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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE MEDICINA
NÚCLEO DE EDUCAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA
Novas modalidades de gestão “público e privada” na atenção básica no Brasil:
uma análise a partir do PMAQ
New forms of public and private management in primary care in Brazil: an analysis of PMAQ
Autores
Alaneir de Fatima dos Santos, Doutora em Ciência da Informação, UFMG. NESCON/FM/UFMG;
Ângela Maria de Lourdes Dayrell de Lima, Mestre em ,NESCON/FM/UFMG;
Daisy Maria Xavier Abreu, Doutora em Saúde Pública, UFMG. NESCON/FM/UFMG;
Lucas Henrique Lobato de Araújo, Doutorando de Pós Graduação da Enfermagem, UFMG;
Maria Luiza Ferreira Evangelista, Graduanda, UFMG. NESCON/FM/UFMG;
Clarice Reis, Mestre Medicina de Família, Universidade MCGILL, Canadá; NESCON/FM/UFMG;
Simone Cristina Rodrigues, Graduanda, UFMG. NESCON/FM/UFMG;
Claudia Renata de Paula Orlando, Graduanda, UFMG. NESCON/FM/UFMG;
Antônio Thomaz Gonzaga da Matta Machado, Doutor em Saúde Pública, UFMG.
NESCON/FM/UFMG(Coordenador do Projeto de Pesquisa).
Belo Horizonte
2013
Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ
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Palavras chave
Reforma do serviço de saúde, gestão em saúde e avaliação em saúde.
Créditos
Ministério da Saúde/Secretaria de Atenção à Saúde/Departamento de Atenção Básica (DAB)/
Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica
Resumo
Na construção do Estado brasileiro, distintos padrões de relacionamento público e privado se
estruturaram ao longo do tempo. Nas modernas concepções de estruturação do aparato
estatal, a atividade regulatória estaria no cerne de novas modalidades de relacionamento
público-privado, bem como de novas relações entre diferentes segmentos do aparelho de
Estado. Os interesses organizados estariam voltados para o exercício da influência na
definição das regras de gestão de prestação de serviços públicos e dos recursos transferidos
para o controle da iniciativa privada. Neste contexto, novos arranjos jurídico-institucionais
foram estabelecidos, ampliando progressivamente a inserção de modalidades privadas na
gestão e provisão de serviços de saúde no Brasil. O presente estudo pretende conhecer a
abrangência destas novas modalidades na atenção básica no Brasil, relacionando-as com o
processo de certificação propiciado pelo PMAQ – programa de melhoria do acesso e
qualidade, através da análise da certificação na dimensão da gestão do processo de trabalho
em saúde. Foi realizado um estudo descritivo com os dados preliminares obtidos pela
certificação do PMAQ-AB coletados no período de setembro a dezembro de 2012. O
universo pesquisado englobou 15.514 equipes certificadas, em 3972 municípios participantes.
Foi realizada uma categorização dos doze agentes contratantes encontrados em: público,
administração direta e indireta, privado lucrativo, privado não lucrativo e outros. Através de
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análise bi-variada, utilizando o teste qui-quadrado, foi verificada a existência de associação
estatisticamente significativa entre o nível de certificação atribuído a equipe de saúde da
família e o agente contratante apenas quanto a organização dos prontuários e informatização e
organização da agenda. Os resultados evidenciaram que a maioria das equipes de saúde da
família possuía a administração direta como agente contratante em todas as regiões, com
destaque para o Norte, com 92%, enquanto o Sudeste possui o menor percentual desse agente
contratante (68%). Destaca-se na região Sudeste o privado não lucrativo como agente
contratante das equipes de saúde da família, atingindo o percentual de aproximadamente 24%.
Por este estudo, observou-se que estas novas modalidades não trazem ganhos importantes de
melhoria de acesso e qualidade, a não ser um dos cinco atributos analisados. Estes novos
padrões de relação público/privado, preconizados pela reforma do estado brasileiro, estão
progressivamente se estruturando na área de saúde.
Introdução
A organização dos serviços de saúde no Brasil passou por importantes mudanças nas últimas
décadas, com o processo de implantação/consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS).
Essas mudanças geraram demandas que incluem a organização do processo de trabalho, de
forma a responder às necessidades da população no nível local e de referenciar os casos mais
complexos para os demais níveis do sistema. No processo de organização da atenção à saúde,
é preciso definir as estratégias de operacionalização da rede de serviços, de modo a compor e
gerir equipes de trabalho, organizar a estrutura física e tecnológica do sistema local,
disponibilizar insumos, dentre outras ações. Uma importante estratégia para viabilizar estas
propostas é o fortalecimento da Atenção Básica em Saúde (ABS).
A ABS caracteriza-se por um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo,
que abrangem promoção, proteção e recuperação da saúde, com o objetivo de desenvolver
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uma atenção integral que repercuta na situação de saúde e autonomia das pessoas e nos
determinantes e condicionantes de saúde das coletividades (STARFIELD, 2002, GIL, 2006).
A sua operacionalização ocorre por meio de práticas de cuidado e de gestão participativas,
conduzidas pelo trabalho em equipe e direcionadas a populações de territórios estabelecidos,
pelas quais assume a responsabilidade sanitária. A ABS utiliza tecnologias de cuidado
complexas e variadas que devem auxiliar no atendimento às demandas e necessidades de
saúde de maior prevalência e relevância em seu território, considerando critérios de risco e
vulnerabilidade, tendo como imperativo ético a questão de que toda demanda, necessidade de
saúde ou sofrimento deve ser atendida. Na sua concepção, a ABS representa o contato e a
porta de entrada preferencial dos usuários na rede de atenção à saúde. Seus principais
princípios e diretrizes são: territorialização e responsabilização sanitária; adscrição dos
usuários e vínculo; acessibilidade, acolhimento e porta de entrada preferencial; cuidado
longitudinal; ordenação da rede de atenção à saúde; gestão do cuidado integral em rede;
trabalho em equipe multiprofissional (BRASIL, 2006).
Nos últimos anos, a principal estratégia no Brasil para a expansão da ABS é a estratégia
Saúde da Família (SF), que tem recebido importantes incentivos financeiros visando à
ampliação da cobertura populacional e à reorganização da atenção prestada. A estratégia SF
aprofunda os processos de territorialização e responsabilidade sanitária das equipes de saúde,
compostas basicamente por médico generalista, enfermeiro, auxiliares de enfermagem e
agentes comunitários de saúde. O trabalho da equipe SF é referência de cuidados para a
população adscrita, com um número definido de domicílios e famílias assistidos por equipe
(BRASIL, 2001).
Apesar da crescente expansão da ABS por meio das equipes de SF nas últimas décadas, os
desafios persistem e indicam a necessidade de articulação de estratégias de acesso aos demais
níveis de atenção à saúde, de forma a garantir o princípio da integralidade, assim como a
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necessidade permanente de ajuste das ações e serviços locais de saúde, visando ao
atendimento das necessidades de saúde da população e a superação das desigualdades de
oferta e acesso entre as regiões do país.
Com o intuito de avaliar o acesso e a qualidade das equipes da ABS no Brasil, o Ministério da
Saúde instituiu em 2011 o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da
Atenção Básica (PMAQ-AB). O projeto PMAQ-AB é composto de várias fases de
implementação que culminam com a certificação das equipes de Atenção Básica de acordo
com um padrão de qualidade.
Um dos aspectos que deve ser considerado no processo de avaliação da qualidade da ABS
refere-se aos tipos de agentes jurídico-institucionais utilizados na contratação de profissionais,
pois, esse componente pode interferir no planejamento de estratégias e instrumentos de
gestão. Estes novos tipos de agentes jurídico-institucionais configuram, na prática, novas
modalidades de gestão e provisão dos serviços de saúde, com impactos importantes na
concepção e estruturação do SUS.
Considerando a oportunidade de se analisar a realidade das equipes de saúde da atenção
básica, por meio da avaliação externa do PMAQ-AB, é importante conhecer as experiências
de arranjos jurídico-institucionais em andamento na atenção básica, tendo em vista o seu
papel ordenador do sistema de saúde e coordenador do cuidado.
Justificativa.
As mudanças nos arranjos jurídico-institucionais decorrentes do processo de modernização do
Estado brasileiro estão demarcando a introdução de novas modalidades de contratação de
profissionais, de gestão e de provisão de serviços na atenção básica.
Diversos agentes jurídico-institucionais estão atuando na atenção básica no Brasil e torna-se
relevante tipificá-los por natureza da atividade, forma de criação ou de qualificação, forma de
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aquisição dos recursos orçamentários e financeiros, forma de contratação e gestão dos
recursos humanos, além de conhecer como se caracterizam os contratos e as prestações de
contas dessas instituições. Para o entendimento dessa tipificação, os órgãos públicos de
administração direta e indireta, as atividades privadas lucrativas e não lucrativas e de interesse
público do Estado fundamentaram o modelo de análise de arranjos jurídicos institucionais na
atenção básica (SALGADO; GIRARDI, 2011).
Nesta perspectiva, é importante identificar como essa nova configuração jurídico-institucional
tem alcançado a atenção básica, questão essa ainda pouco conhecida no Brasil. A avaliação
externa do PMAQ-AB representa uma oportunidade de investigar esse quesito na pesquisa
nacional das equipes de atenção básica. Foi possível obter informações sobre natureza jurídica
do agente contratante dos coordenadores das equipes, considerando-os com atribuições que os
qualificam como representantes legítimos da forma de atuação da equipe e, portanto, a
natureza jurídica de seu agente contratante poderia ser considerada como a mais
representativa da configuração jurídico-institucional da equipe de saúde.
Há diferentes possibilidades de abordar o tema. A vertente explorada neste trabalho, que
caracteriza a participação dos agentes contratantes de coordenadores de equipes de atenção
básica, é apenas uma delas. A intenção foi a de estabelecer pontes entre um conjunto de
aportes teóricos destacadamente das ciências políticas e jurídicas com uma base empírica
constituída pela descrição e análise de características dos agentes contratantes segundo a
dimensão de gestão do processo de trabalho e acesso à atenção básica. Trata-se de um trajeto
ainda em desenvolvimento, mas suficientemente instigante para suscitar o debate e, portanto,
estimular críticas e sugestões parciais ou integrais para posterior revisão e aprimoramento do
trabalho.
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Objetivos
Geral:
Caracterizar a Natureza Jurídica de agentes contratantes das equipes de saúde da
família certificadas e sua associação com os resultados obtidos na sua certificação do
programa de melhoria de acesso e qualidade, no que se refere à dimensão gestão no
processo de trabalho e acesso.
Específicos:
Caracterizar a distribuição da natureza jurídica dos agentes contratantes dos
coordenadores das equipes de saúde da família por região;
Verificar a associação entre natureza jurídica dos agentes contratantes dos
coordenadores das equipes de saúde e a certificação das equipes por categorias que
compõem a subdimensão gestão do processo de trabalho e acesso.
Referencial Teórico
A discussão relativa a abrangência das novas modalidades de gestão experimentadas no
sistema público de saúde no Brasil na atenção básica, nos remete ao processo de estruturação
do Estado brasileiro, no qual distintos padrões de relacionamento público/privado se
estruturaram ao longo do tempo. O conflito resultante ou tensão que se verifica entre as duas
esferas, do público e do privado, constituiria assim, a essência mesma da política e de seu
processo de institucionalização. Baseada na análise de Boschi (2002) será reconstituída,
brevemente, a trajetória da estruturação do Estado brasileiro, desde a era Vargas.
A estruturação do Estado brasileiro, particularmente na era Vargas, inicia o processo de
incorporação de segmentos da sociedade civil, ainda limitados do ponto de vista de direitos
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universais, com ênfase nos trabalhadores organizados em um contexto de urbanização
crescente da sociedade brasileira.
No entanto, trata-se das primeiras iniciativas de conformação de elementos de representação -
ainda que fortemente ancorados em estruturas corporativas, que passam a ter acesso, através
de mecanismos de representação, ao Estado brasileiro -, que vinha de uma tradição de
estruturação formada unicamente pelas elites brasileiras.
O corporativismo implantado nos anos 30 pode ser interpretado, segundo Boschi (2002),
como uma síntese institucional, delimitando a fronteira entre o público e privado, ainda que,
como em outro tipo de arranjo, encobrindo as apropriações do público pelo privado que
operam por contatos pessoais, vínculos clientelistas, estabelecimento de redes, enfim, no
espaço cinzento entre as duas esferas. Por outro lado, embora replicando desigualdades
sociais básicas, o corporativismo significou a mobilização e organização das classes sociais
pela via da representação de interesses, no qual os benefícios garantidos pela estrutura oficial
advinham dos mecanismos de filiação compulsória e do imposto sindical.
A dimensão da representação pode ser ressaltada como um fator positivo a conferir algum
grau de legitimidade e transparência aos arranjos corporativos. Dessa forma, a representação é
um traço a reter e a se recuperar da lógica do velho corporativismo. Trata-se da delimitação
do espaço público a partir da hierarquização categórica de interesses, mas, sobretudo
instaurando uma lógica em que a representação era um princípio fundamental. Também, o
lado patronal se estruturou de forma paralela para defesa de seus interesses e disputa de
possibilidades.
Esta dimensão da representação é um traço importante a ser ressaltado no processo de
construção do Estado brasileiro, na medida em que as propostas pós-reforma do Estado
situam estas características do Estado brasileiro como limitadoras para o âmbito de
instauração de uma sociedade baseada em direitos universais.
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Esta estruturação do Estado brasileiro, neste período, avança na conformação de uma
incipiente estrutura estatal na área de saúde, com a divisão do território nacional em distritos
sanitários, 13 serviços nacionais por especialidades, divisão de organização hospitalar, que
convive com as estruturas de prestação de serviços advindos dos Institutos de Aposentadorias
e Pensões (IAPs). Observa-se a construção dos fundamentos de um sistema nacional de saúde
e também a emergência do dualismo institucional, instituído pelo processo de industrialização
via o estabelecimento da indústria automobilística no ABC paulista.
Em 64, é interrompida esta dinâmica de construção do Estado brasileiro, com os interesses
mercantis iniciando seu processo de institucionalização no âmbito do Estado brasileiro. São
criadas as principais estruturas de institucionalização do mercado privado da saúde no Brasil,
em uma articulação deletéria entre ações estatais e interesses privados. No início da década de
90, os planos e seguros de saúde já cobrem 13,9 % da população brasileira.
Será no âmbito do movimento democrático que redunda na estruturação da constituição
brasileira, em 1988, que os interesses universais em relação à saúde passam a ser assegurados
no âmbito da estruturação do Estado brasileiro, através da criação do Sistema Único de Saúde.
Este processo de incorporação de segmentos da sociedade civil é redefinido na dinâmica de
modernização do Estado.
No entanto, a conjuntura do final do ciclo desenvolvimentista, em meados da década de 80,
coloca em xeque a estruturação do Estado com estas características. As iniciativas de inserção
do país na dinâmica do processo de globalização, por um lado e as exigências macro-
econômicas no plano interno por outro lado, redundam em uma proposta estruturada de
reconfiguração do espaço público/privado, sintetizada em uma proposta de reforma do Estado
brasileiro.
A transição anunciada, baseada no tripé estabilização, privatização do patrimônio estatal e
abertura comercial no que se refere aos aspectos da relação público-privada, segundo Boschi
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(2002) terá como consequência uma radical transformação do papel estratégico do Estado na
medida em que a lógica do mercado se interpenetra na dinâmica de funcionamento do Estado
e os atores da economia globalizada passam a ser a tônica das ações executivas. O Estado
passa a reconfigurar-se fundamentalmente para a implementação de uma política econômica
voltada para os agentes externos, com a subordinação de todas as demais dimensões. Não se
trata do fato que as reformas tenham destituído o Estado de sua capacidade de intervenção,
particularmente na área de políticas sociais.
Essa reconfiguração do Estado interpõe o mercado como o fundamento das relações no
interior do próprio aparato estatal, deste com relação à sociedade e entre os principais atores
organizados. Quanto ao Estado, observa-se uma orientação, no âmbito do setor privado, no
sentido de privilegiar os investidores internacionais, na tentativa de inserir-se no processo de
globalização em detrimento dos domésticos. No âmbito dos atores sociais, descontrói-se o
antigo corporativismo centrado em cenários de representação, para um processo seletivo de
incorporação de atores a partir de uma lógica estabelecida de competitividade. Poderia estar
se desenhando uma assimetria de maneira ainda mais seletiva, relegando à esfera das práticas
localizadas de governança e descentralização de políticas a incorporação de atores subalternos
(BOSCHI, 2002).
Nesta nova configuração, na atividade regulatória estaria o cerne de novas modalidades de
relacionamento público-privado, bem como de novas relações entre diferentes segmentos do
aparelho de Estado (BOSCHI, 2002). No primeiro caso, os interesses organizados estariam
voltados para o exercício da influência na definição das regras de gestão de prestação de
serviços públicos e dos recursos transferidos para o controle da iniciativa privada. No segundo
caso, em função da atividade regulatória, o papel das agências autônomas subtrai do
congresso a prerrogativa de legislar sobre matérias pertinentes aos direitos dos cidadãos
(consumidores) e sobre os limites da atividade empresarial privada (investidores). Neste
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quadro, destaca-se a possibilidade de apropriação diferenciada do espaço público por
interesses privados, os mais organizados entre os organizados. Segundo Boschi (2002),
diferentemente do velho corporativismo, nos quais a representação constitui um fator
fundamental, passa a privilegiar a eficiência e a profissionalização como fundamento da
atuação dos grupos privados no domínio do público.
Predomina uma ideia que a eficiência quanto aos resultados, constrói a base de legitimidade,
em contexto de restrição importante da dimensão democrática da nova ordem constituída.
Tende-se a privilegiar o interesse dos investidores em relação aos consumidores. É tênue a
possibilidade de controle por parte do legislativo, são baixos os graus de transparência dos
processos internos, e altos os custos para a democracia com influência irrestrita.
Instaura-se assim um novo tipo de corporativismo, que tem na oposição entre investidores e
consumidores sem critérios de representação, seu novo eixo de conflito e assimetria estrutural.
Do velho ao novo corporativismo, observa-se um movimento contrário que iria da
publicização crescente de interesses privados na ordem estatal à privatização de interesses
públicos na ordem pós-reformas.
Duas questões são identificadas por Boschi (2002). No velho corporativismo ocorria uma
coincidência entre o espaço de decisão e de representação, no novo, o espaço de decisão está
insulado no âmbito das agências regulatórias. A outra dimensão impõe-se a partir da cisão
entre resultados e processos, enfatizando resultados e eficiência econômica no curto prazo, em
detrimento da representação política e do controle democrático sobre o processo decisório.
Boschi aponta que esta nova modalidade de regulação redunda, não na erosão do Estado – já
que este não perde como se enfatizou, sua capacidade de intervenção – mas no
enfraquecimento da democracia.
Na área de saúde no Brasil, os processos de modernização da estrutura estatal sob a égide de
atividades regulatórias estabeleceu-se a partir da estruturação, em 1999, da Agência Nacional
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de Vigilância Sanitária (ANVISA) Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), criada
em 2000. Também a possibilidade de modernização da estrutura estatal se dá a partir de
regulamentações que estabelecem a possibilidade de novos arranjos jurídicos, que
possibilitam um escopo novo de interação entre a dimensão pública e privada no âmbito do
Estado brasileiro. A criação das Organizações Sociais (OS) (Lei nº 9.637/1998), Organizações
da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) (Lei nº 9.790/1999) dentro deste contexto e
mais recentemente, as normatizações relativas à existência de Organizações Não
Governamentais (ONG) (Lei nº 12.435/2011) e Entidade Filantrópica (Lei nº 12.435/2011),
configuram novas situações de relação público/privado, afetando o processo de gestão e
provisão de serviços.
A reforma administrativa do Estado têm importantes repercussões na gestão dos serviços de
saúde. O modelo implementado, na prática, enfatiza as dimensões relativas ao gerencialismo e
ao processo progressivo de desresponsabilização do Estado, no âmbito da área de saúde.
Conforme Azevedo e Andrade (1996), a reforma baseava-se na proposta de “diferenciação e
separação das funções que integram o repertório de ações do setor público”, tendo como
pressuposto a existência de um conjunto de atividades exclusivas do Estado. Esse modelo
apresenta um caráter “geral e homogêneo pretendido para resolver a questão da administração
pública nos três níveis de governo” e baseou-se “na flexibilidade dos meios de gestão dos
segmentos de prestação de serviços” (AZEVEDO; ANDRADE, 1996, p.74 e 75).
Entretanto, essas modalidades não subordinadas à administração direta ou indireta do Estado
foram introduzidas no SUS como uma alternativa para viabilizar maior oferta de serviços de
saúde com ampliação da cobertura e acesso. Isso pode ser considerado, uma vez que os
gestores buscavam maior flexibilidade, pautados pelas concepções gerencialistas e como
forma de contornar a Lei de Responsabilidade Fiscal na gestão de recursos humanos.
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Conforme destaca Bahia (2011, p.119):
como a rede ‘pública’ é integrada por estabelecimentos privados (entre as
quais as filantrópicas) e a ‘privada’ por instituições públicas (entre as quais
estabelecimentos estatais), a rigor a rotulação público ou privado resulta de
uma apropriação bastante singular – uma transposição de características da
demanda (a cobertura ou não por planos e seguros privados de saúde) à
oferta de ações e serviços de saúde.
Fundamentam essas concepções teorias liberais do campo da economia ou da administração
prescrevendo a “naturalização” das práticas de mercado na prestação da assistência à saúde.
Destaca-se o documento da Associação Latino-Americana de Medicina Social (ALAMES) já
em 1993, que apresentava uma crítica à transposição para a América Latina do conceito de
mescla (mix), elaborado e utilizado por organizações multilaterais, como o Banco Mundial.
Para a ALAMES, ao invés de utilizar a ideia de mescla (mix) público/privada, deveria ser
adotado o conceito de "articulação público/privado”, mais adequado para a compreensão das
complexas relações entre o público e o privado no sistema de serviços de saúde de países em
desenvolvimento. (SESTELO; SOUZA; BAHIA, apud EIBENSCHUTZ, 2013)
A presença dessas modalidades sempre foi mais marcante na gestão da área hospitalar, mas
nos últimos anos, face à ampliação da atenção básica, com o surgimento e expansão do PSF,
observa-se a introdução de novos arranjos institucionais, principalmente na gestão dos
recursos humanos. Segundo Barbosa (2010, p. 2498),
(...) este modelo vem se expandindo no país, obrigando técnicos,
gestores e usuários a uma profunda reflexão sobre os limites entre
público e privado no setor saúde, incluindo as vantagens e
desvantagens sobre o processo de flexibilização da gestão do trabalho
e os riscos da precarização de vínculos, já observados na Estratégia de
Saúde da Família.
Nesse sentido, identificar os diversos tipos de agentes jurídico-institucionais públicos e
privados utilizados para a gestão de recursos humanos na atenção básica, é importante para o
desenho de estratégias e melhoria dos processos de gestão (GIRARDI, 2003).
Observa-se que, de acordo com a legislação vigente, há um conjunto de diversos agentes
jurídico-institucionais contratados para atuar na atenção básica e torna-se relevante tipificá-los
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por natureza da atividade, forma de criação ou de qualificação, forma de aquisição dos
recursos orçamentários e financeiros, forma de contratação e gestão dos recursos humanos, e
também conhecer como se caracterizam os contratos e as prestações de contas dessas
instituições.
Para o entendimento dessa tipificação os conceitos de ação direta e indireta da administração
pública como também de atividade privativa e não privativa e de interesse público do Estado
fundamentaram o modelo de análise desses arranjos jurídicos institucionais na atenção básica
(SALGADO; GIRARDI, 2011).
A Administração Pública Direta pressupõe a atuação do poder executivo, por meio das
estruturas estatais para regular a ordem social e econômica do país e é formada pelos
Ministérios, Secretárias de Estado e Secretarias Municipais. (DECRETO-LEI nº 200,
25/02/1967).
Já a Administração Pública Indireta é composta por entidades administrativas, com
personalidade jurídica própria e autonomia administrativa, para o exercício de competências
descentralizadas. Os modelos propostos são Consórcios Intermunicipais de Direito Público e
Privado (LEI Nº 11.107/2005, DECRETO Nº 6.017/2007), Fundação Pública de Direito
Público (LEI N.º 7.596/1987) e Privado (EC Nº 19/1998). Essas estruturas são criadas e
extintas por lei ou mediante autorização legal específica e em princípio, só a Administração
Pública Direta e Indireta exercem autoridades públicas (SALGADO; ALMEIDA, 2012).
As OSs, OSCIP, ONG, Entidade Filantrópica são organizações privadas para desenvolver
atividades de interesse público. Essas atividades são realizadas “pelo particular que, por força
do artigo 5° da Constituição Federal, sujeitam-se apenas ao que for expressamente
determinado pela lei” (SALGADO; ALMEIDA, 2012). Diferente do setor público orientado
pelo dever, o particular se orienta por uma motivação e pelos requisitos contratuais que
estabelece as obrigações mútuas. Entretanto, não têm força para transmitir o dever da
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Administração pública para o terceiro. Portanto, sua participação crescente na provisão de
serviços de saúde no Brasil devem ser objetos de análises e reflexões.
Método
Foi realizado um estudo descritivo utilizando os dados preliminares obtidos pela certificação
do PMAQ-AB coletados no período de setembro a dezembro de 2012, que englobou 17482
ESF e outros modelos de atenção básica, aderidos ao PMAQ, em 3972 municípios
participantes, abrangendo todos os Estados da federação. O estudo realizado utilizou os dados
coletados pelo PMAQ.
O objetivo do projeto PMAQ é apoiar tecnicamente e induzir economicamente a ampliação
do acesso e a melhoria da qualidade da Atenção Básica, garantindo um padrão de qualidade
comparável e passível de acompanhamento público. Para isso, foi realizado um processo de
certificação das EAB participantes do PMAQ por meio do monitoramento dos indicadores do
Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB) e pela verificação de um conjunto de
padrões de qualidade investigados na fase de avaliação externa do projeto. Para realizar a
avaliação externa das EAB, o MS contou com o apoio de Instituições de Ensino e Pesquisa na
organização e desenvolvimento dos trabalhos de campo, incluindo seleção e capacitação das
equipes de avaliadores que aplicaram os mesmos instrumentos avaliativos em todo o território
nacional (BRASIL, 2012).
O instrumento de avaliação externa foi dividido em quatro questionários: questionário I
relacionado a questões de infraestrutura, materiais e insumos para a AB (observação da UBS
e entrevista com um profissional de nível superior da equipe); questionário II sobre questões
relacionadas ao acesso e a qualidade da atenção, à organização do processo de trabalho da
equipe e a articulação da rede de atenção à saúde (entrevista com o coordenador da equipe);
questionário III referente à satisfação do usuário (entrevista na UBS com quatro usuários); e
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questionário IV (on-line) de informações complementares aos Módulos I, II e III (módulo
online respondido pelo gestor municipal e as equipes).
A certificação de desempenho das equipes de atenção básica participantes do PMAQ foi
realizada com base na implantação de processos autoavaliativos, na avaliação do acesso e da
qualidade das EAB participantes do PMAQ-AB, por meio do monitoramento dos indicadores
contratualizados e pela verificação de um conjunto de padrões de qualidade no próprio local
de atuação das equipes (Brasil, 2011). No processo de certificação, os municípios foram
distribuídos em estratos que levaram em conta aspectos sociais, econômicos e demográficos.
Além disso, as informações foram agrupadas em dimensões e subdimensões e a cada uma
delas foi atribuído um peso. As cinco dimensões definidas foram Gestão Municipal para o
Desenvolvimento da Atenção Básica; Estrutura e Condições de Funcionamento da UBS;
Valorização do Trabalhador; Acesso e Qualidade da Atenção e Organização do Processo de
Trabalho; Acesso, Utilização, Participação e Satisfação do Usuário. Para essa análise foram
utilizadas as notas de do conceito da subdimensão gestão do processo de trabalho e acesso
que está incluída na dimensão IV- Acesso e Qualidade da Atenção e Organização do Processo
de Trabalho. Nesta subdimensão, que foi objeto de análise desta pesquisa, as seguintes
variáveis foram analisadas: Planejamento das Ações, Organização da agenda e Visita
Domiciliar; Acolhimento à Demanda Espontânea; Territorialização e População de
Referência; Organização dos Prontuários e Informatização e organização da agenda.
As informações sobre agente contratante foram retiradas do módulo II, referente às respostas
dos coordenadores de cada equipe. As categorias discriminadas para agente contratante foram
as seguintes: Administração direta, Consórcio intermunicipal de direito público, Consórcio
intermunicipal de direito privado, Fundação pública de direito público, Fundação pública de
direito privado, Organização social (OS), Organização da Sociedade Civil de Interesse
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Público (OSCIP), Entidade filantrópica, Organização não governamental (ONG), Empresa,
Cooperativa e Outro(s).
A partir de suas legislações específicas, os doze tipos de agentes contratantes foram
categorizados novamente em cinco formas tendo como referência à natureza das atividades, a
forma de criação e qualificação, a forma da prestação de contas, a forma da gestão dos
recursos humanos e dos contratos e a proveniência do financiamento presentes nas leis que
regem cada um dos tipos acima citados. O Quadro 1(ANEXO A), sintetiza as novas
categorias.
Os dados utilizados na análise foram extraídos do banco de dados preliminar do PMAQ
tabulados pelo Ministério da Saúde - Módulo II – no Software Microsoft Excel®
.
Posteriormente esses dados foram conferidos e tratados no software Social Package Social
Sciences 14 (SPSS). Inicialmente foi realizada uma análise descritiva da distribuição dos
agentes contratantes de acordo com as regiões brasileiras, por meio da frequência relativa e
absoluta desses agentes. A análise bivariada inicial consistiu na comparação entre a
frequência relativa dos agentes contratantes com as certificações das equipes de saúde da
família, de acordo com as dimensões da gestão do processo de trabalho e acesso. Essa análise
foi realizada por meio do teste de qui-quadrado para proporções, em que a probabilidade (p)
de cometer erro tipo I foi assinalada em cada teste realizado, considerando-se estatisticamente
significantes valores de p menores de 0,05.
Resultados
Foram certificadas 15.514 equipes de saúde da família em todos os estados do Brasil, exceto
Amapá. Entre todas as regiões, o maior número de equipes entrevistadas se concentra na
região Sudeste (38%), seguido pela região Nordeste (33%) e Sul (17%).
Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ
18
A maioria das equipes de saúde da família possuía administração pública como agente
contratante: a Administração Direta corresponde a 74% e a administração indireta a 8,7%. No
âmbito do setor privado, encontrou-se 9,8% correspondendo ao privado não lucrativo, 6,1% a
outros e 1,3% ao privado lucrativo.
O Gráfico 1 (ANEXO B) detalha a distribuição da natureza jurídica de acordo com as regiões
do Brasil. Observa-se que, a administração direta é o agente contratante presente na maioria
das equipes de saúde da família em todas as regiões, com destaque para o Norte, com 92%,
enquanto o Sudeste possui o menor percentual desse agente contratante, com 68%.
Por outro lado, o privado lucrativo é uma das modalidades que apresenta menor frequência
em todas as regiões, superior apenas às outras formas não determinadas de agente contratante
nas regiões Sudeste, Centro-oeste e Sul (2%). Destaca-se na região Sudeste o privado não
lucrativo como agente contratante das equipes de saúde da família, atingindo o percentual de
aproximadamente 24%.
Ao se analisar a distribuição da natureza jurídica dos agentes contratantes de acordo com os
estados brasileiros, observa-se que os estados de Rio de Janeiro e São Paulo apresentam mais
da metade do total das equipes de saúde da família da região Sudeste contratadas pelo privado
não lucrativo (dados não apresentados).
A Tabela 2 (ANEXO C) detalha a distribuição entre o nível de certificação atribuído a equipe
de saúde da família de acordo com a subdimensão gestão do processo de trabalho e acesso,
que é composta das variáveis, Planejamento das Ações, Organização dos Prontuários e
Informatização, Organização da agenda, Territorialização e População de Referência,
Acolhimento à Demanda Espontânea e Visita Domiciliar e com a natureza jurídica do agente
contratante, assim como a associação estatística pelo teste qui-quadrado entre essas variáveis.
Nas variáveis referentes ao Planejamento das Ações, Organização da agenda e Visita
Domiciliar, a certificação classificada como boa foi prevalente em todos os agentes
Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ
19
contratantes, exceto na última variável, em que obtiveram a certificação ruim para o agente
contratante privado não lucrativo.
No restante das variáveis analisadas a maioria das equipes foi certificada como regular, exceto
em relação ao Acolhimento à Demanda Espontânea, quando o agente contratante era a
administração indireta.
Ao se analisar a média do percentual de certificação entre todos agentes contratantes, ressalta-
se que, a Territorialização e População de Referência possuíram maior percentual médio de
certificação ótimo, enquanto a variável Organização dos Prontuários e Informatização possui
maior percentual médio de certificação regular.
O teste de associação do qui-quadrado demonstrou que apenas nas variáveis Organização dos
Prontuários e Informatização e Organização da Agenda se observa uma associação
estatisticamente significante entre a natureza jurídica dos agentes contratantes dos
coordenadores das equipes de saúde e a certificação das equipes.
Discussão
Os resultados encontrados no presente estudo apontam para questões relevantes sobre o
processo de gestão do trabalho na atenção básica, já identificadas por outros autores.
Conforme observaram Girardi e Carvalho (2003), as regiões mais desenvolvidas do país têm
utilizado mais de agentes terceiros para contratação de pessoal, do que as demais regiões, nas
quais predomina a contratação direta dos profissionais pelo poder público. Para os
coordenadores das equipes de saúde avaliadas pelo PMAQ, nota-se uma presença importante
das entidades privadas não lucrativas na região Sudeste. A participação de instituições de
caráter privado sem fins lucrativos, administradas com a lógica do setor privado, porém com
finalidades de interesse público, é marcante no processo de reforma do Estado (FRANCO,
1999). Entretanto, esse cenário deve ser avaliado com atenção, dada que a ampliação da
Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ
20
institucionalização dessas entidades pode descaracterizar e comprometer o desempenho de
funções de responsabilidade do Estado e repercutem sobre a vulnerabilidade do SUS,
garantindo a efetividade, eficiência e eficácia da gestão do sistema de saúde (PAIM, 2007).
A disseminação de organizações sociais, OSCIPs, cooperativas e outras modalidades de
gestão na área de saúde emerge como uma alternativa aos gestores municipais para viabilizar
a contratação de profissionais, mas parece não resolver os problemas já existentes. Em
diversas situações, o quadro agrava-se, pois além de gestão da força de trabalho, estas
iniciativas também passam a se constituir como alternativas para provisão de serviços,
configurando uma situação de entrada efetiva das modalidades privadas de provisão de
serviços. Nesses casos, surgem as Organizações Sociais que são entidades gestoras, de caráter
privado, sem fins lucrativos, que, por meio de contratos de gestão, vinculam-se às secretarias
de saúde.
Por sua vez, as Fundações Estatais configuram-se como fundações públicas com estrutura de
direito privado, caracterizadas por seguirem normas simplificadas de direito administrativo e
por estarem limitadas ao âmbito da administração indireta do Estado. Esses dois novos
arranjos institucionais estão sendo implantados pelos gestores em um cenário de conflitos
com outros importantes atores do SUS (NOGUEIRA, 2002).
Observando a associação entre natureza jurídica dos agentes contratantes e certificação das
equipes por aspectos que compõem a dimensão gestão do processo de trabalho, os resultados
indicaram que não há diferenças importantes entre as formas utilizadas para contratação dos
coordenadores. Ou seja, ser contratado por uma entidade de uma determinada natureza
jurídica parece não ter implicações sobre o grau de certificação obtido pelas equipes, à
exceção da associação entre o nível de certificação atribuído à equipe de saúde e o agente
contratante nas dimensões Organização dos Prontuários e Informatização e Organização da
Agenda que se mostrou estatisticamente significativa. Nota-se que, independentemente da
Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ
21
natureza jurídica, em geral, as equipes receberam nível de certificação bom ou regular e a
frequência das equipes certificadas como ótimo foi relativamente baixa.
Esses achados nos remetem a discussão sobre a reforma do Estado que levou a certa
polarização entre a administração direta e a desresponsabilização estatal e reprimiu a busca de
alternativas que fossem capazes de superar os problemas e assegurassem efetividade,
qualidade e eficiência nos serviços prestados pelos serviços de saúde, em particular pela
atenção básica. Os novos arranjos institucionais sugerem uma tendência da desregulação das
relações de trabalho (NOGUEIRA, 2002) que podem ter impacto na atenção prestada.
Portanto, frente a esse quadro é necessário rever as bases legais e normativas que sustentam
esses institutos e conformam o regime jurídico administrativo que regula a atuação das
instituições e agentes estatais, para reduzir o risco de agravamento do processo de perda de
capacidade estatal de governança e governabilidade, em favor de atores privados nacionais ou
de agentes internacionais, que conforme destaca Salgado e Girardi (2011), atuam na economia
e na política interna brasileira de forma contundente, em razão do fenômeno da
internacionalização da economia.
Como observado na literatura, não se trata simplesmente de um mix público/privado de
recursos assistenciais usados indistintamente para o atendimento das necessidades da
população, mas de como arranjos dotados de lógicas contraditórias se articulam. Essas lógicas
devem ser compreendidas e explicitadas, para que assim se busque a instalação de um regime
regulatório que contribua para o fortalecimento do caráter público e da unicidade do sistema
de saúde (SESTELO; SOUZA; BAHIA, apud EIBENSCHUTZ,2013).
Por fim, as observações apresentadas sinalizam sobre a importância da questão e colocam
aspectos que devem ser aprofundados em novos estudos e devem considerados no debate
sobre o tema.
Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ
22
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Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ
29
ANEXO A
QUADRO 1
Categorias dos agentes contratantes dos coordenadores das equipes de atenção básica do
PMAQ. Brasil, 2012.
Fonte: Elaboração própria, NESCON, 2013.
Categorias Modelos
Publico – Administração
direta Ministérios, Secretárias de Estado e Municipais
Publico – Administração
indireta
Consórcios Intermunicipais de Direito Público e
Privado, Fundação Pública de Direito Público e Privado
Privado - Lucrativo Empresas
Privado - Não lucrativo OS, OSCIP, ONG, Entidade Filantrópica
Outros
Cooperativa
Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ
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ANEXO B
GRÁFICO 1
Distribuição da natureza jurídica de acordo com as regiões do Brasil. Brasil, 2012.
Fonte: Elaboração própria, NESCON, 2013.
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ANEXO C
TABELA 1
Associação entre o tipo de Agente Contratante e o nível de certificação da equipe e
acordo com as subdimensões da gestão do trabalho. Brasil, 2012.
Variáveis Certificaçã
o
Agente Contratante - n (%) pa
A.D. A.I. P.N.L. P.L. Outros
Planejamento das
ações
Ótimo 449 (3,90) 56(4,12) 82 (5,49) 9 (4,52) 45 (4,71)
0,241 Bom
6244
(54,29) 724 (53,27) 792 (53,01) 112 (56,28) 518 (54,18)
Regular
4808
(41,81) 579 (42,60) 620 (41,50) 78 (39,20) 393 (41,11)
Organização dos
Prontuários e
Informatização
Ótimo 1063 (9,24) 123 (9,05) 347 (23,23) 18 (9,05) 55 (5,75)
0,001 Bom
4690
(40,78) 574 (42,24) 437 (29,25) 81 (40,70) 417 (43,62)
Regular
5748
(49,98) 662 (48,71) 710 (47,52) 100 (50,25) 484 (50,63)
Organização da
agenda
Ótimo
2016
(17,53) 204 (15,01) 189(12,65) 30 (15,08) 162 (16,95)
0,001 Bom
4790
(41,65) 587 (43,19) 619 (41,43) 89 (44,72) 416 (43,51)
Regular
4695
(40,82) 568 (41,80) 686 (45,92) 80 (40,20) 378 (39,54)
Territorialização
e População de
Referência
Ótimo
2191
(19,05) 222 (16,34) 294 (19,68) 33 (16,58) 194 (20,29)
0,410 Bom
3581
(31,14) 429 (31,57) 494 (33,07) 73 (36,68) 276 (28,87)
Regular
5729
(49,81) 708 (52,10) 706(47,26) 93 (46,73) 486 (50,84)
Acolhimento à
Demanda
Espontânea
Ótimo
1892
(16,45) 232 (17,07) 193 (12,92) 29 (14,57) 156 (16,32)
0,870 Bom
4589
(39,90) 531 (43,86) 623 (41,70) 83 (41,71) 383 (40,06)
Regular
5020
(43,65) 596 (39,07) 678 (45,38) 87 (43,72) 417 (43,62)
Visita Domiciliar
Ótimo
1359
(11,82) 166 (12,21) 154 (10,31) 13 (6,53) 115 (12,03)
0,301 Bom
5330
(46,34) 621 (45,70) 660 (44,18) 109 (54,77) 442 (46,23)
Regular
4812
(41,84) 572 (42,09) 680 (45,51) 77 (38,69) 399 (41,74)
Total - 11501 1359 1494 199 956 -
Fonte: Elaboração própria
Nota: a – Teste Qui-Quadrado; AD -> Administração Direta; AI -> Administração Indireta; PNL -> Privado Não
Lucrativo; PL -> Privado Lucrativo.