novas modalidades de gestão “público e privada” na atenção ... · abrangência destas novas...

31
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE MEDICINA NÚCLEO DE EDUCAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA Novas modalidades de gestão “público e privada” na atenção básica no Brasil: uma análise a partir do PMAQ New forms of public and private management in primary care in Brazil: an analysis of PMAQ Autores Alaneir de Fatima dos Santos, Doutora em Ciência da Informação, UFMG. NESCON/FM/UFMG; Ângela Maria de Lourdes Dayrell de Lima, Mestre em ,NESCON/FM/UFMG; Daisy Maria Xavier Abreu, Doutora em Saúde Pública, UFMG. NESCON/FM/UFMG; Lucas Henrique Lobato de Araújo, Doutorando de Pós Graduação da Enfermagem, UFMG; Maria Luiza Ferreira Evangelista, Graduanda, UFMG. NESCON/FM/UFMG; Clarice Reis, Mestre Medicina de Família, Universidade MCGILL, Canadá; NESCON/FM/UFMG; Simone Cristina Rodrigues, Graduanda, UFMG. NESCON/FM/UFMG; Claudia Renata de Paula Orlando, Graduanda, UFMG. NESCON/FM/UFMG; Antônio Thomaz Gonzaga da Matta Machado, Doutor em Saúde Pública, UFMG. NESCON/FM/UFMG(Coordenador do Projeto de Pesquisa). Belo Horizonte 2013

Upload: vunhu

Post on 16-Nov-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE MEDICINA

NÚCLEO DE EDUCAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA

Novas modalidades de gestão “público e privada” na atenção básica no Brasil:

uma análise a partir do PMAQ

New forms of public and private management in primary care in Brazil: an analysis of PMAQ

Autores

Alaneir de Fatima dos Santos, Doutora em Ciência da Informação, UFMG. NESCON/FM/UFMG;

Ângela Maria de Lourdes Dayrell de Lima, Mestre em ,NESCON/FM/UFMG;

Daisy Maria Xavier Abreu, Doutora em Saúde Pública, UFMG. NESCON/FM/UFMG;

Lucas Henrique Lobato de Araújo, Doutorando de Pós Graduação da Enfermagem, UFMG;

Maria Luiza Ferreira Evangelista, Graduanda, UFMG. NESCON/FM/UFMG;

Clarice Reis, Mestre Medicina de Família, Universidade MCGILL, Canadá; NESCON/FM/UFMG;

Simone Cristina Rodrigues, Graduanda, UFMG. NESCON/FM/UFMG;

Claudia Renata de Paula Orlando, Graduanda, UFMG. NESCON/FM/UFMG;

Antônio Thomaz Gonzaga da Matta Machado, Doutor em Saúde Pública, UFMG.

NESCON/FM/UFMG(Coordenador do Projeto de Pesquisa).

Belo Horizonte

2013

Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ

2

Palavras chave

Reforma do serviço de saúde, gestão em saúde e avaliação em saúde.

Créditos

Ministério da Saúde/Secretaria de Atenção à Saúde/Departamento de Atenção Básica (DAB)/

Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica

Resumo

Na construção do Estado brasileiro, distintos padrões de relacionamento público e privado se

estruturaram ao longo do tempo. Nas modernas concepções de estruturação do aparato

estatal, a atividade regulatória estaria no cerne de novas modalidades de relacionamento

público-privado, bem como de novas relações entre diferentes segmentos do aparelho de

Estado. Os interesses organizados estariam voltados para o exercício da influência na

definição das regras de gestão de prestação de serviços públicos e dos recursos transferidos

para o controle da iniciativa privada. Neste contexto, novos arranjos jurídico-institucionais

foram estabelecidos, ampliando progressivamente a inserção de modalidades privadas na

gestão e provisão de serviços de saúde no Brasil. O presente estudo pretende conhecer a

abrangência destas novas modalidades na atenção básica no Brasil, relacionando-as com o

processo de certificação propiciado pelo PMAQ – programa de melhoria do acesso e

qualidade, através da análise da certificação na dimensão da gestão do processo de trabalho

em saúde. Foi realizado um estudo descritivo com os dados preliminares obtidos pela

certificação do PMAQ-AB coletados no período de setembro a dezembro de 2012. O

universo pesquisado englobou 15.514 equipes certificadas, em 3972 municípios participantes.

Foi realizada uma categorização dos doze agentes contratantes encontrados em: público,

administração direta e indireta, privado lucrativo, privado não lucrativo e outros. Através de

Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ

3

análise bi-variada, utilizando o teste qui-quadrado, foi verificada a existência de associação

estatisticamente significativa entre o nível de certificação atribuído a equipe de saúde da

família e o agente contratante apenas quanto a organização dos prontuários e informatização e

organização da agenda. Os resultados evidenciaram que a maioria das equipes de saúde da

família possuía a administração direta como agente contratante em todas as regiões, com

destaque para o Norte, com 92%, enquanto o Sudeste possui o menor percentual desse agente

contratante (68%). Destaca-se na região Sudeste o privado não lucrativo como agente

contratante das equipes de saúde da família, atingindo o percentual de aproximadamente 24%.

Por este estudo, observou-se que estas novas modalidades não trazem ganhos importantes de

melhoria de acesso e qualidade, a não ser um dos cinco atributos analisados. Estes novos

padrões de relação público/privado, preconizados pela reforma do estado brasileiro, estão

progressivamente se estruturando na área de saúde.

Introdução

A organização dos serviços de saúde no Brasil passou por importantes mudanças nas últimas

décadas, com o processo de implantação/consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS).

Essas mudanças geraram demandas que incluem a organização do processo de trabalho, de

forma a responder às necessidades da população no nível local e de referenciar os casos mais

complexos para os demais níveis do sistema. No processo de organização da atenção à saúde,

é preciso definir as estratégias de operacionalização da rede de serviços, de modo a compor e

gerir equipes de trabalho, organizar a estrutura física e tecnológica do sistema local,

disponibilizar insumos, dentre outras ações. Uma importante estratégia para viabilizar estas

propostas é o fortalecimento da Atenção Básica em Saúde (ABS).

A ABS caracteriza-se por um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo,

que abrangem promoção, proteção e recuperação da saúde, com o objetivo de desenvolver

Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ

4

uma atenção integral que repercuta na situação de saúde e autonomia das pessoas e nos

determinantes e condicionantes de saúde das coletividades (STARFIELD, 2002, GIL, 2006).

A sua operacionalização ocorre por meio de práticas de cuidado e de gestão participativas,

conduzidas pelo trabalho em equipe e direcionadas a populações de territórios estabelecidos,

pelas quais assume a responsabilidade sanitária. A ABS utiliza tecnologias de cuidado

complexas e variadas que devem auxiliar no atendimento às demandas e necessidades de

saúde de maior prevalência e relevância em seu território, considerando critérios de risco e

vulnerabilidade, tendo como imperativo ético a questão de que toda demanda, necessidade de

saúde ou sofrimento deve ser atendida. Na sua concepção, a ABS representa o contato e a

porta de entrada preferencial dos usuários na rede de atenção à saúde. Seus principais

princípios e diretrizes são: territorialização e responsabilização sanitária; adscrição dos

usuários e vínculo; acessibilidade, acolhimento e porta de entrada preferencial; cuidado

longitudinal; ordenação da rede de atenção à saúde; gestão do cuidado integral em rede;

trabalho em equipe multiprofissional (BRASIL, 2006).

Nos últimos anos, a principal estratégia no Brasil para a expansão da ABS é a estratégia

Saúde da Família (SF), que tem recebido importantes incentivos financeiros visando à

ampliação da cobertura populacional e à reorganização da atenção prestada. A estratégia SF

aprofunda os processos de territorialização e responsabilidade sanitária das equipes de saúde,

compostas basicamente por médico generalista, enfermeiro, auxiliares de enfermagem e

agentes comunitários de saúde. O trabalho da equipe SF é referência de cuidados para a

população adscrita, com um número definido de domicílios e famílias assistidos por equipe

(BRASIL, 2001).

Apesar da crescente expansão da ABS por meio das equipes de SF nas últimas décadas, os

desafios persistem e indicam a necessidade de articulação de estratégias de acesso aos demais

níveis de atenção à saúde, de forma a garantir o princípio da integralidade, assim como a

Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ

5

necessidade permanente de ajuste das ações e serviços locais de saúde, visando ao

atendimento das necessidades de saúde da população e a superação das desigualdades de

oferta e acesso entre as regiões do país.

Com o intuito de avaliar o acesso e a qualidade das equipes da ABS no Brasil, o Ministério da

Saúde instituiu em 2011 o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da

Atenção Básica (PMAQ-AB). O projeto PMAQ-AB é composto de várias fases de

implementação que culminam com a certificação das equipes de Atenção Básica de acordo

com um padrão de qualidade.

Um dos aspectos que deve ser considerado no processo de avaliação da qualidade da ABS

refere-se aos tipos de agentes jurídico-institucionais utilizados na contratação de profissionais,

pois, esse componente pode interferir no planejamento de estratégias e instrumentos de

gestão. Estes novos tipos de agentes jurídico-institucionais configuram, na prática, novas

modalidades de gestão e provisão dos serviços de saúde, com impactos importantes na

concepção e estruturação do SUS.

Considerando a oportunidade de se analisar a realidade das equipes de saúde da atenção

básica, por meio da avaliação externa do PMAQ-AB, é importante conhecer as experiências

de arranjos jurídico-institucionais em andamento na atenção básica, tendo em vista o seu

papel ordenador do sistema de saúde e coordenador do cuidado.

Justificativa.

As mudanças nos arranjos jurídico-institucionais decorrentes do processo de modernização do

Estado brasileiro estão demarcando a introdução de novas modalidades de contratação de

profissionais, de gestão e de provisão de serviços na atenção básica.

Diversos agentes jurídico-institucionais estão atuando na atenção básica no Brasil e torna-se

relevante tipificá-los por natureza da atividade, forma de criação ou de qualificação, forma de

Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ

6

aquisição dos recursos orçamentários e financeiros, forma de contratação e gestão dos

recursos humanos, além de conhecer como se caracterizam os contratos e as prestações de

contas dessas instituições. Para o entendimento dessa tipificação, os órgãos públicos de

administração direta e indireta, as atividades privadas lucrativas e não lucrativas e de interesse

público do Estado fundamentaram o modelo de análise de arranjos jurídicos institucionais na

atenção básica (SALGADO; GIRARDI, 2011).

Nesta perspectiva, é importante identificar como essa nova configuração jurídico-institucional

tem alcançado a atenção básica, questão essa ainda pouco conhecida no Brasil. A avaliação

externa do PMAQ-AB representa uma oportunidade de investigar esse quesito na pesquisa

nacional das equipes de atenção básica. Foi possível obter informações sobre natureza jurídica

do agente contratante dos coordenadores das equipes, considerando-os com atribuições que os

qualificam como representantes legítimos da forma de atuação da equipe e, portanto, a

natureza jurídica de seu agente contratante poderia ser considerada como a mais

representativa da configuração jurídico-institucional da equipe de saúde.

Há diferentes possibilidades de abordar o tema. A vertente explorada neste trabalho, que

caracteriza a participação dos agentes contratantes de coordenadores de equipes de atenção

básica, é apenas uma delas. A intenção foi a de estabelecer pontes entre um conjunto de

aportes teóricos destacadamente das ciências políticas e jurídicas com uma base empírica

constituída pela descrição e análise de características dos agentes contratantes segundo a

dimensão de gestão do processo de trabalho e acesso à atenção básica. Trata-se de um trajeto

ainda em desenvolvimento, mas suficientemente instigante para suscitar o debate e, portanto,

estimular críticas e sugestões parciais ou integrais para posterior revisão e aprimoramento do

trabalho.

Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ

7

Objetivos

Geral:

Caracterizar a Natureza Jurídica de agentes contratantes das equipes de saúde da

família certificadas e sua associação com os resultados obtidos na sua certificação do

programa de melhoria de acesso e qualidade, no que se refere à dimensão gestão no

processo de trabalho e acesso.

Específicos:

Caracterizar a distribuição da natureza jurídica dos agentes contratantes dos

coordenadores das equipes de saúde da família por região;

Verificar a associação entre natureza jurídica dos agentes contratantes dos

coordenadores das equipes de saúde e a certificação das equipes por categorias que

compõem a subdimensão gestão do processo de trabalho e acesso.

Referencial Teórico

A discussão relativa a abrangência das novas modalidades de gestão experimentadas no

sistema público de saúde no Brasil na atenção básica, nos remete ao processo de estruturação

do Estado brasileiro, no qual distintos padrões de relacionamento público/privado se

estruturaram ao longo do tempo. O conflito resultante ou tensão que se verifica entre as duas

esferas, do público e do privado, constituiria assim, a essência mesma da política e de seu

processo de institucionalização. Baseada na análise de Boschi (2002) será reconstituída,

brevemente, a trajetória da estruturação do Estado brasileiro, desde a era Vargas.

A estruturação do Estado brasileiro, particularmente na era Vargas, inicia o processo de

incorporação de segmentos da sociedade civil, ainda limitados do ponto de vista de direitos

Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ

8

universais, com ênfase nos trabalhadores organizados em um contexto de urbanização

crescente da sociedade brasileira.

No entanto, trata-se das primeiras iniciativas de conformação de elementos de representação -

ainda que fortemente ancorados em estruturas corporativas, que passam a ter acesso, através

de mecanismos de representação, ao Estado brasileiro -, que vinha de uma tradição de

estruturação formada unicamente pelas elites brasileiras.

O corporativismo implantado nos anos 30 pode ser interpretado, segundo Boschi (2002),

como uma síntese institucional, delimitando a fronteira entre o público e privado, ainda que,

como em outro tipo de arranjo, encobrindo as apropriações do público pelo privado que

operam por contatos pessoais, vínculos clientelistas, estabelecimento de redes, enfim, no

espaço cinzento entre as duas esferas. Por outro lado, embora replicando desigualdades

sociais básicas, o corporativismo significou a mobilização e organização das classes sociais

pela via da representação de interesses, no qual os benefícios garantidos pela estrutura oficial

advinham dos mecanismos de filiação compulsória e do imposto sindical.

A dimensão da representação pode ser ressaltada como um fator positivo a conferir algum

grau de legitimidade e transparência aos arranjos corporativos. Dessa forma, a representação é

um traço a reter e a se recuperar da lógica do velho corporativismo. Trata-se da delimitação

do espaço público a partir da hierarquização categórica de interesses, mas, sobretudo

instaurando uma lógica em que a representação era um princípio fundamental. Também, o

lado patronal se estruturou de forma paralela para defesa de seus interesses e disputa de

possibilidades.

Esta dimensão da representação é um traço importante a ser ressaltado no processo de

construção do Estado brasileiro, na medida em que as propostas pós-reforma do Estado

situam estas características do Estado brasileiro como limitadoras para o âmbito de

instauração de uma sociedade baseada em direitos universais.

Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ

9

Esta estruturação do Estado brasileiro, neste período, avança na conformação de uma

incipiente estrutura estatal na área de saúde, com a divisão do território nacional em distritos

sanitários, 13 serviços nacionais por especialidades, divisão de organização hospitalar, que

convive com as estruturas de prestação de serviços advindos dos Institutos de Aposentadorias

e Pensões (IAPs). Observa-se a construção dos fundamentos de um sistema nacional de saúde

e também a emergência do dualismo institucional, instituído pelo processo de industrialização

via o estabelecimento da indústria automobilística no ABC paulista.

Em 64, é interrompida esta dinâmica de construção do Estado brasileiro, com os interesses

mercantis iniciando seu processo de institucionalização no âmbito do Estado brasileiro. São

criadas as principais estruturas de institucionalização do mercado privado da saúde no Brasil,

em uma articulação deletéria entre ações estatais e interesses privados. No início da década de

90, os planos e seguros de saúde já cobrem 13,9 % da população brasileira.

Será no âmbito do movimento democrático que redunda na estruturação da constituição

brasileira, em 1988, que os interesses universais em relação à saúde passam a ser assegurados

no âmbito da estruturação do Estado brasileiro, através da criação do Sistema Único de Saúde.

Este processo de incorporação de segmentos da sociedade civil é redefinido na dinâmica de

modernização do Estado.

No entanto, a conjuntura do final do ciclo desenvolvimentista, em meados da década de 80,

coloca em xeque a estruturação do Estado com estas características. As iniciativas de inserção

do país na dinâmica do processo de globalização, por um lado e as exigências macro-

econômicas no plano interno por outro lado, redundam em uma proposta estruturada de

reconfiguração do espaço público/privado, sintetizada em uma proposta de reforma do Estado

brasileiro.

A transição anunciada, baseada no tripé estabilização, privatização do patrimônio estatal e

abertura comercial no que se refere aos aspectos da relação público-privada, segundo Boschi

Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ

10

(2002) terá como consequência uma radical transformação do papel estratégico do Estado na

medida em que a lógica do mercado se interpenetra na dinâmica de funcionamento do Estado

e os atores da economia globalizada passam a ser a tônica das ações executivas. O Estado

passa a reconfigurar-se fundamentalmente para a implementação de uma política econômica

voltada para os agentes externos, com a subordinação de todas as demais dimensões. Não se

trata do fato que as reformas tenham destituído o Estado de sua capacidade de intervenção,

particularmente na área de políticas sociais.

Essa reconfiguração do Estado interpõe o mercado como o fundamento das relações no

interior do próprio aparato estatal, deste com relação à sociedade e entre os principais atores

organizados. Quanto ao Estado, observa-se uma orientação, no âmbito do setor privado, no

sentido de privilegiar os investidores internacionais, na tentativa de inserir-se no processo de

globalização em detrimento dos domésticos. No âmbito dos atores sociais, descontrói-se o

antigo corporativismo centrado em cenários de representação, para um processo seletivo de

incorporação de atores a partir de uma lógica estabelecida de competitividade. Poderia estar

se desenhando uma assimetria de maneira ainda mais seletiva, relegando à esfera das práticas

localizadas de governança e descentralização de políticas a incorporação de atores subalternos

(BOSCHI, 2002).

Nesta nova configuração, na atividade regulatória estaria o cerne de novas modalidades de

relacionamento público-privado, bem como de novas relações entre diferentes segmentos do

aparelho de Estado (BOSCHI, 2002). No primeiro caso, os interesses organizados estariam

voltados para o exercício da influência na definição das regras de gestão de prestação de

serviços públicos e dos recursos transferidos para o controle da iniciativa privada. No segundo

caso, em função da atividade regulatória, o papel das agências autônomas subtrai do

congresso a prerrogativa de legislar sobre matérias pertinentes aos direitos dos cidadãos

(consumidores) e sobre os limites da atividade empresarial privada (investidores). Neste

Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ

11

quadro, destaca-se a possibilidade de apropriação diferenciada do espaço público por

interesses privados, os mais organizados entre os organizados. Segundo Boschi (2002),

diferentemente do velho corporativismo, nos quais a representação constitui um fator

fundamental, passa a privilegiar a eficiência e a profissionalização como fundamento da

atuação dos grupos privados no domínio do público.

Predomina uma ideia que a eficiência quanto aos resultados, constrói a base de legitimidade,

em contexto de restrição importante da dimensão democrática da nova ordem constituída.

Tende-se a privilegiar o interesse dos investidores em relação aos consumidores. É tênue a

possibilidade de controle por parte do legislativo, são baixos os graus de transparência dos

processos internos, e altos os custos para a democracia com influência irrestrita.

Instaura-se assim um novo tipo de corporativismo, que tem na oposição entre investidores e

consumidores sem critérios de representação, seu novo eixo de conflito e assimetria estrutural.

Do velho ao novo corporativismo, observa-se um movimento contrário que iria da

publicização crescente de interesses privados na ordem estatal à privatização de interesses

públicos na ordem pós-reformas.

Duas questões são identificadas por Boschi (2002). No velho corporativismo ocorria uma

coincidência entre o espaço de decisão e de representação, no novo, o espaço de decisão está

insulado no âmbito das agências regulatórias. A outra dimensão impõe-se a partir da cisão

entre resultados e processos, enfatizando resultados e eficiência econômica no curto prazo, em

detrimento da representação política e do controle democrático sobre o processo decisório.

Boschi aponta que esta nova modalidade de regulação redunda, não na erosão do Estado – já

que este não perde como se enfatizou, sua capacidade de intervenção – mas no

enfraquecimento da democracia.

Na área de saúde no Brasil, os processos de modernização da estrutura estatal sob a égide de

atividades regulatórias estabeleceu-se a partir da estruturação, em 1999, da Agência Nacional

Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ

12

de Vigilância Sanitária (ANVISA) Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), criada

em 2000. Também a possibilidade de modernização da estrutura estatal se dá a partir de

regulamentações que estabelecem a possibilidade de novos arranjos jurídicos, que

possibilitam um escopo novo de interação entre a dimensão pública e privada no âmbito do

Estado brasileiro. A criação das Organizações Sociais (OS) (Lei nº 9.637/1998), Organizações

da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) (Lei nº 9.790/1999) dentro deste contexto e

mais recentemente, as normatizações relativas à existência de Organizações Não

Governamentais (ONG) (Lei nº 12.435/2011) e Entidade Filantrópica (Lei nº 12.435/2011),

configuram novas situações de relação público/privado, afetando o processo de gestão e

provisão de serviços.

A reforma administrativa do Estado têm importantes repercussões na gestão dos serviços de

saúde. O modelo implementado, na prática, enfatiza as dimensões relativas ao gerencialismo e

ao processo progressivo de desresponsabilização do Estado, no âmbito da área de saúde.

Conforme Azevedo e Andrade (1996), a reforma baseava-se na proposta de “diferenciação e

separação das funções que integram o repertório de ações do setor público”, tendo como

pressuposto a existência de um conjunto de atividades exclusivas do Estado. Esse modelo

apresenta um caráter “geral e homogêneo pretendido para resolver a questão da administração

pública nos três níveis de governo” e baseou-se “na flexibilidade dos meios de gestão dos

segmentos de prestação de serviços” (AZEVEDO; ANDRADE, 1996, p.74 e 75).

Entretanto, essas modalidades não subordinadas à administração direta ou indireta do Estado

foram introduzidas no SUS como uma alternativa para viabilizar maior oferta de serviços de

saúde com ampliação da cobertura e acesso. Isso pode ser considerado, uma vez que os

gestores buscavam maior flexibilidade, pautados pelas concepções gerencialistas e como

forma de contornar a Lei de Responsabilidade Fiscal na gestão de recursos humanos.

Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ

13

Conforme destaca Bahia (2011, p.119):

como a rede ‘pública’ é integrada por estabelecimentos privados (entre as

quais as filantrópicas) e a ‘privada’ por instituições públicas (entre as quais

estabelecimentos estatais), a rigor a rotulação público ou privado resulta de

uma apropriação bastante singular – uma transposição de características da

demanda (a cobertura ou não por planos e seguros privados de saúde) à

oferta de ações e serviços de saúde.

Fundamentam essas concepções teorias liberais do campo da economia ou da administração

prescrevendo a “naturalização” das práticas de mercado na prestação da assistência à saúde.

Destaca-se o documento da Associação Latino-Americana de Medicina Social (ALAMES) já

em 1993, que apresentava uma crítica à transposição para a América Latina do conceito de

mescla (mix), elaborado e utilizado por organizações multilaterais, como o Banco Mundial.

Para a ALAMES, ao invés de utilizar a ideia de mescla (mix) público/privada, deveria ser

adotado o conceito de "articulação público/privado”, mais adequado para a compreensão das

complexas relações entre o público e o privado no sistema de serviços de saúde de países em

desenvolvimento. (SESTELO; SOUZA; BAHIA, apud EIBENSCHUTZ, 2013)

A presença dessas modalidades sempre foi mais marcante na gestão da área hospitalar, mas

nos últimos anos, face à ampliação da atenção básica, com o surgimento e expansão do PSF,

observa-se a introdução de novos arranjos institucionais, principalmente na gestão dos

recursos humanos. Segundo Barbosa (2010, p. 2498),

(...) este modelo vem se expandindo no país, obrigando técnicos,

gestores e usuários a uma profunda reflexão sobre os limites entre

público e privado no setor saúde, incluindo as vantagens e

desvantagens sobre o processo de flexibilização da gestão do trabalho

e os riscos da precarização de vínculos, já observados na Estratégia de

Saúde da Família.

Nesse sentido, identificar os diversos tipos de agentes jurídico-institucionais públicos e

privados utilizados para a gestão de recursos humanos na atenção básica, é importante para o

desenho de estratégias e melhoria dos processos de gestão (GIRARDI, 2003).

Observa-se que, de acordo com a legislação vigente, há um conjunto de diversos agentes

jurídico-institucionais contratados para atuar na atenção básica e torna-se relevante tipificá-los

Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ

14

por natureza da atividade, forma de criação ou de qualificação, forma de aquisição dos

recursos orçamentários e financeiros, forma de contratação e gestão dos recursos humanos, e

também conhecer como se caracterizam os contratos e as prestações de contas dessas

instituições.

Para o entendimento dessa tipificação os conceitos de ação direta e indireta da administração

pública como também de atividade privativa e não privativa e de interesse público do Estado

fundamentaram o modelo de análise desses arranjos jurídicos institucionais na atenção básica

(SALGADO; GIRARDI, 2011).

A Administração Pública Direta pressupõe a atuação do poder executivo, por meio das

estruturas estatais para regular a ordem social e econômica do país e é formada pelos

Ministérios, Secretárias de Estado e Secretarias Municipais. (DECRETO-LEI nº 200,

25/02/1967).

Já a Administração Pública Indireta é composta por entidades administrativas, com

personalidade jurídica própria e autonomia administrativa, para o exercício de competências

descentralizadas. Os modelos propostos são Consórcios Intermunicipais de Direito Público e

Privado (LEI Nº 11.107/2005, DECRETO Nº 6.017/2007), Fundação Pública de Direito

Público (LEI N.º 7.596/1987) e Privado (EC Nº 19/1998). Essas estruturas são criadas e

extintas por lei ou mediante autorização legal específica e em princípio, só a Administração

Pública Direta e Indireta exercem autoridades públicas (SALGADO; ALMEIDA, 2012).

As OSs, OSCIP, ONG, Entidade Filantrópica são organizações privadas para desenvolver

atividades de interesse público. Essas atividades são realizadas “pelo particular que, por força

do artigo 5° da Constituição Federal, sujeitam-se apenas ao que for expressamente

determinado pela lei” (SALGADO; ALMEIDA, 2012). Diferente do setor público orientado

pelo dever, o particular se orienta por uma motivação e pelos requisitos contratuais que

estabelece as obrigações mútuas. Entretanto, não têm força para transmitir o dever da

Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ

15

Administração pública para o terceiro. Portanto, sua participação crescente na provisão de

serviços de saúde no Brasil devem ser objetos de análises e reflexões.

Método

Foi realizado um estudo descritivo utilizando os dados preliminares obtidos pela certificação

do PMAQ-AB coletados no período de setembro a dezembro de 2012, que englobou 17482

ESF e outros modelos de atenção básica, aderidos ao PMAQ, em 3972 municípios

participantes, abrangendo todos os Estados da federação. O estudo realizado utilizou os dados

coletados pelo PMAQ.

O objetivo do projeto PMAQ é apoiar tecnicamente e induzir economicamente a ampliação

do acesso e a melhoria da qualidade da Atenção Básica, garantindo um padrão de qualidade

comparável e passível de acompanhamento público. Para isso, foi realizado um processo de

certificação das EAB participantes do PMAQ por meio do monitoramento dos indicadores do

Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB) e pela verificação de um conjunto de

padrões de qualidade investigados na fase de avaliação externa do projeto. Para realizar a

avaliação externa das EAB, o MS contou com o apoio de Instituições de Ensino e Pesquisa na

organização e desenvolvimento dos trabalhos de campo, incluindo seleção e capacitação das

equipes de avaliadores que aplicaram os mesmos instrumentos avaliativos em todo o território

nacional (BRASIL, 2012).

O instrumento de avaliação externa foi dividido em quatro questionários: questionário I

relacionado a questões de infraestrutura, materiais e insumos para a AB (observação da UBS

e entrevista com um profissional de nível superior da equipe); questionário II sobre questões

relacionadas ao acesso e a qualidade da atenção, à organização do processo de trabalho da

equipe e a articulação da rede de atenção à saúde (entrevista com o coordenador da equipe);

questionário III referente à satisfação do usuário (entrevista na UBS com quatro usuários); e

Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ

16

questionário IV (on-line) de informações complementares aos Módulos I, II e III (módulo

online respondido pelo gestor municipal e as equipes).

A certificação de desempenho das equipes de atenção básica participantes do PMAQ foi

realizada com base na implantação de processos autoavaliativos, na avaliação do acesso e da

qualidade das EAB participantes do PMAQ-AB, por meio do monitoramento dos indicadores

contratualizados e pela verificação de um conjunto de padrões de qualidade no próprio local

de atuação das equipes (Brasil, 2011). No processo de certificação, os municípios foram

distribuídos em estratos que levaram em conta aspectos sociais, econômicos e demográficos.

Além disso, as informações foram agrupadas em dimensões e subdimensões e a cada uma

delas foi atribuído um peso. As cinco dimensões definidas foram Gestão Municipal para o

Desenvolvimento da Atenção Básica; Estrutura e Condições de Funcionamento da UBS;

Valorização do Trabalhador; Acesso e Qualidade da Atenção e Organização do Processo de

Trabalho; Acesso, Utilização, Participação e Satisfação do Usuário. Para essa análise foram

utilizadas as notas de do conceito da subdimensão gestão do processo de trabalho e acesso

que está incluída na dimensão IV- Acesso e Qualidade da Atenção e Organização do Processo

de Trabalho. Nesta subdimensão, que foi objeto de análise desta pesquisa, as seguintes

variáveis foram analisadas: Planejamento das Ações, Organização da agenda e Visita

Domiciliar; Acolhimento à Demanda Espontânea; Territorialização e População de

Referência; Organização dos Prontuários e Informatização e organização da agenda.

As informações sobre agente contratante foram retiradas do módulo II, referente às respostas

dos coordenadores de cada equipe. As categorias discriminadas para agente contratante foram

as seguintes: Administração direta, Consórcio intermunicipal de direito público, Consórcio

intermunicipal de direito privado, Fundação pública de direito público, Fundação pública de

direito privado, Organização social (OS), Organização da Sociedade Civil de Interesse

Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ

17

Público (OSCIP), Entidade filantrópica, Organização não governamental (ONG), Empresa,

Cooperativa e Outro(s).

A partir de suas legislações específicas, os doze tipos de agentes contratantes foram

categorizados novamente em cinco formas tendo como referência à natureza das atividades, a

forma de criação e qualificação, a forma da prestação de contas, a forma da gestão dos

recursos humanos e dos contratos e a proveniência do financiamento presentes nas leis que

regem cada um dos tipos acima citados. O Quadro 1(ANEXO A), sintetiza as novas

categorias.

Os dados utilizados na análise foram extraídos do banco de dados preliminar do PMAQ

tabulados pelo Ministério da Saúde - Módulo II – no Software Microsoft Excel®

.

Posteriormente esses dados foram conferidos e tratados no software Social Package Social

Sciences 14 (SPSS). Inicialmente foi realizada uma análise descritiva da distribuição dos

agentes contratantes de acordo com as regiões brasileiras, por meio da frequência relativa e

absoluta desses agentes. A análise bivariada inicial consistiu na comparação entre a

frequência relativa dos agentes contratantes com as certificações das equipes de saúde da

família, de acordo com as dimensões da gestão do processo de trabalho e acesso. Essa análise

foi realizada por meio do teste de qui-quadrado para proporções, em que a probabilidade (p)

de cometer erro tipo I foi assinalada em cada teste realizado, considerando-se estatisticamente

significantes valores de p menores de 0,05.

Resultados

Foram certificadas 15.514 equipes de saúde da família em todos os estados do Brasil, exceto

Amapá. Entre todas as regiões, o maior número de equipes entrevistadas se concentra na

região Sudeste (38%), seguido pela região Nordeste (33%) e Sul (17%).

Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ

18

A maioria das equipes de saúde da família possuía administração pública como agente

contratante: a Administração Direta corresponde a 74% e a administração indireta a 8,7%. No

âmbito do setor privado, encontrou-se 9,8% correspondendo ao privado não lucrativo, 6,1% a

outros e 1,3% ao privado lucrativo.

O Gráfico 1 (ANEXO B) detalha a distribuição da natureza jurídica de acordo com as regiões

do Brasil. Observa-se que, a administração direta é o agente contratante presente na maioria

das equipes de saúde da família em todas as regiões, com destaque para o Norte, com 92%,

enquanto o Sudeste possui o menor percentual desse agente contratante, com 68%.

Por outro lado, o privado lucrativo é uma das modalidades que apresenta menor frequência

em todas as regiões, superior apenas às outras formas não determinadas de agente contratante

nas regiões Sudeste, Centro-oeste e Sul (2%). Destaca-se na região Sudeste o privado não

lucrativo como agente contratante das equipes de saúde da família, atingindo o percentual de

aproximadamente 24%.

Ao se analisar a distribuição da natureza jurídica dos agentes contratantes de acordo com os

estados brasileiros, observa-se que os estados de Rio de Janeiro e São Paulo apresentam mais

da metade do total das equipes de saúde da família da região Sudeste contratadas pelo privado

não lucrativo (dados não apresentados).

A Tabela 2 (ANEXO C) detalha a distribuição entre o nível de certificação atribuído a equipe

de saúde da família de acordo com a subdimensão gestão do processo de trabalho e acesso,

que é composta das variáveis, Planejamento das Ações, Organização dos Prontuários e

Informatização, Organização da agenda, Territorialização e População de Referência,

Acolhimento à Demanda Espontânea e Visita Domiciliar e com a natureza jurídica do agente

contratante, assim como a associação estatística pelo teste qui-quadrado entre essas variáveis.

Nas variáveis referentes ao Planejamento das Ações, Organização da agenda e Visita

Domiciliar, a certificação classificada como boa foi prevalente em todos os agentes

Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ

19

contratantes, exceto na última variável, em que obtiveram a certificação ruim para o agente

contratante privado não lucrativo.

No restante das variáveis analisadas a maioria das equipes foi certificada como regular, exceto

em relação ao Acolhimento à Demanda Espontânea, quando o agente contratante era a

administração indireta.

Ao se analisar a média do percentual de certificação entre todos agentes contratantes, ressalta-

se que, a Territorialização e População de Referência possuíram maior percentual médio de

certificação ótimo, enquanto a variável Organização dos Prontuários e Informatização possui

maior percentual médio de certificação regular.

O teste de associação do qui-quadrado demonstrou que apenas nas variáveis Organização dos

Prontuários e Informatização e Organização da Agenda se observa uma associação

estatisticamente significante entre a natureza jurídica dos agentes contratantes dos

coordenadores das equipes de saúde e a certificação das equipes.

Discussão

Os resultados encontrados no presente estudo apontam para questões relevantes sobre o

processo de gestão do trabalho na atenção básica, já identificadas por outros autores.

Conforme observaram Girardi e Carvalho (2003), as regiões mais desenvolvidas do país têm

utilizado mais de agentes terceiros para contratação de pessoal, do que as demais regiões, nas

quais predomina a contratação direta dos profissionais pelo poder público. Para os

coordenadores das equipes de saúde avaliadas pelo PMAQ, nota-se uma presença importante

das entidades privadas não lucrativas na região Sudeste. A participação de instituições de

caráter privado sem fins lucrativos, administradas com a lógica do setor privado, porém com

finalidades de interesse público, é marcante no processo de reforma do Estado (FRANCO,

1999). Entretanto, esse cenário deve ser avaliado com atenção, dada que a ampliação da

Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ

20

institucionalização dessas entidades pode descaracterizar e comprometer o desempenho de

funções de responsabilidade do Estado e repercutem sobre a vulnerabilidade do SUS,

garantindo a efetividade, eficiência e eficácia da gestão do sistema de saúde (PAIM, 2007).

A disseminação de organizações sociais, OSCIPs, cooperativas e outras modalidades de

gestão na área de saúde emerge como uma alternativa aos gestores municipais para viabilizar

a contratação de profissionais, mas parece não resolver os problemas já existentes. Em

diversas situações, o quadro agrava-se, pois além de gestão da força de trabalho, estas

iniciativas também passam a se constituir como alternativas para provisão de serviços,

configurando uma situação de entrada efetiva das modalidades privadas de provisão de

serviços. Nesses casos, surgem as Organizações Sociais que são entidades gestoras, de caráter

privado, sem fins lucrativos, que, por meio de contratos de gestão, vinculam-se às secretarias

de saúde.

Por sua vez, as Fundações Estatais configuram-se como fundações públicas com estrutura de

direito privado, caracterizadas por seguirem normas simplificadas de direito administrativo e

por estarem limitadas ao âmbito da administração indireta do Estado. Esses dois novos

arranjos institucionais estão sendo implantados pelos gestores em um cenário de conflitos

com outros importantes atores do SUS (NOGUEIRA, 2002).

Observando a associação entre natureza jurídica dos agentes contratantes e certificação das

equipes por aspectos que compõem a dimensão gestão do processo de trabalho, os resultados

indicaram que não há diferenças importantes entre as formas utilizadas para contratação dos

coordenadores. Ou seja, ser contratado por uma entidade de uma determinada natureza

jurídica parece não ter implicações sobre o grau de certificação obtido pelas equipes, à

exceção da associação entre o nível de certificação atribuído à equipe de saúde e o agente

contratante nas dimensões Organização dos Prontuários e Informatização e Organização da

Agenda que se mostrou estatisticamente significativa. Nota-se que, independentemente da

Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ

21

natureza jurídica, em geral, as equipes receberam nível de certificação bom ou regular e a

frequência das equipes certificadas como ótimo foi relativamente baixa.

Esses achados nos remetem a discussão sobre a reforma do Estado que levou a certa

polarização entre a administração direta e a desresponsabilização estatal e reprimiu a busca de

alternativas que fossem capazes de superar os problemas e assegurassem efetividade,

qualidade e eficiência nos serviços prestados pelos serviços de saúde, em particular pela

atenção básica. Os novos arranjos institucionais sugerem uma tendência da desregulação das

relações de trabalho (NOGUEIRA, 2002) que podem ter impacto na atenção prestada.

Portanto, frente a esse quadro é necessário rever as bases legais e normativas que sustentam

esses institutos e conformam o regime jurídico administrativo que regula a atuação das

instituições e agentes estatais, para reduzir o risco de agravamento do processo de perda de

capacidade estatal de governança e governabilidade, em favor de atores privados nacionais ou

de agentes internacionais, que conforme destaca Salgado e Girardi (2011), atuam na economia

e na política interna brasileira de forma contundente, em razão do fenômeno da

internacionalização da economia.

Como observado na literatura, não se trata simplesmente de um mix público/privado de

recursos assistenciais usados indistintamente para o atendimento das necessidades da

população, mas de como arranjos dotados de lógicas contraditórias se articulam. Essas lógicas

devem ser compreendidas e explicitadas, para que assim se busque a instalação de um regime

regulatório que contribua para o fortalecimento do caráter público e da unicidade do sistema

de saúde (SESTELO; SOUZA; BAHIA, apud EIBENSCHUTZ,2013).

Por fim, as observações apresentadas sinalizam sobre a importância da questão e colocam

aspectos que devem ser aprofundados em novos estudos e devem considerados no debate

sobre o tema.

Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ

22

Referências

AZEVEDO, S; ANDRADE, L.A.G. A reforma do Estado e a questão federalista: reflexões

sobre a proposta Bresser Pereira. In: Diniz, E. ; Azevedo, S (Orgs). Reforma de Estado e

democracia no Brasil: dilemas e perspectivas. Brasília: Editora Universidade de Brasília,

1997.

BAHIA, L. A privatização no sistema de saúde brasileiro nos anos 2000: tendências e

justificação. Gestão Pública e Relação Público Privado na Saúde. Cebes, Rio de Janeiro, pags.

115 a 128 -2011.

BARBOSA, N. B. Regulação do trabalho no contexto das novas relações público versus

privado na saúde. Ciência & Saúde Coletiva, vol. 15, núm. 5, 2010, pp. 2497-2506.

BOSCHI, R.R; LIMA ,M. R. S. O executivo e a construção do Estado no Brasil. In: Viana,

LW.A democracia e os três poderes no Brasil. Belo Horizonte, Editora UFMG; Rio de

janeiro, IUPERJ.2002, p 195-254.

BRASIL. Presidência da República. Decreto-Lei nº 200, de 25 de Fevereiro de 1967. Dispõe

sobre a organização da administração federal, estabelece diretrizes, para a reforma

administrativa, e da outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 27 fev. 1967.

Seção 1. Suplemento. p. 4. LexML Brasil – Rede de Informação Legislativa e Jurídica.

Disponível em: < http://www.lexml.gov.br/urn/urn: lex:br:federal:decreto.lei:1967-02-

25;200>. Acesso em: 10 de mar. 2013.

Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ

23

BRASIL. Presidência da República. Decreto 6.017 de 17 de Janeiro de 2007. Regulamenta a

Lei nº 11.107, de 6 de abril de 2005, que dispõe sobre normas gerais de contratação de

consórcios públicos. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 18 jan. 2007. Seção 1. p. 1.

LexML Brasil – Rede de Informação Legislativa e Jurídica. Disponível em: <

http://www.lexml.gov.br/urn/urn: lex:br:federal:decreto:2007-01-17;6017>. Acesso em 10 de

mar. 2013.

BRASIL. Congresso Nacional. Emenda Constitucional nº 19, de 04 de junho de 1998.

Modifica o regime e dispõe sobre princípio e normas da Administração Pública, Servidores e

Agentes políticos, controle de despesas e finanças públicas e custeio de atividades a cargo do

Distrito Federal, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 05 de jun.

1998. Seção 1. P. 1. LexML Brasil – Rede de Informação Legislativa e Jurídica. Disponível

em: < http://www.lexml.gov.br/urn/urn: lex:br:federal:emenda.constitucional:1998-06-

04;19>. Acesso em 10 de mar. 2013.

BRASIL. Congresso Nacional. Lei 11.107 de 6 de Abril de 2005. Dispõe sobre normas gerais

de contratação de consórcios públicos e dá outras providências. Diário Oficial da União,

Brasília, DF, 07 abr. 2005. Seção 1. P. 1. LexML Brasil – Rede de Informação Legislativa e

Jurídica. Disponível em: < http://www.lexml.gov.br/urn/urn: lex:br:federal:lei:2005-04-

06;11107>. Acesso em: 10 de mar. 2013.

BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 7.596, de 10 de Abril de 1987. Alteram dispositivos do

Decreto-Lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967, modificado pelo Decreto-Lei nº 900, de 29 de

setembro de 1969, e pelo Decreto-Lei nº 2.299, de 21 de novembro de 1986, e dá outras

providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 abr. 2007. Seção 1. P. 5253. LexML

Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ

24

Brasil – Rede de Informação Legislativa e Jurídica. Disponível em: <

http://www.lexml.gov.br/urn/urn: lex:br:federal:lei:1987-04-10;7596>. Acesso em 10 de mar.

2013.

BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 9.637, de 15 de Maio de 1998. Dispõem sobre a

qualificação de entidades como organizações sociais, a criação do Programa Nacional de

Publicização, a extinção dos órgãos e entidades que menciona e a absorção de suas atividades

por organizações sociais, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 25

de mai. 1998. Seção 1. P. 1. LexML Brasil – Rede de Informação Legislativa e Jurídica.

Disponível em: < http://www.lexml.gov.br/urn/urn: lex:br:federal:lei:1998-05-15;9637>.

Acesso em 10 de mar. 2013.

BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 9.790, de 23 de Março de 1999. Dispõe sobre a

qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações

da Sociedade Civil de Interesse Público, institui e disciplina o Termo de Parceria, e dá outras

providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 mar. 1999. Seção 1. P. 1. LexML

Brasil – Rede de Informação Legislativa e Jurídica. Disponível em: <

http://www.lexml.gov.br/urn/urn: lex:br:federal:lei:1999-03-23;9790> Acesso em 10 de mar.

2013.

BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 12.435, de 6 de Julho de 2011. Altera a Lei nº 8.742, de

7 de dezembro de 1993, que dispõe sobre a organização da Assistência Social. Diário Oficial

da União, DF, 07 jul. 2011. Seção 1. P. 1. LexML Brasil – Rede de Informação Legislativa e

Jurídica. Disponível em: < http://www.lexml.gov.br/urn/urn: lex:br:federal:lei:2011-07-

06;12435>. Acesso em 10 de mar. 2013.

Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ

25

BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de Atenção Básica. Documento Síntese Para

Avaliação Externa. Brasília; 2012.

BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de Atenção Básica. Guia prático do programa

de saúde da família. Brasília; 2001.

BRASIL. Portaria nº 648, de 28 de março de 2006. Brasília: Ministério da Saúde, 2006.

Disponível em: http://dtr2001.saude.gov.br/sas/PORTARIAS/Port2006/GM/GM-648.htm.

Acesso em: 13/06/2013.

BRASIL. Portaria nº 2.027, de 25 de agosto de 2011. Brasília: Ministério da Saúde, 2011.

Disponível em: http://www.brasilsus.com.br/legislacoes/gm/109380-2027.html. Acesso em:

13/06/2013.

CARNEIRO JUNIOR, N. O setor público não estatal: as organizações sociais como

possibilidades e limites na gestão pública da saúde Tese apresentada à Faculdade de Medicina

da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutor em Medicina, 2002.

CARNEIRO JUNIOR, N., NASCIMENTO, V. B., COSTA, I. M. C. Relação entre Público e

Privado na Atenção Primária à Saúde: considerações preliminares. Saúde Soc; 20(4): 971-979

out.-dez. 2011.

Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ

26

FRANCO, A. A reforma do Estado e o terceiro setor. In: BRESSER, P. L. C.; WILHEIM, J.;

SOLA, L. (Ed.). Sociedade e Estado em transformação. São Paulo: Editora UNESP; Brasília:

ENAP, 1999. P. 273-289.

GIL, C. R. R. Atenção primária, atenção básica e saúde da família: sinergias e singularidades

no contexto brasileiro. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 22, n. 6, p. 1171-1181,

2006.

GIRARDI S. N. & CARVALHO C. L. Contratação e Qualidade do Emprego no Programa de

Saúde da Família no Brasil. Brasil. Ministério da Saúde. Observatório de recursos humanos

ou saúde no Brasil: estudos e análises. Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 2003. P.157-190, tab.

NOGUEIRA, R.P. O desenvolvimento federativo do SUS e as novas modalidades

institucionais de gerência das unidades assistenciais. Gestão Pública e Relação Público

Privado na Saúde. Cebes, Rio de Janeiro, pags. 24 a 47 -2010.

NOGUEIRA R.P. O trabalho em saúde hoje: novas formas de organização. In: Negri B, Faria

R, Viana ALd’A, organizadores. Recursos humanos em Saúde – política, desenvolvimento e

mercado de trabalho. Campinas: Nepp/Unicamp; 2002. p. 257-274.

PAIM, J. S. & TEIXEIRA, C. F. Configuração institucional e gestão do Sistema Único de

Saúde: problemas e desafios. Ciência & Saúde Coletiva, 12(Sup):1819-1829, 2007.

Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v12s0/05.pdf. Acesso em: 15 de abril de 2013.

SALGADO, V.A. B; ALMEIDA, V.J. Administração pública democrática - Gradiente das

formas jurídico-institucionais de atuação do poder executivo. In: Castro, A.C.B.; Antero, S.A.

Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ

27

(orgs) Propostas de taxonomias para órgãos e entidades da administração pública federal e

outros entes de cooperação e e colaboração. Brasília: Editora IABS, 2012.

SALGADO, V. A. B., GIRARDI, S. N. Nuevos arreglos institucionales para lagestión pública

democrática en Brasil. Revista del CLAD - Reforma y Democracia. No. 50, Jun. 2011.

SESTELO, J.A.F.; SOUZA, L.E.P.F.; BAHIA, L. Saúde suplementar no Brasil: abordagens

sobre a articulação público/privada na assistência à saúde. Cad. Saúde Pública, vol.29,

nº.5.Rio de Janeiro,maio, 2013.

STARFIELD, B. Atenção primária: equilíbrio entre a necessidade de saúde, serviços e

tecnologias. Brasília: UNESCO, 2002.

Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ

28

ANEXOS

Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ

29

ANEXO A

QUADRO 1

Categorias dos agentes contratantes dos coordenadores das equipes de atenção básica do

PMAQ. Brasil, 2012.

Fonte: Elaboração própria, NESCON, 2013.

Categorias Modelos

Publico – Administração

direta Ministérios, Secretárias de Estado e Municipais

Publico – Administração

indireta

Consórcios Intermunicipais de Direito Público e

Privado, Fundação Pública de Direito Público e Privado

Privado - Lucrativo Empresas

Privado - Não lucrativo OS, OSCIP, ONG, Entidade Filantrópica

Outros

Cooperativa

Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ

30

ANEXO B

GRÁFICO 1

Distribuição da natureza jurídica de acordo com as regiões do Brasil. Brasil, 2012.

Fonte: Elaboração própria, NESCON, 2013.

Gestão “público e privada” na ABS: uma análise a partir do PMAQ

31

ANEXO C

TABELA 1

Associação entre o tipo de Agente Contratante e o nível de certificação da equipe e

acordo com as subdimensões da gestão do trabalho. Brasil, 2012.

Variáveis Certificaçã

o

Agente Contratante - n (%) pa

A.D. A.I. P.N.L. P.L. Outros

Planejamento das

ações

Ótimo 449 (3,90) 56(4,12) 82 (5,49) 9 (4,52) 45 (4,71)

0,241 Bom

6244

(54,29) 724 (53,27) 792 (53,01) 112 (56,28) 518 (54,18)

Regular

4808

(41,81) 579 (42,60) 620 (41,50) 78 (39,20) 393 (41,11)

Organização dos

Prontuários e

Informatização

Ótimo 1063 (9,24) 123 (9,05) 347 (23,23) 18 (9,05) 55 (5,75)

0,001 Bom

4690

(40,78) 574 (42,24) 437 (29,25) 81 (40,70) 417 (43,62)

Regular

5748

(49,98) 662 (48,71) 710 (47,52) 100 (50,25) 484 (50,63)

Organização da

agenda

Ótimo

2016

(17,53) 204 (15,01) 189(12,65) 30 (15,08) 162 (16,95)

0,001 Bom

4790

(41,65) 587 (43,19) 619 (41,43) 89 (44,72) 416 (43,51)

Regular

4695

(40,82) 568 (41,80) 686 (45,92) 80 (40,20) 378 (39,54)

Territorialização

e População de

Referência

Ótimo

2191

(19,05) 222 (16,34) 294 (19,68) 33 (16,58) 194 (20,29)

0,410 Bom

3581

(31,14) 429 (31,57) 494 (33,07) 73 (36,68) 276 (28,87)

Regular

5729

(49,81) 708 (52,10) 706(47,26) 93 (46,73) 486 (50,84)

Acolhimento à

Demanda

Espontânea

Ótimo

1892

(16,45) 232 (17,07) 193 (12,92) 29 (14,57) 156 (16,32)

0,870 Bom

4589

(39,90) 531 (43,86) 623 (41,70) 83 (41,71) 383 (40,06)

Regular

5020

(43,65) 596 (39,07) 678 (45,38) 87 (43,72) 417 (43,62)

Visita Domiciliar

Ótimo

1359

(11,82) 166 (12,21) 154 (10,31) 13 (6,53) 115 (12,03)

0,301 Bom

5330

(46,34) 621 (45,70) 660 (44,18) 109 (54,77) 442 (46,23)

Regular

4812

(41,84) 572 (42,09) 680 (45,51) 77 (38,69) 399 (41,74)

Total - 11501 1359 1494 199 956 -

Fonte: Elaboração própria

Nota: a – Teste Qui-Quadrado; AD -> Administração Direta; AI -> Administração Indireta; PNL -> Privado Não

Lucrativo; PL -> Privado Lucrativo.