novos sujeitos e vivências: os fãs das animações japonesas e as mediações - trabalho completo

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  • 8/14/2019 Novos Sujeitos e Vivncias: os fs das animaes japonesas e as mediaes - trabalho completo

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    CAIO TLIO PADULA LAMAS

    NOVOS SUJEITOS E VIVNCIASOS FS DAS ANIMAES JAPONESAS E AS MEDIAES

    So Paulo

    2006

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    CAIO TLIO PADULA LAMAS

    NOVOS SUJEITOS E VIVNCIAS

    OS FS DAS ANIMAES JAPONESAS E AS MEDIAES

    Monografia apresentada ao curso de Rdio e TV da FaculdadeCsper Lbero, como aproveitamento da disciplina Mtodose Tcnicas de Pesquisa, sob a orientao da professoraEliany Salvatierra Machado

    So Paulo

    2006

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    ParaJoo Lcio Tatagiba Lamas, meu pai

    e Arlette Silva, minha av

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    Agradecimentos

    Aos amigos a quem estimo tanto e que me ajudaram na coleta das entrevistasapresentadas neste trabalho.

    professora Eliany Salvatierra, que apesar de estar sempre atarefada, meorientou em todas as dificuldades que encontrei ao longo do caminho trilhado.

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    NOVOS SUJEITOS E VIVNCIAS

    OS FS DAS ANIMAES JAPONESAS E AS MEDIAES

    Resumo

    Este trabalho tem como objetivo compreender a relao de identidade existente entreos fs das animaes japonesas e os prprios desenhos animados. Atravs de coleta deentrevistas e de uma pesquisa bibliogrfica focada nos principais pensadores da animaojaponesa e da teoria da Recepo, a monografia identifica algumas mediaes e disserta arespeito de uma nova face da cultura, no mais restrita necessariamente aos limites doEstado Nao e a uma cultura nacional de raiz.

    Palavras-chave: cultura, mediao, anim, animao japonesa, f, televiso, cavaleiros dozodaco, otaku

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    SUMRIO

    Introduo............................................................................................................. 7

    1. O Estado da Questo...................................................................................... 10 1.1 Mundializao da cultura e quebra das barreiras nacionais ................... 11

    1.2 Rearticulao terica.............................................................................. 151.3 Aspectos histricos e industriais .............................................................. 18

    2. As Mediaes................................................................................................. 23 2.1 Introduo.................................................................................................24

    2.2 A Rede Manchete e os Tokusatsu............................................................242.3 Os Anime Songs.......................................................................................272.4 Os Dubladores..........................................................................................302.5 Os Eventos Temticos e os Cosplayers ..................................................322.6 Observaes Finais..................................................................................36

    3. Uma Realidade Fora da Realidade.................................................................383.1 Os cavaleiros do zodaco e as mediaes...............................................393.2 A proposta do no-real.............................................................................413.3 Os personagens e a passagem para o outro mundo...............................44

    4. Consideraes Finais.....................................................................................48

    5. Bibliografia......................................................................................................53

    6. Anexo...............................................................................................................54

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    Introduo

    Exploses, olhos grandes, tiros, poderes sobrenaturais, violncia, romance e ao: so

    muitos os adjetivos que podem ser atribudos s animaes japonesas, chamadas por seus

    admiradores de anime ou anim. O que parecia ser simplesmente uma moda passageira, cada vez

    mais atrai pessoas de diferentes partes do pas, como pode ser observado no aumento de pblico

    dos eventos cujo tema a animao japonesa e o mang (histrias em quadrinho japonesas). A

    primeira edio do Animecon, um dos primeiros grandes eventos do tema, foi realizada em 1999 e

    atraiu 3200 visitantes para o prdio da TV Gazeta, em So Paulo. A prxima edio, em 2000,

    exigiu que em 2001 o Animecon fosse transferido para outro espao fsico, devido ao aumento de

    pblico: 6300 pessoas. Em 2002, o evento, agora situado no Colgio Marista Arquidiocesano,ainda na cidade de So Paulo, atraiu 18000 visitantes. 1 O Animefriends, considerado uma das

    maiores realizaes do gnero da Amrica Latina, teve sua primeira edio em 2003 e, logo em

    2004, atraiu um pblico de 30 mil pessoas, nmero que tendia a crescer nos prximos anos. 2

    Pouco tempo depois de estrear um bloco de desenhos japoneses, a emissora de televiso aberta

    Rede TV! dobrou sua audincia no perodo da tarde para 5 pontos. 3

    Repetia-se, desse modo, um fenmeno que antes j havia se manifestado em outros pases

    fora do continente asitico. Portugal, Espanha, Itlia, Frana, Estados Unidos: muitas ainda so asnaes que tm um pblico cada vez maior de fs da animao japonesa. Curiosamente, o mundo

    acadmico parece se desinteressar pelo assunto. Poucos so os estudos relacionados ao tema que

    satisfazem uma necessidade cientfica de elucidao do fenmeno acima descrito.

    justamente com o objetivo de elucidar parcialmente esse tema que a presente pesquisa

    desenvolvida. Como o Brasil, pas de cultura to distinta da nipnica, pode ter um pblico

    consumidor cada vez maior de um produto de caractersticas to peculiares? Para responder a essa

    pergunta, deve-se reestruturar a mesma questo, seguindo orientao de Jess Martin Barbero em

    seu livroDos Meios s Mediaes:

    ________________1 Dados disponveis em . Acesso em 28 set. 20062 Dados disponveis em . Acesso em 28 set. 20063 Dados disponveis em . Acessoem 28 set. 2006

    http://www.animecon.com.br/animecon_historico.phphttp://www.yamatocorp.com.br/http://www.animepro.com.br/noticias.php?IdNoticia=43&Data=072006http://www.animecon.com.br/animecon_historico.phphttp://www.yamatocorp.com.br/http://www.animepro.com.br/noticias.php?IdNoticia=43&Data=072006
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    Sobrecarregada tanto pelos processos de transnacionalizao quanto pela emergncia desujeitos sociais e identidades culturais novas, a comunicao est se convertendo numespao estratgico a partir do qual se podem pensar os bloqueios e as contradies quedinamizam essas sociedades-encruzilhada, a meio caminho entre um subdesenvolvimentoacelerado e uma modernizao compulsiva. Assim, o eixo do debate deve se deslocar dosmeios para as mediaes, isto , para as articulaes entre prticas de comunicao emovimentos sociais, para as diferentes temporalidades e para a pluralidade de matrizesculturais. 4

    A pergunta, portanto, seria reformulada da seguinte maneira: quais so as mediaes que

    existem entre os fs e a animao? A essa questo, revela-se a preocupao em compreender a

    identidade desse f e sua perspectiva dos acontecimentos: como se constituiria, afinal, essa(s)

    identidade(s)?

    Dessa maneira, procuramos tambm compreender em que medida o consumo to tpico dos

    fs e a preferncia deles pela animao constituem uma nova forma de criar laos de sociabilidade

    e de satisfazer demandas que outras manifestaes culturais no preencheriam. Conhecer essas

    novas necessidades internas de um pblico especfico conhecer as contradies que permeiam a

    cultura imersa nos laos de sociabilidade cotidianos.

    Alm disso, outro intuito da pesquisa identificar alguns dos elementos narrativos e de

    contedo da animao e em que sentido eles so importantes em sua relao com seu pblico

    admirador. No podemos esquecer ainda de procurar entender qual o sentido que esses elementos e

    as mediaes tm, pensando-se na globalizao cultural. Trata-se, pois, de desenhar um esboo deum mapa das demandas e motivaes do f, dos elementos constitutivos da animao e dos

    conflitos existentes e inexistentes entre os referenciais culturais e sociais do f e a animao

    japonesa.

    As mediaes se revelam, dessa maneira, no s como parte dos mecanismos de formao

    da identidade do f, mas tambm como objetos de re-significao do fenmeno cultural e social.

    Seria, no mnimo, uma ingenuidade terica considerar as mediaes apenas como um mero

    elemento insignificante de ligao entre diferentes culturas e pontos de vista.

    Quais seriam as respostas para as indagaes propostas acima? Com base em suposies que ainda

    teriam que ser comprovadas atravs de apuraes e coleta de dados e opinies, as mediaes

    seriam dividas em dois grandes grupos: as de identificao e as de consumo. Inseridos no primeiro

    grupo, encontram-se os dubladores, os fanzines, as msicas de abertura e

    _____________________________________________________

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    4 MARTIN BARBERO, Jess.Dos Meios s Mediaes. Rio de Janeiro: editora UFRJ, 2003, p. 270

    9

    encerramento, os cosplayers (pessoas que se vestem da mesma forma que alguns personagens das

    animaes geralmente presentes em eventos do tema), os fruns, sites e grupos de discusso da

    internet cujo tema a animao japonesa ou assuntos relacionados. Inseridos no segundo grupo

    esto as revistas especializadas e objetos como psteres, bons, adesivos e mangs (histrias em

    quadrinho japonesas).

    Nota-se que, apesar da pequena diviso efetuada acima, no temos como objetivo realizar

    uma classificao dos diferentes tipos de mediao, como fez Guillermo Orozco Gomes no texto

    La audincia frente a la pantalla. 5 Queremos apenas compreender quais so as principais

    mediaes existentes e qual a relevncia delas para a constituio das identidades dos fs.Sabemos que entender desse modo a comunicao justamente ir contra uma concepo

    que acredita no potencial de uma indstria manipuladora que narcotiza as conscincias dos

    indivduos a ela submetidos. Partimos do pressuposto de que, entre o f e a animao, h um

    processo de interao, que se manifesta justamente atravs das mediaes futuramente assinaladas.

    No deixa de ser difcil, para um estudante de comunicao, analisar um objeto to vasto,

    difuso e ao mesmo tempo peculiar. Mas esse desafio que move o pesquisador em seu trabalho

    cientfico. Outras perguntas talvez surjam no desenvolvimento da monografia, e provavelmente

    nem todas sero respondidas. No entanto, e apesar das futuras dificuldades de cunho terico e

    metodolgico, nossos esforos sero intensos no sentido de respond-las.

    ______________________________________________________________

    5 OROZCO GOMES, Guillermo. La audincia frente a la pantalla. In: Revista Dia - logos de la

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    comunicacin. Nmero 30. Lima, FELAFACS, 1990. P. 58 63

    10

    CAPTULO 1O ESTADO DA QUESTO

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    1.1 Mundializao da cultura e quebra das barreiras nacionais

    Para a realizao de uma pesquisa que tem como foco as mediaes e como elas

    viabilizam a recepo de produtos nipnicos por um pblico brasileiro, fundamental

    definirmos, em primeira instncia, o que cultura:

    Fenmeno unicamente humano, a cultura se refere capacidade que os seres humanos tmde dar significado s suas aes e ao mundo que os rodeia. A cultura compartilhada pelosindivduos de um determinado grupo, no se referindo pois a um fenmeno individual1

    dessa maneira que, atravs de cdigos simblicos e iconogrficos, uma

    determinada sociedade ou um determinado grupo se organiza com um intuito especfico.

    Com os admiradores da animao isso no diferente: atravs de cdigos prprios,

    organiza-se uma estrutura social resultante da criao e manuteno de laos de

    sociabilidade. A diferena que, no caso da animao japonesa, estamos falando de um

    produto que transpassa as barreiras das naes e que, portanto, passa por um processo de

    desterritorializao da cultura.

    Renato Ortiz, em seu livro Um Outro Territrio: Ensaios Sobre a Mundializao,

    discorre justamente a respeito de uma nova manifestao da cultura, fruto de um

    movimento econmico e poltico decorrente da globalizao. O autor comea o livro

    recapitulando o conceito de globalizao utilizado pelo discurso acadmico: de um lado,

    fenmeno indito e sem parmetros na histria da humanidade, de outro, um resultado do

    entrelaamento de foras econmicas, polticas e culturais desde o sculo XIX. A

    globalizao seria vista de diversas formas, mas todas elas creditariam ao Estado Nao

    uma centralidade cultural. Ortiz nega isso e diz que, com as mudanas profundas nas

    relaes sociais, no h nada mais a fazer a no ser criar novos conceitos luz das teorias

    clssicas. O autor comea separando as mudanas econmicas das culturais:Por isso, prefiro utilizar o termo globalizao quando falo de economia e tecnologia; sodimenses que nos reenviam a uma certa unicidade da vida social. Reservo, assim, o termomundializao ao domnio especfico da cultura2

    __________

    1. THOMAZ, Omar Ribeiro. A antropologia e o mundo contemporneo: cultura e divesidade. In:A Temticaindgena na escola. Braslia: Mec/Mari/Unesco, 1995. p.4272.ORTIZ, Renato. Um Outro Territrio: Ensaios Sobre a Mundializao. So Paulo: Olho Dgua, 2000. p.

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    Teramos, portanto, um movimento de duas dimenses complementares da

    modernidade-mundo: um que se caracteriza pela diversidade e individualizao da

    cultura e das relaes sociais, e outro que envolve todos esses elementos aparentemente

    desconexos em uma malha mais ampla 3 , cuja forma de manifestao a prpria

    expresso dessas partes individuais. Longe de ser um movimento que humaniza as relaes

    sociais, como querem os homens do marketing, ou uma fonte ideal de diferenciao entre

    pases desenvolvidos e subdesenvolvidos, como querem os tecnlogos, a globalizao seria

    o resultado de conflitos polticos e econmicos.

    Com isso estou sugerindo que a estrutura da modernidade-mundo engloba os fatores deordem poltica, articulando os diferentes nveis da realidade social. (...) Por isso, a poltica jno pode mais ser pensada em base exclusivamente nacional ou local. 3

    Teria que ser reformulado tanto o conceito de espao como o de cultura, tal qual j

    havia se cristalizado pelos romnticos. Nessa concepo, nota-se a demarcao das

    fronteiras e do espao fsico e o enraizamento da cultura, base dos estudos antropolgicos:

    a cada territrio, uma cultura diferente e independente, completa em si mesma. Mesma

    concepo que atravessa a idia de cultura popular como um elo de oposio cultura

    urbanizada e contaminada. Ela estaria ligada ao local, a uma origem demarcada, da a sua

    valorizao dentro do projeto da construo do Estado Nao.

    A modernidade-mundo vem alterar completamente o ideal romntico de cultura

    popular. O prprio sentido da viagem se modifica: o homem no mais se deslocaria no

    espao com o intuito de desbravar o desconhecido, pois o outro agora faz parte de seu

    imaginrio. Armado de guias tursticos e conhecedor de seu destino, o viajante j no

    mais um elo de ligao entre diferentes espaos e sim uma pessoa que quer sair da rotina e

    do ritmo do trabalho.

    A rigor, quando nos movemos no espao da modernidade-mundo, permanecemos no seuinterior. A sensao de estranhamento dessa forma substituda pela de familiaridade. 4

    _______________________________________________

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    3. ORTIZ, Renato. Um Outro Territrio: Ensaios Sobre a Mundializao. So Paulo: Olho Dgua, 2000. p.254. idem, p. 41

    13

    Por outro lado, a quebra das fronteiras da modernidade-mundo indicaria a

    desterritorializao do homem e da cultura.

    Basta olharmos o meio ambiente que nos circunda. Ele povoado por objetoscaractersticos de uma civilizao que se desterritorializou. Luz eltrica, nibus, automveis,avies, televisores, avies, televisores, computadores, supermercados, cinemas, shoppingcenters, ruas, avenidas e aeroportos exprimem a materializao da tcnica comodeterminante ecolgico. 5

    Ao mesmo tempo, essa cultura tem que se reterritorializar para fazer parte da vida

    das pessoas. nessa operao que entra os meios de comunicao de massa, na medida em

    que esto inseridos nas prticas cotidianas. No seria um erro, portanto, dizer que ateleviso em si uma mediao entre f e animao, na medida em que o meio

    reterritorializa um produto de origem cultural diversa.

    A importncia dos meios de comunicao no decorre do fato de eles serem de massa.Devemos perceb-los como intrnsecos modernidade que se tornou mundo. Eles conectamas partes dispersas na sociedade global, articulando-as a um mesmo processo. O mesmo

    pode ser dito em relao cultura. J no me parece conveniente pens-la comomassificao. Padronizao e diversificao no so universos excludentes. 6

    justamente nessa articulao que a televiso se torna uma mediao. No haveria

    a ligao intrnseca entre regio e cultura do modo como antes era concebido. A

    desterritorializao de signos e objetos daria razes a uma cultura internacional-popular, que

    no mais seria limitada s fronteiras dos pases e naes.

    Ao local, valorizado como autntico e caracterstico da diversidade, seria

    contraposta a nao como espao do uniforme e do inautntico. Essa idealizao do espao

    seria inapropriada, e o autor prope a idia de espao como um conjunto de planos

    atravessados por processos sociais diferenciados. 7 Trs seriam as dimenses do espao: a primeira, manifestao das implicaes das histrias particulares a cada localidade,

    geralmente isoladas de outros territrios; a segunda, manifestao das histrias nacionais,

    conexo entre as histrias locais atravs de um elo

    ____________________________________________________

    5. ORTIZ, Renato. Um Outro Territrio: Ensaios Sobre a Mundializao. So Paulo: Olho Dgua, 2000. p.

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    40.

    6. idem. p.1257. idem. p.61

    14

    transcendental; e a terceira, manifestao da mundializao, processo que atravessa os

    planos nacionais e locais, cruzando histrias diferenciadas 8. Na nova sociedade teramos,

    desse modo, uma tendncia de conjuno e de disjuno dos espaos.

    Estou, portanto, sugerindo que a mundializao da cultura, e por conseqncia, do espao,seja definida como transversalidade.(...) Com isso, estou sustentando, no existe umaoposio imanente entre local/nacional/mundial. Percebemos isso quando falamos docotidiano.(...) Tanto o nacional como o mundial s podem existir quando resultam emvivncias. 9

    Ao mesmo tempo que parte do cotidiano, alguns modos de comportamento e de

    organizao da vida so anlogos em diversas cidades. Novas categorias da cultura e

    referncias identitrias so formadas a partir de sua mundializao, como o consumo e a

    juventude, classificaes que fogem s demarcaes do territrio nacional e indicam as

    repeties de certas caractersticas comportamentais em diferentes regies do globo. Ao

    Estado Nao no caberia mais o monoplio de foras legitimadoras da cultura: diversas

    seriam as instituies que veiculam e legitimam prticas culturais. No entanto,

    mundializao da cultura no implica necessariamente democratizao: as prticas culturais

    seriam regidas por uma hierarquia, resultado do grau de poder e influncia que cada uma

    das instncias legitimadoras tem individualmente.

    Outra questo abordada pelo autor: a identidade. Fugindo de idias como a

    alienao e a concepo essencialista do ser (a identidade defitivamente , pode ser

    delimitada e demarcada) Ortiz prefere abordar o tema com a perspectiva de Lvi-Strauss:

    a identidade uma espcie de lugar virtual, o qual nos indispensvel para nos referirmos eexplicarmos um certo nmero de coisas, mas que no possui, na verdade, uma existnciareal. 10

    Seguindo esse raciocnio, o autor afirma:

    A rigor, faz pouco sentido buscar a existncia de uma identidade; seria mais correto pens-la na sua interao com outras identidades, construdas segundo outros pontos de vista. 11

    _______

    8. ORTIZ, Renato. Um Outro Territrio: Ensaios Sobre a Mundializao. So Paulo: Olho Dgua, 2000.

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    p.629. idem. p. 62-6310. idem. p.7911. idem. p.79

    15

    dessa maneira que no podemos pensar na definio de uma identidade nica e

    completa do f da animao, mas nos concentrarmos na busca dessas diversas identidadesentrecruzadas.1.2 Rearticulao Terica

    Revistas as noes de cultura, espao e identidade, resta-nos refletir a respeito de

    uma nova postura metodolgica que entenda a importncia das mediaes e dos meios de

    comunicao na formao de identidades. Jess Martin Barbero um dos principais

    tericos que desloca a percepo dos fenmenos sociais e comunicacionais de uma

    perspectiva fundamentalmente dialtica e dualista. Compreendendo a cultura a partir daprtica cotidiana, o autor busca entender quais os caminhos que levam manifestao de

    submisses e resistncias nas classes populares, pensando especificamente no universo da

    Amrica Latina.

    No foi apenas a limitao do modelo hegemnico o que nos obrigou a mudar deparadigma. Foram os fatos recorrentes, os processos sociais na Amrica Latina, os que estotransformando o objeto de estudo dos investigadores da comunicao.(...) A questotransnacional designa mais do que uma mera sofisticao do antigo imperialismo: uma novafase do desenvolvimento do capitalismo, em que justamente o campo da comunicao passaa desempenhar um papel decisivo. O que est em jogo no a imposio de um modeloeconmico, e sim o salto para a transnacionalizao de um modelo poltico. O que nosobriga a abandonarmos a concepo que tnhamos dos modos de luta contra adependncia, porque bem diferente lutar para se tornar independente de um pascolonialista, em combate frontal, com um poder geograficamente definido, de lutar por umaidentidade prpria dentro de um sistema transnacional, difuso, inter-relacionado e inter-

    penetrado de modo complexo 12

    justamente esse sistema difuso que vai gerar a desterritorializao da cultura, que

    se multiplica e se transforma a partir dos meios de comunicao e sua ligao com o

    cotidiano das pessoas. Na reformulao do discurso terico a partir das mudanas do objeto

    de estudo da comunicao, concepes cristalizadas pela dialtica seriam repensadas por

    Barbero. Segundo a dialticaA cotidianidade, que no est inscrita imediata e diretamente na estrutura produtiva, despolitizada e assim considerada irrelevante, in-significante. Mesmo assim, uma outrarealidade nos descortinada pelos relatos que comeam a contar o que acontece por dentroda vida dos bairros populares(...) o apego dos setores populares famlia no estnecessariamente relacionado, ou pelo menos no apenas, conservao do passado, e sim,como E. Durham prope to lcida e corajosamente, superao de um estadogeneralizado de desorganizao familiar associado a uma explorao muito mais brutal edireta da forma de trabalho. 13

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    __________12. MARTIN BARBERO, Jess.Dos Meios s Mediaes. Rio de Janeiro, editora UFRJ, 2003. p. 294-29513. idem. p.301

    16

    Ao mesmo tempo em que a famlia no um objeto de estudo sem relevncia, o

    consumo no simplesmente uma manifestao cega e desenfreada da desigualdade e da

    alienao. Pensar no consumo pensar tambm nas diversas formas em que ele est

    inserido no cotidiano, ou seja, no uso dos objetos consumidos e na resignificao que esse

    uso pode gerar:

    Da mesma forma, nem toda forma de consumo interiorizao dos valores de outrasclasses. O consumo pode falar e fala nos setores populares de suas justas aspiraes a umavida mais digna. Nem toda busca de ascenso social arrivismo; ela pode ser tambm umaforma de protesto e expresso de certos direitos elementares.(...)No se trata apenas demedir a distncia entre as mensagens e seus efeitos, e sim de construir uma anlise integral

    do consumo, entendido como o conjunto dos processos sociais de apropriao dos produtos.(...) O consumo no apenas reproduo de foras, mas tambm produo de sentidos: lugarde uma luta que no se restringe posse dos objetos, pois passa ainda mais decisivamente

    pelos usos que lhes do forma social e nos quais se inscrevem demandas e dispositivos deao provenientes de diversas competncias culturais. 14

    No caso da animao japonesa, temos uma oferta de diversos produtos relacionados

    ao assunto, como chaveiros, bons, psteres, mangs e fitas de vdeo, que adquire dessa

    maneira duas dimenses significantes: a da excluso, que impossibilita ou dificulta a

    participao efetiva de pessoas de menor renda no universo do f; e a dos usos, que

    transforma os objetos consumidos em mediaes das identidades dos admiradores da

    animao.

    importante destacar que a barreira econmica exclui na medida em que, para a

    construo da identidade de f, no basta apenas assistir aos desenhos; deve-se ter, antes de

    tudo, acesso a bens que exigem capital de investimento. De um lado, muitas pessoas se

    conhecem atravs de sites e fruns da internet o que exclui aqueles que no tem

    capacidade de adquirir um computador de outro, at a entrada em eventos do tema tem

    um preo monetrio que muitas vezes nem todos podem pagar. Isso faz com que grandeparte dos fs seja de classe mdia e alta.

    Apesar de no pensar diretamente na animao, Barbero realiza uma anlise que

    pode, corrigidos alguns detalhes, ser transferida para o universo aqui estudado:

    Essa viso, porm, comea a ser desafiada por uma antropologia urbana que, sem cair nasarmadilhas da antropologia da pobreza, isto , sem renunciar a uma concepo estrutural dadiferena e da conflitividade social, descobre que no trabalho no se

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    ___________

    14. MARTIN BARBERO, Jess.Dos Meios s Mediaes. Rio de Janeiro, editora UFRJ, 2003. p.301-302

    17

    fulano ou sicrano, jovem ou adulto, casado ou solteiro, homem ou mulher, e sim apenas umtrabalhador, um empregado. E embora essas identidades sobre as quais se estrutura emlarga medida a vida social possam repercutir na hora de vender a fora de trabalho, no no mercado nem no lugar de trabalho que elas se constituem, e sim na famlia e no bairro,onde se mora junto com vizinhos e amigos. O bairro surge, ento, como o grande mediadorentre o universo privado da casa e o mundo pblico da cidade, um espao que se estruturacom base em certos tipos especficos de sociabilidade e, em ltima anlise, de comunicao:entre parentes e entre vizinhos. O bairro proporciona s pessoas algumas referncias bsicas

    para a construo de um a gente, ou seja, de uma sociabilidade mais ampla do que aquelaque se baseia nos laos familiares, e ao mesmo tempo mais densa e estvel do que asrelaes formais e individualizadas impostas pela sociedade. 15

    Assim como o bairro, os espaos de encontro e socializao dos fs da animaotambm constroem as identidades, entre a indiferena da populao das grandes cidades e

    as ligaes emotivas restritas da famlia. Ao invs dos vizinhos, so os amigos que auxiliam

    no processo identitrio, justamente em contraponto a uma concepo preconceituosa de que

    o f aquele que, em seu fanatismo delirante, lidando apenas consigo mesmo e excluindo-

    se do mundo, fica o dia inteiro assistindo s animaes sem ter nenhum tipo de contato que

    extrapole os limites das relaes seguras e individualizadas da famlia. Nota-se que, em

    termos fsicos, esse espao de encontro pode variar consideravelmente: desde grupos de

    discusso na internet at pontos de encontro. A diferena a est justamente na

    desterritorializao dos laos de sociabilidade, que mantm em si o mesmo intuito de

    construir as identidades dos espectadores.

    Como j possvel perceber, a prpria anlise acima realizada exemplifica o

    deslocamento terico dos meios para as mediaes, como mais uma vez reafirmada pelo

    autor:

    preciso abandonar o mediacentrismo, uma vez que o sistema da mdia est perdendoparte de sua especificidade para converter-se em elemento integrante de outros sistemas demaior envergadura, como o econmico, o cultural e poltico.(...) Por isso, em vez de fazer a

    pesquisa a partir da anlise das lgicas de produo e recepo, para depois procurar suasrelaes de imbricao ou enfrentamento, propomos partir das mediaes, isto , dos lugaresdos quais provm as construes que delimitam e configuram a materialidade social e aexpressividade cultural da televiso. 16

    E para compreender essas mediaes que temos que partir para a anlise de uma

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    literatura especfica do assunto.

    __________15. MARTIN BARBERO, Jess.Dos Meios s Mediaes. Rio de Janeiro, editora UFRJ, 2003. p. 285-28616. MARTIN BARBERO, Jess.Dos Meios s Mediaes. Rio de Janeiro, editora UFRJ, 2003. p. 304

    18

    1.3 Aspectos histricos e industriaisAs pesquisas sobre a animao japonesa so escassas e dizem respeito, na maior

    parte das vezes, a uma perspectiva estrutural da linguagem ou a uma anlise histrica dos

    principais animadores e artistas que se envolveram com o meio. Mais raras ainda so as

    pesquisas focadas na realidade brasileira e nos modos como a animao se introduziu, por

    meio das redes de televiso abertas. Uma das pioneiras nos estudos dos quadrinhos

    orientais, Sonia M. Bibe Luyten pesquisa e leciona histrias em quadrinhos japonesas, e

    organizou o livro Cultura pop japonesa: Mang e Anim, que rene artigos de diversospesquisadores e realizadores sobre o universo das animaes japonesas e das histrias em

    quadrinhos, abordando desde a histria da animao at os primeiros eventos temticos do

    Brasil. Observa-se que muito do que escrito em relao ao mang ganha validez quando

    abordamos especificamente a animao japonesa, visto que a animao surgiu depois da

    histria em quadrinho, mas ambas tm caractersticas semelhantes em termos de linguagem

    e pblico.

    Uma das autoras de destaque da coletnea, Cristiane A. Sato, em seu artigo A

    cultura popular japonesa: anim, disserta a respeito da histria da animao e de seu

    surgimento pr-industrial e ps-industrial. Se, de um lado, Hollywood e as histrias em

    quadrinhos americanas so representantes de uma ideologia e de um modo de vida (o

    chamado american way of life), a animao japonesa tambm apresenta uma viso de

    mundo e uma ideologia tpica do Japo. Ao contrrio de uma imagem tradicional do pas

    oriental, povoada de samurais, catanas, gueixas, bonsais e templos, a animao apresentaria

    personagens magros, caricatos e de cabelos espetados, uma produo representativa de

    novas condies culturais, sociais e econmicas aps a bomba de Hiroshima.Entretanto, inegvel que por meio da animao difundiram-se internacionalmente aspectosde valores e referncias culturais japoneses, assim como o cinema hollywoodiano serviu dedifusor dos valores, do estilo de vida e da esttica norte-americanos. Isso se verifica noapenas na constatao pacfica de aspectos curiosos ou exticos que aparecem nessas

    produes, como tambm em situaes que geram interpretaes s vezes equivocadas econflitantes com a cultura local onde os desenhos japoneses so exibidos. 17

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    Sato analisa a produo independente e comercial do Japo dos primeiros cinqentaanos do sculo XX, representada principalmente pela grande quantidade de

    ____________17. SATO, Cristiane A.A cultura popular japonesa: anim. In: LUYTEN, Sonia M. Bibe (org.) Cultura Pop

    Japonesa. So Paulo: Hedra, 2005. p.2919

    curtas metragens do perodo, e curioso notar como desde o princpio houve uma

    influncia ocidental na produo japonesa:

    Por volta de 1910, as platias japonesas passaram a conhecer desenhos animados graas aoscinemas. Eram curtas-metragens mudos produzidos no que hoje se chama ncleo pioneirode animao de Nova York, onde ilustradores e desenhistas como o empreendedor JohnRandolph Bray e o artista Winsor McCay produziram suas primeiras obras. A novidade logolevou desenhistas japoneses a se aventurar nessa rea, mesmo por iniciativa individual. 18

    Mais uma vez, a reduo da influncia cultural a um territrio especfico e

    delimitado aparece desmistificada. E essa influncia continua, presente at nos expoentes

    da futura indstria que iria se consolidar.

    A produo revela-se intrinsecamente com as precrias condies materiais e

    financeiras do Japo da poca. Grande parte dos experimentos na poca foram realizados

    com o intuito de baratear a produo, como Imokawa Muzuko Genkanban no Maki (A

    montanha das idosas abandonadas), realizada pelo desenhista Oten Shimokawa com

    fotografias de desenhos feitos a giz numa lousa.

    At a dcada de 30, grande parte da produo baseada em lendas e fbulas do

    folclore japons. A partir do crescimento do militarismo no pas, que acabou culminando

    com a ditadura militar e a participao na Segunda Guerra Mundial, a animao foi

    censurada e serviu de propaganda para o regime. De forma anloga, com a ocupao norte-

    americana no pas aps o final da Guerra, foram profundas as mudanas efetuadas no

    cotidiano das pessoas, tanto na cultura como no modo de vida e valores do pas. Com essas

    alteraes, mais uma vez a censura era aplicada produo de animao, dessa vez

    impedindo de ser veiculada a manifestao e a propagao de idias ultranacionalistas e

    blicas. Curiosamente, a prpria palavra que designa a animao foi criada por influnciaocidental, no caso norte americana:

    No havia na lngua japonesa uma palavra distinta que significasse animao. A influnciaestrangeira trouxe ao idioma japons novas expresses, derivadas do ingls, como eeakon

    para ar condicionado e aisu kuriimu para sorvete. A partir da dcada de 1950, o termoanime, derivado do ingls animation, passou a ser usado como sinnimo de animao com aesttica e a tcnica desenvolvidas pelos japoneses, embora no Japo ela signifique todo equalquer desenho animado, japons ou no. 19

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    _________

    18. SATO, Cristiane A.A cultura popular japonesa: anim. In: LUYTEN, Sonia M. Bibe (org.) Cultura PopJaponesa. So Paulo: Hedra, 2005. p.3019. idem. p. 32

    20

    A produo continuou e, em 1958, foi produzido o primeiro longa metragem em

    cores do ps-guerra, Hakujaden (A lenda da serpente branca), uma parceria entre o

    diretor Taiji Yabushita e a produtora Toei Dga, que deu incio ao desenvolvimento

    industrial da animao no Japo.

    Para comprovar mais uma vez a constante influncia estrangeira na produo

    japonesa, foi sob inspirao dos filmes de Chaplin e dos desenhos animados da Disney que

    um dos mais importantes artistas que o Japo j conheceu comeou a sua produo: trata-se

    de Osamu Tezuka, um dos primeiros homens a conseguir conciliar o compromisso

    comercial com a produo artstica, elogiado tanto pela crtica como pelo pblico.

    Foi querendo trabalhar com animao que Tezuka introduziu uma linguagem

    cinematogrfica s histrias em quadrinhos. Em 1959, j consagrado como desenhista de

    mang, ele consegue entrar na prematura indstria de animao e, em 1961, funda o seu

    primeiro estdio, a Mushi Production. Pioneiro na televiso, lanou a primeira srie de

    anim regular da TV japonesa, Tetsuwan Atomu (Astro Boy), baseado na histria

    homnima desenhada pelo mesmo autor. Foi tambm o primeiro a exportar sries de anim,atravs do canal norte americano NBC, e o primeiro a lanar uma srie de anim em cores,

    Jungle Taitei (Kimba, o Leo Branco).

    Osamu colaborou intensamente para a consolidao da indstria da animao, no

    s em termos comerciais mas tambm em termos de linguagem. Como diz a prpria

    Cristiane A. Sato

    Ainda hoje difcil mensurar o impacto que Tezuka e sua obra causaram na culturajaponesa do ps-guerra. A animao no Japo evoluiu tanto em tcnica quanto emforma desde ento, mas na essncia nada de novo foi criado que no tivesse sido

    feito antes por ele. Questes ticas entre robtica e humanidade, terror paracrianas e desenhos erticos para adultos, a androgenia, dramas de vida e morte emhistrias aparentemente ingnuas e cmicas tudo o que hoje caracteriza o animena aparncia e no contedo foi antes testado pelo visionrio Tezuka. 20

    A indstria da animao japonesa cresceu de tal maneira que a produo abarca

    diversos tipos de gneros de histrias, cada um focado em algum pblico. Na classificao

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    redigida pela autora, os principais gneros so:

    ___________20. SATO, Cristiane A.A cultura popular japonesa: anim. In: LUYTEN, Sonia M. Bibe (org.) Cultura Pop

    Japonesa. So Paulo: Hedra, 2005. p.36

    21- Kyoodai Robotto (robs gigantes)-SF akushion (ao e fico cientfica)-Meruken (fbulas)-Meisaku shiriizu (sries de obras literrias)-Supaa Kaa (super-carros)-Shjo monogatari (histrias para meninas)-Bken akushion (ao e aventura)-Gyaku anime (anim humorstico)-Supootsu (esporte)-Yokai (mundo do sobrenatural)-Jidai geki (coisa de poca)-Kodomo anime (anim para crianas)- Adaruto e yaoi (os que tratam de sexo)

    Nota-se que, de toda essa imensa produo, apenas uma pequena quantidade

    exportada para o Brasil, predominantemente dos gneros shjo, bken, supootsu e yokai.

    Se foi a partir da dcada de 60 que a animao japonesa comeou a ser exportada,

    em meados da dcada de 80 que a produo para a TV alcanou seu apogeu. Nessa mesma

    poca, surgem os otakus, estereotipo de f que tambm superou as barreiras territoriais e

    alcanou o pblico brasileiro.

    A dcada de 1980 tambm marca o surgimento do otakismo. Um dos muitos tipos de zoku(em gria, em portugus, tribos) que surgiram no Japo do ps-guerra, os fs de animsforam denominados genericamente de otaku, expresso que vem do hbito em japons de sereferir a terceiros de maneira educada e impessoal e, em alguns contextos, de procurarafastar uma pessoa do crculo de convvio, referindo-se a ela de uma maneiraexageradamente formal. Alm disso, uma gria em japons que designa fs de anime pelohbito que estes possuem de ficar muito tempo em casa, isolados diante da TV e deequipamentos, assistindo a desenhos ou jogando videogames, absortos a ponto de secomportarem de forma doentia. No ocidente, muitas vezes traduz-se otaku como sinnimode nerd, mas apesar de ambos serem vistos com humor como pessoas socialmente inaptas,os otakus so conhecedores fanticos de um determinado assunto incomum, obtuso oucomplexo. 21

    interessante perceber como o termo otaku foi adaptado pelo pblico brasileiro das

    animaes: no mais uma palavra pejorativa, seria uma designao dos freqentadores dos

    eventos temticos e dos consumidores das animaes e dos mangs, praticamente um

    sinnimo de f. Apesar de no encontrar total aceitao entre todos os que assistem aos

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    anims, so unidos atravs desse estereotipo que muitos dos fs se renem e criam laos de

    sociabilidade.

    ____________21. SATO, Cristiane A.A cultura popular japonesa: anim. In: LUYTEN, Sonia M. Bibe (org.) Cultura Pop

    Japonesa. So Paulo: Hedra, 2005. p.38

    22No devemos esquecer que, apesar de ser um produto oriental e de ter caractersticas

    narrativas e estticas especficas, a animao japonesa no est restrita ao territrio

    nipnico e no resultado de um enraizamento cultural, como pretenderiam dizer os

    romnticos e populistas. Ela no s foi e influenciada por outras manifestaes culturais,

    por vezes ocidentais, como tambm influencia o hbito e o cotidiano de outras pessoas ao

    redor do mundo.

    Personagens como Mitsuo, Saori, Tetsuo, Kaoru e Yukito passaram a ser to comuns aos

    ouvidos dos ocidentais como nomes em ingls. A imagem dos olhos grandes e cabelosespetados se tornou familiar e passou a ser sinnimo de esttica japonesa, embora essevisual no corresponda realidade fsica dos orientais. Hbitos como comer bolinhos dearroz com hashis, usar uniformes escolares semelhantes a roupas de marinheiro, ver placas eletreiros escritos em japons e degustar pratos como okonomiyaki moda sulista aparecemtodos os dias na televiso, diante de crianas e adultos que desconhecem esses hbitos e quea partir desse inusitado meio passam a conhecer um povo com tradies e hbitos diferentes.22

    Trata-se de um dos expoentes de uma cultura mundializada, que desterritorializa as

    manifestaes culturais e as reterritorializa atravs de mediaes, dentre as quais se

    destacam os meios de comunicao. Os brasileiros no seriam mais aqueles que ouvem

    unicamente samba e pagode, danam no carnaval e jogam futebol: essa seria apenas uma

    das possibilidades, entre tantas outras, em que o homem pode se basear para construir sua

    identidade.

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    _________

    22. SATO, Cristiane A.A cultura popular japonesa: anim. In: LUYTEN, Sonia M. Bibe (org.) Cultura PopJaponesa. So Paulo: Hedra, 2005. p.29

    23

    CAPTULO 2AS MEDIAES

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    2.1 Introduo

    Uma vez detalhada a histria da animao e em que contexto ela est inserida,

    revela-se fundamental, para o esclarecimento das mediaes, que escutemos

    efetivamente o que os fs dizem a respeito do anim e de seu gosto. Cabe aqui elucidar

    que a pesquisa no tem um intuito quantitativo, e sim qualitativo. Portanto, no se

    pretende tomar decises precipitadas a respeito da preferncia de um pblico em geral,

    mas entender a perspectiva dos fs e o tipo de vnculo criado entre eles e o anim atravs

    da anlise aprofundada de entrevistas realizadas durante os dois maiores eventos

    temticos do Estado de So Paulo, o Animefriends e o Animecon. Diferentemente de

    uma descrio numrica, baseada em questionrios, a metodologia aqui apresentada

    utiliza de estudos dos casos a seguir transcritos.

    2.2 A Rede Manchete e os Tokusatsu

    Muitas foram as surpresas que o pesquisador encontrou com a realizao dasentrevistas. No a internet, mas fundamentalmente a televiso o principal meio de

    comunicao atravs do qual os fs entram em contato com a animao japonesa. Entre as

    redes de televiso, aquela que mais foi citada pelos fs foi a extinta Manchete.

    Pesquisador: Voc falou agora da Rede Manchete. Qual que foi o papel dela, elafoi importante para voc entrar em contato com o anim?Jorge: Foi importante, porque ela trouxe no s os anims, mas tambm os superheris japoneses, Jaspion, Changeman. Tinha a Globo, que passava bastante,

    mas depois ela parou de transmitir e foi a Manchete quem surgiu trazendoCavaleiros, Sailor Moon, Shurato, e foi a partir da que surgiram os eventos, osfruns, a partir da Manchete. Quando ela fechou, o pessoal quase perdeu osanims.

    No so raros os depoimentos de pessoas que citam a antiga emissora, aoresponderem se haveria um horrio especfico em que elas assistem ou assistiamaos desenhos japoneses.

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    P: J que voc assiste mais pela televiso os anims, voc se programa, por exemplo,pra assistir determinado anim porque ele passa determinada hora ou voc de repenteliga a televiso e est passando?

    24

    Edson Alexandre: Atualmente, eu estou mais pra ligo e assisto. J teve minhapoca de vai comear, vai comear, vamos l, vamos l e a gente juntar irmo oualgum outro amigo pra assistir. Dava 6 horas da tarde, 5 e meia que era quandocomeava os desenhos da Manchete, todo mundo ia pra frente da televiso e nosaa mais. Agora mais difcil, porque eles vivem mudando os horrios deexibio, ento voc se programa para assistir s 6, e daqui a duas semanas mudapras 8 horas, pras 7, ento muda muito o horrio e est mais difcil de seprogramar.

    a Manchete a primeira mediao encontrada na pesquisa, na medida em que

    reterritorializou um produto cultural de origem nipnica. Em que pese um certo tom

    nostlgico, presente tambm em outros momentos das entrevistas, foi a Rede Manchetequem no s resgatou os anims como os explorou regularmente como criao emanuteno de uma audincia especfica, principalmente infantil e pr-adolescente. Seriauma alternativa s grandes emissoras que, no vendo o anim em sua especificidade depblico, reduziriam ele a parte inconstante e temporria da programao.

    Mesmo que nem todos os fs tenham assistido Manchete, visto que o pblicoinfantil e pr-adolescente j no tem mais contato com a extinta rede de televiso, fundamental perceber que a emissora consolidou no s o interesse industrial pelosprodutos nipnicos, mas principalmente o interesse de um pblico que no se restringiria aintegrantes da colnia japonesa no Brasil, como explicita Francisco Noriyuki Sato arespeito da formao da Abrademi, primeira Associao de desenhistas e amantes da

    ilustrao japonesa no Brasil.Quando a Abrademi comeou em 1984, boa parte dos participantes eradescendente de japoneses, que cresceram lendo o mang em japons, e tinhamadquirido conhecimento e os traos do mang. Hoje, quem funda um grupo demang, na verdade, junta os fs de desenhos animados da TV ou de games, e nopropriamente fs do mang, das histrias em quadrinhos. (...) Depois que osdesenhos animados japoneses fizeram sucesso na TV, na dcada de 1990, aseditoras decidiram correr atrs, publicando os mangs exibidos na TV ou quefizeram sucesso em outros pases 1

    E foi com desenhos como Cavaleiros do Zodaco que a emissora se consolidou

    como mediao e parte integrante do imaginrio daqueles que apreciam as animaes,

    repetindo um fenmeno bastante comum em outros pases: a antecedncia do anim com

    relao s histrias em quadrinhos.

    ___________________

    1. NORIYUKI SATO, Francisco. O mang e o papel da Abrademi. In: LUYTEN, Sonia M. Bibe (org.)Cultura Pop Japonesa. So Paulo: Hedra, 2005. p.62

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    Inspirando sries de TV, os mangs espalharam sua influncia pelo mundo, pois os seriados,principalmente os desenhos animados, so os grandes embaixadores culturais do pas hdcadas, muito mais do que os quadrinhos que os inspiraram. Nesse aspecto, os animsforam os grandes divulgadores do trao de mang, antes de eles serem publicados fora doJapo. Antes de a narrativa em quadrinhos dos mangs vir a pblico, os traoscaractersticos j eram conhecidos em vrios pases, graas s boas audincias das sriesanimadas. 2

    Ao que complementa o comentrio de Alfons Molin, a respeito do anim Dragon

    Ball e de sua importncia na popularizao da animao na Espanha:

    preciso destacar que a dragonballmania comeou na Catalunha, antes de se espalhar peloresto do pas. (...) Desde 1983, o governo autnomo da regio tem sua prpria cadeia deteleviso, chamada TV3, que transmite em catalo. (...) Em 1990, passaram a transmiti-lo, eo sucesso foi imediato, conquistando crianas, adultos e adolescentes.

    Deste modo, Dragon Ball se converteu em um exemplo de fenmeno multimdia pelapopularidade de seus fs, independente de complicadas campanhas de mercado. Por nohaver quadrinhos nem outros produtos licenciados do Dragon Ball, os fanticos catales edo resto da Espanha criavam e vendiam fanzines baseados nos desenhos de Son Goku e nosdemais personagens da srie, feitos por artistas amadores ou fotocopiados do original

    japons. 3

    Assim como na Espanha, portanto, antes do interesse das editoras e dos fs pelo

    mang, foi a televiso e em especial a Manchete quem inseriu a animao japonesa no

    cotidiano dos fs e ajudou na construo de um imaginrio que movimenta demandas e

    sentires que, se no forem correspondidos industrialmente, fazem-se ouvir por outros meios

    de expresso.

    Mas, como possvel perceber j no primeiro trecho transcrito das entrevistas, antes

    de exibir os anims a Manchete explorou um gnero at ento desconhecido no Brasil: o

    Tokusatsu.Entre os filmes live-action, existe no Japo o gnero tokusatsu (efeitos especiais), queengloba filmes de fico e fantasia, especialmente aqueles com monstros e super-heris,cuja maioria est voltada ao pblico infanto-juvenil. Consolidado nos anos 50 com Godzilla,esse gnero ganhou fora na televiso nas dcadas de 1960 e 1970, em sries comoUltraman, Kamen Rider e tantas outras. De propores bem menores que a indstria do

    ___________

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    2. NAGADO, Alexandre. O mang no contexto da cultura pop japonesa e universal.. In: LUYTEN, SoniaM. Bibe (org.) Cultura Pop Japonesa. So Paulo: Hedra, 2005. p.523. MOLIN, Alfons. Penetrao do mang no Ocidente: o caso espanhol. In: LUYTEN, Sonia M. Bibe(org.) Cultura Pop Japonesa. So Paulo: Hedra, 2005. p.43 - 44

    26

    anim e mang, o tokusatsu parte integrante da cultura pop japonesa, com vrioscruzamentos entre essas mdias. 4

    Os super heris japoneses, apesar de fazerem parte de seriados interpretados por

    atores reais, fazem parte do imaginrio de muitos fs assim como personagens de desenhos

    animados como Cavaleiros do Zodaco e Dragon Ball. Foi atravs desses heris que muitas

    pessoas tiveram um primeiro contato com a cultura popular japonesa.

    P: Voc teve um primeiro contato com o anim e depois com o mang, ou primeirocom o mang e depois com anim?

    Emanuela Salovini: Na verdade eu comecei com Live Action, Jaspion, Changeman. Isso foih dez anos. Depois de um tempo fiquei sabendo que tinha aula de desenho, comecei a fazerdesenho, comecei a assistir Inuyasha, Full Metal Alchemist. Ento foi a partir da quecomecei a freqentar evento e comprar objetos do assunto.

    Observa-se como o Tokusatsu serviu de mediao no s para a criao do vnculo

    entre animao e fs, mas tambm para a prtica de atividades como o desenho por parte de

    alguns telespectadores. Como disserta Alexandre Nagado, o gnero live-action tem j no

    Japo uma relao intrnseca com a indstria da animao e das histrias em quadrinhos:

    Apesar de a maioria das criaes serem feitas para a TV ou o cinema, a relao do tokusatsucom o mang estreita.(...) O mais influente criador de heris para a TV, ShotaroIshinomori (de Cyborg 009), foi discpulo direto de Tezuka, alm de um autor renomado demangs. Duas de suas muitas criaes, o motoqueiro mascarado Kamen Rider e o quintetocolorido Go Ranger, tornaram-se marcos do tokusatsu, influenciando vrias produes athoje. (...)Em 2003 viu-se a estria de quatro sries de TV e o anncio de vrias produes para ocinema, em um movimento de retomada do gnero que faz lembrar o auge do passado.Vrios tokusatsu serviram de inspirao para muitos autores de mang. Vale lembrartambm que entre os produtos derivados de personagens televisivos famosos vrios mangs

    foram produzidos, a maioria destinada ao pblico infanto-juvenil masculino. 5

    Essa relao se repetiu no Brasil, com a diferena de que o tokusatsu serviu de

    mediao principalmente para a animao japonesa, e no para o mang. Isso se deve no

    s ao fato da mesma rede de televiso ter investido em ambas as produes de forma

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    4. NAGADO, Alexandre. O mang no contexto da cultura pop japonesa e universal.. In: LUYTEN, SoniaM. Bibe (org.) Cultura Pop Japonesa. So Paulo: Hedra, 2005. p.505. Idem.

    27

    regular, mas tambm ao do pblico dos tokusatsu exibidos no Brasil ser o mesmo dosprimeiros anims transmitidos pela Manchete, o infanto-juvenil masculino.

    2.3 Os Anime Songs

    As animaes japonesas seriadas para a televiso tm, em sua grande maioria, uma

    formatao especfica: primeiramente, uma abertura com as personagens principais e uma

    msica, logo aps a prpria animao dividida em dois ou trs blocos, cada um dos quais

    premeditado por uma pequena vinheta de passagem com um ou mais personagens da srie,

    e logo em seguida a vinheta de encerramento, ainda com imagens dos personagens

    principais e geralmente com uma msica diferente da de abertura.

    Essa diviso, que para muitos pode parecer meramente comercial e sem significado,

    transmite um sentido na medida em que no s explora as personagens principais como

    tambm coloca em evidncia e reitera uma das principais mediaes entre fs e animao: a

    msica.

    Apesar da animao ser um produto predominantemente visual em sua linguagem, a msica um elemento do desenho que, mais do que fazer parte de uma narrativa, integra e

    constri um imaginrio audiovisual. Os anime songs

    um dos segmentos do mercado fonogrfico japons, formam um gnero que engloba asmsicas de trilhas sonoras de anims, games e produes em live-action de aventura. Almdisso, elas incluem as msicas criadas para os personagens de mang. Diversos mangs jinspiraram CDs com dilogos de histrias e msicas compostas especialmente para serviremde apoio aos quadrinhos. 6

    Nota-se que, pela prpria ligao industrial e de linguagem entre o mang e a

    animao japonesa, os personagens das histrias em quadrinhos so, em grande parte, os

    mesmos dos anims. E, se a msica importante j no mang, na animao e nas vinhetas

    _______________

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    6. NAGADO, Alexandre. O mang no contexto da cultura pop japonesa e universal.. In: LUYTEN, SoniaM. Bibe (org.) Cultura Pop Japonesa. So Paulo: Hedra, 2005. p.54

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    de abertura e encerramento que ela alcana o seu status mximo, confundindo-se inclusive

    com a prpria msica popular japonesa.

    At os anos 70, os discos com temas de anims e seriados tokusatsu eram esquecidos nofundo das lojas. E foi graas presso de alguns cantores, especialmente de Ichirou Mizuki(renomado cantor dos temas de Mazinger Z, Captain Harlock e Spielvan), que lutou paraque o nome anime song fosse aceito como um segmento de mercado. Alm dele, umagrande variedade de bons cantores, como Isao Sasaki, Takayuki Miyauchi, Mitsuko Horie,entre outros, fixaram seus nomes no mercado fonogrfico japons cantando temas de animse tokusatsu. Conforme surgiam novos ttulos, o termo foi ganhando fora de mercado e

    ficando mais abrangente, a ponto de se mesclar com o J-pop (a msica pop japonesa),adquirindo ares mais modernos e atraindo o pblico adolescente, alm do infantil. Nessaonda, nomes consagrados como X Japan, Glay, Larc~en~ciel, V6, Tetsuya Komuro, NamieAmuro e outros gravaram anime songs em seus repertrios. 7

    Observa-se o crescimento desse tipo de msica e como ele importante inclusive

    para os prprios cantores e msicos. So apoiados em anime songs que muitas vezes

    bandas e nomes antes desconhecidos passam a ser admirados, nem que seja

    temporariamente. Mas, mais do que promover carreiras musicais, a trilha sonora dos

    anims acaba por reafirmar e consolidar a prpria animao em sua relao com seustelespectadores.

    P: Quanto a J-Pop e J-Rock, voc ouve eles, gosta do som?

    Edson Alexandre: Eu no acompanho. No sou aquele cara que diz nossa, que banda legal,vou baixar todas as msicas dessa banda na internet. Eu gosto das musiquinhas de desenho,decoro as msicas de anim, algumas msicas, porque muitas so marcantes, marcam muitocada desenho. Quando voc gosta de um anim, geralmente voc gosta tambm pelo menosda msica de apresentao do anim. Ento, por exemplo, Yuyu Hakusho eu acho que sei

    pelo menos metade de todas as msicas que passaram pelo anim, tanto a de abertura comotodas as de encerramento, que foram vrias. E eu acho que sei metade de todas elas, tanto a

    traduo como em japons mesmo. Ento eu gosto das msicas de anim, mas noacompanho a banda, acompanho a msica do desenho.

    fundamentalmente a ligao com personagens de anim e com as prprias

    animaes que faz com que muitos dos cantores japoneses que comparecem a eventos

    temticos no Brasil alcancem uma popularidade que ao mesmo tempo restrita aos

    _____________

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    7. NAGADO, Alexandre. O mang no contexto da cultura pop japonesa e universal.. In: LUYTEN, SoniaM. Bibe (org.) Cultura Pop Japonesa. So Paulo: Hedra, 2005. p.54

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    desenhos e tokusatsu em questo. desse modo que Masaaki Endo, ao participar da edio

    do Animefriends de 2006, foi lembrado no tanto pelo seu nome ou sua carreira, mas pelas

    msicas que fez para desenhos como Street Fighter II V, Cowboy Bebop e Cybaster.

    Os anime songs tambm ajudam na criao e manuteno de laos de sociabilidade,

    como indica o entrevistado.

    P: Voc acha ento que as msicas temticas, de abertura e encerramento, soimportantes pra voc, elas fazem parte de sua memria?

    Edson Alexandre: Com certeza. Quando voc junta amigos, e comea a falar vocviu tal desenho, voc viu tal animao, lembra da msica? todo mundo comea acantar a msica. Toda animao, quando voc grava algumas coisas, voc gravaalgumas falas mais importantes, uma ou outra cena e sempre a msica. Todo f deanim ou de desenho acaba gravando a msica. Mesmo em srie, voc acabagravando ela, porque o que mais marca do anim a msica, todo mundo conheceela, se voc gosta daquele desenho voc sabe a msica daquele desenho, quaseque uma obrigao. No , mas enfim, como se fosse uma obrigao vocdecorar.

    Alm de servir de mediao entre o f e a animao, os anime songs tambm

    mediam o prprio relacionamento entre os telespectadores. Mas nota-se que nem sempre

    essa mediao espontnea: ela pode ser fruto de uma coero social entre os prprios fs.

    P: Voc diz obrigao, mas isso sai meio que espontneo, ou algum cobra?Edson Alexandre: Ah no, ningum cobra ningum, espontneo, voc acabadecorando porque voc gosta. Quando voc est em grupo, se voc no sabe voc

    pergunta pro seu amigo, se voc no lembra ele acaba te falando como e voc fala verdade, legal, e comea a cantar. Quando a gente sai de eventos, cantando nometr, cantando no nibus, na rua, as msicas, algum diz lembra de tal msica?e comea a cantar. Quanto mais antiga, mais fcil, melhor a msica. Nossa, voc

    lembra de tal msica, que legal!. Mas no porque obrigao, porque legal.

    Apesar do entrevistado negar, fica evidente a importncia social que a msica tem

    como elo de ligao entre os fs, e como esse relacionamento pode ser construdo atravs

    de sanes e regras. O depoimento tambm revela a prpria contradio do relacionamento

    entre os fs: ao mesmo tempo um espao de deveres e de libertao, de regras e de diverso

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    descompromissada. Como diz o prprio Alexandre Nagado

    30

    Todo f que se preze tem vrias msicas na ponta da lngua, independente deconhecer ou no o idioma no qual a msica cantada. 8

    Independente do f ter conhecimentos de japons ou no, a msica dos anims

    uma das mediaes mais importantes no processo de identificao entre os telespectadores

    e a animao e um elemento importante da criao de laos de sociabilidade.

    2.4 Os Dubladores

    Ainda que a cultura cada vez mais se mundialize, existem elementos em particular

    que separam e delimitam os espaos nacionais. Assim como Renato Ortiz argumenta, oespao na modernidade-mundo est dividido entre a dimenso local, a nacional e a

    mundializada: seria um erro negar as particularidades culturais que ainda perduram entre as

    diferentes naes.

    Nesse aspecto, o Japo est muito distante culturalmente do Brasil. E um dos

    principais exemplos dessa disjuno dos espaos nacionais a lngua. Por mais que na

    msica ela no tenha tanta importncia para os fs, visto que a trilha sonora utilizada

    como forma de integrao social mesmo com os escassos ou nulos conhecimentos dejapons de grande parte dos fs, durante o episdio a expresso lingstica fundamental

    porque sem o seu domnio no possvel compreender o enredo e o que as personagens

    dizem. Ainda que a animao tenha uma srie de elementos predominantemente visuais,

    eles no podem explicar a histria e os conflitos dentro dela sem um auxlio lingstico.

    No Japo, a lngua j importante a ponto dos dubladores, donos das vozes dos

    personagens, serem objeto de admirao e prestgio:

    A popularidade foi to grande que, entre as revistas especializadas, existemttulos voltados a dubladores (chamados seiyuu), que gravam discos e tmseguidores fiis, hipnotizados pelos donos das vozes que do emoo aosseus personagens. No h nenhum pas do mundo em que a dublagem toglamourosa. 9

    _____________

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    8. NAGADO, Alexandre. O mang no contexto da cultura pop japonesa e universal.. In:LUYTEN, Sonia M. Bibe (org.) Cultura Pop Japonesa. So Paulo: Hedra, 2005. p.55

    9. Idem. p.52

    31

    Para superar as dificuldades do idioma japons, duas so as opes das redes de

    televiso e dos demais retransmissores da animao japonesa: legendar os anims ou

    redubl-los para o portugus. Por mais que haja opinies contrrias entre os fs,

    conseguimos constatar atravs das entrevistas que, para parcela dos admiradores e em

    alguns anims em especial, a dublagem uma mediao importante na constituio das

    identidades e dos vnculos entre fs e animao.

    P: Voc prefere um anim dublado ou legendado?Emanuela Salovini: Depende. Se ele for bem dublado, eu prefiro dublado. Se no for,prefiro em japons mesmo, no original.P: Voc prefere um anim dublado ou legendado?Edson Alexandre: Olha, depende muito do anim. Tem muitas dublagens timas que vale a

    pena voc assistir dublado. Geralmente voc acaba assistindo os dois, tanto o dublado comoo legendado. (...) o legendado geralmente mais fiel ao que eles realmente dizem. Nem todadublagem eles seguem exatamente o original. As vozes mudam muito. s vezes voc temuma personagem com uma voz fina, na dublagem ele fica com uma voz mais grossa, issodescaracteriza um pouco o personagem. Voc est acostumado com um personagem comuma voz e isso muda na verso dublada.

    Por mais que haja uma certa resistncia dublagem, sua importncia comomediao explicitada posteriormente:

    P: Ento voc no um f assduo da dublagem?Edson Alexandre: Olha, eu j fui em evento em homenagem a dubladores. E peguei oautgrafo de alguns tambm, ainda mais os dubladores antigos, de Cavaleiros do Zodaco,Cavaleiros uma puta dublagem, eles no passavam verso legendada. Esses desenhos que

    passavam dublado, lgico, eu adorava, no tinha como criticar, mesmo porque a dublagemde Cavaleiros ficou bem fiel aos personagens. Do japons pro portugus a voz ficou bemmarcada.(...) E eles fazem outras vozes, desenhos de criana mesmo, voc comea a reparare a voz a mesma. muito legal isso, voc est assistindo o desenho e de repente j ouviessa voz antes, que desenho que , que desenho que ?, e da voc tenta descobrir.

    P: Voc tem nome de dubladores de cabea?Emanuela Salovini: Eu gosto muito do Gilberto Baroli, que faz o Saga e o Kanon, e tambmfaz o Shion, gosto tambm do Nelson Machado que faz o Kiko, ele muito gente boa, aLuciana Baroli que a nova dubladora da Shun Rei, a Flavinha, eu no lembro bem quemela dubla, e o Guilherme Briggs, que faz o Cosmos dos Padrinhos Mgicos.

    Observa-se como as vozes dos dubladores marcam a ponto de servirem de elo de

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    ligao entre diferentes desenhos animados. Existem eventos dedicados aos profissionais

    que, em alguns casos, conhecem pessoalmente muitos de seus fs e so objetos de

    admirao. Apesar de estarem ligados fundamentalmente s personagens que interpretam,

    32

    muitos dubladores acabam tendo tanto destaque que superam os limites da animao: seus

    nomes, j no mais ocultos e desconhecidos, compartilham o imaginrio dos fs junto com

    outros de personagens como Seya, Goku e Shinji.

    Curiosamente, na dublagem que muitas vezes se manifesta um certo patriotismo:

    Edson Alexandre: (...) o que eu disse, gosto da dublagem quando ela bem feita. Adublagem do Cavaleiros foi bem feita, tem timos dubladores, os dubladores que eu conheciso timos. Quando a dublagem feita no Brasil ela boa, eles so bem profissionais, sque muitas vezes eles mandam fazer muita coisa fora do Brasil, porque mais barato, s que

    o pessoal de Portugal no fala que nem brasileiro. Fica mais barato, mas no fica toprofissional. Eu acho que a dublagem brasileira boa.

    Eis uma citao que explicita o entrecruzamento das dimenses que compem o

    espao: de um lado, uma animao de origem japonesa e mundializada atravs dos meios

    de comunicao; de outro, uma dublagem que gera admirao justamente por seu carter

    lingstico restrito aos limites da nao.

    2.5 Os Eventos Temticos e os Cosplayers

    Como j expressado no incio deste captulo, na dcada de 1980 a grande maioria

    dos fs brasileiros dos mangs e das poucas animaes japonesas que ocasionalmente eram

    transmitidas pelas redes de televiso abertas era descendente de japoneses. Com a chegada

    da rede Manchete e o passar do tempo, conforme a demanda pela animao japonesa foi

    aumentando e deixando de ser exclusiva a um crculo restrito de descendentes orientais,

    comearam a surgir eventos temticos em maior nmero e de maior pblico.

    Lotando grandes festivais, esses fs (chamados ou no de otakus) comearam a chamar aateno da grande mdia. E os grandes eventos, como AnimeCon e Anime Friends, mostramum pouco do universo pop derivado do mang como acontece no Japo, oferecendo umgrande pacote de atraes: feiras de mangs e fanzines; palestras com pesquisadores,

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    dubladores e desenhistas; concursos de fantasias; karaok; mesas de RPG; torneios degames; exposies de desenhos etc. O repertrio de atraes enorme e no pra de crescer.10

    E so justamente esses eventos temticos que indicam uma sociabilidade entre os

    admiradores da animao. Talvez no tenhamos claramente o mapa de uma organizao

    social, mas possamos fazer um esboo dela baseado nas mediaes aqui apresentadas.

    So justamente os eventos temticos que indicam uma das principais mediaes

    entre f e animao, e que sugere um pouco do tipo de interao social existente em

    espaos como o AnimeCon e o Anime Friends: os cosplayers.

    Nessas convenes, talvez o que mais chama a ateno daqueles que vem de fora sejam osconcursos de cosplay abreviao de costume play - , ou seja, as roupas de interpretar ou

    brincar que reproduzem trajes de personagens de mang, anim, games ou tokusatsu. Emconcursos, no basta desfilar vestido a carter, mas reproduzir as falas e os gestos do

    personagem idolatrado, vivenciando um pouco de sua realidade imaginria. Por conta disso, comum ver em convenes vrias pessoas desfilando com seus trajes coloridos algunscom acabamento altamente profissional para a euforia dos presentes. 11

    Essas roupas de brincar e de jogar, mais do que auxiliar na construo de um

    imaginrio imagtico, indicam um jogo social que reitera o paradoxo constatado quandofalamos dos anime songs: ao mesmo tempo em que submersos em relaes de deveres e

    restries, os fs tambm participam de um espao caracterizado pela diverso espontnea

    e pela libertao.

    P: E por que voc faz cosplay?Snia Emlia: Porque quando voc faz um cosplay voc pode ser quem voc quer ser, emum dia voc pode fazer qualquer coisa, voc pode at voar, lgico que voc no vai voar,mas voc pode. Voc pode criar asas, voc pode realizar coisas que no conseguiria, e aquiningum te chama de louco. Na rua, se voc vestisse uma sainha de colegial e uma gravata,

    todo mundo ia dizer essa menina louca, no est bem da cabea. Se eu sasse com ocosplay da Sailor Moon ou da Mstica o pessoal ia dizer meu deus, ela pirou, est louca.Agora, aqui no, aqui voc a Mstica, voc a Sailor Moon, voc quem quiser.

    P: E o que voc acha dos eventos temticos receberem bem os cosplayers?

    Snia Emlia:Acho legal, porque, puxa, divertido, um outro clima, fora da realidade,uma realidade fora da realidade, um mundo em que s quem entende mesmo consegueentrar. Tem gente fora, que no gosta de anime, que vai olhar e vai dizer esse povo louco,sair de casa desse jeito, pagar mico na rua. Na verdade eu acho que quem critica que

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    gostaria de fazer, mas no tem coragem.__________10. NAGADO, Alexandre. O mang no contexto da cultura pop japonesa e universal.. In:LUYTEN, Sonia M. Bibe (org.) Cultura Pop Japonesa. So Paulo: Hedra, 2005. p.5611. idem.

    34

    Ora, justamente na distino entre os de fora e os de dentro que se percebeuma separao entre o espao dos fs e o restante da sociedade, recriminadora de prticas

    culturais estranhas a uma suposta cultura nacional, de raiz. na liberao dos costumes que

    se percebe um novo tipo de sujeito, no mais ligado estritamente a rodas de samba e jogos

    de futebol. Trata-se de uma nova manifestao da identidade, resultado do cruzamento das

    dimenses espaciais de Ortiz e das diversas mediaes ocultas no processo de recepo e

    interao entre fs e animao.

    essa realidade fora da realidade que possibilita a libertao de costumes e

    prticas dos admiradores da animao, e os eventos temticos parecem ser uma

    manifestao em especial dessas novas demandas no satisfeitas pela cultura oficial.

    Reiterando o que foi dito no depoimento, tanto no AnimeCon como no Anime Friends,

    percebeu-se um ambiente fundamentalmente descontrado e descompromissado.

    Em meio a estandes de editoras e lojas de artigos japoneses, camisas e psteres,

    entre telas gigantes de vdeo games, arenas de lutas restritas a armas de espuma e palcos

    onde se realizavam shows e apresentaes, pessoas de diversas regies do pas ostentavam

    placas em que estavam registradas desde a procura por determinados cosplayers atafirmaes desconexas e descontextualizadas que tinham como nico intuito representar

    sentimentos como alegria e entusiasmo. Ao som de msicas de animaes japonesas e

    tokusatsu (Jaspion, Changeman), muitas eram as referncias a signos prprios e peculiares,

    entre os quais o mais popular era a representao iconogrfica de uma gota, significante

    que expressa constrangimento e comum a grande parte dos anims.

    Observa-se como diversas eram as manifestaes de sentimentos que muito

    provavelmente seriam reprimidos em outros espaos. tambm nesses eventos que se

    percebe como o esteretipo de otaku no corresponde realidade dos admiradores da

    animao no Brasil.

    O pblico brasileiro formado por muitas garotas e casais de namorados otakus, o que seriauma contradio no Japo. Muito mais soltos, entusiastas e barulhentos do que suascontrapartes orientais, os fs brasileiros se acotovelam por um autgrafo de seu dublador

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    ___________12. NAGADO, Alexandre. O mang no contexto da cultura pop japonesa e universal.. In: LUYTEN, SoniaM. Bibe (org.) Cultura Pop Japonesa. So Paulo: Hedra, 2005. p.5613. MARTIN BARBERO, Jess.Dos Meios s Mediaes. Rio de Janeiro, editora UFRJ, 2003. p.279

    36

    No podemos dizer, portanto, que os cosplayers simplesmente so pessoas que

    imitam alguns personagens de forma descontrada. Trata-se de uma importante mediao,

    na medida em que auxilia no s na cristalizao de um imaginrio, mas tambm na

    construo e teatralizao de uma unicidade social.

    2.6 Observaes Finais

    Antes de tomarmos decises precipitadas a respeito das mediaes anteriormente

    apresentadas, revela-se fundamental a realizao de algumas ponderaes acerca do objeto

    de estudo. Ao realizarmos a pesquisa de campo, muitas foram as surpresas encontradas e

    que contrariaram pressupostos do pesquisador. De todos os sete entrevistados, apenas um

    considerou os fruns e grupos de discusso pela internet como importantes para a criao e

    manuteno de laos sociais. Para assistir aos anims, como grande parte deles ou

    veiculada por canais de televiso a cabo, restritos a uma minoria, ou simplesmente no so

    transmitidos pelas redes de televiso abertas, os entrevistados acabam assistindo s

    animaes tanto pela internet como pela tv.

    As supostas mediaes de consumo no apareceram como significativas: apesar deestarem presentes diversos stands de editoras e lojas nos eventos temticos, os nicos

    produtos que foram mais citados pelos fs foram os mangs e as histrias em quadrinhos.

    Os fanzines tambm no encontraram tanta aceitao entre os entrevistados, e apesar de

    terem uma importncia histrica e comunicacional, no foram considerados, pelo menos

    para a realidade brasileira, como mediaes relevantes entre fs e animao.

    Uma caracterstica fundamental, constatada atravs das entrevistas, foi justamente a

    diversidade de tipos de f, de forma que no podemos reuni-los em uma categoria estanque.

    Mesmo animaes de importncia e popularidade histricas, como Cavaleiros do Zodaco,

    no encontraram aceitao entre todos os entrevistados. Assim como h uma grande

    variedade de gneros na animao japonesa, h tambm uma grande variedade no pblico

    que as consome. Desde descendentes de japoneses que aprenderam o japons atravs do

    mang e do anim, at pessoas sem qualquer tipo de descendncia e ligao de parentesco

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    com o oriente. Portanto, ao invs de um f especificamente, seria correto pensarmos a

    respeito dos diferentes tipos defs das animaes.

    37

    No seria difcil, portanto, na tentativa de abranger a vrios tipos de fs, que nem

    todas as mediaes listadas neste captulo se refiram a cada admirador da animao

    isoladamente. Para algumas pessoas, por exemplo, talvez os anime songs no tenham tanta

    importncia na criao de suas identidades. Para outras, talvez sejam os tokusatsu a

    mediao de menor relevncia.

    Porm, apesar da grande diversidade, parece-nos que ainda existem pontos em

    comum: ao serem questionados se sentiam um preconceito por assistirem s animaes e

    freqentarem os eventos temticos, seis dos sete entrevistados responderam que sentiam

    algum tipo de discriminao.

    P: Voc acha que existe um preconceito, uma certa resistncia de conhecidos,familiares ou amigos com relao ao seu gosto por anim?

    Snia Emlia: (...) Em casa no tem preconceito nenhum, eles at me ajudam a fazer oscosplays. Minha me me deu de aniversrio o cosplay, todo o material pra fazer. Entreamigos, amigos mesmo, eles falam nossa, que legal, que coragem. Agora, rola um

    preconceito sim, de pessoas que realmente no entendem o que a gente faz. Eles chegam efalam imagina, nem que me pagassem eu fazia um negcio desses, voc louca, no bate

    bem da cabea, tem um parafuso a menos. E eu fao teatro, e mesmo no teatro, o pessoalconsegue falar uma coisa dessas. Voc louca, sair na rua fantasiada?. Pessoas que

    trabalham nessa rea, eles mesmos no entendem, ento rola realmente um preconceito.

    Nota-se, usando as palavras de Martin Barbero, que a criao e manuteno de um

    espao social entre os fs no deixa de ser um mecanismo de resistncia s limitaes

    impostas por uma sociedade e um conceito de cultura que somente legitima quilo que se

    enquadra a uma essncia brasileira. Essa resistncia, por mais paradoxal que possa ser,

    talvez seja o ponto em comum entre grande parte dos entrevistados e fs da animao

    japonesa. Trata-se de perceber a importncia de novas demandas reprimidas e de dar a voz

    queles que, na maior parte das vezes, no so ouvidos:

    P: Para finalizar, o que voc diria para algum que diz que desenho coisa de criana?Snia Emlia: Seja criana, no tem coisa melhor neste mundo.

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    CAPTULO 3UMA REALIDADE FORA DA REALIDADE

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    3.1 Os cavaleiros do zodaco e as mediaes

    Apesar de esclarecidas algumas das mediaes entre os fs e a animao, resta ainda

    a elucidao de uma de vital importncia.

    P: Mas o que te atrai no Non Gnesis Evangelion, voc acha que so as lutas,ou o qu?

    Lucas Falcone:O que mais me atraa era o conflito interno dos personagens. O queeu gosto mais da trama entre eles, como eles reagem sob situaes de presso queocorrem no anim.

    Ora, no s a histria atrai os telespectadores, mas fundamentalmente os

    personagens nela inseridos. E isso se torna mais claro ainda quando falamos de uma

    animao em especial.

    P: Qual que foi o primeiro anime que voc viu e te deu vontade de assistirmais e mais?Emanuela Salovini: Cavaleiros do Zodaco.P: E o que te atraiu no desenho, a violncia, os personagens?

    ES: As personagens, a histria e tambm algumas cenas que a gente nunca esquecedo anime.P: Voc se lembra de alguma?ES: Eu lembro da luta do Ikki com o Shaka nas dozes casas, do Shiryu fazendo de

    tudo pra salvar o Hyoga na stima casa. So essas cenas que a gente faz de tudo paraassistir.

    Nota-se como um imaginrio construdo a partir dos prprios personagens da

    animao: so eles que intercalam os sujeitos e constroem a narrativa na memria do

    telespectador. E isso se torna mais claro quando refletimos a respeito do anim cavaleiros

    do zodaco:

    P: O que voc acha que te atraiu no cavaleiros do zodaco?Jorge: Foi mais a histria. Porque ela tinha um comeo e um fim. No fica naquelaenrolao das personagens, sempre muda quem est lutando, ento foi mais porcausa disso.

    P: E porque voc acha que cavaleiros do zodaco e yuyu hakusho te atraram?Edson Alexandre: Principalmente os personagens e os roteiros, eram os maisoriginais da poca. No eram to clichs. At ento, a maioria dos desenhos que

    passavam na televiso eram caras vestidos de roupas estranhas que lutavam pelo

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    bem com um grupo, salvas algumas excees. A vieram os anims e mudou umpouco, cavaleiros e yuyu hakusho criaram uma base para vrios desenhos quevieram depois.

    40

    Para melhor compreender a importncia dos personagens, revela-se indispensvel aanlise da linguagem empregada e construda em alguma animao. Entender tambm a

    prpria histria e como ela contada faz parte do intuito de explicar a perspectiva dos fs e

    as mediaes que as intercalam. E nada melhor para os devidos fins do que analisar a

    prpria animao cavaleiros do zodaco: alm de ser a mais citada nas entrevistas,

    cavaleiros um exemplo de anim que superou as barreiras nacionais japonesas com

    sucesso. Foi exibido em pases como Frana, Espanha, Mxico, China, Tailndia, Itlia e

    Taiwan.

    No Brasil, alm de ter sido um dos primeiros anims a ser exibidos com sucesso

    pela Manchete, foi de grande importncia no s pela criao de um interesse industrial,

    mas principalmente pelo atendimento a demandas de um pblico at ento carente de outras

    manifestaes culturais.

    Os Cavaleiros do Zodaco chegaram ao Brasil em 1994. No dia 1 de Setembro era exibido,na extinta REDE MANCHETE, o primeiro episdio da srie. O sucesso veio de imediato enaturalmente (sem muita divulgao). O desenho comeou a ser exibido em dois horrios:s 10h30min dentro do programa infantil Dudalegria e s 18h30min dentro de outro

    programa infantil Clube da Criana. A Manchete ficou marcada pela constante reprise dosepisdios (sempre que chegava no episdio 52 a srie comeava a ser reprisada desde oincio). Os Cavaleiros do Zodaco ficaram no ar at 1997, batendo recordes de audincia.

    Neste tempo muitos produtos foramlanados, podendo destacar: lbuns, cd e lp musical(chegou a ganhar at disco de ouro), mochilas, estojos, etc.

    Uma grande febre de bonecos (ACTION FIGURES) comeou a se formar. Cerca de900.000 bonecos foram vendidos nos 3 anos em que a srie esteve no BRASIL. Alm dissoo longa metragem de ABEL foi exibido nos cinemas e teve grande pblico.Assim que a srie parou de ser exibida, as emissoras de TV viram que poderia ser uma boainvestir em desenhos animados japoneses. Comearam a aparecer muitos outros animes masnenhum conseguiu cativar tanto pblico quanto Os Cavaleiros do Zodaco. 1

    De fato, so poucas as animaes japonesas mais populares no Brasil do que

    cavaleiros do zodaco. Com o relanamento da srie em setembro de 2003 no canal fechado

    Cartoon Network e em 2004 no canal aberto Bandeirantes, at hoje cavaleiros lembrado

    como um marco que cativa tanto a gerao que teve seu primeiro contato com os anims

    atravs da Manchete, como por aqueles que comearam a assistir aps o fechamento da

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    emissora.

    ________1. Dados disponveis em < http://www.cavzodiaco.com.br>. Acesso em 25 de outubro de 2006.

    41

    No se trata, contudo, de generalizar as caractersticas futuramente dissertadas paratodas as animaes, indistintamente. Muitos dos elementos narrativos do desenho talvez

    no pertenam a outros anims, dada a vasta quantidade de gneros e histrias.

    Entretanto, cavaleiros do zodaco no deixa de ser um exemplo vlido, na medida em

    que sua importncia histrica e sua popularidade possam indicar e elucidar melhor as

    mediaes anteriormente apresentadas.

    3.2 A proposta do no-realPor ser uma animao, cavaleiros do zodaco consegue unir simultaneamente a

    narrativa cinematogrfica, televisiva e quadrinhstica de forma a criar uma esttica e um

    modo prprio de construir a histria apresentada na tela.

    De um lado, a srie dividida como descrito no captulo anterior: primeiramente

    uma vinheta de abertura acompanhada de msica (neste caso, adaptada para o portugus),

    posteriormente a diviso de blocos com vinheta de passagem, e ao final uma vinheta de

    encerramento tambm acompanhada de trilha musical. As vinhetas variam ao longo das

    temporadas em que est o desenho, acompanhando o desenvolvimento da histria e dos

    personagens. As msicas so muito populares e bastante conhecidas entre os fs.

    Em todas as entrevistas em que a dublagem foi citada como mediao, cavaleiros

    do zodaco foi um exemplo dado, no s como qualidade na dublagem mas tambm como

    destaque em relao a outras sries. Os dubladores desse anim at hoje comparecem aos

    eventos temticos e tm uma legio de fs, sendo que alguns em especial esto entre os

    mais populares. Gilberto Baroli, dublador do cavaleiro Saga de Gmeos, j ministrou

    diversas palestras sobre dublagem em que, ao final da apresentao, repetia

    entusiasticamente a expresso exploso galctica, nome do golpe do personagem, para a

    euforia dos fs presentes.

    Um exemplo explcito da importncia dos dubladores como mediao na vinheta

    de abertura do longa metragemA Batalha de Abel: enquanto a mesma apresentao da srie

    http://www.cavzodiaco.com.br/http://www.cavzodiaco.com.br/
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    de televiso estava passando, Hermes Baroli, dublador do protagonista Seya tambm na tv,

    falava para todos a respeito do filme que iriam assistir e dos prximos lanamentos que

    ainda iriam ocorrer. Por mais que essa estratgia faa parte de uma divulgao comercial do

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    produto em questo, no se pode ignorar a importncia que o dublador tem para os fs da

    animao, caso contrrio outra atitude teria sido tomada para a divulgao do produto.

    Ainda que algumas pessoas prefiram a animao legendada e no dublada, a dublagem de

    cavaleiros do zodaco foi especial na medida em que auxiliou na mediao de um tipo de

    desenho ainda novo no Brasil e desconhecido de grande parte do pblico que ainda faria

    parte da legio de fs brasileiros.

    Aliados s msicas e dublagem, so empregados diversos ngulos de viso,

    maneira cinematogrfica de se narrar. Mas seria um erro se creditssemos ao cinema agrande influncia na linguagem da animao: se, do ponto de vista industrial, os anims so

    realizados geralmente aps a histria em quadrinho homnima, a partir dela que so

    retirados os principais elementos narrativos do desenho animado.

    E com cavaleiros do zodaco isso no diferente. Posterior ao mang homnimo, o

    anim se pauta justamente pelo no realismo, ou seja, no se procura criar um desenho que

    tenha como objetivo ser naturalista ou imitar de forma mais fidedigna possvel a natureza.

    Ao contrrio, a narrativa pautada por uma idealizao das formas e dos movimentos. Os

    personagens, estilizados, tm suas feies simplificadas e juvenescidas, com destaque aos

    olhos: grandes, ocupam boa parte do rosto dos personagens e so puxados horizontalmente,

    ao invs de terem um formato mais arredondado, realista. Os olhos nos anims

    so imensos, estranhamente brilhantes como se do seu interior sassem fascas luminosas.Tezuka Ossamu foi quem introduziu essa nova modalidade e, por gosto ou modismo, taltendncia perdura at hoje, com pouca probabilidade de desaparecer a mdio prazo. Apesardo tamanho imenso dos olhos, as sobrancelhas so desenhadas com um trao muito fino,quase imperceptvel.(...)

    A nova gerao de desenhistas de japoneses v uma identificao com as figurasocidentais, sem estarem elas ligadas a uma nacionalidade especfica. As prpriasgueixas e samurais so vistos assim pelo gosto inconsciente do homem japonsmoderno. E, cada vez mais, esses olhos grandes e estticos fixam, po