiogrfico, comportando diversos estilos de escrita o romanesco, o cmico, o trgico e o satrico passaria do estado de cincia ao estado de criao literria. (p. 27).

(...) O acontecimento est para as estruturas, assim como a peripcia est para o enredo. Permitindo manter o lao analgico entre o tempo dos indivduos e o tempo das civilizaes, nem completamente singular, nem inteligvel apenas como ato do indivduo, porque integra a rede dos efeitos involuntrios e impessoais da ao, o fato histrico recebe o perfil analgico de um quase-acontecimento, que o emparelha com o quase-enredo e com o quase-personagem. (p.28).

So essas trs amarras, quase-enredo, quase-personagem e quase- acontecimento, que mantm a Histria ligada narrativa, com a qual pode romper inteiramente porque no pode romper com a ao, que implica em agentes, em afins, em circunstancias, em interaes e em resultados voluntrios e involuntrios. Configurando, pelo trabalho da imaginao, os fatos passados na forma de um mundo recomposto, reconstitudo, a Histria tambm configura o seu tempo prprio. A fisionomia narrativa do tempo histrico, que conjuga o tempo csmico e o tempo vivido, replica, poeticamente, semelhana da Fico, uma aporia da temporalidade. (p.28-29)

CONECTORES QUE LIGAM A HISTRIA MIMESISO primeiro conector o calendrio, base da datao, que em princpio entrosa a sucesso cclica dos movimentos astronmicos a um eixo referencial da atividade humana por acontecimentos significativos rituais, festas ou fatos comemorativos. Enquanto pela primeira, todos os instantes recortados sobre sucesso dos fenmenos naturais, so equivalentes, pelo segundo cada instante se divide em presente passado e futuro. O segundo conector, que une o tempo biolgico das geraes relao entre contemporneos, antecessores e psteros, levar-nos- de volta ao intratemporal com o auxlio da fenomenologia do social de Alfred Schutz. A experincia de meus contemporneos implica num processo de reconhecimento annimo, a de meus predecessores se d como memria do passado atravs de registros e de monumentos, e a de meus sucessores tem a indeterminao do futuro. A memria individual no alcanaria o passado histrico se no a enriquecessem tradies recolhidas dos antepassados como tempo dos mortos e tempo anterior ao meu nascimento. Mas a tradio, que um sortimento de memrias, por isso instaurando uma relao com o passado em termos de ns, escapa rbita exclusiva da temporalidade como unidade esttica, restrita existncia individual, para firmar-se no tempo pblico. Pela mediao desse que o passado, o presente e o futuro se vinculam trade dos antecessores, dos contemporneos e dos psteros. (p. 29).

VI. Contraponto (2)

Atravs da pesquisa e da crtica dos documentos, a Histria visa a conhecer o passado real. Uma convico robusta anima aqui o historiador: o que quer que se diga do carter seletivo da escolha, da conservao e da consulta dos documentos, de sua relao com as questes que a respeito deles o historiador formula, e afinal das implicaes ideolgicas de todas essas manobras, o recurso aos documentos assinala uma linha divisria entre histria e fico; diferindo do romance, as construes do historiador pretendem ser reconstrues do passado. (p. 32).

(...) a distncia temporal interferente alerta-nos sobre o equvoco do conceito de representao nesse domnio. Aplic-lo seria pressupor que o historiador reconstri uma realidade original dada. Ora, entre o historiador e a realidade no mais existente, que deixou de ser, a relao, nem de completo distanciamento nem de coincidncia, s pode ser analgica, de carter metafrico, o que comparvel com o plano configurativo da narrativa. No se pode conhecer o que j foi, atravs de documentos, seno solicitando da imaginao os seus recursos tropolgicos. Mediante esses recursos, o historiador conhece reconstruindo, mas a sua reconstruo uma figurao. Desse modo, reaparece na verdade histrica o elemento ficcional, que Leopold Ranke pretendeu abolir. (p. 33).

Narrar contar uma histria, e contar uma histria desenrolar a experincia humana do tempo. A narrativa ficcional pode faz-lo alterando o tempo cronolgico por intermdio das variaes imaginativas que a estrutura auto-reflexiva de seu discurso possibilita, dada a diferena entre o plano do enunciado e o plano da enunciao. A narrativa histrica desenrola-se por fora da mimesis em que implica a elaborao do tempo histrico, ligando o tempo natural ao cronolgico. (p. 34).

Como entra o tempo na teoria da narrativa?O tempo entra na teoria da narrativa pela porta larga do discurso e a se elabora de acordo com a dinmica do enredo. Mas como essa dinmica est condicionada compreenso da narrativa, por sua vez condicionada inteligibilidade prtica, o tempo entra por aquela porta do discurso, que tambm a dos atos de linguagem, vindo da dimenso intratemporal da existncia humana, conforme atesta a pr-compreenso da ao que a mmesis carreia para a obra. Da a natureza circular do nexo recproco entre narratividade e temporalidade: a articulao narrativa do tempo depende de uma experincia temporal prvia. (p. 34).

Como entra a narrativa na teoria da histria?(...) diremos que a narrativa entra na teoria da histria pela porta da inteligibilidade da histria (story) sua aptido para ser erguida, que remonta, em ltima anlise, pr-compreenso da ao. Dessa maneira, estamos sempre dentro do mesmo crculo hermenutico que circunscreve a temporalidade da Histria e da Fico. Pois se o tempo de ambas narrado (temps racont), e assim configurado, essa articulao da experincia temporal j se encontra esboada no mundo-da-vida, onde duas espcies narrativas se enrazam. (p. 34).

Como histria e fico se interprenetram?O crculo se romperia ou se agravaria? com a refigurao do tempo pelo ato da leitura, extensivo Histria. Ao ler uma obra historiogrfica, as potncias imaginativas da figurao tornam visvel o passado. A imaginao se faz visionria: o passado o que eu teria visto, aquilo de que eu teria sido a testemunha ocular, se tivesse estado l, tal como o outro lado das coisas aquele que eu veria se as percebesse de onde voc as considera. A leitura, portanto, ficcionaliza a Histria. Em contrapartida, a leitura historioriciza a Fico, na medida em que a voz narrativa situa no passado o mundo da obra. , pois, na refigurao do tempo que a narrativa histrica e a narrativa ficcional se interpenetram sem se confundirem respondida assim a terceira pergunta, pode-se concluir que as duas epistemologias, a da Histria-Cincia e a da Histria-Arte, referidas no incio deste trabalho, se complementam na base do tronco narrativo comum que tambm une, como formas simblicas similares do pensamento, Histria e Fico. (p. 34-35). 7