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NOVA ZELÂNDIA ILHA do NORTE ILHA do SUL MAR DA TASMÂNIA OCEANO PACÍFICO

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NOVA ZELÂNDIA

ILHA do NORTE

ILHA do SUL

MAR DA TASMÂNIA

OCEANO PACÍF

ICO

ALPES NEOZELANDESES

PLANÍC

IES D

E CANTERBURY

Trilho Bridle

Terras

Altas de M

cKenzie

Rio

Bulle

r

A PARTIDA

Londres, Powys, Christchurch

1852

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A Igreja Anglicana de Christchurch, Nova Zelândia, procura mulheres jo-vens e respeitáveis, com experiência nas tarefas domésticas e na educação de

crianças, que estejam interessadas em contrair matrimónio cristão com membros da nossa comunidade, com boa reputação e situação económica estável.

O olhar de Helen deteve-se brevemente no discreto anúncio da úl-tima página do boletim da igreja. A professora tinha folheado o boletim por instantes, enquanto os seus alunos resolviam em silêncio um exer-cício de gramática. Helen teria preferido ler um livro, mas as perguntas constantes de William interrompiam a sua concentração. A cabeleira castanha do menino de onze anos voltou a erguer-se dos deveres.

– Menina Davenport, no terceiro parágrafo, onde diz que, é um pronome relativo ou uma conjunção?

Helen pousou o boletim com um suspiro e explicou, pela milé-sima vez naquela semana, a diferença entre o pronome relativo e a conjunção. William, o filho mais novo de Robert Greenwood, que a havia contratado, era um menino encantador, mas não exatamente possuidor de grandes dotes intelectuais. Precisava de ajuda em todos os exercícios, esquecia-se das explicações de Helen assim que esta aca-bava de lhas dar e o seu verdadeiro talento era ficar com um ar como-ventemente ausente e encantar os adultos com a sua voz de soprano, doce e infantil. Lucinda, a mãe de William, deixava-se sempre enganar. Quando o menino começava a bajulá-la e sugeria que fizessem qual-quer coisa juntos, Lucinda cancelava de forma sistemática as aulas que Helen tinha programado. Era por esse motivo que William ainda

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não conseguia ler fluidamente e até os exercícios mais simples de or-tografia lhe exigiam um esforço excessivo. Assim, seria impensável o menino prosseguir os seus estudos superiores em Eaton ou Oxford, como o seu pai sonhava.

O irmão mais velho, George, de dezasseis anos, nem sequer se dava ao trabalho de fazer de conta que entendia. Revirou os olhos e mostrou no livro de textos a frase com que William se debatia ha-via meia hora. George, um rapaz bastante desajeitado e alto, já tinha acabado a tradução de latim. Fazia os exercícios sempre com grande velocidade, embora cometesse alguns erros. As disciplinas clássicas aborreciam-no. Ele aguardava com impaciência o dia em que faria parte da empresa de importação e exportação do pai. Sonhava viajar para países longínquos e fazer expedições aos novos mercados das colónias que, sob a soberania da rainha Vitória, surgiam quase a cada nova hora. Não havia dúvidas de que nascera para ser comerciante. Com aquela idade já demonstrava destreza para a negociação e sabia tirar partido do seu considerável encanto. Sabia até usá-lo com Helen e assim reduzir as horas de aulas. Naquele dia, tentava também fa-zer com que estas acabassem mais cedo quando, finalmente, William percebeu o intuito do exercício, ou pelo menos de onde podia copiar a resposta. Quando Helen se preparou para pegar no caderno de George, a fim de lhe corrigir o exercício, o rapaz afastou-o com um ar provocador.

– Oh, menina Davenport, quer na realidade corrigir os exercícios agora? Está um dia demasiado bonito para ficarmos aqui fechados! Estávamos melhor a jogar uma partida de críquete… Devia aperfei-çoar a sua técnica. De contrário, não poderá participar nas festas de jardim e nenhum dos jovens cavalheiros reparará em si. Assim, nunca fará fortuna casando-se com um conde e terá de dar aulas a casos perdidos, como Willy, até ao fim dos seus dias.

Helen desviou o olhar, olhou através da janela e franziu o sobrolho ao ver as nuvens negras.

– Não era má ideia, George, mas as nuvens estão a ameaçar chuva. Quando sairmos daqui e chegarmos ao jardim, a chuva vai desabar mesmo em cima das nossas cabeças, o que decerto não me tornará mais atraente para os cavalheiros da nobreza. Mas como chegaste à conclusão de que são essas as minhas intenções?

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Helen tentou adotar uma expressão completamente indiferente. Sabia fazê-lo muito bem: quando se trabalhava como preceptora de uma família da classe alta londrina, a primeira coisa que se aprendia era a dominar as expressões do próprio rosto. A posição que Helen ocupava na casa dos Greenwood não era a de um membro da família, mas também não era a de uma empregada normal. Participava nas refeições familiares e, muitas vezes, nas atividades que a família orga-nizava nos tempos livres, mas procurava sempre não emitir opiniões quando não lhas pediam e tentava não chamar a atenção de qualquer outro modo. Era por este motivo que, nas festas de jardim, Helen não se misturava de forma cordial com os convidados mais jovens. Ao invés, mantinha-se um pouco afastada, conversava com as senhoras e vigiava discretamente os seus alunos. Como era natural, o seu olhar passava de vez em quando pelo rosto dos convidados varões mais jovens e por vezes entregava-se a um breve e romântico devaneio em que passeava com um charmoso visconde ou barão pelo jardim da casa dos seus sonhos. Mas era impossível que George se tivesse apercebido disso!

George encolheu os ombros.– Então, está sempre a ler os anúncios de casamentos! – respon-

deu ele com insolência, sorrindo de modo conciliador para o boletim da igreja. Helen aborreceu-se consigo mesma por ter deixado o bole-tim aberto junto ao aluno. Era inegável que George, entediado, deitara o olho enquanto Helen ajudava William.

– Além disso, a menina é muito bonita – acrescentou George, adulador. – Porque não haveria de se casar com um barão?

Helen desviou o olhar. Sabia que devia repreender George, mas o rapaz divertia-a. Se continuasse a ser assim, chegaria longe, pelo menos com as senhoras e também no mundo dos negócios, no qual os seus hábeis elogios seriam certamente apreciados. Não obstante, de que lhe serviriam em Eaton? Além de que Helen era imune a tão tor-pes elogios. Sabia bem que tinha uma beleza clássica. As suas feições eram harmoniosas, mas não chamativas: a boca era um pouco peque-na, o nariz demasiado fino e os olhos, cinzentos e serenos, tinham uma expressão demasiado cética e, sem sombra de dúvida, demasiado vivida para despertar o interesse de um jovem rico e aventureiro. O atributo mais esplendoroso de Helen era o seu cabelo lustroso, liso

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e comprido até à cintura, cuja cor castanha intensa assomava uns tons acobreados quando nela incidia o sol. Talvez pudesse causar sensação se deixasse o cabelo solto ao vento, como faziam algumas raparigas durante os piqueniques ou as festas ao ar livre a que Helen compare-cia, acompanhando os Greenwood. Durante os passeios com os seus admiradores, as jovens ladies mais ousadas aproveitavam o pretexto de terem demasiado calor e tiravam o chapéu, ou fingiam que o vento lhes arrancava os toucados, quando um jovem as levava num barco a remos ao lago de Hyde Park. Nessas ocasiões, agitavam o cabelo, libertando-o como que por acidente das fitas e ganchos, e deixavam os homens admirar o esplendor dos seus cachos.

Helen nunca se dera a tais manifestações. Filha de um pároco, recebera uma educação austera e desde menina que usava o cabelo entrançado e apanhado. Além disso, fora obrigada a crescer depressa de mais: a mãe morrera quando ela tinha apenas doze anos e o pai acabara por encarregar a filha mais velha dos assuntos domésticos e da educação dos três irmãos mais novos. O reverendo Davenport não se interessava pelos problemas que ocorriam entre a cozinha e o quarto das crianças, a única coisa que o preocupava eram os deveres que tinha para com a sua comunidade e a tradução e interpretação de textos religiosos. Só dedicava alguma atenção a Helen quando esta o acompanhava em alguma dessas funções; por sua vez, Helen só escapava à intensa agitação da casa da família quando se refugiava no escritório do pai. Foi assim que, de modo praticamente natural, leu a Bíblia em grego enquanto os irmãos começavam a aprender o abecedário. Escrevia os sermões do pai com uma caligrafia bonita e copiava os rascunhos dos artigos que este redigia para os boletins da grande comunidade de Liverpool. Não lhe sobrava muito tempo para outras distrações. Enquanto Susan, a irmã mais velha, aproveitava as quermesses de beneficência e os piqueniques da igreja para conhecer os jovens mais notáveis da comunidade, Helen colaborava na venda dos artigos, confecionava bolos e servia o chá.

Aconteceu o que já era de prever: com dezassete anos, Susan ca-sou-se com o filho de um conhecido médico, enquanto Helen, depois da morte do pai, se viu obrigada a aceitar o cargo de professora par-ticular. O seu salário servia também para ajudar a pagar os estudos dos irmãos, em Direito e Medicina. A herança que o pai deixara não

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chegava para financiar uma formação adequada para os rapazes, que, por sua vez não faziam grande esforço por concluírem rapidamente os estudos. Com um acesso de raiva, Helen recordou-se que o irmão Simon voltara a suspender um exame que devia ter feito na semana anterior.

– Os barões devem casar-se com baronesas – respondeu, um pou-co desagradada com a observação de George. – E quanto a isto – acrescentou, acenando com o boletim da igreja –, estava a ler o artigo, não o anúncio.

George não lhe respondeu, mas sorriu de forma enigmática. O ar-tigo versava sobre a aplicação de calores nos casos de artrite. Era um assunto que certamente interessaria aos membros mais idosos da co-munidade, mas seria seguro dizer que a menina Davenport ainda não sofria de dores nas articulações.

De qualquer maneira, a professora consultava agora o relógio e decidiu dar por encerrada a aula da tarde. Faltava apenas uma hora para que o jantar fosse servido; se bem que George precisava apenas de cinco minutos para se pentear e mudar de roupa para o jantar, e Helen não necessitava de muito mais tempo; no caso de William, despir-lhe a bata escolar manchada de tinta e vestir-lhe uma roupa apresentável demorava sempre mais algum tempo. Helen dava graças por não ser obrigada a cuidar do aspeto de William. Para isso, o me-nino tinha uma ama.

A jovem preceptora acabou a aula com algumas observações ge-rais sobre a importância da gramática, a que os meninos prestaram apenas uma atenção superficial. Imediatamente depois, William levan-tou-se com toda a pressa, sem voltar a olhar para o caderno nem para os manuais.

– Tenho de ir mostrar as minhas pinturas à mamã! – informou, deixando para Helen a tarefa de arrumar as suas coisas. Não podia arriscar-se a que William chegasse junto da mãe a chorar, queixando- -se de uma qualquer injustiça atroz infligida pela professora. George olhou de relance para o fraco desenho de William, que a mãe não tardaria em receber com exclamações entusiasmadas, e encolheu os ombros, resignado. A seguir, reuniu as suas coisas à pressa antes de sair. Entretanto, Helen reparou que o rapaz olhou para ela com uma ex-pressão compassiva. Ficou surpresa ao recordar a observação que

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George fizera havia pouco: Se não encontrar marido, terá de dar aulas a casos perdidos, como Willy, até ao fim dos seus dias.

Helen pegou no boletim da igreja. Na verdade, apetecia-lhe atirá-lo para longe, mas pensou melhor. Guardou-o no bolso quase disfarça-damente e levou-o para o quarto.

Robert Greenwood não tinha muito tempo para estar com a fa-mília, no entanto, o jantar com a mulher e com os filhos era sagrado. A presença da jovem preceptora não o incomodava. Pelo contrário, achava muito estimulante incluir a menina Davenport nas conversas e conhecer a sua opinião sobre o que acontecia no mundo, sobre litera-tura e sobre música. Era óbvio que ela entendia mais desses assuntos do que a sua mulher, cuja educação clássica deixava muito a desejar. Os interesses de Lucinda limitavam-se à gestão da casa, a idolatrar o filho mais novo e a colaborar com o comité de senhoras na organiza-ção de diversos eventos de beneficência.

Naquela noite, Robert Greenwood voltou a sorrir amistoso quan-do Helen entrou na sala e ajudou-a com a cadeira, depois de cumpri-mentar respeitosamente a jovem professora. Helen retribuiu o sorriso, mas certificou-se de que incluía naquele gesto a senhora Greenwood. Não queria em caso algum que se suspeitasse que estava a namoris-car com o patrão, apesar de se tratar de um homem atraente. Era alto e magro, tinha um rosto largo e inteligente, olhos castanhos e curiosos. O fato castanho com a corrente do relógio de ouro assen-tava-lhe como uma luva e os seus modos não se ficavam atrás dos dos cavalheiros das famílias nobres com quem os Greenwood manti-nham relações comerciais. Não obstante, não eram inteiramente acei-tes nesses círculos, que os consideravam forasteiros. O pai de Robert Greenwood criara a sua florescente empresa quase do nada e o filho conseguira aumentar a fortuna, esforçando-se por receber algum re-conhecimento social. Para isso, casara-se com Lucinda Raiford, oriun-da de uma família nobre falida; de acordo com os rumores que circu-lavam pela alta sociedade londrina, o gosto que o pai de Lucinda nutria pelo jogo e pelas corridas de cavalos fora o responsável pelo declínio. Lucinda relacionava-se com a burguesia a contragosto e, como reação ao declínio da posição social da família, tinha tendência para exagerar. Por isso, as reuniões e festas de jardim dos Greenwood eram sempre

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mais opulentas do que as que decorriam nas residências dos restantes notáveis da sociedade londrina. As outras damas aproveitavam essas ocasiões, embora não se coibissem de as criticar.

Também naquela noite Lucinda se aperaltara com demasiada so-lenidade para um simples jantar de família. Tinha um elegante vestido de seda lilás e a sua criada particular devia ter passado horas a penteá--la. Lucinda tagarelava sobre uma reunião do comité de senhoras em que participara naquela tarde, na qual se falara do orfanato local, mas não obteve grande resposta. Nem Helen nem o senhor Greenwood estavam particularmente interessados no assunto.

– E o que fizeram vocês neste dia tão bonito? – perguntou final-mente a senhora Greenwood à família. – A ti nem preciso de per-guntar nada, Robert, porque o teu dia girou com certeza em torno de negócios, negócios e mais negócios – disse, dirigindo ao marido um olhar que pretendia ser afetuoso.

A senhora Greenwood reclamava que o marido lhe prestava mui-to pouca atenção, a ela e às suas causas sociais. Robert fez uma careta involuntária. O mais certo era estar prestes a dar-lhe uma resposta desagradável, já que os seus negócios não só alimentavam a família, como também tornavam possível que Lucinda fizesse parte dos vá-rios comités de senhoras. De qualquer maneira, Helen duvidava que a senhora Greenwood tivesse sido escolhida pelas suas notáveis capa-cidades organizativas e não pelos generosos donativos que o marido fazia.

– Bem, tive uma conversa muito interessante com um comerciante de lã da Nova Zelândia, e... – começou por dizer Robert, olhando para o filho mais velho, mas Lucinda continuou a falar, enquanto olhava de modo indulgente sobretudo para William.

– E vocês, meus filhos queridos? Certamente estiveram a jogar no jardim, não é verdade? William, querido, voltaste a ganhar ao George e à menina Davenport no críquete?

Helen manteve os olhos colados ao prato, mas pelo canto do olho percebeu que George revirava os seus para o céu, como sempre costumava fazer, como se pedisse ajuda a um anjo compreensi-vo. Na verdade, William só ganhara uma vez ao irmão mais velho, e porque George estava muito constipado. Normalmente, até Helen lançava a bola com maior destreza, se bem que muitas vezes jogava

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propositadamente mal para que o mais pequeno ganhasse. A senhora Greenwood apreciava esse seu gesto, ao passo que o senhor Green-wood o recriminava e chamava a atenção da professora.

– O menino deve acostumar-se à ideia de que a vida está cheia de duros fracassos! – exclamava com severidade. – Deve aprender a perder, só depois conseguirá ganhar.

Helen duvidava que William alguma vez se saísse bem, fosse qual fosse o meio em que se movia, mas a ténue compaixão que sentia em relação ao pobre menino desvaneceu-se perante a resposta de William.

– Oh, mamã, a menina Davenport não nos deixou jogar! – lamen-tou-se, com uma expressão absolutamente desolada. – Ficámos o dia inteiro fechados na sala de aula, a estudar, a estudar e a estudar um pouco mais.

Como já seria de esperar, a senhora Greenwood olhou de imediato para Helen com uma expressão de reprovação.

– É verdade, menina Davenport? Já sabe que os meninos precisam de ar puro. Com esta idade não podem ficar o dia inteiro sentados a ler livros.

Helen estava furiosa, mas não podia acusar William de mentir. Para seu grande alívio, George interveio.

– Isso não é verdade. O William saiu para dar um passeio no fim do almoço, como faz todos os dias. Mas começou a chover um pouco e não queríamos estar na rua. De qualquer maneira, a ama levou-o ao parque, mas já não tivemos tempo de jogar críquete antes das aulas.

– Por isso, o William esteve a pintar – acrescentou Helen, procu-rando mudar de assunto. Talvez a senhora Greenwood se pusesse a falar do desenho, «digno de ser exibido num museu», e se esquecesse do passeio. Porém, a estratégia não surtiu o efeito desejado.

– Ainda assim, menina Davenport, se o tempo a meio do dia não ajudar, deve fazer um período de descanso. Os círculos que William frequentará um dia mais tarde dão quase tanta importância à forma física como aos estímulos intelectuais.

William parecia gostar de ver a preceptora a ser repreendida e Helen voltou a pensar no anúncio do boletim...

George parecia ter lido os pensamentos da preceptora. Como se a conversa com William e com a mãe nunca tivesse existido, retomou

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a última observação do pai. Helen já reparara antes nesta artimanha entre pai e filho e não podia deixar de admirar a elegante transição. No entanto, desta vez, o comentário de George fê-la corar.

– A menina Davenport nutre um grande interesse pela Nova Zelândia, pai.

Quando todos os olhos se viraram na sua direção, Helen engoliu em seco.

– Ai sim? – perguntou Robert Greenwood, com calma. – Está a pensar em emigrar? – Deu uma gargalhada. – Nesse caso, a Nova Zelândia é uma boa opção. Não é demasiado quente nem existem lá pântanos onde se apanhe a malária, como na Índia. Não há indígenas sanguinários como na América. E não existem colonos descendentes de criminosos como na Austrália...

– A sério? – perguntou Helen, feliz por voltar a conduzir a conver-sa para território neutro. – A Nova Zelândia não foi colonizada por presidiários?

O senhor Greenwood abanou a cabeça. – Nem por sombras. As comunidades locais foram fundadas qua-

se sem exceção por cristãos britânicos bastante tenazes, e ainda hoje assim é. É óbvio que não quero com isto dizer que não se encontrem lá indivíduos que não são dignos da nossa confiança. Sobretudo nos portos baleeiros da costa oeste ainda existem alguns trapaceiros e as colónias de tosquiadores também não são compostas por muitos ho-mens honrados. Mas a Nova Zelândia não é, com toda a certeza, um depósito da escória social. A colónia ainda é jovem. Só reclamou a sua independência há um punhado de anos.

– Mas os nativos são perigosos! – interveio George. Era evidente que também ele queria agora demonstrar os seus conhecimentos e Helen sabia, pelo que demonstrava nas aulas, que ele tinha uma pre-ferência e uma memória notáveis no que dizia respeito aos conflitos bélicos. – Até há pouco tempo ainda havia alguns confrontos, não é verdade, papá? Não contou que queimaram a lã de um dos seus par-ceiros comerciais?

O senhor Greenwood respondeu ao filho com um complacente aceno afirmativo.

– É verdade, George. Mas isso já é passado... pensando bem, já lá vão dez anos, por isso, ainda que ocasionalmente surjam algumas

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escaramuças, em princípio elas não se devem à presença dos colonos. Os colonos sempre foram dóceis em relação aos comerciantes. Já no que diz respeito à venda dos terrenos... e quem pode negar que nesses casos os nossos compradores de terras não prejudicaram um ou outro chefe tribal? Não obstante, desde que a rainha enviou para lá o nosso bom capitão Hobson como tenente governador, esse tipo de conflitos deixou de existir. O homem é um estrategista genial. Em 1840 conseguiu que quarenta e seis chefes tribais assinassem um tratado em que se declaravam súbditos da rainha. Desde então, a Coroa tem prioridade em todas as transações de terras. Infelizmente, nem todos concordaram com o tratado e nem todos os colonos são pacíficos. Por isso, de vez em quando, acontecem pequenos motins. Mas, no geral, o país é seguro. Já vê, menina Davenport, que não precisa de ter medo! – exclamou o senhor Greenwood, piscando o olho a Helen.

A senhora Greenwood franziu o sobrolho. – Não está mesmo a pensar em abandonar a Inglaterra, pois não,

menina Davenport? – perguntou, bastante mal-humorada. – Não está a pensar responder àquele anúncio indescritível que o pároco publi-cou no boletim da igreja, pois não? Contrariando a recomendação ex-pressa do comité de senhoras, diga-se de passagem.

Helen esforçou-se mais uma vez por não corar.– Que anúncio? – perguntou Robert, dirigindo-se a Helen, que se

limitou a responder de modo evasivo.– Pois… não sei bem do que se trata. Era apenas uma pequena

nota. – Uma comunidade da Nova Zelândia procura meninas que se

queiram casar – explicou George ao pai. – Ao que parece, as mulheres escasseiam naquele paraíso dos mares do Sul…

– George! – repreendeu-o a senhora Greenwood, escandalizada. O senhor Greenwood limitou-se a rir. – Paraíso dos mares do Sul? Não é bem assim; o clima é bastante

parecido com o de Inglaterra – corrigiu o filho. – Mas não é nenhum segredo que no ultramar há mais homens do que mulheres. A exce-ção talvez seja a Austrália, onde foi parar toda a escória feminina da sociedade: vigaristas, ladras, put… bem, meninas de vida fácil. Mas quando se trata da emigração voluntária, as nossas damas são menos

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amantes da aventura do que os cavalheiros. Ou vão para fora com os maridos, ou não vão de todo. O que é uma característica típica do sexo mais frágil.

– Exatamente! – exclamou a senhora Greenwood, dando razão ao marido, enquanto Helen tentava morder a língua. Não estava assim tão convencida da superioridade masculina. Bastava-lhe olhar para William ou pensar no seu próprio irmão, que prolongava indefini-damente os estudos. Bem escondido no quarto, Helen guardava um livro da feminista Mary Wollstonecraft, mas não devia mencioná-lo: a senhora Greenwood demiti-la-ia de imediato. – Sem a proteção de um homem, é contra a natureza feminina aventurar-se num imundo na-vio de emigrantes, instalar-se num país desconhecido e provavelmente encarregar-se de tarefas que Deus destinou aos homens. E enviar para o ultramar mulheres cristãs, com o intuito de se casarem, é sem dúvida quase um tipo de tráfico!

– É certo, mas as mulheres não são para ali enviadas sem prepa-ração – interveio Helen. – O anúncio prevê que antes as pessoas se correspondam por carta. E falava especificamente de cavalheiros de boa reputação e situação estável.

– Pensei que não tinha lido o anúncio – brincou o senhor Green-wood, com um sorriso indulgente que retirava a carga severa das suas palavras.

Helen voltou a corar. – Bem, talvez tenha passado os olhos…George sorriu com ironia. A senhora Greenwood parecia não ter ouvido a breve conversa.

Há já algum tempo que se ocupava com outro aspeto da problemática neozelandesa.

– Muito pior do que a falta de mulheres nas colónias, é, na minha opinião, o problema com os criados – afirmou. – Ainda hoje discuti-mos essa questão no comité do orfanato. Aparentemente, as melhores famílias de… como se chama aquela terra? Christchurch? Seja como for, as famílias não conseguem arranjar criados decentes. E então as criadas de casa são as mais difíceis de encontrar.

– O que poderia ser interpretado como um sucedâneo da escassez geral de mulheres – observou o senhor Greenwood. Helen reprimiu um sorriso.

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– Seja lá como for, o comité vai enviar algumas das nossas órfãs – continuou Lucinda. – Temos quatro ou cinco raparigas aplicadas, com cerca de doze anos, que já são crescidas o suficiente para ganharem o seu próprio sustento. Em Inglaterra, não encontram trabalho adequado. Embora aqui as pessoas prefiram raparigas um pouco mais velhas, lá vão certamente ficar encantadas com elas…

– Isso parece-me mais uma espécie de tráfico de mulheres do que os casamentos combinados – objetou o senhor Greenwood.

Lucinda olhou para ele com uma expressão furiosa.– Estamos apenas a agir no melhor interesse das raparigas! – pro-

testou, dobrando o guardanapo de modo afetado. Helen tinha sérias dúvidas quanto a isso. O mais certo era nin-

guém se ter dado ao trabalho de ensinar às meninas os fundamentos básicos da lida doméstica que as boas casas esperavam numa criada. Assim sendo, as pobres meninas podiam, no máximo, trabalhar como ajudantes de cozinha, mas, como era óbvio, as cozinheiras preferiam raparigas do campo, mais robustas, e não meninas de doze anos, sub-nutridas, vindas de um orfanato.

– Em Christchurch, as meninas terão mais hipóteses de encontrar um bom trabalho. E, naturalmente, só as vamos enviar para casas de boa reputação…

– Naturalmente – disse Robert, em tom trocista. – Tenho a certe-za de que manterão com os futuros empregadores das raparigas uma correspondência tão abundante quanto a que as jovens casadoiras vão manter com os seus futuros esposos.

Indignada, a senhora Greenwood franziu a testa.– Robert, tu não me levas a sério! – repreendeu.– Claro que te levo a sério, meu amor – respondeu o senhor

Greenwood, com um sorriso. – Como poderia atribuir ao tão hon-rado comité do orfanato outra coisa que não as melhores e mais vir-tuosas intenções? Além de que não vão enviar as vossas pequenas discípulas para o ultramar sem qualquer vigilância. Talvez por entre as jovens que desejam contrair matrimónio se encontre alguma que esteja disposta a ocupar-se das meninas, a troco de uma pequena con-tribuição do comité para ajudar ao custo da viagem…

A senhora Greenwood não se manifestou e Helen voltou a fixar os olhos no prato. Mal tinha tocado no saboroso assado cuja preparação

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levara certamente metade do dia à cozinheira. Não obstante, aperce-beu-se do olhar de soslaio, divertido e inquiridor, que o senhor Green-wood lhe enviara aquando do seu último comentário. Toda aquela questão levantava novas dúvidas. Por exemplo, Helen não levara em consideração que seria evidentemente necessário pagar a viagem até à Nova Zelândia. Seria possível deixar que o futuro esposo se encar-regasse disso sem que Helen ficasse com remorsos? Ou, ao fazê-lo, o homem já estava a adquirir direitos sobre uma mulher que na verdade só lhe pertenceria quando, frente a frente, dissessem o sim?

Não, aquela história da Nova Zelândia era uma grande loucura. Helen tinha de a tirar da cabeça. Não estava destinada a ter a sua pró-pria família. Ou estava?

Não, não devia pensar mais naquilo!Mas nos dias que se seguiram, a verdade é que Helen Davenport

não pensou noutra coisa.

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Deseja ver o rebanho agora, ou vamos beber um copo antes?Lorde Terence Silkham cumprimentou o seu convidado com

um vigoroso aperto de mão, a que Gerald Warden respondeu com a mesma firmeza. Lorde Silkham não sabia bem como imaginar um ho-mem ao qual a Associação de Criadores de Gado de Cardiff chamara «O Barão da Lã» do ultramar. No entanto, não lhe desagradava a pes-soa que se encontrava agora à sua frente. O homem vestia-se de forma prática para o clima do País de Gales, mas a sua roupa estava na moda. As calças tinham um corte elegante e eram feitas de um tecido com qualidade; a gabardina era de confeção inglesa. Os olhos azul-claros olhavam para ele no meio de um rosto amplo e um tanto anguloso, em parte escondido pelas abas largas do chapéu característico daquela zona. Por baixo do chapéu, tinha o cabelo farto e castanho, nem mais curto nem mais comprido do que era habitual usar-se em Inglaterra. Em suma, nada no aspeto de Gerald Warden fazia lembrar, nem de longe nem de perto, os cowboys dos romances que alguns dos seus criados liam de vez em quando, e, para horror da sua esposa, eram também lidos por Gwyneira, a filha rebelde de ambos! O autor de tão fracos livros descrevia as lutas sangrentas entre os colonos america-nos e os indígenas furiosos, ao passo que as ilustrações inconvenientes mostravam jovens audazes de longos cabelos ao vento, chapéus Stetson, calças de couro e botas de formatos estranhos nas quais se prendiam esporas gigantescas. Além disso, os vaqueiros não hesitavam em sacar das suas armas, a que chamavam Colt e que levavam em coldres presos num cinto folgado.

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O convidado de Lorde Silkham não trazia qualquer arma à cintura, mas sim uma garrafa de uísque, que segurou e ofereceu ao anfitrião.

– Eu diria que, para começar, isto nos bastará como reforço – res-pondeu Gerald Warden com uma voz profunda, agradável e habitua-da a dar ordens. – Servimo-nos de outras bebidas durante a negocia-ção, quando já tiver visto as ovelhas. E já que falamos nisso, é melhor pormo-nos a caminho, antes que comece a chover. Sirva-se, por favor.

Silkham assentiu e bebeu um longo trago da garrafa. Era uísque de primeira categoria! Não era nenhuma zurrapa. O lorde ruivo e de nobre ascendência considerou aquele detalhe como mais uma virtude do seu convidado. Acenou a Gerald com a cabeça, pegou no chapéu, no chicote e emitiu um leve assobio. Como se o esperassem, depressa apareceram a voar na sua direção três vivaços cães-pastores pretos e brancos e castanhos e brancos, vindos de um canto do estábulo, onde se abrigavam do tempo instável. Era evidente que estavam ansiosos por se reunirem com os cavaleiros.

– O senhor não está habituado à chuva? – perguntou Lorde Terence, ao montar o cavalo. Um dos criados tinha-lhe levado um robusto hunter, enquanto saudava Gerald Warden. O cavalo deste pa-recia ainda fresco, se bem que naquela manhã já percorrera a distância entre Cardiff e Powys. Tratava-se certamente de um cavalo alugado, mas vinha sem dúvida de um dos melhores estábulos da cidade. Era mais um dos indícios que justificavam o título de barão da lã que lhe atribuíam. Warden não era, com toda a certeza, um aristocrata, mas parecia ser muito rico.

Warden sorriu e subiu para a sela do elegante cavalo zaino. – Muito pelo contrário, Silkham, muito pelo contrário…Lorde Terence engoliu em seco, mas decidiu não levar a mal a falta

de respeito com que o seu convidado o tratara. Pelos vistos, lá na terra de onde Warden vinha, o milord e milady eram termos desconhecidos.

– Temos aproximadamente trezentos dias de chuva por ano. Para ser mais preciso, o clima nas Planícies de Canterbury é idêntico ao daqui, pelo menos no verão. Os invernos são mais suaves, mas é o suficiente para que a lã seja da melhor qualidade. E os pastos são tão bons que engordam as ovelhas! Temos por lá pastos em abundância, Silkham. Hectares e hectares de pastos! As planícies são um paraíso para os criadores de gado.

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Naquela altura do ano, Gales também não se podia queixar da falta de pastos. Um verde exuberante cobria a colina como se fosse um tapete de veludo e estendia-se até às montanhas mais longínquas. Os cavalos-selvagens também desfrutavam deles e não precisavam de descer aos vales para pastar nos campos dos Silkham. As ovelhas, que ainda não tinham sido tosquiadas, estavam redondas como bolas. Os homens observaram com regozijo um rebanho que descera das proxi-midades da casa senhorial para terem as suas crias.

– Que animais maravilhosos! – elogiou-os Gerald Warden. – Mais robustos do que os romneys ou cheviots. Deve tirar deles lã com uma qualidade, no mínimo, boa.

Silkham acenou afirmativamente. – São ovelhas welsh mountain. No inverno, correm livres pelas mon-

tanhas. São muito resistentes. E onde se encontra o seu paraíso para ruminantes? Queira desculpar-me, mas Lorde Bayliff só me falou do «ultramar».

Lorde Bayliff era o presidente da Associação de Criadores de Ovelhas e pusera Warden em contacto com Silkham. Segundo dizia a carta, o barão da lã pretendia adquirir algumas ovelhas com pedigree para melhorar os seus rebanhos no ultramar.

Warden deu uma gargalhada. – E esse é um conceito muito vasto! Deixe-me adivinhar… o se-

nhor provavelmente já imaginou as suas ovelhas em algum lugar do Oeste selvagem, trespassadas pelas flechas dos índios. Não se preocu-pe quanto a isso. Os animais estarão seguros em solo pertencente ao Império Britânico. A minha propriedade situa-se na Nova Zelândia, nas Planícies de Canterbury, na ilha do Sul. São pastos e mais pastos, até onde a vista alcança! A paisagem é muito parecida com esta, mas mais extensa, Silkham, muito mais extensa, sem qualquer termo de comparação.

– Bem, esta também não é propriamente uma quinta pequena – protestou Lorde Silkham, indignado. Quem julgava aquele tipo que era? Referindo-se à Quinta Silkham como se fosse uma simples quin-tarola! – Tenho cerca de trezentos hectares de pasto.

Gerald Warden sorriu ironicamente. – Kiward Station tem cerca de quatrocentos – respondeu com su-

perioridade. – E, nem tudo está desbravado, ainda há muito trabalho

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para fazer. Mas é uma propriedade bonita. E se além disso vier a ter um rebanho de crias das melhores ovelhas, um dia será certamen-te uma mina de ouro. Ovelhas romney e cheviot cruzadas com as welsh mountains: é aí que está o futuro, olhe o que lhe digo.

Silkham não o contradisse. Era um dos melhores criadores de gado do País de Gales, senão mesmo de toda a Grã-Bretanha. Não havia dúvida de que os animais por si criados melhorariam qualquer tipo de rebanho. Entretanto, começou a ver os primeiros exemplares que destinara a Warden. Eram ovelhas jovens que ainda não tinham parido. E tinha dois carneiros novos, da melhor casta.

Lorde Terence assobiou aos cães, que se apressaram a reunir as ovelhas dispersas pelo enorme pasto. Para o fazerem, começaram a contornar os animais a uma certa distância, obrigando-os a colocar-se inadvertidamente numa linha virada para os homens. Não permitiram em momento algum que o rebanho desatasse a correr. Quando as ovelhas começaram a caminhar na direção desejada, os cães sentaram--se no solo e ficaram atentos, não fosse algum dos animais separar-se do grupo. Quando isso sucedia, um dos cães intervinha de imediato.

Gerald Warden admirava fascinado a autonomia que os cães de-monstravam.

– Incrível. De que raça são? Cães-pastores?Silkham acenou afirmativamente com a cabeça.– São border collies. A condução do gado já lhes está no sangue

e precisam apenas de um pouco de treino. E estes até não são par-ticularmente dotados. Havia de ver a Cleo: é uma cadela sagaz, que ganha concursos uns atrás dos outros. – Silkham começou a procurar a cadela. – Onde se terá metido? Queria tê-la trazido connosco. De qualquer maneira, prometi à minha mulher. Para que Gwyneira não voltasse a… Oh, não! – O lorde olhara em redor, à procura da cadela, mas nesse momento os seus olhos fixaram-se em alguém que monta-va um cavalo e que, vindo da casa principal, se aproximava a grande velocidade. Não se davam ao trabalho de utilizar os caminhos entre os rebanhos nem de abrir os portões para passarem. Em vez disso, o forte cavalo zaino saltava sem vacilar por cima das vedações e muros que cercavam os rebanhos. Quando estavam mais próximos, Warden apercebeu-se também de uma pequena mancha negra que se esfor-çava por acompanhar a velocidade do cavalo e do cavaleiro. O cão

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saltava alguns obstáculos, subia os muros como se fossem escadas ou passava por baixo da última fileira das cercas. Fosse como fosse, o ani-mal diligente, sempre a abanar o rabo, chegou junto do rebanho antes do cavaleiro e começou de imediato a conduzi-lo. As ovelhas qua-se pareciam capazes de lhe ler os pensamentos. Respondendo a uma única ordem da cadela, os animais reuniram-se num grupo compacto e pararam em frente dos homens, sem se exaltarem por um instante que fosse durante todo o processo. Tranquilas, as ovelhas voltaram a afundar as cabeças no pasto, guardadas pelos três cães-pastores de Silkham. A pequena recém-chegada aproximou-se do lorde à procura de aprovação e o seu amistoso rosto de collie parecia resplandecer. Ain-da assim, a cadela não olhava diretamente para os homens. Ao invés, o seu olhar dirigia-se ao cavaleiro do zaino que abrandou o passo e parou mesmo atrás dos homens.

– Bom dia, pai! – exclamou uma voz cristalina. – Trouxe-lhe a Cleo. Pensei que talvez precisasse dela.

Gerald Warden dirigiu o olhar para o jovem cavaleiro com o pro-pósito de o elogiar pela bela montada. Mas quando avistou a sela de senhora deteve-se, apercebendo-se ainda de um vestido de montar cinzento-escuro e já puído, assim como do abundante cabelo ruivo, descuidadamente preso na nuca. Era possível que a rapariga tivesse apanhado o cabelo antes de montar, como as senhoras costumavam fazer, mas não se devia ter esforçado muito. Numa cavalgada mais impetuosa, todos os cabelos ter-se-iam com certeza soltado.

Lorde Silkham observava-a pouco entusiasmado. Não obstante, lembrou-se de apresentar a filha.

– Senhor Warden, a minha filha Gwyneira. E a sua cadela Cleopatra, o pretexto desta aparição. O que fazes aqui, Gwyneira? Se bem me lembro, a tua mãe disse-me que esta tarde tinhas uma aula de fran-cês…

Não era muito habitual Lorde Terence saber de cor os horários da filha, mas Madame Fabian, a professora francesa que dava aulas particulares a Gwyneira, tinha uma forte alergia a cães. Por isso, Lady Silkham certificava-se de o avisar para que afastasse Cleo de Gwyneira antes do início das aulas, o que não era muito fácil. A cadela apegara--se à dona e eram como unha e carne; só as conseguiam separar se tivesse alguma tarefa demasiado importante para cumprir.

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Gwyneira encolheu os ombros de um modo encantador. Montava de forma impecável, direita mas confortável, e totalmente segura em cima da pequena e forte égua, segurando as rédeas com serenidade.

– Sim, a aula estava planeada. Mas a madame teve um ataque de asma muito forte. Tivemos de a levar para a cama, porque não conse-guia proferir uma única palavra. Não sei o que a terá deixado assim!A mãe preocupou-se muito para que nenhum animal se aproximasse dela…

Gwyneira tentava permanecer impassível e fingir preocupação, mas o seu rosto expressava um certo ar de triunfo. Warden teve então tempo para observar a rapariga mais de perto: a sua pele era alva, com uma certa tendência para sardas, o rosto era em forma de coração e teria um efeito ingenuamente doce se os seus lábios não fossem tão carnudos e amplos e não dessem às suas feições uma certa sensualida-de. No rosto, destacavam-se sobretudo os olhos, grandes e invulgar-mente azuis. Azul-índigo, lembrou-se Gerald Warden. Era assim que chamavam àquele tom de azul nas aulas de pintura em que o seu filho desperdiçava a maior parte do tempo.

– E antes de a madame entrar, a Cleo não esteve por acaso na sala, já depois de a criada lá ter ido limpar os pelos? – perguntou Silkham com severidade.

– Ah, não me parece – respondeu Gwyneira, com um sorriso doce que deu aos seus olhos um tom mais cálido. – Antes da aula, eu mesma a levei ao estábulo e ordenei-lhe que ficasse ali à sua espera, pai. E quando regressei, ainda estava sentada à frente da cocheira da Igraine. Terá pressentido alguma coisa? Os cães às vezes são muito sensíveis…

Lorde Silkham lembrou-se do vestido de veludo azul-escuro que Gwyneira vestira ao almoço. Se tinha levado Cleo aos estábulos com aquela roupa e se ajoelhara junto da cadela para lhe dar tais indicações, ter-se-iam decerto prendido tantos pelos ao vestido que deixariam a madame fora de circulação durante três semanas.

– Falamos disto mais tarde – disse Silkham, com a esperança de que a mulher assumisse então o papel de juiz e carrasco. Naquele mo-mento, e à frente de um convidado, não queria continuar a repreender Gwyneira. – O que acha das ovelhas, Warden? Correspondem ao que havia imaginado?

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Gerald Warden sabia que, pelo menos para manter as aparências, devia agora dirigir-se de um animal para o outro, inspecionando a qualidade da lã, a sua constituição e o estado da ração. Na verdade, não tinha a menor dúvida de que as ovelhas eram da melhor qualida-de. Eram grandes, saudáveis, estavam bem alimentadas e a lã voltava a crescer de forma regular depois da tosquia. Um homem como Lorde Silkham não se permitia em circunstância alguma, quanto mais não fosse por uma questão de honra, enganar um comprador do ultramar. Mais depressa lhe ofereceria os melhores animais para garantir a sua fama de criador de gado também na Nova Zelândia. Por isso, o olhar de Gerald pousou-se antes de mais nada na insó-lita filha de Silkham. Parecia-lhe muito mais interessante do que os animais.

Gwyneira descera da sela sem precisar de ajuda. Uma amazona tão airosa como ela podia decerto montar sem qualquer apoio. Na verdade, Gerald estava surpreendido por ver que ela escolhera a sela lateral; provavelmente preferia a de cavalheiro. Mas talvez essa fosse a gota de água que faria transbordar o copo. Lorde Silkham não parecia muito contente por ver a rapariga, e o seu comportamento para com a preceptora francesa não era próprio de uma donzela.

Gerald, pelo contrário, gostou da rapariga. Admirou com satisfa-ção a sua figura delgada, mas suficientemente arredondada nos sítios adequados. Não restavam dúvidas de que, embora fosse bastante jo-vem, tinha pouco mais de dezassete anos, já estava completamente desenvolvida. Gwyn também não parecia ser de todo infantil: as se-nhoras adultas não mostravam tanto interesse por cavalos ou cães. De qualquer maneira, o modo como Gwyneira tratava os animais es-tava muito distante do comportamento frívolo das senhoras. Naque-le momento afastava a sorrir o cavalo, que tentava apoiar a enorme cabeça no ombro dela. A égua era claramente mais pequena do que o hunter, mas era bastante robusta e elegante. O pescoço arqueado e o dorso curto faziam-no lembrar dos cavalos espanhóis e napoli-tanos que lhe tinham oferecido, entre outros, nas suas viagens pelo continente. Não obstante, achara-os demasiado grandes para Kiward Station, e talvez até demasiado sensíveis. Não podia exigir-lhe que percorressem o Trilho Bridle, que ia desde o cais até Christchurch. Mas aquele cavalo…

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– Tem uma montada muito bonita, milady – observou Gerald Warden. – Não pude deixar de admirar o seu estilo de montar. Tam-bém participam em provas desportivas?

Gwyneira acenou afirmativamente. Ao falar da égua, os seus olhos brilharam com a mesma intensidade como quando falara da cadela.

– É a Igraine – disse com naturalidade. – É um cob, uma raça típica da região, muito segura nos pastos e tão boa para puxar carroças como para andar na estrada. Crescem em liberdade nas montanhas. – Gwyneira apontou para as montanhas acidentadas que se erguiam ao fundo dos pas-tos; era uma região áspera que exigia, sem dúvida, uma natureza robusta.

– Mas não é uma montada muito típica para as senhoras, pois não? – perguntou Gerald, a rir. Já vira outras ladies a cavalgar em Inglaterra e a maior parte preferia puros-sangues mais leves.

– Depende se a senhora sabe montar ou não – respondeu Gwyneira. – Eu não me posso queixar… Cleo! Sai do caminho de uma vez por todas! – disse para a pequena cadela depois de quase tropeçar nela. – Estiveste muito bem, as ovelhas estão reunidas! Mas a verdade é que não foi uma tarefa muito difícil. – Voltou-se para Silkham: – Pai, a Cleo pode reunir os carneiros? Está a ficar entediada.

Mas Lorde Silkham queria mostrar primeiro as ovelhas para repro-dução. E Gerald também se esforçou para olhar para os animais com mais atenção. Entretanto, Gwyneira deixou a égua pastar um pouco e acariciou a cadela. O pai acabou por aceitar a sua sugestão.

– Muito bem, Gwyneira, mostra lá a cadela ao senhor Warden. Estás ansiosa por conversar. Vamos, Warden, temos de cavalgar um pouco. Os carneiros jovens estão na colina.

Como Gerald já presumia, Silkham não fez qualquer movimento para ajudar a filha a montar. Gwyneira dominava a difícil tarefa de colocar primeiro o pé esquerdo no estribo e de seguida subir com ele-gância a perna direita para cima do punho de couro da sela, com tanta graça e naturalidade que a égua permaneceu imóvel como uma está-tua. Depois de se acomodarem, Gerald apreciou os seus movimentos nobres e elegantes. Gostava da rapariga e da égua em igual propor-ção, assim como também o fascinava a cadelinha tricolor. Durante o percurso até ao local onde se encontravam os carneiros, ficou a saber que a própria Gwyneira tinha treinado a cadela e que já ganhara várias competições de cães-pastores.

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– Os pastores já não me suportam – explicou Gwyneira com um sorriso ingénuo. – E o comité de senhoras já perguntou se seria de-cente uma rapariga apresentar um cão. Mas o que há de indecente nisso? Limito-me a dar umas voltinhas com ela e de vez em quando dou uma ordem.

Na verdade, bastavam poucos gestos com a mão e uma ordem sussurrada para que a cadela bem amestrada do lorde se dedicasse a cumprir a tarefa. Inicialmente, Gerald Warden não viu qualquer ovelha no grande pasto, cuja cerca Gwyneira abrira a partir da sela com faci-lidade, em vez de se limitar a saltar por cima dela. Também nesse caso o cavalo mais pequeno demonstrou a sua eficácia: Silkham e Warden teriam sentido dificuldade para se baixarem no alto das suas montadas.

Cleo e os outros cães precisaram de poucos minutos para reunir o rebanho, ainda que os jovens carneiros fossem um pouco mais obsti-nados do que as tranquilas ovelhas. Alguns tresmalhavam-se enquanto eram dirigidos ou enfrentavam os cães, mas os pastores não se deixa-vam perturbar. Depois de um breve chamamento, Cleo aproximou-se da dona a abanar alegremente a cauda. Os carneiros estavam a curta distância. Silkham assinalou a Gwyneira dois deles e Cleo separou-os do rebanho com uma velocidade vertiginosa.

– Tinha destinado estes dois para si – explicou Lorde Silkham ao seu convidado. – Os melhores animais com pedigree, oriundos de uma casta de primeira categoria. Depois posso mostrar-lhe também os progenitores. Noutras circunstâncias, ficariam comigo e obteriam certamente um bom número de prémios. Mas assim… penso que o meu nome será mencionado nas colónias como um bom criador de gado. E para mim isso é mais importante do que a próxima condeco-ração em Cardiff.

Gerald Warden acenou pensativamente com a cabeça. – Pode apostar que sim. São animais belíssimos! Mal posso esperar

por ver os seus descendentes depois de os cruzar com os meus cheviots! Se bem que também devíamos falar dos cães! Não que na Nova Ze-lândia não tenhamos cães-pastores, mas um animal como essa cadela e um macho que seja adequado para ela valem o seu peso em ouro.

Gwyneira, que acariciava a cadela em sinal de reconhecimento, ouviu aquele comentário. Virou-se para o neozelandês e disse-lhe, zangada:

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– Se quer comprar a minha cadela, é bom que fale comigo, senhor Warden! Mas digo-lhe já: nem todo o seu dinheiro seria suficiente para comprar Cleo. Sem mim, ela não vai a lado algum. E o senhor também não lhe poderia dar ordens, porque ela não obedece a qualquer pessoa.

Lorde Silkham abanou a cabeça, em sinal de reprovação. – Gwyneira, mas que modos são esses? – perguntou severamente.

– Claro que podemos vender um par de cães ao senhor Warden. Não precisa de ser a tua favorita – disse, olhando para Warden. – De qual-quer maneira, já ia aconselhar-lhe um par de crias da última ninhada, senhor Warden. Cleo não é o único cão com que ganhamos concursos.

«Mas é o melhor», pensou Gerald. E só o melhor seria suficien-temente bom para Kiward Station. Nos estábulos e em casa. Se pelo menos as raparigas de sangue azul fossem tão fáceis de adquirir como os carneiros! Quando os três cavalgavam de regresso a casa, já Warden começara a urdir os seus planos.

Gwyneira vestiu-se para o jantar com todo o cuidado. Depois da questão com a madame, não queria voltar a chamar a atenção. A mãe dera-lhe uma bela reprimenda. Já conhecia de cor e salteado os seus sermões: se continuasse a comportar-se de forma tão selvagem e pas-sasse mais tempo nos estábulos e a cavalo do que nas aulas, jamais encontraria um pretendente. Era inegável que os conhecimentos de francês de Gwyneira deixavam bastante a desejar. E o mesmo se apli-cava aos seus dotes de dona de casa. Os trabalhos manuais da jovem nunca davam a sensação de servirem para decorar o lar: na verdade, o pároco até deixava que eles desaparecessem misteriosamente das quermesses da igreja, em vez de os pôr à venda. Também não tinha muito jeito para planear grandes banquetes ou dar respostas concretas às perguntas da cozinheira: salmão ou perca? Gwyneira limitava-se a comer o que lhe punham na mesa; não obstante, sabia que garfo e co-lher usar com que prato, embora todos esses detalhes lhe parecessem uma tolice. Para quê demorar horas a compor os pratos se em poucos minutos se comia todo o seu conteúdo? E depois havia a questão dos arranjos florais! Havia alguns meses que a decoração do salão e da sala de jantar com flores constava das obrigações de Gwyneira. Infe-lizmente, a sua sensibilidade não conseguia satisfazer as expetativas, como quando, por exemplo, colheu flores silvestres e as colocou na

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jarra ao seu gosto. Achava que estava bonito, mas a mãe ia desmaian-do perante tal visão. E quando descobriu uma aranha que se esconde-ra por entre as verduras, pior ainda. Desde esse dia, Gwyneira colhia as flores do jardim de rosas da Mansão Silkham sob a vigilância do jar-dineiro e compunha-as com a ajuda da madame. No entanto, a jovem conseguira evitar também que a fastidiosa tarefa se realizasse naquele dia. Os Silkham tinham não apenas Gerald Warden como convidado, mas também a irmã mais velha de Gwyneira, Diana, e o seu marido.

Diana adorava flores e desde o início do casamento que se en-carregava quase exclusivamente de cultivar os jardins de rosas mais excêntricos e mais bem cuidados de toda a Inglaterra. Naquele dia, levara à mãe uma seleção das flores mais bonitas e apressara-se a dis-tribuí-las habilmente por jarras e cestos. Gwyneira suspirou. A ela, os arranjos jamais lhe sairiam tão bem. Se na realidade os homens se guiavam por aquele tipo de dotes para escolher esposa, então morreria solteira. Mesmo assim, tinha a sensação de que os arranjos florais pas-savam totalmente despercebidos ao pai e a Jeffrey, o marido de Diana. Os bordados de Gwyneira também ainda não tinham alegrado a vista a nenhum varão; excetuando talvez a do pouco entusiasmado pároco? Por que motivo não podia impressionar os jovens cavalheiros com as suas verdadeiras virtudes? Na caça, por exemplo, Gwyneira cau-sava sensação: era capaz de sair em perseguição de uma raposa mais depressa e com melhores resultados do que os restantes caçadores. Porém, isso atraía tão pouco os homens como a sua habilidade com os cães-pastores. Apesar de os cavalheiros expressarem o seu reco-nhecimento, nos seus olhos havia sempre uma centelha de reprovação e, nos bailes noturnos, dançavam sempre com outras jovens. Mas isso também podia estar relacionado com o dote exíguo de Gwyneira. A menina não tinha grandes ilusões: sendo a terceira filha, não podia esperar grande coisa. Principalmente porque o irmão vivia às custas do pai. John Henry «estudava» em Londres. Gwyneira questionava- -se apenas em que curso. Enquanto vivera na Mansão Silkham, não aprendera mais das ciências do que a irmã mais nova e as faturas que mandava de Londres eram demasiado altas para se tratar apenas de livros. O pai pagava sempre sem reclamar e quando muito murmurava qualquer coisa sobre «devia ganhar juízo», mas Gwyneira sabia que muito desse dinheiro saía do seu dote.

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Não obstante estas contrariedades, não se preocupava demasiado com o futuro. Sentia-se bem e a sua enérgica mãe havia de lhe encon-trar um marido. As pessoas que os pais convidavam para visitarem a casa da família ao serão eram quase todos casais conhecidos que, por mera casualidade, tinham filhos da idade dela. Por vezes, faziam--se acompanhar dos rapazes, mais frequentemente, vinham apenas os pais e, mais frequentemente ainda, apenas as mães apareciam para to-mar chá. Gwyneira detestava essas ocasiões em particular, pois era ne-las que se demonstravam todas as habilidades que uma menina devia ter para dirigir uma casa da alta sociedade. Era esperado que Gwyneira soubesse servir o chá com elegância; infelizmente, fora numa dessas ocasiões que queimara Lady Bronsworth. Ficou pasmada quando viu que a mãe, durante tão árdua e solene tarefa, mentiu dizendo que a própria Gwyneira confecionara o bolo que acompanhava o chá.

Depois do chá, as senhoras passavam para os bordados, e Lady Silkham, por precaução, passava discretamente o seu bastidor a Gwyneira, porque a obra em petit-point já estava quase acabada, en-quanto se conversava sobre o último livro do senhor Bulwer-Lytton. Para Gwyneira, aquele tipo de literatura era um verdadeiro sonífero: ainda não tinha conseguido ler até ao fim um único romance que fosse. No entanto, conhecia algumas palavras como «edificante» e expressões como «uma expressividade sublime», que tentava sempre incluir nas conversas. Naturalmente, as senhoras falavam também das irmãs de Gwyneira e dos seus maravilhosos maridos, enquanto ex-pressavam a esperança urgente de que também ela pudesse ter a sorte de encontrar um partido igualmente bom. A menina não sabia se era mesmo isso que desejava. Achava os cunhados aborrecidos e o mari-do de Diana era tão velho que quase podia ser seu pai. Corria o rumor de que talvez fosse esse o motivo pelo qual o casal ainda não tinha sido abençoado com filhos; esse assunto deixava Gwyneira ainda um pouco confusa. A verdade é que as ovelhas mais velhas também não davam crias… Riu-se para com os seus botões quando comparou o gélido marido de Diana, Jeffrey, ao carneiro Cesar, que o pai acabara de afastar, não obstante a sua descendência anterior.

E depois havia Julius, o marido de Larissa! É verdade que vinha de uma das melhores famílias da nobreza, mas era extremamente pálido e exangue. Gwyneira recordava-se que, aquando da primeira

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apresentação, o pai murmurara qualquer coisa sobre «consanguinida-de». Pelo menos, Julius e Larissa já tinham um filho… que parecia um fantasma. Não, nenhum deles era como o homem que Gwyneira sonhava para si. Haveria um melhor leque de ofertas no ultramar? Aquele Gerald Warden parecia bastante vivaço, embora fosse dema-siado velho para ela. Mas pelo menos entendia de cavalos e não se oferecera para a ajudar a montar. Será que na Nova Zelândia as mu-lheres podiam montar selas masculinas? Por vezes, Gwyneira dava por si a sonhar com os romances de cordel que as criadas liam. Como seria cavalgar lado a lado com um daqueles cowboys americanos? Vê-lo, com o coração palpitante, num duelo com pistolas! E as mulheres dos pioneiros do Oeste também pegavam em armas! Gwyneira teria preferido um forte rodeado por índios aos jardins de rosas de Diana.

Naquele momento, vestia pela primeira vez um corpete que a apertava com mais força do que as roupas de montar. Odiava aquelas torturas, mas quando se olhou ao espelho ficou satisfeita com a sua figura tão esbelta. Nenhuma das irmãs era tão graciosa. E o vestido de seda azul-céu ficava-lhe muito bem. Acentuava o brilho dos seus olhos e a cabeleira ruiva. Era uma pena ter de apanhar o cabelo. E que cansativo para a criada, já ao seu lado, munida de pente e ganchos! O cabelo de Gwyneira era ondulado e quando o ar estava húmido, o que acontecia quase todos os dias no País de Gales, ficava encrespado e muito difícil de pentear. Era frequente Gwyneira permanecer sentada, imóvel, durante horas até que a criada conseguisse domá-lo. Aqueles momentos eram mais difíceis do que quaisquer outros.

Gwyneira sentou-se na cadeira e suspirou, preparando-se para meia hora de puro tédio. Porém, os seus olhos pousaram-se no discre-to boletim da igreja que estava em cima da cómoda, junto aos pentes e outros instrumentos. Na mão dos peles-vermelhas, anunciava o título sensacionalista.

– Pensei que milady quisesse entreter-se um pouco – disse a jovem criada, sorrindo a Gwyneira através do espelho. – Mas o artigo é ater-rorizador! Depois de o lermos, eu e Sophie não conseguimos dormir toda a noite!

Gwyneira já estava com o boletim na mão. Ela não se assustava com tão pouco.

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Entretanto, Gerald Warden estava no salão, entediado. Os cava-lheiros tinham ido beber um aperitivo antes do jantar. Lorde Silkham acabara de lhe apresentar o genro, Jeffrey Riddleworth. Explicou-lhe que Lorde Riddleworth servira numa colónia da Coroa, na Índia, e que regressara a Inglaterra havia poucos anos, já possuidor de impor-tantes condecorações. Diana Silkham era a sua segunda esposa, uma vez que a primeira falecera na Índia. Warden não se atreveu a pergun-tar de quê, mas era quase certo de que a senhora morrera de malária ou da mordedura de alguma serpente. Sempre fora uma senhora mais corajosa e ativa do que o marido. De qualquer maneira, Riddleworth pa-recia não ter abandonado os alojamentos do regimento durante toda a sua estada na colónia. Do país só sabia dizer que fora dos redutos ingleses não havia mais do que barulho e sujidade. Considerava os nativos sem exceção um bando de maltrapilhos, sobretudo os mara-jás, e, de qualquer maneira, fora das cidades todos os lugares estavam infestados de tigres e serpentes.

– Em certa ocasião, tivemos uma serpente no nosso alojamento – contou Riddleworth, com nojo, enquanto se contorcia, remexendo no bigode bem cuidado. – Como é evidente, matei a besta de imediato com um tiro, embora o criado me tenha dito que não era venenosa. Podemos lá fiar-nos naquela gente? Como é no seu país, Warden? Os seus criados têm mão sobre esses bichos repugnantes?

Divertido, Gerald pensou que os disparos de Riddleworth deviam seguramente ter provocado mais estragos do que algum tigre alguma vez causaria. Não acreditava que o pequeno e roliço coronel fosse capaz de acertar na cabeça de uma serpente com um tiro só. De qual-quer maneira, era evidente que o homem escolhera o destacamento no país errado.

– Por vezes é necessário que os criados… hmm… se familiarizem com os costumes – respondeu Gerald. – Muitas vezes empregamos nativos para quem o estilo de vida inglês é completamente desconhe-cido. Mas não temos problemas com serpentes e tigres. Não há, em toda a Nova Zelândia, uma única serpente. E no início também não existiam muitos mamíferos. Foram os missionários e os colonos que introduziram nas ilhas o gado doméstico, os cães e os cavalos.

– Não há animais selvagens? – perguntou Riddleworth, franzin-do o sobrolho. – Ora, Warden, não vai querer convencer-nos de

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que antes da colonização todo o país estava como no quarto dia da Criação.

– Há aves – informou Gerald Warden. – Grandes, pequenas, gor-das, magras, que voam e que correm… e, sim, uns quantos morcegos. Além destes, também existem insetos, claro, mas não são perigosos. Na Nova Zelândia, se quiser que o matem, mylord, terá de se esforçar bastante. A não ser que recorra a ladrões de duas patas munidos de armas de fogo.

– Provavelmente também os há com machados, punhais e sabres, não? – perguntou Riddleworth, a rir. – Enfim, para mim é um mistério como alguém consegue desterrar-se para um desses lugares virgens de sua livre e espontânea vontade! Eu fiquei bastante satisfeito por ter podido abandonar as colónias.

– Os nossos maoris costumam ser pacíficos – respondeu Warden com tranquilidade. – São um povo estranho, fatalista e fácil de satis-fazer. Cantam, dançam, esculpem madeira e não conhecem qualquer armamento digno de registo. Não, mylord, estou convencido de que na Nova Zelândia o senhor mais depressa se aborrecia do que se assustava.

Riddleworth estava prestes a esclarecer, exaltado, que durante toda a sua estada na Índia não tivera, naturalmente, medo algum. No en-tanto, a chegada de Gwyneira interrompeu os cavalheiros. A jovem entrou no salão e percebeu, desconcertada, que nem a mãe nem a irmã estavam entre os presentes.

– Cheguei demasiado cedo? – perguntou Gwyneira, em vez de cumprimentar primeiro o cunhado, como seria adequado.

Este fez também uma expressão ofendida, ao passo que Gerald Warden não conseguia desviar os olhos da rapariga. Já antes lhe pa-recera bonita, mas agora, vestida a rigor, constatou que se tratava de uma autêntica beldade. A seda azul acentuava-lhe a pele clara e o ca-belo ruivo forte. O penteado sóbrio destacava o contorno nobre do seu rosto. Além de tudo isto, tinha aqueles lábios audazes e olhos azuis luminosos, de expressão desperta, quase provocadora! Gerald sentiu-se arrebatado.

Não obstante, aquela mulher não encaixava ali. Era incapaz de a imaginar ao lado de um homem como Jeffrey Riddleworth. Gwyneira parecia mais o tipo que pegava numa serpente e a enrolava ao pescoço ou que domava um tigre.

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– Não, não, minha filha, chegaste à hora certa – respondeu Lorde Terence, olhando para o relógio. – A tua mãe e a tua irmã é que estão atrasadas. É provável que tenham voltado a demorar-se demasiado no jardim…

– A menina não estava no jardim? – perguntou Gerald a Gwyneira. Na verdade, mais depressa a imaginaria a ela no jardim do que à mãe, que, na altura em que a conhecera, lhe parecera um pouco afetada e entediante.

Gwyneira encolheu os ombros. – Não nutro grande simpatia pelas rosas – reconheceu, embora

com este comentário tenha voltado a provocar uma certa indignação em Jeffrey e seguramente também no seu pai. – Se fossem legumes ou qualquer coisa que não tivesse espinhos…

Gerald Warden deu uma gargalhada, ignorando as expressões avi-nagradas de Silkham e Riddleworth. O barão da lã achava a jovem encantadora. Não era, obviamente, a primeira rapariga que avaliava de forma discreta durante aquela sua viagem à pátria, mas até ao mo-mento nenhuma das jovens ladies inglesas mostrara ser tão natural e espontânea.

– Ora, ora, milady! – brincou com ela. – Está realmente a confron-tar-me com os inconvenientes das rosas inglesas? Haverá por acaso espinhos por baixo da pele branca como a neve e dos cabelos arrui-vados?

Nas Ilhas Britânicas, a expressão «rosa inglesa» referia-se também às jovens de pele branca e cabelos ruivos e o seu significado era igual-mente conhecido na Nova Zelândia.

Gwyneira devia ter corado, mas a verdade é que se limitou a sorrir. – De qualquer maneira, o melhor será calçar umas luvas – respon-

deu, e viu pelo canto do olho que a mãe inspirou profundamente. Lady Silkham e a filha mais velha, Lady Riddleworth, tinham aca-

bado de chegar e ouviram as últimas palavras trocadas entre Warden e Gwyneira. Ao que parecia, nenhuma sabia o que era pior: se a inso-lência de Warden ou a resposta veloz de Gwyneira.

– Senhor Warden, esta é a minha filha Diana, Lady Riddleworth – apresentou Lady Silkham, decidida por fim a ignorar o assunto. Ainda que o homem não se comportasse de maneira adequada em socieda-de, prometera ao marido o pagamento de uma pequena fortuna por

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um rebanho de ovelhas e uma ninhada de cachorros. Esse dinheiro asseguraria o dote de Gwyneira e dava carta branca a Lady Silkham para a casar rapidamente, antes que se divulgasse entre os pretenden-tes que tinha a língua muito solta.

Diana cumprimentou com cerimónia o convidado vindo do ultra-mar. O lugar que lhe haviam destinado na mesa era precisamente ao lado de Gerald Warden, o que este lamentou de imediato. O jantar com os Riddleworth foi mais do que aborrecido. Enquanto Gerald respon-dia com monossílabos e fingia estar muito interessado nas explicações que Diana dava sobre o cultivo das rosas e os concursos de jardins, continuava a observar Gwyneira. À exceção de falar sem rodeios, os seus modos eram impecáveis. Sabia como comportar-se em socieda-de e conversar, apesar de ser notório que se aborrecia com Jeffrey, o seu companheiro de mesa. Respondeu com sinceridade às perguntas da irmã sobre os seus progressos na conversação em francês e o estado da estimada Madame Fabian. Esta última lamentava profundamente não poder assistir ao jantar por motivos de saúde. Caso contrário, teria o prazer de conversar com a sua antiga aluna Diana, a sua favorita.

À sobremesa, Lorde Riddleworth voltou à conversa anterior. Era evidente que o tema que se instalou entretanto na mesa também não lhe agradava. Diana e a mãe começaram a trocar informações sobre conhecidos que achavam «atraentes» e cujos filhos «bem-educados» podiam ser considerados bons partidos para Gwyneira.

– Ainda não nos contou como foi parar ao ultramar, senhor Warden. Foi ao serviço da Coroa? Talvez incluído no séquito do fa-buloso capitão Hobson?

Gerald Warden abanou a cabeça enquanto sorria e permitiu que o criado lhe voltasse a encher o copo de vinho. Até ao momento tinha sido cuidadoso com o excelente vinho. Sabia que a seguir se serviria uma quantidade suficiente do esplêndido uísque de Lorde Silkham e, se a oportunidade de pôr os seus planos em ação se proporcionasse, tinha de ter a cabeça no lugar. Por outro lado, um copo vazio atrairia as atenções. Assim, aceitou que o criado lhe enchesse o copo, mas passou a beber água.

– Fui para lá vinte anos antes do capitão Hobson – respondeu. – Numa altura em que a ilha era ainda mais selvagem do que agora. Sobretudo nas épocas da caça à baleia e das focas…

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– Mas o senhor é criador de ovelhas! – interveio Gwyneira com entusiasmo. Enfim, um tema interessante! – Andou realmente na caça à baleia?

Gerald deu uma gargalhada, um pouco irritado.– É verdade, milady, participei na captura de baleias… andei em-

barcado no Molly Malone durante três anos…Não queria alargar-se muito naquele assunto, mas agora era Lorde

Silkham quem franzia o sobrolho. – Ah, não me venha com histórias, Warden. O senhor sabe dema-

siado sobre ovelhas para que dê crédito às suas aventuras de bandidos! Isso não se aprende num baleeiro!

– Claro que não – respondeu Gerald, imperturbável. – A adulação deixou-o indiferente. – A verdade é que sou de Yorkshire Dales e o meu pai era pastor…

– Mas foi em busca de aventuras! – exclamou Gwyneira. Os seus olhos brilhavam de entusiasmo. – Deixou a noite e a neve, abandonou o seu país e…

Mais uma vez, Gerald Warden sentiu-se divertido e cativado em si-multâneo. Não havia dúvidas de que aquela era a mulher certa, mesmo que fosse um pouco mimada e a sua imaginação estivesse totalmente deturpada.

– Antes de mais, fui o décimo de onze filhos – respondeu. – E não queria passar a vida a cuidar das ovelhas dos outros. Com treze anos, o meu pai quis que começasse a trabalhar. Mas, em vez disso, inscrevi--me como aprendiz de marinheiro. Conheci meio mundo. As costas de África, da América, o Cabo… navegámos até ao mar do Norte. E por fim fomos à Nova Zelândia. Foi o país de que mais gostei. Não há tigres nem serpentes… – olhou de soslaio para Lorde Riddleworth. – Grande parte ainda inexplorada e com um clima parecido com o da minha terra. Ao fim de um certo tempo, uma pessoa procura sempre as suas raízes.

– E passou a caçar baleias e focas? – perguntou a jovem, mais uma vez incrédula. – Não começou logo com as ovelhas?

– As ovelhas não caem do céu, menina – respondeu Warden, a rir. – Como hoje mesmo comprovei. Para poder comprar as ovelhas do seu pai é preciso matar mais do que uma baleia! E não obstante a terra ser barata, os chefes maoris também não no-la ofereciam…

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– Os maoris são os nativos? – perguntou Gwyneira, curiosa. Gerald Warden acenou afirmativamente com a cabeça.– O nome significa «caçador de moa». As moas eram uma aves

enormes, mas, pelo visto, os caçadores foram demasiado diligentes. Tanto, que a espécie está extinta. Já agora, a nós, imigrantes, chamam--nos kiwis. O kiwi também é uma ave. É um animal curioso, atrevido e muito vivaz. O kiwi não passa despercebido. Na Nova Zelândia, está por toda a parte. Mas não me pergunte quem teve a ideia de lhes chamar kiwis.

Alguns dos comensais começaram a rir, com destaque para Lorde Silkham e Gwyneira. Lady Silkham e os Riddleworth estavam mais indignados por se sentarem à mesa com um antigo pastor e baleeiro, ainda que se tivesse convertido, com o tempo, num barão da lã.

Lady Silkham não demorou muito a levantar-se da mesa e a re-colher à sala com as filhas; Gwyneira apartou-se assim, contrariada, do grupo de cavalheiros. A conversa tinha por fim aflorado um tema bem mais interessante do que a monótona sociedade e as rosas de Diana, incrivelmente aborrecidas. Desejava agora ir para o seu quarto, onde a esperava ainda metade de Na Mão dos peles-vermelhas. Os ín-dios tinham acabado de raptar a filha de um oficial da cavalaria. Mas Gwyneira ainda tinha duas chávenas de chá para beber, na companhia das suas parentes femininas. Suspirando, resignou-se ao seu destino.

Na sala dos cavalheiros, Lorde Terence ofereceu charutos. Também nessa ocasião, Gerald Warden deu provas do seu conheci-

mento ao escolher o melhor tipo de charuto. Lorde Riddleworth pegou num ao acaso. Depois disso, passaram uma entediante meia hora a dis-cutir as decisões que a rainha tomara em relação à agricultura britânica. Tanto Silkham como Riddleworth achavam lamentável que a rainha privilegiasse a industrialização e o comércio exterior em detrimento do fortalecimento da economia tradicional. Gerald Warden manifestou-se vagamente. Primeiro porque não possuía muitos conhecimentos sobre o assunto, e segundo porque este lhe era indiferente. O neozelandês voltou a animar-se quando Riddleworth olhou com tristeza para o ta-buleiro de xadrez, que estava preparado numa mesa de jogo.

– É uma pena que hoje não possamos retomar a nossa partida de xadrez, mas, como é evidente, não queremos aborrecer o nosso con-vidado – disse o lorde.

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Gerald Warden entendeu a mensagem subliminar. Riddleworth tentava dizer-lhe que, se ele fosse um cavalheiro de verdade, devia retirar-se para os seus aposentos naquele momento, sob um qualquer pretexto. Mas Gerald não era um cavalheiro. Já tinha representado esse papel durante demasiado tempo; estava na hora de, paulatinamente, falar do que queria.

– Em vez de xadrez, porque não nos aventuramos a um jogo de cartas? – sugeriu, com um sorriso ingénuo. – Com certeza que nos salões das colónias também se joga blackjack, não é verdade, Riddle-worth? Ou prefere outro jogo? Póquer?

Riddleworth olhou para ele horrorizado.– Por favor! Blackjack, póquer… isso joga-se nas tabernas das ci-

dades portuárias, mas não entre cavalheiros. – Bem, eu não me importava de jogar uma partida – disse Silkham.

Não parecia estar a pôr-se do lado de Warden por cortesia, mas sim porque, na verdade, olhava para a mesa de jogo com bastante vontade. – Quando cumpri o serviço militar, jogava frequentemente, mas aqui não se encontra nenhum círculo social no qual o assunto não seja ove-lhas e cavalos. Vamos lá, Jeffrey! Pode ser o primeiro a apostar! E não seja sovina. Sei que recebe um salário generoso. Vamos ver se consigo recuperar um pouco do dote de Diana!

O lorde falara sem rodeios. Durante o jantar bebera vinho genero-samente e não tardara em beber o primeiro uísque. Nesse momento, indicou com ansiedade os lugares para os outros homens se sentarem. Gerald ficou satisfeito, Riddleworth continuava com cara de enjoado. Contrariado, pegou nas cartas e baralhou-as sem grande habilidade.

Gerald pousou o copo. Tinha de se manter desperto. Reparou, com satisfação, que Lorde Silkham, já um pouco alterado, começava com uma aposta bastante alta. Gerald deixou-o ganhar de bom grado. Meia hora mais tarde, já uma pequena fortuna em notas e moedas repousava em frente de Lorde Terence e Jeffrey Riddleworth. Este último perdera entretanto um pouco da reticência, embora ainda não se mostrasse muito entusiasmado com o jogo. Silkham continuava a servir-se alegremente de uísque.

– Não gaste o dinheiro todo das minhas ovelhas! – avisou-o Silkham. – Acabou de perder dinheiro suficiente para mais uma ni-nhada de cães.

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Gerald Warden deu uma gargalhada.– Quem não arrisca, não petisca – respondeu, subindo de novo a

aposta. – Então, Riddleworth, continua?O coronel também não estava muito sóbrio, mas era desconfiado

por natureza. Gerald Warden sabia que mais tarde ou mais cedo tinha de se ver livre dele e se possível sem perder muito dinheiro. Quando Riddleworth apostou mais uma vez todo o dinheiro que havia ganho numa única jogada, Gerald bateu as cartas.

– Blackjack, meu amigo! – exclamou, quase num lamento, enquan-to pousava o segundo ás em cima da mesa. – Vamos ver se acaba esta minha onda de azar. Mais uma cartada! Vamos, Riddleworth, recupere o seu dinheiro e ganhe o dobro do que perdeu!

Riddleworth levantou-se, aborrecido.– Não, fico-me por aqui. Já devia ter parado há muito tempo. Já se

sabe que é assim, água vai, água vem. Não vou dar-lhe mais a ganhar. E o senhor também devia fazer o mesmo, meu sogro. Pelo menos assim tinha um pequeno ganho.

– Parece a minha mulher a falar – disse Silkham, com a voz já vacilante. – O que significa isso, um pequeno ganho? Ainda nem fui a jogo, e continuo a ter todo o meu dinheiro! A sorte está comigo! Aliás, hoje é o meu dia de sorte, não é verdade, Warden? Hoje estou realmente com sorte!

– Então desejo-lhe que continue a divertir-se – respondeu Riddle-worth, num tom azedo.

Quando saiu da sala, Gerald Warden respirou de alívio. Tinha o caminho livre.

– Então dobre os seus ganhos, Silkham! – exclamou Warden, in-centivando o lorde. – Quanto temos até agora em jogo? Quinze mil? Maldição, até agora, o senhor já me deitou a mão a dez mil libras! Se dobrar este valor, obtém sem dificuldade o preço das suas ovelhas!

– Mas se perder… fico sem nada – disse o lorde, pensativo. Gerald Warden encolheu os ombros. – É um risco. Contudo, podemos continuar com valores peque-

nos. Ouça, dou uma carta para si e uma para mim. O senhor vê que carta lhe calhou e eu mostro a minha… depois decide. Se não quiser apostar, não há problema. Mas eu também posso negar-me depois de ver a minha carta! – disse Warden com um sorriso.

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Silkham recebeu a carta um pouco inseguro. Aquela possibilidade não ia contra as regras do jogo? Um cavalheiro não devia socorrer-se de escapatórias nem ter medo de assumir o risco. Ainda assim, olhou a carta de soslaio.

Um dez! À exceção do ás, não podia ser melhor. Gerald, encarregado da banca, mostrou a sua carta. Uma dama.

Valia três pontos. Era um início pouco auspicioso. O neozelandês franziu o sobrolho e pareceu questionar-se.

– Ao que parece, a minha sorte continua a primar pela ausência – suspirou. – E o que me diz? Continuamos ou ficamos por aqui?

De súbito, Silkham mostrou-se muito ansioso por continuar a jogar.– Dê-me outra carta! – exclamou.Gerald Warden olhou para a sua dama com resignação. Pareceu

debater-se consigo próprio, mas deu mais uma carta.Oito de espadas. Dezoito pontos no total. Seria suficiente? Silkham

começou a transpirar. Mas se pedisse mais uma carta, corria o risco de ultrapassar. Estava na hora de fazer bluff. O lorde tentou manter o rosto inexpressivo.

– Fico por aqui – disse simplesmente. Gerald deu mais uma carta. Um oito. Até ao momento, tinha onze

pontos. O neozelandês voltou a pegar nas cartas. Silkham desejava com toda a sua força que lhe saísse um ás. Se

assim fosse, Gerald ultrapassaria o valor. Mas as suas probabilidades também não eram muito más. Só um oito ou um dez poderiam salvar o barão da lã.

Gerald deu uma carta: mais uma dama.Expirou profundamente. – Se agora pudesse ter o dom da adivinhação… – suspirou. – De

qualquer maneira, o senhor não deve ter menos de quinze, não imagino que assim seja. Vou arriscar!

Silkham estremeceu quando Gerald deu uma última carta. O risco de ultrapassar o valor era enorme. Mas saiu-lhe o quatro de copas.

– Dezanove – contou Gerald. – E fico por aqui. As cartas sobre a mesa, milord!

Silkham mostrou, resignado, a sua mão. Um ponto a menos. Es-tivera tão perto!

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– Foi por uma unha negra, milord, por uma unha negra! Isto pede uma desforra. Sei que é uma loucura, mas não podemos deixar as coi-sas assim. Mais uma partida!

Silkham abanou a cabeça.– Não tenho mais dinheiro. O que perdi não foram os meus

ganhos, mas todo o dinheiro que tinha para apostar. Se continuar a perder, estou metido num sério problema. Não se fala mais disso. Fico-me por aqui.

– Vamos, por favor, milord! – Gerald baixou as cartas. – Quanto maior é o risco, mais divertido se torna o jogo! E quanto à aposta… espere, vamos apostar as ovelhas! Sim, as ovelhas que me quer vender! Mesmo que corra mal, o senhor não perde nada. Pois se não tivesse vindo aqui comprar as ovelhas, o senhor não teria ganho o dinheiro. – Gerald Warden fez um sorriso triunfal e deixou que as cartas lhe des-lizassem agilmente pelas mãos.

Lorde Silkham esvaziou o copo e preparou-se para se levantar. Cambaleou um pouco, mas as palavras saíram nítidas dos seus lábios:

– Olhe que lhe podia acontecer a si, Warden! Vinte das melhores ovelhas de criação desta ilha por meia dúzia de truques de cartas? Não, não o permito. Já perdi demasiado. Talvez estes jogos sejam mui-to habituais entre vós, lá na terra dos selvagens, mas aqui mantemos a cabeça fria.

Gerald Warden pegou na garrafa de uísque e serviu-se de novo. – Tinha-o por um homem mais corajoso – lastimou-se. – Ou por

outra, mais empreendedor. Mas talvez isso seja típico da nossa gente, dos kiwis: na Nova Zelândia, só um homem que arrisca tem algum valor.

Lorde Silkham franziu o sobrolho. – Se há coisa que não se pode chamar aos Silkham é cobardes.

Sempre lutámos com toda a valentia, servimos a Coroa e… – Era evidente que o lorde tinha dificuldade em manter-se de pé enquan-to procurava pelas palavras acertadas. Deixou-se cair mais uma vez na poltrona. No entanto, ainda não estava propriamente embriagado. Ainda conseguia fazer frente àquele fura-vidas.

Gerald Warden riu-se. – Na Nova Zelândia também servimos a Coroa. A colónia trans-

formou-se num fator económico bastante importante. Já devolvemos amplamente a Inglaterra todo o investimento que a Coroa fez em nós.

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E nisso, milord, a rainha é mais corajosa do que o senhor. Faz o seu jogo e ganha! Vamos lá, Silkham! Não vai desistir agora! Um par de cartas boas e duplica o preço das ovelhas!

Com estas palavras, colocou na mesa duas cartas viradas para baixo, mesmo em frente de Silkham. Nem mesmo o lorde sabia por que moti-vo pegava nelas. O risco era demasiado, mas o benefício de igual modo tentador. Se ganhasse, o dote de Gwyneira não estaria apenas assegu-rado, como seria elevado o bastante para satisfazer as melhores famí-lias da região. Enquanto pegava lentamente nas cartas, imaginou a filha como baronesa… quem sabe talvez até como dama da corte da rainha.

Um dez. Era uma carta boa. Se pelo menos a outra fosse… o cora-ção de Silkham batia descompassado quando, depois do dez de ouros, levantou o dez de espadas… Vinte pontos. Imbatível.

Olhou para Gerald com uma expressão triunfante. Gerald Warden levantou a primeira carta do baralho. Ás de espa-

das. Silkham gemeu. Mas aquilo não queria dizer nada. A carta seguin-te podia ser um dois ou um três e nesse caso havia grandes hipóteses de Warden ultrapassar o valor.

– Ainda pode abandonar o jogo – disse Gerald.Silkham riu-se.– Oh, não, meu amigo, não foi assim que apostámos. Faça agora o

seu jogo! Um Silkham cumpre sempre a sua palavra!Gerald pegou noutra carta com parcimónia. De repente, Silkham desejou ter sido ele a baralhar as cartas. Por

outro lado, observara Gerald enquanto este o fazia e não dera por nada de errado. Acontecesse o que acontecesse, naquele momento não podia acusar Warden de o ter enganado.

Gerald Warden virou a sua carta.– Lamento, milord.Silkham olhou meio hipnotizado o dez de copas que repousava na

mesa à sua frente. O ás valia onze pontos, com o dez fazia vinte e um.– Então só me resta felicitá-lo – disse o lorde cerimoniosamente.

Ainda tinha uísque no copo e bebeu-o de um só trago. Quando Gerald se preparava para o servir de novo, colocou a mão por cima do copo.

– Já bebi de mais, obrigado. Está na hora de parar de beber e de jogar, antes que a minha filha fique sem dote e o meu filho sem nada – disse Silkham com voz velada. Tentou levantar-se mais uma vez.

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– Já imaginava que assim fosse – disse Gerald com voz calma, en-chendo o seu copo. – A menina é a mais nova, não é verdade?

Silkham assentiu com amargura.– É. E já casei duas filhas mais velhas. Faz ideia quanto dinheiro

isso custa? Este último casamento vai arruinar-me. Ainda mais agora, que perdi metade do meu capital.

O lorde queria ir-se embora, mas Gerald sacudiu a cabeça e levan-tou a garrafa de uísque. A tentação dourada caiu lentamente no copo de Silkham.

– Não, milord – disse Gerald –, não podemos deixar isto assim. Não era minha intenção arruiná-lo nem deixar a pequena Gwyneira sem dote. Arrisquemo-nos numa última partida. Aposto mais uma vez as ovelhas. Se o senhor ganhar, tudo fica como antes.

Silkham deu uma gargalhada sarcástica.– E eu, o que aposto? O resto dos meus rebanhos? Nem pense nisso!– E que tal… a mão da sua filha?Gerald Warden falou serena e tranquilamente, mas Silkham so-

bressaltou-se como se acabasse de levar uma bofetada.– Mas o senhor enlouqueceu! Não pode na realidade estar a pedir

a mão de Gwyneira! A menina tem idade para ser sua filha.– E é isso mesmo que desejo do fundo do coração. – Gerald ten-

tou imprimir tanta franqueza e calidez na voz e no olhar quanto lhe foi possível. – Como é óbvio, o meu pedido não é para mim, mas para o meu filho Lucas. Ele tem vinte e dois anos, é o meu único herdeiro, é bem-educado, tem boa aparência e é habilidoso. Imagino perfeita-mente a Gwyneira ao seu lado.

– Mas não imagino eu! – respondeu Silkham com brusquidão, tro-peçando e apoiando-se na poltrona. – Gwyneira pertence à alta no-breza. Poderá casar-se com um barão!

Gerald Warden deu uma gargalhada.– Quase sem dote? E o senhor não se iluda, que eu vi a menina.

Não é exatamente o tipo de pretendente por quem a mãe de um barão perderia a cabeça.

Lorde Silkham ardeu de fúria.– Gwyneira é uma beldade!– É verdade – tranquilizou-o Gerald. – E não tenho a menor dú-

vida de que é o centro das atenções de todas as caças às raposas. Mas

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será que se daria tão bem num palácio? A menina é indomável, milord. Casá-la vai custar-lhe o dobro do dinheiro.

– Não lhe admito! – protestou Silkham.– Eu é que não admito que se sacrifique – Gerald Warden pegou

nas cartas. – Vamos, desta vez baralha o senhor. Silkham pegou no copo. Os pensamentos corriam velozes na sua

cabeça. Tudo aquilo ia contra a moral e os bons costumes. Não podia apostar a filha num jogo de cartas. Aquele Warden tinha perdido o juízo. Por outro lado… um contrato daquela natureza não podia ser válido. As dívidas de jogo eram dívidas de honra, mas a sua filha não era uma aposta aceitável. Se Gwyneira dissesse que não, ninguém a podia obrigar a embarcar num navio rumo ao ultramar. E nem seria necessário chegar tão longe. Ia ganhar aquela partida. A sua sorte al-gum dia havia de mudar.

Silkham baralhou as cartas, não cuidadosamente como antes, mas com pressa, como se estivesse ansioso por virar as costas àquele jogo tão degradante.

Deu uma carta a Gerald quase com raiva. Agarrou o resto do baralho com as mãos trémulas.

O neozelandês espreitou para a carta sem mostrar emoção. Ás de copas.

– Isto é… – Silkham não foi capaz de dizer mais nada. Em vez disso, retirou a sua carta. Dez de espadas. Não estava mal. O lorde tentou tirar a segunda carta com tranquilidade, mas a mão tremia-lhe tanto que esta caiu na mesa em frente a Gerald antes que este pudesse pegar nela.

Naquele momento, Gerald Warden nem tentou tapá-la. Impassí-vel, colocou o valete de copas junto do ás.

– Blackjack – anunciou serenamente. – Vai cumprir a sua palavra, milord?