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NUANCES DA TERRITORIALIDADE NO PARQUE NACIONAL DA CHAPADA DIAMANTINA: MODOS DE VIVER E PERTENCER DÉBORA PAULA DE ANDRADE OLIVEIRA 1 Resumo A intensa relação entre os sujeitos sociais e as paisagens do Parque Nacional (PARNA) da Chapada Diamantina é um traço marcante na memória dos sujeitos sociais que as experienciam, pois vivenciar a paisagem ultrapassa a contemplação das belezas cênicas e da morfologia que a constitui: é ter a vida, o cotidiano e a memória entrelaçada a geograficidade que é peculiar a vivência desses grupos no território. A pesquisa em voga tem o propósito de analisar as múltiplas territorialidades construídas pelos sujeitos que de alguma maneira vivenciam o Parna Chapada Diamantina e a trama de relações e sentidos que o envolve. Nesse ínterim, pauta-se, especialmente na compreensão da territorialidade em suas nuances, a exemplo do sentido de viver e pertencer ao território, e também, como estratégia de permanência nele. Com uma proposta de análise qualitativa, que se aproxima da perspectiva fenomenológica, os procedimentos metodológicos desse estudo consistem na construção e articulação do referencial teórico, calcado, a priori nas categorias território, memória e paisagem. As contribuições de Raffestin (1993), Sack (1983) e Haesbaert (2007) tem norteado a discussão em torno dos meandros do território e da territorialidade. As premissas de Halbwachs (1991), Pollak (1993) e Bosi (1994) basilaram a reflexão em torno da memória, ao passo que os estudos de Berque (1984), Silva (2016) e Ab’saber (2003) fundamentaram a leitura da categoria paisagem. Buscou-se tecer aproximações, de natureza teórica e empírica, no desafio de construir a leitura da realidade geográfica do Parna Chapada Diamantina. Paralelamente, está sendo realizado o levantamento de dados documentais, iconográficos e jornalísticos acerca do PNCD, além da pesquisa de campo e da realização de entrevistas com os sujeitos sociais protagonistas da pesquisa. A análise das territorialidades presentificadas na memória social e nas paisagens do universo da pesquisa permite que desvelemos uma trama de significações construídas pelos sujeitos sociais. Certas territorialidades, como as festividades, o artesanato e o turismo tem se constituído como estratégias de reprodução social e permanência dos grupos sociais no território, a exemplo de iniciativas voltadas à dinamização das economias locais, pautadas no saber-fazer e na comercialização do artesanato, que é marcado pelo saber-fazer geracional de grupos familiares na Chapada Diamantina. A produção artesanal de alimentos, joias, vestimentas e acessórios tem se mostrado como uma relevante estratégia de geração da renda na região. Outra territorialidade marcante construída pelos sujeitos do lugar é o turismo de base comunitária, especialmente com o trabalho dos guias locais: sujeitos que tem traçado na memória os caminhos para desbravar as águas, as trilhas e os mirantes que formam as paisagens exuberantes do PNCD. Tais territorialidades são, no presente, os novos diamantes do lugar, pois asseguram a permanência e o modo de vida de coletivos sociais que vivenciam esse território e nele constroem suas tradições e trajetórias de vida. A Chapada Diamantina, marcada por um passado glorioso, que reluzia o brilho do diamante e num curto 1 Acadêmica do Curso de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Sergipe Email: [email protected]

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NUANCES DA TERRITORIALIDADE NO PARQUE NACIONAL DA CHAPADA DIAMANTINA: MODOS DE VIVER E PERTENCER

DÉBORA PAULA DE ANDRADE OLIVEIRA1

Resumo A intensa relação entre os sujeitos sociais e as paisagens do Parque Nacional (PARNA) da Chapada Diamantina é um traço marcante na memória dos sujeitos sociais que as experienciam, pois vivenciar a paisagem ultrapassa a contemplação das belezas cênicas e da morfologia que a constitui: é ter a vida, o cotidiano e a memória entrelaçada a geograficidade que é peculiar a vivência desses grupos no território. A pesquisa em voga tem o propósito de analisar as múltiplas territorialidades construídas pelos sujeitos que de alguma maneira vivenciam o Parna Chapada Diamantina e a trama de relações e sentidos que o envolve. Nesse ínterim, pauta-se, especialmente na compreensão da territorialidade em suas nuances, a exemplo do sentido de viver e pertencer ao território, e também, como estratégia de permanência nele. Com uma proposta de análise qualitativa, que se aproxima da perspectiva fenomenológica, os procedimentos metodológicos desse estudo consistem na construção e articulação do referencial teórico, calcado, a priori nas categorias território, memória e paisagem. As contribuições de Raffestin (1993), Sack (1983) e Haesbaert (2007) tem norteado a discussão em torno dos meandros do território e da territorialidade. As premissas de Halbwachs (1991), Pollak (1993) e Bosi (1994) basilaram a reflexão em torno da memória, ao passo que os estudos de Berque (1984), Silva (2016) e Ab’saber (2003) fundamentaram a leitura da categoria paisagem. Buscou-se tecer aproximações, de natureza teórica e empírica, no desafio de construir a leitura da realidade geográfica do Parna Chapada Diamantina. Paralelamente, está sendo realizado o levantamento de dados documentais, iconográficos e jornalísticos acerca do PNCD, além da pesquisa de campo e da realização de entrevistas com os sujeitos sociais protagonistas da pesquisa. A análise das territorialidades presentificadas na memória social e nas paisagens do universo da pesquisa permite que desvelemos uma trama de significações construídas pelos sujeitos sociais. Certas territorialidades, como as festividades, o artesanato e o turismo tem se constituído como estratégias de reprodução social e permanência dos grupos sociais no território, a exemplo de iniciativas voltadas à dinamização das economias locais, pautadas no saber-fazer e na comercialização do artesanato, que é marcado pelo saber-fazer geracional de grupos familiares na Chapada Diamantina. A produção artesanal de alimentos, joias, vestimentas e acessórios tem se mostrado como uma relevante estratégia de geração da renda na região. Outra territorialidade marcante construída pelos sujeitos do lugar é o turismo de base comunitária, especialmente com o trabalho dos guias locais: sujeitos que tem traçado na memória os caminhos para desbravar as águas, as trilhas e os mirantes que formam as paisagens exuberantes do PNCD. Tais territorialidades são, no presente, os novos diamantes do lugar, pois asseguram a permanência e o modo de vida de coletivos sociais que vivenciam esse território e nele constroem suas tradições e trajetórias de vida. A Chapada Diamantina, marcada por um passado glorioso, que reluzia o brilho do diamante e num curto

1 Acadêmica do Curso de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Geografia da

Universidade Federal de Sergipe Email: [email protected]

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intervalo conheceu a decadência. Hoje encontra no turismo uma nova possibilidade para dinamizar sua economia e viabilizar a permanência dos sujeitos sociais que historicamente as vivenciam. Palavras-chave: Chapada Diamantina. Memória. Territorialidades.

Abstract The intense relationship between the social subjects and the landscapes of the National Park of the Chapada Diamntina (PNCD) is a striking feature in the memory of the social subjects who experience them, for experiencing the landscape surpasses the contemplation of the scenic beauties and the morphology that constitutes it: to have life, the daily life and the memory intertwined the geography that is peculiar the experience of these groups in the territory. The research in vogue has the purpose of analyzing the multiple territorialities constructed by the subjects that somehow experience the PNCD and the network of relations and senses that surrounds it. In the meantime, it focuses, especially on the understanding of territoriality in its plural nuances, such as the sense of living and belonging to the territory, and also, as a strategy of permanence in it. With a proposal of qualitative analysis, approaching the phenomenological perspective, the methodological procedures of this study consist in the construction and articulation of the theoretical reference, based, a priori in the categories territory, memory and landscape. The contributions of Raffestin (1993), Sack (1983) and Haesbaert (2007) have guided the discussion around the meanders of territory and territoriality. The premises of Halbwachs (1991), Pollak (1993) and Bosi (1994) grounded the reflection around memory, while the studies of Berque (1984), Silva (2016) and Ab'saber (2003) grounded the reading of the landscape category. It was tried to make theoretical and empirical approximations in the challenge of constructing the reading of the geographical reality of the PNCD. At the same time, the collection of documentary, iconographic and journalistic data about the PNCD is being carried out, as well as field research and interviews with the social protagonists of the research. The analysis of the territorialities present in the social memory and in the landscapes of the research universe allows us to unveil a web of meanings constructed by the social subjects. Certain territorialities have been constituted as strategies of social reproduction and permanence of social groups in the territory, such as initiatives based on the dynamization of local economies, based on the production and marketing of handicrafts, which is marked by the generational know-how of family groups in the Chapada Diamantina. The artisanal production of food, jewelry, clothing and accessories has proven to be a relevant income generation strategy in the region. Another remarkable territoriality built by the locals is community-based tourism, especially with the work of local guides: subjects who have traced in their memory the paths to clear the waters, the paths and the lookouts that form the lush landscapes of the PNCD. Such territorialities are at present the new diamonds of the place, since they ensure the permanence and way of life of social collectives who live in this territory and in it build their traditions and life trajectories. The Chapada Diamantina, marked by a glorious past, which gleamed the brilliance of the diamond and in a short interval knew the decay. Nowadays, it finds in tourism a new possibility to stimulate its economy and to enable the permanence of the social subjects who have historically experienced them.

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Key-words: Chapada Diamantina. Memory. Territorialities

1. INTRODUÇÃO

A aproximação entre a Memória Social e a Geografia tem se revelado

como uma perspectiva instigante e fértil para a leitura da realidade sob

diferentes enfoques. Elencou-se, como fio condutor dessa análise, a

compreensão das múltiplas nuances que as territorialidades assumem nas

configurações territoriais do Parque Nacional (PARNA) Chapada Diamantina.

Localizado na região central do Estado da Bahia, esse Parna abrange áreas de

seis municípios: Mucugê, Lençóis, Andaraí, Itaetê, Ibicoara e Palmeiras (Figura

1).

Figura 1 – Localização do Parna Chapada Diamantina.

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Fonte: Elaborado pela autora.

O Parna Chapada Diamantinafoi implantado em 17 de setembro de

1985, via decreto nº 91.655 de 17 de setembro de 1985. Segundo esse

documento, a unidade de conservação foi instituída com o propósito de “[...]

proteger amostras dos ecossistemas da Serra do Sincorá, na Chapada

Diamantina”, de modo a assegurar “[...] a preservação de seus recursos

naturais e proporcionando oportunidades controladas para uso pelo público,

educação, pesquisa científica e também contribuindo para a preservação de

sítios e estruturas de interesse histórico-cultural existentes na área” (BRASIL,

1985)

A intensa relação entre os sujeitos sociais e as paisagens dessa unidade

de conservação é um traço marcante na memória dos sujeitos sociais que as

experienciam, pois vivenciar a paisagem ultrapassa a contemplação das

belezas cênicas e da morfologia que a constitui: é ter a vida, o cotidiano e a

memória entrelaçada a geograficidade que é peculiar a vivência desses grupos

no território.Haesbaert (2016), por sua vez, compreende que “[...] o espaço,

além de acumular tempo, em matéria ou representação, de algum modo

também gera o próprio tempo, a transformação, pelo embate dessas múltiplas

trajetórias coetâneas” (HAESBAERT, 2016, p.23). Assim, ao reconhecer os

conteúdos sociais presentes na relação espaço-tempo, o autor aborda a

relação espaço-território por meio das singularidades intrínsecas as relações

socioespaciais que lhe deram conformidade, uma vez que “[...] o espaço,

portanto, e nele o território – quando o espaço é visto através de suas relações

de poder – é também condiçao para o múltiplo, para o novo (HAESBAERT,

2016, p.23).

A pesquisa em voga tem o propósito de analisar as múltiplas

territorialidades construídas pelos sujeitos que de alguma maneira vivenciam o

Parna Chapada Diamantina e a trama de relações e sentidos que o envolve.

Nesse ínterim, pauta-se, especialmente na compreensão da territorialidade em

suas nuances no sentido de viver e pertencer, assim como na constituição de

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estratégias para a permanência no território.Embora a pesquisa esteja em

andamento, apresenta-se nesse artigo algumas reflexões preliminares

decorrentes do seu desenvolvimento, no campo teórico, metodológico e

empírico.

2. ARTES DO FAZER: CONEXÕES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS

Trilhar os caminhos da pesquisa ao percorrer os horizontes da construção

do conhecimento constitui-se num difícil, porém instigante desafio. O método,

se configura nesse contexto, como o norte que guiará as análises e

interpretações em que convergem todos os procedimentos metodológicos e

instrumentais de pesquisa.

Com uma proposta de análise qualitativa, compreende-se que o método

que melhor se adéqua as nossas questões de pesquisa é a perspectiva

fenomenológica, ancorada nos estudos de Merleau-Ponty (1948), Dardel (2011

[1952]) e Holzer (1997), dentre outros autores.

Os procedimentos metodológicos, por sua vez, consistem na construção e

articulação do referencial teórico, calcado, a priori nas categorias território,

memória e paisagem.

As contribuições de Raffestin (1993), Sack (1983), Menezes (2009) e

Haesbaert (2007) têm norteado a discussão em torno dos meandros do

território e da territorialidade, lidos como constructos sociais permeados por

relações de poder e significações diversas. As premissas de Halbwachs (1991)

e Pollak (1993) basilaram a reflexão em torno da memória, compreendendo-a

como expressão e apropriação do tempo vivido e dos conteúdos sociais

presentes no ato de rememorar e esquecer. Os estudos de Berque (1984),

Silva (2016) e Ab’saber (2003) fundamentaram a leitura da categoria paisagem,

lida em toda sua multiplicidade de sentidos, que permitem a apreensão da

geograficidade presente na convergência de tempos humanos e naturais.

Buscou-se tecer aproximações, de natureza teórica e empírica, no desafio

de construir a leitura da realidade geográfica do Parna Chapada Diamantina.

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Paralelamente, está sendo realizado o levantamento de dados documentais,

iconográficos e jornalísticos, além da pesquisa de campo e da realização de

entrevistas com os sujeitos sociais protagonistas da pesquisa. No que

concerne a concreticidade das vivências nas pesquisas de campo, tomou-se

como recorte espacial o município de Mucugê, pois esse assume centralidade

no contexto regional, tendo em vista que sua influência na unidade de

conservação. As discussões que seguem apresentam reflexões acerca da

realidade em tela.

3. PARQUE NACIONAL DA CHAPADA DIAMANTINA: TERRITORIALIDADES

CRIADAS E VIVIDAS

O processo de formação territorial da região baiana denominada

Chapada Diamantina teve influência das atividades minerais,relacionadas à

extração do ouro e de diamante.O garimpo, como principal atividade

econômica das Lavras Diamantíferas2 no século XX, deixou profundas

cicatrizes nas paisagens e na sociabilidade local, pois como pondera Ab’Saber

(2003) a paisagem é a convergência de processos sociais e naturais que ao

longo do tempo dão conformidade ao território. A paisagem, segundo tal

perpectiva, não deve ser lida apenas em sua dimensão estrutural e

morfológica, uma vez que é plena de conteúdos sociais e históricos.

A leitura das paisagens da Chapada Diamantina requer a compreensão

da historicidade que lhe é intrínseca. Segundo Guanaes (2001), a toponímia da

região é uma referência a “[...] à presença das jazidas de diamantes em seu

subsolo. O garimpo manual, artesanal ou de serra - nomes usados para

designar um único tipo de garimpo - é uma atividade tradicional da região e em

especial dos municípios de Lençóis, Andaraí e Mucugê” (GUANAES, 2001,

p.15). Ainda que tenha cessado e perdido relevância econômica, o garimpo de

2De acordo com Léda (2003, p.249) “As Lavras Diamantinas se constituíram como uma área de mineração na serra do Sincorá, atividade que foi a base para o intenso comércio que se concentrava nas cidades de Lençóis, Mucugê, Andaraí, Palmeiras e Igatu”

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diamantes se tornou um traço marcante na identidade territorial dos municípios

que formam as Lavras Diamantíferas.

Cruz (2007) argumenta que a identidade territorial tem como alicerce as

tradições e as traduções, relacionadas as noções de passado e futuro,

respectivamente. Isso porque os processos de identificação e os vínculos de

pertencimento que estão sempre em curso, são marcados pelas “raízes”, que

podem ser lidas como heranças e memórias, que o autor delineia no campo da

tradição. As tradições remetem em estratégias para o futuro, rotas, rumos e

projetos expressos em um devir territorial, como possibilidade. Essa reflexão

sobre tradição, articulada a ideia de passado e tradução, atrelada ao futuro

corroboram a compreensão de identidade territorial como um contructo

carregado de historicidade.

As imbricações entre os conteúdos sociais do tempo são expressas na

memória e no território. Assim, compreende-se que as reflexões que envolvem

a dimensão social da memória são de natureza interdisciplinar, contudo,

apresentam-se como perspectivas de análise especialmente instigantes e

relativamente pouco difundidas no âmbito da Ciência Geográfica.

A análise das territorialidades presentifcadas na memória social e nas

paisagens do Parna Chapada Diamantina permite que desvelemos uma trama

de significações construídas pelos sujeitos sociais. Ao refletir sobre as múltiplas

nuances que a territorialidade assume nesse contexto, é essencial abordar as

relações de poder e conflitualidades que também o delineiam, a exemplo da

monopolização do território para o agronegócio, realidade que impera numa

parcela significativa das áreas rurais de Mucugê (Figura 2).

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Figura 2- Carta-imagem do Município de Mucugê.

Fonte: Elaborado pelas autoras.

A análise da carta-imagem, elaborada com base na imagem do satélite

rapid-eye do município e entorno de Mucugê permite que analisemos, ainda

que de forma preliminar, um panorama acerca da estrutura fundiária que

atualmente rege esse território. Na região oeste do município, subsequente ao

flanco ocidental da Serra do Sincorá estão instalados centenas de pivôres-

centrais, sistema característico da agricultura industrial de larga escala. Essa

área corresponde a região conhecida como Campos Gerais, caracterizado pelo

relevo plano, solos profundos e abundancia de recursos hídricos. Além de

constituir-se numa questão ambiental, a expansão do agronegócio é também

uma ameaça a permanência, reprodução e autonomia de grupos sociais que

desenvolvem a agricultura familiar no território. Trata-se, indubitavelmente de

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uma territorialidade verticalizada, que foi imposta por segmentos externos a

realidade local.

Para Sack “[...] Territoriality is a means of afecting a interaction and

extands the particulars of action by contact3 (SACK, 1983, p. 55). Segundo o

autor, a territorialidade é construída em relações de interação, tanto entre

sujeitos e coletivos sociais, quanto destes com o espaço.No caso de Mucugê,

sublinha-se o artesanato com as sempre-vivas e o capim dourado e também a

produção agroecológica de frutas vermelhas (Figura 3), que tem encantado

turistas e moradores.

Figura 3 - Produção de morangos agroecológicos e derivados em Mucugê, 2019.

Fonte: Acervo de Jair Galera, 2019.

O saber fazer associado a produção e comercialização de alimentos,

bebidas e artesanatos constituem territorialidades,que podem ser vistas como

estratégias de reprodução social e permanência dos grupos sociais no

território, a exemplo de iniciativas pautadas na dinamização das economias

locais.Tais relações são plenas de conflitos, significações e (i)materialidades,

pois é no território que se desenvolvem as estratégias de permanência e

3Territorialidade é um meio de afetar uma interação e amplia os detalhes da ação por contato (Tradução nossa).

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reprodução social dos grupos, entendidas por Menezes (2009) como

territorialidades criadas pelos sujeitos sociais.

A produção artesanal de alimentos, joias, vestimentas e acessórios tem

se mostrado como uma relevante estratégia de geração da renda na região.

Outra territorialidade marcante construída pelos sujeitos do lugar é o turismo de

base comunitária, especialmente com o trabalho dos guias locais: sujeitos que

tem traçado na memória os caminhos para desbravar as águas, as trilhas e os

mirantes que formam as paisagens exuberantes do Parna Chapada

Diamantina. As belezas cênicas, tão características das paisagens

mucugeenses, e também do entorno torna possível a realização de diversas

atividades pelos turistas.

O território recebe a marca dos grupos sociais que o vivenciam, sejam

eles tradicionais, nativos, turistas e chegantes. O inverso também se faz

verdadeiro, à medida que as práticas sociais de um grupo podem se traduzir

em territorialidades. Tal proposição, além de reiterada no presente estudo pode

ser reinterpretada, pois segundo Mendes (2009), mais do que a vinculação a

um grupo em relação aos lugares, paisagens e territórios, é possível “[...]

pensar na mediação da experiência do vivido como referência da memória, e,

nesse caso, a intersecção com o espaço é inevitável” (MENDES, 2009, p.52).

Tal proposição encontra respaldo na assertiva de Holzer (2000), quando

pondera que quaisquer leituras que levem em consideração a espacialidade

humana, podem se referenciar na memória social. Assim, memória e território

tem se constituído como premissas instigantes para pensarmos as

territorialidades como elo e/ou permanência no território, pois como adverte

Halbwachs (1990), toda memória é circunscrita num dimensão espaço-tempo.

Dentre as territorialidades que marcam o contexto territorial de Mucugê,

é seu calendário festivo, que alia eventos tradicionais e festas criadas para

fortalecer a economia e a cultura local. Entre esses eventos, destacam-se a

Feira Literária (FLIGÊ), a Feira de Gastronomia e o Festival de Forró,

representados nos encartes exportos na Figura 3.

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Figura 3- Alguns eventos que integram o calendário festivo de Mucugê.

Fonte: Assessoria de comunicação de Mucugê.

Em entrevista com o secretário de turismo do município,este enfatizou

que a criação desses eventos atende a um claro propósito: criar a

periodicidade para suscitar a frequência dos turistas à Mucugê com o objetivo

de dinamizar a economiae manter a efervescência cultural da/na cidade, para

além dos feriados e datas comemorativas tradicionais. Mais que a dinamização

da economia, os moradores locais, em conversas informais, têm-se mostrados

satisfeitos com o novo calendário festivo mucugeense, pois agrega novos

elementos as tradições locais. Além disso, proporciona a geração de novos

postos detrabalho e, consequentemente renda em um território, onde a

memória da extrema pobreza e do abandono ainda se mostra muito presente.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As múltiplas territorialidades que coexistem na realidade do Parna

Chapada Diamantina são, no presente, os novos diamantes do lugar, pois

asseguram a permanência e o modo de vida de coletivos sociais que vivenciam

esse território e nele constroem suas tradições e trajetórias de vida.

As configurações históricas e territoriais da Chapada Diamantina são

marcadas por um passado glorioso, que reluzia o brilho do diamante e num

curto intervalo conheceu a decadência. Hoje encontra no turismo, na

agroecologia, no artesanato e na valorização das tradições e da memória

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local,novas possibilidades para dinamizar sua economia e viabilizar a

permanência dos sujeitos sociais que historicamente as vivenciam. Frente a

essas territorialidades, existe a monopolização do território com o agronegócio,

realidade consolidada no município.

No desvelar da paisagem mucugeense, tais relações sociais alimentam

uma complexa trama territorial, em que destacam-se interesses díspares e, por

vezes, incompatíveis permeados por relações de poder que conflituam com os

processos identitários e os sentidos de pertencimento que caracterizam a

permanência e a reprodução social no território.

5. REFERÊNCIAS

AB’SABER, A. N. Os domínios de natureza no Brasil: potencialidades paisagísticas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.

BRASIL. Decreto de Criação do Parque Nacional da Chapada Diamantina. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1980-1989/1985- 1987/D91655.htm>. Acesso em: 13 de jun. de 2019.

CRUZ, V. C. Itinerários teóricos sobre a relação entre território e identidade. In: BEZERRA, Amélia Cristina Alves et al. (Orgs). Itinerários Geográficos. Niterói: EdUFF, 2007. p. 13- 35.

DARDEL, E. O homem e a terra: a natureza da realidade geográfica. São Paulo: Perspectiva, 2011[1952].

BRASIL. Decreto de Criação do Parque Nacional da Chapada Diamantina. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1980-1989/1985- 1987/D91655.htm>. Acesso em: 13 de set. de 2017.

GUANAES, Senilde Alcântara. Nas Trilhas dos Garimpeiros de Serra: Garimpo e Turismo em Áreas Naturais na Chapada Diamantina-Ba. Dissertação de mestrado. Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas, SP: [s. n.], 2001.

HAESBAERT, R. As armadilhas do território.In: In: SILVA, J. B.; SILVA, C. N. M.; DANTAS, W. C. (org.). Território, modo de pensar e usar. Fortaleza: Edições UFC, 2016, p. 19-41.

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HALBWACHS, M. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

HOLZER, W. Uma discussão fenomenológica sobre os conceitos de paisagem e lugar, território e meio ambiente. Revista Território, ano li, nº 3, jul./dez. 1997. Disponível em: <http://www.revistaterritorio.com.br/pdf/03_6_holzer.pdf> . Acesso em: 21 de dez. de 2018.

LÉDA, R. L. M. Políticas públicas e territorialização do desenvolvimento turístico na Bahia: o caso da Chapada Diamantina. Tese (Doutorado em Geografia) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2003.

MERLEAU-PONTY, M. Conversas-1948. Martins Fontes: São Paulo, 2004. Tradução: Fábio Landa e Eva Landa.

MENDES, G. F. Sertão se traz na alma?território/lugar, memória e representações sociais. Tese (Doutorado em Geografia)- NPGEO, Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, 2009.

MENEZES, S. S. M. A força dos laços de proximidade na tradição e inovação no/doterritório sergipano das fabriquetas de queijo. Tese de Doutorado em Geografia. Núcleo de Pós Graduação em Geografia, Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, SE, 2009.

RAFFESTIN, C. Por uma geografia do Poder. São Paulo: Ática, 1993 [1980].

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