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NOVOS TEMAS Revista do Instituto Caio Prado Jr. Revista de Debate e Cultura Marxista

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Page 1: Novos Temas 3

NOVOS TEMASRevista do Instituto Caio Prado Jr.

Revista de Debate e Cultura Marxista

Page 2: Novos Temas 3

Revista Novos Temas

Editores Antonio Carlos MazzeoEdmilson Costa Milton Pinheiro – Editor Executivo

Conselho de RedaçãoAntônio Carlos MazzeoEdmilson CostaEduardo SerraIvana JinkingsMauro IasiMilton PinheiroPaulo BarsottiSofia Manzano

Conselho EditorialAldo Agosti – ItáliaAldrin Castellucci – UNEBAndrea Catone – ItáliaAngélica Lovatto – UNESPAnita Leocádia Prestes – UFRJAntonio Carlos Mazzeo – UNESPArmando Boito – UNICAMPBernadete Wrublevsky – UFSCCaio Navarro de Toledo – UNICAMPCarolus Wimmer – VenezuelaCelso Frederico – USPDomenico Losurdo – ItáliaEdmilson Costa – ICPEdmundo Dias Fenandes – UNICAMPEduardo Serra – UFRJFrancisco Teixeira – UECEIgor Grabois – Economista Ivan Pinheiro – AdvogadoIsabel Monal – CubaIvana Jinkings – JornalistaIvo Tonet – UFAL

Jair Pinheiro – UNESPJorge Grespan – USP José Meneleu Neto – UECEJosé Paulo Netto – UFRJLincoln Secco – USPLúcio Flávio de Almeida – PUC-SPMarcos Cassim – USPMarcos Del Roio – UNESPMarly Vianna – UFSCAR Massimo Modonesi (México)Mauro Iasi – UFRJMichel Löwy - FrançaMichael Zaidan Filho – UFPE Milton Pinheiro – UNEBMuniz Ferreira – UFBANelson Souza – SociólogoNeusa Maria Dal Ri – UNESPPablo Lima – UFMGPaulo Alves de Lima – EconomistaPaulo Barsotti – FGV-SPPaulo Cunha – UNESPPaulo Santos Silva – UNEBPavel Blanco Cabrera – MéxicoRaul Mateos Castels – LivreiroRicardo Antunes – UNICAMPRicardo Costa – FDRRoniwalter Jatobá - EscritorSerge Wolikow – FrançaSergio Lessa – UFALSergio Prieb – UFSMSilvia de Bernadinis – ItáliaSílvio Almeida – USJTSofia Manzano – UnicampValério Arcary – Cefet - SPVirginia Fontes – UFFVito Gianotti – JornalistaZuleide Faria de Melo – UFRJ

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NOVOS TEMASRevista do Instituto Caio Prado Jr.

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Copyright © Instituto Caio Prado Jr.

Projeto gráficoQuarteto Editora

Revisão de textoJosé Carlos Sant’Anna

CapaMorro da Favela, 1924 - Óleo / tela 64 X 76 - Tarsila do AmaralColeção João Estéfano, SPDisponível em: Portal do Movimento Estudantil no Brasil. http: //movebr.wikidot.com/galeria:tarsila-do-amaral.

Arte finalizaçãoDesignconceito

Novos Temas: Revista de debate e cultura marxista, nº 03. Salvador: Quarte-to; São Paulo: ICP; junho de 2011.

Semestral

ISSN 2175-6279

Vários colaboradores

1. Estudos Sociais. Crítica marxista - Periódicos I. Instituto Caio Prado Jr.

CDD -335.3

Indíces para catálogo sistemático

1. Crítica marxista 335

Todos os direitos desta edição reservados à:Instituto Caio Prado Jr.Rua Doutor Alfredo Éllis, 183, sala 124 - Bela VistaSão Paulo – SPCEP 01322-050Telefone: (11) [email protected]@uol.com.br

Quarteto EditoraAv. Antonio Carlos Magalhães, 3213

Edificio Golden Plaza, sala 702 e 1009 - Iguatemi41275-000 – Salvador – Bahia

Telefax: (71) 3452-0210 – Email: [email protected]

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A Novos Temas chega a seu terceiro número. O que pode parecer pouco para alguns é, na verdade, muito para uma revista que apesar de consolidada e vista como instrumento do debate vivo das questões centrais de nosso tempo pelos setores de vanguarda, ainda enfrenta problemas de todas as ordens. Por isso, é com orgulho de lutadores que apresenta-mos Novos Temas 03.

Neste número trazemos uma entrevista com um dos mais importantes fi lósofos marxistas da atualidade, Leandro Konder, que em 2010 recebeu Menção Honrosa do Prêmio Casa de las Américas por seu livro Memórias de um Intelectual Comunista. Nessa entrevista Konder fala de sua vasta e impor-tante obra e aborda conceitos fundamentais da Teoria Social Marxiana e da contribuição do fi lósofo húngaro GyÖrgy Lukács para o marxismo contemporâneo.

Na seção Fundamentos apresentamos o texto de karl Marx, Crítica do Programa de Gotha, escrito em 1875 para o Congresso das organizações operárias, realizado entre os dias 22 e 27 de maio de 1875, na cidade alemã de Gotha, que tinha por objetivo fundar o Partido Socialista Operário Alemão. Esse texto ainda de grande importância e atualidade para a crítica do oportunismo e do reformismo intrínseco à socialdemocracia, foi publicado por Friedrich Engels somente em 1891 na Neue Zeit.

Na seção Artigos, publicamos textos dos professores Marcos Cassin, sobre a construção do pensamento de Marx e Engels, enquanto corte epistemológico de rupturas e conti-nuidades; Silvana Aparecida de Souza, que aborda a temática das novas formas de exploração do trabalho e Sílvio Luís de Almeida, que discorre sobre a essência do direito sob a ótica do Materialismo Dialético.

Na seção História Imediata, trazemos ao leitor um balanço provisório da crise da sociabilidade do capital, com

Apresentação

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três vigorosos artigos. Francisco José Soares Teixeira perfaz a trajetória da socialdemocracia em seus diversos momentos históricos, inclusive sua chegada ao Brasil, com o Partido dos trabalhadores. Virgínia Fontes analisa a construção do que denomina Capital-Imperialismo, enquanto portador de juros, concentrador e expropriador do trabalho e dos recursos sociais. Jorge Beinstein discorre sobre os aspectos societais da crise do capital, analisando o fim do crescimento global e suas conseqüências que hoje materializam-se na crise das periferias capitalistas e na crise nuclear gerada pelo tsunami no Japão.

Na seção Ideias em Movimento, Antonio Carlos Mazzeo resenha o livro do filósofo GyÖrgy Lukács, Chvostimus und dialektik, a partir de sua edição italiana, que poderia ser traduzido como “Reboquismo e Dialética”, ainda inédito no Brasil. Nesse livro, Lukács debate as críticas e reelabora conceitos de seu já clássico História e Consciência de Classes. Ricardo da Gama Rosa Costa resenha o livro de Virgínia Fontes, O Brasil e o Capital Imperialismo: teoria e História, que analisa o capitalismo contemporâneo, onde verifica-se a ampla expansão do capital monetário impondo novas formas de expropriação da força de trabalho e convertendo as atividades humanas em mercadorias e instrumentos de valor de troca.

Com esses materiais esperamos que o número 03 de Novos Temas continue a contribuir para a análise crítica e para o debate da realidade hodierna da sociabilidade do capital.

Os Editores

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Sumário

Entrevista – com Leandro Konder: fi lósofo da dialética

FUNDAMENTOS17 Crítica ao programa de Gotha – Observações sobre o Programa

do Partido Operário Alemão Karl Marx

35 Louis Althusser e o corte epistemológico no pensamento de Karl Marx e Friedrich Engels

Marcos Cassin

47 Trabalho voluntário e responsabilidade social da empresa: novas formas de exploração da força de trabalho e de extração da mais-valia.

Silvana Aparecida de Souza

65 A política da forma jurídica Sílvio Luiz de Almeida

HISTÓRIA IMEDIATA75 O capital na era da luta de classes disciplinada Francisco José Soares Teixeira

103 O capital-imperialismo: algumas características Virgínia Fontes

133 Ironias da crise: de Bengazi a Fukushima Despolarização, fi m do crescimento global, rebeliões periféricas,

crises ideológicas Jorge Beinstein

IDEIAS EM MOVIMENTO147 Resenha – Chvostimus und Dialektik (Reboquismo e Dialética) Livro Inédito de György Lukács (Edição italiana, Coscienza di Classe e Storia

– Codismo e Dialettica, Roma, Edizioni Alegre, 207, 166 p., posfácio de Slavoj Zizek).

Antonio Carlos Mazzeo

151 Resenha – FONTES, Virginia. O Brasil e o capital imperialismo: teoria e história. Rio de janeiro: EPSJV, UFRJ, 2010, 384p.

Ricardo da Gama Rosa Costa

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I Entrevista:com Leandro Konder

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Leandro Konder: Filósofo da dialética 11

Leandro Konder nasceu em 1936, em Petrópolis, Rio de Janeiro, fi lho de Yone e Valério Konder que era médico e lí der comunista. Formou-se em direito pela UFRJ em 1958. Tornou-se militante comunista a partir de sua entra-da no PCB. Com o advento da ditadura militar, foi preso e torturado após o golpe, partindo em seguida para o exí lio na Alemanha e na França. Quando na Europa, além da militância junto aos exilados do PCB que buscavam formas de resistir à ditadura, aprofundou seus estudos na área de fi losofi a. Em seu retorno ao Brasil, doutorou-se pela UFRJ em fi losofi a, foi professor do departamento de história da UFF e do departamento de educação da PUC-RJ. Como intelectual marxista, foi um dos maiores responsáveis pela abertura do marxismo no Brasil para autores, até então bastante desco-nhecidos, como Antònio Gramsci, GyÖrgy Lukács, entre outros. Nesse sentido, foi responsável pela tradução e edição destes autores e da coletânia “Ensaios sobre literatura, de Lukács”. Como ensaí sta e intelectual dedicado ao estudo da estética, apresentou ao público brasileiro, autores do porte de Walter Benjamin, Della Volpe e Lucien Goldmann. Au-tor bastante fecundo tem diversos livros publicados sobre as questões do fascismo, da dialética, da fi losofi a da práxis e sobre literatura.

NT: Poderíamos começar esta entrevista conversando sobre as memórias do senhor como um intelectual comunista. Neste sentido, quais foram suas raízes e suas infl uências neste percurso?

LK: A primeira infl uência, sem dúvida, foi de meu pai, Valério Konder, que foi militante e dirigente do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Por infl uência dele e de seus companheiros, que viviam perseguidos, a meu ver, sem cul-pa alguma, resolvi entrar para a organização da Juventude Comunista.

leandro konder:fi lósofo da dialética

* Entrevista realizada, em maio de 2011, no Rio de Janeiro, pelos professores A.C.Mazzeo, Sofi a Manzano e Milton Pinheiro.

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12 Novos Temas, n. 3 Revista do Instituto Caio Prado Jr.

Devo a ele ainda, entre muitas outras coisas, o conhecimento de Lukacs: depois de uma viagem ao exterior e da indicação de companheiros comunistas franceses, ele me trouxe um exemplar de La signification presente du realisme critique.

NT: O senhor sempre foi um intelectual orgânico. Como ocorreu a sua entrada, a militância e a saída do PCB?

LK: Como disse acima, entrei como militante de Juventude Comunista, da qual me afastei por desídia: as reuniões eram no domingo, pela manhã, e nos sábados sempre havia festinhas noturnas, que se prolongavam pela madrugada. Eu não conseguia mais acordar a tempo para as reuniões.

Fui reabilitado na época da ascensão de Khruchev e do começo da “deestalinazação”. E continuei no PCB até voltar ao Brasil, depois da abertura democrática.

NT: Professor, como examina o papel do operador político – o partido – como a vanguarda da classe trabalhadora no enfrentamento das questões fundamentais para a emancipação humana?

LK: Uma das principais contribuições de Marx à teoria social está na abordagem do tema da alienação, do esvaziamento com que se defronta o sujeito que quer criar como sujeito.

NT: Quais os desafios que um militante socialista enfrenta, num mundo permeado pela reificação?

LK: No campo teórico, tal como ele se liga diretamente à atividade do sujeito – a práxis – essa opressão se faz sentir com força no trabalho e nos trabalhadores. O conhecimento da realidade fica deformado e as vezes é suprimido pela reificação. A maior responsabilidade dos militantes socialistas é a de lutar contra isso.

NT: Um dos temas do debate deste início de século é a degradação ambiental e a ameaça aos recursos naturais, e raramente este debate considera o papel da acumulação de capital neste processo e relega a dimensão humana para a esfera individual. Como o senhor compreende essa questão?

LK: A natureza vem sendo pragmaticamente explorada, mas agora a exploração está se in-tensificando. Dos tempos de Marx para cá, o quadro piorou muito. E, o que é pior, tende a piorar mais ainda. A hipercompetitividade acaba esgotando o esforço dos homens pela preservação da natureza.

NT: Professor Konder, em seu Introdução ao Fascismo, o senhor definiu os EUA como um Estado fascista “atípico”, já que os EUA não possuem a característica histórica de capitalismo tardio. Não poderíamos dizer que hoje há uma tendência de bonapartização das democracias ocidentais?

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Leandro Konder: Filósofo da dialética 13

LK: É uma possibilidade que não podemos perder de vista. O que seria essa forma de capitalismo tardio? O que seria a bonapartização? Como aplicar o conceito aos aspectos surpreendentes do capitalismo norte-americano?

NT: Durante boa parte do século XX, há pelo menos três partidos comunistas que acolheram, em sua estrutura orgânica, grande parte da cena cultural de seus países, no Brasil, na Itália e na França. Podemos dizer que nesse período o próprio debate e as diferentes concepções estéticas se davam a partir destas organizações políticas?

LK: Seria necessário aprofundarmos nossos estudos sobre os três movimentos dos PCs aci-ma citados. Podemos também examinar as possíveis contribuições de um quarto ou quinto partido e ver se eles também têm subsídios para nós.

NT: Qual sua avaliação sobre a produção teórica de corte marxista no Brasil?

LK: Desconfio que a época atual não permite confiança nos nossos diagnósticos. A relativa insuficiência do marxismo não significa absolutamente que ele esteja morto, porém exige muita prudência na nossa intervenção na História.

NT: Professor, quais foram os aspectos teóricos que o levaram a estudar e tomar maior contato com a obra de intelectuais como Gramsci, Lukács e Walter Benjamin, que no pe-ríodo de sua juventude não eram tidos como intérpretes preferenciais dentro do marxismo internacional?

LK: Permita-me informá-lo de que publiquei há pouco um livro intitulado Em torno de Marx que discute exatamente essa questões que você propõe nessa pergunta.

NT: O senhor tem afirmado, a partir de seus estudos literários, que o realismo é a Grande Arte, como e em quais autores esta Grande Arte se manifesta na cena literária atual?

LK: A Grande Arte da tradição marxista vem mostrando que apesar das dificuldades, no conceito, ainda resiste melhor do que outros elementos do pensamento de Marx, ao desgaste do tempo.

NT: Em recente entrevista, o escritor e crítico literário, Tzvetan Todorov afirmou não acreditar ser possível que envolvimentos amorosos e carnais sirvam de material para a construção de uma obra literária. Por outro lado, vários escritores contemporâneos deixam claro que seus romances são diretamente elaborados a partir de suas vidas. Como você analisa esta dicotomia entre a experiência do autor e a construção da obra literária?

LK: Parece-me que, sob o rótulo da experiência do autor, Todorov se afasta bastante do materialismo. Nas condições atuais, se eu tivesse que escolher, preferiria o terreno da cons-trução da obra.

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NT: Hoje, um dos teóricos que alcança maior evidência no campo do Marxismo é G. Lukács. O senhor foi um dos primeiros, juntamente com Carlos Nelson Coutinho, a apresentar ao público brasileiro as idéias deste filósofo. Quais são as contribuições dele que são fundamentais para a análise da realidade neste novo século?

LK: As contribuições de Gramsci e Lukacs continuam a dar importante apoio aos autores que se servem delas. Eles aproveitam as noções de realismo, de humanismo, de luta de classes, de diálogo, entre outras.

NT: Como o senhor analisa a continuidade dos estudos de Lukács pretendida por Meszá-ros?

LK: Gosto da obra de Meszáros, de suas análises densas e agudas. O fato de eventualmente descobrirmos pequenas divergências, não me impede de reconhecer em Meszaros uma ex-pressão vigorosa da mesma tendência teórica em que me situo.

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II Fundamentos

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17 Crítica ao programa de Gotha – Observações sobre o Programa do Partido Operário Alemão – Karl Marx

Crítica ao programa de gotha*observações sobre o programa do partido operário Alemão

I

1. “O trabalho é a fonte de toda a riqueza e de toda a cultura e, como o trabalho produtivo só é possível na socie-dade e pela sociedade, o seu produto pertence integralmente, por igual direito, a todos os membros da sociedade”.

Primeira parte da proposição: “O trabalho é a fonte de toda a riqueza e de toda a cultura”.

O trabalho não é a fonte de toda a riqueza. A natureza é a fonte dos valores de uso (os valores de uso são, de fato, a riqueza real!) tanto quanto o trabalho, trabalho que é a ex-pressão de uma força natural, a força de trabalho do homem. Esta frase repisada encontra-se em todos os manuais e só é verdadeira se for subentendido que o trabalho é anterior, e é executado com todos os instrumentos e procedimentos que o acompanham. Mas um programa socialista não pode permitir que essa fraseologia burguesa omita as condições que, só elas, lhe podem dar sentido. Só enquanto o homem se coloca, desde o início, como proprietário em relação à natureza, a fonte primeira de todos os meios e objetos de trabalho, e a trata como se ela (a natureza) lhe pertencesse, é que o seu trabalho se converte em fonte de valores de uso e, portanto, em fonte de riqueza. Os burgueses têm razões de sobra para atribuir ao trabalho esse poder sobrenatural de criação: precisamente pelo fato de o trabalho estar na de-pendência da natureza se conclui que o homem que possuir apenas a força de trabalho será forçosamente, em qualquer estado [situação] social e de civilização, escravo de outros homens que se tornaram proprietários das condições objetivas do trabalho. Ele não pode trabalhar nem, por conseguinte, viver, a não ser com a autorização destes últimos.

Mas deixemos a proposição tal como está, ou melhor, tão manca como está. Que conclusão se deveria esperar? Evidentemente, esta:

* Texto escrito por Karl Marx em maio de 1875 – editado a partir de www.insrolux.org/textos/.

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“Como o trabalho é a fonte de toda a riqueza, ninguém na sociedade pode se apropriar de riquezas que não sejam um produto do trabalho. Portanto, quem não trabalha vive do trabalho de outrem”.

Em vez disso, à primeira proposição junta-se uma segunda por meio da locução de ligação “e como”, para tirar da segunda, e não da outra, a consequência final.

Segunda parte da proposição: “O trabalho produtivo só é possível na sociedade e pela sociedade”.

De acordo com a primeira proposição, o trabalho é a fonte de toda a riqueza e de toda a cultura; logo, sem trabalho a sociedade não existe. E agora, ao contrário, aprendemos que o trabalho “produtivo” não existe sem a sociedade.

Do mesmo modo, poderia ter sido dito que só na sociedade é que o trabalho inútil, e até socialmente prejudicial, pode chegar a ser um ramo de indústria, que só na sociedade é que se pode viver no ócio etc., etc. – em suma, copiar de novo Rousseau na íntegra.

E o que é um trabalho “produtivo”? Só pode ser o trabalho que produz o efeito útil proposto. Um selvagem – e o homem é um selvagem desde o momento em que deixa de ser macaco – que abate um animal com uma pedrada, que apanha fruta etc., realiza um trabalho “produtivo”.

Terceira parte da proposição: conclusão: “E, como o trabalho produtivo só é possível na sociedade e pela sociedade, o seu produto pertence integralmente, por igual direito, a todos os membros da sociedade”.

Bela conclusão! Se o trabalho produtivo só é possível na sociedade e pela sociedade, o seu produto pertence à sociedade – e ao trabalhador individual caberá apenas o que não for indispensável à manutenção da sociedade, que é a própria “condição” do trabalho.

Na realidade, esta proposição foi sempre defendida pelos campeões da ordem social existente, em todas as épocas. Em primeiro lugar, vêm as pretensões do governo, com tudo o que se segue, pois o governo é o órgão da sociedade encarregado da manutenção da or-dem social; depois vêm as pretensões das diversas espécies de propriedade privada, que são, todas elas, o fundamento da sociedade etc. Como se vê, estas frases ocas podem ser viradas e reviradas no sentido que se quiser.

Só haverá uma relação lógica entre a primeira e a segunda parte do parágrafo se se adotar a seguinte redação:

“O trabalho só é a fonte da riqueza e da cultura se for um trabalho social”, ou, o que vem a dar no mesmo: “se se realizar na sociedade e por ela”.

Esta tese é indiscutivelmente exata, porque, ainda que o trabalho isolado (supondo realizadas as suas condições materiais) possa criar valores de uso, ele não pode criar nem riqueza nem cultura.

Esta é outra tese não menos incontestável: “Na medida em que o trabalho se trans-forma em trabalho social e se converte, desta forma, em fonte de riqueza e de cultura,

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19 Crítica ao programa de Gotha – Observações sobre o Programa do Partido Operário Alemão – Karl Marx

desenvolvem-se a pobreza e o desamparo do trabalhador e a riqueza e a cultura dos que não trabalham”.

Esta é a lei de toda a história até hoje. Consequentemente, em vez de frases genéricas sobre o “trabalho” e a “sociedade”, era preciso indicar com precisão como é que, na atual sociedade capitalista, estão finalmente criadas as condições materiais e outras que permitem e obrigam o trabalhador a destruir essa maldição social.

Mas, na realidade, todo este parágrafo, tão falso na forma como no conteúdo, só existe para que, bem no alto da bandeira do partido, se possa inscrever como palavra de ordem a fórmula lassalliana do “produto integral do trabalho”. Mais adiante voltarei ao “produto do trabalho”, ao “direito igual” etc., porque a mesma coisa reaparece sob uma forma um pouco diferente.

2. “Na sociedade atual, os meios de trabalho são monopólio da classe capitalista. O estado [situação] de dependência, que daí resulta para a classe operária, é a causa da miséria e da servidão em todas as suas formas.”

Nesta forma “melhorada”, a tese, tomada dos estatutos da Internacional, é falsa.

Na sociedade atual, os meios de trabalho são monopólio dos latifundiários (o mo-nopólio da propriedade fundiária é, inclusive, a base do monopólio do capitalismo) e dos capitalistas. Os estatutos da Internacional, na passagem em questão, não mencionam nem uma nem outra classe monopolista. Falam do “monopólio dos meios de trabalho, quer dizer, das fontes da vida”. A adição das palavras “fontes da vida” mostra duramente que a terra está compreendida entre os meios de trabalho.

Esta retificação foi introduzida por Lassalle, por razões hoje conhecidas, que atacava somente a classe capitalista e não os latifundiários. Na Inglaterra, a maior parte das vezes, o capitalista não é sequer o proprietário do solo em que está construída a sua fábrica.

3. “A emancipação do trabalho exige que os instrumentos de trabalho se elevem à condição de patrimônio comum da sociedade e que o trabalho seja regulamentado pela comunidade, com a repartição equitativa do seu produto”.

A afirmação “Os instrumentos de trabalho elevados à condição de patrimônio comum” deveria ser dita, sem dúvida como: “transformados em patrimônio comum”. Mas isto só de passagem.

Que é o “produto do trabalho”? O objeto criado pelo trabalho ou o seu valor? E, neste último caso, o valor total do produto ou apenas a fração de valor que o trabalho acrescentou ao valor dos meios de produção consumidos?

O “produto do trabalho” é uma noção vaga que em Lassalle fazia as vezes de concepções econômicas concretas.

Que é a “repartição equitativa”?

Os burgueses não afirmam que a repartição atual é “equitativa”? E, realmente, na base do atual modo de produção, não é a única repartição “equitativa” possível? As relações eco-

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nômicas são reguladas por ideias jurídicas ou não serão, ao contrário, as relações jurídicas que nascem das relações econômicas? Os socialistas sectários não têm, também eles, as mais diversas concepções sobre a repartição “equitativa”?

Para sabermos o que devemos entender, da “repartição equitativa”, temos de comparar o primeiro parágrafo com este. Este supõe uma sociedade na qual “os instrumentos de trabalho são patrimônio comum e que o trabalho é regulamentado pela comunidade”, ao passo que o primeiro parágrafo nos mostra que “o produto pertence integralmente, por igual direito, a todos os membros da sociedade”.

“A todos os membros da sociedade”? “Mesmo aos que não trabalham? O que acontece então ao produto integral do trabalho”? – Só aos membros da sociedade que trabalham? Que acontece, neste caso, ao “direito igual” de todos os membros da sociedade?

Mas, falar que “todos os membros da sociedade”, e “direito igual” é apenas, manifes-tamente, maneira de falar. O essencial é que, nesta sociedade comunista, cada trabalhador deve receber um “produto integral do trabalho”, à maneira lassalliana.

Se tomarmos, em primeiro lugar, a expressão “produto do trabalho” no sentido do objeto criado pelo trabalho, então o produto do trabalho da comunidade é a totalidade do produto social.

Daqui há que se deduzir:

Primeiro: a parte destinada a substituir os meios de produção usados;

Segundo: uma fração suplementar para aumentar a produção;

Terceiro: um fundo de reserva ou de seguro contra os acidentes, as perturbações devidas a fenômenos naturais etc.

Essas deduções do “produto integral do trabalho” são uma necessidade econômica, cuja importância será, em parte, determinada com a ajuda do cálculo das probabilidades, tendo em conta o estado dos meios e das forças em jogo; em todo o caso, não podem, de maneira alguma ser calculadas com base na equidade.

Resta a outra parte do produto total, destinada ao consumo.

Mas, antes de proceder à repartição individual, é preciso ainda retirar:

Primeiro: os encargos gerais da administração não relativos à produção.

Em comparação com o que se passa na sociedade atual, a redução imediata é imensa e decresce à medida que se desenvolve a nova sociedade.

Segundo: a parte destinada a satisfazer as necessidades da comunidade: escolas, sane-amento básico etc.

Esta fração aumenta imediatamente de importância, em comparação com o que se passa na sociedade atual, e esta importância cresce à medida que se desenvolve a nova sociedade.

Terceiro: o fundo necessário ao sustento dos que estão incapacitados para o trabalho etc., numa palavra, o que compete ao que hoje se chama beneficência pública oficial.

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21 Crítica ao programa de Gotha – Observações sobre o Programa do Partido Operário Alemão – Karl Marx

É só então que chegamos à “repartição”, ou seja, a única coisa que, sob a influência de Lassalle e de um modo limitado, o programa tem em vista: essa parte dos objetos de consumo que é repartida individualmente entre os produtores da coletividade.

O “produto integral do trabalho” já se transformou, imperceptivelmente, em “produ-to parcial”, ainda que o produtor, na qualidade de membro da sociedade, receba direta ou indiretamente, o que lhe é retirado enquanto indivíduo.

Do mesmo modo como se dissipou a expressão “produto integral do trabalho”, vamos agora ver dissipar a expressão “produto do trabalho” em geral.

No seio de uma ordem social comunitária, baseada na propriedade comum dos meios de produção, os produtores não trocam os seus produtos; do mesmo modo, o trabalho incor-porado aos produtos não aparece aqui como valor desses produtos, como uma qualidade real possuída por eles, pois, em vez do que ocorre na sociedade capitalista, os trabalhos do indivíduo tornam-se parte integrante do trabalho da comunidade de forma direta. A expressão “produto do trabalho”, hoje condenável pela sua ambiguidade, perde assim qualquer significado.

Aqui se trata não de uma sociedade comunista que se desenvolveu sobre as suas próprias bases, mas, ao contrário, de uma sociedade que acaba de sair da sociedade capitalista e que, consequentemente, apresenta, em todos os aspectos – econômico, moral, intelectual – os estigmas da antiga sociedade que a engendrou. Nela, o produtor recebe, portanto, individu-almente – uma vez feitas as deduções – o equivalente daquilo que deu à sociedade. O que o produtor deu à sociedade foi a sua cota-parte individual de trabalho. Por exemplo, a jornada social de trabalho representa a soma das horas de trabalho individual; o tempo de trabalho individual de cada produtor é a porção da jornada social de trabalho que ele forneceu, a parte que nela tomou. Ele recebe da sociedade um vale certificando que forneceu tanto tra-balho (dedução feita do trabalho efetuado para os fundos coletivos) e, com esse vale, retira dos armazéns sociais uma quantidade de objetos de consumo, equivalente à quantidade do trabalho que prestou. A mesma cota-parte de trabalho que deu à sociedade sob uma forma, recebe-a de volta sob outra forma.

Trata-se aqui manifestamente do mesmo princípio que regula a troca das mercadorias, na medida em que é troca de valores iguais. O fundo e a forma diferem porque, sendo diferentes as condições, ninguém pode fornecer senão o seu trabalho e, por outro lado, só objetos de consumo individual podem passar a ser propriedade do indivíduo. Mas no que respeita à repartição desses objetos entre produtores considerados individualmente, o princípio diretor é o mesmo que para a troca de mercadorias equivalentes: uma mesma quantidade de trabalho, sob uma forma, troca-se por uma mesma quantidade de trabalho, sob outra forma.

O direito igual continua aqui, portanto, no seu princípio, a ser o direito burguês, se bem que princípio e prática já não entrem em conflito, ao passo que hoje, para as mercadorias, a troca de equivalentes só existe em média e não nos casos individuais.

Apesar deste progresso, o direito igual ainda continua onerado por uma limitação bur-guesa. O direito do produtor é proporcional ao trabalho que forneceu; a igualdade consiste aqui no emprego do trabalho como unidade de medida comum.

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Mas uns indivíduos são física ou moralmente superiores a outros e, portanto, fornecem mais trabalho no mesmo tempo ou podem trabalhar mais tempo, e para que o trabalho possa servir de medida, é precise determinar a sua duração ou a sua intensidade, senão deixaria de ser unidade. Esse direito igual é um direito desigual para um trabalho desigual. Não reconhece nenhuma distinção de classe, porque cada homem é um trabalhador como os outros; mas reconhece tacitamente como privilégio natural a desigualdade dos dons individuais e, por conseguinte, da capacidade de rendimento. Portanto, no seu teor, é um direito baseado na desigualdade, como todo o direito. Pela sua natureza, o direito não pode deixar de consistir no emprego de uma mesma unidade de medida; mas os indivíduos desiguais (e não seriam indivíduos distintos se não fossem desiguais) só são mensuráveis por uma unidade comum enquanto forem considerados de um mesmo ponto de vista, apreendidos por um só aspecto determinando; por exemplo, no caso presente, enquanto forem considerados como trabalhadores e nada mais, fazendo-se abstração de todo o resto. Por outro lado: um operário é casado, outro não; um tem mais filhos que o outro etc., etc. Com igualdade de trabalho e, por conseguinte, igualdade de participação no fundo social de consumo, há, portanto, uns que efetivamente recebem mais que os outros, uns que são mais ricos que os outros etc. Para evitar todos esses inconvenientes, o direito deveria ser não igual, mas desigual.

Mas esses defeitos são inevitáveis na primeira fase da sociedade comunista, tal como acaba de sair da sociedade capitalista, após um longo e doloroso parto. O direito nunca pode ser mais elevado que o estado [situação] econômico da sociedade e o grau de civilização que lhe corresponde.

Numa fase superior da sociedade comunista, quando tiver desaparecido a escravizante subordinação dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, a oposição entre o trabalho intelectual e o trabalho manual; quando o trabalho não for apenas um meio de viver, mas se tornar ele próprio na primeira necessidade vital; quando, com o desenvolvimento múltiplo dos indivíduos, as forças produtivas tiverem também aumentado e todas as fontes da riqueza coletiva brotarem com abundância, só então o limitado horizonte do direito burguês poderá ser definitivamente ultrapassado e a sociedade poderá escrever nas suas bandeiras: “De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades!”

Alonguei-me particularmente sobre o “produto integral do trabalho”, sobre o “direito igual” e a “repartição equitativa”, a fim de mostrar como é criminoso o intento dos que, por um lado, querem impor doravante ao nosso Partido, como dogmas, concepções que tiveram algum significado numa determinada época, mas não passam hoje de uma fraseologia obsoleta e que, por outro lado, falseiam a concepção realista com tanto esforço inculcada no Partido, mas hoje com profundas raízes nele; e tudo isto com a ajuda das patranhas de uma ideologia jurídica ou outra, tão familiares aos democratas e socialistas franceses.

Mesmo abstraindo de tudo o que acaba de ser dito, era de qualquer modo um erro dar tanta importância ao que se chama a repartição e nela colocar a tônica.

Em todas as épocas, a repartição dos objetos de consumo é consequência do modo como estão distribuídas as próprias condições da produção. Mas esta distribuição é uma

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23 Crítica ao programa de Gotha – Observações sobre o Programa do Partido Operário Alemão – Karl Marx

característica do próprio modo de produção. O modo de produção capitalista, por exemplo, consiste em que as condições materiais de produção são atribuídas aos não-trabalhadores sob a forma de propriedade capitalista e de propriedade fundiária, ao passo que a massa apenas possui as condições pessoais de produção: a forca de trabalho. Distribuídos desta maneira os elementos da produção, a atual repartição dos objetos de consumo resulta naturalmente por si mesma. Sejam as condições materiais da produção propriedade coletiva dos próprios trabalhadores, e do mesmo modo resultará uma repartição dos objetos de consumo dife-rente da atual. O socialismo vulgar (e com ele, por sua vez, uma fração da democracia) herdou dos economistas burgueses o hábito de considerar e tratar a repartição como uma coisa independente do modo de produção e de, por essa razão, representar o socialismo a girar essencialmente em torno da repartição. Uma vez que as relações reais foram há muito esclarecidas, para que voltar atrás?

4. “A emancipação do trabalho deve ser obra da classe operária, em face da qual todas as outras classes não formam mais do que uma massa reacionária.”

A primeira estrofe é tirada do preâmbulo dos estatutos da Internacional, mas sob uma forma “melhorada”. O preâmbulo diz: “A emancipação da classe dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores; ao passo que aqui é a “classe dos trabalhadores” que deve eman-cipar – o quê? O “trabalho””. Compreenda quem puder.

Em compensação, a antístrofe é uma citação lassalliana da mais pura água: “em face da qual (classe operária) todas as outras classes não formam mais do que uma massa reacio-nária”.

No Manifesto Comunista diz-se: “De todas as classes que na hora atual se opõem à burguesia, só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária. As outras classes enfraquecem e desaparecem com a grande indústria; o proletariado, ao contrário, é o seu produto mais autêntico”.

A burguesia é considerada aqui como uma classe revolucionária – enquanto agente da grande indústria – em relação aos feudais e às classes médias decididos a manter todas as suas posições sociais, que são produto de modos de produção caducos. Feudais e classes médias não formam, portanto, com a burguesia uma mesma massa reacionária.

Por outro lado, o proletariado é revolucionário frente à burguesia porque, resultante ele próprio da grande indústria, tende a despojar a produção do seu caráter capitalista, que a burguesia procura perpetuar. Mas o Manifesto acrescenta que “as classes médias... se tornam revolucionárias... na perspectiva da sua passagem iminente ao proletariado”.

Deste ponto de vista, portanto, é mais um absurdo fazer das classes médias, juntamente com a burguesia e, ainda por cima, com os senhores feudais, “uma mesma massa reacionária” face à classe operária.

Será que nas últimas eleições se gritou aos artesãos, aos pequenos industriais etc., e aos camponeses: “Perante nós, vocês, com os burgueses e os senhores feudais, não formam mais do que uma única massa reacionária”?

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Lassalle sabia de cor o Manifesto Comunista, do mesmo modo que os seus fiéis sabem as sagradas escrituras de que ele é autor. Se o falsificava tão grosseiramente, era apenas para dissimular a sua aliança com os adversários absolutistas e feudais contra a burguesia.

No parágrafo citado, aliás, a sua máxima é agarrada pelos cabelos, sem qualquer rela-ção com a citação desfigurada dos estatutos da Internacional. Trata-se aqui simplesmente de uma impertinência e, na verdade, de uma impertinência que de modo algum pode ser desagradável aos olhos do Sr. Bismark; uma dessas atitudes baratas em que é especialista o Marat berlinense. (Hasselmann)

5. “A classe operária trabalha para a sua libertação, em primeiro lugar, no quadro do atual Estado nacional, sabendo bem que o resultado necessário dos seus esforços comuns aos operários de todos os países civilizados será a fraternidade internacional dos povos”.

Contrariamente ao Manifesto Comunista e a todo o socialismo anterior, Lassalle tinha concebido o movimento operário do ponto de vista mais estreitamente nacional. E depois da atividade da Internacional, ainda o segue neste terreno!

É absolutamente evidente que, para poder lutar, a classe operária tem de se organizar enquanto classe no seu próprio país, e que os respectivos países são o teatro imediato da sua luta. É nisso que a luta de classe é nacional, não no seu conteúdo, mas, como diz o Manifesto Comunista, “na sua forma”. Mas o próprio “quadro do atual Estado nacional”, por exemplo, o do Império alemão, entra por sua vez, economicamente, “no quadro” do mercado universal e, politicamente, “no quadro” do sistema dos Estados. Qualquer comerciante sabe que o co-mércio alemão é também comércio externo e a grandeza do Sr. Bismark reside precisamente no caráter da sua política internacional.

E a que é que o Partido Operário Alemão reduz o seu internacionalismo? À consciência de que o resultado dos seus esforços “será a fraternidade internacional dos povos” – expressão tirada da Liga burguesa para a paz e a liberdade, que se queria fazer passar por um equiva-lente da fraternidade internacional das classes operárias na sua luta comum contra as classes dominantes e os seus governos. Das funções internacionais da classe operária alemã, por conseguinte, nem uma palavra! E é assim que ela quer dobrar a parada face à sua própria burguesia, que já fraterniza contra ela com os burgueses de todos os outros países, bem como à política de conspiração internacional do Sr. Bismark!

Na realidade, a profissão de internacionalismo do programa está ainda infinitamente abaixo da do partido livre-cambista. Também este pretende que o resultado final da sua ação seja a “fraternidade internacional dos povos”. Mas esse ainda faz alguma coisa para internacionalizar o comércio e de maneira nenhuma se contenta em saber que cada povo faz comércio no seu país.

A ação internacional das classes operárias não depende de modo algum da existência da Associação Internacional dos Trabalhadores. Esta foi somente a primeira tentativa para dotar essa ação de um órgão central; tentativa que, pelo impulso dado, teve consequências duradouras, mas que, na sua primeira forma histórica, não podia sobreviver muito tempo à queda da Comuna de Paris.

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25 Crítica ao programa de Gotha – Observações sobre o Programa do Partido Operário Alemão – Karl Marx

A Norddeutsche de Bismark estava no seu pleno direito ao anunciar, para satisfação do seu dono, que o Partido Operário Alemão, no seu novo programa, renunciou ao interna-cionalismo.

II

“Partindo desses princípios, o Partido Operário Alemão esforça-se, por todos os meios legais, para implantar o Estado livre – e – a sociedade socialista; para abolir o sistema de trabalho assalariado com a lei de bronze dos salários... bem como... a exploração em todas as suas formas; para eliminar toda a desigualdade social e política”.

Quanto ao Estado “livre”, mais adiante voltarei a ele. Com que então, de futuro, o Partido Operário Alemão terá de acreditar na “lei de bronze” de Lassalle! Para não arruinar essa lei, comete-se a insensatez de falar em “abolir o sistema do salário” (era preciso dizer: sistema de trabalho assalariado) “com a lei de bronze dos salários”. Se eu suprimo o trabalho assalariado, suprimo naturalmente ao mesmo tempo as suas leis, sejam elas “de bronze” ou de cortiça. Mas a luta de Lassalle contra o trabalho assalariado gravita quase exclusivamente em torno dessa pretensa lei. Em consequência, para ficar bem claro que a seita de Lassalle venceu, é preciso que o “sistema do salário” seja abolido, “com a sua lei de bronze” e não sem ela.

Da “lei de bronze dos salários”, como se sabe, nada pertence a Lassalle, a não ser a expressão “de bronze”, que ele foi buscar às “leis eternas, às grandes leis de bronze” de Go-ethe. A expressão de bronze é a senha pela qual os crentes ortodoxos se conhecem. Mas se admitirmos a lei com o selo de Lassalle e, por conseguinte, na acepção em que ele a toma, é preciso que se admita igualmente o seu fundamento. E que fundamento? Como o mostrava Lange, pouco após a morte de Lassalle, é a teoria da população de Malthus (pregada pelo próprio Lange). Mas se essa teoria for correta, não pode abolir a lei, mesmo que seja supri-mido cem vezes o trabalho assalariado, porque nesse caso a lei não rege somente o sistema do trabalho assalariado, mas todo e qualquer sistema social. É precisamente com base nisso que os economistas, há cinquenta anos ou mais, têm demonstrado que o socialismo não pode suprimir a miséria, determinada pela natureza das coisas, mas apenas generalizá-la, reparti-la por igual por toda a superfície da sociedade!

Mas o principal não é isso. Mesmo se abstraindo completamente da falsa versão las-salliana dessa lei, o retrocesso verdadeiramente revoltante consiste no seguinte:

Desde a morte de Lassalle que o nosso Partido se abriu à perspectiva científica segundo a qual o salário do trabalho não é o que parece ser, a saber, o valor (ou o preço) do trabalho, mas tão somente uma forma disfarçada do valor (ou do preço) da força do trabalho. Assim, de uma vez por todas, estava colocada de lado a velha concepção burguesa do salário, bem como todas as críticas até então dirigidas contra ela, e estava claramente estabelecido que o operário assalariado só é autorizado a trabalhar para assegurar a sua própria existência, isto é, a existir, conquanto trabalhe gratuitamente durante certo tempo para os capitalistas (e, por conseguinte, para os que, como estes últimos, vivem de mais valia); que todo o sistema

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de produção capitalista visa prolongar este trabalho gratuito pelo aumento da jornada de trabalho ou pelo aumento da produtividade, quer dizer, por uma maior tensão da força de trabalho etc.; que o sistema de trabalho assalariado é, portanto, um sistema de escravidão e, a falar a verdade, uma escravidão tanto mais dura quanto mais se desenvolvem as forças sociais produtivas do trabalho, seja qual for o salário, bom ou mau, que o operário recebe. E agora que esta perspectiva penetra cada vez mais no nosso Partido, volta-se aos dogmas de Lassalle, quando se deveria saber que Lassalle ignorava o que é o salário e que, na pegada dos economistas burgueses, tomava a aparência pela essência da coisa.

É como se, numa revolta de escravos que teriam finalmente penetrado no segredo da escravidão, um escravo preso a concepções antiquadas inscrevesse no programa da revolta: a escravidão deve ser abolida porque, nesse sistema, o sustento dos escravos não pode ultrapassar um certo limite , extremamente baixo!

O simples fato de os representantes do nosso Partido terem sido capazes de cometer um atentado tão monstruoso contra a concepção divulgada na massa do Partido mostra a leviandade criminosa, a má-fé com que eles estavam imbuídos quando da redação do pro-grama de transição!

Em vez da vaga frase com que termina o parágrafo: “eliminar toda a desigualdade social e política”, era preciso dizer que, com a supressão das diferenças de classe, desaparece por si mesma toda a desigualdade social e política resultante dessas diferenças.

III

“O Partido Operário Alemão exige, para preparar o caminho para a solução da questão social, o estabelecimento de cooperativas de produção com a ajuda do Estado e sob o con-trole democrático do povo trabalhador. As cooperativas de produção devem ser criadas, na indústria e na agricultura, com uma amplitude tal que delas resulte a organização socialista do conjunto do trabalho”.

Depois da “lei de bronze do salário” de Lassalle, vem a panacéia do profeta. “Preparam-se as vias” de uma maneira digna. Substitui-se a luta de classes existente por uma fórmula oca de jornalista: a “questão social”, para cuja “solução” se “prepara o caminho”. Em vez de resultar do processo de transformação revolucionária da sociedade, “a organização socialista do conjunto do trabalho” “resulta” da “ajuda do Estado”, ajuda que o Estado fornece às cooperativas de produção que ele próprio (e não o trabalhador) “criou”. Acreditar que se pode construir uma sociedade nova por intermédio de subvenções do Estado tão facilmente como se constrói um novo caminho de ferro, eis uma coisa bem digna da imaginação de Lassalle!

Por um resto de pudor, coloca-se “a ajuda do Estado”... sob o controle democrático do “povo trabalhador”.

Em primeiro lugar, o “povo trabalhador” na Alemanha compõe-se de uma maioria de camponeses e não de proletários.

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27 Crítica ao programa de Gotha – Observações sobre o Programa do Partido Operário Alemão – Karl Marx

Em seguida, “democrático” diz-se em alemão volksherrschaftlich.Mas então que significa o “controle popular e soberano do povo trabalhador?” Um povo trabalhador que fizer essa reivindicação ao Estado dessa maneira manifesta a sua plena consciência de que não está no poder, nem maduro para o poder!

Quanto à receita prescrita por Buchez, sob Luís Filipe, em oposição aos socialistas fran-ceses e que foi retomada pelos operários reacionários do Atelier, não vale a pena determo-nos a fazer a sua crítica. Tanto mais que o pior escândalo não é o fato de esta cura milagrosamente específica figurar no programa, mas, ao fim e ao cabo, que se abandone o ponto de vista da ação de classe para voltar ao da ação de seita.

Dizer que os trabalhadores querem estabelecer condições de produção coletiva em toda a sociedade e, para começar, no seu país, em escala nacional, significa somente que eles traba-lham para derrubar as condições de produção atuais; e isso não tem nada a ver com a criação de sociedades cooperativas subvencionadas pelo Estado. E quanto às sociedades cooperativas atuais, elas só têm valor à medida que forem são criadas pelos próprios trabalhadores, forem independentes e não protegidas nem pelos governos nem pelos burgueses.

IV

E agora chego à parte democrática.

A) “implantar o Estado livre”.

Antes de mais, de acordo com o capítulo II, o Partido Operário Alemão procura im-plantar o “Estado livre”.

O que quer dizer “Estado livre”?

O objetivo dos trabalhadores que se libertaram da estreita mentalidade de humildes súditos não é, de modo algum, tornar livre o Estado. No Império alemão, o “Estado” é quase tão “livre” como na Rússia. A liberdade consiste em transformar o Estado, organismo que é colocado acima da sociedade, num organismo inteiramente subordinado a ela; e mesmo nos nossos dias as formas do Estado são mais ou menos livres ou não livres na medida em que limitem a “liberdade do Estado”.

O Partido Operário Alemão – pelo menos, se fizer seu este programa – mostra que as ideias socialistas não o tocam nem de leve; em vez de se tratar a sociedade presente (e isso é válido para qualquer sociedade futura) como o fundamento do Estado presente (ou futuro, para a sociedade futura), trata-se ao contrário o Estado como uma realidade independente, que possui os seus próprios “fundamentos intelectuais, morais e livres”.

E, para cúmulo, que monstruoso abuso faz o programa das expressões “Estado atual”, “sociedade atual” e que confusão, ainda mais monstruosa, cria a propósito do Estado, ao qual dirigem as suas reivindicações!

A “sociedade atual” é a sociedade capitalista que existe em todos os países civilizados, mais ou menos expurgada de elementos medievais, mais ou menos modificada pela evolução

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histórica particular de cada país, mais ou menos desenvolvida. O “Estado atual”, ao contrário, muda com a fronteira. É diferente no Império prussiano-alemão e na Suíça, na Inglaterra e nos Estados Unidos. O “Estado atual” é, pois, uma ficção.

No entanto, os diversos Estados dos diversos países civilizados, não obstante a múltipla diversidade das suas formas, têm todos em comum o fato de que assentam no terreno da sociedade burguesa moderna, mais ou menos desenvolvida do ponto de vista capitalista. É o que faz com que certos caracteres essenciais lhes sejam comuns. Neste sentido, pode se falar do “Estado atual” tomado como expressão genérica, por contraste com o futuro em que a sociedade burguesa, que no presente lhe serve de raiz, terá deixado de existir.

Então surge a pergunta: que transformação sofrerá o Estado numa sociedade co-munista? Por outras palavras: que funções sociais análogas às atuais funções do Estado subsistirão? Só a ciência pode responder a esta pergunta; e não é juntando de mil maneiras a palavra “povo” com a palavra “Estado” que se fará com que o problema avance um passo que seja.

Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista situa-se o período de transformação revolucionária de uma na outra, a que corresponde um período de transição política em que o Estado não poderá ser outra coisa que não a ditadura revolucionária do proletariado.

Mas o programa, por agora, não se ocupa nem desta última nem do Estado futuro na sociedade comunista.

As suas reivindicações não contêm nada mais que a velha ladainha democrática conhe-cida de todos: sufrágio universal, legislação direta, direito do povo, milícia popular etc. São simplesmente o eco do Partido Popular burguês, da Liga da Paz e da Liberdade. Nada mais que reivindicações já realizadas, quando não são noções marcadas por um exagero fantásti-co. Só que o Estado que as realizou não existe de modo algum no interior das fronteiras do Império alemão, mas na Suíça, nos Estados Unidos etc. Esta espécie de “Estado do futuro” é um Estado bem atual, ainda que exista fora do “quadro” do Império alemão.

Mas uma coisa foi esquecida. Já que o Partido Operário Alemão declara expressamente que se move no seio do “Estado nacional atual”, portanto, do seu próprio Estado, o Império prussiano-alemão – senão as suas reivindicações seriam na maior parte absurdas, porque só se reclama o que se não tem – o Partido não devia ter esquecido o ponto capital, a saber: todas essas belas pequenas coisas implicam o reconhecimento do que se chama a soberania do povo e, portanto, só têm cabimento numa república democrática.

Já que não se ousa – e a abstenção é correta, porque a situação exige prudência – reclamar a república democrática, como o faziam nos seus programas os operários franceses, sob Luís Filipe e Luís Napoleão, também era preciso recolher a esta trapaça tão pouco “honesta” como respeitável que consiste em reclamar coisas que só têm sentido numa república democrática a um Estado que não passa de um despotismo militar, com uma armadura burocrática e blindagem policial, adornado de formas parlamentares, com misturas de elementos feudais e de influências burguesas, e, para além disso tudo, em assegurar alto e bom som a esse Estado que se acredita ser possível impor-lhe tais coisas “por meios legais”!

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A própria democracia vulgar, que vê na república democrática o advento do reino mile-nar, e que não tem a menor suspeita de que é precisamente sob esta última forma de Estado da sociedade burguesa que se travará a suprema batalha entre as classes, a própria democracia está ainda muito acima de um democratismo desse gênero, confinado aos limites do que é autorizado pela polícia e proibido pela lógica.

Que por “Estado” se entende, efetivamente, a máquina governamental, ou então o Estado enquanto constitui, em conseqüência da divisão do trabalho, um organismo próprio, separado da sociedade, indicam-no já estas palavras: “O Partido Operário Alemão reclama como base econômica do Estado: um imposto único e progressivo sobre o rendimento etc.” Os impostos são a base econômica da máquina governamental e nada mais. No Estado do futuro, tal como existe na Suíça, essa reivindicação está razoavelmente satisfeita. O imposto sobre o rendimento pressupõe fontes de rendimento diferentes de classes sociais diferentes, pressupõe, portanto, a sociedade capitalista. Por conseguinte, não é nada de surpreendente que o Financial Reformers de Liverpool – que são burgueses, com o irmão de Gladstone à cabeça – formulem a mesma reivindicação que o programa.

B) “O Partido Operário Alemão reclama como base intelectual e moral do Estado:

1. Educação geral do povo, igual para todos, a cargo do Estado. Obrigação escolar para todos. Instrução gratuita.”

Educação do povo, igual para todos? Que se quer dizer com estas palavras? Acreditar-se-á que, na sociedade atual (e é dela que se trata), a educação possa ser a mesma para todas as classes? Ou querer-se-á então obrigar pela força as classes superiores a receberem apenas o ensino restrito na escola primária, o único compatível com a situação econômica, não só dos operários assalariados, mas também dos camponeses?

“Obrigação escolar para todos. Instrução gratuita.” A primeira até já existe na Ale-manha, a segunda na Suíça e nos Estados Unidos para as escolas primárias. Se, em certos Estados desse último país, há estabelecimentos de ensino superior igualmente “gratuitos”, isso apenas significa que, de fato, nesses Estados as despesas escolares das classes superiores são pagas com as receitas gerais dos impostos. Diga-se de passagem que o mesmo acontece com a “administração gratuita de justiça” reclamada no artigo A, 5. A Justiça penal é gratuita em toda a parte; a Justiça civil gira quase unicamente em torno dos litígios de propriedade e afeta, portanto, quase unicamente as classes possuidoras. Irão elas sustentar os seus processos à custa do tesouro público?

O parágrafo relativo às escolas deveria, pelo menos, exigir escolas técnicas (teóricas e práticas) adjuntas à escola primária.

Uma “educação do povo a cargo do Estado” é absolutamente inadmissível. Determinar por uma lei geral os recursos das escolas primárias, as aptidões exigidas ao pessoal docente, as disciplinas ensinadas etc., e, como acontece nos Estados Unidos, fiscalizar por meio de inspetores do Estado a execução dessas prescrições legais é completamente diferente de fazer do Estado o educador do povo! Ao contrário, é preciso, pelas mesmas razões, banir da escola qualquer influência do governo e da Igreja. Sobretudo no Império prussiano-alemão (e não

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se recorra à evasiva falaciosa de falar num certo “Estado do futuro”; nós já vimos o que ele é) ao contrário, é o Estado que precisa ser rudemente educado pelo povo.

Aliás, todo o programa, apesar do seu badalar democrático, está infectado, de uma ponta à outra pela servil crença da seita lassalliana no Estado, ou, o que não é melhor, pela crença no milagre democrático; ou antes, é um compromisso entre essas duas espécies de fé no milagre, igualmente afastadas do socialismo. “Liberalidade da ciência”, diz um parágrafo da Constituição prussiana. Por que então pô-la aqui?

“Liberdade de consciência!” Se, nestes tempos de Kulturkcampf, se queria recordar ao liberalismo as suas velhas palavras de ordem, só se podia fazê-la desta forma: “Todas as pessoas devem poder satisfazer as suas necessidades religiosas e corporais, sem que a polícia meta o nariz.” Mas o Partido Operário devia aproveitar a ocasião para exprimir a sua convicção de que a “liberdade de consciência burguesa não é mais que a tolerância de todas as espécies possíveis de liberdade de consciência religiosa, ao passo que ele se esforça por libertar as consciências da fantasmagoria religiosa. Mas prefere-se não ultrapassar os limites “burgueses”.

E com isto chego ao fi m, pois o apêndice que acompanha o programa não constitui uma parte característica do mesmo. Por isso serei muito breve.

2. “Jornada de trabalho”.

Em nenhum outro país o partido operário se limite a formular a uma reivindicação tão imprecisa, mas estabelece sempre a duração da jornada de trabalho que, de acordo com as circunstâncias, considera normal.

3. “Limitação do trabalho das mulheres e proibição do trabalho das crianças.”

A regulamentação da jornada de trabalho já deve implicar na limitação do trabalho das mulheres no que diz respeito à duração, repouso etc.; não sendo assim, só pode significar a exclusão das mulheres dos ramos da produção que sejam particularmente prejudiciais à sua saúde física ou contrárias à moral, do ponto de vista do sexo. Se era isso que se tinha em vista, era preciso dizê-lo.

“Proibição do trabalho das crianças”! Era absolutamente indispensável indicar o limite de idade.

Uma proibição geral do trabalho das crianças é incompatível com a própria existência da grande indústria; não passa, portanto, de um voto ingênuo e estéril. A aplicação dessa medida, se ela fosse possível, seria reacionária, porque, desde que esteja assegurada uma estrita regulamentação da jornada de trabalho segundo as idades, bem como outras medidas de proteção das crianças, o fato de se combinar desde cedo o trabalho produtivo com a instrução é um dos meios mais poderosos de transformação da sociedade atual.

4. “Fiscalização pelo Estado do trabalho nas fábricas, nas oficinas e no domicílio.”

Em se tratando do Estado prussiano-alemão, era absolutamente necessário exigir que os inspetores fossem revogáveis apenas pelos tribunais; que qualquer operário pudesse denunciá-los à Justiça por falta no cumprimento dos seus deveres; que fossem médicos de profissão.

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31 Crítica ao programa de Gotha – Observações sobre o Programa do Partido Operário Alemão – Karl Marx

5. “Regulamentação do trabalho nas prisões.”

Reivindicação mesquinha num programa geral operário. De qualquer modo, era pre-ciso dizer claramente que não se pretende que os criminosos de direito comum, por medo da sua concorrência, sejam tratados como gado e que não se tem a intenção de lhes retirar precisamente o que é o seu único meio de correção, o trabalho produtivo. Era o mínimo que se podia esperar de socialistas.

6. “Uma lei eficaz sobre a responsabilidade.”

Era preciso dizer o que se entende por uma lei “eficaz” sobre a responsabilidade.

Notemos de passagem que, a propósito da jornada normal de trabalho, foi esquecida a parte da legislação das fábricas que diz respeito aos regulamentos sobre a higiene e às medidas a tomar contra os acidentes etc. A lei sobre a responsabilidade somente é aplicada quando as prescrições são violadas.

Em resumo, este apêndice também se distingue pela sua redação descuidada.

Dixi et saivavi animam mean.

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III Artigos

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35 Louis Althusser e o corte epistemológicono pensamento de Karl Marx e Friedrich Engels – Marcos Cassin

* marcos Cassin é Professor do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofi a, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.

louis Althusser e o corte epistemológico no pensamento de karl marx e Friedrich Engels

Marcos Cassin*

A ideia do corte epistemológico defendida por Louis Althusser, que aparece num primeiro momento como uma ruptura abrupta, foi alvo de inúmeras críticas e levaram o autor a uma retifi cação de sua tese, reformulando-a e to-mando, neste segundo momento, o corte epistemológico como processo de longa duração. Estas retifi cações podem ser encontradas mais explicitamente nos textos “A querela do humanismo”, escrito em 1967, e “Elementos de autocrítica”, de 1972.

[...] eu disse brevemente demais das Th èses [...] e de L’idéologie allemande, que se a “liquidação” anun-ciada conscientemente por Marx está efetivamente iniciada nos seus textos, ela está apenas iniciada, e que o essencial está por fazer para livrar realmente o espaço teórico no qual se desenrolará, vinte anos mais tarde, Le Capital. O “corte” é, portanto, ele mesmo, um processo de longa duração, que com-porta momentos dialéticos [...].

Essa concepção do “corte” como processo não é um modo destorcido de abandonar seu conceito, como nos sugerem com demasiada ênfase certos críticos. Que seja necessário tempo para o “corte” se complete em seu processo não impede que ele seja efetivamente um evento da história da teoria, e que ele possa, como todo evento, ser datado, com precisão, em seu começo; no caso de Marx, 1845 (as Th èses..., e L’idéologie allemande) (Althusser, 1999, p. 46).

Portanto, o texto “A Ideologia Alemã” foi escolhido por representar o rompimento dos autores com a esquerda hegeliana e início do processo do corte epistemológico no

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pensamento de Marx e Engels. Esta tese de corte epistemológico citada acima representou a formulação da concepção materialista histórica e o processo de distanciamento dos autores do pensamento hegeliano.

Ainda com relação aos objetivos do texto de 1845, Marx os expõe em seu livro “Con-tribuição à crítica da economia política”, escrito em 1859, ao se referir ao encontro com Engels em Bruxelas.

[...] na primavera de 1845, veio (Engels) se estabelecer também em Bruxelas, resolvemos trabalhar em conjunto, a fim de esclarecer o anta-gonismo existente entre a nossa maneira de ver e a concepção ideológica da filosofia alemã; tratava-se, de fato, de um ajuste de contas com a nossa consciência filosófica anterior. Este projeto foi realizado sob a forma de uma crítica da filosofia pós-hegeliana. O manuscrito, dois grandes volumes in-octavo, estava há muito no editor na Vestefália, quando soubemos que novas circunstâncias já não permitiam a sua impressão. De bom grado abandonamos o manuscrito à crítica dos ratos, tanto mais que tínhamos atingido o nosso fim principal, que era enxergar claramente as nossas ideias (Marx, 1983, p. 25-26).

A citação acima deixa explícito o papel cumprido pelo texto “A Ideologia Alemã”, ou seja, rompimento definitivo com a concepção hegeliana e a sistematização dos princípios do materialismo histórico, que resumidamente Marx apresenta no “Prefácio” do mesmo livro:

A conclusão geral a que cheguei e que, uma vez adquirida, serviu de fio condutor dos meus estudos, pode formular-se resumidamente assim: na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e a qual correspon-dem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser que, inversamente, determina a sua consciência (Marx, 1983, p. 24).

A partir do exposto, acreditamos poder afirmar que o texto “A Ideologia Alemã” é um importante marco no desenvolvimento da teoria marxista1, uma vez que os autores rompem

1 Quanto ao nome recebido pela teoria formulada por Marx e Engels faz-se esclarecer que o próprio Engels a utilizava e justifica, com humildade, em nota de rodapé no texto “Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã”: “Seja-me permitido aqui um pequeno comentário pessoal. Ultimamente, tem-se aludido, com frequ-ência, à minha participação nessa teoria; não posso, pois, deixar de dizer aqui algumas palavras para esclarecer

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Louis Althusser e o corte epistemológicono pensamento de Karl Marx e Friedrich Engels – Marcos Cassin

com toda influência do idealismo alemão e depois de 40 anos, portanto depois da morte de Marx, Engels, volta à temática do rompimento teórico expresso no texto de 1845/1846 a partir da necessidade imposta pelo “renascimento” da filosofia clássica alemã, particularmente na Inglaterra e nos países escandinavos.

É nesse contexto que Engels recebe o convite da redação da revista Neue Zeit para que fizesse uma crítica do livro de Starcke, que tinha como tema Feuerbach. Engels aceita o convite e, em 1886, apresenta o livro “Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia alemã” res-pondendo a nova investida da filosofia idealista alemã. O texto de Engels está dividido em quatro partes:

Na primeira parte, Engels apresenta alguns fundamentos do pensamento hegeliano, o caráter revolucionário do método deste pensamento em contradição com o caráter conserva-dor de seu sistema filosófico, e como esta contradição, entre o método e o sistema filosófico, produz um segmento entre seus adeptos que será conhecido como a esquerda hegeliana.

Nesta parte do texto, Engels procura demonstrar a concepção dialética do pensamen-to de Hegel, em que este concebe a realidade como existência necessária e em processo de movimento interno desta realidade que é contraditória e conflituosa e que produz o novo, a partir do velho, na medida em que este vai deixando de ser necessário “[...] no processo de desenvolvimento, tudo que antes era real se transforma em irreal, perde sua necessidade, seu direito de existir, seu caráter racional; à realidade que agoniza sucede uma realidade nova e vital; pacificamente, se o que caduca é bastante razoável para desaparecer sem luta; pela força, se se rebela contra essa necessidade” (Engels, sd, p. 172).

Também, nesse texto, apresenta a importância de Hegel, enquanto filósofo que rompe com a filosofia anterior no que diz respeito à verdade e ao conhecimento, Hegel se contra-põe aos que afirmavam da impossibilidade de se chegar à verdade e dos que defendiam a possibilidade de se atingir a verdade e o conhecimento absoluto.

Em Hegel, a verdade que a filosofia procurava conhecer já não era uma coleção de teses dogmáticas fixas que, uma vez descobertas, bastaria guardar de memória; agora a verdade residia no próprio processo do co-nhecimento, através do longo desenvolvimento histórico da ciência, que sobe, dos degraus inferiores, até os mais elevados do conhecimento, sem, porém, alcançar jamais, com o descobrimento de uma pretensa verdade absoluta, um nível em que já não se possa continuar avançando, em que

este assunto. Que tive certa participação independente na fundamentação e, sobretudo, na elaboração da teoria, antes e durante os quarenta anos de minha colaboração com Marx, é coisa que eu mesmo não posso negar. A parte mais considerável das ideias diretrizes principais, particularmente no terreno econômico e histórico, e especialmente sua formulação nítida e definitiva, cabem, porém, a Marx. A contribuição que eu trouxe – com exceção, quando muito, de alguns ramos especializados – Marx também teria podido trazê-la, mesmo sem mim. Em compensação, eu jamais teria feito o que Marx conseguiu fazer. Marx tinha mais envergadura e via mais longe, mais ampla e mais rapidamente que todos nós outros. Marx era um gênio; nos outros, no máximo homens de talento. Sem ele, a teoria estaria hoje longe de ser o que é. Por isso, ela tem, legitimidade, seu nome.”

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nada mais reste senão cruzar os braços e contemplar a verdade absoluta conquistada. E isso não se passava apenas no terreno da filosofia, mas nos demais ramos do conhecimento e no domínio da atividade prática. Da mesma forma que o conhecimento, também a história nunca poderá encontrar seu coroamento definitivo num estágio ideal e perfeito da hu-manidade; uma sociedade perfeita, um “Estado” perfeito, são coisas que só podem existir na imaginação. Pelo contrário, todas as etapas históricas que se sucedem nada mais são que outras tantas fases transitórias no processo de desenvolvimento infinito da sociedade humana, do inferior para o superior (Engels, sd, p. 173).

Neste texto, Engels volta a afirmar que a filosofia termina com Hegel, uma vez que seu sistema resume todo o desenvolvimento filosófico e, contraditoriamente, indica a saída dos sistemas filosóficos, para o conhecimento positivo e real do mundo. O sistema de Hegel passa a ter grande influência na Alemanha e especialmente entre a década de 30 e 40 do século XIX, momento em que influenciou, além da filosofia, outras áreas do conhecimento.

A grande repercussão do pensamento hegeliano e do conjunto de sua doutrina, possi-bilitava abrigar diversas ideias, sobretudo a religião e a política. Segundo Engels:

O conjunto da doutrina de Hegel dava bastante margem, como vimos, a que nela se abrigassem as mais diversas ideias partidárias práticas. E na Alemanha teórica daquela época duas coisas, sobretudo, revestiam-se de caráter prático: a religião e a política. Quem fizesse finca-pé no sistema de Hegel podia ser bastante conservador em qualquer desses domínios; aquele que considerasse essencial o método dialético podia figurar, tanto no plano religioso como no político, na oposição extrema. No conjunto, Hegel parecia pessoalmente inclinar-se mais para o lado conservador, apesar das explosões de cólera revolucionária bastante frequentes em sua obra (Engels, sd, p.176).

A luta interna na escola hegeliana e no combate à religião positiva levou a maioria dos jovens hegelianos a se aproximarem do materialismo anglo-francês. Nesta luta dos jovens hegelianos, aparece o texto “A Essência do Cristianismo”, de Ludwig Feuerbach, ao se referir a esta obra e o impacto dela entre os jovens hegeliano, Engels afirma:

De repente, essa obra pulverizou a contradição criada ao restaurar o materialismo em seu trono. A natureza existe independentemente de toda filosofia, ela constitui a base sobre a qual os homens cresceram e se desenvolveram como produtos da natureza que são; nada existe fora da natureza e dos homens; e os entes superiores, criados por nossa imagi-nação religiosa, nada mais são que outros tantos reflexos fantásticos de nossa própria essência. Quebrara-se o encantamento: o “sistema” salva em pedaços e era posto de lado – e a contradição ficava resolvida, pois

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existia apenas na imaginação. Só tendo vivido, em si mesmo, a força li-bertadora desse livro, é que se pode imaginá-la. O entusiasmo foi geral – e momentaneamente todos nós nos transformamos em “feuerbachianos”. Com que entusiasmo Marx saudou a nova concepção e até que ponto se deixou influenciar por ela – apesar de todas as suas reservas críticas – pode ser visto em A Sagrada Família (Engels, sd, p.177).

Por fim, nesta primeira parte de seu texto, Engels apresenta como toda a esquerda hegeliana, ou jovens hegelianos, entre eles o próprio Marx, haviam sido influenciados pelo materialismo feuerbachiano que havia quebrado o sistema de Hegel.

Na segunda parte do texto, Engels procura pontuar a questão que acompanha a filosofia desde os tempos mais remotos, “a relação do ser e do pensar”. Ainda nesta parte do texto, Engels faz menção às correntes materialista e idealista, estas decorrentes da primazia que se dá, ao ser ou ao pensar; a possibilidade ou não do conhecimento é outro ponto que aparece neste momento do texto e concluindo esta parte, o autor faz referências ao materialismo mecanicista.

Quanto à relação entre o ser e a consciência, Engels apresenta como uma questão que acompanha o homem desde os tempos mais remotos, fruto da ignorância do próprio homem que não conhecia seu organismo e que buscava explicar suas sensações como funções que não correspondia ao seu corpo, forçosamente levando-o a refletir sobre a possibilidade da dicotomia corpo e alma.

A dicotomia corpo e alma, ou matéria e espírito, necessariamente leva os homens a perguntar-se sobre a situação do pensamento em relação ao ser. Os filósofos ao se posicionarem a respeito desta relação se dividem em dois grandes campos, os que afirmam a primazia do pensamento em relação ao ser, vão formar o campo dos idealistas, e os que entendem que o ser é que tem a primazia sobre o pensamento formam o campo dos materialistas. Segundo Engels:

Os que afirmam o caráter primordial do espírito em relação à natureza e admitam, portanto, em última instância, uma criação do mundo, de uma ou de outra forma (e para muitos filósofos, como para Hegel, por exemplo, a gênese é bastante mais complicado e inverossímil que na religião cristã), firmavam o campo do idealismo. Os outros, que viam a natureza como elemento primordial, pertencem às diferentes escolas do materialismo (Engels, sd, p.179).

Neste divisor de águas, Feuerbach vai ter papel importante no interior dos jovens he-gelianos, pois representa a possibilidade de romper com o hegelianismo em direção a uma concepção de mundo materialista. Esta trajetória de Feuerbach é expressa por Engels:

[...] trajetória que, ao chegar a uma determinada fase, implica numa ruptura total com o sistema idealista de seu predecessor. Finalmente, impõe-se a ele com força irresistível a convicção de que a existência da “Ideia absoluta” anterior ao mundo, preconizada por Hegel, a “pree-

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xistência das categorias lógicas” antes que existisse um mundo, não são mais que o resíduo fantástico da crença num criador ultraterreno; de que o mundo material e perceptível pelos sentidos, e do qual nós, homens, também fazemos parte, é o único real; e de que nossa consciência e nosso pensamento, por muito supersensíveis que pareçam, são o produto de um órgão material, corpóreo: o cérebro. A matéria não é um produto do espírito e o próprio espírito não é mais que o produto supremo da matéria. Isto é, naturalmente, materialismo puro (Engels, sd, p.182).

Engels finaliza esta segunda parte apontando para discussões que apareceram mais à frente, como a corrente materialista mecanicista e do idealismo de Feuerbach, esta última como centro da discussão da terceira parte do texto aqui apresentado.

A terceira parte do texto é dedicada exclusivamente a discutir onde reside o caráter idealista do pensamento de Feuerbach. Engels já no primeiro parágrafo aponta o problema.

Onde se revela o verdadeiro idealismo de Feuerbach é em sua filosofia da religião e em sua ética. Feuerbach não pretende, de forma alguma, suprimir a religião, o que deseja é completá-la. A própria filosofia deve converter-se em religião. “Os períodos da humanidade distinguem-se uns dos outros apenas pelas transformações de caráter religioso. Para que se produza um movimento histórico profundo é necessário que este movimento se dirija ao coração do homem. O coração não é uma forma de religião, de tal modo que ela devesse estar também no coração; ele é a essência da religião” (citado por starcke, p. 168). Para Feuerbach, a religião é a relação sentimental, a relação de coração de homem para homem, que até agora procurava sua verdade numa imagem fantástica da realidade – por intermédio de um ou de muitos deuses, imagens fantásticas das qualidades humanas – e agora a encontra, diretamente, sem intermediários, no amor entre Eu e Tu. Assim, para Feuerbach, o amor entre os sexos acaba sendo uma das formas supremas, senão a forma culminante em que se pratica sua nova religião [...].

O idealismo de Feuerbach baseia-se aqui em que, para ele, as relações de uns seres humanos com outros, baseadas na mútua afeição, como o amor entre os sexos, a amizade, a compaixão, o sacrifício, etc., não constituem pura e simplesmente o que são em si mesmas, se não recuam, na recordação, a uma religião particular que também para ele faz parte do passado e só adquirem sua significação integral quando aparecem consagradas sob o nome de religião (Engels, sd, p.186-187).

Segundo Engels, Feuerbach vai se utilizar do malabarismo etimológico ao buscar na palavra religião, que vem de “religare”, a legitimação de sua filosofia da religião, ou seja, toda união de dois seres é uma religião.

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Ainda aqui, Engels faz referências ao materialismo de Feuerbach, afirmando que este não tenha conseguido aplicar na compreensão do mundo social, das relações sociais, do homem e da sociedade enquanto produto histórico, limitando seu materialismo a uma compreensão naturalista do mundo.

Na Quarta, e última parte, Engels busca demonstrar como a teoria marxista é de-corrente da decomposição da escola hegeliana, e sua própria superação. Segundo ele, dife-rentemente dos outros jovens hegelianos, Marx não colocou simplesmente a doutrina de Hegel de lado, mas incorporou o que havia de revolucionário em seu pensamento, ou seja, o método dialético.

Ainda referente a Hegel, Engels manifesta a importância de seu pensamento, apesar do limite do “estudo das coisas como algo fixo e acabado”, e não poderia ser diferente, uma vez que o próprio Hegel e seu pensamento é determinado pela sua época, sendo que este limite não lhe tira o mérito de grande pensador, e que possibilitou posteriormente Marx e o pró-prio Engels a estudar os processos que constituíram as próprias coisas. Também nesta parte do texto, Engels se dedica a um momento de discussão a respeito da investigação histórica, contrapondo a concepção marxista ao velho materialismo, afirmando que este último aceita como causas finais as forças motrizes ideais e não estas determinadas por forças motrizes úl-timas, “as determinações econômicas”. Ao se referir as forças motrizes que movem os homens no processo histórico, Engels afirma:

[...] se se quer investigar as forças motrizes que – consciente ou incons-cientemente, e muito amiúde inconscientemente – estão por trás desses objetivos pelos quais os homens atuam na história e que constituem as verdadeiras alavancas forças motrizes da história, é necessário não se deter tanto nos objetivos de homens isolados, por muito importantes que sejam, como naqueles que impulsionam as grandes massas, os povos em seu conjunto e, dentro de cada povo, classes inteiras; e não momentane-amente, em explosões rápidas, como fugazes fogueiras de palha, mas em ações contínuas que se traduzem em grandes transformações históricas. Pesquisar as causas determinantes que se refletem na consciência das massas que atuam e de seus chefes – os chamados grandes homens – como objetivos conscientes, de modo claro ou confuso, diretamente ou sob uma roupagem ideológica e mesmo fantástica: eis o único caminho que nos pode conduzir à descoberta das leis que regem a história em seu conjunto, tanto quanto a história dos diferentes períodos e países. Tudo que põe os homens em movimento tem necessariamente de passar por suas cabeças; mas a forma que adota dentro delas depende muito das circunstâncias. Os operários não se reconciliam, absolutamente, com o maquinismo capitalista, embora já não façam mais máquinas em pedaços, como ainda ocorria em 1848, no Reno (Engels, sd, p.199).

Ainda sobre a determinação econômica, em última instância, no processo histórico, Engels afirma:

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Pelo menos na história moderna fica, portanto, demonstrado que todas as lutas políticas são lutas de classes e que todas as lutas de emancipação de classes, apesar de sua inevitável forma política, pois toda luta de classes é uma luta política, giram em última instância em torno da emancipação econômica. Portanto, aqui pelo menos, o Estado, o regime político, é o elemento subordinado, e a sociedade civil, o reino das relações econô-micas, o elemento dominante (Engels, sd, p.201).

O conceito de Estado aqui, enquanto instrumento da classe dominante para garantir os interesses desta classe e das relações de exploração e dominação, reaparece no texto: “[...] o estado, de modo geral, não é mais que o reflexo em forma condensada das necessidades econômicas da classe que domina a produção” (Engels, sd, p.201).

No Estado, corporifica-se diante de nós o primeiro poder ideológico sobre os homens. A sociedade cria um órgão para a defesa de seus interesses comuns, face aos ataques de dentro e de fora. Este órgão é o poder do Estado. Mas, apenas criado, esse órgão se torna independente da sociedade, tanto mais quanto mais vai se convertendo em órgão de uma determinada classe e mais diretamente impõe o domínio dessa classe. A luta da classe oprimida contra a classe dominante assume forçosamente o caráter de uma luta política, de uma luta dirigida, em primeiro termo, contra o domínio político dessa classe; a consciência da relação que essa luta política tem para com sua base econômica obscurece-se e pode chegar a desaparecer inteiramente. Se assim não sucede integralmente entre os próprios beli-gerantes, sucede quase sempre entre os historiadores. Das antigas fontes relativas às lutas ocorridas no seio da república romana, somente Apiano nos diz claramente qual era a questão que, em última instância, ali estava em jogo, a saber, a propriedade da terra (Engels, sd, p.202-203).

Outro conceito importante da teoria marxista é o conceito de ideologia, esse aparece como um dos elementos fundamentais na construção do materialismo histórico e na com-preensão da sociedade de classes e da luta de classes como motor da história, conceito que reaparece neste texto de Engels:

Toda ideologia, entretanto, uma vez que surge, desenvolve-se em ligação com a base material das ideias existentes, desenvolvendo-a e transformando-a por sua vez; se não fosse assim, não seria uma ideologia, isto é, um trabalho sobre ideias conhecidas como entidades dotadas de substância própria, com um desenvolvimento independente e subme-tidas tão apenas às suas próprias leis. Os homens, em cujo cérebro esse processo ideológico se desenrola, ignoram forçosamente que as condições materiais da vida humana são as que determinam, em última instância, a marcha desse processo, pois, se não o ignorassem, ter-se-ia acabado toda ideologia (Engels, sd, p.203).

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Quarenta anos após ter contribuído com Marx na elaboração dos manuscritos “A Ideologia Alemã”, Engels retoma suas teses reafirmando e ao mesmo tempo demonstrando seus limites, uma vez que se tratava de uma formulação inicial do rompimento com suas “consciência filosófica anterior”, conclui seu texto reafirmando a interpretação marxista da história como método que busca descobrir as conexões entre as coisas nos próprios fatos e não no cérebro como faziam os filósofos alemães de até então.

CoNCluSão

O texto “Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã”, de Engels, retoma a temática dos manuscritos “A Ideologia Alemã” a partir de exigências e de oportunidades colocadas naquele momento.

Ao colocarmos um texto em relação ao outro, deparamos com uma apresentação mais didática do sistema e do método hegeliano e do materialismo histórico no escrito de 1886 e como este expressa uma maturidade e desenvolvimento do marxismo no interior do pen-samento dos próprios fundadores do materialismo-histórico.

Pelo exposto e numa das passagens do texto de Engels, a de que a “A Ideologia Alemã” representava uma ruptura com relação à concepção idealista de Hegel e, a sistematização da concepção materialista da história, apesar de seus limites, confirmam a tese do corte epis-temológico, enquanto processo, de Louis Althusser. Engels em “Nota preliminar” do texto de 1886 (sd, p.170) afirma:

Antes de enviar estas linhas ao prelo, procurei e reli o velho manuscrito de 1845/1846. A parte dedicada a Feuerbach não está terminada. A parte elaborada integralmente compreende uma exposição da concepção materialista da história, que apenas demonstra quanto ainda eram in-completos nossos conhecimentos de história econômica. O manuscrito não continha a crítica da doutrina feuerbachiana; não servia, portanto, para o objetivo desejado. Em compensação, encontrei num velho caderno de Marx as onze teses sobre Feuerbach2, que são incluídas no apêndice. Trata-se de anotações destinadas a serem desenvolvidas mais tarde, notas redigidas às pressas, que de forma alguma se destinavam à publicação, mas cujo valor é inapreciável por constituírem o primeiro documento em que se fixou o germe genial da nova concepção do mundo.

2 As onze “Teses sobre Feuerbach” foram escritas por Marx na mesma época do texto “A Ideologia Alemã”, portanto, nos parece que a crítica de Engels sobre a ausência de uma crítica da doutrina feubachiana também era uma preocupação de Marx já em 1845/1846. Dada a importância das teses que, segundo Engels, representa “o germine genial da nova concepção de mundo”, a anexamos neste texto.

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Apesar de Engels afirmar os limites do texto “A Ideologia Alemã”, é no contexto de sua elaboração que os autores rompem com o idealismo hegeliano, pois é nesse esforço que as teses sobre Feurbach são escritas.

Na defesa de sua tese, Louis Althusser em nota de rodapé de seu texto “Elementos de autocrítica” contrapondo-se às ideias de alguns de seus críticos, em particular Jonh Lewis, que apontavam o corte já se encontrava nos Manuscritos de 1844.

John Lewis, como tantos outros críticos, pode muito bem me objetar que se encontra nos Manuscritos de 44 a maioria dos conceitos clássicos da Economia Política clássica, como os conceitos de: capital, acumulação, concorrência, divisão do trabalho, salário, lucro, etc. Justamente: são os conceitos da Economia Política clássica que Marx empresta à Economia Política tais como ele os encontra, sem mudar nada, sem acrescentar nenhum aspecto novo, e sem modificar em nada seu dispositivo teórico. Nos Manuscritos de 44, Marx cita real-mente os Economistas como dizendo a última palavra sobre a Economia. Ele não toca em seus conceitos, e se os critica, é “filosoficamente”, de fora, e em nome do filósofo que não esconde seu nome: “A crítica positiva da Economia Política deve seu verdadeiro fundamento às descobertas de Feuerbach”, autor de uma “revolução teórica real” que Marx considera então como decisiva (cf. Manuscritos de 44, Ed. Sociales, p. 2-3).

Para medir, digamos, a diferença, é suficiente pensar na ruptura com Feuerbach, alguns meses mais tarde, nas Teses - e tomar nota deste fato: está fora de questão, nos Manuscritos, a tríade conceitual inteiramente nova, que constitui a base do dispositivo teórico inédito que começa a surgir na Ideologia Alemã: Modo de produção/ Relações de produção/ Forças produtivas. O surgimento desse novo dispositivo vai provocar, desde a Ideologia Alemã, uma nova distribuição dos conceitos da Economia Política clássica. Eles vão mudar de lugar, de sentido e de papel (Althusser, 1978, p. 83).

Nessa passagem do texto de Althusser é importante destacarmos os elementos novos que segundo o autor aparecem no texto “A Ideologia Alemã”, ou seja, um novo referencial teórico construído a partir dos conceitos inéditos que ali aparecem; Modo de Produção, Relações de Produção e Forças Produtivas passam a ser “a base do dispositivo teórico”, que ira permitir Marx a construir a teoria do capital.

Por último, este corte epistemológico no pensamento de Marx representou a constru-ção do materialismo histórico e que este surge como uma teoria anti-humanista, ou seja, Marx rompe com o humanismo teórico. Em seu texto “Sustentação de teses em Amiens”, Athusser afirma:

[...] a pretensão teórica de uma concepção humanista de explicar a socie-dade e a história, a partir da essência humana, do sujeito humano livre, sujeito das necessidades, do trabalho, do desejo, sujeito da ação moral e política. Eu afirmo que Marx só pôde fundar a ciência da história e escrever O Capital sob a condição de romper com a pretensão teórica de todo humanismo desse gênero.

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Contra toda a ideologia burguesa, imbuída de humanismo, Marx declara: “Uma sociedade não é composta de indivíduos” (Grundrisse), “Meu mé-todo analítico não parte do homem, mas do período econômico dado” (Notas sobre Wagner), e contra os socialistas humanistas e marxistas que tinham proclamado no Programa de Gotha que “o trabalho é a fonte de todo valor e de toda riqueza”, ele afirma: “Os burgueses têm excelentes razões para atribuir ao trabalho esta onipotência de criação.” Podemos conceber uma ruptura mais nítida?

Podemos ler seus efeitos em O Capital. Marx mostra que o que determina em última instância o conhecimento, não é o fantasma de uma essência ou natureza humana, não é o homem, e nem mesmo “os homens”, mas uma relação, a relação de produção, que se estabelece uma outra relação com a Base, a infraestrutura. E, contra todo idealismo humanista, Marx mostra que essa relação não é uma relação entre os homens, uma relação entre pessoas, nem inter-subjetiva, nem psicológica, nem antropológica, mas uma dupla relação: uma relação entre grupos de homens que diz respeito à relação entre esses grupos de homens e as coisas, os meios de produção (Althusser, 1978, p.162-163).

Portanto, o corte epistemológico em Marx representou a fundação de um novo con-tinente do conhecimento, a ciência da história, da construção do materialismo histórico como método e da eliminação do conceito de homem como conceito central das formações sociais e da história.

REFERêNCIAS

ALTHUSSER, Louis. A querela do humanismo. Crítica Marxista, São Paulo, Xamã, nº 9, 1999.

ALTHUSSER, Louis. Elementos de autocrítica. In: Posições-1: Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978.

ALTHUSSER Louis. Sustentação de teses em Amiens. In: Posições-1. Rio de Janeiro: Edi-ções Graal, 1978.

ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. In: Karl Marx & Friedrich Engels, Obras Escolhidas. São Paulo: Editora Alfa-Omega, v.3, SD.

MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1983.

MARX, KARL & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1980.

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Trabalho voluntário e responsabilidade social da empresa: novas formas de exploração da força de trabalho e de extração da mais-valia

Silvana Aparecida de Souza*

Comemorado no dia 5 de dezembro, o Dia Interna-cional do Voluntário para o Desenvolvimento Econômico e Social foi defi nido em 1985 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, com o objetivo de incentivar a participação voluntá-ria no mundo inteiro. Na Resolução sobre a criação do Dia Internacional do Voluntário, a Assembleia Geral reconhece a importância do voluntariado e convida a todos os setores da sociedade – Governos, organizações não-governamentais e a sociedade civil – a incentivarem e divulgarem o trabalho dos voluntários.

Convocados pela International Association for Volun-teer Eff ort (IAVE)1, voluntários de todo o mundo aprova-ram, em 1990, a Declaração Universal do Voluntariado. O documento, inspirado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e na Convenção dos Direitos da Criança, de 1989, defi ne os seguintes critérios da ação voluntária:

O voluntariado

É baseado em uma escolha e motivação pessoal, •livremente assumida;

É uma forma de estimular a cidadania ativa e o •envolvimento comunitário;

É exercido em grupos geralmente inseridos em •uma organização;

1 IAVE é uma organização global de liderança no voluntariado. Seus membros estão distribuídos em 96 países em todas as Regiões do mundo. Seu objetivo é apoiar, fortalecer e promover o voluntariado mundial. Em português é traduzido como Associação Internacional de Esforços Voluntários. (Heloísa Coelho, portal do voluntário. 17ª. Conferência mundial de Voluntários da IAVE. principal – Sobre o voluntariado. Entrevista da semana – Entrevistas anteriores. [2006] disponível em: <http://www.portaldovoluntario.org.br/site/pagina.php?idconteudo=440> Acesso em 05 abr. 2006).

* Silvana Aparecida de Souza é Doutora em Educação pela USP, Professora da Universida-de Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), E-mail: [email protected]

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Valoriza o potencial humano, a qualidade de vida e a solidariedade;•

Dá respostas aos grandes desafios que se colocam para a construção de um mundo •melhor e mais pacífico;

Contribui para a vitalidade econômica, criando empregos e novas profissões.•

Em 1997, uma resolução da Organização das Nações Unidas (ONU) declarou 2001 como o Ano Internacional do Voluntariado. Depois disso, durante a primeira reunião do Comitê Preparatório para a Sessão Especial da Assembleia Geral da ONU, ocorrida em maio de 1999, desenhou-se uma estratégia para incorporar uma discussão sobre o papel do voluntariado na reunião Copenhague +5 2.

O governo do Japão propôs tratar na Sessão Especial da ONU de Genebra-2000 o papel do voluntariado no desenvolvimento social e a proposta foi aceita. Ocorreram diversas reuniões preparatórias, nas quais houve “o comprometido apoio de personalidades do Brasil”3.

Trabalhos de investigação global foram encomendados pelo Programa de Voluntários das Nações Unidas. Inúmeros grupos de trabalhos, reunindo especialistas mundiais do tema, foram importantes na preparação dos muitos documentos substantivos para apoiar reuniões intergovernamen-tais, visando lograr uma resolução na 55ª Sessão da Assembleia Geral em 2000, que convocou a 39ª Sessão da Comissão para o Desenvolvimento Social do Conselho Econômico Social da ONU com um mandato de encaminhar sugestões apropriadas e recomendações para a Assembleia Geral para ampliar as contribuições do voluntariado para o Desenvol-vimento Social4.

Nessa mesma Sessão da Assembleia Geral da ONU de 2000, determinou-se que duas sessões da Assembleia Geral seriam voltadas para discutir “voluntariado” exclusivamente. Também foi encomendado um relatório para examinar medidas que os governos e as Na-ções Unidas deveriam adotar para apoiar o voluntariado em todo o mundo. Depois de um extenso processo de reuniões, foram entregues os resultados na 39ª Sessão do Comitê para o Desenvolvimento Social de fevereiro de 2001, convertendo-se numa resolução subscrita por 50 países que “[...] contava com relevantes recomendações para que o voluntariado, em nível mundial, tivesse uma primeira oportunidade para deixar a condição de invisibilidade histórica, após séculos de existência e frutífera manifestação5”.

2 Esse histórico que passará a ser relatado referente à atuação da ONU e seus Estados-membros no que diz res-peito ao incentivo ao desenvolvimento do trabalho voluntário foi apresentado por Douglas Evangelista, Diretor Regional do Programa de Voluntariado das Nações Unidas (UNV), em conferência no Congresso Brasileiro do Voluntariado.

3 Evangelista, 2002: p. 35.4 Idem, ibidem, p. 35-36.5 Idem, ibidem, p. 36.

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A Resolução reconhece que o voluntariado é um componente importante em toda estratégia encaminhada com vistas à redução da pobreza, à promoção do desenvolvimento sustentável e à integração social. Também reconhece a importância de medidas dos governos para elaborar políticas de apoio às atividades dos voluntários.

A Resolução traz inúmeras recomendações dirigidas aos Estados Membros e à própria ONU. Dentre elas, vale destacar o estabelecimento de um entorno fiscal e legislativo propício ao voluntariado; fomento do apoio internacional e do setor privado às atividades voluntárias; criação de um entorno favorável ao desenvolvimento do trabalho voluntário pela via do aumento da sensibilização da opinião pública; fomento e realização de estudos sobre os diversos aspectos do voluntariado e seus efeitos na sociedade; promoção do acesso dos cidadãos à informação sobre oportunidades para exercer atividades voluntárias; criação de um ambiente favorável que aumente o reconhecimento à contribuição dos voluntários; inclusão de voluntários nos programas governamentais, inclusive em nível nacional, dentre outras.6

No que diz respeito ao histórico acerca da configuração que foi tomando o trabalho voluntário especificamente no Brasil, diversos autores7 tomam a Ação da Cidadania Contra a Miséria e Pela Vida, liderada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, como um marco importante no que diz respeito à mudança do perfil do trabalho voluntário no Brasil, no final do Séc. XX. Essa campanha que teve seu auge nos anos de 93-94,

[...] teve um resultado surpreendente em termos de participação da população, a qual foi convocada para formar comitês – organizações localizadas e informais – para implementar ações diversas de “combate à pobreza e à fome no país”. Em poucos meses havia mais de 3.000 comitês criados por todo o território nacional, com alto grau de descentralização e criação voluntária, e a Campanha virou tema nacional e diário da mídia. [...] Pode-se dizer que a convocação das pessoas para coletar e distribuir alimentos “não-perecíveis” foi um dos pontos mais generalizados, sendo uma de suas manifestações mais visíveis o pagamento de ingressos em teatros, cinemas, shows, eventos esportivos, sob a forma de alimentos, para a Campanha contra a Fome8.

No Brasil, em 18 de fevereiro de 1998, o então Presidente da República Federativa do Brasil, Fernando Henrique Cardoso sancionou a Lei 9.608, denominada a Lei do Volunta-riado, a qual define em seu texto considerar serviço voluntário “[...] a atividade não remu-nerada, prestada por pessoa física a entidade pública de qualquer natureza, ou a instituição privada de fins não lucrativos, que tenha objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social, inclusive mutualidade.”

6 Idem, ibidem, p. 36-40.7 Landim e Scalon, 2000; Silveira, 2002; Dal Rio, 2004.8 Landim e Scalon, 2000: p. 31.

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Em 11 de dezembro de 1998 foi aprovada a Lei 9.732 que trata da isenção de contri-buição à seguridade das entidades filantrópicas. E em 23 de março de 1999 foi sancionada a Lei 9.790, que trata das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPS), normatizando a relação Estado/sociedade no desempenho de ações no campo das políticas públicas e o acesso de organizações sem fins lucrativos aos recursos públicos.

Nesse período começam a ser criadas no Brasil diversas entidades e programas de es-tímulo e fomento ao trabalho voluntário como, por exemplo, o Programa Voluntários, do Conselho do Comunidade Solidária criado em 1996; o RIOVOLUNTÁRIO, criado em 17 de junho de 1997; o Faça Parte - Instituto Brasil Voluntário, em 2001; o Portal do Vo-luntário, em 2000; o Instituto Ethos9, dentre tantos outros portais na Internet de incentivo ao trabalho voluntário.

Do mesmo modo, começam a despontar inúmeras iniciativas de empresas privadas, no que diz respeito ao incentivo no desenvolvimento de atividades sociais por meio do trabalho voluntário dos funcionários da empresa, de seus respectivos familiares ou da comunidade. Essas iniciativas tomaram a denominação de Responsabilidade Social da Empresa (RSE):

Um dado novo no Brasil é o voluntariado empresarial. As nossas em-presas, sob diferentes formas, estão incentivando o engajamento de seus funcionários, dos mais variados altos executivos a vendedores de lojas e caixas de bancos, em trabalhos voluntários10.

Dentre essas iniciativas inclui-se o “Amigos da Escola”, iniciado em 1999 pela Rede Globo: um projeto de comunicação que utiliza a força mobilizadora dessa rede de televisão para incentivar o trabalho voluntário em escolas públicas. Pode-se ainda listar projetos de empresas privadas como a Natura, o Boticário, Banco Itaú, Banco Bradesco, C&A, Nestlé, Banco Real, dentre tantos.

Alguns anos depois, também empresas públicas começaram a desenvolver projetos de RSE. Vide os exemplos da Petrobrás, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Furnas Centrais Elétricas, Itaipu Binacional, Universidades públicas em geral.

9 O Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social é uma organização não-governamental criada com a missão de mobilizar, sensibilizar e ajudar as empresas a gerir seus negócios de forma socialmente responsável, tornando-as parceiras na construção de uma sociedade sustentável e justa. Seus 1146 associados – empresas de diferentes setores e portes – têm faturamento anual correspondente a cerca de 30% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro e empregam cerca de 1 milhão de pessoas, tendo como característica principal o interesse em estabelecer padrões éticos de relacionamento com funcionários, clientes, fornecedores, comunidade, acionistas, poder público e com o meio ambiente.

Idealizado por empresários e executivos oriundos do setor privado, o Instituto Ethos é um pólo de organização de conhecimento, troca de experiências e desenvolvimento de ferramentas que auxiliam as empresas a analisar suas práticas de gestão e aprofundar seus compromissos com a responsabilidade corporativa. É hoje uma referência internacional no assunto e desenvolve projetos em parceria com diversas entidades no mundo todo. INSTITUTO ETHOS- empresas e responsabilidade social. Sobre o Instituto Ethos. Disponível em: <http://www.ethos.org.br/DesktopDefault.aspx?TabID=3334&Alias=Ethos&Lang=pt-BR> Acesso em 10 abr. 2006.

10 Lins, 2002: p. 67.

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Como consequência da definição pela ONU do ano de 2001 como o Ano Internacional do Voluntariado, foi organizado:

[...] um Comitê Brasileiro e vários Comitês Estaduais do Ano Interna-cional dos Voluntários, todos liderados com expressiva participação dos centros de voluntários, que conseguiram divulgar, disseminar e valorizar o conceito de voluntário de uma maneira sem precedentes na nossa his-tória. Eles alcançaram tanto espaço quantitativo e qualitativo na mídia que o Comitê Brasileiro foi convidado a relatar suas atividades numa reunião de avaliação do ano realizado pelo Programa de Voluntariado da ONU 11.

Ainda por decorrência da definição do Ano do Voluntariado, ocorreu o Congresso Brasileiro do Voluntariado de 1º. a 4 de julho de 2001, na Pontíficia Universidade Católica de São Paulo (PUC), realizado pelo Núcleo de Estudos em Administração de Terceiro Setor (Neats) da PUC-SP, em parceria com o Comitê AIV- Ano Internacional do Voluntariado, presidido por Milú Villela.

Como desdobramento do Congresso Brasileiro do Voluntariado foi organizado um livro12, que reuniu as conferências, artigos e depoimentos realizados no evento. O Ano Internacional do Voluntariado teve inúmeras outras conseqüências e desdobramentos, impulsionando ainda mais iniciativas dos governos, a atenção da imprensa e a criação de programas de voluntariado empresarial, na forma de RSE.

É perceptível inclusive o fato de que houve, a partir de 2001, uma explosão na produção bibliográfica acerca dos temas voluntariado e RSE, fator que se manteve até 2004/05, e que pode ser observado no conjunto das referências utilizadas neste estudo.

Nessa sequência, a International Organization for Standardization (ISO)13 criou em 2005 a norma de sistema de gestão ISO 26000, que estabelece diretrizes para a Respon-sabilidade Social. E mais recentemente (a partir de 2007, para ser mais específico no caso do Brasil), diversos bancos públicos e privados têm criado os chamados fundos de investi-mentos com foco em sustentabilidade, assim denominados porque destinam parte da taxa de administração para projetos sociais e/ou ambientais, já havendo inclusive um Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE) na Bolsa de Valores, Mercadorias e Futuros de São Paulo (BM & FBOVESPA).14

11 Cardoso, 2002: p. 21.12 Perez e Junqueira, 2002.13 ISO é uma entidade direcionada ao desenvolvimento de normas técnicas sobre gestão, produtos, processos

produtivos e métodos de testes e ensaios. Criada em 1947, atualmente congrega os grêmios de padronização/normalização de 170 países. No final da década de 1970 criou as primeiras normas de gestão que ficaram co-nhecidas como a série ISO 9000, todas relacionadas com a implementação e operação do que se convencionou chamar de sistema de gestão de qualidade. (Barbieri e Cajazeira, 2009, p. 171-172).

14 Martin, 2010, p.76-77.

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Diante da constatação desse enorme conjunto de ações articuladas entre a iniciativa pública e a privada, com o objetivo da promoção de um novo tipo de voluntariado (laico e na maior parte das vezes ligado a uma empresa ou a uma ONG, que por sua vez funciona como braço social de alguma empresa), na condição de pesquisadora que tem o olhar cons-tantemente voltado para o movimento de transposição da forma de organização do trabalho do setor privado para a escola pública, e, considerando que grande parte das ações do que se convencionou chamar de Responsabilidade Social da Empresa (RSE) se desenvolve na área da educação, as perguntas que me moveram a realizar o estudo, do qual este texto é uma síntese, foram as seguintes:

Por que as empresas “resolveram” atuar, investir ou interferir na área social nos •últimos anos, de forma diferente do que se via até então?

O trabalho voluntário ligado à RSE integra as relações, o processo ou a jornada de •trabalho? Se integra, de que modo isso ocorre?

De que forma os trabalhadores passaram a participar dessas ações? Por quê? E como •as empresas os envolvem nisso?

Para buscar respostas a essas perguntas, a pesquisa, de caráter documental, teve como fontes primárias livros, revistas e/ou sítios eletrônicos da área de gestão empresarial, que de-fendem a perspectiva das chamadas ações de RSE, às quais o trabalho voluntário corporativo está ligado. Cabe, portanto, ressaltar que este não é um estudo sobre o trabalho voluntário em geral, mas apenas e tão somente sobre o trabalho voluntário ligado às ações de RSE.

o TRAbAlho VoluNTáRIo No CoNTExTo ATuAl dA SoCIEdAdE CA-pITAlISTA, A RESpoNSAbIlIdAdE SoCIAl dA EmpRESA (RSE), A EduCA-ção, E SuA pRETENSA RElAção Com A SuSTENTAbIlIdAdE SoCIAl.

Para sobreviver, viver e se reproduzir, o homem necessita produzir as condições de sua existência e ele o faz pelo trabalho, que, na condição de mediação, é a atividade desenvolvida para atingir determinado objetivo.

Sendo assim, o homem submete a natureza ao seu interesse, utilizando a capacidade de antecipar no pensamento suas ações, para satisfazer necessidades, tendo em vista os objetivos estabelecidos e levando em consideração o grau de desenvolvimento das forças produtivas em cada momento histórico. Trabalho é, portanto, uma “atividade orientada a um fim”15, e, enquanto categoria geral, possui um caráter potencialmente emancipador, pois, tanto pode servir para tornar o homem sujeito de sua ação e vontade, quanto objeto da vontade de outros. O que vai definir isso é a finalidade estabelecida.

Considerando que a finalidade estabelecida na sociedade capitalista é a acumulação, o caráter geral do trabalho, que permite ao homem ser sujeito de sua ação, assume nessa

15 Marx, 1996: p. 202.

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sociedade a condição de atividade que o submete à condição de objeto, já que só é possível acumular convertendo o outro em meio de acumulação. Portanto, nesse modelo de socie-dade, o trabalho assume a condição de atividade alheia à vontade do trabalhador, portanto involuntária, estranhada16. Por outro lado, a palavra “voluntário” representa um adjetivo da atividade que é realizada de forma espontânea, que não é forçada, que depende da vontade da pessoa que a realiza17.

Após essa breve apresentação de um conceito de trabalho e de trabalho voluntário, pode-se avançar na contextualização dessas atividades no momento histórico atual da socie-dade capitalista, que se convencionou chamar de “acumulação flexível”18, a qual corresponde um Estado mínimo em termos de investimentos sociais, em acordo com o qual passa a ser estimulado “um voluntariado que preencheu as lacunas deixadas pelo Estado e se esforçou por diminuir as necessidades daqueles que ficaram à margem do sistema – ou perversamente inseridos”19.

Pesquisa acerca do voluntariado no Brasil nos últimos anos caracteriza a existência de “uma reforma intelectual e moral” promovida no seio da reforma do Estado Brasileiro a partir de 1990, orientada pelo neoliberalismo da social-democracia que, utilizando-se da função educadora do Estado, promove a emergência de um novo voluntariado, que contribui para aliviar os bolsões de pobreza e, por conseguinte, conservar o conjunto das relações sociais capitalistas 20.

Nessa nova conjuntura, a empresa parece assumir um papel diferente do que se tinha até então: “[...] As empresas, atualmente as grandes detentoras do poder e do patrimônio de conhecimentos, precisam atuar diretamente sobre a realidade ajudando a desarmar essa bomba social que, em última instância, é uma ameaça a elas próprias” 21 (grifo meu). As au-toras do excerto acima utilizado admitem de certa forma como motivo determinante nessa recente preocupação das empresas com a questão social uma correlação com a sobrevivência da própria empresa, uma vez que a crise social pode pôr em riscos seus negócios.

Nesse contexto, as ações de Responsabilidade Social da Empresa (RSE) - que consistem basicamente em ações de empresas no desenvolvimento de alguma atividade considerada de interesse público, e que podem ser executadas nas mais diversas modalidades, por vezes combinadas ou utilizadas individualmente: seja na forma de repasse de recurso financeiro para entidades já existentes; seja na forma de criação de entidades sem fins lucrativos para desenvolver atividades determinadas ou atender a grupos sociais específicos; seja pelo estímulo a que seus funcionários e demais pessoas da comunidade atuem voluntariamente a favor de uma causa social – passaram a fazer parte do cotidiano empresarial.

16 A respeito do processo de estranhamento do trabalho ver Marx, 2004.17 Houaiss, 2009.18 Harvey, 1992.19 Dal Rio, 2004, p. 71.20 Silva, 2005.21 Corullón e Medeiros Filho, 2002: p. 34.

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As pesquisas realizadas há mais de uma década, e que buscaram o perfil do doador de bens ou serviços e de tempo de trabalho voluntário no Brasil22, demonstravam que a atividade de trabalho voluntário vinha crescendo no país (em acordo com um movimento mundial), e que a maior parte delas estava inicialmente relacionada à assistência social, saúde, alimentação, bem como com cuidados pessoais diretos aos grupos atendidos como idosos, mendigos, crianças de rua, etc.

Na última década as pesquisas têm demonstrado que a área da educação (entendida em um conceito amplo como sendo todo e qualquer processo de formaçao humana) tem sido a mais procurada para o desenvolvimento de trabalho voluntário, mas agora não tanto por iniciativas individuais, mas pelas ações de RSE23, que se afirmam no argumento de que as empresas que as realizam buscam a cidadania e a sustentabilidade social e não pretendem manter uma relação de assistencialismo com os grupos sociais atendidos.

As empresas preferem a área da educação para desenvolver seus programas de responsa-bilidade social, já que, se o movimento é de negação do assistencialismo, não seria coerente manter atividades de distribuição de alimentos, roupas ou remédios.

Justifica-se a educação ser a área escolhida pelas empresas pelo fato de ser legitimada como direito subjetivo do ser humano, possibilitador da sustentabilidade e até da ascensão social. Po-rém, se de fato as ações de RSE na área da educação propiciam a sustentabilidade social, mesmo que somente dos grupos sociais ou comunidades atendidas, não é o objeto deste estudo.24

Mas o interesse proeminente no desenvolvimento das ações de RSE na área da educa-ção tem ainda outras explicações que se somam à questão da legitimidade da educação na promoção da sustentabilidade social:

Na luta contra a pobreza os empresários dão ênfase à educação. Os inves-timentos no ensino fundamental e na alfabetização de jovens e adultos operam muito mais pelos seus efeitos indiretos-em matéria de saúde, de nutrição, de planejamento familiar – do que pelos seus efeitos diretos. A ajuda por meio do ensino permite dar um fundamento “econômico” à tentativa de racionalização dos comportamentos. A reeducação do pobre é uma reeducação econômica. 25

22 Landim e Scalon, 2000: p. 53-54. 23 A esse respeito ver pesquisa realizada pelo Datafolha e publicada na Folha de S. Paulo em 28 de outubro de

2001, em caderno especial que tratava do trabalho voluntário; Ver também pesquisa realizada em 2001 pelo Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife), que reúne as maiores instituições sociais mantidas por capitais privados no Brasil, demonstrada em Corullón e Medeiros Filho (2002, p. 73); Ver ainda pesquisa realizada durante sete anos pela revista Carta Capital e a Consultoria InterScience intitulada: “As empresas mais admiradas do Brasil”, a qual se desdobrou na pesquisa que tratou da responsabilidade social da empresa, que pode ser encontrada em: Carta Capital, 2004: p. 10-11.

24 Parece importante salientar que mais recentemente a temática da “sustentabilidade ambiental” tem ganhado espaço junto às ações de RSE, às vezes sendo então denominadas de “Responsabilidade socioambiental”, mas não havendo uma sigla para esta nomenclatura em específico, fator este que me levou a considerá-la contemplada no conceito já explicitado de RSE.

25 Beghin, 2005: p. 56.

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Na sequência a autora, apoiada em Eli Diniz e Renato Boschi, demonstra que a im-portância outorgada pelas lideranças empresariais à educação decorre do fato de a mesma ser considerada essencial para o aumento da competitividade econômica nacional e para a melhoria das condições de inserção do país na nova ordem mundial.

Assim, pode-se inferir que, por razões econômicas e pelo fato de carregar uma forte aceitação da população como uma ação que produz melhoria na vida das pessoas, a educa-ção tem sido a área eleita pela maioria dos dirigentes de empresas para desenvolver ações de responsabilidade social.

Note-se que a preocupação do “mercado” com a sustentabilidade social é tanta que, em meados de 2008, Bill Gates, o maior acionista da empresa Microsoft e um dos homens mais ricos do mundo, anunciou que passaria a partir daquele momento a dedicar seu tempo para questões sociais, por meio de uma Fundação Filantrópica que ele mesmo e sua esposa criaram.

Matthew Bishop26 cunhou em 2006 a expressão “filantrocapitalismo”, que bem se en-quadra no caso de Bill Gates e de muitos outros mega capitalistas que se dizem preocupados com as questões sociais. Referindo-se às ações dos grandes “filantrocapitalistas”, Bishop, em um artigo intitulado “O filantrocapitalismo torna-se global”, publicado em 20/10/08, no site da Revista Alliance, admite que “[...] eles estão longe de qualquer cristão na forma de como doar”, e que “[...] como o capitalismo, o filantrocapitalismo é um fenômeno global, com uma nova geração de filantropos ambiciosos emergindo do mundo em desenvolvimen-to”. Mais adiante o autor ainda afirma que “[...] A força do capitalismo está em criar um ambiente onde a inovação é premiada e o filantropismo promete levar esse dinamismo para o mundo das doações.”

o TRAbAlho VoluNTáRIo VINCulAdo àS AçõES dE RSE, A mAIS-VAlIA E A ExploRAção dA FoRçA dE TRAbAlho: SolIdARIEdAdE ENTRE EmpREgo E Não EmpREgo.

O movimento de valorização e fortalecimento do conceito de RSE ocorre, sobretudo, na última década, em um contexto no qual executivos e empresários passaram a perceber que vincular a imagem da empresa ao desenvolvimento de uma ação que se caracterize como sendo de responsabilidade social aumenta os lucros, conforme trecho destacado a seguir, expresso por Percival Caropreso, presidente da McCann Erickson Social/Marketing, unidade da maior empresa de propaganda do mundo, que cuida exclusivamente de Marketing Social: “tornar a ação social mais eficiente não tem o objetivo de aumentar a milhagem das empresas em algum programa celeste, mas sim aumentar o próprio valor de suas marcas e seus lucros”27.

26 Matthew Bishop é Redator Chefe de Negócios e American Bussines Editor do The Economist.27 Lessa, 2002: p. 22.

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Autores que defendem a RSE explicitam as mudanças ocorridas no mundo atualmente que levam a uma mudança de postura na gestão empresarial:

O maior ímpeto para a mudança das práticas empresariais não se encontra no crescente sentido de responsabilidade social, mas nas forças do mer-cado – clientes interessados, funcionários com voz ativa e investidores pragmáticos preocupados com o valor do seu patrimônio. O que já foi apenas bom fazer deve hoje ser obrigatório28.

Nesse mesmo sentido, outro autor enfatiza que é papel da empresa adotar novas práticas gerenciais que privilegiem não apenas o êxito dos negócios, mas também os aspectos social, ambiental e humano, “[...] senão por convicção, certamente por sobrevivência”29.

Note-se que os autores estão afirmando que se enquadrar no perfil de empresa so-cialmente responsável não é mais um poder discricionário do proprietário ou dirigentes da empresa. As atuais condições do mercado os obrigam a isso. Os dirigentes das empresas não tomaram, portanto, a iniciativa de desenvolver ações sociais por um compromisso com a humanidade e sim porque o capital responde às circunstâncias históricas e atualmente as condições do mercado os obrigam a isso.

Considerando que o mecanismo de apropriação da mais-valia é diverso, ocorre que no processo permanente de busca do aumento de lucros, ao tentar extrair o mais possível a mais-valia absoluta e a mais-valia relativa da força-de-trabalho contratada, o capitalista consegue uma mais-valia extra, que é temporária.

Ela se efetiva quando, no processo de procura do aumento da produtividade, se des-cobre uma nova forma de produzir uma dada mercadoria com menor custo ou com maior produtividade. Decorre que, até que esse novo modo de produção se generalize à escala social, aqueles que a utilizam individualmente conseguem um lucro extra, que não acompanha, portanto, o padrão e a normalidade da produção. Pelo contrário, isso só é possível enquanto se mantiver na condição de diferencial de um processo de produção para outro, até que não seja apropriado pela concorrência. Ou, nos termos de Marx, “[...] essa mais valia extra se desvanece quando se generaliza o novo modo de produção”30.

Em função dessa mais-valia extra, o capitalista é impelido a sempre buscar o aperfeiço-amento das condições de produção e de circulação, que pode ocorrer na forma de melhoria dos processos de produção (o que se converte na redução de custos), ou das condições de circulação mediante a concorrência, como é o caso das ações de RSE.

Mas, se essa condição se converte em vantagem para o capitalista somente enquanto essa nova forma de produção e/ou circulação não for adotada de modo generalizado pelo conjunto das organizações concorrentes em cada ramo de produção, então, quando a maio-

28 Grayson e Hodges, 2002: p. 7.29 Mcintosh et all, 2001: p. vii.30 Karl Marx, O Capital. Livro 1, v. I. 15. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996, p. 366.

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ria das empresas em cada segmento tiver adotado a prática do desenvolvimento de ações de RSE, isso deixará de ser um diferencial de uma ou algumas empresas e a vantagem obtida em função dessas ações irá se reduzindo até sua extinção, iniciando-se o processo de busca de um novo diferencial.

Portanto, longe de achar que existe um maniqueísmo na mudança de atitude do em-presariado hoje ao se interessar pelo desenvolvimento de ações de RSE, instrumentalizando o trabalho voluntário de seus funcionários como uma vantagem mediante a concorrência, o que se está afirmando é que o próprio empresário é, em certa medida, determinado pelas condições históricas de desenvolvimento do capitalismo. Se ele (o empresário) não acompa-nhar o movimento da realidade, que se traduz nas tendências de mercado, estará induzindo sua empresa ao fracasso em seus objetivos, que é a acumulação.

Sendo assim, o desenvolvimento de ações sociais não ocorre por serem elas um valor em si para a empresa, mas por se constituir em uma nova exigência do mercado, assim como uma nova vantagem no mercado.

Dentre as vantagens para a empresa que os defensores da RSE alegam, uma delas diz respeito aos funcionários, que melhoram seu desempenho e respectiva produtividade e desenvolvem ainda novas habilidades de liderança e trabalho em equipe, que são trazidas para o exercício profissional dentro da empresa, que passa a contar com funcionários mais conscientes, experientes, preparados e produtivos 31.

Outra vantagem é o sentido de pertencimento dos funcionários com relação à empresa, que aumenta. Isso faz com que o funcionário contribua com a melhoria da imagem da empresa quando divulga seu nome fora dela. Isso também aumenta a satisfação no trabalho, fator que eleva a produtividade dos funcionários, que passam a defender a empresa, dissimulando em certa medida a polaridade de interesses entre capital e trabalho.

Os mesmos autores têm ainda mais argumentos acerca das vantagens relacionadas às ações de responsabilidade social desenvolvidas pela empresa:

Há relatos de empresas que registraram aumento na produtividade de seus funcionários após a implantação do voluntariado. [...] Os consumidores em condições iguais de preço e qualidade preferem adquirir produtos de empresas que praticam a solidariedade e que buscam a melhoria da sociedade por meio da melhoria das pessoas. A responsabilidade social é valorizada pelos consumidores. O governo muitas vezes declara sua satisfação de maneira pública com as ações sociais de muitas empresas, o que também colabora de maneira positiva para a construção de uma imagem favorável. 32

31 Perez e Junqueira (orgs.), 2002, p. 245.32 Idem, ibidem, p. 258.

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Também existe o fator da aproximação da empresa com os mercados consumidores, à medida que os funcionários se envolvem com trabalhos sociais voluntários.

Em uma perspectiva crítica à RSE, Eugênio Bucci, denomina essa “nova ‘solucionática’ voluntária” de “solidariedade de mercado”, a qual, segundo o autor, é necessariamente uma solidariedade exibicionista33.

As ações de RSE necessitam de visibilidade para se reverter em benefício para a própria empresa, sob pena de perderem sua validade. Assim, a aparência pode bastar se o que se pretende é uma ação que se converta em uma imagem de empresa socialmente responsável, tornando-a mais competitiva, trazendo como consequência o aumento dos lucros. Ou seja, as ações de RSE não se baseiam na virtude em si, mas na sua aparência de virtude.

Ao adjetivar a “solidariedade de mercado” como exibicionista, Bucci está precisamente destacando o caráter de aparência que essa solidariedade assume em sua atual configuração. Nos termos marxianos, um caráter de fetiche, tratando-se então da reificação do trabalho voluntário, da coisificação de uma relação social que assume agora a forma “mercadoria”. O trabalho voluntário passa de valor social para um valor de mercado e para o mercado.

Por isso, as empresas têm demonstrado um interesse crescente em buscar funcionários que desenvolvam atividades sociais de forma voluntária. Nesse sentido, ao tratar do perfil, em termos de características pessoais que um voluntário necessita ter para desenvolver um trabalho social, Maria da Conceição Castro afirma:

O setor privado, por exemplo, tem buscado “caçar” talentos com esse perfil no sentido de agregar valores às outras competências tradicional-mente requeridas, tarefa que não tem sido das mais fáceis, visto que isso depende menos de habilidades e competências adquiridas pelos profis-sionais, por meio de cursos e treinamentos, e muito mais de atitude. Esta é uma condição que envolve dimensões de valor que extrapolam as relações puramente de troca entre patrão e empregado.34

Porém, além de incentivarem o desenvolvimento do trabalho voluntário por seus fun-cionários, existe também uma antecipação da empresa, exigindo que o possível candidato a uma vaga demonstre que já desenvolve atividades de cunho social. A detecção do desenvol-vimento ou não dessas atividades ocorre no processo de recrutamento.

O desenvolvimento de uma atividade social por meio do trabalho voluntário passa então a ser condição a ser assumida também para os que ainda não estão empregados, mas têm a perspectiva de se inserir ou se reinserir no mercado de trabalho:

A intensa valorização que as empresas brasileiras vêm dando ao trabalho voluntário, até como um item positivo nos currículos dos profissionais

33 Bucci, 2004: p. 182.34 Castro, 2002: p. 70-83.

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que se candidatam a cargos em seus quadros, tem contribuído para modificar o perfil do voluntariado brasileiro. Essa prática, já antiga no mercado de trabalho norte-americano, tem se difundido rapidamente entre as empresas brasileiras.35

As empresas de recrutamento de pessoal, sobretudo de executivos, têm orientado que, no Curriculum Vitae de um profissional apto à empregabilidade, não pode faltar a menção ao desenvolvimento de uma atividade voluntária de interesse social.

A palavra Empregabilidade ainda não consta dos dicionários brasileiros, mas é bastante usual no meio empresarial. O termo equivalente em inglês é “[...] employability: a condição de dar emprego ao que se sabe, a habilidade de ter emprego”36. Ao tratar da origem do con-ceito, o autor esclarece:

Para se ajustar às exigências da economia global, as organizações modificam-se com rapidez e não podem mais garantir o emprego até o profissional aposentar-se, como acontecia antigamente. São, aliás, cada vez mais raras as carreiras feitas em uma só empresa. Resultado: os empregadores começam a adotar uma política de preparar os seus funcionários para que estejam em condições de ter trabalho quando deixarem a organização37.

Considerando tais explicações, pode-se depreender que empregabilidade tem sido considerada a qualidade de estar apto ao emprego. São as condições que o trabalhador deve atender objetivando a possibilidade de conseguir emprego, considerando sua capacidade de enquadrar-se num perfil determinado pelas demandas do “mercado” de trabalho, e, para enquadrar-se no perfil da empregabilidade, atualmente, é condição que se desenvolva uma atividade social voluntária.

A análise até aqui empreendida leva à percepção de um movimento de solidariedade induzida, governada, entre emprego e não-emprego no atual momento da sociedade capita-lista. Note-se que não se trata da ideia de que todos trabalhem menos, propiciando que todos possam trabalhar e viver: isso seria impossível sem tocar na propriedade e na distribuição da riqueza produzida pela humanidade.

O significado que este estudo empreende à expressão “[...] movimento de solidariedade induzida, governada, entre emprego e não-emprego” está estreitamente vinculado às atuais con-figurações do mundo do trabalho na sociedade capitalista, demonstrando que tal solidariedade deve partir da atividade voluntária de quem tem ou pretende ter emprego, para quem não mais o tem e provavelmente não mais o terá (mantido o modo de produção atual), contribuindo, dessa forma, na manutenção da sobrevivência dessa última parcela da população.

35 Perez e Junqueira, 2002: p. 174.36 Minarelli, 1995: p. 37.37 Idem, ibidem, p. 38.

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Sendo assim, trata-se a RSE de mais uma das incontáveis estratégias de reorganização permanente do capital, para superar ou atenuar os sintomas da crise que faz parte de seu “sócio-metabolismo”38, mantendo em um nível controlado a tensão social gerada pelo de-semprego estrutural.

Nessa perspectiva, não somente os que ainda têm emprego devem desenvolver ativi-dades sociais por meio do trabalho voluntário, mas também aqueles que buscam o primeiro emprego e aqueles que, mesmo desempregados, ainda se consideram aptos a se reinserirem no mercado de trabalho, buscando adequar-se ao perfil da empregabilidade.

Se o desenvolvimento de atividades voluntárias, de natureza social, tem sido posto subliminarmente ou explicitamente aos funcionários das empresas como condição para ma-nutenção do emprego e princípio a ser incorporado e desenvolvido por aqueles que buscam atender ao perfil da empregabilidade, pode-se dizer que o trabalho voluntário desenvolvido por força da RSE é involuntário, forçado, coercitivo, obrigatório.

Desse modo, pode-se afirmar que existe o trabalho que é de fato voluntário. Trata-se daquele que parte de iniciativa espontânea do indivíduo, como uma atividade de caráter solidário, humanitário, caritativo ou militante. Porém, existe também o trabalho que se intitula voluntário, mas que na verdade é forçado. E o trabalho voluntário ligado à RSE enquadra-se nessa situação.

O “trabalho voluntário forçado” compõe as relações de compra e venda da força de tra-balho, quando possibilita o aumento do lucro da empresa, mesmo parecendo ao trabalhador estar fora da jornada e das atribuições do trabalho. Trata-se, neste caso, de uma relação no âmbito da estrutura material e econômica da sociedade capitalista. No entanto, o “trabalho voluntário forçado” compõe também as relações sociais de trabalho na sociedade capitalista, no âmbito da superestrutura, pelo menos de duas formas: como auxiliar na manutenção e reprodução desse modo produtivo, no que diz respeito especificamente à sua contribuição para atenuar os efeitos do desemprego estrutural; e também quando contribui para substi-tuir parte do papel do Estado no desenvolvimento de atividades de natureza social, já que o próprio capitalismo exauriu sua capacidade de financiamento (do Estado).

Para concluir, parece relevante a consideração de Marx ao afirmar que “[...] Um negro é um negro. Apenas dentro de determinadas condições ele se torna um escravo. Uma máqui-na de fiar algodão é uma máquina de fiar algodão. Ela se transforma em capital apenas em condições determinadas”39. Parafraseando o filósofo alemão, poder-se-ia dizer: O trabalho voluntário é trabalho voluntário. Apenas em determinadas condições ele aumenta a possibi-lidade da realização monetária da mais-valia na circulação, diante da concorrência.

38 Mészáros, 2002.39 Karl Marx, s/d, p. 69.

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CoNSIdERAçõES FINAIS

Pode-se então sintetizar as conclusões deste estudo da seguinte forma:

Muitas empresas, sobretudo as maiores, já possuem um setor de RSE, com estrutura 1. logística e pessoal;

Há um mercado crescente para executivos com experiência na área social;2.

Os trabalhadores atualmente têm sido estimulados a desenvolver alguma natureza 3. de atividade social por meio do trabalho voluntário, já que as empresas têm buscado trabalhadores com esse perfil, fator que muitas vezes pode se tornar um diferencial no processo de recrutamento;

Sendo assim, os trabalhadores já empregados e os que se preparam para a condição 4. de “empregabilidade” devem se enquadrar a esse perfil;

Diante dessa condição, o trabalho voluntário ligado à RSE é involuntário, já que 5. passa a compor o conjunto das relações de compra e venda da força de trabalho na sociedade capitalista;

O trabalho voluntário ligado às ações de RSE atua diretamente no âmbito da 6. estrutura, da exploração da mais-valia, quando possibilita o aumento da produ-tividade do funcionário contratado, a melhoria da sua relação de pertencimento com a empresa, além da redução de possíveis conflitos, pela via da dissimulação do antagonismo de interesses de classe entre capital e trabalho;

Existe um movimento de “solidariedade induzida entre emprego e não emprego”, 7. o que faz com que os trabalhadores ainda empregados contribuam para com a manutenção da sobrevivência daqueles que passaram para a condição de desem-pregados, atenuando a tensão social decorrente dessa situação. Também tais ações contribuem para substituir parte do papel do poder público, no que diz respeito ao oferecimento de serviços de natureza social. Nestes casos o trabalho voluntário ligado à RSE atua no âmbito da superestrutura, auxiliando na reprodução ampliada do modo capitalista de produção;

As ações de RSE possibilitam o aumento dos lucros, pela via do aumento das vendas, 8. pois há um apelo para a subjetividade do consumidor, com relação à vinculação da imagem dos produtos e serviços de empresas que desenvolvam ou anunciem desenvolver tais ações. Esse diferencial de uma empresa para a outra se converte em uma vantagem quando aumenta a possibilidade de realização da mais-valia no processo de circulação, mediante a concorrência.

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A política da forma jurídica

Sílvio Luiz de Almeida*

Para todos os que se propõem a pensar na superação das mazelas do capitalismo, a refl exão sobre o direito é fundamen-tal. A mirada para um novo horizonte das relações humanas requer a compreensão da especifi cidade histórica do direito e de sua ligação com a totalidade dos processos sociais.

Em primeiro lugar, há que se distinguir o “direito” enquanto horizonte ético-político e o “direito” enquanto uma forma específi ca de regulação social. No primeiro caso, o que se chama por “direito”, é na verdade uma reivindicação de cunho político ou uma afi rmação moral, que não neces-sariamente reveste-se de uma forma jurídica. Assim, dizer que “todos os homens têm direito à vida” ou que “todos os trabalhadores têm direito a terra” não quer dizer que tais di-reitos estejam formalmente previstos, ou seja, que se revelem em textos legislativos e decisões judiciais, ou que permitam homens e trabalhadores a reivindicá-los pela via processual. Do mesmo modo, a religião também se pronuncia sobre o “direito” ao estabelecer regras de conduta a partir de dogmas religiosos ou rituais. A indistinção entre a forma jurídica e as demais formas sociais (política, religião, moral) é o refl exo de tempos em que as relações sociais ainda não haviam atingido o grau de sofi sticação do capitalismo.

Não é por acaso que a fi losofi a do direito pré-contem-porânea é jusnaturalista, ou seja, procura fundamentar o di-reito – e, portanto, legitimar o uso da violência nos processos econômicos – em fatores exteriores à deliberação humana (a “natureza das coisas”, “Deus” ou a “razão individual”). O discurso do direito natural só seria abandonado pela grande maioria dos juristas a partir do século XIX, quando a vitória burguesa nas revoluções liberais e a tomada do poder estatal fariam surgir o juspositivismo.

Como forma histórica específi ca, o direito corresponde a um tipo de relação social que aparece em determinadas

* Sílvio luiz de Almeida, Dou-tor em Filosofi a e Teoria Geral do Direito pela USP. Presidente do Instituto Luiz Gama e Pro-fessor da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Ta-deu (SP).

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condições históricas. Nesse sentido, a consolidação do capitalismo faz surgir uma instância eminentemente jurídica como exigência desse modo de produção social. O “direito” aparece como legalidade.

A NEuTRAlIdAdE do dIREITo E A SoCIAldEmoCRACIA

A questão se torna ainda mais complexa quando se observa a discussão sobre as teorias revolucionárias que se deram no interior do marxismo. Após Marx e Engels, o pensamento marxista encaminhar-se-á majoritariamente, como bem nota Alysson Mascaro1, para uma espécie de “crítica humanista” ou para teorizações que reduzem a luta proletária à criação de estratégias de apropriação do Estado e do direito. O maior exemplo disso é a Segunda Internacional, para quem a revolução é a luta pelo domínio das instituições políticas e pela formação de uma legalidade proletária.

Como nos ensina Gilberto Bercovici2, no início do século XX, o ingresso do operariado no sistema político e o capitalismo monopolista arrefeceram os ânimos por uma ruptura revolucionária e colocaram na pauta a possibilidade de transformação do sistema político-institucional pelas vias legais. Para os defensores desta ideia, a transição para o socialismo passa pela democracia e por “um projeto político consciente” de tomada do poder estatal. O objeto da luta de classes agora é o domínio do Estado, lugar de onde a classe proletária, no controle da economia, realizaria a transição democrática para o socialismo.

A transição do capitalismo concorrencial para o capitalismo monopolista teve um papel decisivo para esta forma “positiva” de ver o Estado, vez que esta derrubava a noção liberal de que ao Estado só caberia “vigiar” o mercado. Se o Estado poderia intervir na economia, por que não poderia fazê-lo para promover o socialismo? É esta pergunta que leva os social-democratas alemães e austríacos a concluírem pela possibilidade de transformação pelas vias institucionais.

Rudolf Hilferding, um dos maiores expoentes da social democracia alemã, acreditava na força dos partidos políticos, cuja luta refletiria a luta de classes e cujo principal objetivo era claramente influir na administração do Estado, única organização social capaz de intervir na economia graças ao seu poder de coerção3. Para Hilferding, portanto, as organizações

1 “[...] A cadência do pensamento marxista, logo em seguida a Marx e Engels, envolve-se em um tipo de socia-lismo que beirava as críticas humanistas, ou então, de maneira simplista, teorizava uma apropriação do Estado de direito pela luta proletária, abrandando de certa forma a radicalidade original do pensamento de Marx em troca dos ganhos sociais conquistados nos estados europeus. A Segunda Internacional, de que Kaustky é o mais notório exemplo, inscreve, em superação da legalidade dominada pela burguesia, uma legalidade proletária, como se as tarefas de transformação se tratassem de uma simples troca do domínio estatal e jurídico, dentro de m molde social-democrata”. MASCARO, Alysson Leandro. Crítica da Legalidade e do direito brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2002, p. 60.

2 BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de exceção permanente. Rio de Janeiro: Azougue. 2004, p. 51-52.

3 BERCOVICI, Gilberto, op. cit. p. 54

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proletárias deveriam, por meio da luta institucional, buscar a democracia econômica e a partir daí construir o socialismo4. Nesse mesmo sentido, Herman Heller acreditava que o Estado Social de Direito, como ordem soberana da economia, deveria subordinar a economia capitalista de mercado a um comando jurídico nacional5.

O também socialdemocrata Karl Renner – que ao tornar-se presidente da Áustria faria um revelador convite para Hans Kelsen – acreditava que o ocupante do Estado poderia modificar as relações jurídicas e políticas que são à base do capitalismo. Assim, a classe trabalhadora poderia concluir a democracia política e a expansão econômica pela via da democracia e da legalidade 6.

A visão socialdemocrata configura um exemplo de negação da historicidade do direito e, por via de conseqüência, da ligação intrínseca da legalidade com a reprodução capitalista. O direito aqui é tratado como mera “técnica” ou como uma forma “neutra”, que não pode ser superada mesmo diante de uma mudança radical na estrutura social. Para essa concepção o direito confunde-se com a “norma jurídica estatal” que pode em seu conteúdo abrigar as mais diversas orientações políticas, sejam estas liberais ou socialistas. Mas haveria de fato “neutralidade” na forma jurídica?

Hans Kelsen acredita que sim. Por isso propõe-se a pensar em uma “ciência do direito” marcada pela “exatidão e objetividade”. Para tanto, envidou esforços para criar “uma teoria jurídica pura, isto é, purificada de toda a ideologia política e de todos os elementos de ciência natural, uma teoria jurídica consciente da legalidade específica de seu objeto”.7 E Kelsen segue afirmando que a “ciência do direito” tem como objeto o direito, ou mais especificamente as “normas jurídicas”, e não as “condutas humanas”, que só são objeto da “ciência do direito” à medida que “determinadas nas normas jurídicas”.8

Kelsen critica o fato da ciência do direito, no decurso dos séculos XIX e XX, ter-se confundido de modo “ïnteiramente acrítico”, com a psicologia, com a sociologia, com a ética e com a teoria política, fato explicado pela estreita conexão destas ciências com o direito9. Mas explica que quando a Teoria Pura estabelece os limites entre o direito e estas ciências,

4 Ibid.5 Ibid., p. 132-133. 6 Ibid., p. 54. Em complemento, afirma Giácomo Marramao: “Mas se as reflexões de Hilferding e de Renner

têm a vantagem de se distinguir de maneira nítida e definitiva do jusnaturalismo ainda presente naquele marxismo que ‘idolatra as leis de natureza’ e impede ‘a análise da sociedade como um sistema que tem seu fulcro no direito e no Estado’ – razão pela qual irão se configurar, no pós-guerra, como plataformas teóricas não assimiláveis ao ‘expectativismo revolucionário’ de tipo segundo-internacionalista –, elas terminam por conceber o Estado democrático como um sujeito sintético, acolhendo a equação kelseniana entre direito e Estado (com a redução, nela implícita, do tema weberiano da legitimidade à legalidade). A própria proble-mática da racionalização como transformação constante das estruturas de propriedade e como modificação da ação empresarial – que, sob muitos aspectos, identifica-os com Schumpeter – apresenta uma inclinação evolucionista e a-conflitual, exatamente antitética à trajetória schumpeteriana” MARRAMAO, Giácomo. Entre bolchevismo e social-democracia: Otto Bauer e a cultura política do austromarxismo. In: HOBSBAWN, Eric. B. História do Marxismo, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, p. 335, v. 5.

7 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998, prefácio, p. XI8 Ibid., p. 79.9 Ibid., p. 1.

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“[...] fá-lo não por ignorar ou, muito menos negar” a conexão existente, “[...] mas porque intenta evitar o sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza de seu objeto”10.

Visto o direito como sistema de normas e a ciência do direito como “[...] conhecimento e descrição de normas jurídicas e às relações, por estas constituídas, entre fatos que as mesmas normas determinam”, é que o Direito pode ser definitivamente separado de outras ciências.11 Àquele a quem Kelsen chama de “jurista científico” permanece o dever de neutralidade, pois este “[...] não se identifica com a autoridade que põe a norma jurídica”. Nessa vereda, “[...] a proposição jurídica permanece descrição objetiva – não se torna prescrição. Ela apenas afirma, tal qual a lei natural, a ligação de dois fatos, uma conexão funcional”. 12

Desse modo, Kelsen pretendia livrar o direito dos raciocínios de “política jurídica” aos quais, dizia ele, a Jurisprudência se limitava. Mas Kelsen, ele mesmo livrou-se dos raciocínios sobre a política, que condenava nas demais teorias do direito?

Entretanto, no livro “O que é a Justiça?”, Kelsen revela o motivo político que o leva a clamar por um “direito puro”: a tolerância liberal. Ele se mostra convencido da irracionalidade da ideia de uma “justiça absoluta”, pois para ele, o juízo por meio do qual algo é declarado como justo “[...] nunca poderá ser emitido com a reivindicação de excluir a possibilidade de um juízo de valor contrário”.13 A única solução que garante a “paz social como valor maior” é uma solução de compromisso, a qual, segundo Kelsen, seria a “mais justa”.14 Assim, conclui que uma justiça da paz é uma justiça relativa.

Seria mais do que presunção fazer meus leitores acreditarem que eu conseguiria aquilo em que fracassaram os maiores pensadores. De fato, não sei e não posso dizer o que seja justiça, a justiça absoluta, esse belo sonho da humanidade. Devo satisfazer-me com uma justiça relativa, e só posso declarar o que significa justiça para mim: uma vez que a ciência é minha profissão e, portanto, a coisa mais importante em minha vida, trata-se daquela justiça sob cuja proteção a ciência pode prosperar e, ao lado dela, a verdade e a sinceridade. É a justiça da liberdade, da paz, da democracia, da tolerância.15

O princípio da tolerância é o princípio moral que fundamenta uma doutrina relativista de valores. O relativismo defendido por Kelsen não resulta em um direito à tolerância abso-luta, mas “[...] somente à tolerância no âmbito de um ordenamento jurídico positivo, que garanta a paz entre os submetidos a essa justiça, proibindo-lhes qualquer uso da violência, porém não lhes restringindo a manifestação pacífica de opiniões”.16

10 Ibid., p. 1-2.11 KELSEN, Hans, op. cit., p. 84.12 Ibid, p. 89.13 Id. O que é justiça? São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 23.14 Ibid.15 KELSEN, Hans. O que é justiça? São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 25.16 Ibid, p. 24.

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A democracia liberal, segundo Kelsen, é a forma de governo mais justa, porque privilegia a liberdade, “e liberdade significa tolerância”. Todavia, em defesa da liberdade, é certo que um governo democrático deve defender a si mesmo, inclusive utilizando-se de violência para evitar “tentativas de derrubá-lo com uso da violência”. Kelsen considera que o exercício desse direito – o de utilizar a violência contra os opositores do regime democrático - não entra em contradição com os princípios da democracia e da tolerância.17

Assim, uma “ciência” do direito só é possível na democracia liberal. Ao mesmo tempo, a “neutralidade do direito”, garante a organização do modo de vida liberal:

Uma vez que democracia, de acordo com sua natureza mais profunda, significa liberdade, e liberdade significa tolerância, nenhuma outra forma de governo é mais favorável à ciência que a democracia. A ciência só pode prosperar se for livre; ela será livre não somente quando o for externamente, ou seja, quando estiver independente de influências políticas, mas também quando o for interiormente, quando houver total liberdade no jogo do argumento e do contra-argumento. Nenhuma doutrina pode ser reprimida em nome da ciência, pois a alma da ciência é a tolerância.18

Em suma: a forma jurídica não é “neutra”, pois é ela que irá estruturar relações fun-damentais ao modo de produção capitalista.

FoRmA juRídICA E FoRmA mERCANTIl

Na obra “A teoria geral do direito e o marxismo”, o soviético Evgeny Pachukanis nos dará a mais consistente visão sobre o problema da forma jurídica. Tal como Marx fez com a economia política, Pachukanis terá a preocupação de estudar as generalizações e abstrações engendradas pelos juristas burgueses, “partindo das necessidades de seu tempo e de sua classe”, porém, com o cuidado de “pôr em evidencia o seu verdadeiro significado, em outros termos, descobrir os condicionamentos históricos da forma jurídica”19.

Com base no método e nas conclusões de Marx contidas em “O Capital”, Pachukanis iniciará uma análise da forma jurídica “[...] em sua configuração mais abstrata e mais pura”, percorrendo um caminho que vai do “mais simples para o mais complicado”, até a totalidade concreta. A busca de Pachukanis, portanto, será pela história real das formas jurídicas, e não pela historia que está apenas “no cérebro e nas teorias dos juristas especializados”. Para Pachukanis, a história das formas jurídicas desenvolve-se “[...] como um sistema particular que os homens realizam não como uma escolha consciente, mas sob a pressão das relações de produção” 20.

17 Ibid, p. 24.18 Ibid.19 PACHUKANIS, Evgeny. A teoria geral do direito e o marxismo. São Paulo: Renovar, 1989, p. 29.20 Ibid.

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O desenvolvimento dialético dos conceitos jurídicos fundamentais não nos fornece apenas a forma jurídica em seu pleno desenvolvimento e em todas as suas articulações, mais reflete igualmente o processo real da evolução histórica, que não é outro senão o processo da evolução da sociedade burguesa.

“Não se pode objetar à teoria geral do direito, como a concebemos, que esta disciplina trate unicamente de definições formais, convencionais e de construções artificiais. Ninguém duvida de que a economia política estuda uma realidade efetivamente concreta, ainda que Marx tenha chamado a atenção a que fatos como o Valor, o Capital, o Lucro, a Renda, etc. não podem ser descobertos ‘com ajuda de microscópios e de análise química’. A teoria do direito opera com abstrações que não são menos ‘artificiais’: a ‘relação jurídica’ ou o ‘sujeito de direito’ não podem igualmente ser des-cobertos pelos métodos de investigação das ciências naturais, embora por detrás destas abstrações escondam-se forças sociais extremamente reais.21

Pachukanis parte do conceito de sujeito de direito, pois segundo ele, é na relação entre sujeitos com vontades equivalentes que a forma jurídica ganha vida. Só a mediação jurídica é capaz de criar vontades equivalentes entre sujeitos de direito, necessárias para o estabe-lecimento de um valor de troca. Com tais afirmações a respeito do direito e da circulação mercantil, Pachukanis deixa claro que a equivalência geral que caracteriza a forma mercantil é a mesma que funda a forma jurídica. Ao comentar a relação entre a forma jurídica e a forma mercantil, Márcio Bilharinho Naves assevera:

[...] Ao estabelecer um vínculo entre a forma jurídica e a forma mer-cadoria, Pachukanis mostra que o direito é uma forma que reproduz a equivalência, essa ‘primeira idéia puramente jurídica’ a que ele se refere. A mercadoria é a forma social que necessariamente deve tomar o produto quando realizado por trabalhos privados independentes entre si, e que só por meio da troca realizam seu caráter social. O processo do valor de troca, assim, demanda, para que se efetive um circuito de trocas mer-cantis, um equivalente geral, um padrão que permita ‘medir’ o quantum de trabalho abstrato que está contido na mercadoria. Portanto, o direito está indissociavelmente ligado à existência de uma sociedade que exige a mediação de um equivalente geral para que os diversos trabalhos privados se tornem trabalho social. É a idéia de equivalência decorrente do pro-cesso de trocas mercantis que funda a idéia de equivalência jurídica. [...] A relação de equivalência permite que se compreenda a especificidade do próprio direito, a sua natureza intrinsecamente burguesa [...].22

21 PACHUKANIS, Evgeny. op. cit, p. 33-3422 NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e Direito. São Paulo: Boitempo, 2003, p. 57-58

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Ao contrário de outros autores marxistas, como Piotr Stuchka – que acreditava na criação de novos conceitos gerais, próprios de um direito proletário – Pachukanis considerava que o fim da sociedade capitalista marcaria o sepultamento das categorias jurídicas, que, para ele, são fundadas em abstrações próprias do direito burguês. É nessa vereda que Pachukanis afirma que “[...] o desaparecimento das categorias do direito burguês significará nestas condições o desaparecimento do direito em geral, isto é, o desaparecimento do momento jurídico das relações humanas”.23 Ainda que presente durante a transição do capitalismo para o comunismo – período em que se pressupõe a permanência do padrão burguês nas relações humanas –, a forma jurídica tende a ter o mesmo destino que a forma mercadoria: o perecimento.

[...] Esta tendência, exigindo para o direito proletário novos conceitos gerais que lhe sejam próprios, parece ser revolucionária por excelência. Mas, em realidade, proclama a imortalidade da forma jurídica, pois se esforça em extrair esta forma de condições históricas determinadas que lhe permitam se expandir completamente, e a apresentar como capaz de se renovar permanentemente. O desaparecimento de certas categorias (de certas categorias, precisamente, e não de tais ou quais prescrições) do direito burguês não significa em hipótese alguma a sua substituição por categorias do direito proletário. Igualmente o desaparecimento das categorias Valor, Capital, Lucro, etc., no período de transição para o socialismo evoluído, não significa o aparecimento de novas categorias proletárias de Valor, Capital, etc. [...] A transição para o comunismo evoluído não se mostra, segundo Marx, como uma passagem a novas for-mas jurídicas, mas como o desaparecimento da forma jurídica enquanto tal, como uma libertação em relação a esta herança da época burguesa, destinada a sobreviver à própria burguesia 24.

De tal sorte que o direito no capitalismo não dá uma “essência” à liberdade e, conse-quentemente, à igualdade entre os “homens livres”, mas concede uma forma específica a esta liberdade. A troca mercantil requer o reconhecimento mútuo dos agentes como proprietários livres, reconhecimento este que não pode se dar apenas sob a forma de uma convicção livre ou de um imperativo categórico; pouco importa se alguém cumpre uma obrigação contratual porque é forçado ou porque se sente no dever moral de fazê-lo, desde que o faça. Como a inércia da troca mercantil não pode depender da “boa vontade”, eis porque o Estado torna-se elemento essencial para a organização da constrição exterior sobre as condutas dos indivídu-os.25 Do mesmo modo, a “igualdade” que faz capitalista e proletário reconhecerem-se como “sujeitos livres e iguais pertencentes à espécie humana” tem sua expressão no contrato:

Uma ação que é verdadeira e única encarnação do princípio ético contém também a negação deste princípio. O grande capitalista ‘arruína de boa fé’

23 PASUKANIS, E. B, loc. cit., p. 26.24 PASUKANIS, E. B, op. cit., p. 28.25 Ibid., p. 138.

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o pequeno capitalista sem se importar com o valor absoluto de sua pessoa. A pessoa do proletário é ‘igual em princípio’ à pessoa do capitalista; isto se exprime no ‘livre’ contrato de trabalho. Mas esta mesma ‘liberdade materia-lizada’ resulta, para o proletário, na possibilidade de morrer de fome.26

CoNCluSão

Não se pode compreender o direito afastado das estruturas sociais. E é justamente nesse afastamento da história que consiste a tese da “neutralidade do direito” alimentada pelo jus-positivismo. Mesmo alguns marxistas foram seduzidos pela “eternização” da forma jurídica, abandonando, portanto, uma discussão fundamental para a construção de uma alternativa concreta ao capitalismo e, conseqüentemente, uma perspectiva realmente revolucionária.

O direito no capitalismo não nega os direitos à liberdade ou à igualdade; pelo contrario, ele garante tais direitos. A legalidade eliminou os privilégios para em seu lugar por a figura do sujeito de direito que carrega a liberdade e a igualdade formais em seu bojo, a fim de possibilitar as relações de troca mercantil. Assim, a perspectiva de superação do capitalismo não é um problema jurídico, mas político, em que o surgimento de novas relações sociais não fundadas na troca mercantil revela-se no rompimento com a forma jurídica.

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. (org). O discreto charme do direito burguês: ensaios sobre Pachukanis. São Paulo: Unicamp, IFCH, 2009. PACHUKANIS, Evgeny. A teoria geral do direito e o marxismo. São Paulo: Renovar, 1989.1989.

26 PASUKANIS, E. B, op. cit., p. 134.

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IV História

Imediata

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o capital na era da luta de classes disciplinada

Francisco José Soares Teixeira*

I. AS oRIgENS políTICA dA CRISE SoCIAl

1. A SoCIAl dEmoCRACIA E A dESCoNSTRu-ção dA luTA dE ClASSES:bREVE dIgRESSão hISTÓRICA

Frankfurt, 1951. Naquele ano, os principais líderes da social-democracia europeia resolvem criar a Internacional Socialista (IS), considerada como herdeira da II Internacio-nal, que, no início da Primeira Guerra Mundial, abandona a luta pelo socialismo e adere à política de colaboração de classes. Na verdade, a IS é uma criação da Fundação Friedrich Ebert (FFS), assim denominada em homenagem ao social-democrata alemão Friedrich Ebert, um dos fundadores da república de Weimer (1919-1933), criada pela revolução de 1918/1919.

Num breve registro histórico, Friedrich Ebert assumiu a presidência do Partido Social-Democrata Alemão (SPD), em 1913. Pertencia a ala direita do Partido, explicitamente contrarrevolucionária. Seus integrantes eram muito dife-rentes dos social-democratas históricos do século XIX1. Há

1 Em 1869, August Bebel (1840-1913) e Wilhelm Liebknecht fundam o Partido Operário Social-Democrata alemão (SDAP). Vinte anos depois, 1890, o partido suprime o nome “operário” e passa a ser designado apenas como Partido Social-Democrata Alemão (SPD), nome que se conserva até hoje. O programa aprovado no Congresso de Eisenach, proposto por Bebel, defendia a abolição da dominação de classe; era um programa eminentemente revolucionário e anticapitalista. No Congresso de Gotha, 1875, os lassalleanos elegem a maioria dos delegados:

* Francisco josé Soares Teixeira é Professor da Universidade Regional do Cariri (URCA). E-mail: [email protected].

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tempo haviam abandonado a estratégia revolucionária do marxismo e as tarefas históricas da classe operária, em nome da preservação das instituições e valores da sociedade capitalista. Seu objetivo histórico se era tornar representantes de um partido operário-burguês, como de fato assim aconteceu.

Durante a revolução alemã que começa de 1918 e se estende, segundo alguns histo-riadores, até o ano de 1923, o SPD, de Friedrich Ebert, desempenha papel fundamental como agente contrarrevolucionário. A Revolução, que começara em janeiro daquele ano, quando um movimento grevista exigindo a paz une mais de um milhão de trabalhadores, agrava-se com o passar do tempo. Em agosto, o alto comando do exército imperial, certo de que a Alemanha sairia derrotada da Primeira Grande Guerra, propõe um governo de união nacional para que começasse a negociar a paz com os países aliados: França, Inglaterra, Rússia e os Estados Unidos.

Vã tentativa! Em outubro, estoura a revolta dos marinheiros que se recusaram a combater os ingleses. São violentamente reprimidos e jogados nas prisões. A resposta à ação do Exército contra os marinheiros veio no mês seguinte, quando eclode, em Kiel, um movimento em prol da libertação dos insurretos de outubro. A partir de então a Alemanha torna-se um palco de várias manifestações insurrecionais, que culminam na greve geral na cidade de Berlim, no dia 9 de novembro. O imperador renuncia e Ebert assume a chefia do governo, na condição de primeiro ministro2.

75 seguidores de Lassalle contra 56 participantes marxistas. As duas correntes se unem e adotam, então, um programa reformista centrado nas reivindicações imediatas: sufrágio universal, voto secreto, liberdades democráticas e melhoria das condições de vida dos trabalhares pela via parlamentar. Como se pode notar, o programa não faz menção à revolução nem ao caráter de classe do Estado. Daí a crítica im-piedosa de Marx contra o programa aprovado. Cf. Crítica ao Programa de Gotha. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras Escolhidas. São Paulo: Alfa-Ômega, Tomo 2.

Mesmo assim o partido não só experimentou um crescimento exponencial, como também foi um importante instrumento eleitoral de conscientização política das massas. Com efeito, “[...] nas eleições gerais de 1877, a social-democracia obteve quinhentos mil votos, e com seus 12 deputados eleitos para o Reichstag, tornou o quarto partido político do Reich. Contra o perigo representado pela social-democracia, Bismarck fez pro-mulgar a lei de exceção (21 de outubro de 1878), que proibia o funcionamento das associações e a publicação dos jornais socialistas. Apenas um exemplo: na Prússia, de outubro 1879 a novembro de 1880, mais de 11 mil pessoas foram presas por motivos políticos. Foi a fase heróica da social-democracia alemã que, apesar da repressão e das medidas de política social com o objetivo de afastar os operários do socialismo, sobreviveu e cresceu camuflada em associações eleitorais e culturais diversas. De 1887 a 1890, a social-democracia duplicou seus votos levando 35 deputados ao Reichstag. Quando Bismarck quis prorrogar a lei de exceção e fortalecê-la, o Reichstag recusou, e o partido voltou à legalidade, com 1,5 milhões de eleitores (18% do total)”. LOUREIRO, Isabel Maria. 0p. cit., p. 34.

2 Antes de assumir a presidência da republica, o príncipe Max de Bade, temendo pela sorte do imperador e de toda a nobreza, faz um acordo com Ebert e lhe transfere o cargo de chanceler. Era novembro de 1918. No dia 9 daquele mês, “[...] a onda revolucionária atinge Berlin, capital do Império. Por vota do meio-dia, manifestações gigantescas coroadas de milhares de bandeiras vermelhas enchem as ruas da capital. Muitos estão armados com pistolas, fuzis e granadas. Os soldados nas casernas aderem ao movimento e o príncipe Max de Bade, ao ver que a situação foge ao controle, anuncia, mesmo sem ser autorizado, a abdicação do imperador, transferindo o cargo de chanceler a Ebert e propondo a convocação de uma Assembléia Nacional com poderes constituintes. Pela primeira vez, um ‘homem do povo’ estava no comando do Reich”. LOUREIRO, Isabel Maria. A Revolução

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Cai a coroa; em seu lugar, vem a faixa presidencial. Em fevereiro de 1919, na pacata cidade de Weimer, instala-se a assembleia constituinte. Friedrich Ebert é eleito provisoria-mente para ocupar o cargo até que seja promulgada a Constituição.

Foi uma simples troca de ornamentos: a faixa presidencial substituiu a coroa. Realmen-te, com Ebert à frente do novo governo, a burguesia podia dormir tranquila, segura de que os alicerces que sustentam seu domínio de classe não seriam abalados, como de fato não o foram. Ardoroso defensor da ordem e dos valores burgueses, Ebert nunca quis a revolução e de tudo fez para evitá-la. Como ressalta Montagny, o senhor Ebert

[...] não queria a revolução, a odiava como um pecado, mas quando se desen-cadeou em 1918 e 10.000 conselhos operários e de soldados detiveram o poder real em quase todo o país, tudo fez para desviá-la do seu verdadeiro objetivo: deu seu apoio aos revolucionários, não hesitando em utilizar as palavras de ordem para se eleger a frente dos conselhos e os controlar. O dia em que a República foi proclamada e ele foi designado Primeiro-Ministro, fez um apelo aos ma-nifestantes para deixarem as ruas e assegurarem a calma e a ordem. Durante a noite faz um acordo secreto com os chefes do exército imperial para “lutar em conjunto contra o bolchevismo”.3

Quanta estreiteza de espírito a do senhor Friedrich Ebert! O compromisso que celebra na calada da noite foi um compromisso, como diria Lênin, de traidores que dissimulam sob a capa de pseudocausas objetivas o seu egoísmo e covardia. Um compromisso feito com um claro intuito de conquistar as boas graças dos capitalistas em troca de algumas esmolas do grande capital. Isso não significa que a classe trabalhadora não deve assumir compromissos com os representantes ou os donos do capital. Mas há compromissos e compromissos. Que o diga Lênin, para quem,

[...] é preciso saber analisar a situação e as condições concretas de cada compromisso ou de cada variedade de compromissos. É preciso saber distinguir o homem que deu aos bandidos o dinheiro e as armas para diminuir o mal causado pelos bandidos, do homem que dá aos bandidos e o dinheiro e as armas para participar da partilha do saque. Em política, isto está longe de ser sempre tão fácil como este pequeno exemplo de uma simplicidade infantil. Mas seria simplesmente um charlatão quem pretendesse inventar para os operários uma receita que desse antecipa-damente soluções prontas para todos os casos da vida ou prometesse que na política do proletariado revolucionário não haveria nenhumas dificuldades e nenhumas situações complicadas4.

Alemã, 1918-1923. – São Paulo: Editora UNESP, 2005, p. 55-56 (Revoluções do século XX).3 Montagny, Claude. A Fundação Friedrich Ebert: agente eficaz da social-democracia alemã. In: A Social-

Democracia na atualidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980, p. 95. 4 LÉNINE, V.I. A doença infantil do esquerdismo no comunismo. In: Obras Escolhidas. Lisboa: Edições Avante,

Tomo 3, 1979, p. 291.

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Aí está o tipo de compromisso que a ala direita da social-democracia alemã, liderada pelo senhor Ebert, celebra com os “bandidos” (atente-se para as aspas, pois a exploração não pode ser confundida com um simples roubo5) do imperialismo. Não se trata, pois, de um compromisso temporário, um recuo da classe trabalhadora para restabelecer suas forças e, assim, voltar à luta6, mas, sim, de um compromisso anticomunista com o fim de canalizar a mudança para a política de colaboração de classes; um compromisso, portanto, de deliberada renúncia ao socialismo.

Esse registro histórico é importante porque, a partir dele, pode-se compreender melhor a natureza da política praticada pela social-democracia, notadamente a alemã. Para tanto, vale a pena acompanhar, ainda que de forma extremamente breve, os tumultuados aconte-cimentos da revolução e da república de Weimer.

Entre os anos de 1919-1923, várias revoltas eclodem por toda a Alemanha. Todas de-beladas com a ajuda direta ou indiretamente da social-democracia. Mas é com a chegada do chamado “terrível” ano de 1923 que o movimento revolucionário atinge seu ápice. Loureiro descreve a atmosfera econômica, social e política daquele ano, nos seguintes termos:

[...] para a maioria dos alemães, 1923 foi o ano da fome e da mais violenta crise social até então. Os trabalhadores tiveram seus salários reduzidos a menos da metade do que recebiam em 1914, a pequena burguesia viu suas economias evaporarem pela inflação. A sociedade burguesa parecia à beira do colapso: a especulação, a corrupção e a prostituição triunfavam. 1923 também foi o ano em que a unidade do Reich se viu ameaçada: os franceses dominavam as regiões do Reno e do Ruhr, a extrema direita na Baviera, a extrema esquerda na Alemanha Central, e o governo oficial no Norte. 1923 foi o ano em que a extrema esquerda e a extrema direita planejaram golpes para tomar o poder. Foi por fim o ano em que pagando um preço altíssimo, a democracia burguesa con-seguiu sobreviver. E ela se manteve, a duras penas, por mais dez anos, até a chegada de Hitler ao poder7.

A desestruturação econômica da sociedade durante o ano de 1923 teve como resultado político, de um lado, a exacerbação das paixões nacionalistas da extrema direita; de outro, um notável crescimento do Partido Comunista Alemão (KPD). Acuado, Friedrich Ebert faz uso do artigo 488 da Constituição e declara estado de sítio para todo o país, transferindo

5 A esse respeito ver TEIXEIRA, Francisco José Soares. Pensando com Marx: uma leitura crítico-comentada de O Capital. São Paulo: Ensaio: 1996, notadamente o capítulo 7.

6 A respeito da tática recuo-avanço, ver LÊNIN, A doença infantil do esquerdismo no comunismo; op. cit. 7 Idem, Ibidem, p. 138.8 O artigo 48 da Constituição de Weimer foi uma iniciativa de Max Weber que havia participado do anteprojeto

constitucional com o jurista liberal Hugo Preuss. Esse artigo “[...] dava ao presidente do Reich (diretamente eleito pelo povo para um mandato de sete anos e podendo se reeleito) poderes excepcionais, ‘caso a segurança e a ordem públicas sejam gravemente afetadas ou ameaçadas no Reich alemão’, o que significava poder decretar o estado de sítio, suspender os direitos fundamentais, instituir tribunais de exceção, dissolver o Reichstag,

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o poder executivo para as mãos do ministro do Exército. Instaura-se, assim, uma ditadura militar, que foi de grande utilidade, principalmente, contra a esquerda9.

Mais uma vez a social-democracia revela sua aversão a quaisquer ações de massa, princi-palmente quando promovidas pela esquerda comunista, em nome da ordem e da legalidade constitucional. E é sob essa ditadura militar, e também econômica, que a República conseguiu se impor no outono de 1923, contra a esquerda e a direita. De acordo com Loureiro,

[...] as tentativas de golpe de ambos os lados foram reprimidas, a in-flação contida com uma reforma fiscal, os conflitos na política externa começaram a diminuir, a política interna foi se acalmando lentamente, é claro que à custa dos trabalhadores: a maior conquista de novembro de 1918, a jornada de oito horas, acabou sendo suprimida10.

Essa é a herança que a social-democracia deixa para seus contemporâneos do pós Segunda Grande Guerra. Sua ojeriza ao comunismo e a qualquer movimento de massa, sempre identificado como ataque à ordem constituída, mergulhou a República num mar de sangue. Sua obstinação obsessiva em combater os comunistas acabou por deixar as portas abertas para o nazismo. Quando Hitler assumiu o poder em 1933, o SPD, para se manter na legalidade, mostrou mais uma vez seu oportunismo. Não mediu as consequências dos efeitos de suas ações, para falar numa linguagem weberiana: propôs uma série de concessões ao Partido Nacionalista, e até mesmo chegou a prometer expulsar os judeus de suas fileiras, justamente a quem o SPD tanto devia e que tiveram marcante influência no crescimento e fortalecimento do Partido. De nada lhe adiantou tanto servilismo. Em fevereiro, o Partido e os sindicatos foram fechados, e seus dirigentes presos.

Igualmente, não se pode eximir o KPD da responsabilidade pela ascensão do nazis-mo. Em sua luta contra os social-democratas não percebeu, ou não levou na devida conta o crescimento das forças do nacionalismo, que iria jogar a Alemanha em mais uma guerra mundial que deixou um saldo de mais de 50 milhões de mortos.

E assim chega ao fim a tumultuada república de Weimer. A Alemanha saía de um estado de sítio para mergulhar numa ditadura que duraria até a queda de Hitler em 1945. Mesmo assim, o maior vencedor de Weimer foi, sem dúvida, o grande capital.

autorizar o chanceler a governar por decretos-lei. Em suma, o presidente tinha poderes ditatoriais que foram utilizados mais tarde, de 1930 a 1933. Foi utilizando o artigo 48 que o marechal Hindenburg, então presi-dente da República, nomeou Hitler para o cargo de chanceler em janeiro de 1933, Segundo o historiador Pierre Broué, todas as disposições democráticas da Constituição não passavam de cláusulas secundárias em face o artigo 48, que dava ao Estado instrumentos para aniquilar toda tentativa revolucionária ou mesmo toda evolução democrática inquietante no interior constitucional’” (Loureiro, p. 112-113).

9 Ver Loureiro, p. 152-153.10 Idem, Ibidem, p. 164.

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2 oS hERdEIRoS dA REpÚblICA dE WEImER: CoNSTRuToRES dA obE-dIêNCIA dE ClASSE

Com o fim da Segunda Grande Guerra, social-democratas e comunistas11 elaboram suas interpretações da república de Weimer. Os primeiros entendem que a colaboração da social-democracia com o Exército Imperial não foi uma traição dos seus líderes, mas, sim, uma ação necessária e impreterível que impediu a “bolchevização” da Alemanha.

Com o fim do nazismo, essa interpretação, na avaliação de Loureiro,

[...] era bem-vinda, pois ligava a RFA aos democratas de Weimer. O comportamento de Ebert e da social-democracia majoritária era julgado de forma positiva, algo perfeitamente compreensível depois da difamação que haviam sofrido durante o período nazista. Ao mesmo tempo, essa avaliação positiva também tinha implicações políticas atuais: o início da guerra fria oferecia a oportunidade de mostrar o vínculo entre proteção da democracia e rejeição do comunismo – daí o paralelo entre 1918-1919 e 194512.

É sob essa atmosfera político-ideológica que é reconstituída, em 1947, a Fundação Friedrich Ebert (FES), que havia sido fundada em 1925 e fechada pelos nazistas em 1933. Seu documento de apresentação expressa que seu objetivo é

1) educar politicamente os homens de todas as origens;

2) promover a cooperação entre os povos; e

3) ajudar os estudantes mais destacados, sejam alemães ou estrangeiros.

Infere-se daí que a formação política é, portanto, o centro de atuação da Fundação. A realização de seminários, dirigidos a todas as categorias da população (operários, funcionários, mulheres, jovens e até mesmo famílias inteiras), ocupa uma considerável parte de todas as

11 Do lado dos comunistas, a Republica Democrática Alemão considera que “[...] a Liga Spartakus figurava como a força principal. Essa historiografia analisava a revolução de 1918-1919 em função do presente: seu objetivo era tirar ‘lições’ visando a orientar a luta contra o imperialismo naquele momento. Por isso a direção do Partido Socialista Unificado (SED, nome do KPD na época da RDA) já nos anos 1950 elegeu a revolução de novembro como modelo, para que os historiadores da RDA demonstrassem o papel dirigente do partido naqueles acontecimentos”.

“[...] Em 1958, o comitê do SED elaborou ‘teses’ sobre a revolução de novembro. Enquanto anteriormente alguns historiadores comunistas interpretavam essa revolução como uma revolução proletária derrotada, nas ‘teses’ de 1958 ela foi assim definida: ‘de acordo com seu caráter a revolução de novembro é uma revolução democrático-burguesa, que em certa medida foi conduzida como meios e métodos proletários’. Se não houve na Alemanha uma ‘revolução proletária’, embora existissem as condições objetivas para isso, a responsabilidade recai sobre a falta de maturidade do ‘fator subjetivo’: as massas não estavam satisfatoriamente organizadas para a luta pela tomada do poder. Em outras palavras, o que (ainda) faltava naquela época na Alemanha era um ‘partido marxista-leninista combatente’” (Loureiro, Isabel Maria, op. cit., p. 172).

12 Idem, Ibidem., p. 171.

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suas atividades. Avaliando o sucesso alcançado por esse tipo de atividade, Montagny constata que o número de seminários passou

[...] de 410 em 1974 a mais de 1.100 em 1977 (isto é, cerca de 30.000 participantes em 1977). Eles se dirigem, antes de tudo, aos operários das grandes regiões industriais, como Ruhr, assim como aos sindicalistas. Tra-tam de assuntos diretamente relacionados com a atualidade: como, por exemplo, impedir a eleição de comunistas nos conselhos das empresas. O relatório anual de 1977 estima que são ‘os seminários de preparação desse gênero que permitiram reduzir a influencia da juventude comunista nos órgãos regionais de co-gestão dos alunos’13.

Outro tipo de atividade é a distribuição de bolsas de estudos para alunos alemães e estrangeiros. No final dos anos 1970, de acordo com Montagny, foram distribuídas 1200 bolsas: 800 para estudantes alemães e 400 para estrangeiros. A Fundação espera que esses alunos venham a ocupar cargos importantes nos setores de economia, ensino e pesquisa.

Trata-se, portanto, de formar na Alemanha e no resto do mundo quadros fiéis aos ideais da social-democracia. Nesse sentido,

[...] um exame do programa de seminários previstos para uma das escolas da fundação é revelador. Seu tema principal: a social-democracia e as reformas. Outros assuntos: os meios de comunicação de massa, a Interna-cional Socialista; a Comissão Norte-Sul e o Terceiro Mundo; ampliação CEE; a situação na África do Sul; Oriente Médio [...] etc14.

Outro setor de destaque da FFE é o de pesquisa e de publicações, que absorvem mais da metade do orçamento da fundação, com mais de 300 pessoas ocupadas em tais ativida-des, das quais uma centena delas operando no exterior. No que concerne às publicações, todas têm como tema central o KPD e a RDA. Mais uma vez valendo-se de Montagny, este constata que

[...] até o fim de 1977 o grupo de trabalho sobre as relações RFA-RDA elaborou 42 cadernos na série ‘RDA-realidade – argumento’, assim como 45 fichas na série ‘informações rápidas sobre o diálogo interalemão’. Nenhuma outra insti-tuição política é capaz, na RFA, de proporcionar um material de propaganda sobre todas essas questões15.

Trata-se de uma grande ofensiva ideológica cujo conteúdo é sempre definido contra o comunismo. Com efeito, seus principais temas são questões que abordam temáticas tais como “reforma ou revolução”, “partido do povo ou partido de classe”, “democracia parlamentar

13 MONTAGNY, Cloude. Op. cit., p. 99. 14 Idem, Ibidem, p. 109-110. 15 Idem, Ibidem, p. 100.

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ou sistema de conselhos”, “controle democrático da economia ou nacionalização dos meios de produção”, “a co-gestão como forma de humanização do trabalho”, dentre outros temas do gênero.

Essa ofensiva ideológica não é somente uma construção ideal. Ela tem uma base ma-terial, produto da práxis dos partidos e sindicatos social-democratas. Desde o Congresso de Bad Godesberg, 1959, as lideranças do SPD e da Confederação dos sindicatos alemães, conhecida pela sigla DGB16, resolvem abandonar toda referência à luta de classes, às na-cionalizações e à concepção de classe do Estado. É, portanto, significativo, como afirmam Cornillet e Montagny,

[...] que tais opções tenham sido tomadas naquela época: o ‘milagre’ alemão havia espalhado a ilusão de um eterno consenso social no interior do sistema capitalista. A guerra fria era violenta. O Partido Comunista Alemão (KPD) estava interditado desde 1956, seus militantes atirados na prisão. Tudo o que estava um pouco à esquerda, inclusive nos sindicatos, [era] impiedosamente perseguido e frequentemente arrastado aos tribunais17.

Em 1969, Willy Brandt é eleito Primeiro Ministro da Alemanha. Em suas promessas de campanha, comprometia-se a construir o “socialismo”, porém se recusou a nacionalizar os setores chaves da economia porque isso, segundo ele, seria adotar o coletivismo da República Democrática Alemã (RDA). Sua intenção era clara: não tocar nos meios de produção nem atacar o capital. Com o advento da crise de 1973-1974, quando o preço do petróleo atinge patamares estratosféricos, seu discurso muda de tom: as palavras “mudanças”, “inovação”, “modernização”, “reformas” deram lugar ao realismo e ao necessário. De acordo com Cor-nillet e Montagny,

[...] as reformas que tiveram lugar no período de Brandt se dedicaram essencialmente a tornar mais flexível a legislação (divórcio, aborto, extensão do seguro doença, introdução de um critério de idade para aposentadoria) [...] e não a introduzir verdadeiras modificações. Henry Ménudier, especialista da RFA, que não esconde suas simpatias pela social-democracia, reconhece encantado: ‘o desejável cedeu o passo ao possível. A história da coalizão social-liberal poderia ser escrita através do abandono progressivo das reformas mais do que sob o ângulo de sua realização efetiva’18.

É que faz o Partido Trabalhista Britânico a partir da crise de 1973. Substitui seu discurso otimista pelo realista. Isso significou como afirma Bernas

16 A DGB responde por quase 99% dos sindicatos. É considerada praticamente como um sindicato único na Alemanha (Ver Cornillet, Gérard & Montagny, Claude. República Federal da Alemanha: o “modelo”. In: A social-democracia na atualidade. Op. cit.

17 Idem, Ibidem, p. 71. 18 Idem, Ibidem, p. 73.

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[...] abandonar ou colocar em segundo plano todo o lirismo dos anos 60 sobre as ‘ideias novas’ e ‘dinâmicas’ do partido, sobre seus ‘dirigentes no-vos e viris’ que saberão ‘criar no país um estado de espírito empreendedor e inventivo que [...] aconteça o que acontecer, impedirá qualquer retorno à política desacreditada dos Tories, qualquer retorno a uma estagnação crescente, ao crescimento intermitente de um desemprego agudo, um aumento contínuo dos preços’. É desenvolver, ao lado do discurso da ‘revolução tecnológica’ e a necessária ‘modernização’ a ‘racionalização da indústria britânica, toda uma retórica de acordo de planificação, compre-endidos como ‘uma estreita cooperação entre governo e os dois sócios da indústria, tendo como objetivo o desenvolvimento de um novo tipo de relações que permite uma harmonização crescente dos planos futuros do governo e da indústria, no interesse do crescimento econômico19.

Tal como fizera o SPD, o Partido Trabalhista Britânico, em nome da racionalidade do mercado, substituiu seu programa de reformas por uma política incentivadora do cresci-mento econômico. O bipartidarismo britânico ajudou a realização desta guinada praticada pelos trabalhistas que, para se manterem no poder, sempre recorreram ao uso de “chantagens políticas” do tipo “eles” (conservadores) ou “nós”.

Podem fazer isso até com certa facilidade. Afinal, somente o Partido Trabalhista tem experiência para realizar uma colaboração estatal não conflitante com os aliados da indústria (trabalho e Estado). Com efeito,

[...] é o Partido trabalhista que, com toda a evidência, goza de uma posi-ção privilegiada no dispositivo das forças sindicais e políticas. Somente ele pode harmonizar e fazer convergir interesses que o Partido Conservador, em seu dogmatismo, sempre jogou uns contra os outros. Somente ele pode ‘fazer da economia britânica um sistema econômico responsável’ e assegurar ‘o consenso nacional’ sem o qual não haverá saída20.

Aliás, foi o que fizeram os trabalhistas quando chegaram ao poder. No tempo que estiveram à frente do executivo, “não derrubaram nada”,

[...] nem antes nem depois da guerra. Houve certamente algumas nacio-nalizações e importantes reformas sociais que melhoraram efetivamente a sorte dos trabalhadores. Mas as bases do capitalismo britânico não ficaram abaladas21.

19 BERNAS, Colette. Grã-Bretanha, O Socialismo de Sua Majestade. In: A social-democracia na atualidade. Op. cit., p. 50-51.

20 Idem, Ibidem., p. 53-54. 21 Idem, Ibidem., p. 47.

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Poderia o capital sonhar com melhor parceiro? O governo de Willy Brandt não deixa dúvidas quanto a isso. Com efeito, quando foi discutida a lei de co-gestão, Brandt prometia a igualdade de direitos e de peso nas decisões dos conselhos entre os trabalhadores e os donos do capital. Quando a lei foi aprovada em março de 1976, assegurava a maioria de votos para o capital daquelas empresas com mais de dois mil funcionários.

Bela reforma que dá ao capital a última palavra! Não sem razão, entre 1970 e 1976, os encargos fiscais, que recaem sobre o trabalho, aumentaram duas vezes mais rapidamente do que os salários. Os impostos sobre os salários financiavam, no final dos anos 1970, 31% das receitas fiscais em comparação aos 9% de 195022. Daí a razão por que a participação dos salários na renda nacional vem caindo não só na Alemanha, como também em toda comu-nidade europeia. O caso da França é emblemático. Em 1925-1995, os salários representavam 66,4% da renda, cai para 54,8% no período 2004-200723. Esses dados seriam aplicáveis a qualquer outro país capitalista.

Mesmo assim, com exceção das revoltas dos trabalhadores na França e em outros poucos países europeus, nos anos de 2009 e 2010, não se tem notícias de greves de massas e perturbações sociais na Europa significativas. Afinal, a função do SPD, como também de todos os partidos social-democratas, é

[...] trabalhar para a integração da classe operária, impedi-la de combater a política que está sendo realizada. O autor dessa declaração é o presidente do SPD e da Internacional Socialista, o próprio Willy Brandt24.

Falar de democracia num país em que o capital sempre tem a última palavra é, no mínimo, uma hipocrisia. Em 1972, Willy Brandt instaura os famosos “Berufsverbote”, um verdadeiro atentado à democracia, como assim afirmam Cornillet e Montagny, para os quais os Berufsverbote proíbem

[...] de exercer a profissão como professores, magistrados ou mesmo funcionários dos correios ou ferroviários, aos comunistas e também, em medida crescente, aos membros ‘críticos do SPD, assim como a outros democratas. Isto em nome de uma ‘ordem livre e democrática’, que assimila falsamente a Constituição ao sistema capitalista!25

E complementam seu raciocínio:

[...] esses ‘Berufsverbote’ são apenas a ponta visível de um iceberg que abrange ainda muitas outras disposições antidemocráticas: a legislação de exceção, que autoriza especialmente o exército a intervir contra ma-nifestantes, a restrição aos direitos de defesa, a extensão do direito de

22 Cornillet, Gérard & Montagny, Claude. Op. cit. p. 74. 23 Apuntos teóricos para entender La crisis, Seminário Taifa, junio de 2009, disponível na Internet. 24 Cornillet e Montagny. Op. cit., p. 77. 25 Idem, Ibidem, p. 75.

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investigação que torna possível tal medida sem testemunhas e sem ordem escrita, segundo a apreciação da situação da polícia [...].26

Mas nada disso põe em cheque o “modelo” social-democrata. Afinal, instituições como a Fundação Friedrich Ebert existem para convencer os trabalhadores de que o capitalismo é o melhor dos mundos possíveis. Não sem razão, os sindicatos são os seus principais inter-locutores. Sendo a principal financiadora do SPD, a Fundação procura impedir desejos de mudanças que possam pôr em risco a política de colaboração de classes, com o intuito de desviá-los de seu curso normal e, consequentemente, assegurar a continuidade do “pacto social”. Sua ação é, portanto, assegurar ou preservar o domínio da grande burguesia – as reações das massas contra os donos do capital.

Não sem razão, na direção, o “Kuratorium”, da Fundação Friedrich Ebert estão presentes vários representantes dos trustes das maiores empresas alemães tais como o senhor

[...] Friedrich Thomee, membro da direção da Wolkswagem, ou ainda de Herald Koch, Vice-Presidente do Conselho Fiscal do truste siderúrgico Hoesch, e também ErnstWolf Mommsen, antigo Presidente do Comitê Diretor da sociedade Friedrich Krupp. Em outras palavras, a fina flor do capital germânico-ocidental. Também está presente Walter Hesselbach, Presidente do Bank Für Gemeinwirtshaft ou, como se diz, ‘o banco dos Sindicatos’, que é o principal instituto financeiro do SPD e da DGB27.

A social-democracia tornou-se um partido da ordem, no governo ou fora dele; sócia do capital. Não é de admirar que os sindicatos, particularmente na Alemanha, há muito perderam seu caráter de classe e se transformaram em grandes empresas. É o caso da Confe-deração dos Sindicatos Alemães, conhecida pela sigla DGB. Essa Central possui “empresas comunitárias”, que lhe asseguram um considerável poder financeiro. De acordo com Mon-tagny, a DGB é dona

[...] de um dos bancos mais importantes da RFA, com mais de cem filiais, uma das mais importantes sociedades de seguros (Volksfürsorge), a maior empresa de construção de habitações na Europa ocidental (Neue Heimat), uma cadeia de lojas de alimentação considerada como a maior empresa do gênero no país (co op ag), uma casa editora em Colônia (Bund-Verlag)28.

Ainda assim, quando a social-democracia falava às grandes massas sob o verniz de “es-querda revolucionária”, conseguiu várias vitórias que melhoraram a vida da classe trabalhadora. Conseguiu transformar o voto censitário num direito universal; em muitos países europeus,

26 Idem, Ibidem, p. 75. 27 POULAIN, Jean Claude. Pontos de Referência Sobre a Atualidade. In: Atualidades da social-democracia. Op.

cit., p. 27. (Os grifos são de nossa responsabilidade). 28 MONTAGNY, Claude, Op., cit., p. 104.

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reduziu a semana de trabalho de 72 para 35 horas; ampliou o sistema de proteção social e, hoje, os inválidos e doentes contam com serviços de assistência médica e aposentadoria; criou o seguro-desemprego; universalizou a educação; além de outros direitos sociais e políticos.

Mas é preciso considerar o reverso da medalha. Não se pode esquecer que todas essas conquistas foram realizadas a um preço muito alto, cujas cifras estão registradas na história com números indeléveis de sangue e fogo. O balanço é de Mandel29, para quem a social-democracia internacional, com honrosas exceções, justificou e facilitou a carnificina de dez milhões de seres humanos durante a Primeira Guerra Mundial, em nome de pretensas razões de defesa nacional. Os governos social-democratas, ou com a participação da social democracia, organizaram ou defenderam guerras na Indochina, Malásia, Indonésia e Argélia. Foram mais longe ainda. Defenderam práticas de torturas e limitaram as liberdades demo-cráticas na Índia, Indonésia, Egito, Iraque e Singapura. Protegeram o regime do apartheid na África do Sul. Participaram da Guerra Fria, além de se tornarem cúmplices das políticas imperialistas. Em nome do grande capital, apoiaram e organizaram as políticas de austeridade monetárias e fiscais, que tiveram como consequência o desmantelamento do Estado Social, que ajudaram a construir.

Os social-democratas contemporâneos não são diferentes dos seus consortes da república de Weimer. Destes herdaram o mesmo ódio visceral ao comunismo e a quaisquer manifesta-ções de massa. Como aqueles, os representantes da social-democracia de hoje são amigos da ordem e da disciplina (de mercado). Tão logo começa a crise dos anos 1970, abandonaram o seu programa de reforma e passaram a adotar uma política de austeridade, jogando o ônus da conta nos ombros da classe trabalhadora. Ressuscitaram o liberalismo tal como fizeram Reagan e Margaret Thatcher, considerados, principalmente pela esquerda, como os vilões da desregulamentação da economia internacional.

A social-democracia é parte integrante da implementação das políticas neoliberais em todo o mundo. Como apropriadamente esclarece Fiori,

[...] a derrota dos social-democratas e o declínio da esquerda, já vinha de antes (sic), e não reverteu nestas últimas eleições por uma razão muito simples: os social-democratas são parte essencial da própria crise. Relem-brando uma história conhecida: a social-democracia europeia abandonou a “utopia” socialista, depois da II Guerra Mundial, e só se converteu às teses e políticas keynesianas, no final da década de 1950. Mas, em seguida, a partir dos anos 1970, aderiu às novas teses e políticas neoliberais hegemônicas até o início do século XXI. E até hoje, na burocracia de Bruxelas, e dentro do Banco Central Europeu, são os social-democratas e os socialistas que em geral defendem com mais entusiasmo a ortodoxia macroeconômica e liberal. Neste momento, por exemplo, o ministro das Finanças alemão, o social-democrata Peer Steinbruech, é considerado por todos como a

29 MANDEL, Ernest. Situação e futuro do socialismo. In: O Socialismo do Futuro: revista de debate político, Lisboa, Publicações Dom Quixote Ltda. Vol. I, n. 1, 1990, p. 84/86.

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autoridade financeira mais ortodoxa e radical, nos governos das grandes po-tencias capitalistas. Além disto, os social-democratas e socialistas europeus não participaram da origem do projeto de integração europeia, e nunca conseguiram formular uma visão consensual do projeto de unificação. Portanto, nestas últimas eleições parlamentares, os social-democratas e socialistas europeus não podiam ser vistos como uma alternativa frente à crise do modelo neoliberal, porque eles são de fato uma parte essencial da própria crise e, além disto, não dispõem de nenhuma proposta específica para os impasses atuais da União Europeia30.

Ora, se os social-democratas e os socialistas europeus são também sócios na construção das políticas neoliberais; são direta ou indiretamente responsáveis pela crise que se arrasta desde a década de 1970, quer dizer, então, que não existem mais alternativas políticas para enfrentar as mazelas do capitalismo? Até quando vai durar a passividade da classe trabalhadora, educada e disciplinada pela social-democracia, para conviver em harmonia com os donos do grande capital? Como enfrentar o seu discurso hegemônico de que não há saídas para além do capital? Como, então, combater a ideia que propaga a ideologia de que a história da humanidade chegou ao fim? De que tudo se passa como se o antes e o depois tivessem se dissolvido para dar lugar unicamente ao presente, e que o mundo de hoje não tem mais relação com o passado e não traz mais em suas entranhas o devir de uma sociedade diferente da imediatamente existente? Ainda há perspectivas para a reconstrução de uma esquerda revolucionária?

Que fazer, então? Essa é uma questão para a qual o autor do presente texto não tem uma resposta pronta e acabada. Mas uma coisa é certa: o que se está a fazer, (salvação de bancos falidos, arrocho salarial, cortes dos gastos públicos etc.), certamente não é o que se deve fazer. Já é muita coisa saber o que não se quer. Não é?

II. A oFENSIVA IdEolÓgoICA dA SoCIAl-dEmoCRACIA NA pERIFERIA CApITAlISTA: o CASo bRASIl E A Ação do pARTIdo doS TRAbAlhA-doRES (pT)

(1) A “SoCIAl-dEmoCRACIA” pETISTA: bREVES CoNSIdERAçõES hIS-TÓRICAS

A política social-democrática, que sempre se pautou como alternativa ao comunismo, aliou-se ao grande capital e se tornou defensora dos seus interesses. Como visto antes, tem sido esse o papel adotado pela Fundação Friedrich Ebert (FES), uma das principais insti-tuições defensora e financiadora do SPD. Mesma orientação adotada pela Internacional Socialista (IS) – forma organizada da social-democracia em escala internacional e de caráter supranacional, cuja política adota a ideologia da colaboração de classes.

30 Fiori, José Luis. Entre Berlim e o Vaticano. – Carta Maior, 16 de junho de 2009.

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Colaboradora direta da IS, a FES conta atualmente com centena de filiais instaladas na África, na Ásia e na América Latina. As questões discutidas nesses países têm o mesmo conteúdo ideológico divulgado e propagandeado na Europa: difundir os valores e crenças da democracia como alternativa ao comunismo. Não sem razão, esse trabalho de propaganda ideológica, na periferia capitalista, como apropriadamente lembra Montagny, começa nos anos 1960, justamente quando têm início as lutas pela emancipação dos povos oprimidos. Obviamente, o objetivo da atuação da Fundação nesses países é mais do que claro: propagar as idéias do chamado “socialismo democrático”, com a intenção deliberada de combater qualquer investida comunista.

Não sem razão, é justamente no período em que começa a abertura política, durante o Governo Geisel, que a FES, sigla pela qual é conhecida no Brasil, se instala no país, na cidade do Rio de Janeiro, em 1976. Adota o nome de Instituto Latino Americano de De-senvolvimento Econômico e Social (ILDES), desde a sua chegada até os anos 2000. A partir de então, a Fundação tem utilizado os dois nomes, com a tendência de permanecer somente o nome original da fundação. Sua ação segue os mesmos parâmetros da matriz alemã: lutar para consolidar na periferia capitalista o chamado socialismo democrático.

A Fundação chega ao Brasil, portanto, num momento de efervescência política. Partidos e movimentos sociais começam a jogar fora a mordaça que lhes fizeram calar a voz por mais de dez anos. Era o início da luta pela volta da democracia, das eleições diretas e das liberdades de pensamento e de expressão. Mas nem tudo parecia caminhar sob a bandeira da “ordem e progresso”. A esquerda se fortalecia e fazia eco no seio da sociedade com suas palavras de ordem de “não pagamento da dívida externa”, “reforma agrária já”, “acabar com a fome e a miséria”, “igualdade social e política para todos”, dentre outras questões.

É nessa atmosfera de inquietação social que nasce o PT, em 1980. Define-se como um partido marcadamente anticapitalista31. Desde os seus primeiros documentos e manifesta-ções, o Partido dos Trabalhadores defende a construção de uma sociedade na qual não haja explorados nem exploradores. É o que afirma seu manifesto de lançamento, aprovado pelo movimento pró-PT, em 10 de fevereiro de 1980, no Colégio Sion (SP), e publicado no Diário Oficial da União de 21 de outubro de 1990. Nesse documento, declara que

[...] o PT buscará conquistar a liberdade para que o povo possa construir uma sociedade igualitária, onde não haja explorados nem exploradores. O PT manifesta sua solidariedade à luta de todas as massas oprimidas do mundo.

31 Pelo menos é o que diz, ainda que de forma não muito precisa, a Tese de Santo André-Lins, em janeiro de 1979, no IX Congresso dos Trabalhadores Metalúrgicos e de Material Elétrico do Estado de São Paulo, berço do qual surgiria, em 1980, o Partido dos Trabalhadores. Literalmente: “[...] Enquanto vivermos sob o capitalismo, este sistema terá como fim último o lucro, e para atingi-lo utiliza todos os meios: da exploração desumana de homens, mulheres e crianças até a implantação de ditaduras sangrentas para manter a exploração. Enquanto estiver sob qualquer tipo de governo de patrões, a luta por melhores salários, por condições dignas de vida e de trabalho, justas a quem constrói todas as riquezas que existe neste País, estará colocada na ordem do dia a luta política e a necessidade da conquista do poder político” A TESE DE SANTO ANDRÉ-LINS, 1979. In: Fundação Perseu Abramo. WWW.fabramo.org.br.

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Esta passagem do Manifesto é nitidamente marcada por um corte de classe. Aliás, esse documento faz da classe trabalhadora a protagonista da luta pela construção de uma sociedade socialista. Com efeito, noutra passagem desse documento, lê-se que

[...] o Partido dos Trabalhadores nasce da vontade de independência política dos trabalhadores, já cansados de servir de massa de manobra para os políticos e os partidos comprometidos com a manutenção da atual ordem econômica, social e política. Nasce, portanto, da vontade de emancipação das massas populares. Os trabalhadores já sabem que a liberdade nunca foi nem será dada de presente, mas será obra de seu próprio esforço coletivo. Por isso protestam quando, uma vez mais na história brasileira, vêem os partidos sendo formados de cima para baixo, do Estado para a sociedade, dos exploradores para os explorados. Os trabalhadores querem se organizar como força política autônoma. O PT pretende ser uma real expressão política de todos os explorados pelo sistema capitalista. Somos um Partido dos Trabalhadores, não um partido para iludir os trabalhadores. Queremos a política como atividade própria das massas que desejam participar, legal e legitimamente, de todas as decisões da sociedade. O PT quer atuar não apenas nos momentos das eleições, mas, principalmente, no dia-a-dia de todos os trabalhadores, pois só assim será possível construir uma nova forma de democracia, cujas raízes estejam nas organizações de base da sociedade e cujas decisões sejam tomadas pelas maiorias.

Seria o PT um partido nitidamente obreirista, uma vez que seu Manifesto de lançamento é dirigido preferencialmente à classe trabalhadora? Essa questão é enfrentada por Lula em seu discurso por ocasião da realização da 1ª Convenção Nacional do Partido, em setembro de 1981. Depois de comentar que Partido nasceu pelas mãos dos operários de macacão, e que disso se orgulha, afirma que tinha

[...] consciência de que, independentemente do setor social a que per-tencesse, os que acreditavam na classe trabalhadora, mais cedo ou mais tarde, estariam ao nosso lado. Foi com imensa alegria que recebemos, como primeiro intelectual a aderir ao Partido, este trabalhador das artes chamado Mário Pedrosa, há mais de 50 anos dedicando sua atividade à luta dos trabalhadores brasileiros [...]. Bastou que isso acontecesse para que surgissem os eternos descrentes, dizendo que o PT, embora nascido dos trabalhadores, se convertia em partido de intelectuais [...].

E conclui declarando que

[...] o Partido dos Trabalhadores não pede atestado de ideologia ou caráter profissional a quem quer que seja, mas sim disposição de luta, fidelidade ao nosso programa e ao nosso estatuto. Dentro do Partido, somos to-

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dos iguais, operários, camponeses, profissionais liberais, parlamentares, professores, estudantes etc.

Lula não deixa dúvidas. Embora construído pelas mãos de sindicalistas32, que por mais de duas décadas formariam o núcleo duro do Partido33, o PT surge como um partido de massa. Além dos sindicalistas, sua formação contou com a participação ativa da Igreja, de intelectuais marxistas e diversos movimentos sociais.

Que o diga Lula, para quem o Partido não pode se confundir com o sindicato. Para ele, a atividade partidária deve completar a sindical, sem que isto signifique a sua exclusão. Concedendo-lhe a palavra, declara que

[...] o sindicato é a ferramenta adequada para melhorar as condições do trabalhador explorado pelo capitalista. Queremos mudar a relação entre capital e trabalho. Queremos que os trabalhadores sejam donos dos meios de produção e dos frutos do seu trabalho. E isso só se consegue com a política. O Partido é a ferramenta que nos permitirá atuar e transformar o poder neste país. Em nossa luta, a atividade partidária deve completar a sindical, sem que uma queira substituir ou excluir a outra34.

Quando Lula diz que “queremos que os trabalhadores sejam donos dos meios de produção e dos frutos do seu trabalho”, está a afirmar que o Partido nasce para lutar pela construção de uma sociedade socialista, na qual não hajam explorados nem exploradores. Mas como construir o socialismo, se o Partido, desde o seu nascedouro, declara-se como um Partido eminentemente legal, que visa à tomada do poder unicamente pela via parlamentar?

32 Faziam parte da Comissão Nacional Provisória, de 1979, os seguintes nomes: Jacó Bitar (Presidente do Sindicato dos Petroleiros de Campinas), Arnóbio Silva (Presidente do Sindicato dos Bananeiros da Região do Vale do Ri-beira), Edson Khair (Deputado Federal pelo MDB), Henos Amorina (Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco), José Ibrahim (ex-Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco), Luiz Inácio Lula da Silva (Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo), Manoel da Conceição (Ex-Presidente dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais Pindaré-Mirim), Olívio Dutra (Presidente do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre), Paulo Skromov (Presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Couro e Luva de São Paulo), Wagner Benevides (Presidente do Sindicato dos Petroleiros de Minas Gerais), Ignácio Hernandez (Metalúrgico – oposição sindical – de Belo Horizonte) Luiz Soares Dulci (Presidente da União dos Trabalhadores de Ensino de Minas Gerais), Francisco Auto Filho (Jornalista de Fortaleza), Firmo Trindade (Economiário em Porto Alegre), Carlos Borges (Gráfico em Porto Alegre), Godolfredo Pinto (Diretor do Centro Estadual dos Professores do Rio de Janeiro) e Sidney Lianza (Rio de Janeiro). WWW.fpabramo.org.br.

33 SILVA, Antônio Ozaí da. Ruptura e tradição na organização política dos trabalhadores (Uma análise das origens e evolução da Tendência Articulação – PT. Revista Espaço Acadêmico, ano II, n. 22, março de 2003. Revista Eletrônica: www.espacoacademico.com.br, p. 19, nota [1. “[...] Um dado que permite mensurar o peso real desse setor (sindical) é a composição da direção nacional: a primeira Comissão Nacional Provisória, de 1979, era composta por doze dirigentes sindicais, num total de 16 membros. Entre 1979 e 1981, esse setor sempre foi majoritário na composição da direção. Essa não é uma questão que se resuma aos números. Ainda que tenha diminuído a participação de lideranças de origem sindical na composição da direção petista, sua influência se manteve, por muito tempo, inabalável”.

34 Discurso de Lula durante a 1ª Convenção Nacional do Partido dos Trabalhadores, 1981, op. cit.

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Ainda que reconheça que as ações ilegais (extra-parlamentares) de vários movimentos polí-ticos, Lula deixa claro que o Partido de tudo fará para que esses movimentos se submetam ao “veredicto popular”. Não seria isso, eleger a via parlamentar como único caminho para se chegar a uma sociedade sem classes? A história do Partido não deixa dúvidas. Vale a pena ouvir, do próprio Lula, essa preferência que faz exclusivamente do parlamento o palco da ação política. É o que diz em seu discurso, quando reconhece que

[...] as tendências políticas encontram-se em nossa sociedade. Reco-nhecemos o direito desses companheiros se organizarem em torno de suas visões e de suas propostas. Lamentamos que, por força do regime repressivo em que vivemos, essas tendências atuem na ilegalidade, embora sejam justas e legítimas as suas bandeiras. Lutamos e lutaremos pela lega-lização de todas elas, a fim de que suas práticas sejam comprovadas pelo veredicto popular. Preocupa-nos, entretanto, se um militante veste, por baixo de nossa camisa, outra camisa. Nunca pedimos nem pediremos atestado ideológico de ninguém35.

Não seria, portanto, o PT um partido social-democrata, que luta pela construção do socialismo democrático, a exemplo do SPD e outros do gênero? Essa questão é levantada pelo próprio Lula em seu discurso e para qual oferece resposta. Mas é somente no VII Encontro Nacional do PT, em junho de 1990, que são dissipadas as dúvidas sobre a linha política do Partido. Na Resolução que define o chamado “socialismo petista”, depois de afirmar o caráter anticapitalista do Partido, lê-se que

[...] frentes social-democratas não apresentam, hoje, nenhuma pers-pectiva real de superação histórica do capitalismo. Elas já acreditaram, equivocadamente, que a partir dos governos e instituições do Estado, sobretudo o Parlamento, sem a mobilização das massas pela base, seria possível chegar ao socialismo. Confiavam na neutralidade da máquina do Estado e na compatibilidade da eficiência capitalista com uma tran-sição tranquila para outra lógica econômica e social. Com o tempo, deixaram de acreditar, inclusive, na possibilidade de uma transição parlamentar ao socialismo e abandonaram não a via parlamentar, mas o próprio socialismo. O diálogo crítico com tais correntes de massa é, com certeza, útil à luta dos trabalhadores em escala mundial. Todavia o seu projeto ideológico não corresponde à convicção nem aos objetivos emancipatórios do PT36.

Assim como rejeita a ideologia social-democrata, o PT nega o projeto do chamado socialismo real. Na mesma Resolução, declara que

35 As passagens sublinhas são de minha responsabilidade. 36 O Socialismo Petista, VII Encontro Nacional do PT, Anhembi, SP, 31/5 a 03/6/90. In: WWW.fpabramo.org.

br.

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[...] o PT identificou na maioria das experiências do chamado socialismo real uma teoria e prática incompatíveis com o nosso projeto de socia-lismo. A sua profunda carência de democracia, tanto política quanto econômica e social; o monopólio do poder por um único partido, mesmo onde formalmente vigora o pluralismo partidário; a simbiose Partido/Estado; o domínio da burocracia enquanto camada ou casta privilegiada; a inexistência de uma democracia de base e de autênticas instituições representativas; a repressão aberta ou velada ao pluralismo ideológico e cultural; a gestão da vida produtiva por meio do planeja-mento verticalista, autoritário e ineficiente – tudo isso nega a essência do socialismo petista37.

Nessas duas passagens, a Resolução do VII EN deixa claro que o PT se constitui como um partido que rejeita tanto a vida trilhada pela social-democracia como também a do socialismo real. Refuta esses dois caminhos em nome da construção de uma democracia radical, na qual não haja nenhum tipo de repressão aberta ou velada, como diz na citação anterior, ao pluralismo ideológico e cultural, como também refuta a prática do planejamento centralizado da economia e a ausência de uma democracia de base.

Qual é, então, o projeto de socialismo defendido pelo PT? Na mesma Resolução do VII EM, o Partido define que seu projeto socialista deverá buscar a efetiva democracia econômica. Para tanto, afirma que tal democracia somente será viável

[...] a partir da propriedade social dos meios de produção. Propriedade social que não se confunda com a propriedade estatal, gerida pelas formas (individual, cooperativa, estatal etc.) que a própria a sociedade, democraticamente, decidir. Democracia econômica que supere tanto a lógica perversa do mercado capitalista quanto o intolerável planejamento autocrático estatal de tantas economias ditas socialistas. Cujas priorida-des e metas produtivas correspondam à vontade social e não a supostos interesses estratégicos do Estado. Que busque conjugar – desafio dos desafios – o incremento de produtividade e a satisfação das necessidades materiais com uma nova organização de trabalho, capaz de superar a sua alienação total. Democracia que vigore tanto para a gestão de cada unidade produtiva – os conselhos de fábricas são referência obrigatória – quanto para o sistema no seu conjunto, por meio de um planejamento estratégico sob controle social38.

“Propriedade social dos meios de produção”? Mas o Partido não define nenhuma medida concreta para organizar e efetivar essa chamada propriedade social dos meios de produção. “Nova organização do trabalho”? Novamente, deixa-se em aberto essa questão, não se diz o que

37 Idem, Ibidem. 38 Idem, Ibidem. (As passagens sublinhadas são por minha conta).

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o Partido chama de nova forma de organização do trabalho. Seria um modelo de autogestão do trabalho? Cooperativas de produção? Co-gestação das empresas nas quais trabalhadores e empresários teriam iguais direitos de votos? “Planejamento estratégico sob controle social”? De quem ou de quais instituições? Das já existentes ou de novas instituições que deverão ser criadas?

Para essas questões o PT não tem respostas, nem tampouco se preocupa em respondê-las. Como declarou Lula em seu discurso por ocasião da 1ª Convenção Nacional do Partido, já referido antes, tais questões, diria, só “[...] servem para expressar a desconfiança em relação à capacidade política dos trabalhadores brasileiros em definirem o seu próprio caminho”.

É assim mesmo que o VII EN do Partido se expressa. Tal como diz Lula, para a extinção do socialismo e a construção da sociedade socialista,

[...] será necessária uma mudança política radical; os trabalhadores preci-sam transformar-se em classe hegemônica na sociedade civil e no poder de Estado. Outros aspectos do nosso projeto socialista são desafios em aberto, para os quais seria presunçoso e equivocado supor que podemos dar respostas imediatas. Sua superação demandará, provavelmente, in-suspeitada fantasia política e criatividade prática, legitimadas não apenas pelas nossas opções ideológicas, mas pela aspiração concreta das massas oprimidas a uma existência digna39.

No plano estritamente teórico, tudo indica que tanto Lula quanto os delegados do VII EN estão certos em não definir a priori o “modelo” de socialismo que perseguem, como se este pudesse ser introduzido da noite para o dia, e sem oferecer nenhuma dificuldade. Ora, não existem receitas prontas e acabadas para se chegar ao socialismo. Querer defini-lo como uma questão que depende unicamente da um ato de decisão tomado num belo dia, seria o mesmo que apresentar a impaciência como argumento teórico, como assim se manifesta Engels contra o voluntarismo blanquista40.

A julgar pelo que expressam os documentos do PT, o Partido está certo em não oferecer uma receita pronta e acabada para alcançar o socialismo. Os avanços e retrocessos da Revo-lução de Outubro revelaram para Lênin que a construção do socialismo exige a travessia de um longo caminho, que não está pronto para ser trilhado como se fosse um passeio numa avenida num dia de domingo. A experiência de anos de militância política mostrou que, na luta pela construção do socialismo, não existem receitas prontas. Para ele,

39 O Socialismo Petista, op., cit. 40 Os blanquistas se diziam comunistas porque acreditavam que poderiam chegar ao socialismo num passo de

mágica: sem se deterem em estações intermediárias que, para eles, apenas afastam o dia da vitória e faz pro-longar o período de servidão. É então que brada Engels num tom de sarcasmo: “Que pueril ingenuidade a de apresentar a própria impaciência como argumento teórico!”. F. Engels apud LÊNIN, V.I. A doença infantil do esquerdismo no comunismo, op. cit., p. 312.

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[...] seria simplesmente um charlatão quem pretendesse inventar para os operários uma receita que desse antecipadamente soluções prontas para os casos da vida ou prometesse que na política do proletariado revolu-cionário não haveria nem dificuldades, nem situações complicadas41.

É complicado porque, acrescenta Lênin,

[...] a força de hábito de milhões e dezenas de milhões de homens é a força mais terrível. Sem um partido férreo e temperado na luta, sem um partido que goze da confiança de tudo quanto há de honrado dentro da classe, sem um partido que saiba acompanhar o estado de espírito das massas e influenciá-lo, é impossível travar essa luta com êxito. É mil vezes mais fácil vencer a grande burguesia centralizada do que vencer milhões e milhões de pequenos patrões, e eles, com a sua atividade cotidiana, corriqueira, imperceptível, invisível, desagregadora, realizam os mesmos resultados que são necessários à burguesia, que restauram a burguesia42.

Talvez seja essa a razão por que o PT se nega a definir seu projeto de construção de uma sociedade socialista, como se fora uma receita pronta e acabada. Será que sim? Em seu VII EN, 1993, enfatiza que é preciso ganhar o imaginário da população para engajá-la na luta contra o capitalismo. Textualmente, declara, ainda com tintas moralizantes, que aqueles

[...] que lutam por mudanças precisam ganhar o coração de cada brasileiro para as ideias da democratização da propriedade, da renda, da terra, da comunicação e o do poder.

Mas a teoria nem sempre, ou quase sempre, andou de mãos dadas com prática política do PT. A história seguiu outro curso, bem diferente daquele do discurso expresso nos documentos e manifestações do Partido. A Articulação Nacional de Movimentos Populares e Sindicais (ANAMPOS), braço sindical do PT, e a igreja católica assumiram a hegemonia na condução do futuro rumo político do partido. Aliás, não se pode esquecer que a ANAMPOS foi, desde então, a corrente diretamente responsável pela integração do PT com as centrais sindicais europeias, anticomunistas de berço, que contribuíram com vultosas soma de recursos para o caixa do partido, bem como prestando assessoria direta ao seu principal líder – Luís Inácio Lula da Salva. Tudo isso com o claro objetivo de não deixar Lula enveredar pelos caminhos da esquerda revolucionária do partido.

Quando surgiu a CUT, em 1983, nasce como uma verdadeira instituição do Partido dos Trabalhadores, a exemplo do que ocorre com a Confederação dos Sindicados Alemães (DGB), que chega até mesmo a se confundir com o SPD e com a Fundação Friedrich Ebert,

41 Idem, Ibidem, p. 291. 42 Idem, Ibidem, p. 298.

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uma vez que todos esses institutos estão empenhados na luta contra qualquer possibilidade de revolução, que possa pôr em risco a política de colaboração de classe.

A CUT não somente seguiu a linha política da social-democracia, como também foi financiada e assessorada pelas centrais sindicais ligadas ao imperialismo norte-americano. Com efeito, aquela Central sempre contou com o apoio direto da AFL-CIO43, organização que sempre acobertou as atividades criminosas da CIA em várias partes do mundo, notada-mente na periferia capitalista44.

Para não revelar a sua face oculta, a CUT adota o mesmo discurso das centrais sindicais europeias e norte-americanas. Assume posições combativas para atrair seguidores, arrastar as massas e ganhar força. Promove e apóia greves em nome da defesa de reajustes salariais, promove passeatas para exigir do governo uma reforma agrária radical sobre o controle dos trabalhadores, repudia a ingerência do FMI na economia nacional e declara guerra ao sin-dicalismo amarelo, de pelegos.

Esse discurso radical é a forma como a Central se apresenta para a sociedade. Na ver-dade, sua intenção é outra: é manter o movimento dos trabalhadores sob sua tutela, tal qual assim age a social-democracia nos países ricos. Com efeito,

[...] a social-democracia é, de certa maneira, uma expressão das relações suscitadas hoje nas massas populares pelas consequências da crise. Leva em conta e reflete as questões reais que foram resolvidas. Apóia-se no descontentamento, ou melhor, sobre esse desejo de mudança. Por outro [...], ela drena, canaliza, num sentido muito preciso, este impulso po-pular para a mudança, com o intuito de desviá-la de seu curso normal e impedi-la de chegar a seu fim. Em outras palavras, ela conduz a um impasse. Contribui assim para preservar o domínio atual da grande burguesia eliminando – ao mesmo provisoriamente – o perigo que a ameaça, e permitindo aos detentores do capital prosseguir, sem receio de reações populares, em sua política de adaptação à situação criada pela crise, a fim de poderem defender seus próprios interesses, em detrimento dos interesses da população45.

43 “Ciosl (Confederação Interamericana das Organizações dos Sindicatos Livres). Já em 1949 financiada pelo USA como dissidência pelo USA como dissidência da Federação Sindical Mundial (FSM). A Cosl é junção da AFL (American Federation os Labor Unions), TUC (Trades Union Congress) e CIO (Congress of Industrial Organizations). Seu braço (secretariado) para a América Latina é a ORIT (Organização Regional Intera-mericana de Trabalhadores) fundada em 1951, ligada ao Iadesil (Instituto Americano de Desenvolvimento dos Sindicatos Livres), que administra cursos contra-revolucionários de ‘liderença sindical’. A CUT, a Força Sindical, a CGT (Confederação Geral dos Trabalhadores) etc, são filiadas à CIOSL” [Silveira, Gustavo. 8º Congresso Nacional da CUT: o fim de um ciclo de traição do sindicalismo amarelo. Acessado da Internet em 4/01/11].

44 Idem, Ibidem.45 POULAIN, Jean-Claude, op. cit., p. 17-18.

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Esse é o caminho que PT e a CUT seguem quando Lula assume a presidência do País. Já era de se esperar. Uma leitura dos documentos do PT, desde a Tese de Santo André-Lins, de 1979, até os mais recentes¸ deixa claro que o caráter de classe do Estado nunca foi questiona-do. Muito pelo contrário, em toda a produção documental do Partido, o Estado é chamado a exercer importante papel na regulação da economia, seja normatizando os investimentos, seja intervindo diretamente em determinadas áreas estratégicas. Além disso, o Estado é visto como importante instrumento de realização de uma profunda redistribuição de renda, de combate à inflação e ao desemprego, de pôr fim a ciranda financeira e, acima de tudo, como única instituição capaz de realizar uma reforma tributária progressiva.

Ora, para um Partido que nasce para destruir o capitalismo, age justamente ao contrário, quando procura reforçar o poder Estado, dessa instituição de dominação de classe. Ainda que em seus documentos afirme, com certa insistência, que o PT não se confunde com o governo, mas este deve estar a serviço da construção de uma nova sociedade, as propostas que apresenta, para quando assumir o poder, são extremamente tímidas; não questionam a lógica do mercado. Fala-se em quebrar ou limitar o poder dos grupos dominantes, em de-mocratizar a propriedade privada, em desprivatizar a máquina estatal, democratizá-la, como isso significasse um passo em direção ao socialismo.

(2) “o jEITo pETISTA dE goVERNAR”46

Quando chega ao poder, em 2003, o Partido dos Trabalhadores traz de sua bagagem de campanha a promessa de que é capaz de assumir não somente a sua função de contestação, de combater o capitalismo, como também de gerir o sistema melhor do que os outros partidos conservadores. O resultado é conhecido: nada de substancial foi mudado, nem antes nem depois do governo Lula. É claro que foram implementadas algumas “políticas públicas”, que melhoram a sorte de quem vivia a passar fome. Mas as bases do capitalismo brasileiro não foram abaladas; muito pelo contrário, foram reforçadas. Com efeito,

[...] entre o início de 1975 e o final de 2004, as despesas anuais do país com serviços de fatores de produção (lucros e dividendos de investimen-tos diretos e juros de empréstimos intercompanhia; lucros, dividendos e juros de investimentos em carteira; e juros de empréstimos conven-cionais) cresceram 1.085% (passaram de US$ 2 bilhões para US$ 23,7 bilhões), enquanto, no mesmo período, o PIB cresceu 129% e o PIB per capita 42%. Assim, enquanto o envio de renda ao exterior cresceu nesse período 10,9 vezes, o PIB cresceu 1,3 vez\es e o PIB per capita apenas 0,4 vezes47.

46 Para uma análise mais aprofundada do governo Lula, ver PAULO NETTO, José. Uma face contemporânea da barbárie. In: III Encontro Internacional “Civilização ou Barbárie”. Serpa, 30-31 de outubro/1º de novembro de 2010 (mimeo).

47 PAULANI, Leda Maria; PATO, Christy Ganzert. Investimentos e servidão financeira: o Brasil do último quarto

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Acrescente-se a isso o fato de que, hoje, as multinacionais respondem por 25% do Pro-duto Interno Bruto (PIB) do país e por quase metade das exportações brasileiras48. E com uma agravante: a desnacionalização da economia e a sua consequente dependência de decisões de investimentos tomadas fora de suas fronteiras domésticas. Dependência que também afeta a política econômica, à medida que o capital externo, investido no país, precisa ser remu-nerado. Por isso, o Estado é obrigado a concentrar esforços para promover as exportações e assim gerar divisas necessárias para o pagamento de lucros, dividendos, royalties (direito de patentes) juros, etc. às empresas estrangeiras.

O PT nada fez para mudar esse quadro. Pelo contrário, reforçou-o à medida que apro-fundou a política econômica herdada do governo anterior. Fez a reforma da previdência que outros partidos não teriam condição de fazê-la. Com isso, deu ao capital financeiro mais um nicho de mercado: os fundos de pensões, que são verdadeiros adeptos da política de juros elevados. Afinal, esses fundos dependem, em grande parte, dos rendimentos gerados pelos títulos da dívida pública.

O PT segue, assim, a mesma política da social-democracia. Poderia o capital financeiro contar com melhor parceiro?

3. A QuESTão bRASIl: lIçoES dE CAIo pRAdo jÚNIoR

O Brasil não rompeu, portanto, com sua condição de país periférico. Continua sendo um país dependente, embora sua dependência tenha passado por profundas transformações. Nesse sentido, é interessante entender as razões dessa dependência secular. Trinta e cinco anos depois da publicação do seu clássico Formação do brasil Contemporâneo, num adendo escrito em A Revolução brasileira, 1977, Caio Prado Júnior escrevia que o Brasil é um

[...] país que no contexto do mundo moderno [...] não representa mais do que um setor periférico e dependente do sistema econômico inter-nacional sob cuja égide se instalou e originalmente organizou como colônia a serviço dos centros dominantes do sistema. E em função dessa situação se estruturou econômica e socialmente. É certo que deixamos de ser, em nossos dias, o engenho e a “casa grande e senzala” do passado, para nos tornamos a empresa, a usina, o palacete e o arranha-céu; mas também o cortiço, a favela, o mocambo, o pau-a-pique, mal disfarçados, aqui e acolá, por aquele moderno, em que minorias dominantes e seus auxiliares mais graduados se esforçam com maior ou menos sucesso por acompanhar aproximadamente, com o teor de suas atividades o trem da vida, a civilização de nossos dias49.

de século. In: Adeus ao desenvolvimento – a opção do governo Lula. Belo Horizonte: Autêntica, 2005., p. 40. 48 Os dados são do economista Reinaldo Gonçalves, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, retirados da

internet: www.Fenafisco.org.br; acesso em 30.08.09.49 PRADO JÚNIOR, Caio. A Revolução Brasileira. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, p. 239-240.

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E prossegue com seu exame da perspectivação do Brasil. Afirma que, apesar das

[...] adaptações necessárias determinadas pelas contingências de nosso tempo, somos o mesmo passado. Se não quantitativamente, na qualida-de. Na “substância”, diria a metafísica de Aristóteles. Embora em mais complexa forma, o sistema colonial brasileiro se perpetuou e continua muito semelhante. Isto é, na base, uma economia fundada na produção de matérias-primas e gêneros alimentares demandados nos mercados internacionais50.

Se vivo fosse, hoje, Caio Prado certamente não mudaria muita coisa do que escreveu em 1977; pelo menos, qualitativamente. A economia brasileira é a maior exportadora mundial de oito commodities agrícolas, tais como açúcar, café, suco de laranja, soja, carne bovina, carne de frango, fumo e etanol. É o maior produtor mundial de minério de ferro e de castanha-do-pará. Hoje, quase 2/3 de suas exportações são do commodities (agrícolas, minerais e metálicos), oriundas de setores em recursos naturais. Os restantes 35% representam a participação de manufaturas; mesmo assim, com poucos itens de alta tecnologia, aptos a competirem em mercados internacionais mais dinâmicos. Com efeito, em 1989, 45,28% de sua pauta de exportação eram de commodities primárias. De alta tecnologia, o país exportava apenas 10,88%. Quase quinze anos depois, em 2006, a participação dos produtos agrícolas subiu para 48,40% e a participação de produtos de alta tecnologia permaneceu baixa: subiu de 10,88%, em 1989, para 12,15%51. Comparada com a China, cuja pauta de exportação é composta por 93% de produtos manufaturados, o Brasil está longe de ingressar no rol das economias exportadoras de mercadorias intensivas em tecnologia. Na Índia, o percentual de manufaturados responde por 80% por cento de suas exportações.

Tais condições explicam porque, hoje, a economia brasileira é marcada por profundas desigualdades sociais. Para se ter uma ideia das disparidades sociais, a parcela da riqueza produzida no país, que cabia à classe trabalhadora, cai de quase 60%, nos anos 1950 e 1960, para um pouco menos de 30%, em 2004. Noutras palavras, os ricos ficaram mais ricos e os pobres, mais pobres, a despeito da comemorada redução das desigualdades sociais realizada pelo governo Lula52.

50 Idem, Ibidem, p. 240. 51 Ver DIAS, Rodnei Fagundes; PINHEIRO, Bruno Rodrigues. Análise da pauta de exportações brasileiras com

base nos critérios da UNCTAD para os anos de 1989-1996-2006: como tem sido a inserção brasileira no co-mércio internacional. – Curso de mestrado da Universidade Federal da Bahia (artigo). In: www.nec.ufba.br, 19/8/2009.

52 A redução na desigualdade de renda, de acordo com um estudo realizado pela FGV, refere-se à distribuição da renda dentro do universo dos que vivem do trabalho. Noutros termos, refere-se à desigualdade de remu-neração entre o maior e o menor rendimento auferido pelos trabalhadores. Bem diferente é a participação dos rendimentos (dos salários) no total da renda nacional ou do produto interno bruto (PIB). Visto desta perspectiva, os pobres ficaram mais pobres. Com efeito, em 1964, os salários representavam 62,3% de toda a renda gerada na economia. A partir de 1990, os trabalhadores passaram a se apropriar de uma fatia cada vez menor de toda riqueza gerada: 45,4%, em 1990; 37,2%, em 2000; 36,1%, em 2001; 31,5%, em 2003 e 29,4%, em 2004.

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De acordo com pesquisa realizada por Márcio Pochmann, hoje,

[...] somente 5 mil clãs apropriam-se de 45% de toda a riqueza e renda nacional, embora o país tenha mais de 51 milhões de famílias. Se con-siderar somente a parcela da população que se concentra nos 10% mais ricos, verifica-se que 75% de toda a riqueza contabilizada são por ela absorvida. Em outras palavras, restam para 90% da população brasileira somente 25% da riqueza e da renda nacional53.

Essa concentração de renda não é uma consequência das políticas neoliberais, que tomaram conta do país nos últimos 20 anos. Muito pelo contrário. Ainda de acordo com Pochmann,

[...] já no período da colônia portuguesa durante o século XVIII havia 10% da população responsável pela absorção de cerca de 2/3 da riqueza. Mesmo com o abandono da condição colonial, passando para a situação de Independência nacional e pelo regime imperial, o país continuou a registrar uma incrível estabilidade no padrão excludente de repartição de renda e riqueza54.

A ironia desse processo secular de concentração de renda reside no fato de que graças a essa apropriação extremamente desigual da riqueza, mais de 30% das ocupações no Brasil dependem do trabalho prestado às famílias ricas. Valendo-se mais uma vez de Pochmann, este constata que

[...] 20,5 milhões de famílias no Brasil possuem pelo menos um mem-bro desenvolvendo atividades de prestação de serviços às famílias. Há o caso, por exemplo, de 4,3 milhões de famílias (7,3% do total) que possuem dois ou mais membros ocupados no trabalho para famílias. No ano de 1996, o universo de unidades familiares com a presença de um ou mais membros exercendo atividades de prestação de serviços às famílias era de 13,1 milhões, o que equivaleu a 30,6% do total. Em dez anos, a quantidade de famílias dependentes da prestação para famílias aumentou 56,5%55.

Um verdadeiro retrato do Brasil dos barões do café e do açúcar, que dependiam de uma enorme criadagem para servir a si e a sua família. Fenômeno que se reproduz no Brasil do século XXI. Atualmente, há famílias que contam com até 20 empregados, que vão desde

53 POCHMANN, Marcio. Qual desenvolvimento?: oportunidades e dificuldades do Brasil contemporâneo. São Paulo: Publisher Brasil, 2009., p.114.

54 Idem, Ibidem, p. 114. 55 Idem, Ibidem, p. 149.

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o jardineiro, esteticista, passando pelo motorista, piloto de helicóptero, caseiros, personal trainers, guarda-costas, etc.

Até mesmo a tão decantada geração de empregos, de que tanto se gaba Lula, não é lá essas coisas. Mesmo a economia crescendo a uma taxa de 4 a 5% ao ano, como aconteceu em 2007 e 2008, mal consegue gerar um número suficiente de postos de trabalho, para empregar a mão de obra que chega ao mercado de trabalho pela primeira vez56. E com uma agravante. Como observa Pochamn em um artigo de jornal, além das elevadas taxas de desemprego, no Brasil, cerca de dois milhões de pessoas, crianças com menos de 14 anos, que deveriam estar na escola, estão trabalhando ou procurando trabalho. Não só este contingente deveria estar fora do mercado de trabalho, como também seis milhões de aposentados e pensionistas que continuam trabalhando. Para piorar a situação, mais de três milhões de pessoas têm mais de um emprego, o que reduz as oportunidades de trabalho para aqueles que chegam ao mercado de trabalho a procura do primeiro trabalho.

Esse retrato de extrema exclusão social não parece ser muito diferente daquele registrado e analisado nas páginas de Formação do Brasil Contemporâneo e de A Revolução Brasileira. Neste último livro, Caio Prado, acusado pela crítica de não ter olhado para o mercado in-terno, enxergou muito bem que o padrão de acumulação que se instaurou no país foi o de um crescimento econômico sem desenvolvimento. Com razão, afirma que as

[...] atividades econômicas expressivas [...] permanecerão restritas a redu-zidos setores que constituem o pequeno núcleo significativo da economia brasileira [...]. O surto relativamente vigoroso observado nos pós-guerra, gerador de tantas ilusões “desenvolvimentistas”, e que se alimentou, so-bretudo, da industrialização na base da produção substitutiva de artigos antes importados, alcançou seu limite muito cedo [...]57.

E não poderia ser diferente, como diz em seguida, pois

56 Cláudio Dedecca, do Instituto de Economia da UNICAMP, em entrevista a Álvaro Kassab, pu-blicada no jornal da UNICAMP – 23 de junho de 2008, afirma que “[...] a geração de empregos formais tem sido expressiva, mas é preciso ter ciência que é insuficiente para alterar esse quadro estrutural socioeconômico. É verdade que o país gerou mais empregos, mas temos que analisar outros componentes”. Indagado sobre quais componentes, o economista declara que “o país tem criado anualmente entre 1,6 e 1,8 milhão postos de trabalho formal, e tudo indica que o país vai gerar, este ano, dois milhões. Ocorre que a nossa população economicamente ativa ainda cresce dois milhões de pessoas por ano. A geração de empregos formais mal dá conta do crescimento da PEA. Portanto, o aumento do emprego é insuficiente para provocar uma queda significativa do desemprego. Em segundo lugar, continua praticamente intocado o estado de precariedade que predomina no mercado nacional de trabalho. Não adianta aplaudir este crescimento, ignorando os seus limites para modificar positivamente a precariedade da nossa estrutura econômica”.

57 PRADO JÚNIOR, Caio. A Revolução Brasileira, op. cit., p. 160.

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[...] o progresso conseguido, na perspectiva do mundo moderno e dos padrões de uma economia realmente desenvolvida, é mínimo. Tanto mais que o sentido que assume esse progresso, é o mais precário e insatisfatório. O que efetivamente se encontra na sua base e essência é uma produção orientada para o atendimento de um consumo que, nas condições do Brasil, se pode dizer suntuário e conspícuo, de reduzidas parcelas da população58.

Caio Prado tem razões de sobra, quando destaca as disparidades desse modelo de acu-mulação sem desenvolvimento. “Para não falar em coisa muito pior”, diz ele,

[...] considere-se, por exemplo, o caso da maior, mais opulenta e indus-trializada cidade brasileira, São Paulo, onde alguns reduzidos setores ostentam seus modernos arranha-céus de arrojadas linhas arquitetô-nicas, e seus luxuosos bairros residenciais, em tão violento contraste com o restante da cidade, e, sobretudo, seus bairros periféricos onde se concentra a massa da população, e que nem mesmo se podem dizer propriamente urbanizados, com suas rudimentares construções servidas com água de poço em comunicação com as fossas que fazem às vezes de esgoto, e plantadas ao longo de pseudo-ruas, ou antes, “passagens” desniveladas onde ao sabor do tempo uma poeira sufocante alterna com lodaçais intransponíveis. É isso a maior parte de São Paulo, e não como estágio inicial e momentâneo com perspectivas de modificações em prazos previsíveis, e sim como situação que considera mais ou menos definitiva. Que dizer então do Rio de Janeiro com suas favelas, Recife e seus mocambos, Salvador, com seus aglomerados de casebres dispersos por morros e brejos, e outras capitais de quase todo Brasil com suas multidões andrajosas e depauperadas que rondam luxuosos palacetes e clubes de piscinas ultramodernas de água filtrada [...].59

Cabe ainda observar o que dizia Caio Prado, em 1977. A lição que ele deixou permanece tão atual que parece estar a escrever nos dias de hoje. Com efeito, como negar, como assim escrevia naquele ano, que

[...] nos encontramos em fase de nossa história na qual se fazem pro-fundamente e cada vez mais sentir as contradições entre uma nação e nacionalidade que procura se libertar de seu passado, e esse passado que lhe pesa ainda consideravelmente nos ombros. Por mais que um atroa-dor neo-ufanismo, misto de publicidades comerciais e de ingenuidade desprevenida e mal-informada a respeito da realidade desse mundo em que vivemos, procure impingir ideias de que somos um país em desen-

58 Idem, Ibidem, p. 160. 59 Idem, Ibidem, p. 161.

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volvimento e prestes a alcançar os altos níveis de progresso e civilização contemporâneas, o fato é que infelizmente estamos bem longe disso [...]. Temos uma fachada, não há dúvida, que apresenta certo brilhantismo. Mas é uma tênue fachada apenas, que disfarça muito mal, para quem procura verdadeiramente enxergar e não tenta iludir-se, o que vai por detrás dela neste imenso país de desnutridos, doentes e analfabetos onde se dispersam ilhados alguns medíocres arremedos da civilização do nosso tempo60.

Para ir além dessa fachada, o Brasil precisa, dizia Caio Prado, em seguida,

[...] de uma sólida base sobre que assentar a nossa nacionalidade, e que vem a ser uma população liberta da miséria física e cultural, e capacitada, no seu conjunto, para usufruir alguma coisa do conforto, bem-estar e elevação do espírito que a ciência moderna proporciona61.

60 Idem, Ibidem, p. 228.61 Idem, Ibidem, p. 229.

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o capital-imperialismo: algumas características

Virgínia Fontes*

CApITAl poRTAdoR dE juRoS, CoNCENTRAção E ExpRopRIAçõES

Há duas faces sociais a considerar quando tra-tamos da tendência inerente e incontrolável do capital a expandir-se em todas as direções: a concentração de recursos sociais de produção e a recriação permanente das expropria-ções sociais, o que permite escapar do equívoco da dissociação entre o econômico e o social. A extração de mais-valor1, atra-vés do trabalho livre, é a forma social específi ca do capital; nela se sustenta todo o imenso edifício da reprodução social da existência e da concentração capitalista. Ela traduz a ati-vidade necessária para o capital (o exercício do trabalho sob o capital, ou a extração de mais-valor) e supõe a existência abstrata, de um lado, de trabalhadores e, de outro, de recursos sociais concentrados. No entanto, muitas vezes se deixa de lado o fato de que a disponibilidade de trabalhadores livres, que constitui a base social primordial para que seja possível instaurar-se a relação social que imbrica capital e trabalho, deve permanentemente reproduzir-se. Com isso, corremos o risco de deslizarmos da evidenciação da condição social na qual se baseia o capital para a atividade predominante da qual depende a própria reprodução do conjunto da vida social, a acumulação ampliada, ou o mais-valor. Condição e atividade social somente podem existir conjuntamente, ainda que não sejam idênticas. O capital baseia-se na permanente amplia-ção e exasperação de certa forma de vida social específi ca – a disponibilização massiva, tendencialmente atingindo toda a população, dos seres singulares convertidos em necessidade

1 Em criterioso trabalho de tradução de obra de Marx, Mario Duayer assinala que a tradução apropriada para mehrwert seria mais-valor, e não a difundida expressão mais-valia, provavelmente derivada da primeira tradução francesa d’O Capital, feita por J. Roy.

* Virgínia Fontes, Professora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio – Fiocruz; da Pós-Graduação em História da UFF e da Escola Nacional Florestan Fernandes-MST. Pes-quisadora do CNPq, com cujo apoio vem realizando a pesqui-sa da qual deriva este artigo. Este artigo procura sumarizar, de maneira muito sintética, algumas das questões centrais trabalhadas em livro que pu-bliquei em 2010, O Brasil e o capital-imperialismo. Teoria e História. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/Ed. EPSJV – Fiocruz.

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objetiva e em disposição subjetiva unilateral para a venda de força de trabalho sob quais-quer condições, base social para que um mercado ”econômico” supostamente livre possa se generalizar. A expropriação massiva é, portanto, condição social inicial, meio e resultado da exploração capitalista.

Nas condições atuais de predomínio do capital portador de juros, as expropriações se multiplicam. O capital portador de juros é o ápice da concentração de trabalho morto em poucas mãos e da irracionalidade da lógica capitalista: punhados de grandes proprietários de recursos precisam valorizá-los e, para tanto, convertem o próprio capital em mercadoria. O valor de uso do capital convertido em mercadoria, ou do capital portador de juros, é o de ser utilizado como capital, impulsionando a produção de valor através da multiplicação de agentes voltados para a função de extrair mais-valor. Marx emprega o termo capitalista funcionante para designar a personificação do capital que produz o mais-valor, ao realizar o percurso d-m-d’: fungierenden Kapitalisten. O proprietário dos recursos sociais de produção sob a forma do capital monetário (ou portador de juros) exige do capitalista funcionante crescente eficácia nessa extração, de maneira a remunerar tanto o próprio capital funcionante como o capital monetário, ou, ainda, o capital tornado mercadoria. Nessas condições,

B [o capital funcionante, o mutuário] tem de entregar a A [o capital portador de juros, o prestamista] parte do lucro obtido com essa soma de capital sob o nome de juro, pois A só lhe deu o dinheiro como capi-tal, isto é, como valor que não apenas se conserva no movimento, mas cria mais-valor para seu proprietário. Permanece nas mãos de B apenas enquanto é capital funcionante. (MARX, 1985, L.III: 257).

Esse movimento de separação entre a propriedade e o processo de extração de mais-valor é também processo de imposição, pela magnitude da concentração do capital monetário, da extrema intensificação e diversificação dessa mesma extração. O capital monetário converte seus mutuários em agentes funcionantes para a extração de mais-valor:

mesmo quando se concede crédito a um homem sem fortuna – industrial ou comerciante – isso ocorre confiando que ele agirá como capitalista: com o capital emprestado, se apropriará de trabalho não pago. Ele re-cebe crédito na condição de capitalista em potencial. (ROSDOLSKY, 2001: 324)

Ao longo da segunda metade do século XX, a propriedade do capital deslocou-se tendencialmente do controle direto dos meios de produção para a propriedade das condições sociais de produção, isto é, das massas de recursos que podem permitir o funcionamento efetivo dos meios de produção. Como já apontava Marx, nessa escala de concentração a propriedade torna-se crescentemente social e abstrata. Em frenética e intensiva busca de valorização, massas faraônicas de capital monetário tendem a agir disseminando capital-enquanto-mercadoria, mas impondo ritmos de retorno ao capital funcionante sempre mais curtos, o que se traduz por taxas de exploração sempre mais elevadas. A lógica do capital-monetário se dissemina

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como a forma natural da existência social; é-lhe indiferente a concentração ou a dispersão das atividades funcionantes, posto que a concentração fundamental segue aprofundando-se: a da propriedade do puro capital enquanto trabalho morto, sob a forma capital-enquanto-mercadoria, a ser alocado como extrator de mais-valor sob as mais variadas condições.

A forma mais imediata do capital portador de juros, desde o tempo de Marx, se ex-pressa no setor bancário. Porém de forma alguma se limita aos bancos, e Marx já o assinalava. Ademais, seu movimento de permanente concentração gerou historicamente formas variadas de reunião de capitais e de sua gestão, bancárias e não bancárias, como gestores de grandes fortunas, fundos gestores de proprietários acionistas, fundos de tipos diversos, utilização de entidades fundacionais (legalmente sem fins lucrativos, mas proprietárias de massas de recursos cuja valorização é admitida para ‘sobrevivência’ institucional) e, inclusive, através da captura expropriativa de fundos públicos ou de recursos de trabalhadores.

Para Marx, a existência de grandes proprietários de capital monetário, ou portador de juros, com ou sem a orquestração de seus administradores (quer sejam bancos ou outras formas jurídicas) converte o capital numa força social anônima, ao mesmo tempo concentrada e extremamente difusa. O capital monetário não se limita a puncionar: precisa expandir relações sociais capitalistas. Nesse patamar, o capital assume uma configuração diretamente social, por várias razões: não é mais um proprietário controlando a “sua” produção, mas proprietários unificados apenas pela própria propriedade, e que precisam converter seu capital-enquanto-mercadoria, através de quaisquer mãos, em mais-valor. Essa reunião difusa de proprietários, que não precisam sequer estar próximos, realizada sob auspícios de capitalistas-profissionais de intermediação, condensa volumes monstruosos de recursos com o fito de valorizá-los e, portanto, dissemina trabalho morto sob a forma dinheiro a quem o valorize, o converta em capital, em função de diferenciais de taxas de retorno e de sua velocidade de valorização. O capital, a massa de trabalho morto acumulado sob a forma dinheiro que precisa voltar a ser capital, controla seus controladores. A propriedade hiperconcentrada do capital produz tanto a concentração da produção (em grandes conglomerados) quanto sua difusão e dispersão em miríades de empreendimentos. Aprofundam-se as formas sociais aberrantes, como o capital fictício. Esse processo torna a exploração da força de trabalho totalmente social ou, para ser mais precisa, torna a integralidade da sociedade totalmente dependente da ”irrigação” de capitais para que ela toda – e cada um – possa subsistir.

Vale insistir que o capital monetário não pode ser apresentado como realizando uma mera punção, tal como ocorre com a função usurária, que ele também, aliás, exerce paralelamente. O capital monetário expressa e resulta da expansão do capital industrial ou funcionante (extrator de mais-valor) e a impulsiona numa escala muito superior. Se pode afastar-se da propriedade direta dos meios de produção e das atividades que envolvem a extração da mais-valor, é exatamente porque concentra a pura propriedade das condições e recursos sociais da produção.

A determinação social antagônica da riqueza material – seu antagonismo ao trabalho enquanto trabalho assalariado – já está, independentemente do processo de produção, expressa na propriedade de capital enquanto tal. (MARX, 1985, L.III: 267. Grifos meus.).

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No momento em que o capital monetário se autonomiza perante o trabalho e se distancia dos trabalhadores concretos — aos quais segue impondo a exploração e se beneficiando da valorização que acrescentam ao trabalho morto — no momento, portanto, em que a pura propriedade do capital se evidencia, a determinação social antagônica, do comando sobre tra-balho alheio, está colocada de forma generalizada. A propriedade doravante incide não apenas sobre os “meios específicos de produção”, de maneira imediata, mas converte-se em potência social acumulada (capital), em possibilidade de transferir de uma a outra massa de meios de produção a capacidade social de fazê-los existir enquanto tais, isto é, de fazê-los atuar para a extração de mais-valor. Desloca-se, portanto, enquanto capital, como relação social capaz de extrair mais-valor em qualquer local, e não apenas como coisas a serem movidas. Para tanto, a existência de trabalhadores expropriados em qualquer local imaginável é uma condição essencial. Longe de se reduzir, a contradição central entre trabalho e capital torna-se mais aguda, generalizando massas indistintas de trabalhadores crescentemente muiltifuncionais, meros produtores de valor e de mais-valor em qualquer atividade, contrapostos ao capital em sua forma genérica, embora este se converta sempre em uma forma específica de exploração. O aparente descolamento entre os dois momentos do capital – funcionante e monetário – expressa, entretanto, sua mais estreita e íntima imbricação. A aparente dissociação existente entre eles é, de fato, uma interpenetração crescente resultante da concentração da propriedade de recursos sociais de produção e exige expandir formas brutais de extração de mais-valor.

O capital portador de juros e sua derivação, o capital fictício, impõem uma aceleração alucinada das exigências tirânicas da extração de sobretrabalho, a toda velocidade e sob quais-quer meios, sem pejo de comprometer para tanto não apenas a vida (e a morte) de milhares de trabalhadores, mas o conjunto das gerações futuras. Se a forma da remuneração do capital portador de juros e do capital fictício é diferenciada – e não entraremos nesse debate, por mais relevante que seja – seu efeito social é similar: impor a ferro e fogo a subordinação geral do conjunto da população, reduzindo e aplastrando todas as resistências à subordinação à lógica do capital de todas as relações sociais. Entretanto, quanto mais tais capitais expandem, de maneira descontrolada, a possibilidade de explorar a força de trabalho, mais abrem espaços para crises econômicas, crises do próprio capital, pois ao acelerarem as condições da concentração e da acumulação, colocam-se na posição de acirradores de todas as contradições do capital, de maneira simultânea, tornando-se potencializadores de crises crescentemente incontroláveis. Fomentam simultaneamente mais produção e mais massa monetária procurando aplicação rentável: abrem-se crises exatamente pelo excesso de concentração, seja pela superprodução de bens que não mais são realizáveis no mercado, seja pela própria superacumulação de capitais, que não encontram mais como rentabilizar-se na mesma proporção anterior. Pela destruição de parcela dos capitais, podem reconstituir-se novos equilíbrios intercapitalistas, embora à custa de enormes e crescentes sofrimentos sociais e ambientais.

A existência de enormes massas de capital fictício, de maneira similar à do capital-monetário ao qual está acoplado, impõe um resultado social dramático: não apenas aprofunda as expropriações e intensifica as maneiras de subalternização dos trabalhadores, como também impele a comprometer o futuro da integralidade da vida social, transformando-a em mera condição para a reprodução do capital. Se é importante ressaltar as especificidades do capital

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fictício, supor tanto uma imbricação quanto uma separação absoluta entre ele e os demais capitais segue problemática, uma vez que, resultante da extrema concentração e derivado do capital portador de juros, juntamente com ele acelera a totalidade do processo, e impulsiona a produção da base social necessária para a exploração do mais-valor, de maneira a abrir espaços para a valorização de volumes de capitais muito além das condições das quais partiram. Vale dizer que o conjunto do processo segue tendo como solo a expansão da extração de valor, ou, melhor dizendo, de sobretrabalho sob a forma do mais-valor, mesmo se uma parte da remu-neração do capital fictício está descolada de maneira imediata dessa produção2.

Por que da insistência sobre as expropriações e em que consiste a expansão da base social do capital? O fato de a lógica capitalista lançar a humanidade em crises sucessivas e cada vez mais profundas, como o desemprego crescente nos países europeus e nos EUA, não significa que o capitalismo esteja em processo de recuo ou de estreitamento de suas bases sociais; tampouco a recorrências de crises propriamente capitalistas indica algum recuo do capital. Se o predomínio mundial do capital conduz a crises sociais cada vez mais incon-troláveis e arrastam a humanidade para a catástrofe (MÉSZÁROS, 2001), tal predomínio se mantém expandindo exatamente sua contradição central, com a própria humanidade crescentemente convertida em mera força de trabalho. O crescimento da concentração do capital corresponde a um incremento desigual e difuso, porém avassalador, das massas de trabalhadores que constituem sua base social contraditória e tensa.

Esse solo social – a expropriação – pode parecer a muitos como excessivamente simples, até mesmo simplório e, de fato, ele é insuficiente para explicar a totalidade das relações capitalistas, sendo, entretanto, sua condição necessária. O capitalismo não pode ser reduzido ao movimento de expropriação: estas podem decorrer de situações naturais, como cataclismos, ou de conflitos que não dizem respeito diretamente às relações capitalistas. Em alguns casos, as expropriações não se convertem em capital (isto é, na exploração do trabalho vivo dos expropriados pelos recursos sociais concentrados dos acaparadores), limitando-se a rapinas variadas. Não obstante, o predomínio do capital no plano mundial tende a exigir e impulsionar constantes expropriações, além de nutrir-se, como as aves de rapina, da con-centração de recursos que a desgraça alheia favorece.

Não se pode olvidar que populações expropriadas em meio a uma situação social mercantil precisam objetivamente subsistir sob o mercado e, portanto, objetiva e subjetivamente, demandam mercado e “empregabilidade” (isto é, acesso à venda da força de trabalho). Essas populações, qualquer que seja a extensão de seu consumo, de luxo ou de necessidades ele-mentares, constituem a base de um mercado de força de trabalho ou de qualquer mercado interno, ou do mercado tout court. Desiguais segundo os países e regiões nos quais nasceram, forjadas segundo direitos e costumes tradicionais diversos, constituem extensa massa de força de trabalho desigualmente liberada para o capital internacional, diferenciadamente formada, mas igualmente disponível (e necessitada) para as variadas formas de exploração de mais-valor e para as mais diversas modalidades de concorrência entre os próprios trabalhadores.

2 Ver, no citado L. III, os capítulos 25. Crédito e capital fictício e, especialmente, o capítulo 27, O papel do crédito na produção capitalista (MARX, 1985).

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Frequentemente o tema das expropriações é relegado à condição de “acumulação primitiva”3, como episódico, tendo ocorrido previamente na Inglaterra e reproduzindo-se como complemento da “modernização” nos demais países, espécie de seu corolário, na maioria das vezes indesejável4. A suposição de que a “acumulação primitiva” tenha sido algo de “pré-vio”, “anterior” ao pleno capitalismo leva ainda à suposição de que, no seu amadurecimento, desapareceriam as expropriações “bárbaras” de sua origem, sob uma azeitadíssima expansão da exploração salarial, configurando uma sociedade massivamente juridicizada sob a forma do contrato salarial e “civilizada”. Se Marx criticava a origem idílica do capital, aqui se trata de uma figuração idílica da historicidade regida pelo capital.

A expropriação primária, ou camponesa ainda está em curso, configurando fenômeno de enorme intensidade e grande duração. Sua extensão e aceleração são impressionantes. Para uma ideia, na Inglaterra e País de Gales, em 1850, a população urbana perfazia em torno de 40,8% do total; na França atingia apenas 14,4% e na Alemanha, 10,8% (WOOD, 2001: 105). As modalidades e ritmos de expropriação primária foram heterogêneos segundo os países, tendo ocorrido também massivas emigrações originárias dos países centrais, conferindo um aspecto especialmente desigual e contraditório ao processo. Não há índices internacionais de expropriação, mas o percentual crescente de população residindo em áreas urbanas no mundo oferece uma ideia de suas atuais dimensões.

poRCENTAgEm dA populAção RESIdINdo Em áREAS uRbANAS, poR CoNTINENTES

1950 1980 2000 2010Mundo 28,83 38,92 46,40 50,46África 14,40 27,91 35,95 39,98Ásia 16,33 26,26 36,80 42,17Europa 51,27 69,81 70,80 72,78América latina e Caribe 41,38 64,29 75,48 79,63América do Norte 63,90 73,93 79,13 82,13

Fonte: ONU, Desa. World Urbanization Prospects: the 2009 revision. Disponível in: www.un.org/esa/popula-tion/

3 Marx critica explicitamente a noção idílica de que ocorrera uma acumulação “primitiva”, que legitimaria a concentração da riqueza social em algumas mãos. Ele demonstra, ao contrário, que o processo expropriador é condição de existência do capital (MARX, 1985: L. I, cap. 24). O tema das expropriações e da base social do capital (a produção do trabalhador livre) atravessa todo O Capital e justifica a consigna “expropriar os expropriadores”.

4 Este ponto é um dos mais dramáticos da atualidade, dada a intensificação, nas últimas décadas, das expro-priações de enormes contingentes populacionais, em especial na Ásia, na América Latina e na África, que foram analisadas como produção de populações “excedentes” ou “sobrantes” e sem sentido, gerando um reforço de argumentos de cunho humanitário e filantrópico. Ainda mais inquietante é o fato de que o ritmo de expropriações não parece amainar, mas, ao contrário, intensificar-se.

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Ora, se a proposição de Marx estava correta, precisamos observar de que maneira a relação capital “não apenas conserva aquela separação [entre o trabalhador e os recursos sociais de produção], mas a reproduz em escala sempre crescente”. (MARX, 1985, L. I: 262). O con-texto de expropriações primárias – da terra – massivas e de concentração internacionalizada do capital em gigantescas proporções sofre uma duplicação, ou uma alteração de qualidade, correlata à nova escala de concentração de capitais, característica do capital-imperialismo: passaram a incidir também sobre trabalhadores já de longa data urbanizados, revelando-se incontroláveis e perigosamente ameaçadoras da humanidade tal como a conhecemos.

Estas expropriações, que estou denominando disponibilizações ou expropriações se-cundárias, não são, no sentido próprio, uma perda de propriedade de meios de produção (ou recursos sociais de produção), pois a grande maioria dos trabalhadores urbanos dela já não mais dispunha. Porém, a plena compreensão do processo contemporâneo mostra terem se convertido em nova – e fundamental – forma de exasperação da disponibilidade dos traba-lhadores para o mercado, impondo novas condições e abrindo novos setores para a extração de mais-valor. Este último é o ponto dramático do processo.

Os novos processos em parte se assemelham ao que ocorreu na Inglaterra entre os séculos XVI e XVII, com a “extinção de direitos comunais e consuetudinários” que, na épo-ca, envolveu uma completa redefinição do próprio significado da propriedade, que passaria doravante a ser exclusiva, consolidando o predomínio da propriedade caracteristicamente capitalista. Num primeiro momento (séc. XVI) o processo ocorreu através do cercamento violento, já no século XVIII, interviriam os “cercamentos parlamentares”, com a extinção da propriedade camponesa sendo realizada através de decretos (WOOD, 2001: 91-2).

Nas últimas décadas do século XX, o extenso desmantelamento de direitos sociais e tra-balhistas contou com declarado apoio parlamentar. De maneira surpreendente, uma verdadeira expropriação de direitos (que historicamente se configuravam como obstáculos politicamente implantados contra a total subserviência dos trabalhadores ao capital), se realizou mantidas as instituições ‘democráticas’, conservados os processos eleitorais e com a sustentação de uma intensa atuação midiática e parlamentar. Um extenso e duplo movimento de coerção e persuasão se pôs em marcha. A coerção foi realizada seja através de ameaças (de demissões, de deslocamen-tos de empresas, de eliminação de postos de trabalho em geral) seja de sua concretização (pela efetivação parcelar de tais ameaças ou pelo enfrentamento de resistências sindicais); a persuasão mobilizou intensa atuação da mídia proprietária, dos governos e de bem remuneradas camadas de intelectuais recém-convertidos à nova função de uma ‘esquerda para o capital’, produtores de maquiagens variadas para a monotonia do “não há alternativas” ou do “fim do trabalho”. Direitos foram (e continuam sendo) extintos, resultando numa redisponibilização de massas enormes da população – inclusive dos países centrais – com vistas à sua conversão dócil em força de trabalho para qualquer tipo de atuação.

Tratou-se de introduzir uma nova “normalidade”: segmentar cada situação ou direito tornado alvo imediato (como aposentadoria, serviços públicos como saúde e educação, di-reitos ligados ao trabalho, ambiente, mulheres, racismo) e deter-se nela exaustivamente, por todos os meios midiáticos, sempre de forma singularizada. Com isso, abriam-se formalmente

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enormes debates “públicos” ao mesmo tempo em que se encapsulava cada questão, isolando-a das demais e do contexto geral, sobretudo da dinâmica processual no plano internacional. O plano internacional, aliás, era somente apresentado como “modelar”, tanto para o me-lhor (o “bom” exemplo, a “boa” e única política) quanto para o pior (a tragédia, a catástrofe anunciada aos desobedientes ou ignorantes). Sobretudo, silenciavam-se as razões causadoras do conjunto de fenômenos, consideradas como ideológicas, e centravam-se na urgência, ou no “o que podemos fazer imediatamente”? Cada questão isolada era sempre apontada como a mais urgente e rapidamente reconvertida em cálculos e planilhas de custos, reproduzindo no âmbito público o cálculo capitalista, desconsiderado o contexto abrangente no qual se tornava compreensível.

Já assinalei algumas características dessas novas expropriações em outros trabalhos, enfatizando como a própria generalização do comando do capital sobre o conjunto da vida social (a subsunção real do trabalho sob o capital) o impelia a destruir toda e qualquer barreira interposta à sua urgência de reprodução ampliada. Assinalei, então, a importância da expro-priação contratual, ou a tendência à exploração da força de trabalho desprovida de vínculos geradores de direitos, como o trabalho por venda de projetos, a constituição de empregadores de si mesmo, como as “pessoas jurídicas” singulares; a quebra da resistência tradicional dos trabalhadores ligada historicamente à sua unificação em grandes espaços pelas operações de desterritorialização; as flexibilizações de contrato, precarizações e assemelhados, todas elas agindo no sentido da expropriação da nova capacidade cooperativa dos trabalhadores através de segmentações implementadas por novas tecnologias de controle hierárquico distanciado, etc. (FONTES, 2005, p. 96-106).

Tais expropriações incidem também sobre matérias-primas estratégicas. Anteriormente, o controle direto dos Estados capital-imperialistas ocorria sob a forma da colonização, ou do controle político e militar direto; na atualidade, ocorrem sob variadas formas, como a do endi-vidamento público. Mantém-se não obstante a recorrência do controle militar, desvinculado, entretanto, dos elos políticos que configuravam a colonização. No Iraque, expropriou-se uma nação inteira de suas fontes de petróleo; na Palestina, está em curso gigantesca operação de expropriação das águas, da terra e das próprias camadas férteis do solo.

As expropriações contemporâneas tornaram-se extremamente agressivas e, revelam-se potencialmente ilimitadas, ainda que colocando em risco a existência humana. Evidenciam que a dinâmica capital-imperialista impõe converter características humanas, sociais ou elementos diversos da natureza em formas externalizadas à existência humana, erigindo-as em barreira ao capital de maneira a elaborar um discurso da urgência, moldar argumentos de persuasão e, finalmente, consolidar apetrechos coercitivos para destruir/expropriar tais características, apropriando-se de tais elementos, seja para monopolizá-los, seja para produzir novas atividades capazes de produzir valor, resultando numa mercantilização inimaginável de todas as formas da vida social e humana. Os créditos-carbono são um dos dramáticos exemplos. O fenômeno é mais amplo e vem ocorrendo com as águas, doces ou salgadas, e com a biodiversidade. O fato, porém, de cindir, de externalizar tais características, não sig-nifica de forma alguma que tais elementos expropriados não sejam plenamente integrantes das condições sócio-humanas da existência (internos, pois). Agudizam apenas a evidência de

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que sua expropriação resulta de uma necessidade interna da dinâmica expansiva e destrutiva capital-imperialista.

As expropriações secundárias se abatem sobre conhecimentos socializados (como já ocorreu no século XIX, na introdução das grandes indústrias e no século XX, com o fordis-mo), sobre a biodiversidade, sobre técnicas diversas, desde formas de cultivo até formas de tratamento de saúde utilizadas por povos tradicionais. Somente de maneira muito cautelosa poderíamos supor que tais populações mantêm-se externas ao capitalismo, quando boa parte delas já depende – parcialmente, ao menos – de relações mercantis plenamente dominadas pelo grande capital-imperialismo. Não obstante, populações organizadas em escala interna-cional, por exemplo, na Via Campesina, lutam para conservar as condições sociais rurais de sobrevida (ainda que parciais), e opõem barreiras à plena relação social do capital, à produção massiva de seres sociais disponibilizados.

Boa parte dos procedimentos de privatização de empresas públicas experimentados nas últimas décadas assemelha-se às expropriações primárias, pois incidiram sobre bens coletivos, similares às terras comunais; porém, ocorriam também em âmbitos internos, em sociedades nas quais já vigoravam plenamente relações capitalistas, diferindo das primeiras que até então avançavam sobre populações e sociedades não integralmente capitalistas. As expropriações sobre bens coletivos ocorreram como violência e como extinção de direitos, até então consolidados através de privatizações de instituições públicas, industriais ou destinadas a prover educação, saúde, previdência social, transporte, etc. Além de disponibilizarem (‘li-bertarem’ trabalhadores), permitem a conversão de tais atividades – até então improdutivas para o capital – em trabalho sob o comando do capital, portanto em produção de valor e de mais-valor. As expropriações contemporâneas não pararam por aí e devoraram também bens naturais sobre os quais até então não incidia propriedade exclusiva de tipo capitalista, como as águas doces e salgadas, o patrimônio histórico e cultural (convertido em mercadoria através do turismo), o patenteamento de códigos genéticos, a qualidade do ar.

Uma modalidade impactante das expropriações internas é o amplo terreno científico tomado genericamente como o setor da saúde, que constitui na atualidade um dos mais importantes setores de investimentos mundiais. A área da saúde envolve, em muitas de suas práticas, a invenção de novos procedimentos de expropriação capazes de, eventualmente, permitir a expansão da extração de mais-valor ainda que pela destruição de relações humanas e de modificações na relação entre humanidade e a natureza biológica que podem levar à devastação da própria humanidade, como sustenta Mészáros. No terreno da saúde, é certa-mente difícil e doloroso imaginar tais expropriações, uma vez que procuramos pensar a vida humana na sua totalidade complexa, envolvendo suas mediações com a natureza e com os demais seres humanos na produção social de sua existência e de vidas dignas. No entanto, essas expropriações vêm ocorrendo de forma massiva, apresentando-se como pura “natureza”, através, por exemplo, da expropriação do próprio corpo como fenômeno de novo tipo.

Estou assinalando algo diferente das formas de sua mercantilização, que já conhecemos como a prostituição, a venda de pessoas ou a venda de órgãos, as quais se lastreiam na su-posição de cunho liberal, de uma “propriedade do corpo”, argumento forjado na aurora do

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capitalismo. Edgardo Lander designou o fenômeno como “ciência neoliberal” (2006), outros o denominam “biocapitalismo”; ambos os termos são, porém, insuficientes, pois os próprios elementos constituintes da vida biológica, inclusive a humana, são expropriados, passando a constituir propriedade privada monopolizada5. Apresentá-lo apenas como mercantilização (que também envolve) oculta o processo social de expropriação que o constitui.

Menos do que enfrentar os grandes problemas de saúde coletiva e pública, derivados in-clusive da lógica social imposta pelo capital, tais expropriações seguem a linha já predominante da produção de “remédios-mercadorias” para doenças e/ou sofrimentos forjados pela dinâmica da vida social imposta pelo capital, enveredando ainda mais decididamente na hierarquização do acesso a produtos e técnicas destinados aos segmentos sociais potencialmente capazes de consumi-los, como cosméticos, medicamentos para deter o envelhecimento ou para doenças que acometem mais frequentemente setores abastados da população. Porém, o precedente envolve elementos muitos mais dramáticos do que simplesmente o lucro e a desigualdade: o controle privado das condições da existência biológica, expropriadas da população, pode reverter na própria produção de novas e trágicas enfermidades ou necessidades de “saúde”, derivadas do imperativo do lucro ao qual estão submetidos tais controladores de patentes.

Talvez a mais dramática de todas essas expropriações, já em pleno curso internacional, seja aquela representada pelos organismos geneticamente modificados (OGM) ou os trans-gênicos. Aqui se torna mais amplamente visível que as expropriações secundárias não podem ser reduzidas a mera mercantilização e, nem mesmo confundidas com a apropriação privada que também envolvem. Estamos assistindo à conversão de necessidade social e humana em monopólio do capital-imperialismo, em escala planetária. A reprodução das espécies faz parte do imenso estoque de bens naturais com os quais se relacionou historicamente a humanidade, desde seus primórdios, para prover sua subsistência, em especial daquelas sementes que cons-tituem a base da alimentação de toda a humanidade, como o trigo, milho e arroz. A produção de tais gêneros sob condições de propriedade privada das terras – e das colheitas – não se inicia com o capital-imperialismo, tampouco a mercantilização de sementes melhoradas ou modificadas através de procedimentos e técnicas diversas. Sob o capital-imperialismo está em jogo a expropriação da humanidade da capacidade de reprodução natural de tais sementes, uma vez que enormes plantações transgênicas, cujas sementes colonizam as demais, vêm sendo

5 “O primeiro animal patenteado foi a ostra Allen, cuja alteração cromossómica lhe conferia uma maior di-mensão e um sabor mais intenso. No âmbito dos seres vivos, em 1988, o US Patent and Trademarrk Office (USPTO) admitiu o primeiro registro da patente de um mamífero, um rato transgênico – o chamado rato Harvard – dotado de um gene humano passível de desenvolver um câncer. Este caso, que foi precedido de quatro anos de polêmica muito alargada, acabou por ser também aceite pela Agência Européia de Patentes. Trilhado o caminho da apropriação privada da vida biológica, esta se estendeu em pouco tempo à biologia hu-mana. Em 1998, cerca de 8000 patentes sobre genes humanos, técnicas e métodos relativos ao seu isolamento e manipulação tinham sido concedidas pelo USPTO. Em outubro de 2000, tinham sido entregues 160.000 pedidos de patentes relativos a sequências de ADN por firmas sediadas nos EUA, na Europa ocidental e no Japão, sendo que 70% partiram de um grupo de apenas 10 empresas e só a francesa Genset concorria a 36.000 patentes. Em 2001, tornou-se possível a concessão de patentes relativas a células estaminais humanas e a embriões de mamíferos desenvolvidos em laboratórios, sem recurso a esperma, que poderiam ser utilizados, por exemplo, para a clonagem de animais.” (GARCIA, 2006: 985, grifos meus).

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impulsionadas em todos os quadrantes do planeta. Sementes transgênicas não se reprodu-zem depois de certo tempo, precisando ser recompradas e, caso continuem se expandindo, tendem a eliminar as sementes naturais expropriando, de um golpe, toda a humanidade da capacidade de produzir naturalmente alimentos essenciais.

Como foi possível que um fenômeno expropriativo de tal amplitude fosse ao mesmo tempo incorporado e velado para a compreensão das massas sociais? Um dos elementos de resposta reside na produção permanente do desfocamento dos grandes temas. Como exemplo, uma extrema redução (ou simplificação) das contradições entre e capital e trabalho em escala planetária, ocorreu a partir dos anos 1960, ao se difundirem procedimentos de quantificação da pobreza, ao mesmo tempo em que se naturalizavam suas precondições. A explicitação do número de pobres no planeta agiu para ocultar que não se tratava mais de uma pobreza de tipo tradicional, mas tipicamente resultante da expansão capitalista (PEREIRA, 2009: 136). Durante a gestão de McNamara no Banco Mundial (1968-1981), foi constituída uma política de extração estadunidense, rapidamente convertida em política internacional voltada para a pobreza, em especial a partir dos anos 1970. Tal política, aliás, direcionou-se em primeiro lugar à pobreza rural e impulsionou projetos de aumento do crescimento da produtividade rural, através de financiamentos destinados à camada superior dos pequenos agricultores. Como se pode imaginar, derivou da afinidade íntima do Banco Mundial com a Revolução Verde, cujo nome demonstra o intuito de barrar qualquer revolução vermelha, e que impulsionou a extensão em diversos pontos do planeta de uma agricultura capitaliza-da, fortemente mecanizada e dependente de pesticidas, promovendo um salto na escala de concentração de terras e, por extensão, nas expropriações primárias. A atuação internacional “contra a pobreza” destinava-se a, em curto prazo, incentivar as expropriações agrárias de posseiros, parceiros, meeiros e arrendatários. (Id: 137 e segs.) e, em seguida, seria a base da implantação e generalização de transgênicos.

Desconsiderar a magnitude das expropriações e sua correlação direta com a concen-tração de capitais tende a velar enorme ampliação de relações sociais capitalistas através do mundo, um dos elementos mais fundamentais da atualidade, e tornar-se impotente diante das gigantescas e complexas contradições que envolvem. O fato de tais disponibilizações de trabalhadores (expropriações) significarem imediatamente um aprofundamento das desigualdades entre os próprios trabalhadores expressa não apenas a insensibilidade diante da existência humana do processo de concentração da propriedade tout court, como ainda desvenda a intencionalidade de muitas dessas expropriações. A massa profundamente desigual de trabalhadores disponíveis urbanos assim constituída abriu formidável manancial de explo-ração da força de trabalho para capitais e capitalistas de porte variado, ao mesmo tempo em que grande parte dessa população anseia – compreensivelmente – pela integração ao mundo do trabalho regular. Entretanto, sua magnitude agudiza as tensões intercapital imperialistas e certamente impulsionará lutas sociais com escopos variadíssimos.

Categorias como capitalismo tardio, especulação, parasitismo, horror econômico, in-controlabilidade ou senilidade expressam muitas de suas determinações, mas talvez não sejam suficientemente fortes para nos fazer compreender a extensão contemporânea da tragédia social dominada pelo capital-imperialismo que, tendencialmente devastando o conjunto da

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natureza, segue reinventando-a para novas devastações, ainda mais danosas, ao mesmo tempo em que se volta resolutamente para a própria vida humana e social como espaços para sua expansão lucrativa. Sua destrutividade não apenas não impede o crescimento potencializado de suas exigências de acumulação, como ainda reforça a sua expansão. São transformações escalares da mesma dinâmica social – expansão do capital, extração de valor, socialização do processo de produção contraposta à mais extrema concentração da propriedade dos recursos sociais de produção – que, no próprio curso de seu evolver, introduzem modificações qualitativas.

ImpERIAlISmo E CApITAl-ImpERIAlISmo

Ao longo do século XX, o termo imperialismo foi utilizado de maneiras diversas, das quais destacaremos duas, e que alteraram em direções diferentes o conceito proposto por Lênin. Na primeira, o conceito foi expandido e levou à suposição de que o capitalismo sempre fora imperialista (DUMÉNIL e LÉVY, 2005, p. 4, dentre outros). Para esses auto-res, os primórdios da colonização mercantil já são considerados como imperialismo, e este apenas mudaria de alcance e de formato, não mais se relacionando a um período no qual a ação das forças desatadas pela dinâmica capitalista alterou as condições de existência do próprio capitalismo. O alargamento temporal do conceito admite, ainda, que impérios e imperialismo se confundam como descritores de um processo expansivo genérico, quer seja comercial, capitalista ou não, quer seja resultante de formas variadas de controle territorial ou militar. A dilatação esvazia de sentido próprio o conceito de imperialismo. Na segunda direção, o conceito de imperialismo foi muitas vezes empregado de maneira contraída, como quase sinônimo da expansão imperialista de um único país, os Estados Unidos. Esse uso, bastante corrente na América Latina, chegou a ponto de o termo imperialismo identificar unicamente as práticas e as políticas dos Estados Unidos.

Excessivamente dilatado ou restritivamente reduzido, o conceito perde a agudeza de sua definição, como patamar de expansão do capitalismo, do qual foi um desdobramento. O imperialismo, na acepção leniniana, incorporou a anterior dominação econômica capitalista numa nova dinâmica mais concentrada, e abrangendo o mundo, superou e subordinou a forma concorrencial do capital. Não eliminava a concorrência, mas a deslocava sob o peso dos monopólios. Seu novo alcance nos âmbitos nacionais e na esfera internacional tenderia a estabelecer formas sociais similares nos demais países imperialistas, porém jamais idênti-cas, de dominação política, ideológica e até mesmo cultural. A transmutação do conceito de imperialismo – inclusive pela sua enorme popularização, mas também, em muitos casos, por sua deformação – foi paulatinamente deixando na sombra o fato de que a expansão do capitalismo, desde finais do século XIX, passou a ocorrer pela via do imperialismo, no sentido específico de uma extensão de extração de mais-valor interna e externa, estreitando os elos hierárquicos entre diferentes formações sociais, modificando-as e, simultaneamente, alterando-se o próprio teor dos países centrais.

Os países chamados “retardatários”, da primeira metade do século XX, como a Alemanha, Itália e o Japão, tornaram-se capitalistas através do predomínio da industrializa-

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ção sobre as formas produtivas tradicionais, da forte imbricação entre indústrias, bancos e governos para sua realização, de um violento processo de expropriações, e do ingresso – san-grento – na disputa por territórios na expansão colonizadora. No período da vida de Lênin (1870-1924), mas também da vida de Trotsky (1879-1940), os países centrais submeteram o resto do mundo, de base predominantemente agrária, convertido numa extensa periferia, a intenso processo de colonização e de redução à condição semicolonial daqueles formalmente independentes. Os processos históricos subsequentes, que apresentaremos mais adiante, tornaram esse quadro mais complexo.

O período que medeia do final da Segunda Guerra Mundial até a década de 1980 foi marcado por uma situação histórica única, na qual a divisão do mundo entre países pós-revolucionários e países capitalistas impôs modificações substantivas no ritmo, na extensão e na forma da expansão do imperialismo, e trouxe uma sobrecarga retórica e ideológica que dificulta a percepção real das transformações então em curso.

Falar, pois, de capital-imperialismo, é falar da expansão de uma forma de capitalismo, já impregnada de imperialismo, mas nascida sob o fantasma atômico e a Guerra Fria. Ela exacer-bou a concentração concorrente de capitais, mas tendencialmente consorciando-os. Derivada do imperialismo, no capital-imperialismo a dominação interna do capital necessita e se complementa por sua expansão externa, não apenas de forma mercantil, ou através de exportações de bens ou de capitais, mas da produção local, impulsionando expropriações de populações inteiras das suas condições de produção (terra), de direitos e de suas próprias condições de existência, ambiental e biológica. Por impor aceleradamente relações sociais fundamentais para a expansão do capital, favorece contraditoriamente o surgimento de burguesias e de novos Estados, ao mesmo tempo em que reduz a diversidade de sua organização interna e os enclausura em múltiplas teias hierár-quicas e desiguais. À extensão do espaço de movimentação do capital corresponde uma tentativa de bloquear essa historicidade expandida, pelo encapsulamento nacional das massas trabalhado-ras – que lança praticamente toda a humanidade na socialização do processo produtivo e/ou de circulação de mercadorias, somando às desigualdades precedentes novas modalidades. Mantém o formato representativo-eleitoral, mas reduz a democracia a um modelo censitário-autocrático, similar a assembleias de acionistas, compondo um padrão bifurcado de atuação política, altamente internacionalizado para o capital e fortemente fragmentado para o trabalho.

Por diferentes vias, o período pós-segunda Guerra Mundial resultou numa gigantesca expansão do imperialismo, que, embora não exatamente idêntico à letra de Lênin, cabia ple-namente no conceito por ele formulado. É sua própria expansão desordenada e desigual para países até então coloniais ou semicoloniais, assim como as formas específicas que precisou adotar a grande potência dominadora, os Estados Unidos, que nos impele a caracterizá-lo na atualidade como capital-imperialismo. Desde o início do século XX, o ingresso de países retardatários na ordem capitalista implicou e impôs uma dupla dominação, interna e externa. Ao final da Segunda Guerra Mundial, o imperialismo iniciava sua conversão contraditória para capital-imperialismo, formato doravante obrigatório inclusive para os “novos” retardatários. É sempre bom que se lembre, aliás, que nenhum país jamais repetiu um percurso “original” para o capitalismo, seja o da expansão do capitalismo inglês, ou o processo da revolução francesa ou, ainda, o das revoluções passivas da primeira metade do século XX. A produção de relações

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sociais capitalistas em novos países, em seu âmbito interno e nas suas relações externas, mesmo quando pretendeu copiar os países anteriores, por três razões óbvias estaria impossibilitada de reproduzir as formas precedentes. Em primeiro lugar, porque a extensão de relações sociais capitalistas ocorre transmutando configurações de dominação e subordinação históricas em formações sociais específicas e que se reconfiguram ao longo do mesmo período, exatamente em função das transformações que o capitalismo impõe, mas que também experimenta. Como, ademais, não há o desenvolvimento de capitalismos em países isolados, uma vez que desde seus primórdios, capitalismo envolve transações internacionais e assimetrias econômicas, militares, sociais e políticas, a expansão capitalista implica, ao mesmo tempo, uma forma específica de inserção desigual e instável no plano internacional. Como já alertamos, a mera expansão subordinadora atingindo e afetando outras regiões e países não é idêntica a forjar nem imperialismo, nem capital-imperialismo. Em segundo lugar, as experiências pioneiras de fato figuraram ou foram impostas como “modelos” a serem aplicados, muitas vezes mecani-camente, em outros países. Tais iniciativas se defrontavam com situações sociais (formações econômico-sociais) de composições diversas e com resistências variadas tanto entre setores dominantes quanto entre os setores populares. Como a expansão do capital interconecta as diferentes regiões e países, as tensões nos elos mais frágeis passavam a repercutir também nos pólos centrais, agudizando suas próprias contradições e impondo ajustes, violentos ou tortuosos que, por seu turno, impactavam o conjunto da cadeia imperialista. Por esta razão, a adesão incondicional a modelos de conduta, adotados ou impostos, tinha de lidar com as lutas sociais que pontuaram os processos originais nos quais se espelhavam, colocando para as classes dominantes, locais e centrais, o desafio de aprofundar a acumulação de capital e evitar a todo custo a emergência de lutas similares. A contrarrevolução preventiva, como sugeriu Florestan Fernandes (1975: 289-366), se tornaria condição da acumulação burguesa dependente, num primeiro momento, e da ordem burguesa como um todo, no predomínio do capital-imperialismo.

Insisto sobre a importância do capital-imperialismo, sublinhando que não se trata apenas de uma “política”, mas de uma totalidade que somente pode existir em processo permanente de expansão, e que, tendo ultrapassado um determinado patamar de concen-tração, se converte em forma de extração de mais-valor dentro e fora de fronteiras nacionais. Inaugura-se um novo espaço para a historicidade, correspondente à socialização efetiva das forças produtivas e à circulação de capitais no plano internacional, ao mesmo tempo em que se aperfeiçoam mecanismos para sua contração, com o enrijecimento da forma Estado e sua contenção das lutas populares. Essa contração estatal foi obrigada a incorporar uma contrapartida, a generalização de regimes políticos formalmente democráticos, o que repre-senta uma conquista. Limitada, porém, ao interior das fronteiras estatais, exasperam-se suas contradições. O capital-imperialismo é devastador, mas envolve na atualidade o conjunto da existência humana. Decerto, políticas diversas – militares, econômicas, sociais, voltadas para as relações internacionais, culturais, etc. são conscientemente formuladas para assegurá-lo, seja nas grandes empresas, seja no país preponderante, os Estados Unidos, seja ainda em outros países copartícipes do capital-imperialismo, em seu âmbito interno ou em seu impulso externo, seja finalmente em burguesias de demais países. No entanto, não se trata apenas da expressão de uma “vontade”, mas de uma vontade que se ajusta a uma “necessidade” im-

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periosa do capital-imperialismo que, aliás, formula suas justificativas exatamente pela falta ou ausência de alternativas. Cresceu a complexidade das interações econômicas e sociais, ao mesmo tempo que as características políticas predominantes procuram reduzir e constranger a capacidade consciente de intervenção humana.

Outras categorias procuraram dar conta das transformações ocorridas no último quartel do século XX: globalização, mundialização e neoliberalismo. Em graus diferentes ten-diam a afastar-se dos conceitos clássicos que, menos do que problematizados, foram deixados à sombra. O termo globalização (e, logo depois, “nova ordem mundial”, nele acoplado) foi amplamente utilizado para descrever de maneira supostamente neutra a crescente mobilidade e fluidez dos capitais, ainda potencializada após o término da Guerra Fria. Tornou-se um bordão repetido à exaustão, ora como miragem de um mundo de consumo sem conflitos, ora como terrível ameaça da competição internacional, impondo sucessivos “ajustes” e expro-priações. Demonstrava-se, assim, claramente seu teor ideológico e laudatório com relação ao capitalismo, considerado como ápice insuperável, o “fim da História”, procurando dissolver o conceito de imperialismo.

A categoria de neoliberalismo também continha um teor fortemente descritivo, aplicando-se a uma política, a uma ideologia e a práticas econômicas que reivindicavam aber-tamente o ultraliberalismo, porém com forte viés de denúncia. Tem como núcleo o contraste fundamental com o período anterior, considerado por muitos como “áureo” (keynesiano ou Estado de Bem-estar Social), o que reduz a percepção do conteúdo similarmente capitalista e imperialista que liga os dois períodos, assim como apaga a discrepância que predominara entre as condições de existência da população trabalhadora nativa dos países imperialistas e a dos demais. Já a categoria de mundialização do capital é mais elaborada. Procura dar conta do duplo fenômeno (globalização e neoliberalismo), com viés fortemente crítico, associando-a à expansão de um certo tipo de capitalismo (financeirizado), a um certo tipo de política e de ideologia (neoliberal) sem eliminar as características do imperialismo. François Chesnais (1996 e 2005), principal autor crítico a introduzir essa noção, justifica-o pela contraposição ao termo globalização, de origem anglo-saxônica, mantendo, porém, a amplitude mundial do fenômeno6. O termo, entretanto, retira a centralidade dos conceitos de capitalismo e de imperialismo, que cumprem ainda um papel central e, de certa maneira, deixa à sombra os procedimentos de intensificação da extração de valor, a partir da multiplicação de expro-priações. O uso do termo capital-imperialismo pretende deixar claro que, tendo se modi-ficado na virada do século XIX para o XX, o capitalismo passou a expandir-se sob a forma do imperialismo e, ao fazê-lo, agregou novas determinações. Seu prolongamento no tempo não significou seu congelamento. Bem ao contrário, sua expansão envolveu modificações substantivas na sua forma de atuação.

6 Klagsbrunn (2008: 28-9) critica o uso da expressão “mundialização financeira” por Chesnais, por diluir as determinações da esfera da produção na financeirização. Vale acrescentar que a produção se refere a um modo de existência, e não apenas ao processo imediato de produção econômica. Um debate sobre o histórico dessas categorias, seu alcance, importância e dificuldades, ainda que necessário, extrapola o objetivo deste capítulo.

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CApITAl-ImpERIAlISmo

Em primeiro lugar, a consolidação do isolamento soviético após a II Guerra Mundial exigia firmar política e economicamente alianças entre competidores no plano internacional, si-tuação razoavelmente original na história do capitalismo e que enfrentava resistências políticas tanto nos Estados Unidos (posto implicar novos e crescentes gastos, embora posteriormente tenham se convertido em enormes ganhos) quanto na Europa, por razões evidentemente diversas, pois alguns países pretendiam recuperar um protagonismo mais forte no cenário internacional. A aliança forjou-se entre forças heterogêneas, pois o peso do predomínio esta-dunidense se fez sentir imediatamente, desde as polêmicas entre Keynes e os representantes dos Estados Unidos nas primeiras formulações para a instauração das novas instituições no pós-guerra que começaram por volta de 1941, em plena guerra. O desequilíbrio em favor dos Estados Unidos seria ainda mais explícito ao final da guerra, com a deflagração do arse-nal atômico em Hiroshima e Nagasaki. A liderança estadunidense, francamente consolidada sobre o plano militar, corroboraria uma organização internacional imperialista explicitamente direcionada para conter tanto iniciativas revolucionárias nos planos domésticos, quanto as fortes probabilidades de guerras interimperialistas, deslocando-as para terceiros países.

Em segundo lugar, a bipolaridade exacerbada pela imposição da Guerra Fria expres-sava o efetivo temor da expansão comunista no Ocidente. Qualquer que fosse o teor real da existência social no bloco soviético, havia um contexto internacional completamente novo, no qual a possibilidade de processos revolucionários endógenos na própria Europa, espe-cialmente França e Itália, não era a descartar. A preservação da expansão capitalista passava a exigir alguma acomodação entre capitais no plano internacional e uma certa pacificação com relação às populações dos países centrais, asseguradas, num primeiro momento, através da crescente aproximação entre as economias europeias e estadunidenses.

A manutenção da institucionalidade eleitoral era a pedra de toque na distinção entre ”democracia ocidental” e o mundo soviético. Decorridos apenas vinte anos, já se verificava uma retração significativa da participação popular no processo eleitoral e o esvaziamento do potencial igualitário das democracias, como cínica e precocemente descrito por Schumpeter, em livro de 1942 (1961: 327-344). Essa retração popular foi defendida posteriormente por Lipset como benéfica, pois reservava as decisões relevantes às elites informadas (LIPSET, 1966), porém fortemente criticada por Macpherson (1978, passim). A social democracia, na Europa, permaneceu como importante força mediadora entre as pressões populares (e a dos partidos radicais e comunistas) e sua contenção institucional pelo liberalismo, posição assegurada por sua dupla inserção, sindical e política. Esse papel mediador seria disputado por outras forças, como a democracia cristã, ou por composições híbridas, que agregavam forte componente de pragmatismo. Em rápido sobrevôo, pode-se dizer que a resultante em médio prazo das intensas lutas sociais nos países europeus foi um disciplinamento fortemente institucionalizado das grandes massas nativas, amparado por significativa ampliação de direitos, sobretudo sociais.

Em terceiro lugar, a permanência e extensão da exploração imperialista em direção a outros países não constantes do bloco central também mudava gradualmente de caracterís-

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ticas. Generalizaram-se as lutas pela descolonização, mas a exportação de capitais através da crescente atividade produtiva interna e externa das multinacionais seguia como condição de um peculiar equilíbrio, interno e externo. Internamente aos países centrais, aprofundava-se a intensificação da exploração dos trabalhadores em seus espaços nacionais através de fortes saltos de produtividade, mas sua situação social assemelhava-se a uma bolha de bem-estar diante da condição da esmagadora maioria dos trabalhadores dos demais países. Externamente, gerava simultaneamente a rejeição anti-imperialista e a expectativa de desenvolvimento econômico e social similar ao dos países centrais e, em especial, dos EUA. A aceitação das diferenças nacionais entre trabalhadores, incorporada como ‘natural’ à expansão do capital no plano internacional foi um dos efeitos dramáticos do acerto intercapitalista então arquitetado.

A reconfiguração internacional resultante dessa expansão assimétrica e instável tornou ainda mais tenso e delicado o equilíbrio de forças para os blocos dominantes sob a Guerra Fria. Como resultante, ocorreria peculiar truncamento da internacionalização em curso, através do encapsulamento das lutas de classes no interior de cada país. As lutas sociais foram mais ou menos mantidas nos espaços nacionais – mesmo quando ocorriam com bastante vigor – contrastando com o âmbito de reprodução do capital, que tendia a expandir-se em cenário crescentemente internacional, ainda que limitado ao âmbito de cada “esfera de in-fluência” produzida pela Guerra Fria. Evidentemente, não se trata de uma fórmula estreita e rígida e vale lembrar as tentativas de extrapolar tais limites, em especial no caso da América Latina, a partir de Cuba, da ação de Che Guevara e do apoio a diversos movimentos revo-lucionários.

o CApITAl-ImpERIAlISmo E A gENERAlIzAção dE NoVAS FoRmAS políTICAS

Após 1945, e continuando até hoje, uma infinidade de entidades internacionais foi criada, sendo as pré-existentes redesenhadas sob crescente influência estadunidense, aden-sando internacionalmente modalidades originais de organização intercapitalista voltadas para a garantia da expansão da extração de mais-valor em escala crescentemente internacional, mas também para assegurar as condições socioeconômicas, políticas e culturais nacionais sob as quais tal extração teria lugar. Tratava-se de conter ativamente conflitos internos e contradições muitas vezes agudas através de procedimentos pragmáticos para a acumulação do capital e hiperideologizados, remetendo ao contexto internacional da Guerra Fria. Tais instituições, embora sob a égide estadunidense, agregavam um espectro mais amplo de países capital-imperialistas. O novo modus operandi reproduzia no próprio interior das agências internacionais uma dinâmica similar às “democracias de acionistas” ou censitária, com uma organização de tipo bancária ou creditícia, sendo os casos mais emblemáticos o Fundo Mo-netário Internacional – (FMI) e o complexo de entidades do Grupo Banco Mundial (GBM). Em recente e bem fundamentada pesquisa, na qual nos apoiaremos bastante a seguir, Pereira (2009) demonstra o forte predomínio estadunidense no GBM, inclusive apresentando as disputas internas nos Estados Unidos sobre estratégias a adotar. Não obstante, vale observar

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que a construção de instituições internacionais francamente dominadas pela potência esta-dunidense não significaram uma dominação unilateral imediata, gerando o que para muitos constituiu uma “tríade” composta pelos Estados Unidos, Europa e Japão. Essa consolidação de novas formas econômicas e de políticas organizativas gestadas no bojo do imperialismo precedente, mas entrelaçando desigualmente países e capitais, integra o que estamos deno-minando capital-imperialismo.

Mudava a escala: a abrangência das atividades de tais capitais se ramificava, espalhan-do-se mundialmente; as dimensões da concentração e da centralização (sempre com base no pequeno grupo de países imperialistas que detinham as ações decisivas nas empresas e nas instâncias políticas internacionais) atingiram patamares inusitados. A propriedade de tais conglomerados extrapolava a união íntima entre capitalistas e banqueiros, tornava-se cada vez mais fusional e abstrata, incorporando doravante não apenas bancos e indústrias, mas qualquer forma de capital, como os grandes circuitos de distribuição. Trata-se da formação internacional de massas crescentes de capital portador de juros, ou de capital que, resultando da exploração de mais-valor, a ela precisa retornar, porém sob modalidades que em muito excedem suas bases de exploração prévia, dada a massa impressionante de valor a valorizar. Impulsionava-se uma necessidade sem precedentes de abertura de fronteiras para o capital, de modo a expandir suas condições de reprodução ampliada. Entenda-se aqui, por frontei-ras, não apenas as pressões políticas para a abertura de mercados, mas a pressão exercida em diversas direções para apropriar-se de espaços geográficos e formas de existência sociais até então escassamente submetidas à dinâmica da reprodução capitalista. O movimento desta megaconcentração é triplo: tende a capturar todos os recursos disponíveis para convertê-los em capital; precisa promover a disponibilização de massas crescentes da população mundial, redu-zidas a pura força de trabalho, e, enfim, transformar todas as atividades humanas em trabalho, isto é, em formas de produção/extração de valor.

Do ponto de vista do trabalho, as multinacionais forjaram uma cooperação intensi-ficada, mas alienada, entre trabalhadores submetidos a profundas desigualdades, com regimes contratuais e direitos trabalhistas díspares, com bases culturais e estruturas sociais variadas em seus contextos nacionais, em muitos casos desprovidos de direitos políticos. Essa experiência geraria múltiplos efeitos, como segregações no interior da mesma estrutura empresarial, com o privilegiamento dos trabalhadores dos países-sede em detrimento dos demais países, nacionalidades que, por seu turno, também não eram tratadas de maneira equivalente, reproduzindo-se formas desiguais e combinadas de subalternização no interior das estruturas organizativas. Para tais grupos multinacionais, tornava-se uma normalidade a exploração de trabalhadores para as mesmas tarefas, porém desprovidos dos direitos predominantes nos países-sede. A competição entre trabalhadores típica da exploração do capital ganhava novas tonalidades, racistas, sexistas e nacionalistas. No sentido contrário, descortinavam-se, para extensos setores de trabalhadores, as profundas desigualdades que separavam as diferentes origens nacionais, conduzindo a reivindicações de direitos até então exclusivamente reservados aos países imperialistas. Mas, sob a intensa propaganda internacional, tais exigências – em função também da teia organizativa das burguesias locais – eram apresentadas sob uma outra configuração, a de que seria necessário romper o “atraso”, aprofundar a “modernização”, de

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maneira a poder contar com “benefícios” idênticos. Dessa maneira, deslocava-se o problema real, o da produção crescente de desigualdades no plano internacional, das quais dependiam em parte os próprios direitos conquistados nos países imperialistas, para os trabalhadores dos demais países, definidos como despreparados, deseducados e ineficazes, econômica e politicamente.

Ao lado da nova amplitude coligada do imperialismo, gestavam-se também formas or-ganizativas, educativas e pedagógicas para os representantes do grande capital, para os quadros econômicos, políticos e ideológicos dos diferentes países, dominantes ou não. O Grupo Banco Mundial foi uma das mais importantes instituições modelares, mas não a única. Por ser uma instituição internacional de caráter pretensamente público, assumiu a liderança e, sobretudo, contou com máxima visibilidade. Inúmeras outras entidades e associações entre empresários e governos se organizaram, à sombra, permitindo escasso (ou nulo) acesso aos pesquisadores. A criação, em 1955, do Instituto de Desenvolvimento Econômico, rebatizado, em 2000, de Instituto do Banco Mundial – (IBM), integrando o GBM, com o apoio das fundações Rockefeller e Ford, tinha como intuito explícito a formação de quadros políticos e técnicos nos países predominantes e nos países alvo das intervenções do Banco, para a elaboração e a execução de políticas. Inúmeros cursos foram oferecidos para participantes de governos que recebiam financiamentos do BM e “muitos ex-alunos ocuparam [posteriormente] os cargos de primeiro-ministro, ministro da fazenda e do planejamento” de seus países (PEREIRA, 2009: 32).

Este formato associativo desigual, mas formalmente democrático no plano interna-cional contribuiu para intenso desenvolvimento das forças produtivas com relativa pacificação entre as potências imperialistas ocidentais. Intensificava-se a produtividade, em parte devedora do crescimento do complexo industrial-militar e da permanência de alta belicidade contra terceiros países e assegurava-se alta lucratividade, aprofundando a concentração de capitais e agudizando a urgência de novos âmbitos – espaciais e sociais – de reprodução ampliada. A extensão plena de direitos sociais permaneceu restrita aos grupos nativos (isto é, àqueles com direitos de cidadania) dos países centrais da chamada tríade – a pequena Europa7, Estados Unidos e Japão – não atingindo os imigrantes. Buscava-se contrapor a democracia pelos e para os países centrais ao socialismo, contanto que as opções nela contidas não colocassem em risco o equilíbrio geopolítico.

Para este estudo, queremos ressaltar o quanto instituições deste tipo resultaram em formatos originais de organização econômica, política e ideológica. Não eliminavam conflitos internos, mas sua maior abrangência abriu modalidades de interconexão interimperialista até então desconhecidas.

7 Do grupo de países de alcance e porte desiguais, que originalmente integrou a Organização para a Coope-ração Econômica Europeia (OECE), estabelecida pelos Estados Unidos como base para o Plano Marshall e desigualmente aquinhoados com tais recursos: Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, França, Grã-Bretanha, Itália, Noruega, Portugal, Suíça, Suécia, Espanha e Turquia resultaria um ainda menor número, ou pequena Europa, que viria a formatar a atual União Europeia: Alemanha, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e Países Baixos. A Dinamarca, a Irlanda e o Reino Unido passaram a integrar a União Europeia em 1973.

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Para além dessas instituições oficiais e mais visíveis, como o GBM ou o FMI, o pro-cedimento se estendeu à generalização internacionalizada de outras entidades, com múltiplas funções. Algumas delas, mesmo com aparência e formato jurídico privado, respondiam dire-tamente às agências estratégicas de seus países de origem (militares, policiais, de espionagem, ou econômicas), tendo como papel disseminar modos de agir e assegurar recursos (mone-tários, políticos e mesmo militares) para seus aliados tanto nos países capital-imperialistas, quanto em outros países. Porém, nem todas as entidades respondiam de maneira imediata às agências estatais de seus países de origem, abrindo uma segunda vertente, que lhes permitia maior flexibilidade na defesa de certos interesses específicos e uma atuação mais direta para a coordenação de atividades de caráter muito diversificado, cujo padrão internacional copiaria a atuação das fundações estadunidenses (DREIFUS, 1986).

Gramsci já analisara o crescimento de aparelhos privados de hegemonia (sociedade civil) na Itália e insistira sobre sua estreita imbricação com o Estado. Já mencionara, inclu-sive, entidades como o Rotary Club ou o Lyons Club, de origem estadunidense, e elaborara brilhante texto sobre o americanismo, que envolvia para ele não apenas a generalização do fordismo no chão de fábrica, mas de um conjunto amplíssimo de práticas de persuasão, de autocontrole e de coerção, atingindo todas as dimensões da sociabilidade. A educação, ou a pedagogia, tanto em sentido escolar quanto, sobretudo, em seu sentido mais amplo – que abrange o Estado educador – assumia papel crucial, voltada a forjar homens adequados às formas de produção, de trabalho e de existência social reconfiguradas pela expansão do capital (GRAMSCI, 2000-2002, passim).

Na concepção de Gramsci, sociedade civil é parte do Estado ampliado em que se desen-volvem formas peculiares da luta de classes. Ora, as entidades internacionais que passaram a se disseminar no pós-guerra conservavam suas raízes nos países de origem, porém desenvolveram, inclusive por necessidade da crescente abrangência econômica e da dinâmica que tal amplitude impunha, uma maior mobilidade espacial, implementando técnicas de autonomização local sem perder a unidade de ação no plano internacional para diferentes áreas nas quais tinham interesses. Introduziram uma nova complexidade organizativa e novas tensões intra e entre as classes sociais, mas não podem ser identificadas de maneira imediata a uma pretensa sociedade civil internacional. Se não constituíram uma “internacional capitalista”, como provocativamente René Dreifuss designou a atuação das “elites orgânicas” do capitalismo transnacional, ocuparam certamente importantes espaços na luta de classes em âmbito internacional.

Adaptando conceituação proposta por Dreifuss (1986), considero que tais entidades assumiram o caráter de frentes móveis de ação internacional do capital-imperialismo, adqui-rindo relativa autonomia de atuação, embora ancoradas em seus Estados de origem. Eram abertamente sustentadas por generosas doações empresariais (e, em alguns casos, também governamentais), mas sem vínculos diretos e, portanto, podiam expressar interesses comuns de setores diversificados.

Agir enquanto entidades privadas não diretamente lucrativas, sem carregar o fardo das decisões governamentais de seus próprios países, permitia a difusão cosmopolita de certos interesses, de certas formas de agir e certas maneiras de pensar muito mais ampla e extensa do

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que se estivessem atadas aos acordos políticos internacionais ou às legislações nacionais que incidiam sobre atividades diretamente econômicas, vigentes para a instalação de empresas. Assim, fundações e entidades diversas, precariamente nomeadas de “não governamentais” (ONGs), envolviam think tanks, agências internacionais sob patrocínio mas não sob direção direta dos governos dos países capital-imperialistas, como as Fundações estadunidenses, por exemplo, ou associações internacionais recobrindo o interesse específico de setores do grande patronato inter-nacional, tal como a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP). O americanismo assinalado por Gramsci ganhava uma dimensão muito mais vasta e complexa, de caráter cosmopolita e, embora predominassem entidades de origem estadunidense, não se limitava unicamente a ela. Fomentavam entidades similares em terceiros países, atuavam como formadoras para entidades patronais locais, ainda que algumas vezes também experimentando tensões e contradições com as organizações burguesas locais e com governos de países dependentes.

Essas entidades correspondiam à expansão da socialização da produção, quer se destinassem a outros países capital-imperialistas quer se dirigissem a terceiros países, não porque fossem imediatamente defensoras de empresas específicas, mas porque forneciam os elementos pragmáticos, técnicos, gerenciais, culturais e programáticos de mediação para a atua-ção e expansão do capital-imperialismo, assim como eram mais ágeis e capazes de difundir padrões de atuação burguesa, padrões de consumo, padrões de sociabilidade, além de forjar novas associações interburguesas (incorporando elementos das classes dominantes dos países nos quais passavam a agir) correspondentes aos interesses que as empresas mantenedoras demandavam. E o faziam, seja do ponto de vista diretamente interessado, seja de um ponto de vista culturalmente e ideologicamente mais amplo, configurando estratégias associativas compostas formalmente por entidades similares, portadoras, porém, de recursos e de con-dições profundamente desiguais. Paralelamente às empresas multinacionais e às instituições internacionais oficiais, disseminava-se um padrão organizativo de cunho altamente prag-mático e pautado por uma lógica ficticiamente democrática, copiada do padrão acionário, estruturada em torno da participação regulamentada pelos maiores doadores (financiadores da entidade), mas assegurando certa possibilidade de participação e ascensão em seu inte-rior dos “acionistas minoritários”. Muito variadas, tais entidades promoviam novas carreiras cosmopolitas, promovendo os que demonstravam uma plena adaptação à sua finalidade: formar e disseminar militantes-ideólogos. Ademais, atuavam como centros internacionais de formação intelectual para uma crescente variedade de quadros necessários para a atuação econômica que, doravante, abrangia áreas muito mais extensas do que os padrões nacionais, envolvia culturas diferentes, ritmos diferenciados, que deveriam ser modificados ou integrados, configurando um aprendizado in situ de novo tipo, moldando comportamentos, ajustando-os aos padrões dominantes ou incorporando elementos originais, locais, de maneira seletiva.

O uso equivocado do conceito de sociedade civil para tais entidades repousa inteiramente em lastro liberal, por enfatizar um suposto isolamento entre tais associações e o Estado8. Dreifuss

8 Suposições como um Terceiro Setor, imune ao mercado e aos governos; ou de uma esfera privada, mas públi-ca, expressam a impotência para pensar teoricamente a totalidade. Realizam um esquartejamento analítico apressado de algumas evidências imediatas e, na maioria dos casos, apenas traduzem o óbvio interesse de apresentar-se como instâncias incontaminadas e constituídas de pura “boa vontade”.

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analisou algumas entidades estadunidense desde inícios do século XX, dando especial atenção às pioneiras, como os Round Table Groups e o Council on Foreign Relations. Demonstra como em entidades deste tipo, que ele apresenta como elos de uma “internacional capitalista”, se organiza uma estreita articulação entre os núcleos formuladores (que denominou “elites orgânicas” ou “córtex político”), as “unidades de ação”, com indivíduos contratados, formados e equipados para a intervenção em diferentes países e as “centrais de ideias e de pesquisas”, que agregam fundações formadoras, financiadoras para a formação em diversos países e think tanks. Apesar de formalmente estruturarem-se fora do aparelho de Estado, “sua atuação ‘supera’ a dos partidos, tanto na capacidade estratégico-política quanto na profundidade de suas ações. Poderíamos dizer: os partidos burgueses visam o governo; as elites orgânicas visam o Estado.” (DREIFUSS, 1986, p. 266, grifos do original). A formulação de Dreifuss é preciosa, e me permito expandi-la: a partir de certa escala de atuação, mais do que um Estado, tais entidades visam à conformação de Estados. Atuam no sentido de definir e disseminar mecanismos e regras comuns a seus interesses, ainda que aprofundando a dependência e a desigualdade entre Estados; mediam e procuram converter a cifras calculáveis os conflitos burgueses interpares; treinam, educam e incorporam de maneira desigual setores burgueses de diferentes países e, finalmente, para neutralizar os setores populares e as lutas (muitas vezes similares) que emergem nos diferentes países, estabelecem protocolos de atuação, tanto para o convencimento quanto para a repressão, assim como estabeleceram procedimentos refinados para redirecionar tais reivindicações.

O ano de 1968 expressou, de forma difusa, a emergência do descompasso entre a intensificação da internacionalização do capital, com seus efeitos sociais múltiplos, e o empenho em manter encapsuladas as lutas sociais em âmbito nacional ou mesmo subna-cional. Irrompiam então reivindicações cujo escopo somente faria plenamente sentido num contexto internacional de lutas de classes de teor anticapitalista, pois não eram mais solúveis ou solucionáveis nos âmbitos nacionais. Mais além, o pós 1968 demonstraria que mesmo as lutas mais árduas e mobilizadoras, se isoladas e reduzidas ao nível infranacional ou na-cional, poderiam ser convertidas em processos adaptativos, reforçando o cosmopolitismo9 já em curso, chegando mesmo a denunciar o internacionalismo como nefasto. O aspecto revolucionário de 1968 reside menos no que efetivou concretamente em cada país e mais na exigência de internacionalização que vislumbrou, mesmo sem conseguir elaborar um novo formato popular, apto a associar diferentes dinâmicas nacionais, em face da internacionali-zação acelerada do capital. A resultante contrarrevolucionária residiu no reencapsulamento de enorme volume de reivindicações sociais claramente insolúveis – mas inelimináveis – em âmbitos cada vez mais estreitos, ao lado de sua expressão cosmopolita através de agências internacionais garantidoras da ordem.

O que permitiu bloquear esse aspecto revolucionário? Não há muita originalidade nesta resposta: a efetiva internacionalização dessas lutas foi contida pelo contexto da Guerra Fria. Apesar do consenso sobre a dimensão internacional dos movimentos sociais em 1968,

9 Gramsci emprega a expressão cosmopolitismo em diversos contextos. Diferentemente do internacionalismo, o cosmopolitismo derivaria do papel de centralização medieval desempenhado pela Igreja. Em seguida, adotaria um perfil idealizado, adotado por elites dominantes internamente, porém incapazes de forjar um espírito nacional-popular, este sim efetivamente internacionalista. (GRAMSCI, CC, v. 2, 2001: 80).

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poucos são os que tratam o tema a partir do ângulo da internacionalização do capital. É corriqueira a ênfase na internacionalização de novos modos de comportamento, algumas vezes expressando certa surpresa10. A meu juízo, 1968 expressaria ao mesmo tempo o ápice da disjunção promovida pela Guerra Fria e apontaria para sua caducidade, do ponto de vista do próprio capital.

As entidades internacionais de trabalhadores – sindicais ou partidárias – estavam encapsuladas na dinâmica da Guerra Fria, o que simplificava a tomada de decisões (pois os lados estavam previamente demarcados), mas levava a desconsiderar as evidências que a extrapolavam. A Guerra Fria, apesar de referir-se ad nauseam a uma geopolítica planetária, obscurecia o pano de fundo internacionalizante que originava tais lutas. As questões emergentes apareciam como inoportunas, lidas pela ótica de interpretações rotinizadas. Apesar disso, organizações populares, associações e partidos políticos, mesmo embebidos nessa rotinização, levaram adiante lutas anti-imperialistas de forte caráter anticapitalista e tiveram papel rele-vante. No entanto, perdiam acuidade em função do atrelamento na defesa do bloco soviético e da desagregação que as divergências internas promoviam.

Diferentes revoluções tensionaram os diques da Guerra Fria, como a Revolução Chinesa, a Revolução Cubana, a Revolução Cultural chinesa, a luta vietnamita, as inde-pendências africanas da década de 1970 e mobilizaram grande espectro de lutas no plano internacional. Não obstante seu enorme papel, reafirmavam o alinhamento internacional e tenderam a retroceder para cada âmbito nacional, sem a instauração correlata de formas de luta comuns bem mais amplas, capazes de fazer frente ao novo espectro de dominação/exploração tecido pelo capital-imperialismo. O salto na internacionalização do capital, carac-terístico do capital-imperialismo geraria descontentamentos populares sem canais organizados de expressão internacional.

Esse é o caso de uma série de lutas dos anos 1960 e 1970, como as lutas por moradia (ou lutas urbanas), as revoltas contra hierarquias burocráticas (nas universidades e empresas), o antirracismo, o antissexismo, e o ambientalismo. Uma parcela das lutas populares urbanas foi segmentada à esquerda e à direita do conjunto das reivindicações que incidiam sobre a própria sociabilidade do capital e reduzida a dimensões infranacionais. Tornaram-se um ícone dos intelectuais reconvertidos nos anos 1970, que enfatizaram suas singularidades e cor local, porém contribuíram para congelá-las em sua suposta novidade, passando a compor um vasto mosaico de reivindicações tratadas de maneira pontual e localizada. As revoltas anti-hierárquicas tiveram, num primeiro momento, um destino similar, mas de forma peculiar: foram tratadas como “comportamento jovem” e, como tal, aceitas setorialmente como sinais dos tempos, admitindo-se novos vestuários, cores, cortes de cabelos, gostos musicais, formas de tratamento, etc. A entorse de valores morais predominantes (que continham forte teor de hipocrisia) tornou-se aceitável nos limites da valorização do capital, através da produção de inúmeras novas mercadorias para o mercado jovem internacional, inclusive culturais. O redirecionamento efetivo das lutas anti-hierárquicas foi bastante posterior e traumático, pelo

10 Há interessante relato de Hobsbawn (2002), em que o autor revela o inesperado das distâncias culturais entre as gerações.

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viés do desmantelamento de direitos universais redefinidos como “resquícios burocráticos”. Outras reivindicações extrapolavam de maneira imediata os âmbitos nacionais, como as lu-tas pacifistas, antinucleares e as ecologistas. Outras, ainda, tinham um perfil aparentemente difuso, como o antirracismo e o feminismo. Todas essas questões, mesmo considerando-se as especificidades de cada tipo de reivindicação, vinculavam-se diretamente à amplitude da internacionalização do capital em curso. Apenas um breve comentário sobre o encapsula-mento das lutas antirracistas: a conquista, necessária e legítima, da igualdade jurídica para todas as origens étnicas em cada espaço nacional, além de escassos direitos compensatórios focalizados que serviriam de modelo para o estabelecimento de diques de contenção nacional para este tipo de luta, somente pode adquirir todo o seu sentido na luta contra a criação de inúmeros e multiformes racismos através da desqualificação regular de trabalhadores das mais diversas procedências. Deslocadas do terreno da exploração e, portanto, da igualdade no plano internacional, as lutas antirracistas enfrentam ainda hoje o risco de sua banalização, tantos são os grupos atingidos, tão diversas são suas formas, tão urgentes as intervenções pontuais, tão recorrentes suas manifestações. A concorrência internacional entre os trabalhadores se acirrou, perpetuando no século XXI os campos de refugiados, o acúmulo de imigrantes nas fronteiras, a morte banalizada (e supervisionada a distância) de trabalhadores em frágeis embarcações procurando escapar de múltiplas misérias, multiplicando-se os muros e o as-sassinato corriqueiro de imigrantes, como nos Estados Unidos. Dissemina-se um racismo multiforme e viscoso.

Se a Guerra Fria foi o berço do nascedouro do capital-imperialismo, seu término a manifestação contundente das dimensões das suas novas condições e contradições. Ofi-cialmente, o término é datado entre a derrubada do muro de Berlim, em finais de 1989 e a dissolução da União Soviética, em finais de 1991. No entanto, a pressão dos capitais concentrados para incorporar novos espaços para a sua valorização já vinha alterando seus contornos desde inícios da década de 1970. Vale lembrar o ingresso da China na ONU, em 1971, a visita de Nixon a Beijing em 1972 e o fim do embargo comercial, iniciando a longa e persistente abertura chinesa a capitais externos, intensificada, sobretudo a partir de 1978, além do ingresso espetacular da Pepsi-Cola na União Soviética em 1974. A pressão dos capitais acumulados tornara caduca a Guerra Fria, mantida, porém, na exasperação de um anticomunismo pragmático, de um lado da fronteira, e na escalada armamentista, em ambos os lados.

Na década de 1970, as condições econômicas, políticas e culturais já exibiam os contornos críticos do capital-imperialismo. Economicamente, as corporações multinacionais ocupavam agora o mundo, impondo mais necessidades de valorização e capturando sempre mais recursos, refletindo-se numa megaconcentração que extrapolaria os limites das empresas e bancos (eurodólares, petrodólares, etc.). Essa nova escala fomentou a geração de proprie-tários descarnados, acionistas e outros. Politicamente, já estava dilatado internacionalmente o formato organizativo cosmopolita e encapsulador, que acoplava entidades econômicas, de ação direta e cultural, voltadas para a extensão da sociabilidade do capital. Culturalmente, estava em curso a enorme difusão mediatizada, propulsada pela generalização das televisões, que ecoava – sempre contraditoriamente – os redirecionamentos em curso. Ademais, estes

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contavam com um lastro intelectual fortemente fragmentário, resultante do desconcerto perante as formidáveis lutas da década de 1960 e de progressivo abandono de expectativas revolucionárias, em boa parte financiada pela malha mercantil-filantrópica em franca ex-pansão. A gestão McNamara, no Banco Mundial, de 1968 a 1981, havia introduzido uma peça-chave, inaugurara a “pobretologia”, com o fito de eliminar as análises totalizantes sobre as condições internacionais de produção da desigualdade e estimulando financeiramente estudos limitados a mensurá-la, capturando-a como alvo prioritário de atuação “coletiva” mercantil-filantrópica e de expansão do capital-imperialismo.

As formidáveis contradições do capital-imperialismo vinham à tona, explicitando as disputas internas, através de sucessivos golpes, demonstrativos da exasperação do impulso expropriador avassalador do capital sob o predomínio monetário e do crescimento das ten-sões internas entre os países capital-imperialistas, impulso doravante voltado para fora e para dentro. Toda a formidável escalada da acumulação e da concentração de capitais decorrera da arquitetura elaborada em função da Guerra Fria, já ultrapassada na prática. Envolvera uma crescente interconexão dos processos de produção, reforçando os elos entre os países interimperialistas e entre eles e os demais, sempre assimétrica em favor dos Estados Unidos e jamais homogênea ou estável.

As lideranças políticas e econômicas do país preponderante, os Estados Unidos, passaram a atuar em direções contraditórias, procurando assenhorear-se totalmente do pro-cesso e, ao mesmo tempo, aprofundar a integração desigual das forças produtivas, através da plena circulação internacional de capitais que, por seu turno, intensificavam as múltiplas expropriações. Um controle imperial absoluto, de tipo colonial, desfaria o papel decisivo dos diferentes Estados sobre suas respectivas forças de trabalho, trazendo para o interior dos Estados Unidos uma enormidade de conflitos mantidos a distância pelo agenciamento organizado ao longo dos anos precedentes e ameaçaria o próprio capital-imperialismo, pelos custos e tensões que imporiam aos estadunidenses; o aprofundamento da socialização do processo produtivo nos termos vigentes resultava na manutenção (e não eliminação) dos demais países capital-imperialistas, além de induzir brechas para irrupções de novos países industrializados, procurando agregar-se ao grupo capital-imperialista, trazendo novas fontes de instabilidade interburguesa.

Fraturas e crises de diversas ordens se sucederam desde então no plano internacional, como a ruptura unilateral pelos Estados Unidos, em 1971, do acordo de conversibilidade firmado em Bretton Wood; o aumento generalizado das taxas de juros, estrangulando os países devedores na virada de 1973/1974, ocasião da chamada primeira crise do petróleo11; o redirecionamento da economia realizado a partir da nomeação de Paul Volcker para a presidên-cia do Federal Reserve, sob o governo Carter, em 1979, voltada para a contenção da inflação e liberação as taxas de juros (COSTA, 2008, p. 155), reforçando ainda mais o jugo sobre os devedores, o que estaria na base do Consenso de Washington, uma década depois.

11 Mandel alertava que, entre 1974 e 1975, ocorreu a primeira crise generalizada da economia capitalista inter-nacional no pós-segunda Guerra Mundial, com uma “recessão que atingiu simultaneamente todas as grandes potências imperialistas” (1985: 9).

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Também no interior dos Estados Unidos e dos demais países capital-imperialistas acirravam-se as lutas intercapitalistas e ocorriam verdadeiros golpes de força econômicos, empresariais e sociais que, acima de tudo, expressam a pressão por valorização do capital, cada vez mais indiferente a cada proprietário singular. Nicolas Guilhot, em pesquisa com forte cunho etnográfico, mostrou como Wall Street, o centro financeiro dos Estados Unidos, era dominado ainda na década de 1970 por estabelecimentos bancários que conservavam relações duradouras e estáveis com seus clientes, ligados por interesses e por uma forte “co-nivência social” (GUILHOT, 2004: 48). Nos estabelecimentos bancários mais tradicionais, clientes corporativos lá estavam há sete ou oito décadas; ser banqueiro era algo como herança de família. Segundo Guilhot, os proprietários e funcionários dos altos escalões dos bancos assemelhavam-se a integrantes de uma aristocracia, com uma expressiva homogeneidade social entre eles. Como um clube privado, seus membros eram recrutados no seio da grande burguesia, compartilhando modos de se expressar, vestir, apresentar-se e, até mesmo, vigorava uma normatização não escrita para as formas da competição entre eles, em parte reiteradas e aprendidas numa espécie de “distinção desportiva” que reservava aos banqueiros os esportes aristocráticos. Para Guilhot, esse velho mundo inicia seu declínio em 1970, bem antes por-tanto das desregulamentações, com o crescimento dos fundos de investimento. Em minha avaliação, o imperialismo dissolvia-se no capital-imperialismo que gerara e nutrira.

A hipótese geral formulada por Guilhot concorda com o argumento que procuro esboçar quanto à lógica e à origem histórica do processo atual:

[...] a verdadeira força motriz da financeirização [está] na poupança dos anos de crescimento, que se acumula nos fundos de pensão, nos fundos comuns de investimento e em outros investidos institucionais [compa-nhias de seguro], onde ela se transforma em capital e demanda liquidez e rendimento. Esse grau de concentração sem precedentes lhe permitirá rapidamente impor suas reivindicações pela via da força. (GUILHOT, 2004: 41).

O volume de capitais concentrado em poucas mãos via-se estorvado pelos próprios canais que permitiram seu crescimento. O capital-imperialismo a cada dia mais tentacular apoiava-se nas mesmas instituições criadas no pós-guerra e, ao integrar os setores-chave, decisivos, nas entidades internacionais, havia assegurado as duas teias: a diretamente pro-prietária, que entrelaçava crescentemente proprietários internacionais de grandes corporações multinacionais (através de participações de diversas ordens) e proprietários consorciados de capital monetário, através de múltiplas instituições, como bancos, fundos, seguradoras, etc, com fortes tendências à internacionalização e sustentados por instituições igualmente econômicas de âmbito internacional. A segunda teia foi tecida em torno das frentes móveis de ação internacional, estreitamente articulada à primeira e dela dependente, mas com razo-ável autonomia e capacidade de intervenção estatal muito além de seus Estados de origem. Isso significava que não apenas a configuração dos Estados fora modificada, mas também a própria forma da política.

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Os conglomerados em expansão – e sua lógica interna fortemente corporativa – tor-navam-se lentos e pesados para as exigências da acumulação na nova escala. Tratava-se de assegurar o papel dos proprietários – ou seja, garantir a centralidade máxima da valorização do valor – sobre qualquer outra instância, inclusive a empresa. Assim como o imperialismo não eliminou a concorrência interimperialista, também o capital-imperialismo não eliminaria as grandes corporações, porém modificaria seu perfil, adequando-o ao de centros internamente competitivos de produção de valor, ou de valorização do capital. Os conglomerados, em seu formato anterior, poderiam configurar também um risco para o capital, dada a altíssima concentração de trabalhadores que promoviam. Em vários sentidos, as revoltas de 1968 e dos anos seguintes soaram o sinal de alerta. Em finais da década de 1970, com Thatcher na Inglaterra e Reagan (1981), nos Estados Unidos, o ataque aberto aos sindicatos mais combativos dos países centrais contava com a experiência da concorrência internacional imposta por essas empresas e frentes móveis aos trabalhadores. A experiência da exploração internacional e combinada do trabalho e a concentração faraônica de recursos mostravam que o capital-imperialismo poderia simplesmente abandonar meios de produção (fechar e abandonar fábricas), através das deslocalizações. Mais uma vez, o entrelaçamento entre ca-pitais de origens distintas (industrial, serviços, comércio, bancos, fundos, etc.) se evidencia: as desregulamentações então implementadas favoreciam a circulação geral de capitais, para qualquer que fosse o seu destino, especulativo ou outros. Quase simultaneamente começa outro processo, que culminará nas décadas de 1980 e 1990, com a pulverização de várias empresas (abertura de capitais em bolsas de valores) e o seccionamento de alguns conglo-merados em empresas concorrentes, sem perda do reforço da concentração da propriedade de capitais. Os mesmos proprietários poderiam desmembrar empresas, modificar seu perfil para agudizar e exacerbar a exploração do trabalho, sob qualquer formato12 e promovendo a máxima extração de valor, de sobretrabalho e, por fim, atuando também freneticamente na especulação. Evidenciava-se a propriedade fundamental, a propriedade do capital tout court, em seu ponto máximo de concentração, expressa pelo predomínio do capital monetário (por-tador de juros). Se a distância entre a propriedade e a atividade concreta revela-se doravante abissal, por outro lado proprietários “descarnados”, aparentemente ausentes, e seus prepostos, tornam-se rigorosíssimos controladores da atividade central ao qual destinam “seus” capitais: valorizar-se sem levar em conta nenhuma outra consideração. Contrapõem-se crescentemente à totalidade da humanidade, a qual lançam em sucessivas crises.

Todo o conjunto da vida social se torna subordinado agora não apenas à empresa – e os grandes conglomerados subsistem, em muitos casos ainda muito mais poderosos – mas à lucratividade. A imensa escala da concentração não resulta apenas na condensação da pro-priedade sob a forma da empresa, ou mesmo do conglomerado multinacional: transborda

12 Naomi Klein (2006) realizou enorme pesquisa sobre a aparente desrrealização das empresas, tornadas apenas marcas (”blends”) que nada mais têm a ver com uma atividade específica, e se dedicam a qualquer forma de atividade lucrativa. Menos do que um fenômeno pós-moderno, tais empresas expressam o predomínio da pura propriedade, não só assenhoreando-se de mais-valor gerado em qualquer tipo de atividade, em qualquer lugar do planeta, mas fomentando a produção acelerada de expropriações e de necessidades, mesmo se humana e socialmente inúteis ou perversas. A aparência pós-moderna apenas oculta a transformação das empresas em pólos voláteis de extração acelerada de valor e de valorização do capital sob qualquer modalidade.

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para todas as atividades da vida social e, onde não existem, precisa criá-las, como, por exemplo, através da expropriação de formas coletivas de existência para convertê-las em produção de valor (saúde, educação); da expropriação da própria condição biológica humana para convertê-la em mercadoria, já dominantes nos transgênicos e nas patentes de vida, mas apenas iniciando-se sobre a própria genética humana. Ambos os exemplos envolvem gigantescas empresas, porém, ao lado delas, e à sua sombra (posto que com os recursos concentrados através de inúmeras formas creditícias) expande-se o médio, o pequeno e até mesmo o autoempresariamento; as jornadas de trabalho tornam-se ilimitadas, muitos trabalhadores recebem aparentemente por produção (na fórmula clássica de Marx, o trabalho por peças), mas desprovidas de direitos e apresentados como se não mais fossem trabalhadores; a oferta expandida de crédito impõe aos seus tomadores não apenas a tarefa de atuar como capitalistas-funcionantes, mas também a de atuar como geradores de mais-valor em qualquer escala, da menor à mais extensa.

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Ironias da crise: de bengazi a Fukushimadespolarização, fi m do crescimento global, rebeliões periféricas, crises ideológicas

Jorge Beinstein*

No primeiro trimestre de 2011, dois acontecimentos sacudiram o planeta: a rebelião árabe e o Tsunami sobre o Japão, que resultou numa crise nuclear.

Em princípio, pode-se dizer que seriam dois fenômenos inesperados, sobretudo o segundo. No entanto, é possível inscrevê-los no processo de crise de longa duração do sistema global e, em consequência, apresentá-los como previsíveis, como acontecimentos altamente prováveis, principalmente, se retrocedermos alguns anos, à época do auge neoliberal e, mais ainda, ao período recente da orgia fi nanceiro-militar simbolizada por George W. Bush e seus falcões. O mundo burguês anterior ao “boom” econômico de 2007-2008 rumava eufórico e triunfalista em direção a uma ampla gama de crises (energéticas, fi nanceiras, sociais, ambientais, políticas, etc.), cuja convergência assinalava a proximidade de um decisivo ponto de infl exão, de mudança rápida para uma era turbulenta.

o dESpERTAR áRAbE

A rebelião árabe vem causando uma grave perturbação geopolítica num espaço que até pouco tempo era integral-mente dominado pelo Ocidente. Isso acontecia através de uma pragmática combinação de regimes, consolidada sobre as ruínas da Guerra Fria (das petromonarquias do Golfo Pérsico até os despotismos «republicanos» do norte da África, passando pela ocupação do Iraque).

Agora, os Estados Unidos e seus aliados ocidentais tentam recompor seu esquema regional de dominação. Por meio de um jogo complexo, onde em certos casos, propõem representação aberta aos protestos populares ou a gatopar-

* jorge beinstein é Professor da Universidade de Buenos Aires e autor de Capitalismo Senil, Rio de Janeiro, Record, 2001.

Tradução: Maria Fernanda M. Scelza

Revisão Técnica: Sofi a Manza-no

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dização das rebeliões (“transições negociadas”), promovendo mudanças superficiais, deixando, assim, intactas as estruturas existentes. Em outros casos, forçam inclusive por via militar, alternativas controladas.

Este fenômeno se agrega à já difícil situação dos Estados Unidos na área islâmico-asiática, deteriorada severamente com o fracasso das guerras no Iraque e Afeganistão-Paquistão, além da permanência do Iraque como potência islâmica regional (não árabe) hostil ao Ocidente. Não é demais recordar que nesse espaço asiático vive o grosso dos muçulmanos, cuja massa total representa um quarto da população mundial.

Mais além das manobras táticas em curso, dos êxitos ou das derrotas parciais, o ocorrido marca pelo menos um afrouxamento dos laços de dominação imperialista na região. Dessa maneira, reforça a tendência à despolarização global, ou seja, declinação do sistema imperial planetário, estruturado em torno dos Estados Unidos.

A rebelião árabe aparece como uma avalanche democrática que transborda as estruturas de submissão, que eram, até muito pouco tempo, consideradas estáveis pelos especialistas ocidentais. Mubarak, no Egito (30 anos no poder), herdeiro-degenerado da revolução nasserista, da qual participou em sua juventude, aparecia como um déspota intocável, apoiado num gigantesco aparato repressivo, igual ao de Bem Alí, na Tunísia (23 anos no poder), Abdullah Saleh, no Iêmen (32 anos no poder), Al Assad pai e filho, na Síria (40 anos no poder) ou Kadafi, na Líbia (42 anos no poder). Todos eles se viram enfrentados pela maré popular. Nos casos do Egito e Tunísia, o Ocidente conseguiu manipular o estabelecimento de governos de transição (baseados no afastamento dos antigos déspota-amigos), dando-lhes tempo para tentar recompor seus mecanismos de controle. Já no caso da Líbia, isso não foi possível. Então, intervieram militar-mente, tratando de forçar um novo sistema de poder submetido aos seus interesses.

Porém, a rebelião árabe não se reduz a esse espaço étnico-geográfico e nem ao objetivo de democratização política. Seu caráter transnacional ameaça estender-se até ao conjunto da África, até as zonas islâmicas não árabes da Ásia Central e alenta rebeldes na China (futura candidata a uma “inesperada” enxurrada de protestos populares). Por baixo das bandeiras democráticas emerge, de maneira bastante visível, o rechaço à concentração de rendas, à marginalização das classes baixas, ao agravamento da pobreza dos mais diferentes setores da sociedade, consequências evidentes da globalização.

No contexto do aprofundamento da crise mundial, as exigências combinadas entre de-mocracia e justiça social formam uma séria ameaça para esses capitalismos subdesenvolvidos. O fantasma do anti-capitalismo até agora invisível, pode chegar a irromper em algum momento futuro, de maneira tão grande e surpresa como o ocorrido agora com a onda democrática. Sem dúvida, derivará, naturalmente, desta última, aparecendo como ruptura interna (a respeito das elites dominantes locais) e externa (a respeito do sistema imperialista).

Na realidade, não se trata de duas rupturas potenciais convergentes, mas sim de uma única ruptura anti-capitalista possível. Assim ocorreu com as velhas revoluções populares radicais no início do século XX, começando com a Rússia, em 1917. Com ela, demonstrou-se que a reprodução mundial heterogênea do capitalismo (correlação de pólos imperiais e zonas

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satélites subdesenvolvidas) ao entrar em crise, cria as condições para sua superação revolucio-nária. E esta crise é muito mais grave que a de começos do século XX. Nos tempos de Lênin, era o começo da degeneração financeiro-militarista do sistema, agora é sua transformação num processo de decadência geral e acelerada (por enquanto, teoricamente), onde o grande tema do pós-capitalismo radical é muito mais radical que seu antecessor do século passado.

A primeira onda periférica democratizante deste século ocorreu na América Latina, na década passada, e não superou os limites do capitalismo. Isso porque este, ainda que em franca deterioração global, pode oferecer bons preços às exportações primárias até chegar à euforia de 2007-2008, cujos efeitos, todavia, não se dissiparam e porque o Ocidente seguiu articulando o planeta (com crescentes dificuldades). Além disso, nesse momento, o capitalismo latino-americano conservava sólidos baluartes internos (institucionais, ideológicos, políticos, empresariais, etc.), que permitiram conter a avalanche popular dentro dos limites do sistema. Isto inclui os governos mais radicalizados, como da Bolívia, Venezuela e Equador, em que pese os discursos mais ou menos socialistas e as mobilizações plebéias que nunca transpassaram, na prática, as fronteiras e os mecanismos de reprodução do capitalismo.

A aspiração máxima das potências ocidentais é que o mundo árabe regresse, o quanto antes (com o rosto renovado), à situação colonial anterior às revoltas populares. A aspiração mínima seria uma saída de tipo latino-americana, progressista, porém, em última instância, controlada, jogando o jogo da reprodução da globalização capitalista, contendo excessos subversivos. Em suma, cedendo espaços de autonomia, mas preservando a natureza burguesa dessas sociedades.

No entanto, o panorama mundial atual é muito diferente de começos ou meados da década passada. Os países centrais passam por uma crise muito profunda e, frente a eles, se apresenta um panorama de estancamento ou recessão. Sua deterioração cultural e insti-tucional corrói rapidamente as bases de sua hegemonia planetária. Esta situação começa a afetar as chamadas periferias emergentes e a periferia em geral, onde as tragédias habituais do subdesenvolvimento começam agora a se somar aos impactos das turbulências comerciais e financeiras, além das consequências de deterioração da legitimidade ideológica do capitalismo como realidade universal.

É provável que o progressismo árabe tenha chegado demasiado tarde, perseguido pelo desespero imperial e pela desestruturação (ideológica, econômica, institucional) de seus sistemas burgueses locais. O êxito desses sistemas burgueses, de duração incerta, depende da capacidade das forças populares para construir alternativas pós-capitalistas (a era neoli-beral – despotismos internos – e seu operativo de terra arrasada, de degradação integral da sociedade, contribui de maneira decisiva).

FukuShImA

O desastre japonês aparece como um fenômeno produzido pela fatalidade, mas que não pode ocultar as culpas, o descontrole do hiper-desenvolvimento. Em princípio, não teria nada

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a ver com a rebelião do subdesenvolvimento árabe, ainda que não seja difícil detectar um laço entre ambos os sucessos: o desenfreado crescimento energético do capitalismo industrial, que condenou o superdesenvolvido Japão a cobrir seu território, zona de alto risco sísmico, com uma multiplicidade de centrais nucleares, e converteu o mundo árabe, centro de suas principais economias, numa área subdesenvolvida consagrada à extração intensiva de petróleo.

E assim, as duas ou três últimas décadas foram para o mundo árabe um período centrado na depredação energética e no desastre social, que culminou com a rebelião popular de 2011. Para o Japão, tais décadas significaram a persistência de uma crise prolongada, amortecida pela hipertrofia financeira, o consumismo e os gastos públicos cobertos pela dúvida pública. Em ambos os casos, a lógica determinante do capitalismo global se expressou como exacerbação de seus piores vícios, como a fuga para a irracionalidade.

O Japão, que no passado, não tão distante, era a segunda potência econômica do mundo, é um exemplo que antecipa o próximo esgotamento europeu-norte-americano. Perseguido por uma crise de super-capacidade produtiva (ou superprodução potencial), possui uma longa história de estímulos estatais e consumismo ascendente que não conseguem tirá-lo da prostração em que caiu nas últimas duas décadas. Não colapsou porque seu principal cliente comercial, os Estados Unidos, seguiu absorvendo exportações industriais japonesas e, também, porque em sua área geográfica irromperam mercados em expansão, como os da Coréia do Sul, Taiwan, Indonésia, Filipinas, Tailândia, e, finalmente, China.

Porém, no início de 2011, os níveis de endividamentos público e privado (somando uma cifra equivalente a 470% do Produto Interno Bruto) fizeram soar os alarmes dos círculos dominantes globais. A dívida pública não deixou de crescer desde que a economia se estancou há duas décadas. Em 1989, equivalia a 50% do Produto Interno Bruto. Hoje, chega a 200%. Até o presente, vem sendo financiado com a poupança interna, o que produziu uma recessão que, possivelmente, desembocará numa grave crise. Já antes do Tsunami, alguns especialistas começaram a utilizar o termo “colapso”1.

Os fundos públicos obtidos com dívidas foram despejados em diversas formas de “es-tímulos” (obras públicas faraônicas, subsídios a empresas e consumidores, etc.), chegando a saturar quase completamente a capacidade de absorção da economia. Por outro lado, os correntistas das poupanças eram incitados a consumir mais e mais (ou seja, a poupar cada vez menos) com o agravante de que o Estado, com a finalidade de impulsionar os investi-mentos, foi reduzindo as taxas de juros. Nos últimos quinze anos, tais taxas foram mantidas abaixo dos 2%, apontando para zero. Em consequência, a taxa de poupança dos japoneses foi decrescendo em, aproximadamente, 14% da renda disponível em começos dos anos 1990 até 2% ao menos. No mesmo período, a massa total de poupança interna baixou de 40 bilhões de ienes a 10 bilhões. Até 1990, cerca de 20% das receitas fiscais do Estado eram destinadas ao pagamento dos juros de dívida pública. A cifra subiu até 40% em 2000 e, em 2010, chegou a 60%2. Enquanto isso, a taxa de crescimento econômico anual foi girando

1 James Quim, When Japan Collapses, Financial Sense, 16 Sep 2010.2 Ibiden.

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em torno da linha descendente, dos altos níveis da remota época do “milagre japonês” até as recentes “expansões” raquíticas, oscilando em torno do número zero, e antecipando uma sucessão de cifras negativas.

O círculo vicioso do endividamento em que entrou o Japão há duas décadas condu-ziu, teoricamente, à bancarrota. Quando observamos a dinâmica atual dos processos de endividamentos-estímulos com rendimentos decrescentes em termos de crescimento do PIB em países como os Estados Unidos ou a Inglaterra, ampliamos a perspectiva ao conjunto das economias centrais. Assim, facilmente chegaremos à conclusão de que o passado japonês, nos últimos vinte anos, é um manual muito útil para entender o presente desses países.

É neste contexto de decadência japonesa que devemos localizar a tendência irracional que derivou a crise nuclear.

Em 2007, aparecia no Herald Tribune um artigo de Ishibashi Katsuhiko, professor da Universidade de Kobe (Japão) e integrante da Comissão de Notáveis, encarregada de moni-torar os sistemas de segurança das centrais nucleares japonesas3. No artigo, que teve grande difusão internacional (ainda que não tenha sido o deflagrador de um escândalo midiático), Katsuhiko denunciava o grave risco corrido pelo Japão ante as centrais nucleares não prepa-radas para resistir a impactos sísmicos de alto nível, inevitáveis nesse país.

Porém, as denúncias não tiveram nenhum efeito nas decisões do governo e, muito menos, nas do TEPCO, principal empresa privada encarregada da gestão das ditas centrais. Katsuhiko acabou renunciando à Comissão de Notáveis, como forma de protestar ante a adesão de seus membros que promoveram uma espécie de bloqueio privado-estatal à infor-mação sobre o que realmente estava acontecendo.

Não foi esta a única denúncia importante. No entanto, a conjunção entre corrupção política, voracidade empresarial e cumplicidade dos meios de comunicação fez com que a marcha rumo ao desastre continuasse seu curso, revestida por suculentos benefícios e subornos. A lógica do lucro capitalista foi superior ao senso comum, em meio a um clima de degradação generalizada das elites japonesas no vórtice dos negócios financeiros globais.

FIm do CRESCImENTo globAl, dECAdêNCIA do SISTEmA

Por baixo da cadeia energética que vincula a rebelião árabe com a crise nuclear japonesa, estende-se uma espessa trama que inclui e explica de maneira mais ampla, ambos os fenôme-nos, tratando do processo geral de declínio do capitalismo como sistema universal.

Do ponto de vista das relações entre o sistema econômico e sua base material, a depre-dação como comportamento central predominante ao sistema, começou, há poucas décadas, seu processo de reprodução.

3 Ishibashi Katsuhiko, Why Worry? Japan’s Nuclear Plants at Grave Risk From Quake Damage, International Herald Tribune/Asahi Shinbun, August 11, 2007; Japan Focus, August 11, 2007.

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Na realidade, o núcleo cultural depredador surgiu a partir do grande boom histórico do capitalismo industrial (em fins do século XVIII, principalmente na Inglaterra) e ainda antes, durante o longo período protocapitalista ocidental. Marcou para sempre os sistemas tecnológicos e o desenvolvimento científico, começando por seu pilar energético (primeiro, o carbono mineral e, logo, o petróleo) e por uma ampla variedade de explorações minerais de recursos naturais não renováveis. Essa exacerbação depredadora é um viés distintivo da civilização burguesa, que a separa das civilizações anteriores. Contudo, durante as etapas de juventude e maturidade do capitalismo, a depredação estava subordinada à reprodução ampliada do sistema.

A partir de fins de 1960 e começos de 1970, produziu-se uma expansão da exploração sem tamanho, não permitindo superar a crise de superprodução iniciada no momento, tornando-a crônica, mas controlada, amortecida. Uma das bases desta nova etapa foi a exa-cerbação da pilhagem dos recursos naturais não renováveis e a introdução, em larga escala, de técnicas que possibilitaram a superexploração dos recursos renováveis, violentando, des-truindo seus ciclos de reprodução (por exemplo, a agricultura). Isto ocorria quando vários destes recursos naturais, por exemplo, os hidrocarbonetos, aproximavam-se do seu nível máximo de extração.

Trata-se de uma “fuga para frente” “irracional”, a longo prazo, do ponto de vista do capitalismo em geral, porém, perfeitamente “racional”, se olharmos a partir dos interesses concretos das companhias petroleiras, da indústria automobilística, do complexo industrial-militar, ou seja, do centro nervoso do sistema econômico global, onde predominavam ciclos de negócios cada vez mais curtos, cada vez menos capazes de absorver prolongados períodos de maturação dos investimentos. A avalanche da visão do curto prazo (da financeirização cultural do capitalismo) esmagou toda possibilidade de planejamento de longo prazo para uma possível reconversão energética.

O teto energético que foi atingido pela reprodução capitalista converge com outros limites de exploração de recursos não renováveis e, rapidamente, afetarão um espectro am-plo de atividades minerais. Somando-se a isto, a exploração selvagem dos recursos naturais renováveis. Assim, aparentemente, apresenta-se um cenário de esgotamento geral dos recursos naturais, ocorrido a partir do sistema tecnológico disponível. Porém, concretamente, trata-se do sistema social e seus paradigmas, vale dizer, do próprio capitalismo como estilo de vida.

Por outro lado, a crise dos recursos naturais indissociáveis do desastre ambiental, converge com a crise da hegemonia parasitária. Nas primeiras décadas da crise crônica de superprodução potencial, o processo de financeirização impulsionou, sobretudo nos países ricos, a expansão consumista, a concretização de importantes projetos industriais, de subsí-dios públicos às demandas internas e de grandes aventuras militares imperialistas. Ao final do caminho, as euforias se dissiparam para deixar imensas montanhas de dívidas públicas e privadas descobertas. A festa financeira (com diversos acidentes em seu percurso) se converte agora no teto financeiro que bloqueia o crescimento.

Já na década de 1970, mas se acentuando nos anos posteriores, o crescimento econô-mico da área imperialista do mundo requereu doses crescentes de droga financeira para seguir

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ampliando sua economia, ainda que a taxas tendencialmente decrescentes. Porém, desde o estouro da crise em 2007-2008, a mega bolha especulativa global (espaço de todas as bolhas financeiras) vem ingressando numa etapa de saturação. Mesmo que alguns de seus componen-tes cresçam e outros se declinem, o conjunto da massa parasitária vai se estancando e anuncia sua próxima crise. O (hiper) desenvolvimento rentista depende do dinamismo de sua base estrutural (as empresas, os consumidores, o estado), cuja capacidade de endividamento não é infinita, mas altamente sensível as suas crises. A expansão financeira vai encontrando seu teto histórico. As emissões monetárias poderão dar algum incentivo aos crescimentos puramente nominais e inclusive alguns auges efêmeros, porém seu destino está marcado. Trata-se de um duplo teto: as possibilidades que o sistema fornece, em sua totalidade, ao desenvolvimento financeiro e o teto que o próprio sistema financeiro coloca à sua base estrutural: o capitalismo não pode crescer afogado por seu parasita financeiro e o sistema financeiro, por sua vez, vai se debilitando porque sua “vítima” começa a perder a capacidade de alimentá-lo.

Um caso muito esclarecedor é o dos chamados “produtos financeiros derivativos”, se-tor decisivo do sistema. Os derivativos equivaliam, em junho de 1998, 2,5 vezes o Produto Mundial Bruto. Passou a 5,5 vezes, em junho de 2004, e a 10,6 vezes, em dezembro de 2007. Em junho de 2008, chegou a uma alta equivalente a 11,6 vezes do Produto Mundial Bruto. Porém, em dezembro desse mesmo ano, teve a queda de cerca de 136 bilhões de dólares, comparativamente a junho. As recuperações posteriores, conseguidas com base nas gigantescas emissões monetárias dos países ricos, não puderam alcançar o volume nominal em dólares do pico superior e nem seu peso relativo ao Produto Mundial Bruto.

Talvez – não é certo – a massa nominal pudesse chegar a incrementar-se no futuro, acumulando dólares desvalorizados. Para que os derivativos superem seu teto atual, situado entre 12 e 13 vezes o PMB, seria necessário muito mais que os estímulos implementados desde 2008 (hiper bilionários, porém evidentemente insuficientes). Seria necessário, por exemplo, uma nova onda de pilhagem financeira, muito maior que a desatada no começo da década de 2000 (que, por sua vez, prolongou-superou a dos anos 1990). Contudo, essa hipotética onda não dispõe de uma ampla base de potenciais devedores ansiosos por gastar, a não ser os principais estados do mundo e seus correspondentes mercados internos, oprimidos por toda a classe de dívidas: os consumidores norte-americanos, japoneses ou ingleses com baixíssimos níveis de poupança, montanhas de obrigações cada vez mais difíceis de pagar e ativos desvalorizados, empresas transnacionais superendividadas, chocando com mercados que crescem pouco ou nada. A profunda deterioração dessas estruturas bloqueia possíveis altas financeiras. A especulação financeira termina sendo vítima de seu próprio veneno.

Em síntese: a crise crônica de superprodução, iniciada há quatro décadas, transforma-se agora em crise geral de subprodução, em incapacidade do sistema em seguir crescendo, blo-queado por diversos “tetos” (energético, financeiro, ambiental, etc.), impulsionado por sua própria dinâmica que devora as bases estruturais de sua existência, que as desordena cada vez mais. Autofagia de ritmo difícil de prognosticar que, por seu caráter planetário e seu alto nível de recursos tecnológicos, não pode ser comparada às decadências de civilizações anteriores (só é possível estabelecer alguns paralelismos muitos limitados).

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É incrivelmente atual o prognóstico formulado por Marx e Engels, em pleno auge juvenil do capitalismo (Marx-Engels, A ideologia alemã, 1845-46): “[...] Dado certo nível de desenvolvimento das forças produtivas, aparecem forças de produção e dos meios de comunicação tais que, nas condições existentes, só provocam catástrofes, já não são mais forças de produção, mais sim de destruição”4. Na realidade, a magnitude do desastre, de seu aspecto escatológico, de destruição dos fundamentos da sobrevivência humana, eleva o dito prognóstico até níveis seguramente não imaginados por seus então jovens autores.

dESpolARIzAção

O processo de decadência em curso deve ser visto como fase descendente de um longo ciclo histórico, iniciado em fins do século XVIII, que contou com um articulador decisivo: a dominação imperialista anglo-norte-americano (etapa inglesa, no século XIX, e norte-americana, no século XX). Capitalismo mundial, imperialismo e predomínio anglo-norte-americano constituem um só fenômeno. Uma primeira conclusão é que a organização sistêmica do capitalismo aparece historicamente indissociável do articulador imperial (história imperialista do capitalismo).

É necessário esclarecer que a unipolaridade do mundo burguês, em torno dos Estados Unidos, não emergiu logo após o fim da URSS (1991), mas sim desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1945). A queda soviética marcou a hegemonia universal do capitalismo com o qual o pólo norte-americano tornou-se planetário.

Uma segunda conclusão é que, ao ser cada vez mais evidente que no futuro previsível não aparece nenhum novo amo imperial ascendente à escala global, já que a União Européia e o Japão são tão declinantes quanto os Estados Unidos. Além disso, propor o surgimento de um “imperialismo chinês”, de alcance mundial nos próximos anos, é um completo disparate. Sendo assim, desaparece do horizonte uma peça decisiva da reprodução capitalista global, a menos que suponhamos o surgimento de um tipo de mão invisível universal (e burguesa), capaz de impor a ordem (monetária, comercial, político-militar, etc.). Nesse caso, estaríamos extrapolando, para a humanidade futura, a referência da mão invisível (realmente inexistente) do mercado capitalista, apregoada pela teoria econômica liberal.

A decadência não exclui a agressividade militarista do Império, mas sim o contrário. Dela resulta a conclusão de que o cenário provável de desintegração, mais ou menos caótica da superpotência, está agregado a outro cenário, não menos provável de declínio sangui-nária, bélico. Quando observamos a evolução ascendente dos gastos militares nos Estados Unidos e sua conexão com fenômenos político-culturais, como o dos falcões da era Bush, as persistências neofascistas no sistema de poder (cada vez mais concentrado) e em amplos setores da sociedade imperial (e de seus aliados sub-imperiais europeus e japoneses), somos induzidos a não descartar essa possibilidade.

4 Marx & Engels, Obras Escolhidas, Editorial Progreso, Moscou, 1974.

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Militarismo e deslocamento geopolítico parecem marchar juntos. Os Estados Unidos e as potências menores, aliados por meio de rasteiras mútuas, não conseguem sair dos pân-tanos em que se meteram durante a década passada e, tampouco, podem evitar ingressar em novos pântanos. Enquanto tecem hipotéticas retiradas do Iraque e Afeganistão aos tropeços (quadraturas de círculos consistentes em retirar sem serem derrotados), perseguidos por crises econômicas e de legitimidades institucionais internas, salta-lhes aos olhos a gigantesca rebelião árabe. Buscam esfriá-la e, se possível, sepultá-la, o que os obriga a intervirem, a estenderem suas operações militares à Líbia tentando, ao mesmo tempo, se livrarem de seu ex-amigo ditador Kadafi e controlarem os insurretos. Quando apenas podiam sustentar duas guerras, acabam mergulhando numa terceira. Se optassem por não o fazer, suas perdas estratégicas podem ser imensas. Ao fazê-la, aumentam ainda mais sua já excessivamente extensa (e in-sustentável a médio prazo) sistema de intervenções militares periféricas.

CRISES IdEolÓgICAS, INSuRgêNCIA globAl

Uma conclusão geral sumamente útil é que a rebelião árabe emerge como resposta democrática, como rebelião periférica ante a decadência do sistema global, cuja podridão central expressa muito bem a crise nuclear japonesa. Da mesma podridão se desprendem algumas linhas de reflexão, necessárias para entender a realidade e seu devir surpreendente.

A primeira delas se refere à desestruturação psicológica das elites globais que enfrentam uma verdadeira catástrofe ou mega-ruptura, onde o declínio ideológico se combina com uma generalizada crise de percepção. Diante delas, a realidade se apresenta funcionando com dinâmicas desconhecidas, nas quais os poderosos instrumentos de ação disponíveis resultam ineficazes ou inclusive contraproducentes.

Os bilhões de dólares injetados pelas grandes potências nos circuitos financeiros desde 2008-2009 deram resultados muito pobres. O intervencionismo é impotente e o livre jogo do “mercado” conduz ao desastre.

Por outro lado, a quebra da ordem periférica que, nestes dias, é assinalado pelo despertar árabe, começa a adquirir para essas elites o aspecto de um imenso pântano em expansão, um pesadelo do qual não pode escapar.

Recentemente, a agência Reuters publicou um informe especial sobre a intervenção ocidental na Líbia, a qual qualificava como “guerra não desejada pelo Ocidente”, assinalando que se tratou de uma operação bélica que “Obama não quer, David Cameron (o primeiro ministro inglês) não precisa, Angela Merkel (Alemanha) não pode apoiar e Silvio Berlusconi teme”. Segundo o informe, somente o presidente francês Sarkozy demonstrava um entusiasmo preocupante5 e, no entanto, a OTAN acabou assumindo o comando dessa guerra, tentan-do suavizar as rivalidades entre as potências imperialistas. A agência Reuters descrevia, em começos de 2011, uma situação onde os ocidentais, submersos no bordel, tentavam manu

5 Paul Taylor-Reuters, Special report: The West’s unwanted war in Libya, Apr 1, 2011.

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militari estabilizar a colônia líbia em crise, freando, através de puro bombardeio, as forças de Kadafi, cuja vitória sobre os rebeldes derivaria, seguramente, num gigantesco massacre da população, com consequências imprevisíveis ao mundo árabe. Porém, ao mesmo tempo, buscavam controlar os rebeldes, deixando-os, em certos momentos, à mercê das ofensivas governamentais, temendo que uma vitória esmagadora da revolta popular armada pudesse chegar a ter efeitos explosivos em seus dois vizinhos imediatos, Egito e Tunísia ainda não estabilizados, e em outros estados árabes pressionados pelos protestos de suas populações. Sórdido jogo colonial com multiplicação de manobras táticas, tidas, em última instância, como defensivas, ante um imenso tsunami democrático, que desordenou o complexo armado estratégico de dominação.

Uma segunda linha de reflexão aponta para os limites dessas rebeliões periféricas que derrubam ou deterioram seriamente os regimes elitistas, mas que, até agora, não quebraram, não superaram as barreiras burguesas e que parecem se conformar com reformas democráticas e melhorias sociais modestas. Nesse sentido, apresenta similaridade com a ascensão progressista latino-americano da década passada.

Uma boa compreensão desses movimentos periféricos tem obrigatoriamente que situá-los na dinâmica global da crise (atualmente em sua etapa inicial) e, então, ressaltar a enorme importância, decisiva, da mobilização popular democrática, avançando segundo suas possibi-lidades concretas, ao ritmo do declínio do universo cultural hegemônico à escala planetária, o estilo de vida moderno de raiz ocidental (consumista, individualista, etc).

Aparece, finalmente, uma terceira linha de reflexão acerca do “sujeito” do processo emancipatório, que se apresenta como conjunto plural urbano e rural, abarcando classes periféricas baixas e médias, operários, camponeses, estudantes, pequenos comerciantes, etc. Ele obriga a uma tarefa de reconceituar o termo proletariado, entendido como massa em expansão, produto inevitável da dinâmica do capitalismo mundial, atravessando a velha crise crônica de superprodução, depredadora e hiper-concentradora de renda e entrando em sua crise geral de subprodução, entrópica, carregada de barbárie, de genocídio periférico.

Não se trata da ideia eurocêntrica e historicamente falsa que reduzia o proletariado libertador à classe trabalhadora industrial (principalmente radicada nos países imperialistas), mas sim a constatação da presença cada vez mais numerosa e mais oprimida de um prole-tariado plural, cuja única possibilidade de sobrevivência digna (ou de simples sobrevivência física em muitos casos) está na insurgência contra o sistema. Esta massa plural pode chegar a converter-se em força social revolucionária, em negação absoluta do sistema, através da luta que o calor da quebra das estruturas de dominação vai promovendo sua auto-aprendizagem democrática. Não é um processo simples, linear, mas sim um desenvolvimento bastante complexo, filho da crise do sistema.

Em termos concretos, isto significa que o lugar histórico do pós-capitalismo, o co-munismo do século XXI, encontra-se no interior dessas rebeliões, como parte delas, como avanço consciente, democrático, radicalizado. Alternativa em formação, assumindo critica-mente as experiências populares, onde se entrelaçam fenômenos “novos” (que nunca o são completamente) com combates de longa duração que, desse modo, ampliam seus espaços: a

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resistência hondurenha, as revoltas árabes, as mobilizações latino-americanas mais recentes, confluem com afluentes de prolongada trajetória, como a insurgência colombiana ou as resistências palestina e afegã.

REFERêNCIAS

QUIM, James. When Japan Collapses, Financial Sense, 16 Sep 2010.

KATSUHIKO, Ishibashi, Why Worry? Japan’s Nuclear Plants at Grave Risk From Quake Damage, International Herald Tribune/Asahi Shinbun, August 11, 2007; Japan Focus, Au-gust 11, 2007.

MARX & ENGELS, Obras Escolhidas. Moscou: Editorial Progreso, 1974.

TAYLOR, Paul, Special report: The West’s unwanted war in Libya, Reuters, Apr 1, 2011.

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Ideias emMovimento

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Resenha

Chvostimus und Dialektik (Reboquismo e dialética) livro Inédito de györgy lukács (Edição italiana, Coscienza di Classe e Storia – Codismo e Dialettica, Roma, Edizioni Alegre, 207, 166 p., posfácio de Slavoj zizek).

Antonio Carlos Mazzeo*

Este é um ensaio inédito de György Lukács, que até bem pouco tempo era desconhecido, tanto que o próprio Lukács pensava que havia sido destruído. Um grupo de pesquisadores descobriu recentemente este texto, escrito em meados dos anos 1920, abrindo os arquivos do Komintern seção do PCUS (Partido Comunista da União Soviética) em Moscou, com o título em alemão Chvostimus und Dialektik (que poderia ser traduzido como Reboquismo e Dialética – onde o autor parafraseia a expressão de Lenin, em seu livro Que Fazer, para indicar as tendências espontaneístas do movimento operário russo que se recusavam aceitar o papel da vanguarda e da necessidade do partido revolucionário).

A edição húngara, em língua alemã, é datada de 1996, publicada pela Áron Verlag de Budapeste, sob responsabilida-de de Lázlo Illés. A edição italiana de 2007, publicada como Coscienza di Classe e Storia – Codismo e Dialettica, nos facilita o acesso a esse livro escrito imediatamente após o surgimento das críticas, do hoje clássico texto de fi losofi a marxista, His-tória e Consciência de Classe, de 1923, para rebater as vozes das críticas sectárias, como as de Abraham Deborin e por seu camarada do PC húngaro Lászlo Rudas, expostas nos números IX, X e XII da revista Arbeiterliteratur, além da realizada por Zinoviev que praticamente “escomunga” História e Consciência de Classe, no V Congresso do Komintern, vociferando contra o “revisionismo teórico dos professores”.

Chvostimus und Dialektik percorre criticamente os temas centrais de HCC fazendo uma serrada autodefesa do signifi cado do método dialético, contrapondo-o ao mecani-cismo de viés positivista e ao determinismo de seus críticos,

* Antonio Carlos mazzeo é Pro-fessor da Faculdade de Filosofi a e Ciências – Unesp, presidente do ICP - Instituo Caio Prado Jr. e editor da Revista Novos Temas.

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principalmente em relação à problemática da dialética da natureza e à questão da “consci-ência adquirida”.

Apesar de ser um texto distinto e com fisionomia própria, Chvostimus und Dialektik está umbilicalmente ligado à HCC quer pela temática afrontada, tanto na defesa intransigente de elementos chaves desenvolvidos em HCC, como por sua disposição de colocar Marx e o marxismo no campo do debate filosófico, inclusive denunciando as críticas de vezo men-cheviques e as abordagens rebaixadas, como as realizadas respectivamente por Deborin e Dunker. De modo que impossível falar de Chvostimus und Dialektik sem que nos remetamos à História e Consciência de Classe.

Para situar o contexto histórico e a relevância de Chvostimus und Dialektik, é importante ressaltar que História e Consciência de Classe constitui um marco na história do marxismo do século XX e segundo alguns autores, inaugura o que chamam de “marxismo ocidental” – definição essa bastante problemática porque já em sua essencialidade é redundante, se atentarmos que o marxismo por suas origens é resultado de um radical produzido no próprio ocidente.

De qualquer modo, HCC sacudiu não somente o marxismo mas também o conjunto do pensamento filosófico e político do século XX, impactando inclusive autores não marxistas, como Martin Heidegger, Sartre e Merleau-Ponty, entre outros. Inegavelmente, o processo revolucionário desencadeado com a Revolução de 1917 obrigou à teoria social confrontar-se com a realidade e com “verdades estabelecidas” no plano das análises societais. Especialmente no campo do marxismo estimulou jovens intelectuais revolucionários a elaborar interpretações inovadoras e instigantes para o movimento comunista e socialista revolucionário como, além do próprio Lukács e de Karl Korch, Ernst Bloch e Antonio Gramsci.

Mas aqueles eram anos de confrontos e de revoluções que proporcionaram explosões criativas na teoria social marxista, e ao mesmo tempo paixões e sectarismos nos meios intelec-tuais revolucionários. No contexto de um mundo já hegemonizado pela fase imperialista do capitalismo era fundamental compreender teoricamente os elementos complexos das realidades concretas das particularidades sociais capitalistas1. A angústia de se rebater o sectarismo teóri-co presente no movimento comunista sofria, muitas vezes, a contrapartida de pressupostos utópico-messiânicos dos jovens intelectuais revolucionários de extração pequeno-burguesa, como no próprio caso de Lukács2.

1 Como acentua Lukács, “Uma gigantesca transição histórico-universal estava, então, pugnando por encontrar expressão teórica. Quando uma teoria, ainda sem expressar a essência objetiva da grande crise, formulava pelo menos uma atitude típica em relação a seus problemas básicos, poderia conseguir certa importância histórica. Eu creio que isso ocorreu com História e consciência de Classe.”, György Lukács, historia y Consciencia de Clase, México, Grijalbo, 1969, p. XXVI, Prefácio do autor de 1967.

2 Veja-se idem, p. XVII. Sobre essa questão, ressalta José Paulo Netto: “[...] O messianismo revolucionário de que estava imbuído o filósofo conduziu-o a um utopismo radical e a tomadas de posição tais que Lenin não hesitou em considerá-lo “esquerdista”: messianismo e utopismo, por outra parte, que se colavam teoricamente numa particular leitura da obra de Rosa Luxemburg” [...]” José Paulo Netto, Sobre Lukács e a Política, In: http://pcb.org.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=2426:sobre-lukacs-e-a-politica&catid=34:marxismo&Itemid=30. Acesso em 11 de março de 2011.

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Mas se, de fato, HCC possuía um núcleo inegavelmente idealista, onde aflora sua repulsa ao cientificismo socialdemocrata, o livro ainda que permeado pelo dinamismo do devir e pelo “frenesi da prática”, como bem define Tertulian3, resgatava para o marxismo e já com grandes mediações teóricas, após decênios de olvido, as grandes conexões e as relações antitéticas do marxismo com a tradição hegeliana, além de recolocar na ordem do dia as obras de juventude de Marx. Como observa o próprio Lukács, em seu conhecido prefácio de 1967, nem todas as ideias contidas em HCC eram falsas4, como é patente no artigo O Que é Marxismo Ortodoxo (conceito que se contrapõe fortemente à visão dogmática do marxismo) que evidenciava as infinitas possibilidades analíticas da realidade postas pelas categorias dialético-materialistas presentes no conjunto da teoria social marxiana, exatamente centradas em seu “método”.5 Mais ainda, nota-se em HCC, um grande esforço para expor as categorias da dialética em suas objetividades e em seus reais movimentos e que, segundo Lukács, já apontavam para o entendimento da ontologia marxiana do ser social, quando expõe a fundamental categoria da mediação, elemento central para a superação das meras imediaticidades do empírico.6 HCC recoloca, ainda, no centro do debate teórico marxista o problema da alienação (Entöusse-rung) e do estranhamento (Entfremdung), mesmo que muito permeado pela Weltanschauung hegeliana, justamente ao enfatizar o estranhamento não como resultado de relações sociais objetivas, mas como condition humaine.

Além dessas questões fundamentais para o necessário avanço da teoria social mar-xiana, problemas conceituais como coisificação e o reflexo nas formas de conhecimento são abordados e esboçados em HCC, mesmo que desvirtuados por uma visão que priorizava o “praticismo”, isto é, a conexão imediata entre prática e teoria, ou no dizer de Lukács, a fragmentação do nexo dialético-ontológico entre imediaticidade e mediaticidade. História e Consciência de Classe é um grande manancial intelectual do filósofo marxista húngaro, um laboratório teórico-filosófico onde podemos ver seu caminho em direção à teoria social de Marx, onde se evidenciam a gênese de suas obras mais brilhantes, as monumentais Estética e a Ontologia do Ser Social.

Pode-se dizer ainda que, em Chvostimus und Dialektik (Reboquismo e Dialética), “peque-na grande” obra de autodefesa, escancaram-se as debilidades do jovem Lukács em relação à teoria social de Marx, mas por outra parte, verificam-se continuidades e rupturas com HCC evidenciando o aprofundamento da transição intelectual do filósofo húngaro, principalmente a que está em processo na imediata pós-publicação de HCC, em que também já arrolando elementos de autocrítica7, retoma e defende aspectos fundamentais da teoria marxiana que

3 Cf. Nicolas Tertulian, Georg Lukács: etapas de seu pensamento estético. São Paulo: Ed.Unesp, 2008, p. 45.4 G. Lukács, op. cit., p. XXVII. 5 “Assim, o marxismo ortodoxo não significa reconhecimento acrítico dos resultados da investigação marxiana,

nem ‘fé’ em tal ou qual tese, em interpretação de uma escritura ‘sagrada’. Em questões de marxismo a ortodoxia refere-se exclusivamente ao método.”, ibidem, p. XXVIII.

6 Como enfatiza Lukács em seu prefácio, de 1967, veja-se ibidem.7 “[...] eu mesmo, no prefácio do livro [Lukács refere-se ao prefácio da primeira edição de História e Consciência

de Classe] o caracterizei expressamente como livro para discussão. Penso que alguns de seus aspectos necessitem ser corrigidos; muitas coisas as formularia hoje em modo bastante diverso.” G. Lukács, Coscienza di Classe e Storia – Codismo e Dialettica, Roma, edizioni Alegre, 2007, p. 17.

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foram desenvolvidos em HCC, como a teoria do reflexo (Abbildtheorie) o problema da reifica-ção (Verdinglichung), e a questão da totalidade como elemento analítico nodal para conhecer e transformar a realidade objetiva e a problemática da subjetividade revolucionária, temas que serão revisitados mais adiante, já sob a luz das leituras dos Manuscritos Econômicos Filosóficos de 1844 de Marx, descobertos nos arquivos de Marx e Engels nos inícios dos anos 1932, em Moscou.

Só nos resta, agora, aguardar ansiosamente pela edição brasileira.

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151 O Brasil e o capital imperialismo: teoria e históriaVirginia Fontes Rio de janeiro: EPSJV, UFRJ, 2010, 384p. – Ricardo da Gama Rosa Costa

Resenha

FoNTES, Virgínia. o brasil e o capital imperialismo: teoria e história. Rio de janeiro: EpSjV, uFRj, 2010, 384p.

Ricardo da Gama Rosa Costa

O mais recente trabalho da Professora Virgínia Fon-tes, uma das mais destacadas intelectuais engajadas nas lutas populares do Brasil contemporâneo, reafi rma sua já consagrada capacidade de produzir instigantes e profundas análises sobre o processo de expansão do capitalismo na sua fase atual. Como o título sugere, trata-se de uma obra que reúne investigação histórica e construção teórica.

O debate teórico aberto por Virgínia nas primeiras páginas do livro, resgatando Marx (com destaque para os estudos sobre o capital monetário ou “portador de juros”) e dialogando com Lênin, Rosa Luxemburgo e autores marxistas contemporâneos como David Harvey e Ellen Wood, busca levar à compreensão do papel exercido pelo capitalismo nos tempos atuais, em que a ampla expansão do capital monetário hiperconcentrado impõe novas e múltiplas formas de expropriação da força de trabalho, convertendo todas as atividades humanas em meios para a valorização do valor. Contestando a tese de Harvey da dualidade entre um “capitalismo normalizado” e um “capitalismo predatório”, Virgínia demonstra que a violência da chamada acumulação primitiva ou originária do capital, conforme denunciada por Marx no Livro I de O Capital, é permanente e recorrente na história do desenvolvimento do capitalismo: “[...] a produção em massa da expropriação, sob formas variadas, em função da escala da concentração de capitais, jamais se reduziu ou ‘normalizou’ em escala mundial”, como consequência das formas históricas de expansão desigual do capitalismo, seja no interior de cada país ou entre os países.

O debate teórico prossegue com as discussões concei-tuais em torno do fenômeno do imperialismo, envolvendo

* Ricardo da gama Rosa Costa é Professor e coordenador do curso de História da Faculdade de Filosofi a Santa Dorotéia – Nova Friburgo/RJ, membro do Comitê Central do PCB.

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as diferentes concepções de Kautsky e Lênin. Ao reafirmar a atualidade da concepção leninia-na, Virgínia agrega a contribuição de Gramsci para o estudo das novas formas de dominação burguesa na fase de consolidação do capitalismo monopolista e de expansão imperialista. O conceito de “sociedade civil” em Gramsci, englobando o terreno das relações de produção e as formas sociais de produção da consciência, introduz a noção de “Estado ampliado”, ao mesmo tempo útil para a compreensão das novas estratégias de dominação do capital no século XX e necessário para a formulação renovada das estratégias revolucionárias dos trabalhadores.

A originalidade no uso do termo “capital-imperialismo”, além de evitar as armadilhas ideológicas contidas na utilização de palavras tais como “globalização”, “financeirização” e mesmo “neoliberalismo”, nos remete a pensar a conjuntura dos últimos anos como continui-dade e aprofundamento do modo de produção capitalista em sua fase imperialista no mundo, não como um fenômeno “novo”, “pós-industrial”, “pós-trabalho” ou “pós-moderno”. O novo conceito apresentado por Virgínia busca dar conta das transformações ocorridas no processo histórico de expansão do capital desde o imperialismo, cujo “crescimento não linear e atra-vessado de lutas sociais e contradições, também conduziu a um novo patamar de acumulação de capital”. Neste processo, a necessidade imperativa de reprodução ampliada do capital forja a capacidade crescente de impor seu domínio a todas as dimensões da vida social.

A forma capital-imperialista nasce, segundo a autora, sob a égide da Guerra Fria, mo-mento histórico marcado pela exacerbação da concorrência entre os capitais e países capi-talistas desenvolvidos e, em paralelo, pela tendência à formação de imensos conglomerados multinacionais. Para muito além da mera junção entre capitalistas industriais e bancários, o fenômeno representaria a “efetiva ‘união íntima’ entre capitais de quaisquer origens”, na direção de uma propriedade “quase descarnada do capital”, em que o capital financeiro exerce papel determinante e tentacular, abrangendo as mais vastas regiões do planeta, sob a aparência da forma pura monetária, como se estivesse descolado das formas destrutivas e avassaladoras de extração da mais valia e de disponibilização crescente das massas ao trabalho assalariado.

Na análise da transformação do Brasil em país “capital-imperialista”, Virgínia nos brinda com um ensaio de História da luta de classes no Brasil recente, focando em especial o período que abrange as lutas contra a ditadura ao governo Lula. Neste ensaio, retomando as categorias teóricas de Gramsci, nossa historiadora analisa o contraditório movimento de ampliação da sociedade civil e do Estado, com a entrada em cena de novos aparelhos privados de hegemonia, movimento este responsável pela conquista de espaços democráticos e de su-peração do entulho autoritário, sem que se construísse um pólo contra-hegemônico capaz de infringir também uma derrota ao modelo burguês e capitalista. Pelo contrário, a progressiva inflexão das principais organizações de esquerda do período (como o PT e a CUT) a uma postura de abandono das propostas socialistas e de limitação da luta dos trabalhadores aos marcos impostos pela ordem dominante, num claro processo de transformismo, representou, na esfera política, a sanção ao processo de consolidação da hegemonia burguesa em curso, culminando, na década de 1990, com a franca afirmação de uma democracia reduzida às estratégias ditadas pelo capital.

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153 O Brasil e o capital imperialismo: teoria e históriaVirginia Fontes Rio de janeiro: EPSJV, UFRJ, 2010, 384p. – Ricardo da Gama Rosa Costa

Por fim, a obra de Virgínia ousa, provocando polêmica, ao considerar o fenômeno social brasileiro contemporâneo relacionado a um duplo movimento no qual o processo interno de concentração de capitais e de monopolização da economia está umbilicalmente ligado à integração complexa, ativa e dinâmica do Brasil à ordem capital-imperialista mundial, mesmo que de forma subalterna, mas capaz também de ocupar lugar de destaque como país expor-tador de capitais, ao menos no cenário da América Latina e de outras regiões periféricas ao centro do capitalismo. Ultrapassa-se, assim, a imagem de um Brasil meramente exportador de matérias-primas e “subdesenvolvido”, como ainda a sofrer o ataque “de fora” do imperia-lismo, imagem esta responsável pela criação de ilusões na esquerda brasileira, desde o PCB das décadas de 1950 a 1980, até importantes e combativas organizações dos nossos dias, de que a luta principal continuaria a ser a anti-imperialista, desviado o foco da contradição central entre capital e trabalho.

O livro de Virgínia muito contribui para o entendimento da sociedade brasileira atual como a da plena afirmação da hegemonia burguesa em todas as esferas da vida econômica e social, para o que somente a constituição de um poderoso movimento contra-hegemônico, de caráter centralmente anticapitalista, será capaz de forjar a luta no caminho da emancipação plena da classe trabalhadora e de construção da sociedade socialista.

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VI Normas para publicação

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1. Os trabalhos/artigos devem ser digitados em Programa Word: fonte Times New Roman, observando que o texto deve estar em corpo 12, as citações em corpo 10 e as notas de rodapé em corpo 9.

2. Configuração da página: A-5 (14,8 X 21) margem de 2 cm em todos os lados (esquerda, direita, superior e inferior).

3. Parágrafo com alinhamento justificado e espaçamento interlinear de 1,5 cm

4. Recuo de 1 cm para a primeira linha dos parágrafos e 2,5 para citações (em coluna)

5. As referências bibliográficas, em nota de página, devem ser restritas ao mínimo indis-pensável. Caso necessário, seguir o exemplo: (Castoriadis, 2000: p. 151). A bibliografia deve constar no final da página do artigo com a referência completa, ou seja, a) autor b) título da obra (em itálico); c) ano da edição, se não for a primeira; d) local da pu-blicação; e) nome da editora; f ) data de publicação; g) número da página. Exemplo: CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 5ª ed., São Paulo: Paz e Terra, 2000; p. 151.

6. Para artigos citados: a) autor; b) Título do artigo; c) Título do periódico (em itálico); d) local da publicação; e) número do volume; f ) número do fascículo; g) página inicial e final; h) mês e ano. Exemplo: CASTORIADIS, Cornelius. O marxismo: balanço provisório. Revista Qvinto Império, Salvador, n 1 p. 25-42, jan./mar., 2006.

7. À medida do possível, as Normas Brasileiras de Documentação (ABNT) devem ser seguidas.

8. Identificação do artigo, do autor e o resumo devem constar do trabalho apresentado. O nome do artigo em negrito (centralizado), fonte Times New Roman, corpo 14. O nome do autor em fonte arial, corpo 12.

9. No final da página constar um memorial resumido do autor do artigo. Exemplo: Autor: Antonio Pi Doutor em Letras pela USP Professor da UNEB, Departamento XYZ E-mail: [email protected]

10. Do Resumo do artigo (caixa alta e negrito). Fonte Times New Roman, corpo 10 (centralizado) Palavras-chave Do Abstrat (caixa alta e negrito) Fonte Times New Roman, corpo 10 (centralizado) Key-words.

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11. Dois toques após as referências do resumo e palavras-chave em Português ou em outra língua, a prioridade em inglês, para o Início do Texto.

12. As ilustrações ou quaisquer outros como gravuras, fotografias, gráficos, esquemas são designados como Figuras, numeradas no texto, de forma abreviada, entre parênteses ou não, conforme a redação; quando indispensável o uso das figuras e/ou fontes especiais, indicar o programa em que foram gerados e enviar o arquivo fonte em disquete;

Exemplo: Fig.1. As figuras devem trazer um título ou legenda, abaixo da mesma, digitado na mesma largura desta.

13. Entrega dos artigos: Os textos deverão ser remetidos ou entregues à Editoração Geral da Revista...

O artigo deverá ser apresentado em disquete, devidamente etiquetado e identificado com o nome do autor e uma cópia impressa.

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NOVOS TEMASRevista do Instituto Caio Prado Jr.

é uma edição da Quarteto Editora.

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Salvador – 2011