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#03 NOV > 2008

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#03NOV > 2008

A literatura do século XXI não permite mais textos

grandiloqüentes.

Já que está se falando tanto de reforma e novas

regras gramaticais, vamos acabar, por exemplo, com o

mais-que-perfeito? Vamos acabar com as narrativas

pseudo-neo-românticas, por favor? E que tal os diálogos

pessimamente escritos, que não convencem nem a quem

escreveu?

Sim, claro, sabemos que você mostrou um conto a

todos os seus amigos, sua namorada, seus pais, seu

cachorro e o periquito, e todo mundo disse que era bom.

Bem, lamentamos informar, mas Papai Noel e o coelhinho

da páscoa não existem.

Escreveu, não leu, o pau comeu. Este é uma das

nobres verdades da literatura de ficção científica. É o

preço que paga aquele que não leu (e não lê, e acha que

não precisa ler) o que tem sido escrito nos últimos

quarenta anos lá fora. É muito, alguém perguntará? Sim,

é muito, claro, mas tem que se começar por algum lugar,

certo?

O Fim dasGrandes

Narrativas

Ed

ito

ria

l

terra incognita #03

Pois nem só de Asimov, Bradbury e Clarke vive o

homem.

Esta edição vem para demonstrar que é possível

escrever de tudo um pouco e quase tudo bem. Vocês vão

encontrar narrativas cinematográficas, filosóficas,

estranhas. Vocês vão encontrar um autor estrangeiro

(como quase sempre aqui) que provavelmente não só

nunca leram antes como não devem ter sequer ouvido

falar.

Um conselho: leiam (e muito) antes de escrever.

Não precisam nem nos agradecer pela dica (até porque

vocês vão estar muito ocupados nos odiando): mas vocês

vão agradecer a si mesmos um dia. Podem ter certeza

disso.

Como escreveu o falecido mestre Arthur C. Clarke

em seu clássico Encontro com Rama, os ramaianos fazem

tudo em três. Como dizia outro grande mestre, Jorge Luis

Borges, três é um número importante demais para ser

ignorado. Para nós, a edição 3 é apenas o começo.

Fábio Fernandes e Jacques Barcia

Editores

Ed

ito

ria

l

terra incognita #03

harmonia do mundoLudimila Hashimoto

Entrevista > jeffrey thomas

a Cor de shrainjeffrey thomas

su

rio

terra incognita #03

tibor moricz

do Humans dream oF othEr realitIes?

imagem >

flickr d

e d

oozzle

artigo fábio fernandes>

metamorfose ambulante: a vida de jeremy stake, detetive transmorfo do futuro

adriana amaral

Sombras Mnemonicas Nao-Deletadas

Polokov não era policial. Seu trabalho consistia em procurar humanos fugitivos. Era cacador."

18 de maio de 2038 - Polokov

O pequeno hovercar visto a distância, sobrevoando

os ares de Nova Nova Iorque, parecia uma mosca errática

com problemas de sustentação. Polokov se divertia

fazendo manobras arriscadas, tirando finas de antenas de

transmissão, telhados e terraços. Agradava-o muito ver a

cidade lá de cima. Sentia-se uma espécie de Deus. Como

se pudesse apontar o dedo e dizer: desfaça-se. E os

prédios, todos, se desfizessem. Ou então: faça-se. E novas

construções, formatos diversos, bizarros até,

aparecessem num passe de mágica.

co

nt

o

terra incognita #03

Do Humans Dream of Other Realities?

A cidade era formada por uma porção de pináculos que espetavam os

ares. Na região central um aglomerado de prédios muito bem conservados.

Fora dela, ruínas entremeadas por construções frágeis e condenadas. A

Guerra Mundial Terminus jogara a civilização numa fossa profunda.

Desassociou nações, desestruturou famílias, dizimou raças. Ao final da

queda da última bomba, os velhos W-4 interferiram. Depois deles, os Nexus-

6. Não viram sentido na permanência dos humanos sobre o planeta. Questão

de bom senso. Não havia discussão que não acabasse em luta. Luta que não

acabasse em guerra. Guerra que não acabasse em destruição em massa.

Armas atômicas apontadas para todos os lados. Altercações virulentas entre

nações, escaramuças entre fronteiras.

Uma ação rápida foi necessária. Ainda quando as emanações de calor

das últimas explosões abrasavam o planeta. Lasers apontados e corpos

tombando por todos os lados. Os humanos restantes capitularam. Foram

todos enviados para Marte. A Terra ganhava inquilinos mais civilizados.

Depois dos Nexus-6 vieram os Nexus-7; geração de humanóides robôs a que

ele, Polokov, pertencia.

Polokov guinou bruscamente. Contornou o domo do Jornal do Estado

quase arrancando telhas e, numa risada furiosa, arremeteu, lançando o

hovercar para cima, na direção do céu. Subiu quase num ângulo de noventa

graus, ultrapassou a densa camada de nuvens radioativas e prosseguiu até

falhar o motor do veículo. A atmosfera rarefeita fez tremer o engenho e o

sufocou. A subida vertiginosa estancou. O hovercar começou a cair, descendo

cada vez mais rápido até que, numa manobra ágil e temerária, Polokov o fez

voltar a funcionar. Poucos segundos para estabilizar o veículo e pousar são e

salvo no terraço do Palácio de Justiça.

Um sorriso amplo no rosto e um bocado de adrenalina no sangue

quando entrou em sua sala.

17 de maio de 2038 - PKD

Philip K. Dick empurrou a porta que estava emperrada. Ela rangeu com

o esforço e se soltou do que a retinha: lixo. Trastes. Papéis, móveis

imprestáveis, bagulhos diversos entulhavam o pequeno apartamento. Era

um prédio na periferia. Abandonado há anos, condenado, com riscos de

desabamento. Desabitado. Um pequeno corredor, um aposento ao fundo e

mais dois contíguos à sala. Todos cobertos por tralha. Fechou a porta atrás de

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terra incognita #03

si, procurou por qualquer superfície plana e encontrou uma mesa com três

pernas, mal equilibrada, encostada na parede. Apoiou sobre ela a valise,

tirou o sobretudo, esfregou as mãos suadas e suspirou. A insurgência em

Marte fora repentina. Sabia que as chances na Terra eram ínfimas.

Convenceu alguns outros a acompanhá-lo. Seqüestraram uma nave de

transporte de carga, mataram os pilotos e partiram numa viagem

desesperada.

Queriam o planeta de volta.

Mas não era só isso. Havia mais. Só que ainda não atinara com o quê.

18 de maio de 2038 - Polokov

Polokov se sentou diante de sua mesa. Analisou papéis e memorandos

até o comunicador interno soltar um chiado breve. Era Garland, o inspetor de

polícia. Queria falar com ele.

— Já vou – Respondeu Polokov, fazendo a voz se misturar a outro grupo

de chiados.

Polokov não era policial. Seu trabalho consistia em procurar humanos

fugitivos. Era caçador. Desde que o restante dos humanos fora exilado em

Marte, poucas vezes seus serviços foram solicitados. Recebia um salário fixo

que não o deixava morrer de fome, mas as recompensas pelas capturas eram

sempre festejadas. Se Garland queria falar, era porque havia trabalho. Isso

era certo.

A sala ficava no meio do corredor. Uma mesa simples de material

sintético imitando madeira, um cabideiro, uma cadeira tosca, um tapete

puído, uma poltrona genuína de couro de cabra, mas tão antiga que os pêlos

já haviam desaparecido. Da janela dava para ver a cidade até quase seus

limites.

— Sente-se – Pediu Garland, enquanto acendia um cigarro.

— Novidades? – Perguntou Polokov, certo de que ia ouvi-las.

— Roy Batty. Está morto.

Polokov manteve a atenção em Garland por alguns instantes. Absorto

na informação que acabara de receber. Mas ia processando aquilo com

lerdeza, como se se recusasse a aceitar o fato.

— Como é que é? – As palavras brotaram juntas, quase ininteligíveis.

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— Pois é. Um tiro de laser na cabeça. Os miolos voaram por um punhado

de metros.

— Por Buster, amigão... Você só pode estar brincando!

— Foi ontem à noite. Nos arredores da cidade, num condomínio

decadente. Houve alguma luta. Roy não teve sorte.

— Um humano...

— Hum, hum.

Polokov não sabia se ficava perplexo pela perda do amigo ou se

exultava. Roy Batty também era um caçador de humanos. O melhor até a

noite passada.

— Ele sabia ou foi casual?

— Sabia. Foi ao endereço em busca do fugitivo.

Polokov sentiu-se traído. O Palácio de Justiça possuía conhecimento de

humanos foragidos e nada lhe dissera, preferindo manter a informação

sigilosa. Começava a achar que tivera muita sorte com aquela morte. Roy

recebera o que merecia.

— Lamento muito – Disse Polokov, procurando um tom de tristeza, sem

encontrá-lo com muita eficiência.

— Acho que temos trabalho para você. Está pronto? – Perguntou

Garland, apagando o cigarro num cinzeiro de vidro repleto de bitucas.

17 de maio de 2038 - PKD

Lembrava-se de coisas boas. Elas existiram, embora as ruins as

suplantassem na maior parte das vezes. Lembrava-se de sua casa num bairro

arborizado. Lembrava-se dos pais, dos sorrisos, dos abraços. Lembrava-se

também das conversas silenciosas feitas em cantos isolados da casa. A mãe e

o pai com semblantes carregados. Lembrava-se dos noticiários. Políticos

fazendo discursos. Generais fazendo ameaças. Lembrava-se dos arsenais

nucleares, da existência de milhares de ogivas em todo mundo. Lembrava-se

de guerras localizadas em vários cantos do planeta. De povos já extintos, de

religiões esquecidas. Lembrava-se da carnificina que tomou conta das

cidades quando a Guerra Terminus parecia, enfim, ter acabado: legiões de

andróides, num levante surpreendente, trataram de terminar o serviço.

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terra incognita #03

Philip K. Dick se sentou diante da mesa de três pernas, sobre uma caixa

que encontrara por ali. Abriu a valise e tirou alguns pertences. Uma arma

laser, um calhamaço de papéis soltos que recolhera da nave em que fugiram,

e um livro. Pôs-se a folheá-lo. Era um dos poucos que preservara. Livre da

perseguição que toda a literatura sofrera. Uma espécie de troféu. Uma obra

de ficção que lera e relera diversas vezes. O homem do castelo alto. Escrito

por um autor morto há dezenas de anos. Um escritor obscuro, sem maiores

produções além daquela obra.

Fechou o livro e o encostou aos lábios. Soprou suavemente as folhas,

fazendo algumas delas se destacarem. Escolheu uma a esmo e abriu a página

correspondente. “Apanhando uma caixinha, papel e fita, Robert Childan

começou a preparar o presente para a Sra. Kasoura...”. Voltou a fechar o

livro. Conhecia todas as páginas de cor. Podia recitar o restante se quisesse.

Depositou o livro dentro da valise. Pegou uma folha de papel em branco e a

analisou com curiosidade. Não sabia por que trouxe todos aqueles papéis.

Que instinto estranho o forçara a isso. Mas estava feliz de estar lá com eles.

As superfícies imaculadas exigiam ser preenchidas. Philip pegou uma

caneta, sentiu um estranho frisson e escreveu no início de uma delas: o que é

real?

18 de maio de 2038 - Polokov

Polokov voltou para a sala carregando uma pasta com documentos que

eram, até a noite anterior, de Roy. Havia nelas as informações que lhe foram

negadas. A quantidade de humanos fugidos, o transporte, a data de chegada,

os endereços possíveis. Os nomes de cada um: Harry Bryant, Dave Holden,

John Isidore e Philip K. Dick.

Roy Batty já caçara Harry Briant, John Isidore e Dave Holden. Roy

nunca fazia prisioneiros. A lei exigia que fosse aplicada a Escala Alterada de

Voight-Kampff para testar os indivíduos suspeitos. Mas esse teste era

perfeitamente dispensável quando já se sabia que esse ou aquele eram

humanos. Claro que podiam exigir os procedimentos. E, nesse caso, estes

deviam ser administrados. Mas era sempre uma perda de tempo que não

servia para nada mais do que protelar o inevitável.

Abriu a pasta e espalhou os documentos sobre a mesa. Havia fotos. De

todos. Assim era mais fácil. Retirou do grupo de fotos as referentes aos três já

caçados. Deteve-se na de Philip K. Dick. Um homem de meia idade. Testa alta.

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terra incognita #03

Barba cerrada. Têmporas esbranquiçadas. Marcas de expressão no rosto de

feições vigorosas. Observou melhor o homem que matara Roy Batty. Não

havia nada naquele humano que pudesse apontá-lo como um assassino. Mas,

claro, todos sabiam que os humanos eram assassinos por natureza, mesmo

que as aparências vendessem amizade, fraternidade e paz. Philip K. Dick...

“K” de killer, sem dúvida. Um maldito assassino que acabara criando uma

situação excepcional para Polokov. A grande oportunidade. Assumir a

posição de Roy Batty e provar o próprio valor ao inspetor Garland.

Ia torrar o cara. Queimá-lo até as bolas.

17 de maio de 2038 - PKD

Pensou na fuga. Na tresloucada corrida para entrarem despercebidos

na nave que partiria em breve. Na tentativa confusa de se misturarem à

carga. Pensou nos minutos angustiantes de espera até que todas as portas

fossem fechadas e os motores começassem a rugir. Agruparam-se.

Percorreram a área de carga à procura de portas de passagem. Percorreram

corredores vazios. A nave podia carregar milhares de toneladas, mas não

exigia uma quantidade de tripulantes excessiva. Bastavam os pilotos. Em

terra o trabalho de descarga era feito roboticamente.

Chegaram à cabine de comando. Só dois lá dentro. Dominá-los foi fácil.

Mas só porque bateram neles com alavancas. Não deram aos dois nenhuma

oportunidade de luta. Arrastaram os corpos e os jogaram no compartimento

de carga. Assumiram o controle da nave. John Isidore foi o piloto.

Viram a Terra se aproximando aos poucos. Não responderam a nenhum

chamado, deixando os controladores de ambos os planetas acreditar que

estavam passando por problemas de comunicação. Nem respeitaram as

ordens para se manterem na rota pré-estabelecida. Desviaram-se,

apontando a nave para a América do Norte (quando a nave estava

programada para ir ao Oriente Médio).

Pensou no descampado em que chegaram. Em que pousaram a nave e

dela se afastaram, certos de terem sido rastreados. Sabiam que estariam

cercados de policiais e caçadores de cabeça em pouco tempo. Acharam por

bem se separar. Isso tornaria as buscas mais difíceis. Sabiam que os Nexus-7

tinham seus métodos para seguir passos, mas não queriam facilitar as coisas.

De forma geral podiam se misturar aos andróides que circulavam pela cidade

sem que fossem identificados. Só a aplicação da escala de Voight-Kampff

poderia denunciá-los.

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terra incognita #03

Dirigira-se para a periferia. E ali estava. Preferira se ocultar nas

sombras. Onde pudesse permanecer por algum tempo, meditativo, tentando

calcular atos e mensurar chances. Sabia que não possuía nenhuma. Eram

menos que um punhado de inúteis. Um pífio Exército de Brancaleone contra

milhões de andróides. A vinda, afinal, não tivera o intuito de promover uma

guerra contra os Nexus-7. Morreriam de qualquer jeito, fossem como

serviçais em Marte, fossem como foragidos na Terra. Que morressem, então,

no planeta de origem. No lar. Era tudo com o que sonhavam.

Lutaria até o fim. Tentaria dar à vida um sentido que não tivera até

aquele momento. Escreveria a sua história com traços firmes. As primeiras

linhas começaram a ser delineadas no momento em que ouviu passos no

corredor, do lado de fora do apartamento. Limpou os olhos úmidos das

lágrimas que vinha tentando conter, pegou a arma laser na valise e se ergueu.

Estava consciente. Mais do que nunca. Afastou-se da mesa e foi para o lado da

porta.

Não precisou aguardar muito.

18 de maio de 2038 - Polokov

Havia todo um cálculo de probabilidades. As chances de Philip “Killer”

Dick estar próximo do local onde se dera o enfrentamento com Roy Batty

eram bastante consideráveis. Não havia muitos lugares para um humano se

esconder na cidade sem levantar suspeitas, fora a região decrépita da

periferia de Nova Nova Iorque. Centenas de lóculos em estado de miséria

aguardando por um morador eventual. Um fugitivo.

Por vezes se flagrava tentando entender o que passava pela cabeça de

um humano. Porque fugiriam de um lugar onde podiam ter uma vida

razoável. Porque voltariam para a Terra quando sabiam que seriam caçados,

encontrados e mortos. O conceito da saudade era e sempre lhe fora uma

incógnita. A procura pelas raízes, o choro convulsivo dos que conseguiam,

finalmente, colocar os pés sobre a terra em que viveram. O sentimento forte e

pungente que prendia os humanos ao passado, tornando-os escravos das

próprias lembranças. Não conseguia entender isso e mais um monte de

coisas. Sabia apenas que precisava levantar a bunda da cadeira e sair em

busca de um homem. Um protótipo original cheio de defeitos de fabricação,

vícios e decrepitudes: Philip “Killer” Dick.

Enfiou a foto do homem no bolso da camisa, fungou e saiu da sala

carregando uma valise. Ia ter um pouco de ação, finalmente.

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terra incognita #03

17 de maio de 2038 – PKD

Estivera suando até há pouco. Mas agora sentia frio. Enfrentara todas

as dificuldades possíveis para chegar aonde chegara. Atravessara o espaço

por milhões de quilômetros para rever o planeta, sentir o cheiro da terra, se

familiarizar novamente com a gravidade tão aprazível. Matara alguns

andróides, aliciara outros humanos cujos sonhos suplantavam em muito uma

existência medíocre em Marte.

Estavam já provavelmente mortos.

Grudou as costas na parede. Prendeu a respiração por instantes.

Apenas o necessário para não ser detectado pelos ouvidos apuradíssimos de

um Nexus-7. Segundos ínfimos que antecederam a explosão da porta numa

bolha de fogo, fumaça e destruição. Foi arrebatado pela violenta expansão de

energia. O deslocamento de ar o atirou sobre a mesa, destroçando-a. Estava

ainda atônito e confuso nos segundos que sucederam a explosão. O laser

firme na mão embora tremesse de medo e esgotamento.

Um facho intenso de luz se chocou contra a parede às suas costas.

Pedaços de madeira da mesa caída se incendiaram. Brasas lhe queimaram a

perna, causando dores cruciantes. Ele revidou. Disparos foram efetuados de

ambos os lados enquanto se erguia em meio à fumaça. Vasculhou o chão atrás

dos papéis. Encontrou a caneta e folhas soltas, espalhadas. Algumas

queimando. Tentou juntá-las quando foi agarrado pelo braço. Uma catapulta

o arremessou a distância. Bateu contra um obstáculo indistinguível,

rodopiou sem controle e tombou de barriga, deslizando alguns metros. A

esperança, qualquer uma que ainda possuísse, escapava deixando-o

prostrado.

Girou e procurou o oponente em meio à densa fumaça. Viu sombras. Ou

das labaredas, ou do caçador. Naquela circunstância, quem adivinharia a

origem? Pernas se moveram... Passos decididos. Philip se abandonou.

Fervilhando de desespero pela perda das folhas que carregava consigo.

Talvez ainda pudesse resgatá-las. Viu o homem se aproximando. Tombou a

cabeça, firmou a arma na mão sob o corpo dobrado. Fingiu estar desmaiado

ou morto. Identificou os sapatos, viu as calças, com os olhos semicerrados.

Alguns móveis velhos crepitavam quando puxou o gatilho. Apenas um décimo

de segundo antes do caçador. A cabeça de Roy Batty desapareceu para no

lugar surgir uma nuvem de fumaça e a mais absoluta vacuidade. De

pensamentos e de existência. O corpo desabou, levantando uma nuvem de

pó.

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terra incognita #03

Philip engatinhou. Voltou à sala. Procurou pelos papéis. Encontrou-os

milagrosamente intactos. Alguns poucos carbonizados. Agarrou-os. Eram-

lhe muito importantes, mesmo sem ainda saber por quê. Uma imensidão de

sonhos, devaneios e pesadelos o cercavam desde o exílio. Vozes que lhe

sussurravam ao ouvido. Visões de um mundo diferente.

Saiu para o corredor e respirou fundo para afastar a sufocação.

Fantasmas voltaram a perturbar-lhe a sanidade. Agarrou-se ainda mais aos

papéis e saiu trôpego, tentando caminhar para longe. Diante dele um

torvelinho de imagens fantásticas, fazendo-o mergulhar numa realidade

completamente diferente e assustadora.

18 de maio de 2038 – Polokov

O apartamento estava totalmente destruído. A equipe antichamas

fizera um bom trabalho evitando que todo o prédio se incendiasse. Viu o

desenho de giz marcando a posição em que o corpo de Roy havia sido

encontrado. Chutou uma porta semidestruida. Não sabia o que ia encontrar,

mas sua presença ali era imperativa. Vasculhou todos os espaços. Restos de

trastes. Restos de restos de trastes.

Teve a atenção atraída para um livro. Consumido pelo fogo quase na

totalidade. O ho... .. cast.. to. Virou algumas páginas fazendo cinzas voarem.

Sujou as mãos. Cheirou o papel que restara intacto e sentiu nele um leve,

quase ausente, cheiro amadeirado. Um toque de almíscar.

Então era assim que o homem cheirava? Era assim que manifestava sua

presença? Era assim que seria identificado, mesmo em meio a outras

centenas de pessoas?

Polokov sorriu e jogou o resto do livro no chão. Identificou as sobras de

uma valise, panos queimados onde o cheiro amadeirado persistia apesar da

destruição ser quase completa. Correria a cidade como um extinto cão

perdigueiro. Farejaria até encontrar o maldito que matara Roy. O azarado

Roy.

“Coitadinho do Roy“ pensou Polokov com um sorriso satisfeito.

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terra incognita #03

17 de maio de 2038 – PKD

Philip se arrastou para fora do prédio. Agarrado às folhas. A arma laser

presa na cintura. No bolso da calça, milagrosamente, a caneta. Ouviu sirenas

que se aproximavam rápidas. A azáfama logo tomaria conta daquele trecho.

Era imperativo se afastar dali.

A dor na perna não o perturbava. O frio invernal não o perturbava. A

precipitação leve de radioatividade não o perturbava. Mas as lembranças de

uma vida que não vivera... Essas o perturbavam. Martelavam-lhe a cabeça

como poderosos bate-estacas. A náusea veio. As pernas fraquejaram e ele se

ajoelhou num declive, longe um quilômetro e meio do prédio de onde se

evadira e bem diante de um arbusto. Vomitou o pouco que trazia dentro do

estômago. Engasgou com a própria saliva. Chorou por uma vida que não

viveu, uma existência que não existiu.

Permaneceu ali, respirando fundo, tentando recuperar uma parte da

sanidade. Tentando apagar da mente as imagens que passaram a atormentá-

lo. Sonhos recorrentes sobre uma vida que jamais experimentara. Observou,

maravilhado, um gafanhotinho que se movia por entre as folhas. Era uma

visão fantástica. O coração aos pulos, explodindo numa alegria incontida.

Pensou em cães e gatos. Em pássaros chilreando. Insetos diversos. Animais

selvagens vivendo nas savanas, a fauna magnífica que existia antes da

Guerra Terminus.

E se lembrou de quem era. Despertou do longo sonho que vinha tendo.

Ergueu-se com dificuldade, se agarrou aos papéis que trazia e

caminhou absorto em pensamentos. As mãos trêmulas e ansiosas para

começar o trabalho.

18 de maio de 2038 – Polokov

O Sol ia alto. Polokov permaneceu imóvel, pairando suavemente sobre

um dos conjuntos habitacionais abandonados. Observava qualquer

movimentação que pudesse revelar a presença de alguém. O hovercar

deslizava de tempos em tempos, alterando seu posicionamento, levando-o a

locais diferentes. Os olhos treinados tentavam identificar qualquer resquício

de vida inteligente em ação.

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terra incognita #03

Claro que Philip “Killer” Dick podia estar muito quietinho dentro de

uma das centenas de apartamentos vazios, mas a sorte era uma companheira

constante que aprendera a não subestimar. Observava cantos escondidos,

trechos em escombros, ruas, becos, galpões, sombras indistintas. Dava

rasantes cuidadosos procurando por recantos. Era um andróide cuidadoso

ao extremo. Não intentava seguir Roy Batty para onde quer que pudesse ter

ido (não acreditava em vida após a morte, apesar de Buster Amigão vir

repetindo bobagens como essa nas últimas apresentações).

Sabia que o fugitivo fora para a periferia. Sabia que ele não sairia de lá.

Havia bloqueios extras na cidade. Estavam parando todos que fossem

suspeitos. O lugar mais seguro era ainda dentro do caos e da destruição de

conjuntos abandonados como este sob o hovercar. Depois da morte de Roy, o

fugitivo se tornaria ainda mais arisco e cuidadoso. Não levantaria suspeitas,

tentaria não deixar rastros. Mas um humano era essencialmente imperfeito.

Assim, as chances de errar eram consideráveis. Polokov trabalhava com

estatísticas. E elas eram irrepreensíveis: encontraria o fugitivo. Levasse o

tempo que fosse necessário.

18 de maio de 2038 – PKD

Debruçou-se sobre um caixote. Ao lado corria o esgoto exalando

odores. Acima, protegendo-o, o cano largo que, com sua bocarra, despejava

líquidos mal cheirosos no estéril rio Hudson. Nas horas em que lá passara

quase aprendera a suportar o fedor. Estava próximo da saída, o suficiente

para que a luz de fora iluminasse parcamente os papéis que iam se

sucedendo, escritos com letra miúda, ocupados nos menores espaços. Estava

cansado. No limite da exaustão. Mas não podia parar. Precisava pôr para fora

tudo o que lhe consumia a alma. Anos e anos de sonhos e pesadelos

intermináveis ganhavam vida na ponta da caneta e na alvura do papel. Os

músculos do braço reclamavam alguns instantes de descanso, que se

recusava a lhes oferecer. O coração palpitava. A mente absorta na verdade

que ia cuspindo sobre o papel. Ele era Philip Kindred Dick, um homem fora do

tempo, fora da realidade, fora do mundo.

Mas estava prestes a corrigir esse erro. Prestes a retomar as rédeas da

vida.

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terra incognita #03

Polokov

Pousou o hovercar numa área aberta, distante quatrocentos metros do

conjunto habitacional mais próximo. Terra ressecada, poucos arbustos mais

resistentes. Nada ao Norte. Nada ao Sul, mesmo após o rio Hudson que

corria silencioso na direção do mar. Ao longe se distinguiam os roncos de

veículos terrestres. Sombras distantes deixavam identificar o vôo seguro de

hovercars. Aquele era um trecho abandonado, desprezado pela civilização.

Um museu ao ar livre cuja função era demonstrar a decadência da raça

humana. Uma raça extirpada da face da Terra, para a felicidade dos novos

inquilinos.

Polokov cheirou o ar. Sorriu discretamente e tirou o laser do bolso.

Girou para todos os lados observando a desolação. Procurou a serpente

negra que descia pegajosa por seu leito, indo buscar no oceano um

sepultamento definitivo. Sentiu a presença de odores diferenciados. Dejetos.

Dispersões industriais químicas e orgânicas. Venenos de diversos gêneros.

Apesar dos odores marcantes da poluição, sentia de forma bem leve, quase

imperceptível, o almíscar.

Philip “Killer” Dick. Estava tão próximo dele...

PKD

Sabia que o tempo se extinguia. E isso o alegrava. Na medida em que as

linhas avançavam sobre o papel, o destino ia ficando mais claro. Quase um

sentimento de regozijo. Não havia exaustão que o impedisse de continuar,

não havia pânico e medo da morte, porque ela não existia. Não era ele ali.

Estava no lugar errado.

Virou a última folha. O coração explodindo dentro do peito. Ouvira o

motor do hovercar sobrevoando a área. Estava sendo caçado e o caçador

estava muito próximo. Não escaparia e nem queria que isso ocorresse.

Estava afoito pelo fim, quase saindo e dando as caras para um tiro certeiro.

Mas precisava terminar. Só aquele último ato poderia libertá-lo. Até a

última palavra, última letra. Depois do ponto final. Quando reunisse as folhas

e entendesse que sua missão estava cumprida.

Passos do lado de fora o sobressaltaram.

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terra incognita #03

Polokov

Polokov avançou sem pressa. Precisava ser cauteloso. Virou as costas

para as construções derribadas e caminhou na direção do rio. A água

corrente deixando fluir emanações de podridão. Parou no barranco e deitou a

vista em toda a extensão, de cima a baixo. Mato e lixo em profusão ocupavam

as margens. Bocarras brotavam da terra, deixando vazar finos regatos de

água pútrida. E mesmo afligido por odores terríveis, conseguiu distinguir o

almiscarado que resistia à decomposição reinante. Seus olhos percorreram

os canos, todos, até que se detiveram em um. Distante menos de cem metros.

Sorriu, ajustou o laser e começou a descer o barranco, tomando

cuidado para não cair.

PKD

Apressou-se. Aumentou a velocidade da escrita, fazendo correr a

caneta sobre o papel. Começou a abreviar palavras, ignorar acentuações.

Era importante que terminasse logo. Sentiu um arrepio e a sensação de

tempo perdido quando escutou o rolar de pedras perto dali.

Por um instante temeu que não conseguisse.

Polokov

Afastou-se das margens barrentas. Tentou caminhar sobre os arbustos,

mas não foi eficiente. Afundou os pés em poças densas de água podre.

Enroscou-se em galhos. Chafurdou na lama. Respingos colaram nas calças e

na camisa. O ódio ia aumentando à medida que avançava. A ânsia de explodir

o fugitivo que se escondia era tão intensa que duvidava poder resistir ao

apelo racional da aplicação da Escala Alterada de Voight-Kampff. Se o

maldito o pedisse, receberia um tiro no peito como resposta. Driblou com

dificuldade um tonel meio submerso e estancou.

Estava a dois metros da entrada do cano.

E ouviu risos.

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PKD

Estava acabando. Apenas algumas linhas. As mãos crispadas

segurando a caneta. Os dedos com juntas esbranquiçadas doíam. A tinta

próxima do fim. Os papéis na última folha. Não saberia dizer se reconstruíra a

história mentalmente para que coubesse naquela centena de folhas ou se ela

se adaptara à limitação existente, aderindo ao papel na medida exata de sua

necessidade. Mas o fato era que a tinha ali, praticamente pronta. Acabada.

E então soltou um riso preso. Um riso desesperado e exultante de

alguém que consegue, enfim, se livrar dos grilhões que o prendem.

Um riso de alívio.

Polokov e PKD

Acostumou-se rapidamente à escuridão relativa. Pôde divisar o corpo

de um homem recortado contra o fundo negro do cano. Estava em pé. Ambas

as mãos abaixadas. Nenhuma arma aparente, a não ser o que parecia um

calhamaço de papéis. Avançou dois passos, controlando a vontade insana de

disparar, tantas vezes quantas necessárias até que aquele homem fosse

inteiramente desintegrado. Até que virasse vapor e fumaça. O homem,

entretanto, exibia uma expressão de paz e tranqüilidade. A alma leve. Os

lábios torcidos para cima, sorrindo silenciosos. Os olhos dirigidos para ele,

Polokov, e para a arma empunhada.

— Acabou – Disse Philip.

— Acabou – Confirmou Polokov. O dedo coçando o gatilho.

— Mas não para mim. – Continuou Philip. Polokov se retesou e procurou

por sinais externos de uma armadilha. Podia ter puxado o gatilho, mas não o

fez.

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terra incognita #03

— Eu tenho a arma. – Disse Polokov, tenso.

— E eu tenho a verdade.

Polokov riu.

— Vai me dizer que não é humano? Vai solicitar a aplicação da Escala

Alterada de Voight-Kampff? Vai insistir nessa bobagem?

— Eu sou humano. Humano. Não um simulacro orgânico como você. Fui

gerado em um útero e não em câmaras de clonagem.

— Que conversa é essa?

Philip K. Dick ergueu o monte de papéis que segurava e balançou-os no

ar.

— Aqui está a verdade. Você não existe. Essa realidade não existe.

Estou mergulhado num sonho maldito. Finalmente pronto para me libertar

dele. Voltar à normalidade.

— Hum-hum... Você vai se libertar. Essa realidade não existe mesmo.

Pelo menos não mais para voc... – Polokov soltou uma exclamação,

sobressaltado. O dedo puxou o gatilho e o disparo se perdeu dentro do cano,

mergulhando nas profundezas. Philip gritava a plenos pulmões, saltando de

um lado para outro.

— Não sou REAL! EU NÃO SOU REAL! Nada que me cerca é

verdadeiro. NADA! Livre, FINALMENTE. – Abaixou os braços, pareceu se

acalmar e olhou para Polokov. – Tenho pena de você. Vai desaparecer quanto

eu me for. Você e toda essa alegoria. Passarão a ser uma fantasia de breve

duração.

Um segundo disparo o atingiu em cheio. O corpo foi lançado para trás

indo cair nas águas pútridas que corriam lentamente para o rio. Carne

crepitando e fumaça densa. Papéis ainda volitando, caindo por todos os

lados. Polokov se adiantou. Caminhou até diante do corpo e constatou a

morte. Olhar crispado. Boca aberta soltando um suave vapor.

— Você me parece bastante real... Seu idiota. – Resmungou Polokov,

chutando o corpo inerte. Olhou ao redor para os papéis espalhados. Abaixou-

se e pegou alguns. Leu trechos soltos. Franziu o cenho. Molhou os lábios, e

localizou o título daquela narrativa estranha. Teve a impressão de ver seu

nome ali, escrito nalguma parte. Aproximou-se mais da luz.

Do androids dream of electric sheep?

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terra incognita #03

— Que droga é essa? – Voltou a resmungar – Para quê serviriam ovelhas,

se elas existissem? Principalmente as elétricas?

Jogou os papéis no chão e saiu do cano abafado e mal cheiroso. Olhou

para o céu nublado. Começava a chover mais uma vez. A mesma precipitação

radioativa. Olhou para si mesmo e para a cidade além do rio Hudson. Para os

prédios, para a vida que pulsava.

Pensou no que faria com os mil dólares a que fizera direito por essa

caçada.

“Humanos imbecis...” pensou, chapinhando de volta ao hovercar.

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Tibor Moricz foi um dos premiados do XI Concurso de Contos de Araraquara – Prêmio Ignácio de Loyola Brandão, com um conto de ficção científica, e da primeira edição do Prêmio Bráulio Tavares. É autor do romance Síndrome de Cérbero (JR Editora, 2006) e da coletânea de contos FOME (Tarja Editorial, 2008).

Tentou localizar o blog que havia parado as atualizacões em 2008, no ano da catástrofe. Em um mashup antigo jogou

novamente a frase e localizou "velhas" imagens produzidas por Adriano. Maldito manipulador de photoshop!"

Lena abre os olhos com o sol batendo na

guarda da cama. Primeiro um olho, depois o outro e

de repente aqueles raios, não amarelos, mas

multicolores que compõem a manhã. Sabia que era

diferente por poder apreciar aquela luz. Outros

como ela não tinham acesso a esse prazer. Apesar

das dificuldades em aceitar aquela condição, sorri

ao perceber os primeiros raios de sol

independentes do mau humor.

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terra incognita #03

Sombras Mnemônicas

Não-Deletadas

Adriana Amaral

Como sempre, resmunga e passa as mãos pelas pálpebras alternando

movimentos horizontais e circulares. Manchas extrafinas de rímel, sombra

e delineador misturadas formam um risco em seu dedo indicador,

contrapondo as listas da mão que, segundo as ciganas da praça central

indicam um lapso temporal entre a vida e a morte.

“A janela está entreaberta, por isso o sol bateu no lugar errado” –

pensa ela. Alguém abriu a persiana, mas agora ela não consegue lembrar.

Ainda zonza por acordar tão cedo, tateia as laterais da cama para ver

se encontra algo que a faça compreender. Não conseguiu reunir forças

para levantar, apenas mexe as pernas como se andasse de bicicleta

ergométrica sob o lençol acinzentado. Uma camisa branca é a única pista.

Ao encostar a pele no algodão da camisa ela já sabia, uma tormenta de

imagens invadiria o seu mecanismo de busca mental, malditos crawlers

nano-biológicos! Era ele. Naquele universo de tags e metaversos nos quais

sua mente se afundava todas as noites, apenas um perfil lhe era sempre

recomendado pelos agentes: Adriano.

Lena fugira do circuito das recomendações por mais tempo que lhe

era possível, mas sabia com certeza que em algum momento iria ceder aos

desígnios da semântica folksonômica. Na noite anterior, provavelmente,

ela havia finalmente atendido aos apelos personalizados da sua rede de

auto-vigilância. O primeiro encontro com Adriano havia sido há tanto

tempo, quando mensageiros instantâneos pela escrita ainda eram uma

forma de comunicação atual. Contudo, as memórias nunca foram

deletadas por completo. A Corporação tentara vários tipos de remoção,

nenhum funcionou com a precisão necessária para tal evento neural.

Ficava sempre uma espécie de cicatriz, como uma tatuagem retirada por

laser no final dos anos 90, do século XX. Havia borrões e lacunas, mas

nunca esquecimento.

Adriano estivera com ela na noite passada. Não restavam dúvidas,

suas narinas haviam sido treinadas na arte do reconhecimento de

feromônios, qualquer um dentre os 869572 catalogados sob sua

responsabilidade em um dos grandes nós. Após anos de trabalho no

Departamento de Vigilância de Odores e Cheiros de Avatares, ela seria

capaz de reconhecer o dele em questão de segundos. Talvez ainda fossem

resquícios da primeira geração, talvez ainda fosse algum resto de sua

suposta humanidade, seja lá o que esse conceito signifique. Why can´t be

ourselves like we were yesterday?

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Após uma respirada profunda, consegue pular da cama. O cheiro

dele estava em todo o quarto e não apenas na camisa. Ou seriam os

sensores dela gritando ao detectar aquele padrão? Estava indo de

camisola de latex púrpura em direção à cozinha branca e cinza, asséptica.

Café descafeínado? Não, não era cool o suficiente para isso.

Tudo havia começado em um desses sites de redes sociais que foram

moda no início do século, lembrara, algumas postagens em uma

comunidade à qual ela prefere fazer de conta que não lembra – embora

esteja sempre em suas recordações subcutâneas mais profundas com

aquele logotipo cambiante; troca de nicks e comunicadores instantâneos,

uma navegada em profundidade pelas fotos e vídeos do perfil indicavam

que ele estava em um relacionamento. E mesmo assim, algo aconteceu.

Ela não lembrava muito bem quando, apenas o como.

Nesse ponto algumas lembranças começam a se embaralhar e ela

derruba o líquido cor de verniz no chão. Era o pior café dos últimos tempos.

Mas sua mente só conseguia pensar onde estaria “o arquivo” que

consolidaria tudo, reboot total. Não lembrava se ainda existia resquícios e

rastros online. Tentou algumas buscas pois sabia o parágrafo de tanto

repetí-lo, bem ao estilo do refrão de alguma boyband... rastreava a própria

mente por tags, por imagens, por sons, por links, por pedaços de um

discurso fragmentado que talvez nem fosse tão real assim e até pelo antigo

código. Maldito panóptico! Certamente ela mesma havia desativado em

um momento de raiva, de tentativa de esquecimento... mas esquecer, ao

contrário do que parece é um ato de arqueológico... buscava rapidamente

algumas páginas antigas até que se deparou com uma espécie de meme –

era assim que chamavam não? - em um desses blogs de primeira geração

desativado:

Citação favorita: “Não se deixe iludir pelo aparente envelope de

fragilidade! Por trás do sorriso meigo e da aura tímida, um poderoso

intelecto se aninha...

Seja quem foi que copiou e colou aquela frase, estava fora de

contexto. Tentou localizar o blog que havia parado as atualizações em

2008, no ano da catástrofe. Em um mashup antigo jogou novamente a frase

e localizou “velhas” imagens produzidas por Adriano. Maldito

manipulador de photoshop! Mesmo assim, suas fotos tinham aquele valor

quase modernista, em suas cores histriônicas e em seu caráter maquínico

e fetichizado, ainda havia um culto ao corpo como elemento central, como

statement, como demarcação de um sentido ontológico, uma vontade de

visibilidade que só um andróide teria.

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terra incognita #03

Naquela mistura quase randômica de elementos liquefeitos um

sample disparou, efeito dos comprimidos? Lena não conseguia distinguir,

mas era uma espécie de synth característico do início dos anos 2000. Já

ouvira aquilo há tanto tempo, uma melodia simples e uma voz poderosa. ...I

care for you... I'm there ... I'm there for you...I care... Inglês com leve

sotaque germânico. Peter Heppner era foda!

Agora ela entendera, Adriano enviara algumas pistas para que

reconstituísse sua memória que se encontrava dispersa em redes. O que

ela teria feito para pagar aquele preço? O blog havia sido dela em algum

momento impreciso de sua vida. Lena não sabia mais se ele realmente

havia passado a noite com ela ontem ou se eram hologramas datados. Tipo

assim: R2D2 levando a mensagem da Princesa Léia. E entre escombros e

restos de uma existência digitalizada, a protagonista dessa estorinha

neoromântica encontrou um diálogo perdido em um arquivo.txt primitivo e

“upado” por algum desocupado – sim, rima intencional e podre de brega.

My precious - o anel e as memórias deletadas

- Tu fugiste de mim! - disse ele.

- Não fugi, apenas não comentei nada sobre o que eu ia fazer-

respondeu ela à acusação.

Nesse instante John, amigo de ambos que teclava freneticamente em

algum fórum de alguma sub-subcultura obscura, grita da sala: - Parem com

isso! Porque vocês estão falando em inglês?

- Porque eu não quero que a minha irmã escute, esqueceu que ela tá

dormindo no quarto ai do lado? E como ela não fala inglês, fica mais fácil -

comenta Ela.

John retorna às discussões entre nicks e emoticons um pouco mais

resignado.

- Tá, agora não foge e volta pra nossa conversa - Ele a pega pelo

braço, daquele jeito ao mesmo tempo grosso, forte mas atencioso - Deixa o

John, pq ele não vai falar nada pra ninguém.

- Eu sei, mas esse não é lugar pra essa conversa. Estamos na sacada

do apê com um frio de rachar, vento e parte da minha família ai dentro

perigando ouvir tudo...

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- Até parece que tu liga muito pra isso, ou pelo menos não ligava

naquela vez do táxi, lembra? A corrida do aeroporto até aquele bar? -

afirmava ele com aquele sorriso debochado que a deixa louca e a mão no

joelho dela.

- Eu sei, mas agora está tudo diferente, é outro contexto. Não dá

mais, eu quero tentar ser diferente dessa vez.

- Eu duvido. Tu vais sucumbir em algum momento. Eu te conheço

bem, somos iguais, lembra? - diz ele aproximando a boca da orelha dela.

É óbvio que ela lembra, se é que alguém poderia esquecer do homem

com quem se pode debater Douglas Adams e William Gibson na manhã

após uma noite de devassidão; do homem que te oferece pão de queijo e

café todo meiguinho após ter falado as maiores "barbaridades"; do homem

que escreve uma letra de música pra ti, só pra ti, com referências que só os

dois entenderiam.

- Mas querido, não posso mais, eu tomei uma decisão e preciso

mantê-la - ela responde sem uma grande convicção.

- Tu poderia ter me dito, né? Tu acha que eu me despencaria até aqui

se eu soubesse, tu nunca me falaste - reclama ele.

- Ah, eu só não falei, tu nunca me perguntaste... ia falando ela até que

o olhar vislumbra algo prateado no dedo dele... - Tu compraste? Não

acredito, que lindo, adorei!! – diz ela

- One ring, to rule them all - fala ele em um tom característico a

ambos. - Sabia que tu irias gostar!

- Mas naquela época tu não mostraste interesse - recrimina ela.

retornando à conversa.

- Tu também não... se eu soubesse que era um outro tipo de relação,

eu teria investido - diz ele a encarando like the last night on earth.

- É, mas tu também não perguntou - disse ela contrariada - Things

get damaged

Things get broken. I thought we'd manage But words left

unspoken... Sério, essa conversa vai ser daquela que vamos lembrar para

sempre.

- Mesmo que deletem nossas memórias - ele afirma sorrindo.

- Sim, mesmo que as deletem em um futuro não muito distante.

- Por que a gente não vai dar uma volta? Tomar um café? - ele encerra

a conversa com as mãos no ombro dela.

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Agora Lena parecia ter encontrado alguns fios que religavam seus

circuitos, que ela obviamente não tinha – e dizia isso para si mesma

passando os dedos abaixo dos cabelos ruivos numa tentativa neurótica de

ter certeza. Será mesmo que ele a conhecia além do nível epidérmico? E a

camisa branca no chão do quarto com um cheiro de ontem à noite? Não

sabia, mas talvez o acelerador de partículas do vizinho pudesse lhe dar

alguma esperança de resposta ou pelo menos acabar com essa palhaçada

de vez.

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Adriana Amaral - Neovictorian girl lost in cyberspace. Também conhecida como Lady A., Adriana é doutora em Comunicação Social pela FAMECOS/PUCRS. É jornalista, pesquisadora de cibercultura e professora do Mestrado em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná. Autora do livro Visões Perigosas: Uma Arque-Genealogia do Cyberpunk (Sulina, 2006). Blog:

Escuro. Parece não existir coisa alguma onde estou. Num segundo tossi ao atravessar a argamassa gorda de poluição e neblina. Em seguida, esqueci que sou um corpo para ultrapassar os planetas unidos no desenho harmônico de notas musicais geradas pela acústica improvável da falta de ouvidos. Deixei para trás constelações e sistemas solares que se desvaneceram com a nitidez absurda da ausência de olhos. Límpido oceano negro me aguarda para engolir esta partícula ínfima de humanidade desprovida de simbolismo e desejo. Esta técnica me empresta uma velocidade contraditória, em que o caminho de volta diminui à medida que avanço. Lá se vão incontáveis galáxias.

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Harmonia do Mundo

Ludimila Hashimoto

Tentou localizar o blog que havia parado as atualizacões em 2008, no ano da catástrofe. Em um mashup antigo jogou

novamente a frase e localizou "velhas" imagens produzidas por Adriano. Maldito manipulador de photoshop!

A Escola não tinha nome porque era a única da região dimensional. Era o resultado da reunião das sobras de dezenas de escolas falidas. Seu nome oficial era Escolas Unificadas de Panes.”

Sinto a potência irresistível da escuridão –só hoje infinita– repuxar o que resta de mim, de pensamentos fugidios, de memórias quebradiças, deste quase nada. Num último movimento extremo, por medo e dor, tento encontrar a ligação entre isto e o estado anterior a isto, e não me lembro. Procuro por todos os lados, mas a leveza não ajuda. Não conseguir achar o link é angustiante, mas é mais um passo que deve ser apagado. Indica que está tudo certo, conforme meu plano. E quando estou à beira do que realmente será a fronteira das fronteiras, falho e caio direto no centro do cubículo onde moro. Falho porque me vem a lembrança da fileira de minúsculas contas cintilantes e multicoloridas de uma pulseira arrebentada entre as páginas de um livro de Johannes Kepler. Somnium.

Uma felicidade discreta estica a testa normalmente franzida de

Estesita. Ela atravessa o pátio da Escola e lembra o final do sonho da noite

anterior. No final do sonho, ela consegue encontrar uma Obra do Passado,

desconhecida nesta cidade, que possui – ela tem certeza – conexão direta

com uma conquista científica. Essa conquista servirá de base para o

sistema de mundo no qual ela poderá existir. No qual poderá realizar seu

próprio potencial. Estesita intui o seu poder. Mas logo entende que é um

longo caminho. Ninguém por aqui sabe quem foi ou será Johannes Kepler.

Nesta cidade de exilados, ele nunca existiu. O caminho até ele se estende

por superfícies ainda virgens e passa pelos vales traiçoeiros do

inconsciente. Do potencial para o virtual para o atual. Testa franzida.

Estesita pára diante do portão de ferro trancado. Gigantesco e

pesado, ele reduz a sapucaia de 16 metros do pátio da Escola a um bonsai

isolado e cristalizado, e os frutos ainda não maduros a falsas elipses

paraláticas de papel. Todos os elementos que se esforçam para preencher o

espaço excessivamente amplo do pátio (esse retângulo entre o L grotesco

dos prédios e o L desmedido dos muros), a sapucaia e os vagões de trem

restaurados, tornam-se insuficientes e enganosos diante da magnitude

material e da arrogância do portão de ferro.

A mochila cinza de linho grosso vem acomodada nos ombros estreitos

e feitos sob medida para as alças rígidas. Ajusta-se às suas costas e à sua

personalidade bruxuleante como a placa protetora de um equinodermo.

Estesita sente-se aquecida pela mochila, e são raros os momentos em que a

retira, mesmo durante as aulas e as tarefas que realiza pela Escola. O

sentinela logo surgiria para lhe dar passagem. Enquanto aguarda, a

sensação é de créditos subindo na tela, rápido demais para serem lidos,

com uma música de dezenas de órgãos gigantescos vinda de todos os lados.

O som imperioso lava seus pensamentos. A música começa forte, criando

grande expectativa. Estesita espera conhecer acordada outro desfecho que

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resignifique o fim do sonho com o livro de Kepler. A melodia suaviza-se aos

poucos, passando apenas a cumprir a função de descansar seus olhos,

fendas quase imperceptíveis entre a vontade de viver todas as aventuras da

mente e a aridez da realidade encarcerada.

Ela se vira de costas para o portão. Guarda na memória o sonho e seu

fim. A ponta do cabelo negro e totalmente despenteado, firmemente

retorcida e enfiada sob uma das alças da mochila. Os olhos já pequenos,

como diafragmas reagindo à luz, comprimem-se ainda mais diante do pátio

milagrosamente vazio. É domingo. Ninguém presente para a despedida. E a

pausa forçada diante do portão em forma de guilhotina evita que tenha que

hesitar do lado de fora, dando a si mesma a impressão de não saber aonde ir.

O mais importante, ela tem em mente, é, antes de tudo, saber enganar a si

mesma. Porque a objetividade e a certeza não a levarão a lugar algum.

Assim que a música cessa, um impulso de proteção a faz levar as mãos

aos ouvidos. Dedos rápidos sobre as têmporas com unhas borradas de

esmalte roxo, Estesita prepara-se para ouvir, a contragosto, os próprios

pensamentos, sua consciência. Mas relaxa ao escutar, em vez disso, os

passos de Rucus, chefe da segurança, que chega a tempo de interromper o

fluxo de reminiscências pessoais. Elas estragariam tudo. Ela quer sair

direto para o caminho mais curto até o seu melhor destino, o abismo. Por

ora, seu futuro é abissal.

Não sei com quais habitantes desta cidade compartilho o conhecimento de seu sentido maior. Não sei filosofar. Localizo o sentido das coisas pulsando abaixo da superfície. Vejo a verdade que só pode ser encontrada ou no sonho ou na ficção. Há anos tento descobrir quem além de mim sabe que esta cidade é habitada por gênios exilados do passado e do futuro. Os do passado têm aqui uma versão menos afortunada – é o que posso dizer não sem medo de errar–, isto é, dificilmente encontrarão a mesma conjunção de colaboradores fundamentais para o sucesso de sua teoria ou obra, tampouco terão leitores capazes de fazer a interpretação correta das idéias complexas e inovadoras que os consagraram em sua versão bem-sucedida. Nós, os do futuro, vivemos em agonia por sentirmos a falta de modelos essenciais para a concretização de nosso trabalho, por intuirmos que seremos sempre um enigma para mundo como está. Mas temos o trunfo ardiloso do acesso a obras esquecidas que existem em nossa memória ancestral do mesmo modo que plânctons existem em oceanos e tão anônimas quanto eles. Meu futuro é a criação de uma obra musical original, arquetípica. Me falta a harmonia.

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Rucus aproxima-se do portão com seu movimento corporal

fragmentado e rígido, e a encara de frente. Estesita comprova pela primeira

vez que seus olhos são verdes, mas feericamente intensificados por uma luz

que parece vir de dentro da cabeça quadrada. Os bíceps do funcionário

atarracado estufam as mangas do uniforme magenta durante o esforço

para empurrar as travas do portão imenso. Uma vez liberadas, elas

permitem que a lâmina suba para abrir o caminho. A subida é lenta, dura 12

minutos, a descida será uma queda cortante.

Doze minutos depois, a passagem está livre. Rucus suspeita

instintivamente que este momento é único, que pede folga à formalidade

mecânica dos dias da semana. Mas o que ele poderia dizer, ele pensa,

encolhendo os ombros. Estesita diria adeus para diferenciar esta saída das

saídas para a padaria, quando geralmente diz tchau. A capacidade de

decodificação do guarda, no entanto, não permitiria essa distinção de

significados. Ele dá um sorriso com toda a força dos músculos faciais,

infelizmente incapaz de encobrir a expressão raivosa que criara valas

fundas entre os olhos ao longo de anos no emprego. Como resultado do

esforço, solta um grunhido gutural involuntário.

Adeus, ela pensa, e diz:

– Tchau.

Rucus duvida da própria suspeita inicial de que o momento é crítico.

Tomba a cabeça e conclui que ela deve estar mesmo saindo para comprar

pão. Aí está um gênio do passado que dependeu muito mais das

circunstâncias favoráveis que da própria capacidade de pensar. Aqui nesta

cidade, ele serve mais para abrir portões que para desvendar o que está

prestes a atravessá-los.

No outro domingo

Estesita penteou muito bem as ondas do cabelo preto e, com todos os

fios soltos, foi à padaria com os chinelos de usar em casa. Não tinha casa,

algumas classificações de seus objetos tridimensionais tinham que ser

refeitas. Melhor amigo era outra que perdera o sentido, e ela continuava

usando. Ainda que Tobias Tem nem sempre fosse visto como um objeto, e

raramente tridimensional, o que era senão um amigo, o único? E a cada

dia parecia possuir, ela mesma, menos substância, menos essência e mais

acidentes. A influência descontrolada da memória coletiva e das idéias

ainda não realizadas no universo temporal da cidade de Panes a

atormentava cada vez mais quando estava acordada.

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Por não conseguir identificar os gênios do passado que tivessem

afinidade com o seu futuro, Estesita sentia-se menos real, como se fosse um

elemento da ilustração de uma história escrita e desenhada por uma cabeça

imaginativa e persistente, porém já começando a cansar. A cabeça do “seu”

gênio. Entre os ombros sobre os quais ela subiria. Enquanto respirava e se

matinha acordada, tentava conservar viva a sensação de incompletude. Era

vital para visualizar seu percurso. Do potencial para o virtual para o atual.

Porque a colocava mais perto do paradigma que deveria habitar e ainda

mais dependente da teoria científica que possibilitaria seu futuro, versão

menos trágica.

Seu próprio destino nada tinha de científico. Era artístico. Ainda

assim, deveria retomar de imediato a procura do homem que recolheu

dados empíricos e doou seu tempo e sua mente à concepção de um universo

em que o conceito de Harmonia combinaria com a única versão completa de

Estesita, na qual ela poderia elaborar a própria obra musical. Havia dias em

que essa busca parecia complicada. Incompreensível. Havia dias em que

nada disso fazia qualquer sentido. E ela voltava a comer, dormir, freqüentar

aulas, limpar carteiras e consertar projetores holográficos até o fluxo de

realidade ser interrompido por mais um sonho.

Um cubo, uma pirâmide e outros 3 sólidos cintilantes e multicoloridos flutuam à minha volta. O olhar ingênuo do guarda da Escola aparece como uma prova de que não existe uma força maligna querendo impedir a realização dos ideais de ninguém. O acaso rege a multiplicação dos mundos em dimensões copiadas e incompletas, gerando duplos com falhas intoleráveis para quem é condenado a viver dentro deles. Quem nasce nessas dimensões imperfeitas passa a vida tentando sair de uma armadilha. Passam acima da minha cabeça um octaedro e um icosaedro. Não consigo identificar o último sólido regular que falta e sinto-me como um acorde que carece de apenas uma nota para se tornar melodioso. O decano da Escola, professor de matemática, emerge pendurado num sólido quase circular. Ao me ver, ele tenta escondê-lo e diz, em tom de desculpa: “Eu não escondi este poliedro de você! Porque também não o conheço.” O rosto alongado do deão e seus ombros magros se contorcem para não deixar escapar o poliedro que oscila para mudar de círculo para estrela, de estrela para...dodecaedro! “Parece uma estrela, não? Não, não pode ser...” Ele fala sozinho, perturbado. Seu conhecimento matemático é todo perfurado pelas lacunas epistemológicas de Panes. E o quinto sólido lhe escapa. E é engolido pelos outros.

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Havia dias em que o dia certo parecia iminente. E dava a impressão

de que chegaria ao fim do ciclo de sete dias. Por enquanto era um domingo

ofuscante, de entorpecer as idéias férteis e tornar plausíveis as mais

ridículas. Estesita é guiada agora pela vontade de comer pão. Havia pouca

gente na rua. Na quadra longa toda atingida pelo sol, avista um homem de

terno e óculos pretos, com um fio anelado que ia da gola da camisa ao

ouvido direito. Vinha no sentido contrário. Aproximava-se tão sem pressa

quanto Estesita, o que a fez acreditar que ele lhe entregaria uma pista

temporal, daria um aviso. Ele tirou os óculos e examinou as lentes. Estesita

fez o mesmo. As suas, entre aros enferrujados, sem dúvida precisavam de

uma limpeza na barra da saia, mas ela usava um vestido de rendas

amareladas, curto demais, em inúmeras camadas sobrepostas. Pôs os

óculos embaçados de volta sobre orelhas e nariz. O homem de terno ajeitou

um revólver pesado na altura do abdômen e passou, com o braço rente a ela,

voltando a ser o desconhecido sem nenhum sentido que nasceu e deixou de

existir no mesmo quarteirão. Lá se ia um gênio do futuro tão desenganado

que vendera a alma para um controle artificial em troca de uma existência

eternamente virtual.

Ao sair da padaria, Estesita notou que tinha duas sacolas na mão. A do

pão, claro... A outra, das sandálias novas – compradas com defeito na

promoção agora longe demais para uma troca justa – trouxe, num

relâmpago, a lembrança do sorriso cansado da vendedora, vigiado pelo

sorriso malicioso do dono da loja.

Tira de elástico com distensão anômala presa por pinos frouxos de

metal na altura do calcanhar. Um trabalho para o maior sapateiro da

cidade.

A entrada da sapataria do Hamiltão era uma descida longa e íngreme

que afastava até os pobres que tinham que levar os sapatos nos pés para

uma reforma e esperar ali mesmo o fim do conserto. Estesita tinha pelo

menos os chinelos de usar em casa para situações como esta.

Hamiltão era um mestre. Tinha mais amor à sua matéria que todos

professores da Escola juntos. Conhecia os ângulos, luzes e sombras de todo

tipo de calçado. Cinqüenta anos de ofício o tornaram calejado e imune à

fetidez, um homem acima de muitos, especialmente daqueles que não se

acovardavam diante da contra-rampa de 45 graus que o separava da

calçada. Sua fala profunda, combinada com os pequenos cachos grisalhos,

provocava em Estesita a sensação de que era o curandeiro dos protetores

da sua decência, dos protetores dos seus pés no chão. O defensor da sua

possibilidade de ir e vir sem a sensação de estar no ápice de um pesadelo

social.

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Vencido o declive, o pé inútil foi retirado da sacola e colocado sobre o

balcão escuro e cheio de fitas crepe com datas e valores.

– Só percebi que tinha defeito na terceira vez que tentei usar. –

Estesita disse, estranhando a própria voz, que pouco usava. – Qual o

prognóstico?

– Fala português.

– Qual o... Tem conserto? – Titubeou, mas conseguiu reformular a

frase.

– O elástico já era. Os pinos... pfff! Vem buscar na terça?

A escassez de matérias-primas numa cidade tão isolada quanto Panes

colocou os

sapateiros de volta nas ruas principais. Mas Hamiltão não se limitava

a lidar com materiais. Sua busca era a integração entre desenho, anatomia

e funcionalidade.

– Sem pressa – ela disse, vendo sua fita crepe ser grudada no balcão.

Perco as coordenadas do tempo. Mas meu futuro tem pressa. Os dias se fundem nesta semana pressagiosa. Alguém está prestes a desistir de tudo, também de mim. Alguém que não conheço, mas sonho, o homem que indiretamente me pensa, me espera para o passeio que irá transfigurar a minha vida. Se for capaz de me convencer a sair sem saber para onde, começo a procura e corro o risco de encontrar o criador do meu destino. Aquele que poderá engendrar, pela segunda vez, o sistema da harmonia cosmológica.

A Escola não tinha nome porque era a única da região dimensional.

Era o resultado da reunião das sobras de dezenas de escolas falidas. Seu

nome oficial era Escolas Unificadas de Panes. As brechas na memória da

cidade e no conteúdo das matérias lecionadas impossibilitaram a vida longa

de instituições bem-intencionadas.

Em uma semana, o quarto de 5 x 3m de zeladora mirim, as salas de

aula do calabouço da iluminação e Tobias cairiam no passado remoto a ser

aniquilado. Mas Estesita ainda não sabia disso. No momento, estava apenas

cansada da falta de ligação entre conceitos distantes, das aulas vindas

diretamente da Idade Média fragmentadas por noções inestimáveis do

pensamento greco-latino e, especialmente, por tecnologias pós-modernas

oriundas do milagre da acochambração.

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A despedida final seria a conclusão de um processo natural de

crescimento, desses que o homem insiste em ignorar, o curso respeitável

dos que nasceram para cumprir seu destino sem embromações

ornamentais. E aconteceria com ou sem ritual.

Na área de 31.415m2, a movimentação da semana na Escola seguia

constante e acompanhada pelo zumbido condensado dos alunos, todos

gênios perdidos do futuro ou do passado, sem saber. Eram zumbidos de:

delírios fantásticos, sementes de idéias brilhantes sussurradas com medo e

suspiros desenganados da desistência intelectual.

Visto de uma distância considerável, o movimento não seria notado.

Visto de dentro, causava uma sensação de ausência de comunicação.

Desnorteados, professores das mais variadas e inimagináveis disciplinas,

todas meio deslocadas no currículo, aguardavam sentados nas salas

subterrâneas. Os alunos atravessavam o pátio admirando as bolas de papel

com purpurina que se penduravam nas sapucaias no período em que as

árvores não davam frutos. Era preciso evitar perguntas sobre as estações

do ano.

Mais um dia entre um domingo e outro: Aula de português com o

trabalho em

grupo para a elaboração da lista de 30.000 palavras essenciais, para a

escrita, e 15.000, para a fala. O restante seria considerado vocabulário

técnico. Um projeto utópico, segundo o professor de língua, mas que abria

os olhos do estudante para a importância da concisão. A ausência de

respostas por parte do professor seria sempre justificada pelo desuso

milagroso de vocábulos desnecessários.

Tobias fazia parte do grupo de Estesita. A dificuldade maior de sua

participação no trabalho era o fato de não conseguir pronunciar o nome

dela. Estesita não era sua única amiga, mas a única que o intimidava.

– Ei, precisamos conversar depois da aula – sussurrou Tobias.

– Depois da aula vou limpar os projetores holográficos.

Tobias estava prestes a virar para outro membro do grupo e voltar a

pensar nas listas de palavras úteis. Mudou de idéia:

– Ô... Você anda muito distante. Queria saber, sei lá, o que você quer

da sua vida.

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Isso sim era um amigo. Em 16 anos ninguém nunca havia lhe

perguntado isso.

– Aniquilar minha própria existência – ela respondeu com o sorriso

mais angelical que ele já tinha visto. – Por meio da negação insistente da

realidade compartilhada, visando a indiferenciação desta experiência

ontológica cada vez menos singular. – De modo involuntário, Estesita

congela o sorriso, no aguardo de uma réplica convincente por parte de

alguém que tem família e objetivos e que, portanto, pode tentar reanimá-la.

– Sem sujeira, sem sangue.

– Hum. Você é quem sabe...

– Me diz uma coisa, To-bi-as. Você sabe o que é destino? – insistiu ela,

com uma irritação extremamente feminina.

– Quê? – sussurro agudo e perplexo de Tobias.

– É algo que a gente tem que mudar de lugar pra que ele possa existir.

– Você cisma com umas coisas...sabe...

– Sabe aquela brincadeira de quente e frio? Primeiro, você descobre

que é gente, e quando alguma coisa lhe diz: “Tá quente!”, você se afasta

dela o suficiente pra poder ver melhor um trecho do contorno do seu

destino se desenhar.

– Você quer dizer... Emite uma radiação térmica que percorre a

quintessência? – arrisca Tobias Tem.

– Que quintessência? Que quintessência?! Eu não tenho tempo pras

suas viagens...

– Mas o horror ao vácuo... é... – ele insiste.

– Por favor... To-bi-as – ela interrompe, inconformada por não ouvir

nunca, da boca dele, o próprio nome.

O domingo preciso.

Adeus, ela pensa, e diz:

– Tchau.

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Já em movimento, com um vestido de linho curto, preso por alfinetes

na falta de costuras, e cordão amarrado na cintura, cabelos desarrumados e

retorcidos, Estesita retira da mochila o mapa dos Trajetos Aleatórios de

Panes, desenhado ao longo de dez anos de saídas para comprar pão por

caminhos sempre diferentes, e segue as indicações marcadas na noite

anterior. O feixe de cabelos pretos escapa um pouco mais da alça da mochila

a cada passo imensurável. Três horas e catorze minutos de caminhada

depois, exausta, mãos inchadas e dedos que lembravam casulos, ela

despenca da calçada e desliza até bater as costas num anteparo escuro. O

baque surdo a coloca de frente para a rampa do sapateiro mais sábio e

plácido que já conheceu.

– Atrasada. Terça-feira foi há cinco dias. Mas ainda não doei seu pé de

sandália – resmungou Hamiltão. – Não abuse do meu domingo.

Estesita se levanta espantando as vespas em giro irritante acima de

sua cabeça. – Eu não vim buscá-la. Aiiii!

– Veio aqui buscando o quê? – Hamiltão parecia estranhamente

impaciente, sem tempo a perder com hesitações. Ou seja, este é o fim do

labirinto.

– Eu não vim aqui, meu mapa está com problema, e não preciso mais

dessa maldita sandália mal remendada! – Estesita ficou vermelha e

paralisada diante do próprio ataque. Depois balançou a cabeça

perguntando-se como os caminhos podiam ser, de fato, sempre diferentes.

– Sabe qual o seu problema? – O pescoço do sapateiro aproximou sua

cabeça à do desenho da menina de pernas e braços muito finos, como um

guindaste levando um crânio de concreto para o local onde estava o xis.

Estesita parou de mexer a cabeça para focalizar o olhar do mentor

improvisado. – É não existir no seu presente.

Sem reação. Centenas de quadros repetidos com o mesmo desenho. O

sol nascia com tudo, os raios brancos que desciam a rampa apagavam as

articulações da menina. Ela era um tronco com membros desligados do

centro e uma cabeça com auréola flamejante.

– Fala português.

– O mapa tá certo, o território tá errado – anunciou Hamilton Cobai. –

O trajeto aleatório deve ajudá-la a se deslocar, nisso você acertou. Mas não

pelo espaço. Pense linearmente e não entenderá a extensão do tempo.

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– Só me responda uma coisa – começou ela. – Alguma coisa desta

procura tem realmente algum sentido? Eu paro tudo agora, se você me

disser que o homem que procuro é fantasia da minha...

– Você sabe que vive num mundo desordenado, ora, cheio de

desproporções. Muito adorno, pouco funcional – ele interrompe, irritado

com o “se você me disser”. – Você sabe!

– Nunca terei energia suficiente pra construir um instrumento que

demonstre empiricamente a harmonia que deveria predominar, nem o

conhecimento necessário pra começar uma teoria coerente nesse sentido. –

Estesita, a sombra que não ofuscava a visão do mestre, agora quase

bidimensional, parou para pensar, assumindo uma pose que só existia se

vista de um único ângulo específico. – Mas acredito que todas as teorias que

conheço escondem, em sua gênese, diários secretos, pensamentos

fantasiosos inconfessáveis e até erros fundamentais...

– ...e inseguranças banais e tombos ridículos. Tá quente – a voz rouca

e grave de Hamiltão contrastou com o olhar indiferente acima dos óculos

minúsculos. – Sonhos românticos...

– ...mas a circunstância adequada...o momento oportuno nunca...

– Chega. – O sapateiro endireitou o pescoço, girou os ombros para

trás. Ouviu os próprios estalos do esqueleto cansado de se curvar sobre

fôrmas de pés. – Ao que interessa, por favor.

– Tudo bem... Existem professores esquecidos no porão do

conhecimento da Escola, na ala de salas de aula para onde o diretor enviou

os assumidamente excêntricos.

– Tá pelando.

– E um deles em particular reuniu cálculos e dados empíricos num

esforço intelectual extraordinário, o necessário para que o meu contorno

mais complexo se desenhe.

– Ai, quente, quente! – Lábios esticados, a expressão do sapateiro era

intensa e denunciadora, como a de quem encostou num ferro sem saber que

o carvão ainda estava em brasa.

– E eu sou conseqüência não-linear dos dados que ele lança. E a minha

presença pode ajudá-lo a alimentar seu estoque de idéias harmônicas,

fornecer-lhe talvez mais clareza, abertura ou profundidade, apresentar

novas combinações de pensamentos.

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– Sim, só não seja tão egocêntrica. E ele é tão obstinado que, mesmo

na falta de circunstâncias favoráveis e de colaborações convenientes,

propôs-se esperar 100 anos para que suas idéias fossem interpretadas da

melhor forma, mas já se foram 70 e ele ainda está num impasse, parado na

dimensão resultante das coordenadas da capacidade virtual e da

mortalidade. Um potencial desprezado, para todos os efeitos.

Ainda que você seja o maior mestre que já conheci, como sabe dessas

coisas, pensou Estesita, mas nesse momento ela era apenas uma mancha

solar sobre um triângulo sem cor definida. Ainda havia medo.

A sabedoria acumulada por artesãos sob os céus em fogo do Oriente

estende-se aos ocasos do Ocidente e desconhece os obstáculos enfrentados

pelos homens de letras, refletiu, pomposo, Hamiltão, em resposta à não-

pergunta.

Hamilton Cobai era a versão desafortunada de Tycho Brahe em

Panes. Sempre apoiaria Kepler, mesmo contra sua vontade.

– Acho que quem já esperou 70 anos pode estar disposto a apagar a

luz e se retirar a qualquer momento. Meu futuro é fruto do sistema dele,

mas meus circuitos estão na iminência de virar linhas sem largura, apenas

comprimento, um retrocesso. Tchau...

Ela subiu a rampa com a ajuda das mãos, aumentando a pressão na

ponta dos dedos como se precisasse de ventosas para não escorregar de

volta até o balcão sombrio. Enquanto subia e chegava à calçada, ouvia a voz

do sapateiro proferindo frases que, de longe, lembravam preces entoadas

por um coro de velhos artesãos.

– Isolado no porão da vontade livre... Contará histórias de castelos em

ilhas... Observatórios com instrumentos gigantes... Meteoróides, nariz com

ponta de prata...

Esferas em perfeita harmonia divina... Isolado no porão da vontade

li...

Estesita correu pela rua desviando de carros estacionados sobre a

calçada e pontos de ônibus lotados. No centro de Panes, os pedestres se

esquivavam de tudo o que as ruas despejavam na sua frente. Ela passou

para o meio-fio, o espaço mais neutro, e ganhou velocidade entre lambretas

desfiguradas e carroças de sucata. O peso da mochila não parecia

atrapalhá-la, ao contrário, impulsionava um ponto em sua lombar que

acelerava o corpo esguio. Mas a velocidade parecia insuficiente à medida

que o cântico do sapateiro dissipava-se no nevoeiro denso da cidade. Uma

bicicleta amarelo-ouro surgiu na sua frente, no sentido contrário.

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– Cuidado, você tá no sentido contrár... – Estesita gritou ofegante e

jogou o corpo para a sarjeta quando viu que o ciclista não ia desviar.

Levantou-se num pulo e correu atrás do garoto. – Espera! Empresta o

camelo!

O rapaz xingou. Estesita passou a correr ao lado da bicicleta, fixando

o olhar no guidão oxidado e fazendo sinal com o braço esticado para os

motoristas pararem. O trânsito, já lento, parou. Ela deu uma cotovelada e

acabou atingindo o ombro do ciclista, que caiu sobre a calçada entre pernas

e gritos. Ela puxou a bicicleta, montou. O rapaz interrompeu o próprio

impulso de segurar a roda, ergueu-se de vez e deu um chute, soltando um

gemido porque o pé de apoio era o do tornozelo torcido na queda.

Ao chegar ao portão da Escola, a bicicleta caiu, e Estesita pulou para

não cair junto. O sangue da queda secara com o vento, formando um

caminho fragmentado de manchas escuras das narinas até a boca. Esperou

ser vista por Rucus em um de seus monitores empilhados. Doze minutos

depois, entrou no limite entre o passo firme e a corrida. Atravessou o pátio,

desceu escadas e corredores úmidos e finalmente se perdeu no mar de

portas pesadas em que todas se apresentavam como a opção mais rápida e

fácil. Chegou à porta no fim do último corredor, entreaberta, e a empurrou

com as duas mãos.

O professor Keplerus, decepcionado, recolheu seu material de aula e

dirigiu-se ao interruptor, quando se deparou com uma figura muito familiar,

de mochila, cabelos emaranhados nos óculos e caindo sobre o rosto com

manchas rubras e escuras reavivadas pelo suor.

– Só veio você? Atrasada – ele disse. – Ou adiantada demais, mas

podemos começar assim mesmo.

– Então, você existe – ela pensou em voz alta. – O senhor é o professor

esquecido?

– Na verdade, minha memória está bastante boa, se compararmos o

volume de informações arquivadas à insignificância das deletad...

– O senhor é o professor Keplerus de Panes?

– Correto – ele respondeu com uma hesitação na última sílaba. – Se

não me falha a mem...

– Ótimo – ela se prometeu não interrompê-lo mais e sentou-se na

primeira carteira. A imagem da sala de aula perdeu a nitidez e resolução

absurdas que tudo vinha tendo nos últimos dias. Estava embaçada, era real.

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A aula transcorreu como um passeio de duas mentes atiçadas por um

grande desejo e livres para renunciar à loucura sagrada, para provocar os

mortais e roubar as naus douradas dos egípcios, lançar dados e, quem sabe,

reconhecer as harmonias celestes, uma vez que tivessem sucesso em trazê-

las do breu à luz. As batidas sincopadas executadas pela circulação que

percorria todo o corpo de Estesita dificultavam sua respiração e explodiam

nos ouvidos, de dentro para fora. Ela tossiu, expelindo a argamassa nociva

que a deixara paralisada por oito anos, até o dia em que conseguiu tomar o

rumo oposto ao da despretensão inocente. O projetor holográfico que o

professor esquecera de desligar os inseria no centro do encaixe de cinco

orbes que circundavam, cada um, um poliedro platônico. O globo maior

ocupava todo o espaço da ampla sala deserta. As duas cabeças ínfimas eram

as duas notas de uma possível partitura. O professor Keplerus espremeu os

olhos assustado e viu a seiva viajar acelerada pelo corpo de Estesita. E ela

ouviu, sobre o fundo perfeitamente complexo e sonoro da música das

esferas, a voz do amigo – o único – proferir seu nome com satisfação e

avisar: o ar nunca esteve tão quente e agitado dentro da única escola da

cidade de Panes.

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Ludimila Hashimoto é tradutora e professora de inglês. É responsável pela tradução de A Voz do Fogo, de Alan Moore, a série Discworld, de Terry Pratchett, e UBIK, de Philip K. Dick. Possui diversos contos publicados em sites. http://milahashi.livejournal.com/

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Metamorfose Ambulante:

a Vida de Jeremy Stake,

fábio fernandes

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imagem > flickr de gullevek

Aviso aos navegantes do hiperespaço: como diz o título do artigo, isto

aqui não é uma resenha de toda a obra de Jeffrey Thomas (que tem

diversos livros publicados, entre eles uma história original ambientada

no universo de A Hora do Pesadelo). Ele é mais uma espécie de análise

da “vida e obra” de Jeremy Stake, seu personagem mais famoso.

terra incognita #01

O conto In His Sights (publicado

no Volume 1 do

em 2007) nos

apresenta a figura de Jeremy Stake, ex-

cabo das Forças Coloniais na Guerra

Azul, um conflito extradimensional

entre humanos e uma raça humanóide

de pele azul conhecida como Ha Jiin. Stake vive no planeta Oasis (é um nativo,

jamais visitou a Terra) e além disso é mutante: tem a habilidade de mudar de rosto

(o corpo permanece o mesmo) e assumir o aspecto da pessoa para quem ele

encarar por um determinado tempo. Essa habilidade acabou sendo muito boa

para Stake, especialmente em combate ou em missões secretas onde ele precisava

de uma espécie de camuflagem (ele podia até mesmo mudar ligeiramente a cor da

pele para se parecer com um Ha Jiin).

Stake lutou por quatro anos na Guerra Azul, que começou quando ele ainda

era adolescente (ele tem 23 anos de idade quando dá baixa, ao fim do conflito).

Nas primeiras páginas da história, nós o vemos num prédio da Administração dos

Veteranos na capital de Oasis, Punktown (cujo nome oficial na verdade é Paxton,

mas ninguém a chama por esse nome mais), logo depois do fim da guerra. Stake

não mostra a cara: ele está usando uma mascara curativa preta porque sua

“doença” mutante, chamada caro turbida (“carne turbulenta” em latim) traz um

problema para ele: ele não tem o menor controle do processo de transformação, e

ele precisa usar a máscara durante a maior parte dessa história porque ele ainda

traz consigo uma espécie de cicatriz – a semelhança com um soldado Ha Jiin que

ele matou em sua última missão e de cujo rosto ele não consegue se livrar.

In His Sights é basicamente a história de um erro de identidade entre Stake,

que ainda exibe o rosto azul do inimigo, e Cal Williams, ex-soldado surtado e

transformado em serial killer por causa de seu profundo ódio pelos Ha Jiin e por

qualquer um que apresente a menor semelhança com eles – incluindo uma

The Solaris Book of

New Science Fiction

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prostituta de descendência asiática, que ele acaba de matar na primeira vez em

que aparece no conto. Williams esbarra por acaso em Stake num hospital para

veteranos, onde ambos foram consultar psiquiatras por ordem das Forças

Coloniais.

Convencido pela psicóloga, Stake tira a mascara ali mesmo, mas isso acaba

por jogá-lo numa espiral descendente de dor, porque Williams começa a persegui-

lo, certo de que o sujeito de pele meio azulada é um Ha Jiin que matou o verdadeiro

Stake – e que por isso precisa ser detido.

Mas a perseguição de Stake por Williams que acontece logo em seguida e

sua luta (que é rápida demais e até um pouco frustrante), embora importantes

para que o leitor compreenda o sofrimento de Stake por seu dom indesejado, não é

o principal no conto. O propósito da narrativa é nos apresentar um mapa quase

completo do universo de Stake. Somos apresentados a pelo menos duas raças

alienígenas de nossa própria dimensão: os Choom, que se parecem muito

conosco, a não ser por suas bocas imensas de sapo (e cujo nome Thomas

provavelmente pegou emprestado de uma antiga nação do Vietnã medieval, os

Chom), e os Tikkihotto, que têm tentáculos nos rostos em vez de olhos. Outras

raças estranhas são mencionadas mas não aparecem nesta história, e uma raça

alienígena extradimensional: os Ha Jiin, idênticos aos humanos mas de pele azul

(e a nação independente dos Jin Haa, amigos e aliados da raça humana).

Ali também ficamos conhecendo a pesquisa de tecnologia Theta, que

permitiu à humanidade viajar entre universos, e o motivo por trás da Guerra Azul:

coletar o gás azul emitido pelos cadáveres dos Ha Jiin – em seus cemitérios, os

corpos são recobertos com uma pasta amarela que, com a decomposição do

cadáver, libera o gás azul – que os Ha Jiin veneram como seus espíritos ancestrais,

mas, como os humanos descobrem, é um combustível muito eficiente para os

pods Theta que fazem as viagens dimensionais (Thomas não explica, pelo menos

nesse conto, qual a fonte de energia utilizada antes para os pods Theta, o que é um

mistério, já que o gás azul só existe nessa outra dimensão).

E também ficamos sabendo que Stake é assombrado por uma obsessão de

seu passado, a mortífera sniper Ha Jiin Thi Gonh, cujo apelido é "Assassina da

Terra". A mulher perigosa que o próprio Stake finalmente capturou – e a

prisioneira pela qual ele se apaixonou. É essa obsessão que o leva a alugar um flat

na Judas Street, num baixo pobre de Punktown, além de adquirir um computador

e uma arma no mercado negro, uma Wolff .45. Quando ele se muda para lá, a única

coisa em que ele pensa é encontrar Thi Gonh.

Para mim, In His Sights tem um certo sabor noir (mais para Ed McBain, por

exemplo, do que para Raymond Chandler), e me ganhou na hora. A partir daí,

comecei a pesquisar o que mais esse Jeffrey Thomas havia escrito – especialmente

nesse universe.

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E a Solaris Books já tinha o que eu queria: na última página da antologia,

encontrei o anúncio de que o primeiro romance de Thomas apresentando Jeremy

Stake, , seria publicado em breve. Nem precisei encomendar: uma ou

duas semanas depois, encontrei o pocket na Livrarua Cultura e comprei na hora.

Deadstock é um bom livro – mas confesso que não gostei tanto dele

quanto do conto que eu havia lido antes.

A história do romance se passa dez anos depois de In His Sights, em uma

Punktown muito mais sombria e bizarra do que aquela que conheci antes. Agora

Stake está trabalhando como detetive particular, e é contratado por um certo John

Fukuda, homem riquíssimo que precisa dele para um service inofensivo, talvez

até mesmo chato e um tantinho ridículo: encontrar a boneca de sua filha. O

negócio é que não é uma boneca comum: é uma boneca Kawaii, que faz o maior

sucesso entre as crianças nas colônias da Terra. Bonecas Kawaii são

animatrônicas, mas algumas são organismos de bioengenharia.

A boneca de Yuki Fukuda, Dai-oo-ka, é melhor ainda: é praticamente um

ser vivo, criado pela empresa de seu pai. A Fukuda Bioforms projeta e fabrica

formas de vida, incluindo deadstock (animais comestíveis – a palavra é um

trocadilho intraduzível com o termo livestock, que significa gado de corte).

Mas as coisas não são assim

tão inofensivas quanto podem

parecer, pois organismos biológicos

criados artificialmente aprendem

sozinhos – e Dai-oo-ka não é exceção,

como Stake descobrirá quando

encontrar o “bichinho”, agora

supercrescido e bem mais forte.

Essa parte da história é bem

interessante, além de um flashback

onde ficamos sabendo o que

realmente aconteceu entre Stake e

Thi Gonh quando ele a capturou no

final da Guerra Azul. Eles se

tornaram amantes, mas a relação não

durou, porque ela foi repatriada à sua

dimensão assim que a guerra

terminou, e ele nunca mais ouviu

falar nela... até agora, quando ela

subitamente reaparece para salvar a

vida dele, apenas para sumir

novamente. E a trama de John

Deadstock

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Fukuda se torna mais complexa quando ficamos sabendo da existência de um

irmão desaparecido, James, que acaba desempenhando um papel fundamental

na ação, bem como uma das grandes sacadas de Deadstock, o Telefone Ouija, um

celular que supostamente acessa a dimensão dos mortos.

Mas é muito difícil criar uma história consistente com crianças e/ou

adolescentes como protagonistas – ou mesmo como personagens secundários,

mesmo que a história seja boa. Poucos autores do gênero conseguem fazer isso,

como Orson Scott Card, Stephen King ou, mais recentemente, Patrick Ness.

Mesmo assim, não terminei Deadstock decepcionado: o romance termina

amarrando as pontas soltas – menos uma, a de Thi Gonh, mas faz sentido, e deixa

você curioso, querendo mais.

E foi por esse motivo que pedi a , da Solaris, para me enviar

um exemplar de , o segundo romance de Stake, assim que foi

publicado.

Blue War nos mostra um Jeremy Stake mais maduro (e um Jeffrey

Thomas mais maduro também), muito embora o título tenha me enganado. Eu

pensei que esse livro se concentraria no período em que Stake serviu no exército

lutando contra os Ha Jiin. Só que não é nada disso: o foco do livro está em um

trabalho para o qual Stake é contratado por um velho amigo das Forças Coloniais,

que quer que ele o ajude a solucionar um mistério, um ano depois dos eventos

mostrados em Deadstock.

Como no romance anterior, o mistério já aparece de saída no prólogo: uma

cópia da cidade de Punktown subitamente começa a tomar forma nas selvas de

Sinan, o mundo dos Ha Jiin, devorando a flora local para emular prédios e casas. O

Capitão Rick Henderson contrata Stake porque ele conhece Sinan melhor do que

ele e os outros militares encarregados do caso.

Stake viaja para Sinan usando a tecnologia Theta que já vimos desde a

Guerra Azul e imediatamente encontra a resistência do superior de Henderson, o

Coronel Dominic Gale, um homem radicalmente contra a presença de civis no

local.

Nesta parte, eu confesso que fiquei meio incomodado. Gale é um

personagem um tanto bidimensional se comparado a todos ao seu redor – sempre

zangado, sempre coçando a careca, ele é praticamente um personagem

asimoviano. (Uma coisa que eu não consegui parar de pensar durante toda a

leitura de Blue War era: por que diabos Gale não mandou Stake de volta de uma

vez, já que ele é o superior de Henderson?

Mas, por outro lado, há uma série de outros personagens bem melhor

delineados do que Gale. Como, por exemplo, Ami Pattaya, uma cientista

hermafrodita com a qual Stake tem um caso passageiro; o Capitão Ha Jiin Hin

Yengun, que ajuda Stake, ainda que um pouco a contragosto, mas porque no fim

Mark Newton

Blue War

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essa colaboração ajudará os dois lados... e Thi Gonh, que volta desta vez de forma

mais concreta e menos misteriosa. Stake vai encontrar sua ex-amante numa

aldeia pobre de Sinan, onde ela vive como fazendeira com Hin, seu esposo. Ela não

tem filhos, e não importa um dia ela tenha sido uma heroína de seu povo: Hin a

despreza e maltrata – isso porque o caso de Thi Gonh com Stake se tornou

amplamente conhecido depois da guerra, e seu apelido foi mudado de “Assassina

da Terra” para “Amante da Terra”, o que no mundo dela é imperdoável.

Cego por um amor que nunca morreu em seu coração, Stake acaba

confrontando o marido de Ti Gonh e suplica para que ela volte com ele à sua

dimensão. Mesmo dividida, ela não pode dar as costas à toda a sua cultura. Num

primeiro momento, Stake não consegue entender isso, mas ele sabe, no fundo,

que sua própria condição de transmorfo o torna um homem sem tradição, e talvez

todo o problema esteja aí.

As histórias de Thomas parecem todas girar em torno do tema do simulacro

(seu conto na antologia The New Weird, Immolation, é um excelente exemplo

disso). Para citar a mim mesmo em minha resenha da antologia no site The Fix:

(...) A personagem principal me lembrou fortemente

do conto Specialist, de Robert Sheckley, e apagou a

impressão não tão boa que tive com os "Oscars," uma

espécie de robô-segurança apresentado em Deadstock, e

que comparei aos personagens da Série Animada do

Batman dos anos 1990 em uma resenha no meu blog.

Minhas desculpas ao Sr. Thomas.

Não que eu goste dos tais robôs-Oscars, como deixei claro acima – mas o

caso é que eu estou gostando cada vez mais das histórias de Jeffrey Thomas,

porque é possível ver o work in progress em seus escritos, e isso para mim tem um

valor enorme. Jeffrey Thomas é um autor que merecia ser publicado no Brasil.

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Como surgiu a idéia de criar um personagem como Jeremy Stake, com

sua doença Caro turbida?

Bem, Stake surgiu num conto que eu estava escrevendo para um livro

chamado Hardboiled Cthulhu, uma antologia lovecraftiana para a qual eu havia pensado em escrever

uma história ambientada em meu universo de Punktown. Mas eu acabei não conseguindo cumprir o

prazo, e também senti que essa história, então intitulada My Little Deity (Minha pequena divindade,

em português), precisava de mais espaço para ser contada. Então eu acabei entregando uma

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Eu não conhecia nada a respeito de Jeffrey Thomas até ler seu conto In His Sights, publicado no volume 1 do The Solaris Book of New Science Fiction, encontrado numa prateleira obscura da Livraria Cultura no final de 2007. Talvez porque fosse a história que abria o livro, ou talvez porque seu protagonista, o camaleônico detetive Jeremy Stake, fosse uma figura interessante, acabei comprando na seqüência seu primeiro romance tendo Stake como personagem principal, Deadstock, assim que foi publicado. Embora esse romance não tivesse me atraído tanto quanto o conto, gostei mesmo assim, e meu interesse em ler mais sobre esse personagem estranho não parou por aí. Logo, foi só Thomas publicar o segundo romance de Stake, Blue War, que comprei imediatamente – e deste eu gostei bem mais. (Confiram a resenha.) Jeffrey Thomas concedeu a entrevista a seguir via e-mail para o blog Post-Weird Thoughts, onde ele explica mais sobre a personalidade de Jeremy Stake, a cidade bizarra de Punktown e seus projetos. Enjoy.

história mais antiga para a antologia, e, quando a editora Solaris me convidou para enviar para

eles um romance ambientado em Punktown, My Little Deity foi expandida e se tornou

Deadstock. Em My Little Deity eu via Stake como um detetive mais convencional, cansado de

guerra detective (mentalmente, eu imaginava Sean Penn no "papel"), mas quando a Solaris me

pediu para enviar um esboço de personagem de Stake, achei que deveria torná-lo mais

diferenciado para garantir o contrato! Foi aí que criei sua capacidade mutante de alterar o rosto

para assumir a aparência de outra pessoa, consciente ou inconscientemente, se ele fixa o olhar

por muito tempo sobre a pessoa. Pedi ao meu irmão mais novo, Craig, que leva jeito com

idiomas, para me ajudar a bolar um nome em latim para a doença dele, algo que definisse a

carne dele como estando sempre "em movimento". Craig me deu a expressão Caro turbida, e eu

achei que ela soava científica o bastante para suspender melhor a descrença do leitor sobre

uma habilidade tão milagrosa. Eu levo a ciência além de seus limites em minhas histórias de

Punktown, arrastando-a pelos cabelos, gritando e esperneando até os limites da fantasia e do

sobrenatural. Eu acho que é por isso que minhas histórias de Punktown são muitas vezes

agrupadas com as dos chamados autores New Weird. De qualquer maneira, a Solaris também

me convidou para enviar algo para o primeiro volume de sua série Solaris Book of New Science

Fiction, e eu sugeri escrever uma história sobre Stake para talvez atrair leitores a darem uma

olhada em Deadstock. E daí que vem o conto In His Sights. Ele acontece dez anos antes dos

eventos descritos em Deadstock, antes de Stake se tornar um detetive particular, e conta em

detalhes seu retorno dos combates na chamada Guerra Azul (Blue War) e como os resquícios

dessa experiência se manifestam por intermédio de sua habilidade transforma.

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visita o Vietnã?

Autores como Ian McDonald, Geoff Ryman e Richard K. Morgan têm uma

relação especial com outros países, e diferentes idiomas e culturas. Na sua opinião, por que existe um

interesse tão forte da parte de escritores anglo-americanos pela figura do Outro?

Qual é a sua relação com o Vietnã? O que você aprendeu (e aprende) quando

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TERRA INCOGNITA_

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nos EUA e duas no Vietnã – e me casei com a terceira! No momento em que escrevo isto (NOTA:

esta entrevista foi concedida originalmente para o blog Post-Weird Thoughts e publicada em 7 de

junho de 2008), já estive lá seis vezes, e espero poder viajar para lá muito mais vezes. As pessoas

são cordiais, a comida é absolutamente fantástica, o café é o melhor que já tomei na vida, o país é

colorido, exótico e fascinante. Para alguém que só saiu pela primeira vez dos EUA aos 47 anos, o

Vietnã me ensinou o que seria realmente visitar outro planeta e imergir em uma cultura "alienígena".

Eu queria transmitir essa sensação excitante, às vezes desorientadora em Blue War, onde Jeremy

Stake revisita o planeta onde ele um dia combateu uma raça de pele azul que, eu insinuo, poderia ser

um análogo extradimensional dos vietnamitas, ou pelo menos de asiáticos terrestres.

Eu não havia me dado conta disso, porque sou muito relapso, não li nada

desses caras (Já faz um bom tempo que ando querendo ler Air, do Ryman, e algum livro do Morgan),

mas acho que isso tem a ver com o fato de que somos de países que têm um senso muito importante

de si mesmos, de forma que – apesar do fato de que assimilamos pessoas de outras culturas – temos

uma espécie de sentimento de insegurança ou até de desconfiança para com países que, em nossa

percepção, se aproximem muito de nós, ou pelo menos quando isso acontece além de nossa

experiência de conforto, isso quando chegamos a reconhecer a existência desses países. Mas aqueles

de nós que têm mais sensibilidade e mente aberta, como escritores deveriam ser, querem ultrapassar

essa timidez para além da limitação das fronteiras, para fomentar e nutrir curiosidade sobre outras

culturas. Veja meu comentário acima sobre o fato de que viajar para o o Vietnã tem sido sensacional

para mim por me fazer sentir que eu estou em um lugar completamente diferente. Tenho certeza de

que os outros escritores que você menciona estão sentindo algo essa mesma atração – e uma reação

às últimas décadas de ficção especulativa que talvez olhassem para as estrelas mas não para nossos

vizinhos. Será que parte dessa reação tem a ver com uma tentative envergonhada de compensar ou

pagar pecados de omissão do passado – a "culpa do homem branco"? Talvez. Em parte, a questão não

se resumiria simplesmente a escritores que estão tentando arar um terreno novo e rico para tornar

sua arte mais vívida? Claro. Mas também acredito que isso reflete a redução de distância neste

mundo, e a fusão de tantos tipos diferentes de pessoas. Um futuro que não antecipe e reflita mais

dessa fusão cultural não vai ser realista, nem mesmo para a literatura fantástica.

Minha relação com o Vietnã começou com três mulheres vietnamitas – uma

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A cidade de Punktown, onde Stake vive, é em grande parte (não só pelo

seu apelido, mas também pela descrição que você faz dela) um mix de cyberpunk com weird. No

entanto, às vezes Stake parece estar meio deslocado, trabalhando como uma espécie de

detetive particular de pulp fiction, à moda antiga, que usa até um chapéu "porkpie hat"! Não

parece que Stake fica meio "fora do personagem", sendo um sujeito sensível e sensitivo e se

comportando como um detetive hard-boiled?

Assim como o amálgama esquizofrênico e caótico que é Punktown,

Stake é um homem de muitas faces, literal e figuradamente – contraditório, porque aceita

dinheiro para resolver os problemas dos outros e num primeiro momento pode parecer "nem aí"

com isso, até que acaba se envolvendo de modo tão pessoal que muitas vezes põe a própria vida

em risco, até mesmo quando seus empregadores preferem que ele saia fora. Com sua aparência

em constante mutação, ele é detentor da forma mais definitiva de crise de identidade que existe.

Stake usa o chapéu tipo "porkpie hat" como uma espécie de acessório consciente, uma

assinatura de individualidade para um cara que não confia que seu rosto o torne identificável

nem para si mesmo. Talvez adotar a persona hard-boiled o ajude a ter um senso mais sólido de

si mesmo. Mas, de qualquer maneira, em Punktown vale tudo, e não peço desculpas por

combinar elementos de qualquer gênero que me agrade. Deadstock combina FC, horror e ficção

detetivesca. Funcionando para o leitor ou não, bom, foi muito divertido escrever, portanto deve

ser divertido de se ler. Blue War combina FC com ficção military, thrillers internacionais tipo

Martin Cruz Smith etc.. Quem sabe, talvez meu próximo romance de Punktown seja um thriller

de espionagem, um romance-rosa, uma comédia de humor negro!

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Existe algum aspecto da personalidade de Stake (ou da relação dele com

Thi Gohn) que você gostaria de explorar em histórias futuras? Falando nisso, podemos esperar

novas histórias de Stake no future? Ou algum história de Punktown?

Quais são os seus próximos projetos?

É claro que eu espero trazer Stake de volta. Eu tenho um conjunto de

notas para uma terceira aventura com ele, que envolveria Thi Gonh – sua ex-inimiga que se

tornou sua amante – e os forçaria a papéis adversários, mas por ora eu deixei isso de lado para

uma reavaliação, e para trabalhar em outros projetos nesse meio tempo. Eu tenho um

romance de FC militar/horror em andamento que se passa no universo de Punktown, mas não

em Punktown propriamente dita, e que não envolve Stake. Atualmente ela não tem editora em

vista. Daqui a mais alguns meses, a Raw Dog Screaming Press deverá lançar meu romance de

Punktown Health Agent, do qual gosto muito. Na verdade, escrevi esse livro no final dos anos

1980! É um thriller tipo detetive sobre um agente da saúde pública de Punktown no rastro de

um brilhante artista psicopatar que espalha doenças fatais e outras ameaças biotecnológicas,

tudo em nome de sua arte. E, neste outono, a Dark Regions Press vai publicar Voices From

Punktown, uma coletânea de mais contos meus de Punktown, anteriormente publicados em

revistas e antologias (com uma ou duas histórias inéditas).

Além do que já mencionei acima, tenho escrito uma série de contos para

outras antologias. Uma dessas, para a qual acabei de assinar o contrato, é Darkness on the Edge,

da PS Publishing, editada por Harrison Howe. É uma coletânea de histórias de horror inspiradas

por músicas de Bruce Springsteen (e ele recentemente deu sua bênção oficial à antologia)!

Minha história é is The Room, inspirada pela canção Candy's Room, que, aliás, se passa em

Punktown. Acho que vai ser um livro bem especial! Além disso, estou esperando ansioso o

lançamento do meu romance de horror Letters From Hades, pela Fantasy Foundation, de

Taiwan, para a qual ele foi traduzido para o chinês. Mas o que eu gostaria de ver no futuro

próximo é um dos meus livros traduzidos para o português por algum editor brasileiro

empreendedor. Hmmm...alguém se habilita?

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terra incognita #02

-Três-

Specola não resistiu e comprou o traje cor de shrain

quando viu o manequim que o vestia no The Maledrobe, no

shopping multinível Canberra, em Punktown. O manequim

era um Tikkihotto animatrônico, que virava lentamente para

um lado e para outro, sorrindo e cumprimentando os clientes

próximos à entrada da loja. Como um Tikkihotto vivo, ele

tinha um aspecto completamente idêntico ao de um humano

do sexo masculino, exceto pelos filamentos oculares que

estremeciam de modo bem realista e irradiavam para fora de

seus soquetes afundados no crânio, como vermes se

derramando para fora dos olhos de um morto.

O manequim sem dúvida retratava um Tikkihotto

porque somente os Tikkihottos conseguiam ver e apreciar

com precisão a cor de shrain. Este fato gerava muita

controvérsia. Embora todos reconhecessem a sensibilidade

e capacidade visual superiores dos Tikkihottos,

argumentava-se que alguma espécie de óculos especiais ou

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terra incognita #03

A Cor de Shrain

Era como se a caneca de café estivesse agora dentro de seu peito. Na verdade, ele não sabia onde ela estava realmente

naquele momento. Só sabia que, onde quer que estivesse, era um lugar do qual ele era o dono. Seu próprio armário entre

planos. Um nicho escondido entre espaco e tempo."

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terra incognita #03

chip cerebral deveriam permitir que não-Tikkihottos pudessem ver essa

cor também. Mas não só isso não era possível como também não havia sido

desenvolvido nenhum programa gráfico ou de varredura para revelar a cor

para não-Tikkihottos conforme os Tikkihottos diziam que ela devia ser

vista. Tentativas de conseguir o efeito desejado foram todas desprezadas

pelos Tikkihottos. Mais controvertido ainda era o fato de que a cor não

podia ser vista nem mesmo experimentando-se as percepções de

Tikkihottos por meio de links virtuais e gravações de memórias. Os

Tikkihottos diziam que a coisa não tinha nada a ver com scans ou com

programas, chips ou voyeurismo em RV... ou sequer a ver com seus órgãos

de visão, por mais complexos que fossem. A coisa tinha a ver com como os

cérebros dos Tikkihotto recebiam, processavam e interpretavam o que

seus olhos viam.

Os olhos de Specola interpretavam o terno cor de shrain como a cor

de absinto. Não o verde-esmeralda artificial dos absintos vagabundos, mas

the real stuff, com pedacinhos da erva venenosa flutuando na bebida como

fragmentos de carne numa garrafa de formol da qual um feto deformado

tivesse sido retirado. Ele tinha na geladeira uma garrafa de absinto

autêntico, amargo de matar, e sua cor era de um tipo mais sutil e aguado de

verde, com quase um toque de amarelo, mesmo de cinza. Uma quase-não-

cor de aspecto doentio. Era a melhor forma que ele tinha de descrever seu

terno novo: cor de absinto. Era assim que ele descreveria shrain, o tom

mais popular da estação.

Enquanto completava a compra, que incluía um fez verde-escuro com

uma borla dourada para combinar com o terno (ele não conseguiu

encontrar um fez shrain, e torcia para que um Tikkihotto não achasse que

as peças de sua roupa não combinavam), Specola ouviu um burburinho na

frente da loja. Quando começou a sair para o shopping propriamente dito,

dois seguranças passaram correndo por ele… e quando chegou à entrada,

ele os viu um ladrãozinho das garras do manequim Tikkihotto, que o havia

agarrado e o segurava até que os guardas chegassem.

* * *

Specola havia comprado sua garrafa de absinto com um amigo

bartender em seu bar favorito, Café Prague, na Goitre Lane, um pequeno

tributário metido-a-artístico da Forma Street. Os pintores, poetas e holo-

artistas que freqüentavam o lugar, freqüentemente em pequenos grupos

para conseguirem pagar os aluguéis, se beneficiaram do frisson entre o

éter criativo de seu capilar romântico e o comércio em grande parte ilegal

da artéria pulsante e quente da Forma Street.

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terra incognita #03

O Café Prague foi construído com blocos de lucite verde, de forma

que do lado de dentro se pudesse ver as luzes aguadas do tráfego de rodas e

flutuante que passava ao longo da Goitre Lane, e o movimento ocasional

das pás de um helicarro. Do lado de fora, o interior do café brilhava como

um aquário. Em cada bloco em formato de tijolo, que também compunham

o bar e até mesmo o teto e o chão, havia um grande inseto encerrado como

se em um bloco de âmbar. Mariposas imensas, libélulas de aparência pré-

histórica, invertebrados não-terrestres e mutantes que Specola jamais

havia sequer visto em livros. Era uma coisa quase didática, mas às vezes

um pouco assustadora depois de muito absinto, mesmo que muito diluído

em água e adoçado com açúcar. Uma vez, Specola jurou ter visto as patas

de uma imensa centopéia se mexerem em ondas, como cílios.

Sentado em uma cabine em vez de no bar esta noite, ele ficou olhando

a parede ao seu lado, fixando o olhar num bloco em particular, que

fossilizava um besouro enorme com sua carapaça aberta, da qual se abriam

vários pares de asas iridescentes. Tinha várias mandíbulas com pinças.

Cada bloco tinha sua própria luminosidade suave, talvez uma tintura

fosforescente sutil, de forma que a cor deles se refletia em seu rosto. Os

blocos eram, na cabeça de Specola, da cor de shrain.

Um dedo puxou a borla de seu fez. Specola girou rapidamente e

materializou de modo quase involuntário sua automática – uma Cimitarra

.55 com uma camada esmaltada vermelho-rubi reluzente – em sua mão. Ele

era nervoso demais para carregar uma arma num coldre, e por isso

preferia guardá-la, prontamente acessível, junto ao Baú.

- Uau. Olhe só pra você, todo na estica que nem um gangster de

verdade. – Era Violet, e Blanca estava com ela, como de costume.

Ligeiramente relutante, Specola tirou a cabeça do cabo xadrez de sua

pistola, que estava muito bem dobrada como um origami no Baú. Violet

tinha uma carapaça espessa de cabelos ruivos frisados e olhos de lince

impossivelmente claros, e uma voz meio pastosa, algo entre um gemido

bêbado e uma risada drogada. Specola a tinha visto corer atrás de uma

amiga um dia, de brincadeira, e ela corria de um jeito tão estranho que

dava vontade de rir; ela não lhe parecia nem de longe perigosa fisicamente.

Entretanto, ele sabia que devia ficar com um pé atrás em relação a ela,

assim como com Blanca, que ele vira quebrar os dois dentes de frente de

um admirador inconveniente naquele mesmo estabelecimento jogando a

cabeça dele de encontro ao balcão do bar. Blanca era alguns anos mais

nova do que sua parceira, talvez uns dezenove anos, e tinha os cabelos

pretos bem presos atrás e o rosto mais mal-encarado que ele já tinha visto

numa mulher, uma expressão que nunca mudava, a não ser nas raras

ocasiões em que ela sorria, o que era ainda mais intimidador. Seus olhos

flamejantes estavam sempre semicerrados, e uma pálpebra parecia mais

caída que a outra, conseqüência talvez de um soco cujos danos nunca

foram reparados cosmeticamente.

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terra incognita #03

As duas mulheres se sentaram em frente a ele na cabine. Violet já

estava com um martini que havia pegado no bar. Blanca, uma garrafa de

cerveja Zub. Violet falou pastosamente: - Parece que o Sr. Celacanto acha

que você vai dar um belo de um gangster de verdade um dia desses, Fritzie.

Ele ficou muito impressionado com a maneira como você executou aquele

seu último truque. Então ele está com expectativas mais elevadas para o

próximo.

Specola se mexeu em seu assento, olhou de relance para uma mesa

ao lado e disse baixinho: - Não sei se eu me consideraria um gângster...

- Uau. Não quis ofender. – Violet tirou discretamente da bolsa seu

cartão de crédito. Specola ficou olhando enquanto ela digitava um número

em seu teclado e o segurou na palma da mão, depois pegou seu próprio

cartão e segurou-o firme enquanto ela passava o dela sobre o dele,

cobrindo um ponto de ativação com a digital do polegar para transferir

dinheiro de sua conta para a dele. Com um sinal sonoro, o cartão dele

anunciou que a transação havia sido efetuada.

- Parece que você tem gastado um pouco do dinheiro por conta, Fritz –

Blanca disse com seu habitual grunhido de desprezo. Beliscou o punho do

paletó novo dele. – Terno caro. Você é tão bonito que me deixa toda

molhadinha. – Ela sorriu. Tinha dente pra caramba, quase como uma nativa

Choom. Quando ela sorria, parecia possuída por um demônio.

- É, Fritz, bacana. – Violet guardou o cartão. – Mas a cor é meio nhé.

- É shrain – ele disse, meio envergonhado.

Blanca vomitou uma gargalhada. – Shrain. Cara, você comprou a

roupa nova do imperador. Isso aí é cinza, cara. Cinza.

-Dois-

Quando tinha quinze anos, Specola e sua mãe ocupavam um

apartamento logo embaixo de uma mulher que morava com o irmão. Agnes

Rogers era viúva, e seu irmão Gerald Spell era um tipo de deficiente que

vivia sob os cuidados dela. Até hoje, Specola só havia ouvido a tosse

abafada que vinha do teto de seu quarto, mas nunca vira nem encontrara

pessoalmente aquele homem.

Nessa tarde, a mãe de Specola recebeu uma ligação de sua vizinha de

cima, pedindo socorro. Ela chegou em casa do trabalho e viu que o irmão

tinha caído da cama e estava no chão. Então Specola entendeu o ruído seco

e pesado no teto de seu quarto pouco depois de terminar seu dever de casa,

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terra incognita #03

e agora se sentia culpado porque não havia dito nada sobre isso a sua

mãe... esperou que ela lhe perguntasse se ele havia ouvido alguma coisa,

mas isso não aconteceu. Em vez disso, ela lhe disse que Agnes tinha

perguntado se ele não podia subir e ajudá-la a colocar seu irmão de volta à

cama.

Agnes o encontrou na porta, e o conduziu, dentro do apartamento

alienígena, até o quarto pequeno e sombrio do Sr. Spell. Em tamanho e

formato, ele correspondia ao seu próprio, logo abaixo, mas as diferenças

mais notáveis além da figura no chão era o ar doentio, um cheiro de leite

amargo, nascido de um ambiente fechado. E a fonte do cheiro era o homem,

ou quase-homem, aos seus pés.

Ele vestia calças de pijama, mas seu torso estava nu e inchado como

se fosse uma bolha de plástico. Não tinha cabelos, nem sobrancelhas e

pestanas, e os braços estranhamente finos do homem ficavam dobrados

junto ao corpo, as mãos apertando as faces em desespero, olhos azuis

arregalados entre alguns dos dedos abertos. Então Specola percebeu que

as mãos do homem não estavam pressionadas no rosto, mas fundidas ali.

Como se seus dedos tivessem escorregado para dentro da pele. A mão

esquerda, na verdade, estava quase inteiramente absorvida, até o pulso.

- Eu peguei isso em Ram – o homem disse para ele com uma voz rouca,

os olhos azuis muito conscientes apesar da turgescência imóvel de seu

corpo. – Eu estive nas Forças Coloniais de Segurança lá.

- Não se preocupe – Agnes acrescentou com um suspiro, agachando-

se para passar as mãos por baixo dos ombros do irmão. – Não é contagioso.

Pode pegar as pernas dele?

Meio levantando, meio empurrando o corpo para o lado da cama e

finalmente colocando-o em cima dela, eles quase o deixaram cair uma vez.

O peso morto indefeso, e a gordura mole de bebê de seu corpo, eram coisas

embaraçosamente íntimas. Agnes puxou um lençol sobre ele num gesto

brusco de impaciência, e então grudou um disco adesivo em seu ombro e

começou a digitar num monitor que ficava ao lado da cama. – Pare de

desconectar isso, Gerald. Se você não tivesse feito isso, eu teria recebido

um alerta no trabalho. E pare de tentar se levantar; você sabe que não

consegue.

- Eu não estava tentando. Rolei e caí. Eu estava tendo um sonho –

disse o Sr. Spell. – Eu bem que podia ter uma cama maior.

- E eu bem que podia ter mais dinheiro. Fritz – Agnes se virou para ele.

– Pode ficar de olho nele por uma hora para garantir que ele fique bem? Eu

vou comprar umas coisas e apanhar o remédio dele. Eu te dou cinco munits.

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terra incognita #03

- Não precisa me pagar – Specola lhe disse com humildade.

Spell deu um muxoxo esquisito nessa hora. A irmã dele não reclamou

da oferta de Specola, e foi embora. Desconfortável, com medo de olhar

para o homem, porque não queria que ele se sentisse envergonhado,

sentou-se numa cadeira perto da parede. Spell resmungou numa voz cheia

de muco: - Não precisa dar uma de babá, garoto; não estou tentando fugir

como ela pensa. Pode descer. Ou então vá ver VT no outro quarto.

- Estou bem aqui – Specola disse mansinho, fingindo olhar ao redor e

vendo fotografias emolduradas de algum lugar tropical exótico. Templos

de cores vermelhas e douradas aninhados entre vegetação azul-

esverdeada. Numa holofoto, a vegetação se mexia, as nuvens rolavam pelo

céu e várias libélulas verdes de dimensões pré-históricas flutuavam da

borda de uma moldura até a outra. Depois de tudo isso, seu olhar acabou se

voltando para uma cômoda encostada na parede ao seu lado.

- Gostou? – Spell perguntou. – Trouxe isso de Ram. É bonito, não é?

Era. O baú, ou cômoda, era pequeno e delicado, feito de uma madeira

pintada com uma camada grossa de azul índigo laqueado. Bordas

douradas, e desenhos pintados a ouro: insetos voando sobre suas gavetas,

e maçanetas de ouro em forma de algum tipo de casulo.

- Minhas duas irmãs querem isso. Agnes, e minha irmã que mora em

Miniosis. Quando eu morrer, elas vão passar por cima desse meu corpo

podre para conseguir essa beleza. E sabe de uma coisa, garoto?

- O quê – Forçando o olhar a se afastar daquela peça exótica de

artesanato, Specola olhou para ele.

- Não quero que nenhuma das duas ponha as mãos nisso. Nisso não.

Tive isso no meu quarto em Ram por oito anos. – Os olhos azuis do homem,

por entre seus dedos borrados, por acaso haviam se voltado na direção da

holofoto onde as libélulas voavam de um lado para outro num ciclo infinito?

- Oito anos.

Specola voltou seu próprio olhar para o baú maravilhoso, onde viu

uma tênue reflexão de seu rosto no brilho do verniz.

- Quando eu morrer, não quero que aquelas hienas fiquem com ele – O

Sr. Spell sussurrou com sua voz rouca.

-Quatro-

Com a adrenalina que percorria seu corpo como uma centopéia, e o

estômago dando voltas, a última coisa que Specola parecia precisar antes

de ir ao museu era café. Mesmo assim, estacionou seu hovercarro no

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terra incognita #03

estacionamento de um pequeno café da moda, o Mutter’s Java Bar. Era no

mínimo um jeito de matar o tempo um pouco mais. E também, apesar de

estar trabalhando para o Sr. Celacanto, ele não trabalhava estritamente no

horário comercial. Specola já tinha tido trabalhos do tipo. Depois de algum

tempo, ele achou que devia ter um despertador na cabeceira da cama. Um

ao lado da privada. Ele nunca mais queria ter de passar por isso

novamente.

Esquentando um banquinho na ponta do longo balcão curvado do bar,

Specola ficou espionando uma mulher sentada a uma pequena distância

dele. Era uma kaliana, linda, sua pele cinza como pedra polida e olhos

pretos como obsidiana, com as escarificações religiosas de seu gênero.

Mas ela também era uma mulher moderna, que ostentava

escandalosamente a ausência do turbante azul feito para ocultar seus

cabelos negros espessos. Sua beleza e sua cultura a tornavam ainda mais

inatingível, ainda mais desejável para ele. Ela olhou de relance para

Specola apenas uma vez, cruzou o olhar com o dele antes que ele pudesse

desviar, antes sequer que ele pudesse pensar em sorrir, então virou a cara,

ignorando-o... mesmo ele estando tão bonito com seu terno e fez novos.

Ela deixou uma gorjeta no bar; algumas moedas. Depois foi

embora. Os olhos de Specola a acompanharam até a porta, e quando ela foi

embora, voltaram ao lugar onde ela havia estado. A caneca branca pesada.

A colher sobre o guardanapo. As moedas.

Specola pensou em roubar as moedas (não porque fosse dinheiro,

mas porque tinham pertencido a ela), mas não quis que a garçonete ficasse

sem o dela. E não queria que a garçonete ficasse zangada com a kaliana,

especialmente se ela fosse freqüentadora regular do local.

Em vez disso, Specola voltou seu olhar para a caneca, e o fixou ali.

Em sua mente, ele viu a caneca nem sequer como um holograma, mas

como uma fotografia bidimensional. Uma fotografia que ele então segurou

em suas mãos. Essas mãos astrais dobraram então a fotografia ao meio,

fazendo uma marca nítida. Dobrou mais uma vez no outro sentido. E de

novo. E mais uma vez. Para garantir que o pacote permanecesse bem

fechado, quanto menor se tornava.

Então, quando a imagem dobrada não era maior do que um

comprimido, ele apertou-a contra o umbigo. O umbigo de sua mente, como

um orifício situado na parte frontal de seu cérebro. Ele ficou apertando a

imagem ali até ela entrar dentro dele, em um interior escuro, inseriu a

pílula até ela desaparecer, dentro de seu cofre. Sua caixa de depósito de

segurança. O lugar que ele começou a chamar, na adolescência, de seu

Baú.

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terra incognita #03

E, de fato, era como se a caneca de café estivesse agora dentro de seu

peito. Dentre de seu corpo físico. Mas ele não sentia seu peso, sua dureza. Na

verdade, ele não sabia onda ela estava realmente naquele momento. Só sabia

que, onde quer que estivesse, era um lugar do qual ele era o dono. Seu

próprio armário entre planos. Um nicho escondido entre espaço e tempo.

A garçonete estava de costas quando a caneca desapareceu do balcão

num piscar silencioso. Quando se virou, recolheu as moedas, pegou a colher e

o guardanapo e foi para outro ponto do balcão para encher novamente a

caneca de outro freguês.

Specola deslizou seus olhos ao longo do balcão para o ponto direto à sua

frente, e ficou encarando um espaço manchado por um anel de café logo à

direita de sua própria caneca pela metade.

Em sua mente, seus dedos tocaram a pequena depressão preta. Como

pinças, elas seguraram um objeto, uma semente, e o puxaram. Então, com as

duas mãos, ele se pôs a trabalhar rapidamente, desdobrando o objeto,

tornando-o maior e mais largo, até abrir inteiramente a foto e alisá-la no bar à

sua frente e ver a imagem da caneca de café nela e então a caneca de café da

mulher kaliana estava ao lado da sua própria, como as canequinhas

bonitinhas de um casal.

A caneca de cerâmica ainda continha um terço de café puro. Specola

levou-a aos lábios e provou. Ainda quente. Saboreou a cera da mancha de

batom preto da mulher na borda da caneca, antes de depositá-la em cima da

mesa e apanhou suas próprias moedas... do bolso convencional de suas

calças. Só no Baú ele armazenava grandes quantias de dinheiro... juntamente

com sua nova e ainda não inaugurada Cimitarra .55.

-Cinco-

A exposição especial nas Hill Way Galleries era intitulada “Pelos Olhos

de Raloom”, e hoje era a abertura ao público.

Specola havia pegado um folder para parecer mais com um fã

entusiástico de arte ao passear pelas várias câmaras grandes e não

conectadas que estavam abertas para a mostra. Chegou até mesmo a

consultar o panfleto ao parar diante de certas peças. A primeira delas – na

entrada da exposição – era um busto de ferro autêntico, gigante e

dramaticamente iluminado de Raloom, a divindade de uma antiga seita

Choom que acabara há séculos. Assim como seus veneradores, os Choom, – a

raça nativa do planeta – Raloom exibia uma boca que ia de orelha a orelha,

formando uma linha reta quando fechada. Os olhos da enorme cabeça de

ferro eram ocos; neles, lamparinas de óleo perfumado ardiam.

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terra incognita #03

O resto das obras de arte naquelas salas, mais contemporâneas, era

bem menos reverente. Até mesmo um leigo como Specola achou a

abordagem iconoclasta dos artistas previsível, e um tanto imatura em seus

efeitos de choque, por mais que uma peça ou outra fosse muito boa.

Uma peça intitulada “Consagração”, de um artista chamado Rust

Canker, era um tanque selado (felizmente) no fundo do qual repousava um

busto de Raloom feito de plastiargila, não muito diferente do grande busto

de ferro da entrada. Fezes humanas de consistência mole pingavam em

cima do busto, escorriam pelo rosto solene, e acabavam desaparecendo em

buracos no fundo do tanque, para depois serem recicladas e tornarem a

cair pelo buraco acima. Specola recuou para fingir que apreciava melhor,

absorto, o objeto – ou talvez por medo de um rompimento súbito no tanque.

Praticamente nesse mesmo espírito, havia quadros como o de

Vanessa Teak, que retratava Raloom como um cafetão com uma prostituta

em cada braço, e a holo-escultura móvel de Allen Fishbein que mostrava

Raloom sodomizando uma mulher terrestre vestida como freira. Havia o

Raloom de Chicky Mummer, num ringue de boxe socando o nariz de Jesus,

e o Raloom de Calaca Tableaux, de bandana vermelha e bandoleiras,

enchendo de tiros de metralhadora uma fileira de criancinhas amarradas

em estacas.

Havia um quadro bobo de um Raloom criança com halo na caneça

mordendo e tirando sangue do seio de uma Maria contente, feito pelo

pintor Lovey Ginsberg... numa caixa de vidro uma cabeça real de cadáver

Choom montada e tatuada de modo a se parecer com Raloom, feita pelo

famoso artista de cadáveres Toby Witkin... e (aqui Specola tentou não ficar

tempo demais, para não parecer excessivamente interessado até mesmo

para um conoisseur) o mais recente quadro do renomadíssimo Benedikt

Angelika, que havia morrido com a idade de cento e vinte e três anos

apenas dois meses atrás, antes da abertura dessa exposição.

No pouco tempo que Specola se permitiu ver o objeto, o único objeto

que ele tinha realmente vindo ver, ele passou mais tempo analisando o

tráfego de visitantes do museu – e se preocupando com a exibição aberta

desse artigo em particular, muito embora existisse uma coluna retangular

enorme não muito longe dela – do que analisando o tema da pintura.

Agora ele percebia que havia sido um erro escolher o dia da abertura,

um erro óbvio que um empregado mais profissional do Sr. Celacanto jamais

teria cometido. Não que o Sr. Celacanto tivesse outros empregados com o

talento único de Specola. (Ou habilidade, como Specola preferia chamar

aquilo. Talento implicaria que isso fosse algo que ele aprendeu, praticou,

como tocar violino ou pintar um quadro. Ele havia descoberto essa

habilidade como uma criança descobre que consegue levantar uma pedra

que outra não consegue.)

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terra incognita #03

Mas ele estava ansioso para terminar isso rapidamente. E queria

também agradar ao Sr. Celacanto. E queria o dinheiro que o Sr. Celacanto,

caso ficasse satisfeito, daria em troca.

Esta seria uma exposição popular por algum tempo, Specola pensou.

E, além disso… mesmo que ele tirasse o quadro na frente de todos, como

poderiam saber que ele fora o responsável? Poderiam pensar que ele havia

sido roubado por um teleporte puramente mecânico. Ou talvez até mesmo,

impressionados, acreditar que o desaparecimento era parte da intenção do

artista, e esperar pacientemente (e em vão) esperar que ele se

rematerializasse.

Somente quando ele se afastou, entrando no limiar de um corredor

mal iluminado que dava em outras exposições, ele estudou a pintura,

reproduzida em seu panfleto, para melhor focalizar a imagem na mira de

caçador de sua mente. A pintura retratava o deus Choom Raloom em seu

leito de morte, os olhos encarando vazios o espectador, monitores

hospitalares dispostos ao seu redor. Embora Benedikt Angelika tivesse sem

dúvida captado ali a ansiedade de Raloom com sua própria morte, foi o

antigo vizinho de Specola, Gerald Spell, que imediatamente lhe veio à

lembrança.

O panfleto dizia que, como muitos de seus quadros, Angelika havia

misturado um pouco de seu próprio sangue e saliva às tintas (quando mais

jovem, ele também misturava sêmen). Specola esperava que o Sr.

Celacanto fosse simplesmente um amante das artes, ou um marchand do

mercado negro e que não tentasse clonar Benedikt Angelika a partir de seu

sangue e cobrar resgate por ele.

Mas isso não era de sua conta. Sua tarefa era simplesmente entregar

a obra de arte ao seu novo chefe.

Specola já se via vivendo num apartamento espaçoso e limpo no setor

dos Campos Elíseos de Punktown. E se via dirigindo um hovercarro novo

em folha, pintado na cor da moda (ainda que de difícil visualização), o

shrain. Essas eram coisas que ele não podia dobrar como origami e guardar

no Baú. Bem, talvez o carro – ele tinha medo de “internalizar”, como ele

costumava pensar no processo, um objeto tão grande. Mas, mesmo no caso

de seu caro terno shrain, que ele podia facilmente ter surrupiado para

dentro de si, ele quis pagar em dinheiro. Somente sua arma e ele, depois,

roubado para si mesmo – simplesmente para que não fosse rastreada até

ele caso, Raloom o perdoasse, ele tivesse de usá-la algum dia.

Quando garoto, ele um dia roubara um brinquedo de outra criança. A

culpa daquele ato de desejo e de ganância o assombrava até hoje. Como,

provavelmente, todas as vezes em que ele “internalizava”.

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terra incognita #03

De algum modo, roubar para outro homem parecia algo menos difícil,

menos carregado de culpa. Não eram coisas que ele próprio ambicionasse.

De algum modo, ele se convenceu de que estava apenas fazendo um

trabalho.

* * *

Naturalmente, vários dos autores das obras haviam aparecido

pessoalmente hoje, para serem admirados pelo público, junto com seus

trabalhos. Sem pressa de conhecê-los como vários ali estavam, Specola

ficou olhando à distância alguns deles interagindo. Lá estava Olo Radon,

um Tikkihotto num manto vermelho sedoso que Specola achou que olhou

em sua direção e fez um gesto com a cabeça em aprovação ao seu terno

shrain. Segurando uma taça de champanhe, sua risada tão construída

quanto suas esculturas pulsantes de carne clonada, estava Bud Buddy, que

vestia um traje preto-obsidiana colante tipo armadura, feito, Specola ouviu

dizer, da casca quitinosa de um ser da raça extradimensional dos

coleopteróides. Algumas dessas pessoas eram obras de arte ambulantes.

Um penteado bizarro, que se destacava acima das cabeças dos

demais artistas e seus admiradores, atraiu o olho discreto de Specola.

Então, por uma brecha no aglomerado de corpos, ele viu o dono do

penteado. Era Solomon Gulag, cuja pintura de Raloom sentado de pernas

cruzadas no espaço e mordendo o planeta Oásis como se fosse uma maçã

colhida no Éden havia sido feita em cores primárias infantis, cruas e

irritantes. Gulag estava trajado em roupas bem convencionais, mas usava

na cabeça, como se fosse a mitra de um bispo, uma espécie de gaiola cônica

alta amarrada no alto. Alguma coisa se esbatia silenciosamente contra as

barras estreitas daquela jaula prateada móvel, e, aproximando-se um

pouco mais, Specola viu o que era.

Dentro da gaiola havia uma grande borboleta, que adejava futilmente

de vez em quando, quando não estava se agarrando às barras e batendo

lentamente as asas. Um olho havia sido pintado em cada asa, a menos que

fosse um padrão natural evoluído para assustar predadores, mas parecia

sintético demais. E as cores das asas? Um cinza que era quase verde, ou

verde que era quase cinza, com a mais leve sugestão de amarelo

espreitando nesse mix oblíquo. Não havia como errar. Pelo menos até onde

Specola podia dizer, as asas da borboleta havia sido pintadas ou tingidas

com a cor de shrain.

Uma admiradora estendeu o dedo para a borboleta, tentando

acariciar uma das asas. Specola quase gritou para impedi-la. Ele se

lembrou de que sua mãe certa vez o alertou de que tocar a asa de uma

borboleta faria com que suas minúsculas escamas, semelhantes a

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terra incognita #03

partículas de pólen, se deslocassem, machucando-a. Solomon Gulag não

tentou impedi-la, parecia gostar do carinho dela como se fosse direcionado

para seu próprio corpo.

Alarmado, o inseto voltou a adejar, lançando-se contra as barras opostas

de um jeito tal que mesmo de onde Specola estava ele podia ouvir o barulhinho

de seu corpo, o roçar seco de suas asas. Ele percebeu que estava mais do que

irritado, assim como ficara com a pintura de Solomon Gulag. Ele queria ir até

onde ele estava e puxar aquela gaiola da cabeça dele até a correia que a

prendia cortar seu queixo.

Mas voltou a olhar para o último quadro de Benedikt Angelika. Ele tinha

um trabalho a fazer. Estava perdendo tempo.

Com toda aquela gente, não havia outro jeito de fazer aquilo. Seu

método não era invadir o local após o fechamento, descer do teto por uma

corda, vestido todo de preto. Ao redor do quadro pessoas se aglomeravam em

marés altas e baixas, mas devido à sua própria importância ele nunca ficava

sem ninguém. Concentrou-se nele um pouco atrás da grande coluna

quadrada, e apenas esperou que o mar de corpos ficasse um pouco menos

agitado para poder vê-lo com clareza.

Impressa atrás de seus olhos, a pintura era agora como uma

reprodução, uma fotografia na página de um panfleto. Ele pegou essa página

e, lentamente, destacou-a do resto da encadernação. Então, a página ainda

em suas mãos, ele começou seu ritual meticuloso de dobradura, como quem

dobra uma bandeira em um funeral militar. Ao fundo, uma pequena distração,

ele se perguntou se seu velho vizinho Spell tivera um funeral militar quando

morreu, não muito depois daquele dia em que Specola o ajudou.

O pacote ia ficando cada vez menos e mais apertado. Então, a rápida

inserção dele em seu umbigo secreto. E ele desapareceu da parede onde

estava pendurado. Agora ele estava pendurado numa parede na vastidão

negra de seu Baú.

Pensou ter ouvido um “ooh”, talvez de admiração, e quem sabe um grito

abafado de susto, alguns murmúrios, mas já estava virando de costas (não

muito depressa), já flutuando na direção daquele corredor mal iluminado,

para sair do museu. Mas, não muito à sua frente, ele voltou a ver Solomon

Gulag, com seu penteado de gaiola. Sem mesmo sequer tomar uma decisão

consciente, mas com um sorriso ínfimo no rosto, Specola travou o olhar

naquela gaiola. Ele a segurou em mãos mais fortes, com certeza, do que suas

mãos físicas. Quase com desdém, ele a dobrou.

Ele nunca havia tentado internalizar uma coisa viva antes. Tinha medo

do que poderia acontecer ao animal – ou à pessoa – se o fizesse. Mas será que o

destino da borboleta poderia ser pior do que o atual? Se ele a matasse sem

querer dobrando-a, armazenando-a no espaço talvez se mar do Baú, seria uma

bênção.

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Quando Specola deixou Gulag para trás, ouviu a exclamação dele

quando o peso foi aliviado de seu crânio. Imaginou as mãos do artista

batendo na cabeça como as asas de seu bichinho de estimação roubado.

-Seis-

O apartamento de Specola ficava em Subtown, a parte de Punktown

que havia sido construída abaixo das ruas para maximizar o espaço, já que

a cidade só podia ser construída para cima e para fora até certo ponto.

Subtown não chegava a se estender até os limites de sua gêmea da

superfície, mas mesmo assim era uma cidade. Devido ao céu fossilizado de

concreto de Subtown, até mesmo os prédios eram construídos em escala

miniaturizada; em sua maior parte fileiras de cortiços de telhado achatado,

muitos com lojas ao nível da rua. Specola morava no último andar de um

desses prédios, comprimido em um quarteirão de estruturas quase

idênticas, embora a dele fosse coberta por reboco pintado de cor verde-

limão. Fácil de encontrar quando se volta cambaleando do pub da esquina.

Quando ele acendeu a luz da cozinha para fazer café, uma massa de

espaguete branco coleante começou a descer rapidamente pela pia... como

um cérebro se desmanchando, uma convolução de tecido de cada vez. Da

primeira vez em que ele vira os vermes, ele os havia confundido mesmo

com macarrão, até lembrar que fazia uma semana que não comia nenhum

tipo de massa. Ele sorriu para o último deles quando desceu pelo ralo, como

se dissesse, podem ir, divirtam-se… eu vou embora desta lugar logo

mesmo. Um apartamento nos Campos Elíseos, lá na superfície, ao sol.

Tendo que ligar manualmente sua cafeteria, porque o recurso de

operação vocal não funcionava mais, Specola virou-se casualmente para a

mesa da cozinha para depositar lá o último quadro de Benedikt Angelika,

de um moribundo rei Raloom.

As pontas dos seus dedos se espremeram pelo pequeno buraco de

observação que dava para uma câmara muito maior, quem sabe quão

vasta? Seu sótão de armazenamento, seu museu interior. Após alguns

momentos, elas sentiram a pílula compactada que ele havia espremido lá

dentro, como drogas enfiadas no reto de um contrabandista. As pontas de

seus dedos alcançaram a borda da pílula e começaram a sacá-la para fora.

De alguma forma, como se aquilo fosse muito grande, apesar dele

saber que não era maior do que qualquer coisa que ele houvesse colocado

dentro de si, Specola não conseguia passar a bolota além da abertura de

seu umbigo visualizado.

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Testa enrugando, ele fechou os olhos para concentrar-se melhor.

Talvez estivesse cansado. Talvez estivesse acelerando o processo, não

focalizando de forma apropriada. Ele retirou seus dedos ectoplásmicos,

inspirou, e então os inseriu de novo. Mais fundo desta vez, alargando os

lábios do buraco. De novo, ele encontrou a bolota. A confinou. Devagar,

delicadamente desta vez, procurou extraí-la.

De novo, ela não iria sair por inteiro. Ela se alojou na beira do orifício.

Não que fosse muito grande para escorregar por ele... Não era isso. Ele

abriu os olhos, sua testa ainda mais enrugada. O que então?

Isso nunca havia acontecido com ele antes.

Tentou mais uma vez. E mais uma vez fracassou. Espere uma hora,

ele disse a si mesmo. Coma alguma coisa. Tire um cochilo. Tente mais uma

vez daqui a uma hora..

Ele estava impaciente demais, alarmado demais para fazer qualquer

uma dessas coisas. Ele disparou, pânico escalando, para dentro de outro

quarto. Tentou lá de novo, com se talvez algum comprimento de onda de

algum eletrodoméstico da cozinha pudesse estar o bloqueando, apesar

dele nunca ter experimentado nenhuma interferência deste tipo no

passado. Ele tentou retirar a pintura em seu quarto, deitar a pintura de

Raloom em seu leito de morte na sua própria cama. Mas ela não saía.

Por que isso estava acontecendo? O que poderia estar diferente?

Certamente a galeria não poderia ter armado algum tipo de barreira de

segurança para evitar o teleporte...mesmo porque, ele removeu a pintura

com sucesso. E como eles poderiam encontrar uma maneira de obstruir sua

técnica quando, até onde ele sabia, não havia mais ninguém dotado desta

aberração?

Na pequena sala de estar, onde ele havia falhado novamente, Specola

olhou na direção do programa salva-tela em seu vidtanque. Blanca ou

Violet ou algum outro representante do Sr. Celacanto ligariam para ele

logo, em uma hora, para descobrir como as coisas haviam corrido. Para

combinar um encontro para a troca. Pintura por uma grande recompensa

em dinheiro.

O que poderia estar diferente?

Freneticamente, andando pelo quarto como uma pantera em seu

cercado pequeno demais, como uma borboleta golpeando suas asas contra

a gaiola, Specola reencenou em sua mente sua visita às Hill Way Galleries.

Ele parou abruptamente. A borboleta, golpeando suas asas contra a

gaiola.

Nunca antes, mesmo desde sua infância, quando ele se deparou com

sua habilidade pela primeira vez, ele se atreveu a internalizar algo vivo. E

agora, hoje, ele havia feito...num capricho repentino, semi-consciente.

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- Ahh – Specola exalou suavemente. – Ah, não...

Como é que algo tão pequeno pôde interromper sua habilidade? Como

pôde bloquear a remoção dos objetos inanimados ocultados em seu Baú?

Desesperadamente, Specola tentou remover o dinheiro que ele guardava lá.

Não teve mais sorte. Ele tentou extrair o pacote dobrado de sua pistola

vermelho reluzente. Não pôde. Por fim, seus dedos alcançaram a gaiola que

ele roubara da cabeça do artista Solomon Gulag, a gaiola na qual a coitada

daquela borboleta tingida de shrain, com olhos em suas asas, fora

aprisionada. Se ele pudesse remover este objeto que estava tapando o

buraco, em essência, de todos os outros...

Ele o agarrou. Ele o empurrou facilmente para a beira da abertura. E

lá, não se moveria nem mais um pouco.

- Ah…não... – sussurrou Specola.

-Sete-

Pontualmente, um agente de seu empregador o chamou em seu VT, não

muito depois de sua última tentativa de remover a pintura de Angelika. A

face que preenchia a tela de seu vidtanque pertencia a um homem chamado

Sr. Cisma, com quem Specola não havia lidado antes pessoalmente, mas

quem ele sabia ter uma posição maior do que Violet e Blanca. O rosto do Sr.

Cisma aparecendo gradualmente era um grande sorriso de plástico, como

uma escultura quase realista do museu de arte. – Olá, Fritz.

- Oi, Sr. Cisma.

- Como foi nossa missão esta tarde?

- Ahh... foi bem… até certo ponto...

- Até certo ponto. – O sorriso de plástico perdeu parte de sua largura

tipo Raloom. – E que ponto seria esse?

- Bom... Eu consegui colocar os produtos na sacola (caso a linha

estivesse sendo interceptada) mas, hmm...” Specola remexeu-se para usar

mais analogias - …mas não consegui tirar as verduras do carro.

- O que isso significa?

- Está no Baú. Eu sei que está lá. Mas por alguma razão... – porquê

entregar as particularidades de seu ato tolo? - ...eu não consigo fazer com

que saia do Baú. Está preso lá.

- Bem, senhor Specola, é claro que assim não vai dar – disse

suavemente o Sr. Cisma, apesar de agora seu sorriso ter derretido por

completo.

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- Vou continuar tentando, claro – Specola se apressou em adicionar,

dando um passo inconsciente para mais perto da tela-parede para dar

ênfase urgente, - Vou continuar. Mas...vai levar mais tempo...

- E obviamente você não sabe quanto tempo mais.

- Não, senhor.

- Bem, Fritz…isto é muito decepcionante, claro. Não achávamos que

poderia haver um problema desta natureza...

- E nem eu! Olhe…vou continuar tentando. E eu ligo para você…

- Não. Ligue para Violet.

- Certo. Eu ligo para Violet assim que eu conseguir.

- E você vai conseguir, não vai, Fritz? No fim das contas, você vai

conseguir?

- Sim senhor. É só uma coisa à toa. Nunca, jamais aconteceu antes...

- Momento inadequado para isso acontecer agora. Muito bem, Fritz.

Direi a Violet para aguardar você. Espero que logo.

-Oito-

Por ele estar com fome e não ter nada na geladeira, mas

principalmente porque havia sentido que seu pequeno flat estava ficando

cada vez menor, dobrando como uma de suas pílulas, Specola desceu a rua

até uma loja de iguarias Choom para pegar um sanduíche de brotos e uma

porção de dilkies fritos. Sentado numa das poucas mesas, diretamente à

frente da janela, alternadamente ele observada os veículos passando na

rua e clientes na fila do caixa. Uma colegial gatinha usando uma camiseta

que exibia a estrela da música Del Kahn, ambos terráqueos como ele,

comprou uma salada e a levou para uma mesa não muito longe da sua. Ela

esfregou sua boca com um guardanapo, manchando-o levemente de batom

laranja fluorescente, e largou de lado o guardanapo meio amarrotado.

Specola mudou seu olhar clandestino do rosto bonito para o guardanapo

manchado. Somente Del Kahn parecia observar o que ele estava fazendo.

A jovem não percebeu que o guardanapo havia sumido até que ela

quis esfregar os lábios novamente. Ela deu uma olhada debaixo da mesa,

então simplesmente pegou mais um do porta-guardanapos em sua mesa.

Specola sentiu dentro de si o papel compactamente dobrado. Ele

imaginou que seus dedos astrais podiam sentir a textura do papel, até

mesmo o resíduo ceroso do batom dela, mesmo com a compactação do

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pacote. Mas quando ele começou a puxar ele para fora, para desdobrá-lo,

para materializá-lo ao lado de seu próprio prato, ele não veio.

Simplesmente não vinha.

Era mais do que somente o inseto, ele pensou? Teriam as coisas se

complicado por Angelika ter adicionado seu sangue, sua saliva, fluidos

corporais em suas pinturas? Não: células expiradas. Specola tinha certeza

de que células mortas de pele, óleo dos dedos, tinham maculado cada

objeto que ele já internalizara. Não: era aquela borboleta. Aquela pobre,

maldita borboleta. Primeiro enclausurada por Gulag. Agora, enclausurada

por ele mesmo, de forma ainda mais cruel.

A colegial saiu e ele saiu pouco tempo depois dela, apesar deles terem

partido em direções opostas, e quando Specola chegou ao prédio de

apartamentos cor-de-limão ele avistou dois homens sentados na sacada da

frente tomando café em copos descartáveis. Quando eles o viram

chegando, um cutucou o outro e eles se levantaram. Por um momento

insano, Specola achou que ele deveria virar e correr na direção que a

garota havia tomado. Em vez disso, ele lutou para manter sua passada

regular e casual, e até mesmo sorriu quando os dois homens se moveram

em sua direção. Ele os reconheceu como mais dois do pessoal de Sr.

Celacanto; o mais alto, com os olhos tingidos de azul metálico para

combinar com seu afro azul metálico, era Jerly Bonsu, e a mutação baixinha

e musculosa com uma tromba feia como o de uma anta e olhos remelentos e

sem pálpebras era Jack Feliz. Bonsu sorriu (gente amistosa essa

familiazinha do Sr. Celacanto) e talvez o fungar da pequena tromba de Jack

Feliz continha um significado afável similar.

- E aí, Fritzinho – disse Bonsu em cumprimento. – A gente ficou

preocupado quando viu que você não estava em casa. A gente pensou que

você tinha saltado no metrô para as Colônias Remotas ou algo do tipo.

- Que nada, aqui estou eu – Specola riu, abrindo os braços. – Só saí

para um rango.

A tromba do mutante fungou como se testando sua respiração para a

verdade nesta afirmação. Ele grunhiu, - Teve sorte cavando o pacote,

Specola? – Ele não soava tão afável, no fim das contas.

- Ainda não. Estive tentando. Eu disse ao Sr. Cisma que ligaria para

Violet se tivesse sorte…

- Isso foi há duas horas.

- Eu estou trabalhando nisso, sério. Estou experimentando. Olha, eu

ainda posso colocar objetos pra dentro...eu só não consigo botar eles para

fora de novo.

- Talvez você precise de um desentupidor – brincou Bonsu.

- Talvez eu devesse desentupir você – grunhiu Jack Feliz.

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terra incognita #03

Specola se pegou dando um passo atrás e levantando as mãos. –

Cavalheiros, honestamente, estou fazendo o melhor que eu posso...

- Como é que vamos saber que você está falando a verdade, hein,

Specola? – o mutante grunhiu. – A gente não pode ver dentro de você. Como é

que vamos saber que você não deu uma volta e vendeu a pintura para outra

pessoa?

- Como é? Eu não faria isso! Você acha que eu seria tão estúpido de

armar uma dessas para o Sr. Celacanto?

- Você não seria o primeiro estúpido cujos olhos ele teria que arrancar

com uma colher.

Jerly Bonsu pôs uma mão tranqüilizadora sobre o braço tatuado do

parceiro. – Fritzinho...veja...Sr. Celacanto confiou na sua habilidade. Agora

você diz que sua habilidade está com defeito. É uma má notícia, entende?

- Claro, eu concordo, mas eu não estou escondendo a pintura dele. Eu

não vou vender ela a mais ninguém. Eu não sou um cana disfarçado tentado

prender vocês. Eu quero essa coisa fora de mim tanto quanto ele. Eu quero

meu dinheiro afinal de contas, certo?

- É que o Sr. Celacanto tem um comprador esperando, Fritzinho. E esse

homem está impaciente também.

- Como eu disse... Eu só posso fazer o meu melhor...

Jack Feliz agarrou a borla pendurada no topo do fez de Specola e o

arrancou o chapéu de sua cabeça. Girando o chapéu pela trança dourada, ele

fungou – Você é incompetente, Specola. Você tá cagando tudo. – Ele bateu na

cara de Specola com o fez esverdeada girando. – É melhor você ter logo boas

notícias pra gente. – Ele girou o fez para longe no ar, a mandou rolando para

dentro da sarjeta. Um hovercar que passava fez com que rolasse um pouco

mais, seu feltro agarrando detrito e sujeira.

- Eu quero tanto quanto vocês – respondeu Specola numa voz trêmula,

contendo sua raiva, mas não seu terror.

Ele observou os dois homens vagar para longe, Jerly Bonsu sorrindo

para ele meio se desculpando, meio zombando por cima de seu ombro.

-Nove-

Naquela noite, Specola está deitado em seu sofá-cama desdobrado

olhando a tela vazia do teto de sua sala-de-estar, e com seus poderes de

visualização ele imaginou os verme que neste momento devem estar se

contorcendo no fundo de sua pia...da maneira que seus pensamentos se

contorciam na sua pia de osso.

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terra incognita #03

Deveria ele sair da cama agora, jogar pra cima sua roupa cor-de-

shrain (ele deixara seu fez na sarjeta), fazer as malas e pegar o próximo

metrô para Miniosis, até que ele pudesse, talvez, se teleportar para a Terra

ou alguma de suas outras colônias? Mas se ele fizesse isso, e considerando

que ele não fosse rastreado e assassinado na certa (O Sr. Celacanto tinha

associados em todo lugar), ele nunca pegaria a grande soma em dinheiro

que lhe havia sido prometida pela entrega da pintura de Angelika. Não. Ele

deve ganhar mais tempo, para que pudesse tentar e tentar de novo até que

enfim ele arrombasse seu cofre teimoso. Talvez ele só estivesse doente.

Talvez estivesse sob muito estresse. Talvez ele devesse adaptar sua técnica

de algum jeito…

Finalmente ele caiu no sono. Ele sonhou que estava enganchado a

sistemas de suporte vital que bipavam. Ele sonhou que era o deus Choom

Raloom, se dissipando, exaurido de seus poderes divinos.

- Dez -

Ele estava no telhado plano de seu prédio de apartamentos cor-de-

lima, o céu sólido acima dele era entrecruzado por tubulações e cabos de

energia revestidos, a carcaça queimada de um helicarro beirava as arestas

de duas vigas de suporte. Uma hélice de ventilação coberta por um domo

zunia atrás dele, liberando um cheiro morno de lavanderia, e havia um

colchão manchado aqui em cima, garrafas de vinho descartadas e e bulbos

de gás anódino usados. Ele pusera uma pequena taça de absinto enevoado

no parapeito em ruínas, como um gárgula que observa o tráfego e os

pedestres fervilhando abaixo dele.

Ele os viu chegando e não vacilou, não arfou, apesar de seu coração

bater mais rápido na escuridão enclausurada do seu peito. Ele sentiu-se

imóvel como um gárgula, como uma escultura nas Hill Way Galleries, como

um inseto congelado em uma lasca de âmbar. Eram Blanca e Jack Feliz. Ele

desejou que fossem Violet e Jerly Bonsu, mas ele supôs que não faria muita

diferença.

Quando eles cruzaram para o seu lado da rua, Blanca agarrou Jack

Feliz pelo braço e apontou para cima na direção de Specola. Ele pensou que

deveria acenar para ela, para mantê-los num clima civilizado – mas antes

que ele pudesse, juntos eles apertaram o passo em direção à escadaria

frontal do edifício estreito. Specola deu as costas para o parapeito,

encarando além do telhado a estrutura em forma de quiosque que dava

acesso a ele.

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terra incognita #03

Jack Feliz irrompeu primeiro no telhado, tanta foi a força que Specola

temeu que ele tivesse exagerado, tombando por sobre o lábio do telhado.

De novo, como ontem, ele levantou suas duas mãos. – Ainda estou tentando

– ele deixou escapar.

- E estamos aqui para ajudar você – grunhiu o mutante. – Talvez eu

possa sacudir para fora de você se eu te pendurar na beira do...

Tendo recuado tão rápido quanto pôde, Specola começou a deslizar

para os lados.

- Por favor…não…

Blanca arreganhou os dentes feralmente. – Talvez a gente possa te

dar um incentivo para tentar com mais força, Fritzinho. – Ela tinha na mão

uma adaga Ramon com um lâmina longa e reta. – Talvez a gente até possa

arrancar de você na faca. Você já tentou esta abordagem?

Eles só estão tentando me assustar, disse Specola para si mesmo

desesperadamente, agora deslizando mais rápido para o lado, mas não tão

rápido a ponto de de inspirá-los a correr. Talvez, ele pensou, talvez eu possa

assustá-los também...

Ele olhou firme para a adaga no punho de Blanca. Uma adaga Ramon

como a que seu antigo vizinho Gerald Spell deve ter visto durante seus oito

anos de reserva em Ram...

Mas então Blanca guinou para a frente, para saltar a distância que os

separavam, e os olhos de Specola subiram da adaga para o rosto dela.

Blanca era mais nova que Jack Feliz, talvez com uns dezenove, com

seu cabelo preto preso atrás e o rosto mais carrancudo que ele já havia

visto em uma mulher, uma expressão imutável exceto quando ela

raramente sorria, o que era ainda mais intimidador. Seus olhos febris

estavam sempre apertados e uma pálpebra parecia mais inclinada que a

outra, talvez por causa de uma pancada cujo dano nunca foi reparado

cosmeticamente. Ele viu este rosto belo/carrancudo como uma fotografia

que seus olhos tivessem batido naquele momento em um rápido piscar.

Uma fotografia que ele pegou com suas duas mãos. Mas em seu desespero,

com tão pouco tempo para dobrar, ele fez algo que nunca havia feito antes.

Em vez daquilo, ele esmagou a foto. Ele fez uma bola com ela em suas mãos,

enrolou em uma bola ainda mais apertada entre suas palmas, e a socou tão

forte quanto pôde no seu umbigo para que coubesse lá.

A faca Ramon desapareceu. Assim como a mão que a segurava.

Blanca havia sumido, deixando ninguém entre Specola e Jack Feliz. Se ele

tivesse pálpebras, seus olhos poderiam ter se arregalado de assombro. Em

vez disso, ele parou no meio do caminho e soprou: - Fodeu!

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terra incognita #03

Specola ergueu os olhos para ele e, apesar do medo, sorriu. Por um

raro momento em sua vida, ele sentiu uma confiança enraizada com pernas

sólidas como metal. Ele se sentia como um deus.

Jack Feliz buscava atrás de si algo enfiado no cinturão em suas

costas.

Specola inclinou a cabeça um pouco para a frente, travando seus

olhos nos do mutante.

A arma de Jack Feliz foi impulsionada no espaço entre eles, onde

Blanca estivera. Era uma Cimitarra .55, como a arma perdida de Specola,

mas era verde com partículas douradas em vez de vermelho com prateado.

Parecia um brinquedo.

-Um-

A tarefa da turma do terceiro ano primário era fazer um diorama com

uma caixa de sapatos para exibir a vida pré-histórica do planeta em que

habitavam, Oásis, colonizado pela Terra.

Algumas das crianças haviam realmente se empolgado com o

trabalho, e exibiram grande criatividade e imaginação. Kasey Higgins

havia decidido exibir uma cena submarina. A base do seu diorama estava

cheia de plantas de papel recortado e pedras coladas no papelão.

Pendurados por fios no topo da caixa, que estava deitada de lado, havia

uma variedade de peixes encouraçados e cefalópodes em carapaças

apertadas em espirais. Quando Fritz Specola, de oito anos, parou para

olhar aquele pequeno aquário de papelão, ele gentilmente soprou o móbile

de vida marinha bidimensional para fazer com que elas se mexessem como

se nadando.

Boris Sobol preferiria retratar os animais pré-históricos que voavam,

igualmente suspensas em fios no teto de sua caixa. Quando ele se ajoelhou

para inspecionar este mostruário, Fritz também soprou estes animais: algo

como uma estrela do mar gigante com redes largas entre seus cinco

braços, suspensas em correntes de ar esfumaçado de um vulcão (Boris

havia esculpido um vulcão em plastiargila), uma água-vida transformada

em pára-quedas, e um grupo de criaturas como faixas em uma aurora

boreal viva. Se Kasey havia criado sua vida aquática em papelão, Boriz

havia feito em papel, e esses animais mais leves flutuavam de forma mais

dramática quando soprados, Fritz assomando sobre eles, como um deus

soprando vida em suas criações.

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terra incognita #03

Chris Neale escolhera conjurar os insetos de um período pré-

histórico anterior, antes da evolução de formas superiores. Ele esculpiu os

animais em plastiargila, mas a miríade de patinhas era feita de fios ou de

dentes quebrados de pentes. Havia uma espécie de libélula gigante, uma

criatura enorme tipo centopéia e um besouro imenso com a carapaça

aberta, da qual se espalhavam diversos pares de asas feitas com celofane

iridescente. Ela tinha várias mandíbulas com pinças.

Havia muito barulho na sala de aula, muitas exclamações de

admiração tanto de alunos quanto de professores. Fritz, entretanto, não

esperava tanto louvor para seu modesto projeto. Ele não era nem um

pouco artístico. Em seu próprio viveiro falso, ele colara vários de seus

monstros pré-históricos de brinquedo ao piso de sua caixa e lá enfiou uns

pedaços de alface para fazer de vegetação, vulcões grosseiros e nuvens ao

fundo pintadas com lápis de cera.

Ele, no entanto, ficou aliviado a over que ele não era a única criança

que usara esta técnica, assim que chegou ao último diorama. Pertencia a

Simon Pearl. Assim como ele, Simon havia simplesmente desenhado as

árvores no cenário no fundo da caixa, apesar de suas nuvens serem tufos

colados de algodão. Seus animais também eram brinquedos de plástico,

nem mesmo colados no piso do diorama, mas simplesmente colocados lá.

Mas Fritz estava mais intrigado com este mostruário mais do que com

qualquer outro, porque ele adorava monstros pré-históricos de brinquedo

e ele nunca antes vira estes figuras em particular.

Todas as três bestas em miniatura eram sedutoras, em especial o

Retalhador bípede, assim apelidado por causa das quatro lâminas ósseas

entesouradas como pétalas de flores em torno de sua boca circular. Tinha

olhos como os orientais Terráqueos e Fritz gostava da forma como seus

braços dianteiros estavam suspensos, suas pinças de lagosta

arreganhadas para o ataque. O Retalhador de plástico era de uma cor um

tanto cinza, talvez verde. Talvez até com um pouco de amarelo na mistura.

Uma cor evasiva, quase como uma não-cor, mas parecia a cor perfeita para

este monstro que Fritz se doía para catar do diorama e embrulhar em sua

camisa.

Ele não podia fazer aquilo. Alguém o veria. E seria errado...

Mas ele encarou o monstro, e o encarou desejando que pudesse

roubá-lo, fantasiando que poderia rapidamente escondê-lo contra seu

peito antes que alguém pudesse vê-lo, e piscou, e viu o Retalhador

vividamente em sua mente, mas não podia mais vê-lo dentro da caixa de

sapatos. Ele havia desaparecido.

Chocado, quase em pânico, Fritz se afastou do diorama de Simon

Pearl. Ele atravessou o salão tão rápido, mas tão imperceptível, quanto

pôde. Rezou para que ninguém achasse que ele o havia apanmhado. Não

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terra incognita #03

havia. Ele nunca tocara o objeto de cor estranha. Ele espiou de volta em

direção à caixa, como se ele pudesse ver a estatueta lá novamente. Talvez

ela tivesse apenas tombado por força de sua respiração...

Mas ele sabia que ela havia sumido, porque ele depois ouviu Simon

gritar surpreso. E então, no final do dia, do outro lado da sala, ele viu Simon

chorando e sendo confortado por sua professora. Sua professora, que de

forma austera dirigiu-se à classe e aconselhou que quem quer que tenha

roubado o brinquedo de Simon Pearl fora bastante cruel em fazê-lo, muito

avarento e imprudente e deveria pensar em devolver o objeto de imediato.

Antes mesmo que Fritz encontrasse o brinquedo dentro de si, mesmo

antes dele ter encontrado uma forma de retirá-lo e tê-lo tocado e brincado,

ele se sentiu culpado. De alguma forma, apesar dele nunca ter suspeitado

de sua habilidade, ele soube que era responsável no momento em que o

brinquedo desaparecera.

Entretanto, mesmo depois dele ser capaz de materializar de volta o

objeto, ele não o devolveu. Em parte era avareza. Em parte era medo de ser

pego como o culpado se ele o devolvesse, mesmo anonimamente. Mas

porque ele estava com medo de sua mãe perguntar onde ele o havia

conseguido, ele sempre o retornava para a caixa de brinquedos escura

dentro dele, quando ele acabava de brincar em segredo, atrás da porta

trancada de seu quarto.

Apesar de parecer fantasioso que Simon Pearl pudesse ficar

traumatizado com uma perda tão pequena, Fritz sempre achou que Simon

parecia deprimido depois daquele dia. Isto é, naquelas ocasiões em que

conseguia se fazer olhar para ele.

Após um tempo não muito longo, Fritz não mais retirou o brinquedo

para brincar. Ele preferiu deixá-lo escondido, invisível, nas trevas como um

cadáver enterrado.

-Onze-

Depois de fazer uma busca em vão no apartamento, Violet e Jerly

Bonsu finalmente decidiram experimentar o telhado cor-de-limão do

prédio de apartamentos e, assim que eles emergiram de sua estrutura de

acesso em forma de quiosque, perceberam que haviam encontrado não só

Fritz Specola, mas seus dois associados desaparecidos.

Specola estava encostado em um grande ventilador, com um buraco

de bala logo acima da sobrancelha direita. O sangue havia descido por sua

camisa branca, saturando-a, e formou uma poça no colo de seu terno caro.

Não era difícil imaginar como ele havia morrido; Jack Feliz estava caído ali

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terra incognita #03

perto, com uma Cimitarra .55 verde fechada numa das mãos. Mas Bonsu

não conseguiu imaginar como seu amigo havia morrido. Ele se ajoelhou ao

lado dele, e não detectou nenhum sinal de violência. Ele ergueu o olhar

para Violet, que estava agachada ao lado Blanca. Ela não parecia estar

tendo muito mais sorte em determinar a causa da morte da amiga.

Em pé, Violet olhou ao redor um pouco mais e então exclamou: - Ali! –

correu para o parapeito, contra o qual estava encostada uma pintura. Era

um quadro do deus Choom Raloom, terminalmente doente num leito de

hospital.

- Aquele mentiroso filho da puta – resmungou Bonsu, voltando a olhar

para Specola. Então seus olhos bateram numa peça de mobília um pouco

distante. Ele era capaz de compreender a presença daquele colchão

manchado, mas porquê alguém traria uma bela cômoda destas para cima

do telhado? Ele se aproximou para ter uma visão melhor. Talvez valesse a

pena levar isso com eles também. O baú, ou cômoda, era pequeno e

delicado, feito de madeira espessamente laqueada em azul-índigo.

Detalhes em ouro e desenhos pintados de ouro: insetos voando por sobre

suas gavetas, e puxadores de ouro moldados como casulos de alguma

espécie.

Algo do planeta Ram, Jerly Bonsu arriscaria. À toa, ele abriu uma das

gavetas. Ele se alegrou ao abrir. Lá estava um maço grosso de notas, as

quais ele enfiou num bolso frontal após ter certeza que Violet não estava

olhando.

Em outra gaveta do belo baú ele encontrou a Cimitarra .55,

vermelho-esmaltada com glitter prateado. Ele a retirou e a enfiou na frente

de suas calças.

Em uma terceira gaveta ele encontrou um monstro pré-histórico de

plástico, um Retalhador, e ele o segurou em frente aos olhos só por um

momento antes de sacudi-lo para longe, onde ele deslizou até parar contra

a perna de Specola.

Em cima da bela cômoda índigo estava uma gaiola cônica prateada e

na gaiola uma borboleta morta, apesar dos olhos pintados em suas asas

imóveis encararem, abertos, contra um fundo pintado de shrain.

Tradução: Jacques Barcia e Fábio Fernandes

EditoresFábio Fernandes e Jacques Barcia

ArteTiago Casagrande

Ilustração do blog: Fábio Cobiaco

Contato: [email protected]

Apoio:

NOV > 2008

Ilustração de capa: Mão, colagem digital de Aurora Barbosa

Autores:Adriana Amaral Jeffrey ThomasLudimila HashimotoTibor Moricz

Edição #03

Nossos agradecimentos a Tiago Casagrande e Leandro Gejfinbein e a toda a gangue do condomínio Verbeat pelo imenso apoio, e por acreditarem.

LICENCIADO EM CREATIVE COMMONS

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