nós -- variações do manifesto

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Nós Variação do Manifesto Dziga Vertov O irmão de Dziga Vertov, Mikhail Kaufman Nós nos denominamos KINOKS para nos diferenciar dos "cineastas", esse bando de ambulantes andrajosos que impingem com vantagem as suas velharias. Não há, a nosso ver, nenhuma relação entre a hipocrisia e a concupiscência dos mercadores e o verdadeiro "kinokismo". O cine-drama psicológico russo-alemão, agravado pelas visões e recordações da infância, afigura-se aos nossos olhos como uma inépcia. Aos filmes de aventura americanos, esses filmes cheios de dinamismo espetacular, com mise en scène à Pinkerton, o kinok diz obrigado pela velocidade das imagens, pelos primeiros planos. Isso é bom, mas desordenado e de modo algum fundamentado sobre o estudo preciso do movimento. Um degrau acima, do drama psicológico, falta-lhe, apesar de tudo, fundamento. É banal. É a cópia da cópia. NÓS declaramos que os velhos filmes romanceados e teatrais têm lepra. — Afastem-se deles! — Não os olhem! — Perigo de morte! — Contagiosos! NÓS afirmamos que o futuro da arte cinematográfica é a negação do seu presente. A morte da "cinematografia" é indispensável para que a arte cinematográfica possa viver. NÓS os concitamos a acelerar sua morte. NÓS protestamos contra a miscigenação das artes a que muitos chamam de síntese. A mistura de cores ruins, ainda

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Nós nos denominamos KINOKS para nos diferenciar dos "cineastas", esse bando de ambulantes andrajosos que impingem com vantagem as suas velharias.

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  • NsVariao do Manifesto

    Dziga Vertov

    O irmo de Dziga Vertov, Mikhail Kaufman

    Ns nos denominamos KINOKS para nos diferenciar dos"cineastas", esse bando de ambulantes andrajosos queimpingem com vantagem as suas velharias.

    No h, a nosso ver, nenhuma relao entre a hipocrisia e aconcupiscncia dos mercadores e o verdadeiro "kinokismo".

    O cine-drama psicolgico russo-alemo, agravado pelasvises e recordaes da infncia, afigura-se aos nossosolhos como uma inpcia.

    Aos filmes de aventura americanos, esses filmes cheios dedinamismo espetacular, com mise en scne Pinkerton, okinok diz obrigado pela velocidade das imagens, pelosprimeiros planos. Isso bom, mas desordenado e de modoalgum fundamentado sobre o estudo preciso do movimento.Um degrau acima, do drama psicolgico, falta-lhe, apesarde tudo, fundamento. banal. a cpia da cpia.

    NS declaramos que os velhos filmes romanceados eteatrais tm lepra.

    Afastem-se deles!

    No os olhem!

    Perigo de morte!

    Contagiosos!

    NS afirmamos que o futuro da arte cinematogrfica anegao do seu presente.

    A morte da "cinematografia" indispensvel para que aarte cinematogrfica possa viver.

    NS os concitamos a acelerar sua morte.

    NS protestamos contra a miscigenao das artes a quemuitos chamam de sntese. A mistura de cores ruins, ainda

  • que escolhidas entre todos os tons do espectro, jamais daro branco, mas sim o turvo.

    Chegaremos sntese na proporo em que o ponto maisalto de cada arte for alcanado. Nunca antes.

    NS depuramos o cinema dos kinoks dos intrusos: msica,literatura e teatro. Ns buscamos nosso ritmo prprio, semroub-lo de quem quer que seja, apenas encontrando-o,reconhecendo-o nos movimentos das coisas.

    NS os conclamamos:

    a fugir

    dos langorosos apelos das cantilenas romnticas

    do veneno do romance psicolgico

    do abrao do teatro do amante

    e a virar as costas msica

    a fugir

    ganhemos o vasto campo, o espao em quatro dimenses (3+ o tempo), procura de um material, de um metro, de umritmo inteiramente nosso.

    O "psicolgico" impede o homem de ser to preciso quantocronmetro, limita o seu anseio de se assemelhar mquina.

    No temos nenhuma razo para, na arte do movimento,dedicar o essencial de nossa ateno ao homem de hoje.

    A incapacidade dos homens em saber se comportar noscoloca em posio vergonhosa diante das mquinas. Mas, oque se h de fazer, se os caprichos infalveis da eletricidadenos tocam mais do que o atrito desordenado dos homensativos e a lassido corrupta dos homens passivos?

    A alegria que nos proporcionam as danas das serras numaserraria mais compreensvel e mais prxima do que a quenos proporcionam os requebros desengonados doshomens.

    NS no queremos mais filmar temporariamente o homem,porque ele no sabe dirigir seus movimentos.

    Pela poesia da mquina, iremos do cidado lerdo ao homemeltrico perfeito.

    Ao revelar a alma da mquina, promovendo o amor dooperrio por seu instrumento, da camponesa por seu trator,do maquinista por sua locomotiva,

    ns introduzimos a alegria criadora em cada trabalhomecnico

    ns aproximamos os homens das mquinas

    ns educamos os novos homens.

    O novo homem, libertado da canhestrice e da falta de jeito,

  • dotado dos movimentos precisos e suaves da mquina, sero tema nobre dos filmes.

    NS caminhamos de peito aberto para o reconhecimento doritmo da mquina, para o deslumbramento diante dotrabalho mecnico, para a percepo da beleza dosprocessos qumicos. Ns cantamos os tremores de terra,compomos cine-poemas com as chamas e as centraiseltricas, admiramos os movimentos dos cometas e dosmeteoros, e os gestos dos projetores que ofuscam asestrelas.

    Todos aqueles que amam a sua arte buscam a essnciaprofunda da sua prpria tcnica.

    A cinematografia, que j tem os nervos emaranhados,necessita de um sistema rigoroso de movimentos precisos.

    O metro, o ritmo, a natureza do movimento, sua disposiorgida com relao aos eixos das coordenadas da imagem e,talvez, os eixos mundiais das coordenadas (trs dimenses+ a quarta, o tempo) devem ser inventariados e estudadospor todos os criadores do cinema.

    Necessidade, preciso e velocidade: trs imperativos queNs exigimos do movimento digno de ser filmado eprojetado.

    Que seja um extrato geomtrico do movimento por meio daalternncia cativante das imagens, eis o que se pede damontagem.

    O kinokismo a arte de organizar os movimentosnecessrios dos objetos no espao, graas utilizao deum conjunto artstico rtmico adequado s propriedades domaterial e ao ritmo interior de cada objeto.

    Os intervalos (passagens de um movimento para outro), enunca os prprios movimentos, constituem o material(elementos da arte do movimento). So eles (os intervalos)que conduzem a ao para o desdobramento cintico. Aorganizao do movimento a organizao de seuselementos, isto , dos intervalos na frase. Distingue-se, emcada frase, a ascenso, o ponto culminante e a queda domovimento (que se manifesta nesse ou naquele nvel). Umaobra feita de frases, tanto quanto estas ltimas so feitasde intervalos de movimentos.

    Depois de conceber um cine-poema ou um fragmento, okinok deve saber anot-lo com preciso, a fim de dar-lhevida na tela, desde que haja condies favorveis para tal.

    Evidentemente, nem o roteiro mais perfeito ser capaz desubstituir essas notas, tanto quanto o libreto no substitui apantomima e os comentrios literrios sobre Scriabin nodo nenhuma idia da sua msica.

    Para poder representar um estudo dinmico sobre umafolha de papel preciso dominar os signos grficos domovimento.

    NS estamos em busca da cine-gama.

  • NS camos e nos levantamos ao ritmo de movimentos,

    lentos e acelerados,

    correndo longe de ns, prximos a ns, acima, em crculo,em linha, em elipse,

    direita e esquerda, com os sinais de mais ede menos, os movimentos se curvam, seendireitam, se dividem, se fracionam, semultiplicam por si prprios, cruzandosilenciosamente o espao.

    O cinema tambm a arte de imaginar os movimentos dosobjetos no espao. Respondendo aos imperativos dacincia, a encarnao do sonho do inventor, seja elesbio, artista, engenheiro ou carpinteiro. Graas aoKinokismo ele permite realizar o que irrealizvel na vida.

    Desenhos em movimento. Esboos em movimento. Projetosde um futuro imediato. Teoria da relatividade projetada natela.

    NS saudamos a fantstica regularidade dos movimentos.Carregados nas asas das hipteses, nosso olhar movido ahlice se perde no futuro.

    NS acreditamos que est prximo o momento de lanar noespao as torrentes de movimento retidas pela inopernciade nossa ttica.

    Viva a geometria dinmica, as carreiras de pontos, delinhas, de superfcies, de volumes.

    Viva a poesia da mquina acionada e em movimento, a dosguindastes, rodas e asas de ao, o grito de ferro dosmovimentos, os ofuscantes trejeitos dos raiosincandescentes.

    (Traduo de Marcelle Pithon, in A experinciado Cinema, org. Ismail Xavier, Graal, Embrafilme,1983.)