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1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP BRUNO SIMÕES GONÇALVES NOS CAMINHOS DA DUPLA CONSCIÊNCIA: SOCIALISMO INDO-AMERICANO, LIBERTAÇÃO E DESCOLONIZAÇÃO NA AMÉRICA LATINA DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL SÃO PAULO 2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

BRUNO SIMÕES GONÇALVES

NOS CAMINHOS DA DUPLA CONSCIÊNCIA: SOCIALISMO INDO-AMERICANO,

LIBERTAÇÃO E DESCOLONIZAÇÃO NA AMÉRICA LATINA

DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL

SÃO PAULO 2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

BRUNO SIMÕES GONÇALVES

NOS CAMINHOS DA DUPLA CONSCIÊNCIA: SOCIALISMO INDO-AMERICANO,

LIBERTAÇÃO E DESCOLONIZAÇÃO NA AMÉRICA LATINA

DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL

Tese apresentada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Serviço Social, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Lúcia Martinelli.

SÃO PAULO 2014

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BANCA EXAMINADORA

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A Benedito pererê, totalmente sarará, meu sobrinho perereco, minininho saci de tudo, seus olhos pretos. Às crianças.

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AGRADECIMENTOS

À professora Dra. Maria Lúcia Martinelli, pela orientação, pelo afeto, pela

beleza.

Aos amigos Flávio Capi, Marília Capponi, Adriana Eiko, Rudá Andrade, Lia

Vainer, Sabrina Pedrosa, Paulo Índio, Gabriela Mariano, Adriana Bosco, Luis

Augusto Vieira, Cristiano Viana, Luciana Galante, Yollo Mancilla, Dan Manzione,

Valéria Albuquerque e Aurea Fuziwara pelas leituras, pensamentos e ações

compartilhados.

Aos professores Luis Tapia, Margot Soria e Allisson Speedding (Bolívia),

Sigfredo Chiroque, Cesar Germaná e Anibal Quijano (Peru), Edgar Barrero

(Colômbia) e Eduardo Viera (Uruguai), pela disponibilidade de compartilhar comigo

suas experiências e saberes.

À Juliana Izar, pela revisão em cima da hora e tão cheia de sacizices.

Ao meu irmão Ricardo, seu coração não cabe nestas palavrinhas: Tamo junto!

Ao Nuno, pai da Alice, poeta agreste, latino-americano, universal: Tamo junto!

Ao São, Maria e às meninas. Ao Nadão, Ângela e Biraí. Aos pataxós de Barra

Velha. Com gratidão.

À Maria Izabel, minha mãe: teu mar me protege.

Ao meu pai, Edson.

À Carolina, claro enigma, com amor.

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“O outro não existe: esta é a fé racional, a crença

incurável da razão humana. Identidade = realidade,

como se, afinal de contas, tudo tivesse de ser,

absoluto e necessariamente, um e o mesmo.

Mas o outro não se deixa eliminar, subsiste;

é o osso duro de roer onde a razão perde os

dentes. Abel Martins, com fé poética,

não menos humana que a fé racional,

acreditava no outro, na ‘essencial heterogeneidade

do ser’, como se vivêssemos na incurável

outredade que o um padece”.

(Antonio Machado)

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RESUMO

Nos caminhos da dupla consciência: socialismo indo-americano, libertação e descolonização na América Latina

O presente trabalho é um estudo sobre a formação histórico-filosófica da dupla consciência latino-americana. Desde o início da América, a identidade latino-americana se forjou a partir de uma cisão e de uma tensão entre a lógica da colonialidade do poder (um como princípio) e a lógica da mestiçagem crítica (dois como totalidade). Na primeira, a diferença é radicalmente negada; na segunda, é legitimada enquanto fundamento da realidade. Disso se origina uma dialética dos extremos própria à formação latino-americana, em que diferentes memórias e tempos se combinam em uma totalidade heterogênea e contraditória. No início do séc. XX, a obra do pensador José Carlos Mariátegui é a expressão dessa tensão. Primeiro grande pensador marxista do Peru, Mariátegui defendia a ideia de que havia uma luta agônica entre duas almas na consciência latino-americana. De um lado, o decadente edifício positivista erigido a partir do capitalismo. Do outro, o novo ânimo, a vontade apaixonada em busca do socialismo indo-americano, capaz de reunir mundo indígena, revolução, espiritualidade e imaginação poética em um mesmo movimento e de subverter a dupla consciência histórica latino-americana. A tradição de um pensamento crítico que seja expressão do modo de vida das diferentes populações da América Latina tem continuidade no decorrer do séc. XX, quando a ideia de uma mestiçagem crítica se desenvolve na literatura, na filosofia e no pensamento social de todo o continente. É nesse contexto que a categoria da libertação se constitui como uma expressão própria do pensamento crítico latino-americano e se desdobra, no início do séc. XXI, na busca por uma práxis intercultural e descolonizada. Ao analisar esse arco histórico de larga duração, a tese traz subsídios para uma leitura do atual contexto de crise estrutural do capitalismo, a partir da dimensão intersubjetiva enquanto consciência histórica dividida e aponta caminhos para a construção de um novo sentido histórico para as lutas sociais do tempo presente. Palavras-Chave: Dupla consciência histórica; Mestiçagem crítica; Socialismo

Indo-americano; Mariátegui; Libertação; Descolonização.

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ABSTRACT

On the paths of double consciousness: Indo-American socialism, liberation and decolonization In Latin America

The present work is a study of the historical and philosophical background of Latin American double consciousness. Since the beginning of America, Latin American identity has been forged through a breakup and a tension between the logic of coloniality of power (one – as a principle) and the logic of critical mestizaje (two – as a totality). In the first one, difference is radically denied; in the second one, it is legitimized as a foundation of reality. This originates a dialectic of extremes proper to Latin America’s formation, in which different memories and times are mixed in a heterogeneous and contradictory totality. In the beginning of the XX century, the work of the thinker José Carlos Mariátegui was the expression of such tension. Being the first great Marxist thinker of Peru, Mariátegui defended the idea that there is an agonizing struggle between two souls in Latin American consciousness: on the one hand, the positivist decaying edifice built from capitalism; on the other hand, the new impetus, the passionate desire in search of Indo-American socialism, capable of bringing together indigenous world, revolution, spirituality and poetic imagination in the same movement of the subversion of Latin America’s historical double consciousness. The tradition of a critical thinking that can express the way of life of different populations of Latin America continued throughout the XX century, when the idea of a critical mestizaje develops in the literature, the philosophy and the social thinking of the whole continent. It is in this context that the category of liberation is constituted as an expression proper of the Latin American critical thinking and, in the beginning of the XXI century, unfolds in the search for an intercultural and decolonized praxis. Considering this long-lasting historical arc, the thesis brings subsidies to a reading of the current context of capitalism’s structural crisis, from the standpoint of the intersubjective dimension as divided historical consciousness. And it puts forward approaches to the construction of a new historical sense for the contemporary social struggles. Keywords: Historical double consciousness, Critical mestizaje, Indo-American

socialism, Mariátegui, Liberation, Decolonization

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 11

I. DO UM COMO PRINCÍPIO AO DOIS COMO TOTALIDADE: O CAMINHO DE OUTRA MODERNIDADE .................................................................................................................. 19

1. DUPLA RACIONALIDADE E FILOSOFIA OCIDENTAL .............................................. 21 Entre deuses e ontologias: o pensamento filosófico ............................................... 21 Parmênides e Heráclito: a dupla racionalidade grega ............................................. 25 Pístis e Peithó: a dupla lógica argumentativa .......................................................... 29

Pístis: o discurso como não contradição. .................................................................. 29 Peithó: o discurso como persuasão ........................................................................... 32

2. O EMPREENDIMENTO COLONIZADOR: CONQUISTA, CAOS E MESTIÇAGEM ...... 37 O Novo Mundo ............................................................................................................ 37 Princípio da cruz e espada x filosofia das gentes .................................................... 41 A mestiçagem ............................................................................................................. 47

3. DOMINAÇÃO COLONIAL E MESTIÇAGEM CRÍTICA: AS DUAS FACES DA MODERNIDADE .......................................................................................................... 51

A sedimentação do empreendimento colonial ......................................................... 51 colonialidade do poder ............................................................................................... 53

Tupis e Tapuias: colonialidade do poder e identidade indígena no Brasil .................. 58 Dialética dos extremos e mestiçagem crítica: a modernidade alternativa ............. 63

O barroco .................................................................................................................. 63 O ethos barroco latino-americano ............................................................................. 69

A mestiçagem cultural ............................................................................................... 73 Rebeliões e movimentos de contestação: mestiçagem crítica, luta e organização dos povos ........................................................................................................................ 77

II. EM BUSCA DE UM SOCIALISMO INDO-AMERICANO: O PENSAMENTO DE JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI ...................................................................................................... 81

1. A VIDA DE MARIÁTEGUI: A BUSCA DE UMA SÍNTESE ............................................ 82 Infância e “Idade de Pedra” ....................................................................................... 82 O período europeu ...................................................................................................... 86 O retorno ao Peru ....................................................................................................... 89 As polêmicas com Haya de La Torre e com a Internacional Comunista ................ 93 O mariateguismo ...................................................................................................... 101

2. A PROBLEMÁTICA FILOSÓFICA EM MARIÁTEGUI: POR UMA TOTALIDADE HISTÓRICO-SOCIAL HETEROGÊNEA ..................................................................... 107

Dialética dos extremos e afinidades eletivas: a totalidade aberta ........................ 107 3. RELIGIÃO, MITO E VONTADE: A DIMENSÃO MÍSTICO-REVOLUCIONÁRIA EM MARIÁTEGUI...................................................................................................... 115

A religião como combate revolucionário ................................................................ 115 O lugar do mito ......................................................................................................... 121 Imaginação, subjetividade e “eu profundo”: o lugar da vontade .......................... 127

4. TRADIÇÃO E MODERNIDADE EM MARIÁTEGUI ..................................................... 133 A vanguarda enraizada ............................................................................................. 133 A descoberta do universo indígena ........................................................................ 140 Tradição heterodoxa................................................................................................. 148 Mariátegui e a dupla consciência histórica latino-americana................................ 156

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III. A DUPLA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA LATINO-AMERICANA: LITERATURA, LIBERTAÇÃO E DESCOLONIZAÇÃO ............................................................................. 160

1. A LITERATURA ......................................................................................................... 163 O indigenismo ........................................................................................................... 163 A antropofagia .......................................................................................................... 172

Oswald de Andrade ................................................................................................. 174 Macunaíma de Mário de Andrade ........................................................................... 181

O realismo maravilhoso ........................................................................................... 187 O reino deste mundo ............................................................................................... 193

2. POR UMA FILOSOFIA LATINO-AMERICANA .......................................................... 197 O latino-americanismo ............................................................................................. 197 Transculturação e elogio à mestiçagem ................................................................. 203 A categoria filosófica da libertação ......................................................................... 212

A Filosofia da Libertação ......................................................................................... 212 A Teologia da Libertação ........................................................................................ 219

Descolonização e filosofia intercultural crítica ...................................................... 227

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 236

BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................. 242

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INTRODUÇÃO

Pedrinha miudinha, pedrinha de Aruanda, ê. Lajedo, tão grande, tão grande de Aruanda, ê. Três pedras, três pedras, três pedras aqui nessa aldeia. Uma e maior, outra é menor, a menorzinha é que nos alumeia. (Ponto de umbanda e de candomblé cantado para os boiadeiros)

Entre o ano de 2002 e 2004, funcionou na comunidade do Jardim Colombo,

zona sudoeste de São Paulo, a cooperativa de alimentação Jurema, voltada para a

produção de pratos típicos derivados do milho: curau, pamonha, cuscuz, milho

cozido. Formado por oito mulheres moradoras dessa comunidade, a cooperativa

soube aproveitar as festividades de junho, realizadas em várias localidades

próximas. Como o caixa da cooperativa contava com um capital relativamente alto,

houve uma discussão acalorada sobre o que devia ser feito com a “sobra”

conseguida pelo trabalho coletivo.

Entre as cooperadas estava Nilza, uma baiana de idade entre cinquenta e

sessenta anos, que havia chegado a São Paulo havia cerca de cinco anos. Ela me

contou que aos sete anos teve um episódio de transe – “o santo me pegou” – que a

fez andar por horas sem consciência, até desmaiar na beira de um riacho. Dali em

diante, levada pelos pais, viveu em uma casa de candomblé, como filha de santo.

Na noite da reunião entre as cooperadas da Jurema, quando o debate estava

polarizado entre dividir toda a sobra entre as trabalhadoras ou investir o dinheiro na

compra de ferramentas e outros acessórios para dar maior agilidade ao trabalho,

Nilza calou a todos com a seguinte proposta: se o objetivo era ganhar mais dinheiro

para poder comprar as ferramentas e ter algum dinheiro pra levar pra casa, a melhor

solução era pegar toda a sobra e oferecer à sua casa de candomblé na Bahia. Ela

mesma conversaria seriamente sobre isso com seu pai de santo, o que garantiria

que a oferta retornasse em dobro para a cooperativa.

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Como era de esperar, a ideia foi prontamente rechaçada e não se falou mais

no assunto. Porém, a certeza e a naturalidade com que Nilza propôs sua “saída”

para o destino do dinheiro me chamou muito a atenção. Do espanto com a resposta

de Nilza surgiu a questão sobre quais as racionalidades que se combinam e se

misturam em nosso universo cotidiano, quais as diferentes sabedorias que, apesar

de entranhadas, se mantêm invisíveis no universo de nossas relações sociais.

A presente tese é um dos desdobramentos desse questionamento primeiro,

estrela-guia ainda hoje viva e presente no horizonte de minhas reflexões, tanto no

campo acadêmico, como na vida de todo os dias, suas veredas.

O trabalho de pesquisa sobre os diversos modos de pensamento presentes

em nossa sociedade se inicia a partir da dissertação de mestrado Na travessia da

modernidade, imaginação poética e resistência na memória de caipiras em São Luis

do Paraitinga. Nessa primeira pesquisa, investiguei como se realizava o modo de

vida caipira em nossa contemporaneidade, a partir da memória de quatro moradores

de São Luís do Paraitinga, cidade conhecida como “reduto caipira” no estado de São

Paulo. O trabalho teve como matriz de análise a noção de dupla consciência social

do pesquisador José de Souza Martins e suas reflexões sobre a presença da díade

tradição-modernidade na sociabilidade do homem e da mulher do campo. A partir da

ideia de uma cisão na consciência brasileira moderna, começava a se descortinar a

presença de diferentes modos de pensamento em nossa vida social.

Após viver na cidade de São Luis por aproximadamente um ano, defendi

minha dissertação em agosto de 2007. Das quatro entrevistas que apresentei como

expressões dessa dupla consciência, uma em especial me apontou os caminhos

para a continuidade de minha investigação. Foi a entrevista com o sitiante e produtor

de mel Ditão Virgílio, conhecido por ser exímio contador de causos, defensor do

homem pobre do campo e por pregar uma vida “socialista misturada com caipira”. Ao

pé do fogão de lenha de sua cozinha, ele descreveu calmamente a convergência

entre a vida tradicional do caipira e o mundo emancipado pós-revolução. Na sua

visão, valores pregados pela esquerda socialista estavam presentes na vida simples

do caipira sitiante, em seus costumes cotidianos e em sua religiosidade espontânea

e guiada por uma ética de convívio fraternal entre os seres humanos e os outros

viventes. A convergência entre mundo socialista e vida caipira na dupla consciência

de um sitiante apontava o trilho a ser seguido na continuidade de minhas pesquisas:

a relação entre tradição e modernidade no interior de um projeto societário

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anticapitalista, ou seja, a possibilidade de um pensamento crítico em que houvesse

lugar para a experiência social dos povos, seu legado, sua tradição.

A essa inquietação se somou o conhecimento, depois da defesa do mestrado,

da coletânea de artigos escolhidos de José Carlos Mariátegui, Por um socialismo

indo-americano. Na introdução, Michael Löwy apresenta o marxismo “herético” de

Mariátegui, que unia a tradição indígena, a mística religiosa e o horizonte

revolucionário em um mesmo e único sentido: a construção do socialismo indo-

americano. À inquietação inicial sobre diferentes modos de pensamento em nossa

vida social se somava agora a necessidade de compreender esse movimento no

interior dos processos de luta social – como surgem e se desenvolvem essas

diferentes racionalidades no decorrer do desenvolvimento histórico das sociedades e

em suas tradições instituídas.

Foi com essas indagações que fiz uma viagem de seis meses pela Amazônia

brasileira, onde conheci comunidades quilombolas e extrativistas, assentamentos

rurais, comunidades indígenas, povoados ribeirinhos e cidades de diferentes portes.

Em cada um desses lugares, testemunhei a diversidade de tradições e de variáveis

ideológicas presentes na chamada cultura brasileira. A partir dessa experiência,

retornei a São Paulo e ingressei no doutorado em busca da compreensão das

possíveis relações entre o chamado mundo da tradição e a construção de um

projeto societário anticapitalista, tendo como principal guia teórico o pensamento de

José Carlos Mariátegui.

Pesquisando autores que estudassem o pensamento de Mariátegui, entrei em

contato com a obra do sociólogo peruano Anibal Quijano, um dos mais reconhecidos

estudiosos da obra do Amauta. A partir dele, me aproximei de uma vasta produção

sobre as tradições e sua expressão na identidade e no pensamento crítico latino-

americano relacionado aos fenômenos da mestiçagem cultural próprios do

continente.

Essa necessidade de conhecer melhor a realidade dos outros países da

América Latina me levou a realizar uma série de viagens com objetivo tanto de

consulta bibliográfica como de conhecer de perto um pouco da história da

mestiçagem crítica do continente. No Chile, conheci a USACH (Universidad de

Santiago de Chile) e pude conversar com jovens Mapuche, povo originário

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conhecido por sua resistência milenar desde a época do Tahuantinsuyo1. Ocorre

hoje uma redescoberta da tradição desse povo por jovens da cidade grande que

antes não se reconheciam como descendentes dos Mapuche.

Estive na Bolívia, onde, além de entrar em contato com a universidade e de

conversar com vários intelectuais, passei alguns dias no Valle do Chulumani, em

uma comunidade produtora de coca. Ali presenciei dinâmicas típicas da luta sindical

se combinarem com tradições aimaras e seus variados ritos e costumes. Em La Paz,

uma obra no museu da Igreja de San Francisco me causou grande impacto: uma

cruz cristã pintada com uma imponente auréola solar. Obra genial, a cruz e sua

auréola parecem trocar constantemente de lugar como imagem central do quadro,

tornando impossível distinguir se a pintura era uma obra cristã, uma homenagem ao

Deus Sol, deus maior no panteão aymara-quéchua, ou as duas coisas.

No Peru, além da pesquisa nas universidades principais de Lima e na Casa

Mariátegui, pude conhecer de perto as histórias de terror do Sendero Luminoso,

grupo guerrilheiro que utilizava antigos mitos quéchuas mesclados a um discurso

revolucionário para justificar suas ações de extrema violência contra a população.

Também conheci a Villa El Salvador, região de Lima muito conhecida pelas

experiências de poder popular de base quéchua e socialista. Pude ainda conversar

com importantes intelectuais, entre eles Anibal Quijano, que me concedeu uma

entrevista sobre Mariátegui e o novo sentido histórico para o socialismo do século

XXI.

Na Colômbia estive entre os indígenas muíscas urbanizados, que vivem nos

arredores e no centro de Bogotá, e também entre os Kamsa, que vivem ao sul do

país. Estes são conhecidos por suas experiências de prefeituras indígenas – os

cabildos – e pela longa tradição no uso da medicina do yage, infusão de fortes

propriedades alucinógenas utilizada há milhares de anos pelos povos indígenas da

Amazônia e dos Andes. Foi também na Colômbia que passei dias em um centro de

formação camponesa com vítimas da violência de guerra. Lá participei de um curso

sobre direitos humanos com Helena, jovem camponesa que teve o marido e o pai

1 Referido comumente como Império Inca, era a vasta área sob domínio dos incas (povo de língua quéchua), com sede em Cuzco, no atual Peru. Iniciado aproximadamente no século XIII, com a expansão dos incas a partir de Cuzco, estendeu do noroeste da Argentina e norte do Chile até a Colômbia. Findou com a chegada dos espanhóis no século XVI.

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assassinados em uma chacina que atingiu duas dezenas de homens de sua

comunidade.

No Equador, pude conhecer a Universidad Andina Simón Bolívar, espaço

onde têm sido realizadas importantes experiências interculturais de nível acadêmico.

Também em Quito, pude conhecer um pouco da história do Pachakuti, partido

indígena equatoriano, uma das forças políticas centrais do país.

Na Argentina, conheci as universidades de Córdoba onde, em 1918, foi

lançado o Manifesto de Córdoba, que propunha um modelo de universidade popular

para a América Latina. É nos arredores de Córdoba que estão também as mais

antigas missões jesuíticas guaranis, colossal realização que buscou realizar uma

utopia evangélica guarani, mesclando os valores cristãos com o mundo indígena. E

caminhando pelas ruas do centro velho de Montevidéu entendi a lírica platina da

poesia de Mario Quintana, dos escritos de Borges e das telas de Gurvich.

Esse conjunto de viagens me mostrou, para além da bibliografia sobre o

tema, diferentes dimensões da realidade latino-americana e de seu labirinto formado

por jogos de espelhos, mesclas interculturais e caminhos interrompidos. Território

marcado pela violência da dominação colonial e imperialista, a América Latina é ao

mesmo tempo, espaço de utopia e da possibilidade de realização da plenitude

humana. Pude compreender, nas catedrais de Potosi, a sobreposição de camadas

históricas e a presença complexa de um mundo pujante que só deixou ruínas e

silêncio como memória, invisibilidade visível.

Nessas viagens, pude entender melhor as múltiplas formas de mestiçagem

realizadas no mundo cultural, social e político de diversos países, onde um universo

de riqueza histórica e ancestral extraordinária se combina com migrações massivas,

profunda injustiça e uma lancinante violência como forma de controle social. E, em

todas essas experiências, a constante pergunta sobre as semelhanças e diferenças

com o Brasil, também um país da América Latina, também um país colonizado e

racializado, também um identidade forjada em um labirinto de relações desiguais.

Cindida entre memórias históricas distintas, a América Latina é um território

formado a partir de diferentes registros e espaços que se interpenetram e forjam

novas formas sociais e novas memórias que se reinventam constantemente. No

interior da totalidade heterogênea viceja uma cisão fundamental, uma contradição

fundada na violência colonial e na luta social entre dois mundos. Divisão complexa,

realizada em diferentes dimensões e matizes, impedindo qualquer leitura mecânica

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e simplista, mas divisão existente, surgida em um processo histórico de larga

duração fundamentado em uma cisma que desde o início seguiu a lógica da

exploração e da invisibilização da existência social da imensa maioria. Divisão que

constitui uma cisma na consciência histórica dos latino-americanos e bifurca sua

percepção e sua construção do mundo.

Como ensina Mariátegui, na realidade social latino-americana coexistem duas

almas em uma luta agônica: de um lado, a racionalidade colonizadora e seu mundo

hierarquizado; do outro, o pensamento mestiço, racionalidade subversiva que

desafia as concepções daquilo que Anibal Quijano cunhou como a colonialidade do

poder. Assim, a presente tese é uma investigação sobre a formação histórico-

filosófica dessa tensão constituinte da dupla consciência latino-americana; e, no

interior desse processo, da constituição de um pensamento crítico que seja

expressão da mestiçagem própria da América Latina. Nesse sentido, a obra de José

Carlos Mariátegui adquire importância central, já que suas reflexões inauguram a

perspectiva marxista no continente a partir da recuperação da memória histórica das

diferentes populações latino-americanas em sua tradição heterodoxa. Durante todo

século XX, veremos o retorno dessa perspectiva em diversos campos, como a

literatura, a política e a religião.

O trabalho está dividido em três capítulos. No primeiro, a partir da ideia de

dupla racionalidade grega defendida pelo pesquisador Jean-Pierre Vernant, são

apresentadas as noções filosóficas do um como princípio e do dois como totalidade,

duplicidade filosófica que remonta à síntese civilizatória entre semitas, egípcios e

indo-europeus e que irá dar contorno a toda a filosofia ocidental desde os pré-

socráticos. Dividindo a ontologia da realidade na dupla via da mesmidade, onde o

não ser é desconsiderado como existente, e da outredade, onde o não ser adquire

estatuto de existência, essa duplicidade ontológica entra na Idade Média e avança

pela modernidade, dividindo a Igreja e a nascente filosofia não teológica da

modernidade. É esse duplo fundamento que continua se desenvolvendo após o

início da modernidade e o confronto entre o mundo europeu e o americano,

demarcando as duas forças históricas que irão formar o mundo latino-americano. De

um lado, a colonialidade do poder e sua hierarquização racial sendo utilizada para

domínio e exploração de toda população do continente. Do outro, a mestiçagem

crítica, lógica da construção heterogênea com base na união de elementos díspares

em uma totalidade aberta.

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O segundo capítulo é uma apresentação da obra de José Carlos Mariátegui a

partir da sua relação direta com a identidade latino-americana. A partir do

fundamento filosófico da obra de Mariátegui, em que não há uma cisão entre logos e

mithos e sim uma relação de copertencimento entre essas dimensões ontológicas, é

realizada uma interpretação do pensamento do pensador peruano a partir de duas

entradas. Primeiramente se explicita a natureza místico-revolucionária de Mariátegui,

com base nos textos em que ele compara a luta revolucionária com a emoção

religiosa e estabelece a relação entre a vontade subjetiva – e intersubjetiva – e o

mito revolucionário. A outra entrada é a relação entre tradição e modernidade em

sua obra. Mariátegui posiciona-se frontalmente contra o pensamento evolucionista

que prega a lógica linear e eurocêntrica para interpretação da história. Ele defende a

coexistência de diferentes tempos históricos em uma tradição heterodoxa, na qual

as diferentes memórias históricas convivem de maneira descontínua, formando uma

realidade social heterogênea. No caso do Peru, a forte presença indígena seria o

traço específico dessa constituição. Dessa forma, Mariátegui propõe a construção de

um socialismo indo-americano onde diferentes tradições possam se somar na

efetivação de um mundo emancipado.

O terceiro capítulo aponta como essa mestiçagem crítica se fez presente

durante todo o século XX e início do XXI na literatura, na filosofia, na teologia e no

pensamento político do continente. No campo da literatura é apresentado o

indigenismo de José María Arguedas, o realismo maravilhoso de Alejo Carpentier e

a antropofagia de Oswald e Mario de Andrade. Em todos esses autores, a

construção literária é uma viagem ao espelho entre mundos, em que o universo

eurocêntrico e a prática social da mistura e da descoberta da especificidade estão

em constante tensão, forjando a luta entre duas almas próprias da dupla consciência

histórica do continente. Essa mesma dinâmica está presente na filosofia do

continente, tanto na proposição do logos poético de Lezama Lima como na categoria

filosófica da libertação, síntese entre pensamentos e práxis que tiveram papel

determinante na vida social do continente após a Revolução Cubana. A partir dos

anos 90, a memória histórica das populações aparece ainda com mais intensidade,

levando ao debate sobre descolonização e sobre a necessidade de construir uma

filosofia intercultural crítica.

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O trabalho se encerra com as considerações finais. Ao analisar um arco

histórico de larga duração, a tese traz subsídios para uma leitura do atual contexto

de crise estrutural do capitalismo e aponta a necessidade da subversão da dupla

consciência a partir da criação de um novo sentido histórico para as lutas sociais do

presente.

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I. DO UM COMO PRINCÍPIO AO DOIS COMO TOTALIDADE:

O CAMINHO DE OUTRA MODERNIDADE

O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás de casa. Passou um homem depois e disse: Essa volta que o rio faz por trás de sua casa se chama enseada. Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrás de casa. Era uma enseada. Acho que o nome empobreceu a imagem.

(Manoel de Barros)

A tentativa de apreender toda a história das culturas humanas em uma

grande totalidade é um esforço teórico que deu origem a obras de grande

importância nas Ciências Humanas.

Já no séc. XVIII, pensadores iluministas como Voltaire e Montesquieu se

preocupavam em traçar aspectos gerais do desenvolvimento histórico das

sociedades. No séc. XIX, coube a Hegel2 o esforço filosófico de indicar o caminho de

uma possível dialética das civilizações. A partir do séc. XX, autores da chamada

antropologia clássica3 e da história das civilizações4 escreveram tratados e obras

sobre disputas e analogias entre grandes forças civilizatórias, suas técnicas de

guerra e de reprodução social, sua religião e pensamento filosófico.

Assim, o brasileiro Darcy Ribeiro escreve, na década de 60 do séc. XX, sua

importante obra O Processo Civilizatório, na qual repensa as etapas da humanidade

a partir de uma perspectiva que dá ênfase às civilizações ameríndias, ressaltando

aspectos ignorados por estudos anteriores voltados à centralidade do mundo

europeu. Essa descentralização gradativa rumo a uma perspectiva universal não

2 Hegel publica em 1830, Filosofia da História, no qual tenta demonstrar a ação da racionalidade do

Espírito Absoluto na realização histórica da humanidade ao longo dos períodos e civilizações. 3 Os principais autores da antropologia clássica são: Lewis Henri Morgan (1818-1881), autor de A

Sociedade Antiga (1877); Edward Burnett Tylor (1832-1917), autor de Primitive Culture (1871); James Frazer (1854-1941), autor da obra em doze volumes O ramo de Ouro (1890). Para saber mais sobre a antropologia clássica ver CASTRO (2005). 4 Os dois principais autores da “história das civilizações” do início do séc. XX são Oswald Spengler

(1880-1936), autor de Declínio do Ocidente (1918) e Arnold Joseph Toynbee (1889-1975), autor de Estudo da História, dividido em doze volumes escritos entre 1934 e 1961.

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eurocêntrica é o princípio que tem guiado nas últimas décadas diversos autores5 a

estabelecer novas formas de interpretação do percurso histórico das civilizações.

Nesse conjunto recente de estudos, destaca-se a obra do filósofo Enrique

Dussel que vem reconstituindo, há aproximadamente duas décadas, o que ele

chama de Nova História Mundial (1997, 2000). Dussel6 propõe a existência de três

grandes períodos que dividem a história humana. O primeiro é o Paleolítico (2,5

milhões A.C. – 10000 A.C.) quando a humanidade aprendeu a domesticar plantas e

animais. O segundo período é o Neolítico, caracterizado pelo surgimento das

primeiras seis grandes civilizações7 a partir das revoluções urbanas. O terceiro

grande período ainda está em vigência e se inicia com a submersão dessas culturas

sob o domínio de outras, totalmente distintas entre si.

É do entroncamento entre culturas desse terceiro período – egípcia, semita e

indo-europeia –, que nasce a Grécia onde se desenvolvem os fundamentos de tudo

aquilo que hoje conhecemos como pensamento ocidental. Desse passado distante

se originam tanto a ideia do dualismo que opera dividindo a realidade em dimensões

inconciliáveis como a ideia de totalidade onde as diferentes dimensões da realidade

estão em constante relação de copertencimento (DUSSEL, 1997, p.79).

Relação primordial que deu origem à filosofia ocidental, esse duplo caminho

margeia e entrelaça toda história do território que hoje chamamos europeu, assim

como se estabelece enquanto uma relação de tensão e dominação entre

concepções de mundo.

Ao chegar ao chamado Novo Mundo e se deparar com antigas civilizações,

essa dupla racionalidade se transmutou e se desdobrou, acompanhando as

mudanças estruturais que nesse momento se realizaram. Um novo mundo, dono de

um novo imaginário – suas utopias – e de relações de poder e de controle de

trabalho até então inéditas.

5 Ver LANDER (org., 2000) e SANTOS (org., 2005).

6 Para Dussel, ao realojarmos esses grandes períodos, nos colocamos a necessidade de repensar

todo o caminho filosófico do ocidente, sendo necessária uma nova leitura da história da filosofia mundial. Embora a hipótese de Dussel nos pareça bastante fértil, principalmente levando em questão o tema do presente estudo, preferimos não nos deter na investigação mais pormenorizada da crítica dusseliana ao “mito” do nascimento da filosofia na Grécia, pelo trabalho de investigação demasiado que essa escolha exigiria. O tema é tão amplo e pouco conhecido pelo circuito acadêmico de maneira geral, que descortinar o nascimento da filosofia a partir da desconstrução do mito iniciático grego por si só, já esgotaria todo tempo disponível para a presente investigação. 7 Civilizações Egípcia, Mesopotâmica, a do rio Indo, a do rio Amarelo, a Asteca, a Maia e a Inca

(DUSSEL, 1994, p. 80).

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Nesse processo, ambas as matrizes filosóficas se transformaram e, ao

mesmo tempo, se mantiveram. Entrelaçadas e em constante oposição, uma

dominando a outra, formaram o eixo que estrutura a modernidade e suas relações

sociais constituintes, se fazendo presentes na estética, nas formas religiosas, na

organização política e nas formas de insurgência desde a Conquista até o momento

atual. Nesse sentido, é possível falar de uma dupla racionalidade que constitui o

pensamento ocidental e vem se desdobrando em toda sua história, do um como

princípio ao dois como totalidade8.

1. DUPLA RACIONALIDADE E FILOSOFIA OCIDENTAL

Entre deuses e ontologias: o pensamento filosófico

O surgimento da filosofia enquanto um modo específico de conhecimento é

uma investigação ainda em curso, frequentemente revisitada por historiadores e

estudiosos das ciências de maneira geral. Centradas, sobretudo, nas indagações

que procuram compreender o fenômeno da razão e seus desdobramentos, essas

indagações são fontes perenes de interrogação e reflexão crítica sobre nós mesmos

– que assim nos repensamos –, e sobre o percurso histórico – suas determinações –

que assentou o chão e os caminhos que nos trouxeram até o presente.

Nesse sentido, perguntar sobre o surgimento da razão e seus

desdobramentos é já partir de uma certa concepção de razão; uma razão

problemática que tomou determinados caminhos e não outros e, portanto, é matéria

inacabada e em perene movimento. Razão que se abre, a todo tempo, como matéria

de investigação e de reflexão de si própria. É uma razão crítica que procura

desmistificar a concepção de razão como um milagre descido dos céus para

dominar a matéria, uma “Deusa-razão” que supostamente rege a orquestra do real

como um demiurgo rege o mundo que criou. Como aponta Vernant:

8 A Ideia do um como princípio ao dois como totalidade surge a partir da leitura da dissertação Do um

como princípio ao dois como un-idade (MICHELAZZO, 1997). Nesse trabalho, o autor traça uma linha argumentativa em torno do pensamento de Heidegger e sua crítica à metafísica. Para o autor, a metafísica obedeceria ao um como princípio, enquanto a hermenêutica originária heideggueriana trabalharia a partir do Dois como Unidade. Como ficará claro ao longo de toda a dissertação, a ideia de uma tensão entre noções filosóficas primordiais será o eixo guia das reflexões. Optou-se, porém – e isso faz toda diferença –, pela ideia do dois como totalidade.

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Estamos perguntando à Razão em si que nos explique o que ela é. Para entender a natureza e a função do pensamento racional, apontamos suas próprias armas contra eles. [...] Podemos dizer que, de imediato, por seu próprio projeto, ela acaba com uma certa concepção de Razão eterna, absoluta, que ainda reina, creio, em muitos círculos “racionalistas”. Trata-se da ideia, cara aos homens da Revolução Francesa, de uma Deusa Razão que ilumina o caminho da humanidade, dissipando as trevas da ignorância, os fantasmas da superstição religiosa ou ilusões do sentimento (VERNANT, 2002, p. 191).

É partindo desse pressuposto que podemos entender o nascimento da

filosofia como um processo histórico de larga duração que vai se constituindo no

seio do mundo e delineia uma forma de organização do real que não está vinculada

somente à expressão mitopoética da experiência humana. Assim, a razão se

constitui enquanto modo de pensamento localizado historicamente e que usa de

seus próprios instrumentos – a reflexão – para criar alternativas ao mundo regido

exclusivamente pela vontade dos deuses mitológicos. Partindo dessa concepção, o

surgimento da razão filosófica nos remete ao mundo grego, por volta do séc. VI a.C.,

como explica Pessanha:

A maioria dos historiadores tende hoje a admitir que somente com os gregos começam a audácia e a aventura expressas numa teoria. [...] Essa mentalidade, porém, resulta de um longo processo de racionalização da cultura, acelerado a partir da demolição da antiga civilização micênica. A partir daí, a convergência de vários fatores – econômicos, sociais, políticos e geográficos – permite a eclosão do “milagre grego”, que teve na ciência teórica e na filosofia sua mais grandiosa e impressionante manifestação (PESSANHA, 1999, p. 6).

Conhecidas como as expressões propriamente gregas da visão mitopoética

grega, a Ilíada e a Odisséia de Homero – epopeias heroicas –, assim como a

Teogonia e o Trabalho e os Dias – genealogia dos deuses – de Hesíodo são o

conjunto de histórias e mitos que prenunciaram a formação da filosofia grega.

Síntese de lendas eólias e jônias que relatam o encontro entre o mundo helênico em

formação e as culturas orientais, esse conjunto de histórias e contos de caráter

mítico se caracterizam pela presença constante dos deuses em suas características

demiúrgicas e, ao mesmo tempo, antropomórficas, ou seja, os homens têm poderes

de deuses e os deuses carregam características próprias dos homens mortais.

No caso das obras de Homero, esses poderes passam a ser divididos em

maléficos e benéficos, segundo uma divisão que torna humana a ideia de theos –

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antropomorfizado como Zeus – excluindo assim, as representações não humanas e

portanto, misteriosas e desconhecidas, do plano da divindade. Segundo Pessanha:

Mesmo quando representam forças da natureza, os deuses homéricos revestem-se de forma humana [...]. Homero exclui do Olimpo formas monstruosas, da mesma maneira que exclui dos cultos as práticas mágicas. Esses aspectos primitivos, quando excepcionalmente despontam, servem justamente para comprovar o trabalho realizado pelas epopeias homéricas no sentido de soterrar concepções sombrias e aterrorizadoras (PESSANHA, 1999, p. 8).

Assim, excluído aquilo que passa a ser considerado mentalidade arcaica –

monstros mitológicos e seres mágicos –, os heróis homéricos passam a representar

esse caminho divino de um ser único superando os seres miraculosos e disformes, a

forma apolínea do homem se sobrepondo à desproporção, dominando-a. Essa

identificação entre o divino e o herói passa a ser mais completa com a gradativa

unificação e neutralização das discordâncias entre a vontade dos deuses. Zeus, pai

poderoso de todos os deuses, representa assim essa força patriarcal e unificadora,

onde os valores são hierarquicamente condicionados ao seu poder sobre todas as

coisas. Criadas para relatar a Guerra de Troia (séc. XIII a.C.) e de Tebas, as

epopeias de Homero são o elogio dessa vida combativa e heroica, atributo

necessário para o final esperado – a conquista do inimigo – de uma guerra.

No caso da Teogonia de Hesíodo, os relatos tendem a representar um

momento onde não é a batalha que está no centro da vida e sim a coesão

comunitária em regiões onde não há mais guerra, quando a organização em torno

de comunidades pastoris se apresenta como principal desafio aos grupos que ali

viviam. Conjunto de relatos que conta a genealogia e o desenvolvimento da vida dos

deuses imortais, a Teogonia tende a exaltar valores necessários à vida política

nascida nesse momento e desenvolvida posteriormente em comunidades pastoris e

também na polis, onde um conjunto de leis passa a reger o espaço político

comunitário. Explicitando esse momento do nascimento da lei e da ideia de

democracia, escreve Pessanha:

Nas assembleias de guerreiros, nas discussões onde se tinha que se decidir o que fazer do butim, daquilo que foi apresado em uma guerra, aí se precisava chegar a algum tipo de acordo. E o Símbolo que vai criar urbanisticamente a metáfora da Ágora democrática é exatamente a criação de um centro, mezon, onde todos vão depor e cada um vai expor seu ponto de vista. [...] A lei é alguma coisa que se partilha, que se compartilha e se divide como uma espécie de presa

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ou de butim. A democracia pretende que os agentes do poder e da constituição da lei, na verdade, estejam dentro de uma certa circularidade, e que haja um meio comum e equidistante de todos, meio que vai ser ocupado pela norma (PESSANHA, 1991, p. 86).

Aos poucos, o mundo das comunidades pastoris da Grécia vai se formando e

essa demanda por justiça e igualdade se intensifica. Já não é apenas a batalha e,

portanto, o herói solitário no topo do mundo, a figura valorizada. Virtudes como

justiça e trabalho passam a ser valores exaltados e a Teogonia de Hesíodo é

expressão direta dessa realidade. O poema de Hesíodo demonstra que, além dos

valores de uma aristocracia guerreira e nobre, também participaram da formação

grega valores do mundo rural e do trabalhador do campo, onde a vida comum e o

interesse em encontrar entendimentos equilibrados guiavam as relações sociais. A

esse respeito afirma Jaeger:

Não apenas a luta do herói guerreiro contra o inimigo no campo de batalha, mas também a silenciosa e renhida luta do homem trabalhador com a terra dura e as adversidades do tempo tem seu heroísmo e gera habilidades que são de valor perene para o ser humano (JAEGER, 1986, p. 89).

Essa ideia de igualdade necessária conseguida a partir do trabalho junto à

terra e sua participação na vida de uma comunidade irá fundar toda uma nova

concepção de justiça que se organizará cada vez mais e fará da busca pela unidade

em meio à multiplicidade uma medida fundamental para a compreensão do mundo.

Essa concepção ganhará importantes elementos a partir da Escola de Mileto (séc.

VII a.C.), na qual seus pensadores, buscando refletir sobre a unidade e

multiplicidade de seu próprio universo, criaram conceitos filosóficos que tentavam

dar uma finalidade racional à totalidade do real. Com a ideia do péra (limite) e

apéiron (o ilimitado), essa concepção de dualidade se desdobrará nos princípios

matemáticos pitagóricos do par e ímpar e dará origem às mais diferentes

polaridades filosóficas, entre elas a ideia de identidade/alteridade e mesmo/outro.

Como explica Pessanha:

Assim o número par pode ser visto como a expressão aritmo-geométrica da alteridade, enquanto o ímpar seria a própria manifestação básica na matemática da identidade. A partir desses fundamentos matemáticos os pitagóricos poderão conceber todo o universo, como um campo em que se contrapõem o Mesmo e o Outro. E podem estabelecer, para os diferentes níveis da realidade, a

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tábua de opostos que manifestam aquela oposição fundamental (PESSANHA, 1999, p. 28).

Dessa forma, aberta a possibilidade da diversidade expressa via oposição, a

nascente filosofia grega vai depurando seu próprio sistema de elucidação do real e a

abstração acerca das dualidades. Desenvolvida com maior vigor a partir do

eleatismo, essa ideia da realidade enquanto relação entre opostos passa da esfera

cosmológica para a esfera ontológica, abrindo caminho para a dualidade primordial

de toda filosofia: Ser ou Não ser. E é com Parmênides e Heráclito que essa pergunta

originária ganhará desdobramentos que acompanharão toda história da filosofia dali

por diante. Como explica Borhein:

Todo pensamento ocidental prende-se a dois tipos de exercício da razão e ambos foram inaugurados pelos gregos: um por Parmênides e o outro por Heráclito. Parmênides enfatizava o que considerava o único caminho realmente válido para pensar o caminho do ser, do ser bem redondo, uno, eterno, imutável, perfeito – o ser é simplesmente aquilo que é. [...] O Outro caminho foi elaborado por Heráclito. Chegou-nos dele um belíssimo fragmento: “Não houvesse a injustiça, ignorariam o próprio nome da justiça. Aqui não se trata somente dos contrários e sim de uma clara contradição: o desvelamento do que seja a justiça passa pela não justiça. Isto é: o nome, o conceito depende da frequentação da negatividade (BORNHEIN,1999, p. 99).

Parmênides e Heráclito: a dupla racionalidade grega

Marco decisivo na filosofia grega, o projeto filosófico de Parmênides

representou a agudização do espírito crítico às cosmogonias míticas e sua

heterogeneidade na interpretação daquilo que caracteriza o real. Levando às últimas

consequências a concepção monista da natureza, Parmênides nega

categoricamente a possibilidade de movimento e mudança enquanto transformação

de algo em outra coisa. Para ele só existe uma única e mesma realidade – ser –

sendo impossível essa se transformar em algo diferente de si – não ser –, sendo

sempre imóvel e, portanto, invariavelmente a mesma. Dessa forma, separando em

espaços ontológicos distintos o ser e o não ser, o filósofo inaugura definitivamente a

especulação metafísica que ganhará sistematização com Platão e Aristóteles. Ao

afirmar que a verdade só é alcançável pela apreensão, via razão – do ser imutável –,

o pensador abre caminho para o desenvolvimento da abstração que nos eleva para

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além dos dados da aparência e das injunções físico-sensíveis. Explicando o

pensamento parmenidiano, escreve Santos:

A única verdade, só alcançável pela razão, é o Ser; ao contrário, o vir a ser, a mudança e o movimento, atestados pela experiência sensorial, são apenas aparências e meras ilusões [...]. Portanto, só podemos pensar e dizer de algo que é isso se o mesmo for imutável e permanecer idêntico a si mesmo. É fruto desse raciocínio o famoso princípio de identidade ou não contradição assim formulado. Uma mesma coisa não pode ser e deixar de ser ao mesmo tempo, sob o mesmo aspecto (SANTOS, 2001, p. 66).

Essa identidade afirmada por Parmênides deve ser buscada e encontrada no

universo das aparências por meio do uso da razão, faculdade transcendente que

permite aos homens perceber a segurança da identidade imóvel em meio à

turbulência das aparências. Dividido entre a eternidade daquilo que é (to éon) e das

coisas que são (ta é onta), a realidade é, em sua essência, não contraditória,

imutável e é pelo uso da razão que podemos apreender essa mesmidade presente

em tudo. Para exprimir essa dualidade cindida e separada da realidade, o filósofo

constrói uma das imagens mais conhecidas da filosofia grega. Levado ao reino da

Verdade pelas filhas de Hélio (o Sol), o homem mortal ouve da deusa Razão:

Pois não foi mau destino que te mandou preslustrar esta via (pois ela está fora da senda dos homens), Mas lei divina e justiça; é preciso que de tudo te instruas, do âmago inabalável da verdade bem redonda, E de opiniões de mortais, em que não há fé verdadeira. No entanto também isto aprenderás, como as aparências deviam validamente ser tudo por tudo atravessado (PARMÊNIDES, 1999, p. 122).

Para o filósofo pré-socrático, a realidade está claramente dividida entre o

mundo verdadeiro e imutável, perfeito no sentido de não ter nada exterior a ele –

“âmago inabalável da verdade bem redonda” – e o mundo da imperfeição e da

doxa –, opinião distante da “fé verdadeira”. Deusa que existe para além da “senda

dos homens”, a razão deve guiar os homens em sua jornada. É ela quem deve

presidir e inspirar o mundo da multiplicidade da natureza, assim como dos pontos de

vista que compõe a política. Penetrada em tudo, a razão dever saber guiar o homem

que está perdido em meio às aparências de movimento. Tudo aquilo que não se

revelar segundo o princípio da imobilidade deve ser descartado.

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Assim, para Parmênides, o real deve ser apreendido enquanto uma Unidade

na qual a multiplicidade é regida segundo a ideia do um como princípio, ou seja, que

tudo aquilo que é encontra sua correspondência, sua identidade em uma mesma e

única substância que a tudo rege e ordena, deixando de lado o que não é. Princípio

único que se expande igualmente para todos os lados – daí a sua redondeza –, a

realidade se expressa pela organização da multiplicidade segundo esse princípio

idêntico que homogeneíza todas as coisas. A razão é essa faculdade que permite

decifrar a harmonia não contraditória entre todas as coisas, é a faculdade que

permite apreender o real enquanto um todo proporcional onde todas as dualidades

são absorvidas, fundidas em uma totalidade unívoca. A lei universal que rege o

mundo e, portanto, a razão, é um princípio que engloba toda e qualquer

particularidade no interior dessa superfície una e contínua em todas as direções,

âmago inabalável da verdade bem redonda.

A descoberta de uma norma universal que consiga explicar a lei que está por

detrás das aparências do mundo fenomênico também inspira a filosofia de Heráclito

de Éfeso. Porém, diferente de Parmênides, Heráclito não separa ser e não ser. Para

o filósofo, o princípio totalizante do mundo, lugar de onde brota o real, é o

imbricamento entre ser e não ser através da tensão e copertencimento entre os

pares de opostos. Para Heráclito essa tensão – polemos – está presente em todos

os aspectos da realidade: é a guerra originária, o conflito, que expressa a relação

entre as coisas no universo que é, essencialmente, contrastante:

O frio torna-se quente, o quente frio, o úmido seco e o seco úmido. A guerra é o pai de todas as coisas e de todos os reis; fez de uns deuses, de outros homens; de uns escravos, de outros homens livres. Tudo se faz por contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia (SANTOS, 2001, p. 92).

Assumindo a contradição como o motor da relação tanto da natureza humana

(guerra/paz), como da natureza cosmológica (quente/frio), Heráclito propõe uma

racionalidade que desvenda a totalidade do real a partir dessa tensão/relação

existente entre opostos, devir essencial do mundo. O conhecido logos heraclitiano é

o princípio universal do pensamento, é a faculdade racional que desvenda essa

permanente oposição de onde provém a realidade.

Porém, essa dualidade essencial do mundo não se manifesta de maneira

estática. Segundo Heráclito, a tensão e o copertencimento entre opostos fazem do

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real um jogo dinâmico onde há um vir a ser em constante movimento no interior da

realidade (physis). Expresso no famoso fragmento “Águas sempre diversas correm

para os que se banham no mesmo rio” (CASERTANO, 2011, p. 103), o princípio

heraclitiano do movimento rege o real em sua dimensão mais profunda, ontológica.

O rio, formado por “águas diversas” é, ao mesmo tempo, sempre o “mesmo” rio. Ou

seja, o rio é sempre o mesmo e, concomitantemente, outro rio. Ou seja, para

Heráclito, a luta dos contrários é aquilo que subjaz no fundo da realidade. O

aparente linear e causal, a transformação da realidade em sua superfície, é habitado

por essa contradição profunda que se manifesta enquanto alternância perene de um

estado a outro em uma relação dialética primordial. Se para Parmênides não havia

relação possível entre ser e não ser, em Heráclito é nessa relação, no

copertencimento entre opostos, que se revela o impulso da realidade. O real é a

manifestação de uma relação onde o ente está saturado de seu negativo, há sempre

uma realização em curso, uma transformação que modifica e mantém o real como

sendo uno e múltiplo.

Dessa forma, a filosofia de Heráclito busca, ao contrário de Parmênides,

compreender essa relação entre ser e não ser ontologicamente inseparáveis. Para o

filósofo, a totalidade do real é ontologicamente guiada por uma razão que apreende

o real em seu movimento contraditório, se expressando assim, a partir da noção do

dois como totalidade.

Essa distinção fundante da racionalidade grega acompanha toda a trajetória

da filosofia ocidental. Regida pela relação entre a dualidade ontológica ser e não ser,

a dupla orientação do pensamento presente nos alvores da filosofia na Grécia

encontrará múltiplos desdobramentos ao longo de toda a história. Porém, essa

distinção fundamental, essa dupla acepção de como se realiza o pensamento

racional seguirá presente.

De um lado, o um como princípio, ideia de um princípio “incriado” que a tudo

engloba em sua extensão e homogeneidade e que mantém cindido o ser (aquilo que

existe) do não ser (aquilo que não existe). Ou seja, a veracidade da realidade é

admitida a partir da afirmação da unidade do ser, que existe por si próprio – verdade

bem redonda –, sempre idêntico a si mesmo. Do outro lado, o dois como totalidade,

a ideia desse princípio “incriado” como relação entre opostos em tensão e

copertencimento. Aqui ser e não ser estão mutuamente implicados um no outro, eles

se interpenetram e se afastam ao mesmo tempo, formando unidade e multiplicidade,

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habitando um no outro. O que se mantém, garantindo assim a veracidade real é

essa necessária articulação entre o ser e sua negatividade. A identidade só existe

porque está em relação contraditória com o seu oposto, a sua alteridade.

Com o advento da filosofia pré-socrática e sua dupla orientação, o

pensamento ocidental passa então a conceber a vida e o mundo de formas distintas

da época do pensamento exclusivamente mitopoético. Diferente do mundo arcaico,

onde deuses eram a causa primordial e exclusiva das relações humanas e

cósmicas, a partir dos pré-socráticos surge a indagação acerca de princípios

abstratos que originam o cosmos, dando forma ao caos do “incriado”. É pela palavra

racional e pelo manuseio da linguagem humana, segundo critérios nascidos da

indagação, que a verdade também pode ser alcançada. Surgem o discurso e a

argumentação filosóficos. A dupla racionalidade grega é, portanto, uma dupla

construção discursiva na tentativa de apreensão do real, tendo como base e

fundamento duas lógicas argumentativas: a pístis e peithó.

Pístis e Peithó: a dupla lógica argumentativa

Pístis: o discurso como não contradição.

A pístis é uma palavra que designa a confiança em um discurso verdadeiro e

não contraditório. Como deixa clara a própria tradução como “fé”, pístis traz algo de

religioso em sua concepção. É uma palavra que aponta para a existência de valores

transcendentes, valores divinos que se encontram para além da existência humana.

Representa a confiança em uma verdade imutável a ser encontrada, um como

princípio. Segundo o discurso argumentado guiado por pístis, o diálogo deve buscar

demonstrar essa verdade, alcançá-la segundo a coesão interna e o uso de princípios

não contraditórios. Seguindo uma lógica interna harmoniosa, ou seja, que não leve

em nenhum momento à desarticulação do todo perfeito e imóvel, é esse o discurso

que dá origem ao manejo técnico do mundo e à ciência enquanto busca de leis

gerais e não contraditórias para a elucidação do real. Explica Vernant:

Existe aí uma ideia fundamental do ponto de vista da racionalidade; ela está ligada, também, ao desenvolvimento da matemática e encontrará nos elementos de Euclides sua melhor expressão: trata-se da ideia que os homens são suscetíveis de inventar um discurso tal que, uma vez colocadas as premissas, todo o resto segue necessariamente, a partir daí, a verdade está ligada à coerência

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interna do discurso, à sua não contradição interna, não mais à sua adequação ao real. Eis o que caracteriza essa grande corrente filosófica (VERNANT, 2001, p. 206).

Para o discurso conduzido por pístis, o diálogo é, portanto, uma forma de

convencimento. Diálogo desigual: é papel daquele que tem o conhecimento da

verdade – esse princípio, essas premissas que estruturam o real –, ser capaz de

demonstrar ao outro a verdade. Independente da forma de encontro, a verdade é

preceito externo e alcançável por qualquer um que consiga se apoderar do discurso

(da lógica) que leve a desvendar a coerência não contraditória do real. A verdade –

que já está dada de antemão –, deve ser descoberta, revelada em sua harmonia

através do discurso demonstrativo onde deve ser exercida a arte das simetrias, das

medidas e das proporções. O mestre filósofo deve, assim, conduzir o aluno até a

verdade. É essa ideia de busca por uma verdade imutável que inaugura, a partir de

Platão, a chamada “era da metafísica”. Para Platão, a busca pela verdade é a busca

pelo princípio, por uma arché originária que consiga ascender até as ideias

incorpóreas e invisíveis – mundo suprassensível da idea – exteriores à matéria e

suas formas e imagens falsas, mundo sensível e finito.

É esse projeto metafísico de cisão entre o reino do ser e do não ser que

encontra, a partir de Aristóteles e sua obra Organon, um novo desdobramento.

Ressignificando a unidade do ser – seu princípio de não contradição –, Aristóteles

afirma uma causalidade maior por detrás de todos os movimentos do universo e cria

um sistema hierárquico que organiza esse princípio de dominação, inferiorizando e

submetendo o não ser. Como explica Borheim:

No correr do desenvolvimento da metafísica ocidental, a presença do outro sempre representou um perigo a ser cuidadosamente evitado. E o primeiro a dar-se conta do que poderia representar a anuência a tal perigo foi nada menos que Aristóteles [...]. O outro é escamoteado ou é reduzido à marginalidade dos acidentes que não prejudicam em nada a prioridade do mesmo, da substância. Nem há exagero em afirmar que Aristóteles se revela, no fundo, mais parmenídico do que Platão. Sua lógica, fundamentada no princípio da identidade e que acaba encontrando sua guarida última e definitiva na substância absoluta, encontra seu desempenho maior precisamente no banimento da contradição, que se faz, simplesmente, sinônimo de erro (BORHEIM,1999, p.102).

O mundo hierarquizado e regido por leis de Aristóteles define assim um lugar

demarcado para aquilo ou aquele que traz o emblema da outredade, o convívio com

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o não ser. Expressa pela ideia de uma realidade natural formada por espécies fixas

em uma hierarquia inalterável, o sistema aristotélico também se aplica à natureza

humana. O escravo, para Aristóteles, representa assim esse lugar possível para o

não ser, para o outro na cadeia hierárquica que forma o mundo. Ele seria a

“ferramenta inanimada”, dotado apenas da alma de escravo incapaz de raciocínio

lógico e de orientar uma decisão ética. O não ser é absorvido dentro de um sistema

de inferiorização e dominação de sua natureza, justificando assim a escravidão e,

séculos depois, a ideia de raças superiores e inferiores.

Essa hierarquização ganha, na Idade Média, o corpo religioso do cristianismo.

A partir de Plotino e sua ideia de Uno, o princípio absoluto é descrito como sem

movimento nem repouso, atemporal e sem limites. A realidade passa a ser vista

como criação de uma força exterior a ela, tornando ainda maior a distância entre ser

e não ser. Já em Santo Agostinho, Deus é comparado ao Sol e passa a ser a

luminosidade divina que dá a luz a tudo, oferecendo inteligibilidade ao mundo. Já o

princípio da hierarquia aristotélica é retomado por São Tomás de Aquino que,

escrevendo sobre a diferença ontológica entre essência e existência, cria um

sistema hierárquico entre criaturas e seres divinos. Anjos e homens habitam assim

esse novo quadro. São Tomás retoma também a noção aristotélica de causalidade

última, que passa a ser entendida como intelecto agente que controla todo plano de

hierarquia, conformando o mundo dividido em Espírito e Matéria, Alma e Corpo, Bem

e Mal. O outro é então concebido como aquilo que detém essa capacidade de

afastar o ser humano do seu criador, é o mundo manifesto, universo dos sentidos e,

em última análise, reduto do Mal, oposto radical e separado do Bem, causalidade

primeira e última, além do tempo e da criação.

Já no séc. XVI, temos dois textos inaugurais da modernidade, O Discurso do

Método de Descartes e Os aforismos de Francis Bacon que, não por acaso iniciam

com o Novo Organon e apresentam o homem (animal rationale) como o ente que

passa a conter em si mesmo (“dentro” de si) o princípio universal e inabalável do

mundo suprassensível, a razão matemática. Tudo aquilo que é imanente, múltiplo,

diversificado e em transformação passa a compor o mundo enquanto “objeto” do

conhecimento. Dali em diante, o sujeito, centro do real, pode apreender o que há de

absoluto e, portanto, verdadeiro (leis eternas e imutáveis) no mundo. Deus – um

como princípio – passa a habitar o humano através da razão. Explica Pessanha:

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Toda vez que estamos diante um discurso monológico, e um discurso que se pretende pleno, perfeito e acabado do ponto de vista racional, nós estamos na verdade subentendendo primeiro um monismo. Estamos admitindo que tudo tem um princípio único, uma única sustentação mas, estamos subentendendo – o ocidente subentendeu isso em grande parte – um monoteísmo que sacraliza e diviniza o monismo e diz que tal realidade única de sustentação tem a garantia de Deus – Descartes é um exemplo (PESSANHA, 1994, p. 93).

Peithó: o discurso como persuasão

A outra lógica argumentativa é guiada pela peithó, a força da persuasão.

Diferentemente da busca pela coerência interna e não contraditória, a persuasão é

uma força que emana do discurso retórico e da discussão. Não há aqui a intenção

de isolar o não ser e sim participar da relação contraditória e daí extrair a verdade do

discurso. O confronto é a força motriz que conforma a verdade. Ela nasce dessa

disputa entre posições contraditórias que se enfrentam. A persuasão é essa forma

de argumentar que busca enredar o seu oposto em uma teia argumentativa, que

procura seduzi-lo de maneira a conquistá-lo sem a necessidade de dominá-lo com a

imposição de uma verdade exterior. A verdade, como peithós, se realiza pelo

debate. Dessa forma, a persuasão é uma atitude intelectual eminentemente política.

Como explica Vernant:

Desenvolve-se um tipo de atitude intelectual, um tipo de discurso que não é uma narrativa e sim uma argumentação, uma argumentação ad hominin interessada, que tem pouca relação com a preocupação com a verdade, mas que constitui um aspecto fundamental da vida grega, seu papel é justamente a persuasão, ou seja, a crença, mas uma crença que não é religiosa [...]. Assim a peithó opera sobre as questões humanas no nível político, jurídico ou pessoal, mas é uma força que desenvolve um tipo de discurso novo, o discurso persuasivo ou argumentado (VERNANT, 2001, p. 205).

Assim, foi utilizando da peithó, da persuasão argumentativa realizada pela

contradição enquanto fundamento da verdade, que se desenvolveu o pensamento

de um grupo de filósofos que andavam de cidade em cidade nos arredores de

Atenas, animando debates e ensinando os atributos da retórica: eram os sofistas.

Devido às críticas e polêmicas que estes pensadores criaram com Platão e

Aristóteles, o termo sofista acabou sendo identificado com a ideia de falso

argumentador, falsário e até mesmo prostituto da cultura. Essas ideias acabaram se

instalando devido à crítica realizada pelos sofistas à cultura aristocrática e à ideia

muito difundida da superioridade da cultura grega em relação às demais.

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Defendendo o debate e a argumentação aberta em relação aos mais variados

temas, os sofistas desafiavam não só a filosofia clássica, mas também convidavam à

reflexão sobre a diferença cultural como exercício de alteridade e não de domínio.

Ou seja, os sofistas inauguraram a problematização filosófica acerca do relativismo

cultural. Como explica Casertano:

Ganharam peso duas ideias originais, a ideia de relatividade dos valores culturais, que se manifestava pelo confronto, pela investigação, pela discussão e que ancora as conquistas conceptuais, técnicas e políticas às situações humanas, relativas e históricas; e a ideia de unidade fundamental da espécie humana, além das fronteiras de classe e nação (CASERTANO, 2011, p. 181).

Ou seja, com os sofistas, ganha peso e consistência a ideia de que o outro,

aquele diferente de mim (não ser) deve participar da elucidação da verdade

filosófica. Para os sofistas, “o homem é a medida de todas as coisas” e é pelo

debate contraditório e argumentado entre diferentes posições filosóficas, políticas e

culturais que avançamos em relação à verdade universal. Indo contra a ideia da

existência dos aristoi (daí a palavra aristocrata), grupo que guardaria um parentesco

natural com os deuses, acessando assim com maior facilidade as verdades

emanadas da physys, os sofistas defendiam a ideia de nómos9. Traduzido como

conjunto de normas ou convenções, nómos era o particular de cada cultura ou grupo

social entendido como particularidade histórica que poderia ser modificada a partir

da política e do debate cultural. A universalidade, nesse sentido, é realizada no

exercício do debate contraditório no mundo político e não através de práticas

discursivas que revelem sua natureza transcendental. Para os sofistas, a verdade

não é algo dado ou revelado por detentores da tradição ou de um método decisivo

para a apreensão do real. A verdade, construída pelo constante debate no seio do

mundo, é um exercício dialético entre posições distintas que se modificam e se

contradizem, como explica Chauí:

Os sofistas introduziram em Atenas o ardor pela dialética e pela retórica, as dúvidas quanto à pretensão da filosofia de conhecer a verdade última das coisas e as discussões sobre a diferença entre o nómos (a convenção, que depende de uma decisão humana) e a

9 Sobre o pensamento sofístico acerca da physis e nómos, bem como sobre suas implicações na

crítica à aristocracia grega, que será posteriormente legitimada metafisicamente, ver AGUIAR, Roberto A. R. O que é Justiça: Uma Abordagem Dialética. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1982.

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physis (a natureza, cuja ordem necessária independe da ação humana), optando pelo primeiro contra a segunda [...]. Nómos passa a significar os usos e costumes, e daí, opinião geral ou máxima aceita por todos, o costume com força de lei ou a lei escrita, a lei costumeira (CHAUÍ, 2002, p. 165).

Seguindo esse princípio da defesa dos “usos e costumes”, um dos aspectos

mais polêmicos do pensamento sofístico é a defesa das sensações e da linguagem

como caminho até a descoberta da verdade. Contrariamente ao pensamento

platônico, as sensações e a linguagem eram, para os sofistas, fontes de

conhecimento sobre a verdade, elas não estavam separadas do pensamento nem

da dimensão coletiva de produção de valores. A sensação seria, assim como a

linguagem, mais uma fonte inteligível ao humano para que ele, utilizando do discurso

e do debate acerca da factualidade percebida por todos, pudesse expressar uma

verdade consensual. O mundo sensorial é considerado o meio de elaboração da

verdade e não mero produtor de engano. A imanência é lócus de manifestação da

verdade que se presentifica a partir de relações onde tanto a sensorialidade (o

sentir) como a linguagem ocupam lugar central.

Já durante a Idade Média, apesar da enorme hegemonia da Igreja e da

filosofia escolástica aristotélica, o pensamento regido pelo dois como totalidade

continua presente. Derivados do pensamento agostiniano (da linhagem de Santo

Agostinho) os doutores franciscanos defendiam que, ao contrário do que afirmava

Aristóteles, havia uma realidade própria à matéria. De acordo com os franciscanos, o

mundo material teria uma forma vivente independente da alma e do intelecto

primordial. Dessa forma haveria uma “pluralidade substancial no composto”, ou seja,

haveria vida própria e ativa no mundo das criaturas e não só no Criador. Para além

de um dos desdobramentos e, até mesmo, cópia do Criador, a criação tinha uma

vida, beleza e dinâmica própria, também considerada manifestação divina do Belo e

da Perfeição. O não ser ganhava assim, juntamente com o Um causal, a dignidade

da existência divina e a multiplicidade, por sua vez, ganhava uma relativa

independência do princípio da unidade de todas as coisas.

Essa importância da matéria torna-se ainda mais forte no pensamento de

Duns Scott (1266-1308), filósofo cristão que ganhou notoriedade por sua teoria do

voluntarismo (liberdade divina), assim como por suas opiniões críticas à

centralização do poder político nas mãos do Papa. Segundo Scott, Deus cria o

mundo segundo sua própria liberdade divina, ou seja, sem estar submetido a

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nenhuma causa ou princípio do Intelecto. Ao contrário, o Intelecto só pode agir a

partir da vontade, sendo a vontade livre de Deus a essência do mundo. Cada ente é

um ser independente e dotado de uma vontade livre e indeterminada. Deus, unidade

entre todas as coisas, se expressa e se faz presente no amor que liga, relaciona e

comunica um ente ao outro. Assim, com Duns Scott, a importância do não ser, do

mundo acidental e sensível chega a seu ponto máximo de importância em relação à

inteligência unitária de Deus. O infinito poder de criação e multiplicação, antes

relegado ao mundo exterior, passa a habitar no reino do mundo e portanto, no seio

da existência humana. Como explica Konder:

Durante a Idade Média, na vigência da hegemonia da Escolástica, o infinito aparece no pensamento medieval, relativamente domesticado [...]. O infinito existe no cosmos, isso é um tema antigo. Mas pensar o infinito a partir da capacidade do homem de se inventar, do poder do homem intervir no mundo, transformando o mundo com possibilidades que, em princípio, não podem ser definidas é outra coisa (KONDER, 1994, p. 50).

Essa ideia de pluralidade criativa do mundo vivido estava presente não só na

filosofia dos pensadores que teciam críticas aos Papas no interior da instituição da

Igreja, mas no cotidiano das populações do chamado Velho Mundo. Assim, o

cristianismo foi assimilando a mitologia grega expressa nos rituais praticados no

Império Romano, bem como outras mitologias próprias de outros povos por onde o

Império se estendeu. Se opondo à concepção do um como princípio, se concretizava

na prática da vida cotidiana uma coesão social baseada na diversidade cultural

expressa através de cultos de caráter comunitário que incorporavam elementos

externos no interior do cristianismo. Juntamente com a doutrina autoritária da Igreja

– mãe do obscurantismo – se desenvolveu de maneira tensa e copertencente a ela,

uma religião cristã permeada de valores culturais das diversas populações que

compunham o mundo europeu da Idade Média. Para essas populações, a

concepção do elemento divino, presente na relação e na comunicação entre

diferentes, era a expressão de seu modo de vida, sendo o cristianismo praticado por

eles muito mais um aglutinador e sintetizador de diferentes crenças do que uma

doutrina rígida e encerrada em seus próprios dogmas10.

10

Sobre a relação tanto histórica como do campo da formação das ideias, entre igreja popular e cultura popular, ver Dussel (2004).

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Dessa forma, as duas lógicas discursivas (dupla racionalidade grega) se

constituíram como via dividida da filosofia ocidental, desde a sua origem até

alcançar a Idade Média. O princípio de uma metafísica a-histórica nos remete à

existência de uma identidade baseada na não contradição, identidade imóvel que

serve como fundamento primeiro de onde provém todo o manifesto. É o princípio

hierárquico superior que rege todo o manifesto. E como se todo o real

correspondesse ao mesmo. Todos os entes, em sua finalidade última, correspondem

à mesma substância ontológica, o ser. Ou seja, é o pressuposto da mesmidade,

onde o não ser (o que não é si mesmo) é absorvido para o interior do ser e seu

sistema de valores e relações definidas ou então tem a sua existência negada,

ignorada e até mesmo exterminada. É a ideia do um como princípio.

Já no princípio da ontologia realizado enquanto tensão e copertencimento

entre opostos, o não ser participa constantemente da reinvenção do mundo, seu

devir. Inserindo o princípio da criação nessa perene contradição no seio do mundo,

não há um princípio fundante e sim a dualidade ontológica onde ser e não ser estão

inseparavelmente imbricados um no outro. É o pressuposto da outredade, no qual a

identidade é designada a partir da relação com a alteridade. Aquilo que é, só é na

medida em que se realiza na relação com o outro de si. Dessa forma, ser e não ser

estão mutuamente implicados no movimento contraditório que caracteriza o real

enquanto dois como totalidade.

Assim, podemos afirmar que a radical diferença que marca os dois

pressupostos filosóficos da mesmidade e da outredade constitui uma clara imagem

da dupla racionalidade que conformou a produção do chamado mundo ocidental. No

séc. XVI, essa duplicidade estava presente no interior do projeto civilizatório que

animava o empreendimento colonizador no continente americano. Dupla razão,

dupla argumentação, dupla noção de verdade que foram se combinando e se

desdobrando em projetos de domínio, resistência e elaboração de novos sentidos

históricos (utopias) para o conjunto das populações oriundas desse processo. Entre

a mesmidade e a outredade se constituíram os ímpetos civilizatórios que forjaram,

no encontro/confronto com as populações originárias, o momento inicial da América,

inaugurando assim a modernidade11.

11

Compartilhamos aqui da concepção de Dussel dentre outros (ver LANDER, org., 2000) para quem a modernidade se inicia em 1492. Segundo Dussel: “Propomos uma segunda visão da modernidade, num sentido mundial, e consistiria em definir como determinação fundamental do mundo moderno o

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2. O EMPREENDIMENTO COLONIZADOR: CONQUISTA, CAOS E MESTIÇAGEM

O Novo Mundo

Em 1972 é publicado As Cidades Invisíveis, livro escrito pelo italiano Ítalo

Calvino, onde é contada a história de uma grande viagem a partir de descrições e

diálogos realizados entre o navegante veneziano Marco Polo e o Imperador Kublai

Khan. Com objetivo de acompanhar dois monges que levavam a mensagem cristã

até a China durante o séc. XIV, Marco Polo permaneceu vinte e quatro anos

viajando pela Ásia, Oriente Médio e Europa oriental. No relato fantástico de Calvino,

o objetivo de Marco Polo era descrever ao seu Imperador, Kublai Khan, os detalhes

de seu enorme império que incluía o atual território da China, Tibete, Sibéria e

Afeganistão, chegando a ocupar um quinto da extensão da área habitada do mundo

da época.

A estrutura do livro, que nos remete ao universo oriental tanto em seu mote

central quanto à estrutura narrativa que faz clara alusão às Mil e uma noites, é

dividido em cinquenta e cinco descrições de cidades pertencentes ao Império de

Kan, todas com nomes femininos. Ou seja, em As Cidades Invisíveis, é criada uma

arquitetura onde é reunida, em uma mesma totalidade, o ímpeto de dominação de

Kublai Khan e o processo de descoberta, de encontro e de maravilhamento que

envolvia esse processo. Ítalo Calvino, ao descrever as cidades com nomes

femininos, propositadamente leva o leitor a imaginar o ato de descoberta do

imperador como um encontro romântico entre ele e uma mulher, representando o

contato e a relação com a alteridade como um diálogo amoroso. Dessa forma, na

narrativa de Calvino se tensionam e se enamoram o espírito de domínio, violência e

extermínio próprios aos projetos imperiais e sua face complementar, sua face

invisibilizada, de expressão da vida enquanto uma erótica, ou seja, tensão desejante

produzida no seio do mundo.

Em um trecho que descreve o diálogo entre Marco Polo e Kublai Khan,

Calvino desvenda essa dinâmica própria ao movimento da conquista, essa dialética

da conquista como domínio e/ou persuasão. Escreve ele:

fato de ser (seus Estados, exércitos, economia, filosofia etc.) centro da História Mundial” (DUSSEL in: LANDER, 2000, p. 24).

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Contudo, cada notícia a respeito de um lugar trazia ao imperador o primeiro gesto ou objeto com o qual o lugar fora apresentado por Marco. O novo dado ganhava um sentido daquele emblema e ao mesmo tempo apresentava um novo sentido ao emblema. O império, pensou Kublai, talvez não passe de um zodíaco de fantasmas da mente. – Quando possuir todos os emblemas – perguntou a Marco – conseguirei possuir meu império finalmente? E o veneziano: – Não creio: nesse dia vossa Alteza será um emblema entre os emblemas (CALVINO, 1972, p. 12).

A multiplicidade dos gestos vindos dos mais diferentes territórios formando

novos sentidos se confronta com o zodíaco de fantasmas na mente do dominador

que é incapaz de dar consistência real ao outro. No diálogo entre o imperador e o

viajante se explicita essa tensão intrínseca ao processo de expansão de uma

estrutura centralizada, imposição e diálogo inextricavelmente reunidos. Presentes na

dúbia palavra conquista, o sentido de domínio e imposição – não reconhecimento –

e do necessário diálogo entre códigos distintos ganham, a partir do início do séc.

XVI, desdobramentos de uma intensidade até então inédita. Data inicial do confronto

que fundaria a modernidade e a desenvolveria, a fundação da América inaugura um

ciclo histórico onde os pressupostos filosóficos da mesmidade e da outredade se

expandem e adquirem nova configuração. A partir do séc. XVI, um novo mundo

emerge como resultado das grandes navegações mercantilistas, do confronto entre

mundos e da acumulação gerada nesse processo. A condição desse acontecimento

histórico, sua radicalidade, irá determinar o caminho da chamada civilização dali

para diante:

A descoberta da América, ou melhor, a dos americanos, é sem dúvida o encontro mais surpreendente de nossa história. Na "descoberta" dos outros continentes e dos outros homens não existe, realmente, este sentimento radical de estranheza. Os europeus nunca ignoraram totalmente a existência da África, da Índia ou da China, sua lembrança esteve sempre presente, desde as origens. A Lua é mais longe do que a América, é verdade, mas hoje sabemos que aí não há encontro, que esta descoberta não guarda surpresas da mesma espécie [...]. Não é unicamente por ser um encontro extremo, e exemplar, que a descoberta da América é essencial para nós, hoje. Além deste valor paradigmático, ela possui outro, de causalidade direta. A história do globo é, claro, feita de conquistas e derrotas, de colonizações e descobertas dos outros; mas, como tentarei mostrar, é a conquista da América que anuncia e funda nossa identidade presente (TODOROV, 1996, p. 06).

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Essa radicalidade do encontro de modos de vida até então desconhecidos

uns para os outros, inaugura assim a possibilidade de uma oposição inédita. Essa

oposição não é, entretanto, homogênea. Pensando historicamente, cada grupo

continental vinha de uma história de milhares de anos onde a heterogeneidade da

memória histórica e formação cultural das populações que se confrontaram na

conquista realizaram distintas relações de domínio, resistência e adaptação. Mais do

que uma justaposição mecânica entre dois mundos estanques, a América surge

como um fenômeno histórico complexo, articulador e desarticulador de diversas

estruturas antigas e recém-emergidas, onde os efeitos do genocídio, da doença e da

catástrofe generalizada se configuraram como efeito comum do processo

colonizador: é essa desorganização generalizada que caracterizou o

empreendimento colonial em seu início. Como explica Gruzinsky:

No México, assim como em todas as frentes do Novo mundo, a chegada dos europeus foi, primeiro, sinônimo de desordem e caos. Gerou zonas de altas turbulências, tanto no Caribe (1493-1520), como nos Andes (1532-1555) ou no Brasil dos portugueses. Não se pode compreender a evolução da colonização, nem as misturas provocadas pela conquista espanhola se esquecemos esses dados iniciais (GRUZINSKY, 2001, p. 73).

E, um pouco adiante, continua:

Na América, o choque é tão brutal como imprevisto. Não se resume a uma questão de simples defasagem, nem a colisão de dois sistemas estáveis, em que um tivesse sido perturbado pelo surgimento do outro. O ambiente que viviam os conquistadores não tem nada de monolítico [...]. A diversidade de protagonistas indígenas e europeus – religiosa, linguística, física, social etc. – e as tensões que os opõem, introduzem uma heterogeneidade ainda mais acentuada pelo choque da derrota e pelas deficiências do quadro político (GRUZINSKY, 2001, p. 73).

Dessa forma, podemos afirmar que mais do que o confronto entre mundos

opostos, a Conquista foi também um complexo processo de profunda

desestabilização – e destruição –, assim como de reestruturação de diferentes

projetos societários, no qual afinidades, negociações e diferenças irremediáveis se

combinaram em uma trama histórica contraditória que tinha como pano de fundo o

projeto colonizador. Em ambos os mundos vicejavam diferentes interesses políticos

e horizontes de mundo, suas contradições. Esse grande empreendimento

econômico imperial que deixou, em seu primeiro século, quarenta milhões de

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mortos, trouxe para a América os diferentes sentidos, contradições e disputas por

territórios que se digladiavam no Velho Mundo antes do séc. XVI, assim como

encontrou um universo também saturado de contradições e confrontos, com

diferentes formas de organização, populações dominadas em processos de

expansão e civilizações milenares muito distintas entre si. Dessa intrincada trama de

relações de poder e visões de mundo é possível identificar objetivos comuns onde

diferentes grupos sociais convergiam, compartilhando assim de um mesmo sentido

histórico para as suas ações. Dessa forma, o empreendimento colonial se

configurou, de um lado, por uma tentativa de cópia do mundo europeu em continente

americano e de outro, pelo profundo encontro e mestiçagem entre diferentes modos

de vida que veio trazido para o continente americano.

Porém, assim como na Grécia de Platão e Aristóteles e na Idade Média de

Santo Agostinho, apenas a um desses processos foi tornado visível. A filosofia como

exercício da contradição foi invisibilizada, deixando assim, como versão oficial e,

portanto, verdadeira, o pensamento que defende a reprodução mecânica do mesmo,

cisão entre o ser e o não ser. Dessa forma, históricos processos de resistência,

adaptação, tradução, transculturação e luta foram sistematicamente preteridos na

escolha de qual verdade contar e manter permanente. Preterido o dois como

totalidade, é publicizada – dada à luz – a ideia do um como princípio e dela, a noção

de encontros entre dois mundos estanques e cindidos, cada qual mergulhado em

uma concepção própria e encerrada de mundo, cada uma dotada de uma

cosmovisão imutável e específica. Invisibilizada a dimensão do encontro, cria-se a

ideia de que só existiu a separação, a diferença como incapacidade de encontro, ser

e não ser radicalmente estranhos um ao outro. Contudo, se é verdade que muitas

diferenças radicais caracterizavam esses dois mundos desconhecidos entre si,

justificando a ideia de mundos radicalmente distintos, é também verdade que ao se

confrontarem, muitas foram as afinidades, semelhanças e esforços mútuos de

construção comum para além das diferenças radicais.

Nesse sentido, ambas as racionalidades forjadas no Velho Mundo se

transformaram ao se depararem com os diferentes mundos do continente americano

e, desse heterogêneo encontro/desencontro, emergiu uma totalidade inconstante e

acidentada onde diferentes modos de vida estão presentes, tecendo assim o

chamado labirinto latino-americano. A duplicidade de pensamentos nascida dessa

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combinação de modos de organizar o mundo social da América está presente já no

séc. XVI, momento de convulsão extrema que deu origem à modernidade.

Princípio da cruz e espada x filosofia das gentes

O ano de1492 ficou conhecido como um ano de dois grandes feitos para o

reino espanhol. Em janeiro deste ano, após mais de sete séculos de ocupação da

Península Ibérica pelos muçulmanos, o povo espanhol assistiu o exército de Isabel

de Castela e Fernando Aragão tomar o Reino de Castela, último reduto árabe na

Península Ibérica, selando assim o longo processo da chamada Reconquista e

iniciando a reunificação de seu reino segundo a fé cristã. Considerada como a

continuação da “guerra santa” contra os infiéis, a conquista do Novo Mundo realizou-

se ancorada na mentalidade guerreira e mística própria da herança medieval

cavalheiresca.

Juntamente com o ímpeto religioso que movia o interesse de parte dos

colonizadores, estava a sede por lucro advinda da exploração dos metais, processo

que se intensificou muito a partir de 1519 com a conquista de Tenochtitlán – sede do

Império Asteca – por Hernán Cortés. Procurando fortalecer e enriquecer seu estado

recém- unificado, a Espanha não poupou esforços para retirar a maior quantidade

possível de metal precioso do continente. No caso do Brasil, a fraca presença

portuguesa nos primeiro anos do séc. XVI impôs outro ritmo de penetração ao

continente. Porém, o processo de dominação e controle também se fazem

presentes, com o diferencial do grande contingente de população escravizada

trazida da África.

Dessa forma, o empreendimento colonizador uniu o princípio cruzadista

religioso da cristandade com a nascente necessidade de acumulação de capital

própria ao mercantilismo colonial que se iniciava. Nascia o conhecido princípio da

Cruz e da Espada que viabilizaria a exploração aguda dos recursos naturais do

continente e a territorialização de um modo de vida baseado na ideia de que a

América era o Novo Mundo, tendo assim que se constituir como cópia de sua matriz

ou metrópole. Uma cópia, porém, decaída e inferiorizada em relação à matriz. Ou

seja, deveria seguir a lógica da mesmidade, porém de uma maneira adaptada ao

processo de dominação colonial dos povos originários e trazidos para servir de mão

de obra escrava. A América deveria cumprir seu destino de ser hierarquicamente

inferior e, ao mesmo tempo, ser o mesmo, ou seja, cópia da Europa, elemento

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inferiorizado no interior do sistema colonial. Chamando esse processo de

ocidentalização, escreve Gruzinsky:

A ocidentalização cobre o conjunto dos meios de dominação introduzidos na América pela Europa do Renascimento: a religião católica, os mecanismos de mercado, o canhão, o livro ou imagem. Assumiu formas diversas, quase sempre contraditórias, às vezes até em franca rivalidade, já que foi a um só tempo material, política, religiosa – caso da “conquista espiritual” – e artística, mobilizou instituições, grupos – monges, juristas, conquistadores etc. –, mas também famílias, linhagens, indivíduos. Uma vez na América, uns e outros se empenharam em edificar réplicas da sociedade que haviam deixado pra trás (GRUZINSKY, 2001, p. 93).

Assim, a concepção da Cruz e Espada expressava o fundamento do um como

princípio através de um sistema baseado na mesmidade hierarquizada. Ou seja, na

ideia da não contradição como base da divisão hierárquica da realidade já realizada

por Aristóteles e retomada pela teologia medieval.

Juntamente com esse projeto de dominação baseado na reprodução do

mesmo, imbricado nele de maneira contraditória, se desenvolve uma corrente

filosófica baseada na relação com o outro, sua diferença. Resultado da acumulação

de riquezas advinda da exploração da América e, de modo marcante, pelo contato

com as civilizações originárias, emergiu um novo período da história da Espanha e

Portugal, conhecido como “Século de Ouro”, época em que esses países

experimentam um grande desenvolvimento das Artes, Letras, Ciências, Religião e

Filosofia. Chamado também de Renascimento Ibérico, o período permitiu o

florescimento de diferentes universidades e escolas filosóficas, conhecidas pelo alto

grau de sofisticação e profunda influência em toda cultura europeia da época.

Escreve Dussel:

A produção filosófica do séc. XVI na Espanha e Portugal estava regularmente articulada com os acontecimentos atlânticos, com a abertura da Europa ao mundo. A Península Ibérica era o território europeu que vivia a efervescência dos descobrimentos inesperados. Chegavam constantemente notícias das províncias do ultramar, da América hispânica e das Filipinas para Espanha, do Brasil, Ásia e África para Portugal. [...] Na Europa, nenhuma universidade ao norte dos Pirineus tinha essa experiência mundial (DUSSEL, 2010, p. 358).

Formada pelas universidades de Valladoid, Coimbra, Braga, Évora, Alcalá,

Salamanca dentre outras, esse sistema universitário foi responsável por uma

retomada dos estudos aristotélicos a partir de uma leitura muito influenciada pelo

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pensamento de Duns Scott. Assim, a Segunda Escolástica dava continuidade à

tradição filosófica que colocava em questão o percurso metafísico da filosofia

clássica. Assim, juntamente ao Renascimento Italiano, à Reforma Protestante, à

expulsão dos Mouros e às Grandes Navegações, a Segunda Escolástica foi um

movimento filosófico que, na passagem da Idade Média ao Mundo Moderno, teve

que reelaborar o pensamento de um mundo em plena transformação e serviu como

ponte entre estes períodos. A partir desse momento, a totalidade cósmica regida por

Deus “aterrissaria” no mundo da vida, transferindo aos seres humanos – portadores

de uma vontade criadora – a responsabilidade por seus atos individuais e coletivos.

Diante de um contexto sociocultural que se reorganizava a partir da entrada

de povos extremamente distintos, surgia a necessidade de pensar o mundo político

das relações para fora da totalidade cósmica centralizada pela onipresença de Deus.

Assim, amparada na tradição da filosofia cristã que destoava da metafísica clássica,

irrompe a vontade humana como possível impulso da realidade e os seres humanos

como principais agentes das mudanças na realidade.

Dessa forma, seguindo o caminho dos “Renascimentos” e a decadência da

Idade Média, a Idade Moderna trazia a noção de uma individualidade humana que

expressa nas suas relações entre si – sociais, portanto –, a capacidade criadora que

outrora era exclusivo atributo do divino. Assim, passa a ser responsabilidade

humana o sentido histórico de sua existência e de suas ações. A construção do

tempo humano (passado, presente e futuro), assim como as concepções sobre a

temporalidade do universo (suas imagens), sofrem profundas transformações.

Se o princípio da mesmidade – um como princípio – era uma tentativa de dar

continuidade a um projeto econômico-filosófico de séculos, diversas mudanças

históricas se tensionavam a esse projeto, impulsionando a entrada na modernidade

e o seu novo sentido histórico. Em um longo e elucidativo trecho, escreve Quijano:

Dessa perspectiva, é necessário admitir que a América e suas consequências imediatas no mercado mundial e na formação de um novo padrão de poder mundial, são uma mudança histórica verdadeiramente enorme e que não afeta somente a Europa, mas o conjunto do mundo. Não se trata de mudanças dentro do mundo conhecido, que não alteram senão alguns de seus traços. Trata-se da mudança do mundo como tal. Este é, sem dúvida, o elemento básico da nova subjetividade: a percepção da mudança histórica. É esse o elemento que desencadeia o processo de constituição de uma nova perspectiva sobre o tempo e sobre a história. A percepção da mudança leva à ideia do futuro, já que é o único território do tempo no qual podem ocorrer as mudanças. O futuro é um território temporal

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aberto. O tempo pode ser novo, pois não é somente a extensão do passado. E, dessa maneira, a história pode ser percebida não só como algo que ocorre, seja como algo natural ou produzido por decisões divinas ou misteriosas como o destino, mas como algo que pode ser produzido pela ação das pessoas, por seus cálculos, suas intenções, suas decisões e, portanto, como algo que pode ser projetado e, consequentemente, ter sentido (QUIJANO, 2000, p. 113).

Com base nesse novo sentido para a sua existência (o sentido histórico),

surge, a partir da Segunda Escolástica, o princípio do jus gentiun ou o “direito das

gentes”. Conjunto de normas que procura ordenar a convivência entre os diferentes

grupos humanos, o jus gentium se baseia no princípio das comunidades humanas

serem capazes de julgarem a si mesmas através de um entendimento sobre a sua

natureza comum. Ou seja, são leis que procuram expressar a capacidade dos seres

humanos se entenderem por si mesmos, sem a necessidade de serem

intermediados pela “lei divina”.

O jus gentium é um princípio que busca, para além das leis “internas” dos

povos, instituir um conjunto de condutas que deve ser seguido por toda a

comunidade humana. As diferentes comunidades humanas, por serem capazes de

criar leis próprias para seus membros e para a reprodução da vida comum – mesmo

que muito distintas entre si –, assim o fazem porque partilham de uma natureza

humana comum que possibilita a comunicação e o consenso. Somente os humanos

são capazes de criar uma comunidade e uma história comum, sendo toda

comunidade humana dona de sua própria autonomia e da liberdade de determinar

seus caminhos. Sendo assim, são construtoras de sua história e, portanto,

portadoras do princípio divino em suas existências, princípio universal capaz de se

realizar através de diferentes costumes e formas de manejo do mundo.

É essa duplicidade e tensão entre o princípio da Cruz e da Espada – Um

Como Princípio – e o princípio do Direito das Gentes – dois como totalidade – que

está no cerne do emblemático confronto entre os freis dominicanos Bartolomé de

Las Casas e Juan Ginés da Sepúlveda, a conhecida Controvérsia de Valladolid.

Ápice de uma série de acontecimentos e discussões em torno da política

colonial espanhola, a Controvérsia de Valladolid se realizava a partir de um

movimento iniciado no interior da igreja que tinha como objetivo a extinção da

encomienda, estatuto jurídico que permitia aos encomenderos explorar a mão de

obra de um determinado número de índios, desde que oferecessem a eles a

evangelização. Na prática, as encomiendas significavam a legitimação da

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escravidão, já que os indígenas eram tratados como não humanos, animais sem

alma, mera força de trabalho.

Citado e estudado até os dias atuais por conseguir capturar as linhas-força

que se digladiavam no nascedouro da modernidade – e que se estendem até hoje –

a disputa entre Las Casa e Sepúlveda é considerada um dos marcos do debate

filosófico da modernidade e explicita a disputa, no interior do mundo ocidental, de

dois modos de pensamento, duas racionalidades.

O conjunto de argumentos e contraposições efetuado ao longo das duas

sessões de debate filosófico entre Sepúlveda e Las Casas pode ser sintetizado em

uma questão central: eram os índios portadores de uma alma racional? Para

respondê-la, cada um dos expositores construiu uma série de argumentos que foram

confrontados e debatidos. Mesmo apresentados de forma muito sintética, o espírito

de cada argumentação deixa explícito cada uma das visões e sua oposição extrema.

Sepúlveda, que nunca havia estado entre os índios, baseou toda a sua

argumentação no princípio da escravidão natural de Aristóteles. Para este filósofo, o

universo todo seria uma totalidade dividida hierarquicamente, onde dualidades –

corpo/alma, senhor/escravo, matéria/forma – manteriam entre si uma dinâmica

natural de dominação. Como ele mesmo explica:

Vê-se, pois, que a discussão que vimos de sustentar tem algum fundamento; que há escravos e homens livres pela própria obra da natureza; que essa distinção subsiste em alguns seres, sempre que igualmente pareça útil e justo para alguém ser escravo, para outrem mandar; pois é preciso que aquele obedeça e este ordene segundo o seu direito natural, isto é, com uma autoridade absoluta. O vício da obediência ou do mando é igualmente prejudicial a ambos. Porque o que é útil em parte o é no todo; o que é útil ao corpo, o é à alma. Ora, o escravo faz parte do senhor como um membro vivo faz parte do corpo – apenas essa parte é separada (GOMES, 2006, p. 40).

Com base nesses argumentos, Sepúlveda defendia o extermínio dos índios

como forma de salvá-los, caso eles não se convertessem. A morte, nesse caso,

seria melhor do que mantê-los vivos e permanecendo em sua vida de pecados e

ofensas extremas a Deus. No caso de sua conversão, Sepúlveda defendia a

escravidão, melhor forma dos índios servirem a Deus já que, devido à sua

inferioridade, jamais poderiam alcançar o lugar de humanos plenamente potentes,

donos, portanto, de um direito natural. Cada ente teria um lugar definido no universo,

de acordo com premissas hierárquicas já dadas de antemão e que mantém a

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integridade simétrica do todo; sua coesão interna. Ou seja, a vontade própria deve

estar submetida aos pressupostos “naturais” e hierarquicamente superiores, no

caso, as leis imutáveis de Deus.

Os argumentos de Las Casas procuram demonstrar justamente o contrário.

Primeiramente, Las Casas refuta o argumento da inferioridade dos indígenas,

demonstrando, a partir de exemplos que retirou de décadas vivendo junto às

populações indígenas, que suas formas de organização e governo próprios são tão

estruturadas quanto às do mundo ocidental, provando assim sua razoabilidade.

Não são privados de razão, nem cruéis, nem feras, pelo contrário, muito antes de conhecerem o povo espanhol, tinham repúblicas legitimamente constituídas, isto é, corretamente administradas por meio de uma ótima legislação, religião e instituições, cultivavam a amizade e unidos em uma sociedade de vida, habitavam grandes cidades nas quais prudentemente e com bondade e equidade administravam os negócios tanto da paz quanto da guerra; seu governo se regia por uma legislação que, em muitas coisas, supera a nossa e podia causar admiração nos sábios de Atenas (GOMES, 2006, p. 73).

Por esse mesmo caminho, Las Casas defende que os índios são livres e

donos legais de seus bens. Se opondo frontalmente ao uso da violência, à

expropriação dos territórios indígenas e sua escravidão como forma de

catequização, Las Casas demonstra clara inclinação aos preceitos da persuasão,

em que o princípio da vontade não deve ser submetido a uma lógica precedente e

encerrada em si mesma e sim atraído, segundo princípios do entendimento racional,

reconhecido como algo inerente ao ser humano, mesmo que este pertença a um

campo distinto no modo de gerir e dar sentido à existência. Nesse sentido, Las

Casas defende um modo de interação onde é levada em conta não somente o

princípio racional que guia o ser, mas também aquele que guia o não ser; um campo

relacional comum constituído a partir do reconhecimento do outro em sua condição

humana, campo que se manifesta no mundo da vida e em sua imanência, ou seja,

em seu universo político. Como escreve Dussel, o conjunto de argumentações

realizado por Las Casas se configura como “um manifesto de filosofia intercultural,

de pacifismo político e crítica certeira e por antecipação a todas as guerras justas da

modernidade” (DUSSEL, 2010, p. 365).

Assim, já no início da colonização, estavam presentes as distintas

concepções filosóficas da mesmidade e da outredade e que não se encerraram na

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Controvérsia de Valladolid, se realizando de diferentes maneiras ao longo de toda

história da América. Porém, para entendermos a real originalidade que essa

duplicidade forjou no continente americano é preciso levar a mistura dessa dupla

racionalidade com os diferentes modos de pensamento já existentes no continente.

A mestiçagem

Forjados a partir da memória histórica milenar da diversidade de povos que

habitavam o continente, os pensamentos filosóficos desses povos12 se combinaram

de maneira indefinida e das mais diferentes formas às concepções filosóficas

forjadas na Europa. Desse processo de tradução realizado sempre em um jogo de

forças onde esteve presente a marca da dominação, criou-se o pensamento

misturado, pensamento mestiço que caracteriza o modo de ser do continente latino-

americano. Porém, esse fenômeno complexo de interação simbólica e de práticas

sociais só pode ser compreendido se levado em conta o processo catastrófico do

choque colonial e seu efeito devastador para as populações originárias. Totalmente

desfigurada e atingida em suas referências anteriores ao séc. XV, surge no

continente americano um modelo civilizatório onde a destruição de modos de vida e

seus símbolos exigia um recriação original que tornasse possível a continuidade da

vida.

No palco do novo cenário, epidemias, catástrofes e violências brutais

transfiguraram completamente os diferentes pontos de colonização, instalando um

conjunto de relações sociais onde a perda de referência e a necessidade de

combinações inéditas eram imperativas. Atingidas por diferentes formas de

alterações, as sociedades recém-emergidas da América se constituíram a partir de

uma bricolagem onde os diferentes modos de ordenação social – autoridades

políticas, religiosas, tradição e costumes, imaginários instituídos – foram

desintegrados e, muitas vezes, reduzidos a vestígios ou fragmentos que, isolados,

se tornaram totalmente inoperantes. Essa heterogeneidade desfigurada começava

pelos próprios colonizadores. A diversidade existente nos reinos europeus, onde

entravam em conflito o paganismo, o cristianismo, o judaísmo e a religião

muçulmana trouxe, já nos navios, uma série de conflitos e uma população formada

12

Sobre o pensamento filosófico dos povos ameríndios, ver Dussel (2009), Nessa obra, há um conjunto de artigos de especialistas em diferentes filosofias indígenas. Ver também Viveiro de Castros (2002) e GALINDO (1982) e Estermann (1998).

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por extratos subalternos em sua terra de origem, deserdados. População degredada

formada em sua esmagadora maioria por homens. A essa tensão e instabilidade que

chegavam se somou a diversidade de conflitos das sociedades indígenas do

continente, também saturadas de desavenças políticas. Cruzadas pela violência

extrema do processo colonial, sua força de avassalamento e dizimação, essas

diferentes sociedades se digladiaram e conduziram a vida do continente a um nível

de desordem que atingiu e desestabilizou, em diferentes intensidades, todo o seu

território. Mais concentrados em determinados centros geopolíticos importantes e de

maior potencial exploratório, a instabilidade crônica se fez presente de diferentes

formas, combinando pela violência da dominação uma infinidade de povos com suas

identidades desgarradas, sem centralização política e com muitos obstáculos na

transmissão de informações e nas trocas simbólicas. O resultado foi um mosaico

sociopolítico-cultural organizado no limite que pedia a exploração econômica e a

necessária e lenta adaptação e acomodação de valores para se estabelecer uma

vida comum estável. Como explica Gruzinski:

Colocados sob o signo da fragmentação, a era de turbulência que se abriu com a Conquista, ao perturbar a comunicação entre os grupos, influenciou definitivamente na forma de vida da América Ibérica. A invasão desencadeou, em todos os campos e por um largo tempo, a perda e a deterioração das manifestações de identidades originais – africanas, mediterrâneas e ameríndias – e a elaboração aleatória e intermitente de outras novas. [...] Estas manifestações da colonização – observáveis na América espanhola do séc. XVI – prefiguraram obviamente nossas formas de nos aproximarmos de outras culturas do mundo, já que fomos obrigados a incorporar elementos que afluíam de todos os cantos do globo (GRUZINSKI, 1999, p. 501).

Assim, a partir de uma situação de instabilidade radical e necessidade de

novas conformações, se forjaram estratégias de tradução e incorporação de valores

que, ao combinarem práticas sociais, universos simbólicos e modos de vida muito

distintos entre si, criaram uma lógica própria de interpretação e produção de mundo.

Na aurora da América, sob o signo trágico de um genocídio que exterminou nove

décimos da população do continente, nascia um mundo onde a presença da tradição

enquanto memória histórica mais homogênea do continente havia sido, em boa

parte, estraçalhada. Juntava-se a ela, a memória daqueles que vinham de fora,

prontos a reestruturar por completo sua existência social. Essa formação diversa e

caótica, essa mistura de misturas, se estabeleceu como uma assimilação dos

horizontes filosóficos da mesmidade e da outredade em seu contato com modos de

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pensamento e práticas sociais próprias das populações do continente. Nascia então,

duplicizada filosoficamente e sobre escombros de uma hecatombe de longa

duração, a Era Moderna.

Assim, a modernidade nasce como uma tentativa de cópia e reprodução

decaída e dependente do mundo europeu; tentativa de transformar esse mundo

heterogêneo desconstruído em um sistema organizado segundo a necessidade da

acumulação de capital necessária ao modo de produção recém-surgido no horizonte

da humanidade. Para isso, a diversidade sociocultural e os confrontos entre modos

de vida distintos foram integrados em um padrão de dominação que estruturou a

racionalidade própria e necessária ao capitalismo onde o outro, em suas mais

diferentes formas, é negado e convertido em objeto. Identificando essa racionalidade

– um como princípio – a partir do termo humanismo, explica Echeverría:

Por humanismo deve entender-se, seguindo a Heidegger, um antropocentrismo exagerado, levado até o umbral de uma “antropolatria”. Não somente a tendência da vida humana de criar para si um mundo (um cosmos) autônomo e dotado de autossuficiência relativa à respeito do Outro (o caos), e sim uma pretensão de submeter a realidade mesma do Outro (todo extra, infra e sobre-humano) à sua própria e constituir-se em qualidade de Homem ou sujeito independente frente a um Outro convertido em puro objeto, em mera contraparte sua, em “Natureza” (ECHEVERRÍA, 2005, p. 151).

Reconhecido claramente no projeto de dominação colonial-mercantil-

capitalista, esse paradigma humanista é um desdobramento da teologia aristotélica

da Idade Média e faz do homem “imagem e semelhança de Deus” em sua

superioridade sobre todas as coisas, sobre tudo aquilo que não é si mesmo.

Por outro lado, a modernidade também emerge como tentativa de manejar a

heterogeneidade própria ao mundo que se estabelece a partir do séc. XVI

estruturando sua arquitetura histórico-cultural nessa lógica da incorporação do outro,

da inventividade como forma de reunião e surgimento de si. Desse modo, realiza-se

um pensamento que propõe, desde o início da colonização, a invenção de uma outra

modernidade, configurando assim um ethos específico à mestiçagem própria ao

continente americano, um ethos que nasce junto, implicado à tentativa de

reprodução que opera subvertendo os símbolos e as práticas próprias ao sistema de

opressão do dominador. Esse modo de relação, ao se reunir com os princípios de

uma religiosidade cristã mais permissiva – matizada por traços pagãos – originou

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parte significativa da chamada cultura popular do continente. Incorporada pela Cruz

e Espada como mão de obra explorada, agente da Mímesis e reprodução do

ocidente, tentou ser anulada, negada e invisibilizada, mas se desenvolveu como

força contraditória a esse padrão de dominação, formando um modo próprio de

pensamento – uma racionalidade – que se realiza na tensão crítica à modernidade

como processo de evolução linear, de progresso que caracteriza o percurso

metafísico. Segundo Quijano,

As populações colonizadas foram submetidas à mais perversa experiência de alienação histórica. No entanto, a história que é cruel com os vencidos é também vingativa com os vencedores. As consequências dessa colonização cultural não foram terríveis somente para os “índios” e os “negros”. Eles foram obrigados à imitação e simulação do distante e à vergonha do próprio. Mas ninguém pôde evitar que eles aprendessem rápido a subverter tudo aquilo que tinham que imitar, simular e venerar. [...] E todo mundo sabe agora, inclusive os setores mais conservadores da igreja cristã, que seus cultos e suas práticas religiosas foram subvertidos em todas as partes (QUIJANO, 1998, p. 33).

Assim, tanto na busca da reprodução do mesmo como no constante exercício

de renovação a partir do outro, o que está em jogo é a elaboração de um sentido

histórico para esse universo de experiências, práticas sociais e simbólicas muito

heterogêneas formadas a partir da colonização. Duplicidade que caracteriza a

formação identitária da América Latina em seus variados tempos históricos, o

padrão de dominação colonial e sua luz negativa, resistência e possibilidade de uma

outra modernidade, formam o eixo histórico da consciência social da modernidade

no continente; uma consciência dividida entre dois modos de organizar as diferente

memórias e tempos sociais que se encontraram/confrontaram no intrincado

processo de formação identitária do continente, seu labirinto. Ou seja, apesar de

reelaboradas a partir das profundas transformações trazidas pela colonização se

manteve o confronto fundamental entre um como princípio e dois como totalidade.

Alçada a polaridades ainda mais radicais em suas indagações fundamentais,

as duas formas distintas de lidar com a existência de si e do mundo tiveram de

assimilar o novo horizonte aberto pela emergência da modernidade. Impulsionados

pelo novo ciclo econômico que surgia com a colonização, a radical diferença entre

culturas e civilizações, assim como suas afinidades e necessárias traduções

restabeleceram as concepções de mesmidade e Otredade no interior do sistema de

produção que surgia em seu caráter global: o capitalismo mundial.

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3. DOMINAÇÃO COLONIAL E MESTIÇAGEM CRÍTICA: AS DUAS FACES DA MODERNIDADE

A sedimentação do empreendimento colonial

Assim como nos lembra Ítalo Calvino em sua obra sobre o império de Kublai

Khan, todo processo de conquista traz consigo o domínio sobre o outro e, ao mesmo

tempo, uma descoberta. Nesse sentido, o mundo de caos e mestiçagem

(GRUZINSKY,1999, p.108) criado pela convulsão inicial da colonização serviu de

base ao capitalismo mundial que nascia. Totalidade heterogênea desde o seu

surgimento, sua multiplicidade se articulou seguindo dois eixos fundamentais. Sobre

essa relação no interior da totalidade que funda a modernidade, escreve Lefebvre:

O mundo moderno avança precedido ou seguido de suas sombras: crises múltiplas, sempre frequentes e mais profundas, contradições e confusões inextrincáveis, dramas e catástrofes. [...] Demarcando o terreno, nós queremos propor aqui a tentativa teórica que, descobrindo o modernismo e levando a seu termo conceptual a modernidade, mostrará o movimento e os aspectos teóricos e negativos por meio de uma crítica radical (o mais “negativo” revelando-se às vezes o mais “positivo” e inversamente), o que dizemos não para confundir antecipadamente as ideias, mas para especificar o método: a dialética (LEFEBVRE, 1969, p. 5).

Seguindo Lefebvre e Calvino no horizonte da conquista e da modernidade –

esse universo de “caos e mestiçagem” que caracterizou o séc. XVI –, foram sendo

criadas zonas de maior estabilidade por todo o continente em um conjunto de

práticas sociais que, mesmo com extrema diversidade e adaptação aos territórios

locais, seguiu um duplo eixo comum, articulado entre si, em perene tensão: a

dominação colonial e a mestiçagem crítica.

Obedecendo ao princípio da Cruz e Espada, o projeto de dominação colonial

na América tinha como objetivo a reprodução expandida do mundo europeu em solo

americano. Identificando o novo continente como espaço cheio de riquezas a serem

exploradas e habitado por infiéis (força de trabalho) a serem cristianizados, estavam

dadas as condições para o empreendimento avassalador que consumiu cerca de

quarenta milhões de vidas no espaço de menos de um século. Baseado por um lado

em uma violência genocida e à submissão de grupos inteiros ao trabalho escravo e,

por outro na, imposição de modos de viver o tempo e o sagrado, assim como todos

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os demais âmbitos da existência social (cuja uma das maiores “novidades” foi a

unidade familiar cristã), o domínio colonial em seu primeiro século se realizou entre

o extermínio das populações originárias ou a submissão irrestrita às regras impostas

pela Igreja e pela Coroa. Como resultado desse processo, após um século de

convulsão, surgiam zonas mais estáveis de assentamento humano e práticas

nascidas do encontro/confronto de diferentes costumes. Estabelecia-se assim, no

início do séc. XVII, um quadro mais acomodado e com um ritmo um pouco mais

uniforme de reprodução da vida; quadro marcado pela intensa miscigenação que

deu origem ao mundo mestiço próprio do continente:

Na demografia vemos como a curva descende marcadamente até o fim do séc. XVI e como ascende nas primeiras décadas do séc. XVII. E, o mais importante, se levarmos em conta a consistência étnica da população que decai e compararmos com aquela que cresce, a diferença é substancial: enquanto no primeiro caso, a presença da população indígena é predominante, sendo a presença espanhola muito débil e a presença africana mais débil ainda, observamos que a nova população que aparece no séc. XVII possui uma consistência étnica desconhecida. A América passa a ser povoada por mestiços de todo o tipo e cor (ECHEVERRÍA, 2005, p. 50).

Uma mudança significativa ocorre também no campo econômico, no qual não

é somente a exploração de metais preciosos e dos “vegetais preciosos” em caráter

exclusivamente predatório que se observa. Com a criação de certa estabilidade e de

um mercado interno, criam-se também atividades comerciais diversificadas com

manufaturas e outros produtos que circulam em rotas internas de comércio. No caso

da exploração da força de trabalho, o ambiente também muda. Na América

espanhola, o sistema das encomiendas e da escravidão indígena deu lugar às

haciendas, na qual a força de trabalho passa a ser comprada e vendida,

obedecendo, porém, às relações de caráter servil e se aproveitando de estruturas de

trabalho comunitário pré-colombianas como nos conhecidos ayllus. No Brasil, a

mudança também foi drástica e, apenas após algumas dezenas de anos do séc.

XVI, já havia se estabelecido ao longo da costa e no interior das monções três tipos

de povoamento adaptados à realidade econômica e étnico-racial do povo que ali

surgia. Escreve Ribeiro:

O primeiro e principal [povoamento], formado pelas concentrações de escravos africanos dos engenhos e portos. Outro, disperso pelos vilarejos e sítios da costa ou pelos campos de criação de gado, formado principalmente por mamelucos e brancos pobres. O terceiro

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esteve constituído pelos índios incorporados à empresa colonial como escravos de outros núcleos ou concentrados nas aldeias (RIBEIRO, 2005, p. 53).

Dessa forma, pode-se afirmar que a partir do séc. XVII estava em execução,

de maneira heterogênea e em diferentes graus, um sistema de produção que tinha

como base dois eixos articulados entre si. Primeiro, um conjunto de representações

sociais que organizou a produção segundo uma classificação social, com base na

racialização da população. E, segundo, o controle e hierarquização das diferentes

formas de organização para o trabalho, segundo critérios de raça, estruturando uma

“divisão racial do trabalho”, tornando-se a base das relações sociais no universo

colonial-mercantil-capitalista. Sedimentava-se assim, como padrão de exploração da

força de trabalho para a acumulação do capital, a colonialidade do poder.

Colonialidade do poder

A partir do séc. XVII, com a sedimentação do empreendimento colonizador,

fortaleceu-se a dinâmica fundamental da colonialidade do poder e de seus dois eixos

fundamentais, como explica Quijano:

A América constitui-se como o primeiro espaço/tempo de um padrão de poder de vocação mundial e, desse modo e por isso, como a primeira id-entidade da modernidade. Dois processos históricos convergiram e se associaram na produção do referido espaço/tempo e estabeleceram-se como os dois eixos fundamentais do novo padrão de poder. Por um lado, a codificação das diferenças entre conquistadores e conquistados na ideia de raça, ou seja, uma supostamente distinta estrutura biológica que situava a uns em situação natural de inferioridade em relação a outros. [...] Por outro lado, a articulação de todas as formas históricas de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos, em torno do capital e do mercado mundial (QUIJANO, 2000, p. 37).

Juntamente a essa mudança estrutural no modo de reprodução da vida, foi

necessária uma reorientação no campo das mentalidades. A cisão do cristianismo, a

expulsão dos mouros, as grandes navegações e a descoberta de outra humanidade

já não permitiam que o mundo ocidental fosse entendido como um todo homogêneo

sob a égide de um Deus único, representado por uma igreja única. Aos poucos, com

o fortalecimento da noção de vontade e de imanência, se delineia a constituição de

um sujeito cognoscente, um sujeito capaz de, pela sua própria vontade, conhecer e

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transformar o mundo a partir do conhecimento de suas leis imanentes. Como explica

Matos:

O antigo tabu do natural – que pressupõe a diferença essencial entre experiência (de laboratório) e “fenômenos naturais” considerado sagrado naquele momento – vê-se inteiramente ultrapassado. O homem não mais teme ser fulminado por deuses. Conhecer é construir, graças à engenhosidade técnica. Deus concede ao homem a missão de trabalhar a sua imagem, de constituir o mundo em pensamento como um dia Deus o criou, dando-lhes leis (MATOS, 1999, p. 201).

Assim, de um mundo regido pelo inalcançável arbítrio divino, aos poucos se

delineia um mundo regido por leis manifestas e observáveis, leis que podem ser

apreendidas pelo conhecimento e pela experiência humana. Se na Idade Média a

concentração de poder se situava na Igreja e em seus aliados – reis e membros da

corte, considerados representantes de Deus entre os humanos –, a Idade Moderna

se anunciou como um mundo mais diverso, no qual todo humano seria dotado da

capacidade de conhecer e transformar o mundo. Nesse sentido, foi necessário

elaborar um modo de pensamento específico que conseguisse assimilar as

transformações sociais em curso e, ao mesmo tempo, dar continuidade à

centralização de poder que caracterizava a concepção do um como princípio. Era

preciso reconhecer a capacidade humana, sem com isso perder o controle

centralizado sobre a humanidade.

Surgia dessa forma o pensamento eurocêntrico, perspectiva de conhecimento

elaborada ao longo dos cinco séculos de conquista, fundado juntamente com a

América e com o início do capitalismo mundial, servindo como esteio filosófico e

“naturalizando” a lógica de expropriação da força de trabalho através da racialização

da sociedade, como explica Quijano:

Dessa perspectiva eurocêntrica, certas raças são condenadas como “inferiores” por não serem sujeitos “racionais”. São objetos de estudo, “corpo” em consequência, mais próximos da “natureza”. Em certo sentido, isto os converte em domináveis e exploráveis. De acordo com o mito do estado de natureza e da cadeia do processo civilizatório que culmina na civilização europeia, algumas raças – negros (ou africanos), índios, oliváceos, amarelos (ou asiáticos) e nessa sequência – estão mais próximas da “natureza” que os brancos Assim, todos os não europeus puderam ser considerados, de um lado, como pré-europeus e ao mesmo tempo dispostos em certa sequência histórica e contínua do primitivo ao civilizado, do irracional

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ao racional, do tradicional ao moderno, do mágico-mítico ao científico (QUIJANO, 2000, p. 52).

Desenvolvido principalmente a partir de Descartes e sua separação radical

ente alma/corpo, sujeito/objeto, humano/natureza, é a partir da matriz eurocêntrica

de pensamento que se articula a ideia de raça e controle do trabalho. Porém, a ideia

da existência de uma relação direta entre fenótipo e cultura é muito mais antiga. Sua

origem remete há mais de cinco mil anos, quando em conflitos por território entre

povos nômades invasores e povos agrícolas sedentários. Diferenciados

fenotipicamente, essas populações teriam dado origem a uma série de

representações míticas que, ao longo dos séculos, “naturalizaram” a hierarquização

das diferenças fenotípicas e sua característica central: a intenção de extermínio do

Outro. Para Moore,

[...] a transformação de antagonismos civilizatórios longínquos numa ordem simbológica fantasmática ancorada nas singularidades fenotípicas seria, assim, a mais provável origem do racismo na história da humanidade (MOORE, 2007, p. 180).

Dessa forma, ao longo da história foram registrados muitos sistemas

pigmentocráticos, ou seja, baseados no fenótipo onde a cor da pele exerce

importante função. Os Jônios e Dórios, na Europa Meridional; Hititas e Sumerianos

no oriente Médio e os Arianos na Ásia Meridional foram alguns deles. No caso

específico do racismo como parte do sistema colonial, seu precedente remete às

relações de estranheza entre o mundo judaico e o conjunto de povos que formavam

o mundo greco-romano. Estas tensões se agudizaram ainda mais no momento em

que o cristianismo foi elevado à categoria de religião oficial do Ocidente no séc. IV, o

que acentuou a estigmatização contra os judeus.

A oficialização dessas práticas contra os judeus vem em 1449 quando surge,

na Espanha, o Certificado de Limpeza de Sangue, conjunto de normas que

impediam a participação de judeus em cargos públicos. Inicialmente reservado aos

judeus, em pouco tempo, tornou-se instrumento na mão da Inquisição Ibérica, sendo

estendido para os mouros durante o período da Reconquista. Na entrada do séc.

XVII já estavam incluídos ciganos, índios, negros e descendentes de mamelucos.

Assim se origina a ideia de raça, como explica Quijano:

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A figura da limpeza de sangue, estabelecida na Península Ibérica na Guerra contra muçulmanos e judeus é provavelmente o antecedente mais próximo da ideia que, durante a conquista das sociedades aborígenes da América se codifica como raça [...]. A limpeza de sangue é uma figura que se origina na luta religiosa e implica curiosamente na concepção de que as ideias, as práticas religiosas e a cultura se transmitem pelo sangue. Na ideia de raça posterior à colonização dos aborígenes americanos, essa é justamente a ideia, ou seja, há determinações raciais que fazem dos “índios”, “negros” e “mestiços”, povos que têm uma cultura inferior ou incapacidade de elevar a sua cultura (QUIJANO, 1992, p. 7).

Essa ideia de cultura inferior dos índios e negros e da excelência e

superioridade do mundo europeu é reafirmada constantemente durante toda a

história da filosofia moderna, sendo tema tratado por pensadores e filósofos

considerados como referência incontornável no pensamento ocidental como Locke,

Kant e Hegel13.

É essa relação entre biologia e traços culturais que, ao ser incorporada ao

pensamento científico do séc. XIX, dá origem ao racismo enquanto teoria científica

com a obra Ensaio sobre as Desigualdades das Raça Humanas, publicado em 1855

por Gobineau. Segundo sua hipótese, a mistura entre raças levaria a humanidade a

graus sempre maiores de degenerescência, tanto física quanto intelectual, levando

assim, inevitavelmente a uma involução. Sintetizando o seu pensamento em uma

sentença, é atribuída a Gobineau a afirmação: "Eu não acredito que viemos do

macaco, mas creio que estamos indo nessa direção".

A noção da existência de raça enquanto atributo responsável por uma

classificação social está também presente no chamado etnicismo. Embora menos

relacionada diretamente à estrutura biológica, a etnicidade compartilha – em seu

surgimento – com a ideia de classificação hierárquica da humanidade, de acordo

com critérios evolucionistas etnocêntricos europeus, como explica Agier:

De uma maneira geral todos os casos empíricos mostram que a autoadstrição étnica, tanto quanto a imposição externa de etnicidade, são atos de estratificação e dominação, de busca de resistência ou hegemonia de um grupo sobre outros. Essa dimensão política da etnicidade não é nova [...]. Nessas funções sociais e políticas, a sombra do racismo está onipresente (AGIER, 1991, p. 8).

Assim, no interior do empreendimento colonial, se introduz na América a

hierarquização sociocultural com base em traços fenotípicos. Nascida inicialmente

13

Sobre racismo nos autores clássicos das Ciências Sociais e Filosofia, ver Praxedes (2008).

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para dar um sentido de dominação “natural” para a relação desigual entre os

colonizadores ibéricos e os índios, o padrão racial se expande por todo o globo,

estabelecendo uma distribuição geográfica do poder com base na ideia de raça. No

caso específico da América, a racialização da população criará uma hierarquia que

integra a diversidade da população mestiça em uma divisão racial do trabalho.

Dessa forma nascem, além dos índios, os negros, mestiços, amarelos etc.,

cada um deles cumprindo um papel específico no interior do sistema-mundo14 que

nascia. Essa divisão hierárquica da população, que, como já vimos, remonta à

escravidão natural de Aristóteles e à teologia cristã hegemônica na Idade Média,

acaba organizando o mundo do trabalho segundo a necessidade de produção do

novo sistema. Por conseguinte, escravidão, servidão, pequena produção mercantil

independente, reciprocidade e capital são todos articulados com o sistema de

classificação racial, como explica Quijano:

Em estreita articulação com esse novo sistema de dominação social e paralelamente à sua constituição, foi também emergindo um novo sistema de exploração social ou, mais especificamente, de controle do trabalho. [...] Em meados do século XVI, essa associação entre ambos os sistemas já estava claramente estruturada e se reproduziria durante quase quinhentos anos: os "negros" eram, por definição, escravos; os "índios", servos. Os não índios e não negros eram amos, patrões, administradores da autoridade pública, donos dos benefícios comerciais, senhores no controle do poder. E, naturalmente, em especial desde meados do século XVIII, entre os "mestiços" era precisamente a "cor", o matiz da "cor", o que definia o lugar de cada indivíduo ou cada grupo na divisão social do trabalho (QUIJANO, 2005, p. 19).

Dessa forma, se combina raça e controle do trabalho em um sistema voltado

à produção, circulação de mercadorias e acumulação de capital. Em torno da

articulação entre diferentes formas de se organizar a produção para a concentração

dos excedentes, assim como do universo de relações intersubjetivas imbricadas

nesse processo, nascia o capitalismo mundial. No caso de controle e exploração do

trabalho, o conjunto de relações pré-existentes se articulou em torno de uma

hierarquia, cujo topo foi ocupado pela relação de salário e, a partir do séc. XIX, em

torno do capital-salário, relação de trabalho predominante nos países centrais do

capitalismo. Na base desse sistema ficou a escravidão. Assim, aos administradores

coloniais, cargos jurídicos e de confiança da metrópole eram destinado postos

14

Para saber sobre a teoria do Sistema Mundo, ver Wallerstein (1974-1989).

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salariados, enquanto na base, considerado trabalho inferior, estava a exploração via

escravidão. A combinação racial dessas “castas” de trabalhadores com o “nível” de

cada atividade obedecia à divisão racial da população, sendo as relações salariais

ocupadas por “brancos” e homens, membros da nobreza indígena e, em raros

casos, por “negros” e mulheres. Dessa forma, a necessidade de articulação das

diferentes formas de trabalho em um mesmo sistema mundial se ligou à prática de

hierarquização racial da população pré-existente à colonização da América. A partir

dessa combinação, um sentido inédito é dado tanto para as formas de controle do

trabalho como para a divisão racial da população, estruturando assim a

colonialidade do poder.

Eixo dinâmico que orienta o sentido histórico da sociedade em um campo de

relações descontínuas entre si, a colonialidade do poder é esse padrão que ordena

a heterogeneidade dos modos de dominação racial e do trabalho a partir da ideia

que o homem branco é a representação máxima da capacidade de mando da

sociedade articulada em torno do capital. Todas as outras identidades são então

subjugadas e consideradas em relação ao branco como inferiores e, em última

instância, como na emblemática Controvérsia de Valladollid, mera força de trabalho

inumana. Como explicita Echeverría:

O traço identitário civilizatório que queremos entender por branquitude se consolida na história real, de maneira casual ou arbitrária sobre a aparência étnica da população norte ocidental, sobre um transfundo de uma brancura racial-cultural. Ao longo de três séculos (XV a XVIII), essa casualidade vai se convertendo pouco a pouco em uma necessidade e passa a ser determinante da identidade moderna do humano como identidade civilizatória capitalista. [...] Graças a esse quid pro quo que, para se chegar a ser autenticamente moderno, é preciso pertencer em alguma medida à raça branca relegando assim, a todos os indivíduos singulares ou coletivos que forem de “cor” o âmbito impreciso do pré, do anti e do não moderno, não ocidental (ECHEVERRÍA, 2007, p. 4).

Tupis e Tapuias: colonialidade do poder e identidade indígena no Brasil

O exemplo da colonização brasileira e das identidades atribuídas aos

indígenas nesse processo explicita de maneira evidente o modo de operar da

colonialidade do poder. Estima-se que na data histórica da invasão europeia viviam

cerca de dez milhões de pessoas no território onde hoje é o Brasil. Pertencentes a

600 povos diferentes, com organização social, trajetória histórica e modos de vida

próprios. Em sua maioria, esses povos viviam da caça, pesca, coleta e agricultura

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básica, não produzindo excedentes econômicos em classes diferenciadas. Porém,

essa enorme multiculturalidade existente entre os povos originários do continente

não foi assim identificada pelos europeus que, após o primeiro contato, passou a

organizar seu sistema de exploração e domínio dos povos originários.

Seguindo a lógica subjacente à colonialidade do poder, os índios foram

divididos em duas representações antagônicas: Tupi (índio aliado/ manso/ com

alma) e Tapuia (índio inimigo/ selvagem/ sem alma). Dois famosos trechos de cartas

redigidas no início da colonização explicitam essa duplicidade no olhar sobre o

indígena. A visão que aponta o indígena aliado, manso, inocente, passível de ser

cristianizado e de servir como mão de obra submissa aos dominadores é assim

descrita por Caminha, na famosa carta de relato do achamento do Brasil:

Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse ele a nós, seriam logo cristãos [...]. Se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa intenção de Vossa alteza, se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, a qual preza a nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa simplicidade. E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho, que lhes quiserem dar (OLIVEIRA, 2006, p. 48).

Já a imagem do indígena como inimigo do europeu, bárbaro, selvagem e

desafiador do poder colonial fica bem nítida na imagem descrita pelo franciscano

Andre Thevet, para quem os indígenas:

Cujas terras vão do Cabo de Santo Agostinho às proximidades do Maranhão, são os mais cruéis e desumanos de todos os povos americanos não passando de uma canalha habituada a comer carne humana do mesmo jeito que comemos uma carne de carneiro se não até mesmo com maior satisfação [...]. Não há fera dos desertos d'África ou d'Arábia que aprecie tão ardentemente o sangue humano quanto estes brutíssimos selvagens. Por isso não há nação que consiga aproximar-se deles, seja cristão ou outra qualquer (OLIVEIRA, 2006, p. 52).

Assim, divididos entre Tupi e Tapuia, se configurou a construção social do

indígena brasileiro desde o início da colonização e todo o conjunto de leis e normas

que buscou organizar essas identidades racializadas segundo a necessidade de

territorialização do modo de produção capitalista no continente. Prova disso é o

registro no Regimento do Governo Geral (1548) de constar a necessidade de

submeter os índios inimigos e integrar os aliados contando, para isso, com a ajuda

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da Igreja Católica. É também nessa época que chegam os primeiro jesuítas,

responsáveis pela catequização e “adaptação” dos índios aldeados à lógica da

colonização.

A redução da multiplicidade cultural indígena e negra a um sistema

hierarquizado de relações raciais de trabalho próprio à colonialidade do poder foi

utilizada tanto para justificar as missões jesuíticas de catequização, como para o

emprego da força para a dizimação, o genocídio de aldeias inteiras e escravidão

negra. Ou seja, desde o início da colonização, o discurso duplicizado construído em

torno do indígena e estendido ao negro15 teve como objetivo colocá-los à disposição

do modelo mercantilista-colonial que se encontrava em expansão.

Em meados do séc. XVIII (1757) é criado um conjunto de artigos normativos,

conhecido como Diretório dos Índios. Idealizado pelo ministro Marquês de Pombal,

representante do despotismo esclarecido de Portugal e do Iluminismo, este conjunto

usou como justificativa a regularização legal da nova condição de “vassalos livres”

dos indígenas. Na prática, a política pombalina resultou em um aumento na

exploração da mão de obra indígena e na sua gradativa adaptação ao modelo de

comércio e agricultura exportadora que continuava em expansão.

Nesse contexto, é incentivada a imagem constituída do índio que não é mais

índio, índio sem indianeidade, publicizado pela alcunha de caboclo. Identidade

racializada própria à colonialidade do poder em seus desdobramentos históricos no

Brasil, caboclo é, no contexto norte e nordestino, o indígena que pela mistura deixou

de ser índio, perdendo assim, o direito à terra. Índio misturado, assimilado,

aculturado e, principalmente, inferiorizado como raça destituída de atributos

valorosos, o caboclo representa esse imbricamento entre etnicidade e luta social por

terra, poder e território que configura a colonialidade do poder no Nordeste do séc.

XVIII e XIX. Segundo Laranjeira,

[...] entre meados do século XVIII e as décadas iniciais do XIX produziram-se algumas importantes descrições cartográficas da região, algumas bastante minuciosas e todas unânimes em referir a "decadência" e o "atraso" das recém-criadas vilas de "índios mansos" ou de "caboclos" e, em muitos casos, a convivência e miscigenação destes com população não indígena [...]. Desse modo, já no início do século XIX, praticamente não havia mais "índios", mas apenas "caboclos" no Sertão (LARANJEIRA, 2011, p. 18).

15

Sobre o lugar das populações negras e ameríndias no interior da estrutura escravocrata brasileira ver MARCOCCI (2011).

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A partir do séc. XX, aos indígenas desaldeados restou migrar para o norte e

sudeste do país, onde as necessidades de expansão econômica exigiam a presença

de mão de obra barata a ser explorada ou então permanecer no Nordeste,

compondo a massa de trabalhadores rurais sertanejos, ou ainda integrando o

número de flagelados da seca – outra categoria identitária que obedece à lógica da

classificação social da população segundo o interesse da reprodução e expansão do

sistema colonial-mercantil-capitalista.

Seguindo essa mesma lógica de incorporação e inferiorização do indígena,

também se associou ao indivíduo indígena marginalizado o termo bugre. Presente

no sul do Brasil e nas zonas de expansão do Centro-Oeste, onde a presença de

sulistas é marcante, o termo bugre16 procura deslegitimar a presença indígena em

seus territórios de ocupação tradicional, assim como desqualificá-lo diante da

sociedade nacional, possibilitando a tomada de suas terras e uma marginalização

“naturalizada”, já que, segundo o imaginário representativo da colonialidade do

poder, os índios não têm como participar da vida moderna, a não ser de forma muito

precária, já que não são capazes de se “adaptar”.

Reproduziu-se, dessa forma, a adaptação da mão de obra indígena segundo

uma classificação racial múltipla e adaptável aos ciclos econômicos da história

brasileira e do continente. Fruto da organização política de grupos indígenas,

religiosos e da sociedade civil de modo geral, é somente com a Constituição Federal

de 1988 que o Estado do Brasil reconhece, em sua carta de leis, o direito à

especificidade cultural das populações indígenas do Brasil reconhecendo, pela

primeira vez, a diversidade de povos existentes no território nacional.

Esse reduzido recorte na leitura sobre dinâmica identitária do indígena

brasileiro explicita um dos modos de articulação entre raça e controle do trabalho no

continente. Ao nos determos especificamente no exemplo brasileiro, procuramos

exemplificar com um pouco mais de detalhamento uma dinâmica que, apesar de

16

O termo bugre do latim bulgaros remete à ideia de herético, não cristão, surgida da Grande Cisma da Igreja Católica Romana e Igreja Ortodoxa, que ocorreu em 1054. Esse mesmo imaginário do não cristão, pagão e, em última análise, sem alma, foi utilizado em diversos momentos da história, em especial na chamada Reconquista. Foi essa mentalidade que orientou parte do empreendimento colonial e que persiste até hoje. Em trabalho de campo para o mestrado (GONÇALVES, 2008), um morador do bairro rural de Catuçaba comentou acerca do apelido pejorativo bugre, utilizado pelos moradores da cidade de São Luís do Paraitinga. Esse acontecimento demonstra a plasticidade do termo bugre e, ao mesmo tempo, a manutenção de seu sentido primordial de desqualificação do outro, do diferente de mim.

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extremamente heterogênea e obedecendo a diferentes intensidades e formas de

combinação, concretizou-se em todo o continente.

Conjuntamente com o racialismo e o controle do trabalho, se articula um

modo de pensamento específico, responsável pela produção intersubjetiva dos

valores da colonialidade do poder; a razão eurocêntrica. Desse modo, imagens,

representações e saberes próprios aos povos submetidos à colonialidade do poder

são subsumidos, invisibilizados e exterminados segundo a estrutura de exploração

que ancora todo o sistema de relações sociais no capitalismo mundial. Para além de

uma imposição de valores, essa relação é iminentemente intersubjetiva, ou seja,

passa pela própria autorrepresentação e imagem de si mesmo das populações

colonizadas.

Não se trata somente de uma subordinação das outras culturas a respeito da cultura europeia em uma relação exterior. Trata-se de uma colonização das outras culturas, mesmo que, sem dúvida, em diferente intensidade e profundidade segundo os casos. Consiste, inicialmente, em uma colonização do imaginário dos dominados. Isto é, atuam na interioridade desse imaginário. [...] A repressão recaiu sobre os modos de conhecer, de produzir conhecimento, de produzir perspectivas, imagens, sistemas de imagens, símbolos, modos de significação sobre os recursos, padrões e instrumentos de expressão formalizada e objetivada, intelectual ou visual (QUIJANO, 1992, p. 2).

Assim, a partir do advento da modernidade, todo o universo compartilhado de

saberes e perspectivas de conhecimento oriundo da memória histórica das

populações inseridas e organizado segundo os padrões da colonialidade do poder é

ressignificado segundo as noções de evolução histórica e racial próprias a esse

padrão de ordenamento do mundo social. Nesse sentido, distintos modos de

reprodução da vida e suas dimensões constituintes – relação de produção, gênero,

mundo natural e “sobrenatural”, sistema de governo e de autoridade política – são

destituídos de legitimidade coletiva, sendo colocados como hierarquicamente

inferiores. Gradativamente eleita como critério de veracização do real, a

“branquitude” própria ao mundo europeu – segundo o imaginário colonial – estende

sua dominação por todo o mundo da vida das populações subalternizadas do

continente. Assim, juntamente com o racialismo e o controle do trabalho, se

desenvolve um padrão epistêmico-ideológico – colonialidade do saber – que

hierarquiza o conjunto de conhecimentos produzidos pelas diferentes populações,

segundo a exploração da força de trabalho e da acumulação.

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Porém, seguindo a noção de modernidade saturada de contradições,

podemos afirmar que, concomitante ao conjunto de ordenamentos hierárquicos

próprios da colonialidade do poder, se desenvolvem modos de existência críticos ao

padrão de obediência e determinação ao sistema colonial-mercantil-capitalista. Esse

conjunto de experiências, diferente do padrão de poder dominante, não se guia por

um sistema hierárquico pré-determinado e se estrutura de maneira heterogênea e

relativamente autônoma, desafiando a lógica de concentração de poder instituída

pelo capitalismo mundial, como explica Quijano:

O poder é um fenômeno multidimensional, uma vasta família de categorias que se constitui pela articulação histórica de distintas dimensões da experiência humana como existência social que, desse modo, e nessa medida, constitui uma totalidade estruturada, presidida por uma lógica central ou hegemônica, mas que é todo tempo disputada e contra atacada por outras lógicas, diversas entre si, subalternas, secundárias também e historicamente heterogêneas. Não é um edifício em que cada piso é engendrado no e pelo anterior (QUIJANO, 1992a, p. 8).

Esse universo de variadas experiências que, historicamente se

desenvolveram no sentido de resistir e, ao seu modo, superar a ordem imposta pelo

sistema colonial-mercantil-capitalista, guarda em seu fundamento comum a

necessidade de instituir modos de organização social, estética e política que

afirmam a memória histórica das populações dominadas no interior da colonialidade

do poder. Nesse sentido, se originam na tensão com o projeto colonial da

modernidade, configurando um ethos próprio a uma modernidade dissonante no

interior do sistema capitalista e buscam, desde o início da colonização, estabelecer

um contraponto ao seu projeto hegemônico. Esse modo de produção e reprodução

da vida cotidiana como resistência e crítica à colonialidade do poder, capaz de

gestar um projeto de modernidade alternativa é o ethos barroco.

Dialética dos extremos e mestiçagem crítica: a modernidade alternativa

O barroco

O sistema do mundo colonial-mercantil-capitalista surgido no séc. XVI se

realizou enquanto uma totalidade estruturada em torno da colonialidade do poder.

Porém, intrínseco a esse processo de modernização gradativa das relações sociais,

imbricado nele, a modernidade viu nascer também a sua consciência crítica. Se a

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colonialidade do poder se configurava como o sistema vertebral da dominação

colonial, junto a ele, de forma invertebrada (IANNI, 2002, p. 2), porque muita vezes

incapturável à percepção imediata, se desenvolvia um nexo alternativo às relações

sociais do continente. Nexo que resiste porque duvida do realismo que naturaliza as

relações de dominação e sua intersubjetividade correspondente, sua racionalidade

específica. Nesse sentido, o moderno é também a crítica ao moderno, como explica

Martíns:

A modernidade só o é quando pode ser ao mesmo tempo o moderno e a consciência crítica do moderno; o moderno situado, objeto da consciência e ponderação. A modernidade, nesse sentido, não se confunde com objetos e signos do moderno, porque a eles não se restringe, nem se separa da racionalidade que criou a ética da multiplicação do capital; que introduziu na vida social e na moralidade, até mesmo do homem comum, o cálculo, a ação social calculada na relação de meios e fins, a reconstituição cotidiana do sentido da ação e sua compreensão como mediação da sociabilidade (MARTÍNS,1999, p.18 ).

Essa tensão constitutiva intrínseca à totalidade moderna realiza, portanto, a

“luminosidade de sua sombra” que está para além do projeto de conquista e

unificação em torno da colonialidade do poder. Assim, no campo histórico,

juntamente com o projeto impulsionado pela Cruz e Espada, pelas formações

nacionais europeias e pelo racionalismo iluminista, se desenvolveram dinâmicas

histórico-culturais que se tensionaram ao projeto hegemônico da modernidade. Se,

por um lado, é possível identificar a agudização do trajeto metafísico da

modernidade pela continuidade do um como princípio na teologia medieval, no

Absolutismo e no projeto da Razão Moderna enquanto cogito cartesiano, a noção de

dois como totalidade se presentifica em diferentes experiências sociais que se

associam de forma descontínua e heterogênea, escura pedra solar do advento

moderno, multiplicidade que se espraia por todo o espaço de dominação da

colonialidade do poder.

Uma das principais formas de contraposição e diferenciação da versão

evolucionista do ordenamento sócio-histórico da modernidade foi o barroco.

Expressão histórica da contradição existente entre a ideia da unidade universal em

torno de um Deus único e transcendente e a ideia de um mundo natural regido por

leis próprias, o barroco afirma a dualidade e a tensão presentes no movimento do

real em seu devir, guerra de contrários. Se, para a colonialidade do poder, Deus,

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razão e sujeito se estabilizam em um continuum histórico-filosófico; o barroco

“desnaturaliza” esse trajeto metafísico de continuidade harmônica entre o homem,

enquanto criatura divina e o homem natural, dotado de razão, explicitando a

contradição histórica presente no interior da modernidade, já que coloca em

oposição o projeto medieval e o moderno.

Essa convivência entre tempos históricos distintos e suas determinadas

visões de mundo e teleologias na passagem desses três séculos conformaram

assim o fenômeno do barroco a partir dessa contradição básica estabelecida nesse

período. Como apresenta Walter Benjamin (1984), essa ambivalência essencial do

barroco se expressa em torno da díade luto/ melancolia, duplo sentimento que

melhor expressa a cisão entre o homem divino e o homem natural, o destino e a

degradação. Dessa forma, para Benjamin, o barroco europeu expressa a utopia

conservadora da Contra Reforma, na medida em que explicita o conflito histórico

que fundamenta esse sentimento de impotência do homem que se vê diante de uma

história sem destino, sem a estabilidade própria ao mundo medieval e do Deus

único. No caso do mundo ibérico, que irá influenciar profundamente a constituição

da América Latina, esse mundo divino se presentificava na visão cavalheiresca e

senhorial de servidão ao Rei. Já a razão nascente estava presente no pragmatismo

mercantil regido pela lógica da causa-efeito e pela noção de lucro. Essa contradição

de tempos é imortalizada na imagem de Dom Quixote, como explica Quijano:

A fabulosa cena na qual Dom Quixote arremete contra um gigante e é derrubado por um moinho de vento é, seguramente, a mais poderosa imagem histórica de todo o período da primeira modernidade: o des/encontro entre, de um lado, uma ideologia senhorial, cavalheiresca – a que habita a percepção de Dom Quixote –, à qual as práticas sociais já não correspondem senão de modo fragmentário e inconsistente e, de outro, novas práticas sociais – representadas pelo moinho de vento – em vias de generalização, mas às quais ainda não corresponde uma ideologia legitimadora consistente e hegemônica. Como diz a velha imagem, o novo não acabou de nascer e o velho não terminou de morrer (QUIJANO, 2005, p. 9).

Assim, dividido entre o tempo divino e o tempo de Deus, o barroco histórico

se configura como natureza cindida entre dois polos extremos – Idade Média e

Moderna –, mas revela um modo de interpretação da história, uma “perspectiva

barroca” do conhecimento histórico. Nesse sentido, o barroco traz consigo uma

noção específica de tempo histórico que desafia a ordem e o formalismo próprio da

linearidade histórica do um como princípio. Ou seja, segundo Benjamin, pode-se

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afirmar que o barroco não está presente somente no momento histórico da

passagem ao mundo moderno, sendo um fenômeno inerente à própria história. Para

Benjamin, diferente da ideia de uma gênese histórica que se desdobraria segundo

um vir a ser definido e homogêneo, a história filosófica do homem seria uma

constante busca pela origem, ou seja, busca em alcançar o momento onde passado

e destino se encontram, num ápice dialético e contraditório. O barroco seria,

portanto, a convergência de pontos extremos e inconciliáveis, história feita ao

contrapelo de si mesma, caracterizando assim o seu movimento crítico-reflexivo e de

construção de representações, ideias e conceitos a partir de uma “dialética dos

extremos”.

A ideia pode ser descrita como a configuração em que o extremo se encontra com o extremo [...]. O conceito parte do extremo. Do mesmo modo que a mãe só começa a viver com todas as suas forças quando seus filhos, sentindo-a próxima, se agrupam em círculo em torno dela, assim também as ideias só adquirem vida quando os extremos se reúnem à sua volta (BENJAMIN, 1984, p. 57).

E em outro trecho:

A história filosófica, enquanto ciência de origem, é a forma que permite a emergência, a partir dos extremos mais distantes e dos aparentes excessos do processo de desenvolvimento, da configuração da ideia, enquanto Todo caracterizado pela possibilidade de uma coexistência significativa desses contrastes (BENJAMIN, 1984, p. 69).

Caminhando em sua reflexão desde a problemata de Aristóteles até Kafka,

Baudelaire e os surrealistas, Benjamin cruza a história e apresenta o barroco como

um salto para fora do tempo ou como definiu Eugenio D’Ors, como um éon trans-

histórico. Enraizado no tempo social em diferentes épocas – Dois como

Totalidade –, o barroco traz consigo a força criativa e a intensidade própria à

natureza imanente e contraditória, como explica D’Ors:

Sempre que encontramos reunidas em um só gesto várias intenções contraditórias, o resultado estilístico pertence à categoria do barroco. O espírito do Barroco, para dizer direta e vulgarmente, não sabe o que quer. Levantar o braço e baixar a mão. Se distancia e se aproxima em espiral [...]. Mas se o braço da figura obedece a uma dualidade de intenções, é porque o espírito que o dirige é um espírito em estado de ruptura interior, um espírito roto, que encerra em si uma oposição. Roto, absurdo, como a natureza (D’ORS in: SILVA, 2001, p. 49).

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Sendo designado já no séc. XVI como “pérola imperfeita, irregular”, ou seja,

como objeto que se caracteriza pela forma não simétrica, desarmônica e desigual; o

barroco carrega como característica central a inexatidão e a ruptura interior diante

da harmonia clássica, da razão correta e iluminada. O barroco é a morada de um

conflito, de um desacerto interior que se expressa em diferentes lugares e épocas,

que ciclicamente se manifesta através da história, como explica Carpentier:

[O barroco...] é uma constante do espírito que se caracteriza pelo horror ao vazio e à superfície desnuda, harmonia linear geométrica. É um estilo onde, em torno do eixo central, se multiplicam o que poderíamos chamar de “núcleos proliferantes”, quer dizer, elementos decorativos que preenchem totalmente o espaço ocupado pelas construções. [...] O barroco é uma constante humana que não pode ser circunscrita a um movimento arquitetônico, estético, pictórico nascido no séc. XVII. Encontramos o barroco florescido em todos os tempos, como características da cultura humana (CARPENTIER, 1987, p. 113).

Para Carpentier, prova dessa amplitude trans-histórica do barroco são as

esculturas hindustânicas, assim como a catedral de São Basílio em Moscou e a

flauta de Mozart. Da mesma forma, a literatura hindu e iraniana, assim como

Shakespeare e a poesia de Maiakovski. Para o escritor cubano, o “espírito” do

barroco está presente no Popol vuh, antiga cosmogonia maia, assim como na

cosmogonia asteca de Quetzalcóatl e em inúmeros templos no México. Expressão

que busca retratar o movimento do imanente, do real enquanto exuberância em

conflito, presença sempre problemática da contradição que se perde em

intermináveis ciclos e reviravoltas no interior do mundo e que, ao mesmo tempo, se

alça à plenitude em uma tentativa constante de superação desse mundo. Nesse

sentido, o barroco atinge, em sua dinâmica paradoxal, imanência e transcendência.

Essa condição primeira do barroco, premissa de natureza filosófica que opera

segundo a dialética dos extremos, faz com que, na América, ele apareça de modo

distinto de sua forma europeia. Nascido no mesmo contexto histórico de emergência

da modernidade, o barroco se manifestou de formas diferentes segundo o lugar

onde se expressou. Se, na Europa, ele se estabelece como luto/melancolia a partir

da decadência do Absolutismo e da entrada na Razão moderna, no caso da América

essa contradição barroca essencial se apresenta de maneira distinta. No continente

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americano, a cisão entre mundo divino e mundo racional, ou melhor dizendo, a

separação entre mundos distintos é ainda mais radical. Para além do mundo regido

pelas “leis naturais” e restrito à obediência dos fatos, na América o mundo natural

aparece como “pleno de dons em si”, espaço gnóstico da multiformidade de

presenças que coabitam no real, no qual irão se mesclar a perspectiva dos povos

originários e o imaginário da vida mítica e miraculosa europeia que remonta ao

mundo pré-filosófico. Nesse sentido, a dialética dos extremos se expande ainda

mais no barroco americano, ampliando seu alcance para a pré-filosofia mitopoética

dos antigos gregos. O luto, o Trauerspiel benjaminiano se materializa no continente

na condição colonial vivida pelas populações indígenas, negras, mestiças – onde

participam também o imaginário do mundo campesino europeu – ganhando seus

contornos próprios no interior da tensão histórica produzida pela dominação colonial.

O barroco seria a expressão desse modo de vida onde a resistência das populações

à violência colonial teatralizada e expressa através da mestiçagem – de forte

presença religiosa – se configura como forma cultural inédita e original.

Esse modo de vida próprio ao mundo americano representa uma

contraconquista (LEZAMA,1988 p. 80), ou seja, um mundo no qual, juntamente com

o conjunto de práticas sociais da colonialidade do poder, se sedimentam formas

socioculturais guiadas por um ímpeto de resistência e de anunciação de uma

modernidade alternativa. Desta forma, a unidade do barroco convive,

paradoxalmente, com seus desdobramentos e diversidade interior. Essa

contraconquista é, portanto, presente tanto no fato histórico da colonização assim

como em um devir trans-histórico constantemente “encarnado” em diferentes

períodos. Debate acadêmico cultivado por décadas em torno da natureza do barroco

– histórica ou trans-histórica – ganha, em sua perspectiva americana, a inclusão de

uma terceira possibilidade que, sem negar as outras, apresenta uma possibilidade

própria de interpretação desse fenômeno. Como explica Chiampi:

Pensar a questão do barroco depois dessa dicotomia que nutriu tantas cátedras supõe reconhecer que o imaginário latino-americano sempre lidou com dificuldade com a ideia de história linear, num esquema de progresso como categoria unitária e homogênea, mas que também refuga as ideias substancialistas, as essências que transmigram, as enteléquias que mal encarnam nas coisas concretas. Nessa posição cultural entende-se porque estamos mais afeitos a reinventar o barroco no diálogo com a linguagem contemporânea (CHIAMPI, 1988, p. 16).

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O ethos barroco latino-americano

É a especificidade do modo de vida crítico propriamente americano que

Bolívar Echeverría vai denominar de ethos barroco. Perspectiva que preserva a

tensão contraditória ao mesmo tempo em que “inventa” uma terceira possibilidade, o

ethos barroco é a marca distintiva do mundo da vida do continente americano, seja

em suas formas artísticas mais rebuscadas, seja no seu cotidiano miúdo, arena dos

pequenos costumes. Relação onde a dialética dos extremos ganha uma perspectiva

inédita porque localizada no espaço gnóstico americano (LEZAMA, 1988, p. 183),

diante da contradição capital-trabalho própria ao mundo colonial-mercantil-

capitalista, o ethos barroco assume essas oposições, ao mesmo tempo em que

propõe uma alternativa. Como explica Echeverría:

[O ethos barroco está...] situado nessa necessidade de escolher, nesse enfrentamento desta alternativa. Não é a abstenção ou irresolução como poderia parecer à primeira vista que caracteriza centralmente o comportamento barroco. É a decisão de tomar partido pelos contrários ao mesmo tempo. Na realidade, ele resolve o conflito em um plano diferente, em que o mesmo – sem ser eliminado – acabe transcendido. Inerente ao ethos barroco está a escolha pelo terceiro incluído [...]. Trata-se de um “parêntese” que é uma teatralização; uma realização da contradição e da ambivalência que, sem pretender resolvê-la, tenta de todas as maneiras realizá-la (ECHEVERRÍA, 1998, p. 176).

Nesse sentido, o ethos barroco se caracteriza pela intensa estetização da vida

cotidiana, pela teatralização originada nessa dialética americana dos extremos que

afirma, concomitantemente, o mundo real e o mundo da ilusão, o mundo das formas

e o mundo das ideias, a fruição dos sentidos e a angústia do espírito e inúmeras

outras ambiguidades. Mais do que um fracasso ou ausência de escolha, o ethos

barroco é a expressão dessas tensões em sua vigência mais vigorosa, é justamente

a afirmação desse movimento de oscilação entre um polo e outro, desse disfarce de

um polo no outro, dessa tentativa de abranger oposições radicais em uma

temporalidade não linear e hierárquica. Assim, ao expressar de maneira tão intensa

e radical os tensionamentos próprios ao mundo colonial americano, o ethos barroco

se realiza enquanto uma perspectiva aberta ao caráter crítico na medida em que

fere, por natureza, a certeza do ideal clássico desafiando o mundo das formas

harmônicas.

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Obedecendo a esses princípios regentes do ethos barroco enquanto

experiência de resistência, mesmo que de maneira excessivamente conduzida pela

moral cristã, uma das principais experiências concretas da América foram os

empreendimentos catequizadores de caráter utópico-evangélicos. Buscando o

reavivamento e até mesmo a refundação da Igreja e da obra apostólica;

dominicanos, franciscanos e jesuítas protagonizaram variados experimentos utópico-

sociais nos quais se buscava um verdadeiro “Renascimento Cristão” com base em

uma experiência comunitária que amalgamasse a doutrina da Igreja com a suposta

simplicidade e a naturalidade da vida indígena. Nessa senda da construção utópica

de uma Jerusalém terrestre, foram os jesuítas aqueles que realizaram as

experiências mais duradouras e bem-sucedidas.

Conhecidos pela organização extremamente hierarquizada e rigidamente

disciplinada, a estrutura dos jesuítas tende a ser vista exclusivamente como um

instrumento alinhado ao empreendimento colonial ibérico em seus claros objetivos

de colonização e ampliação do seu raio de dominação econômica. Também é

conhecida a sua firme abnegação ao Papa, sendo, portanto, fiéis defensores e

agentes dos interesses conservadores da Igreja pós-Tridentina.

Essa interpretação, criada e fortalecida a partir do “século das luzes” e sua

visão iluminista, tende a invisibilizar a visão específica da expressão do sagrado no

mundo jesuítico, onde se abre a possibilidade de tradução cultural e do anseio por

um horizonte comum – utopia – com os povos indígenas da América. Concretizados

nos chamados aldeamentos, essa visão de mundo jesuítica se encontra no

fundamento das chamadas experiências missionárias regidas por essa ordem. As

“reduções” que chegaram a contar com cinco mil habitantes – no caso das missões

guaranis do Cone Sul do continente – buscavam, para além de meramente

reproduzir ou expandir o mundo cristão católico, recriar sua civilização, redefinir em

novos termos o mundo pré-existente na Europa.

Chamadas de A grande experiência, as missões jesuítico-guaraníticas são

apontadas por estudiosos como uma experiência legítima de comunismo cristão-

indígena que concretizou Profecia e Utopia no reino da Terra já no fim do séc. XVII

até a sua destruição no início do séc. XIX. Experiência que colocava no centro da

vida social o trabalho produtivo como fruição da vida, onde o corpo e os sentidos –

espaço privilegiado para a realização lúdica e estética das formas – eram

instrumentos para aprendizado das virtudes humanas. Nesse sentido, para além do

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um como princípio que regia o horizonte de repetição da experiência católica sobre

um território vazio, no interior do empreendimento jesuítico havia também17,

contraditoriamente, a noção de relação e tensionamento intercultural – dois como

totalidade – entre o mundo europeu e o mundo indígena, negro e mestiço.

Esse anseio em realizar na América sua utopia evangélica fez com que os

jesuítas produzissem transformações no pensamento teológico produzido na época,

mudando substancialmente alguns núcleos filosóficos do pensamento teológico

cristão católico. Um dos mais importantes diz respeito ao lugar do maniqueísmo na

teologia jesuíta. Reorientando o lugar da vontade humana e pessoal no universo da

criação, na teologia jesuíta a criação passa a ser interpretada como uma obra em

processo, um devir em movimento e recriação perpétua, uma luta inconclusa entre o

Bem e o Mal se realizando no seio do mundo e tendo em seu centro, os atos

humanos, suas decisões. Os sentidos, a vontade e a imanência passam a ser

considerados espaços de experiência onde o sagrado habita e mais ainda, pode se

desenvolver de formas inéditas e variadas. O mundo da vida passa a ser palco da

luta entre o Bem e o Mal e a diversidade em seu movimento contraditório – talvez

aqui caiba o termo histórico – como realização do divino18. Como explica Echeverría:

Para a teologia jesuíta, o mundo não pode ser exclusivamente uma ocasião de pecado, um lugar de perdição da alma, um sempre merecido “vale de lágrimas”; ele tem que ser também, e em igual medida, uma oportunidade de virtude, de salvação, de “beatitude” [...]. O mundo, o âmbito da diversidade em seu desenrolar-se, não é visto somente como um lugar de sacrifício da salvação da alma, e sim como o lugar onde tanto a salvação como a perdição podem se dar (ECHEVERRÍA, 2005, p. 67).

Ou seja, voltados para o espaço de sociabilidade, de reprodução da vida em

seu cotidiano (mundo da vida), os jesuítas se confrontavam diretamente com os

princípios centralizadores da teologia oficial da igreja. Produzida por teólogos e

17

As ações jesuítas, pela sua abrangência e amplitude, não podem ser interpretadas de modo homogêneo. Detivemo-nos aqui no aspecto crítico do pensamento jesuítico, porém sabemos que ele não encerra a totalidade dessa ordenação religiosa. Ao contrário, sua expressão majoritária tende a um pensamento catequizador de índole conservadora do status quo da Igreja. Porém, devido à natureza de nosso trabalho, nos centramos aqui na teologia e prática jesuítica que se realizou de maneira confrontadora ao poder papal. Essa dimensão do projeto jesuítico tende a ser pouco publicizada, invisibilizando assim, justamente seus traços de diálogo e construção de uma sociabilidade e de um projeto societário anti-colonial e mercantilista. 18

A realização espiritual enquanto processo histórico será um dos pilares da Teologia da Libertação. Ver, na presente tese, subcapítulo sobre a Teologia da Libertação.

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filósofos como Luis de Molina e Francisco Suárez, pertencentes às universidades do

Renascimento espanhol, essa teologia rechaçada pela Igreja, se atreveu a tentar

redefinir em que consiste a presença de Deus no mundo terreno, ou seja, buscou

reconceitualizar a própria definição de Deus a partir do gesto barroco fundamental, a

reunião do mundo imanente ao mundo transcendente. Essa inversão teológica na

qual Deus precisa de suas criaturas para poder se realizar faz do pensamento

filosófico dos missionários da Companhia de Jesus – ou parte deles –, um

pensamento descentralizador e, portanto, revolucionário de toda igreja.

Outra experiência de caráter religioso onde o ethos barroco se fez presente foi

no chamado marianismo, fenômeno presente em todo o continente americano

cristão católico, que se caracterizou pela eleição de uma divindade feminina como

mediadora entre o mundo da vida e o mundo de Deus onipresente, não raro

identificado com características próprias de autoridades de mando colonial. Essa

mediação realizada pela figura feminina identificada como bondosa, amorosa e dona

de infinita compaixão operava como “ponte”, ou seja, como diálogo entre o céu

(mundo superior das leis universais) e a terra (lócus da concretude e da fatualidade

acidental), mas também como forma de estetização da vida cotidiana, já que a

“virgem Maria” tomou formas diversas e diferentes expressões de seu poder e

presença, segundo o lugar e região de seu culto.

Aparições em barcos para pescadores, tez negra para sítios de forte presença

negra como o Brasil e histórias onde se confunde com personagens do mundo rural,

muitos deles figuras mítico-pagãs, como o Saci-Pererê do universo caipira ou a

imagem de Iemanjá em variados cultos afro-brasileiros, são comuns em todo o

continente. Indo para o campo da luta política, até mesmo como entidade protetora

na luta de libertação dos povos, Maria também se presentifica, tal como ocorre no

México onde a Guadalupana se tornou um forte símbolo para os independentistas e

revolucionários do país. Assim, o marianismo popular se converte em forma de

proteção divina acessível ao mundo dos viventes pelo mundo da Criação. Por outro

lado, sua proximidade com o mundo superior existente mantém essa dimensão

transcendente presente, afastada do possível esquecimento, via modernidade

desencantada. Em um movimento concreto-filosófico próprio ao ethos barroco, a

mediação da Virgem é um recurso que explicita a identidade e uma perspectiva de

conhecimento e leitura do mundo próprio aos embates históricos que formaram o

continente americano.

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A mestiçagem cultural

Outro aspecto que evidencia o ethos barroco enquanto modo próprio e

afirmação crítica da identidade americana são as imagens e histórias sedimentadas

no imaginário que se referem aos códigos e processos de tradução intercultural,

transculturação e diferentes codigofagias semiológicas realizadas por grupos sociais

com diferentes e múltiplas identidades. Em uma palavra, os processos de

mestiçagem cultural. Estas histórias emblemáticas que sintetizam o ato histórico

original de um grupo, assim como sua constante reoriginalização19, se expressam

nas mais variadas dimensões da vida social e coletiva. São imagens-princeps que

explicitam o que determinado povo ou cultura carrega de mais distintivo em seu

trajeto histórico e na representação de imaginários constituídos ao longo do tempo.

Um dos símbolos mais fortes da constituição mestiça da formação histórico-

cultural da América é Malinche. Figura histórica considerada como mãe da nação

mexicana, Malinche ocupou importante papel na conquista do atual território

mexicano. Amante do conquistador Cortés, Malinche foi peça fundamental na

Conquista, já que era a responsável pela tradução e comunicação entre Cortés e

Montezuma II, líder máximo dos astecas. Interpretada de diferentes modos que vão

desde “mãe da nação mexicana” até como a primeira e maior traidora (“Judas”) do

povo mexicano, Malinche guarda em si, as contradições pertencentes à identidade

americana e ao seu labirinto. Nesse processo de tradução realizado por Malinche

durante a Conquista Espanhola, no qual ela serviu de “ponte” entre dois mundos e,

dessa maneira, dependendo da versão, ajudando ou enganando os espanhóis; esse

ir e vir onde uma terceira possibilidade é criada; essa “impureza” que abre lugar às

intencionalidades não previstas pela oposição inicial; essas inúmeras possibilidades

criadas a partir do “entre”, faz de Malinche um símbolo muito vigoroso da lógica

própria do ethos barroco.

Conta a história que Malinche foi entregue com mais 19 jovens a Cortés.

Batizada e tornada tradutora do imperador, Malinche foi responsável, durante todo o

19

Reoriginalização é o movimento de constante retorno ao momento originário de um determinado fenômeno. É a ideia de que há um mito inicial que passa a ser revivido constantemente de diferentes formas, mantendo, porém, seu traço específico fundante. No caso da modernidade, o mito original de encontro entre extremos distintos se renova a cada novo desdobramento cultural. Porém, a reoriginalização carrega sempre a possibilidade de transformação histórica, ou seja, ao se retornar à origem ou ao mito inicial, à gênese, pode-se reorientar toda a história, já que é possível transformar o primeiro ato que deu origem a ela. No caso do mito da Conquista, é possível, portanto, pensar em uma contraconquista (ver subitem sobre elogio à mestiçagem).

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ano de 1519, pela tradução e, portanto, negociação entre os “dois mundos” que não

se conheciam e não se compreendiam. É a partir da tradução de Malinche que toda

uma possível negociação e entendimento acontecem. Ela era aquela que conhecia

ambos os lados e fazia essa passagem, essa porta aberta entre mundos, criando

assim um outro mundo. Essa terceira enunciação produzida por Malinche explicita o

jogo interpretativo, a tensão existente no exercício de tradução e manutenção de

dois mundos, duas polaridades. Echeverría explica a natureza dialogante dessa

“codigofagia”, seu enraizamento na contradição entre mentira e entendimento:

Uma mistura de sabedoria e audácia levou Malinche a assumir o poder de intérprete, exercendo o sentido próprio desse ofício; a produção de utopia. Ela reconheceu que o entendimento entre indígenas e europeus era impossível nas condições dadas [...]. Cada vez que traduzia a ida e volta entre os dois mundos, a partir das duas histórias, Malinche inventava uma história feita de mentiras; uma verdade que só podia ser tal qual um terceiro que estava ainda por vir (ECHEVERRÍA, 2005, p. 25).

Dessa forma, Malinche representa a criação de um “terceiro incluído” criado e

renovado no movimento de tensão e copertencimento fundado na diferença colonial,

caracterizando assim o ethos barroco como exercício reflexivo próprio da

contradição da dominação colonial, ou seja, no evento fundante da modernidade.

No Brasil, apesar de menos central e conhecida, a história de Paraguaçu,

índia Tupinambá que viveu ao lado do português Diogo Álvares Correia, o

Caramuru, retrata a “invenção do Brasil”. Segundo a história, Paraguaçu, filha de um

importante chefe Tupinambá, foi rebatizada como Catarina em uma viagem para a

Europa e em seu retorno ao Brasil, teria oferecido o “império indígena” ao seu

marido e à Coroa Portuguesa. Para isso, Paraguaçu teria auxiliado no

convencimento e enganação de seu povo, resistente em aceitar o jugo português.

Seguindo o princípio da “traição feminina”, o Brasil teria seu atestado de

nascimento dessa entrega de seu corpo-território ao colonizador, assim como no

México de Malinche. Porém, esse nascimento bastardo do Brasil conta com um

período de Paraguaçu na Europa onde, entre outras coisas, a índia teria influenciado

a religião católica a partir de visões místicas que teriam sido reveladas a ela e por

onde a Tupinambá teria indigenizado os cultos europeus. Ou seja, A Europa católica

que conquista o Brasil havia sido, primeiramente, “contraconquistada” pela índia

Paraguaçu. Essa tensão de nascimento onde lugares e papéis de dominador e

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dominado se confundem, formando um paradoxo que nos remete a um incessante

jogo de espelhos é uma explicitação do pensamento barroco americano.

No Brasil, outro tema extremamente ilustrativo da lógica mestiça própria dos

povos originários da terra – em um primeiro momento – e da população mestiça que

incorpora essa prática em seu sentido cultural, é a antropofagia.

Praticada entre os povos Tupinambás que habitavam a costa brasileira no

séc. XVI, a antropofagia consistia no consumo da carne dos inimigos apresados

durantes as guerras interétnicas desses povos. Inseridos em uma complexa malha

ritualística onde a vingança ocupava um papel central (FERNANDEZ, 1989; CUNHA,

2009), a prática da antropofagia é, enquanto ato simbólico de incorporação do outro,

de suas qualidades de guerreiro, um dos emblemas de nossa mestiçagem cultural.

Para os Tupinambás, o aprisionamento e canibalismo de seus inimigos eram

práticas que giravam em torno da manutenção do equilíbrio social de suas

sociedades, a partir da vingança aplicada em seus inimigos que, em outro momento,

haviam realizado essas mesmas práticas contra o próprio grupo. Porém, diferente da

negação e extermínio do inimigo, para os Tupinambás era necessária a

incorporação – devoramento – dos seus inimigos que, por sua vez, traziam antigos

dotes de outros parentes devorados em outras guerras e momentos rituais.

Seguindo essa lógica antropofágica, se mantinha assim a coesão dos grupos

Tupinambás e o seu sentido religioso de pertencimento. Explica Fernandez:

É que, por meio dos prisioneiros, os guerreiros conseguiam vingar a morte de parentes e amigos, adquirindo novos dotes carismáticos e contribuindo para restabelecer o estado de eunomia da vida tribal. A repetição das proezas do mesmo gênero aumentava o prestígio pessoal dos guerreiros, abrindo-lhes o caminho da liderança carismática. Tornavam-se assim, chefes tribais ou pajés (FERNANDEZ, 1989, p. 298).

Essa aquisição de "dotes carismáticos" via antropofagia indica um caminho de

elaboração e concretização da vida social onde, diferente de uma escatologia de

caráter profético – indicada pelo seu ponto de partida –, o que orienta o vir a ser da

sociedade Tupinambá é a "façanha guerreira". Isto é, a prática de busca, absorção e

reavivamento daquilo que o outro representa que é e, em última análise, sua própria

substância, já que seus ancestrais foram devorados pelo outro, pelo inimigo – é o

que dá a duração à existência social Tupinambá.

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Paraíso terrestre que privilegia o vingador, a festa guerreira que culmina no

canibalismo se realiza assim como espaço "entre", de trânsito entre opostos que,

pela antropofagia, se copertencem em um movimento de "vingança sem fim"

(CUNHA, 2009, p. 89). Essa lógica de trazer o outro para dentro de si e digeri-lo é,

mais que um dado cultural passado, ela mesma "incorporada" e ressignificada como

uma lógica cultural ampliada para "além" do universo Tupinambá, se tornando uma

matriz cultural básica da formação social brasileira e explicitando a lógica guerreira-

carnavalizante que opera, em nosso ethos barroco, enquanto uma mestiçagem

crítica20.

Formado pela memória histórica de índios, negros, mestiços, criollos e

inúmeras identidades atribuídas, incorporadas e ressignificadas, a vida social

americana se realizou a partir de uma conjugação de diferentes fontes e memórias

históricas. Porém, diferente dos processos oriundos do padrão da colonialidade do

poder, na pedra solar escura do ethos barroco enquanto resistência e crítica,

prevalece a natureza contraditória e de relação de incorporação do outro. Diferente

da lógica da negação do outro, própria à noção do um como princípio, há o

reconhecimento da tensão em relação à outredade, ou seja, a percepção que o

outro é constitutivo de minha identidade em troca e constante movimento. Como

resultado disso, a formação identitária é sempre composta de um movimento de

cristalização e, ao mesmo tempo, de evanescência. Afirmo-me pela presença do

outro e, nesse movimento, me desconstruo para dar lugar ao outro em mim. Afirmo-

me, portanto, ao mesmo tempo em que me desestruturo para dar lugar à

participação do outro, oposto que está em mim. Assim se estabelece o movimento

dialético próprio da cultura em sua concretude, em seu encerramento e abertura

20

O termo mestiçagem crítica será utilizado daqui em diante para designar e explicitar a possibilidade de realização de uma mestiçagem que tenha como horizonte histórico a superação do modo de produção capitalista. Porém, é importante lembrar que, no caso brasileiro, o temo mestiçagem tem uma conotação bastante conservadora, se referindo muito mais ao padrão de dominação da colonialidade do poder, ou seja, da ideia de mestiçagem como ideologia que obedece ao mundo racializado a partir de uma hierarquia entre raças “inferiores” e “superiores”, tentando anular essas diferenças em uma pretensa fusão nacional. Diferente da noção da mestiçagem crítica que mantém a tensão intercultural, a mestiçagem conservadora aponta para um sincretismo que pretende anular as diferenças e desigualdades em uma unidade. Como explica Munanga: “No nosso entender, o modelo sincrético não democrático construído pela pressão política e psicológica exercida pela elite dirigente foi assimilacionista. Ela tentou assimilar as diversas identidades existentes na identidade nacional em construção, hegemonicamente pensada em uma versão eurocêntrica. Embora houvesse uma resistência cultural tanto dos povos indígenas como alienígenas que aqui vieram ou foram trazidos pela força, suas identidades foram inibidas de manifestarem-se em oposição à chamada cultura nacional” (MUNANGA, 2010, p. 446).

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recíproca e constante, ruptura interior que caracteriza a mestiçagem cultural. Explica

Echeverría:

Se há uma história da cultura, é justamente a história das mestiçagens. A mestiçagem, interpenetração de códigos que as circunstâncias obrigam a soltar os nós do absolutismo, é esse o modo de vida da cultura. Paradoxalmente, na medida em que uma cultura se põe em jogo, sua identidade se põe em perigo e entra em questão trazendo à luz sua contradição interna. Somente assim ativa sua possibilidade de dar forma ao mundo, somente assim entrega ao mundo sua proposta de inteligibilidade (ECHEVERRÍA, 2005, p. 81).

Rebeliões e movimentos de contestação: mestiçagem crítica, luta e organização dos

povos

A mestiçagem crítica, proponente de uma “outra modernidade”, também se

concretizou através das inúmeras rebeliões e movimentos de enfrentamento à

ordem e dominação próprias da colonialidade do poder. Invisibilizadas ou diminuídas

em sua importância desde o séc. XVI, inúmeras revoltas e ações planejadas com o

objetivo de resistir, anunciar e inaugurar uma nova ordem social foram sendo

realizadas. Combinando diferentes formas de organização sociopolíticas, essas

ações se apoiavam em lógicas de relação próprias do universo da mestiçagem,

onde diferentes memórias históricas e tradições se combinavam para formar

exércitos, cidades, agrupamentos rebeldes, grupos messiânicos e diferentes formas

de organização com o objetivo de realizar formas de sociabilidade que não

estivessem sob o crivo do dominador.

No Brasil, data do final do séc. XVI os primeiros registros sobre o Quilombo

dos Palmares, conjunto de mocambos – agrupamentos comunitários – que chegou a

reunir 25000 pessoas organizadas em torno de seu eixo central de comando.

Localizado a 120 quilômetros do litoral de Pernambuco, Palmares formou um

modelo de resistência coletiva onde a presença negra era hegemônica em relação à

indígena, apesar da forte presença tupinambá, principalmente feminina. Espalhado

em uma área geográfica extensa e heterogênea, Palmares manteve diferentes

níveis de relações com a sociedade em geral, se tornando importante polo

comercial. Após diversas expedições com o objetivo de destruir a estrutura de

resistência à ameaça econômica representada por Palmares, o quilombo foi

totalmente desarticulado em 1710.

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Mais de um século depois, em 1835, um grupo de índios, mestiços e, em

menor número, negros, invadiu e tomou o poder na cidade de Belém. Ali se iniciava

um conflito que, durante cinco anos, tomou toda a calha amazônica e o baixo curso

de seus afluentes. Movimento extremamente heterogêneo e sem um objetivo único e

consensual, a Cabanagem foi um dos maiores conflitos que o Brasil conheceu. A

expressiva presença mestiça e a autonomia em relação ao objetivo político das

elites em disputa na recém-nascida república garantiram ao movimento um forte

caráter contestatório de levante popular que, em seu horizonte, enxergou uma outra

sociedade. Segundo Prado:

[A Cabanagem...] foi o mais notável movimento popular do Brasil [...]. O único em que as camadas mais inferiores da população conseguem ocupar o poder de toda uma província com certa estabilidade, apesar de sua desorientação. Da falta da continuidade que o caracteriza, fica-lhe, contudo, a glória de ter sido a primeira insurreição popular no Brasil que passou da simples agitação para uma tomada efetiva de poder (PRADO, 1975, p. 68).

Juntamente com os Sete Povos das Missões, Palmares e Cabanagem, o

Brasil foi palco da Balaiada, Revolução Praieira, Revolução Farroupilha e inúmeras

insurreições e experiências de organização realizadas por escravos, indígenas e

povos mestiços. Em todas elas estão presentes elementos onde, juntamente com o

poder econômico e político, foi ameaçado o conjunto de normas e padrões de

controle do trabalho e do racialismo da colonialidade do poder, que é o fundamento

da estrutura de produção do capitalismo mundial.

No caso da América Hispânica, a maior revolta anticolonial ocorreu em 1780-

1782, no Peru. Liderado pelo líder indígena José Gabriel Condorcanqui, membro da

elite indígena de Cuzco, a Gran Rebelión foi iniciada pela tomada de poder em

Cuzco e rapidamente se espalhou por toda a região andina, mobilizando milhares de

indígenas e mestiços contra a exploração econômica espanhola. Formada por

diferentes extratos sociais da sociedade peruana, tanto do campo como da cidade, a

rebelião de Túpac Amaru despertou um forte sentimento coletivo de indignação e

reacendeu a simbologia inca, destacando o sentimento de pertencimento à visão do

mundo indígena. Porém, juntamente com a matriz inca, a rebelião sofreu significativa

influência do pensamento iluminista, já que fora organizada por membros da elite

indígena-criolla que haviam estudado nas universidades da Europa e do próprio

Peru. Ou seja, o empreendimento rebelde contou com um forte elemento mestiço

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em seu planejamento. Juntamente à rebelião de Túpac Amaru, diversas outras

revoltas se organizaram nesse período, se destacando, em 1781, o cerco à cidade

de La Paz, comandado por Túpac Katari, outro descendente inca. Esquartejado em

praça pública após liderar duas insurreições, foi transformado em figura mítica do

movimento indígena boliviano. Tornou-se muito popular a sentença, teoricamente

proferida por Katari na hora de sua morte: “Voltarei e serei milhões!”.

Indo ainda mais ao Sul do continente, próximo à Bacia do Rio da Prata,

encontra-se também o território onde a conquista teve maiores dificuldades para se

sedimentar, criando uma vasta cultura de resistência de base indígena. As já citadas

Missões jesuíticas, assim como a própria formação do Estado paraguaio – onde a

língua guarani é oficial – são outra prova de uma experiência social na qual a

mestiçagem é um elemento estruturante da resistência e crítica à colonialidade do

poder, assim como a Revolução Haitiana21 (1791) e a Revolução Mexicana22 (1910)

que, em sua extrema heterogeneidade, teve a participação inequívoca das massas

camponesas indígenas em sua condução, explicitando a força e a importância da

incontornável mestiçagem no continente latino americano.

Assim, ao lado da colonialidade do poder – eixo estruturante da dominação

colonial mercantil-capitalista desde o início do séc. XVI –, está presente no

continente americano, implicada em cada aspecto de sua formação, a resistência

crítica a esse padrão de poder. Como apresentado por Echeverría, a especificidade

da vida social no continente elaborou um ethos histórico específico, um barroco

enriquecido pelas contradições agudas vividas pelas populações mestiças. Assim,

com base nesse ethos barroco e na dialética dos extremos, próprios à realidade

latino-americana, é possível vislumbrar uma outra modernidade. Modernidade

invisibilizada pelo crivo do modo de produção capitalista que se afirma como

unidade absoluta, um como princípio. Modernidade alternativa formada por um

conjunto de práticas sociais que se organiza de maneira invertebrada, Dois Como

Totalidade. Nesse sentido, há um transfundo filosófico, uma perspectiva de

conhecimento comum presente em diferentes dimensões da vida social do

21

Para saber mais sobre a Revolução Haitiana, ver subitem sobre Realismo Maravilhoso. 22

A Revolução Mexicana (1910) foi a primeira revolução de claro cunho social a acontecer na América Latina no séc. XX. Processo histórico complexo e multifacetado, a Revolução Mexicana foi uma revolução de caráter agrário, nacional e popular que representou uma ruptura na história de seu país. Ela levou à construção de um Estado que incorporou as demandas populares em suas leis, levando à criação de uma política de massas mais à esquerda que outros países da América Latina. Nesse sentido, é um marco histórico importantíssimo pra entender toda a luta popular do continente.

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continente, um pensamento mestiço que se expressa no labirinto de nossas

representações, instituições, territórios e identidades, formando uma totalidade

histórico-estrutural heterogênea nas relações sociais do capitalismo mundial.

Esse movimento em conjunto configura um sistema mundial de exploração,

controle da força de trabalho e das relações intersubjetivas de poder que entra, a

partir do séc. XIX, em sua fase industrial, reconfigurando o padrão de poder e sua

luz crítica. Nesse contexto, no universo do conhecimento e da práxis, surge o marco

teórico marxiano e sua determinante contribuição, ao apontar a luta de classes como

motor da sociedade do capital e a superação desse modo de produção como tarefa

histórica dos trabalhadores.

Na América Latina, onde conjuntamente aos movimentos da classe

trabalhadora europeia se levantavam camponeses, trabalhadores, indígenas,

mineiros e um proletariado incipiente, um pensador conseguiu, em sua prática

militante, expressar essa multiplicidade. Reunindo o pensamento das vanguardas

políticas e artísticas do continente europeu, o pensamento estético-político próprio

da mestiçagem crítica latino-americana e a organização heterogênea dos

trabalhadores do continente, José Carlos Mariátegui foi a expressão direta de

dialética dos extremos no movimento revolucionário do continente.

Socialista, educador, militante, jornalista e poeta, o Amauta conseguiu

realizar, no seu curto período de vida, uma práxis afinada tanto à memória histórica

e tradições do continente latino-americano, como ao pensamento crítico que se

desenvolvia como resposta ao avanço do capitalismo em todo o mundo. Nesse

sentido, o pensamento de Mariátegui é a expressão nítida de uma práxis latino-

americana, enquanto matriz autêntica e fidedigna da história da América Latina e

como contribuição no conjunto de pensamentos críticos de todo o mundo.

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II. EM BUSCA DE UM SOCIALISMO INDO-AMERICANO:

O PENSAMENTO DE JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI

Pensar é exercício de alegria entre veredas de erro, cordilheiras de dúvida, oceanos de perplexidade. Pensar, ele o provou, abrange todos os contrastes como blocos de vida que é preciso polir e facetar para a criação de pura imagem: o ser restituído a si mesmo. Contingência em busca de transcendência.

(Carlos Drummond de Andrade)

A entrada do séc. XX foi marcada por uma profunda crise da chamada

civilização ocidental. Os horrores da Primeira Guerra Mundial explicitaram a face

extremamente destrutiva do modelo civilizatório baseado na acumulação capitalista.

Como resultado, tanto na Europa como na América Latina, os trabalhadores se

organizavam e se reorganizavam em partidos e coletivos que defendiam, com

diferentes estratégias, a derrocada do modo de produção capitalista. No campo

estético, as vanguardas artísticas expressavam a desilusão com o racionalismo

positivista através de manifestos que elogiavam o quebra de perspectiva, o

inconsciente e a loucura, o sonho e a primitividade.

Países que não conheceram a revolução das máquinas se digladiavam

internamente, procurando o melhor caminho para a industrialização e caçavam a

sua especificidade enquanto nações independentes, fazendo surgir assim o

regionalismo e a busca de síntese entre o mundo “moderno” e o mundo tradicional.

É nesse contexto que surge, no Peru, o revolucionário que legou a contribuição mais

original do continente ao marxismo mundial.

Profundo estudioso de seu país, José Carlos Mariátegui teceu um

pensamento que traduziu o momento histórico pelo qual passava a América Latina,

vislumbrando um horizonte de emancipação, um sentido histórico revolucionário

para toda a heterogênea população do continente. Essa amplitude de análise só foi

possível porque, juntamente com o marxismo, Mariátegui foi um pensador que forjou

o seu pensamento se nutrindo de toda a tradição do continente; seu ethos barroco e

sua mestiçagem crítica.

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Pensador militante, Mariátegui escrevia sob o calor dos fatos políticos que

ajudava a produzir e não se furtou de nenhum assunto que entendia ser importante

para a luta dos trabalhadores. Poesia, literatura, cinema, indigenismo, filosofia,

psicologia, realidade de outros países e continentes, religião... O escopo de seu

pensamento foi muito além do estrito pensamento político, alcançando extremos e

reunindo-os em uma mesma totalidade histórica, traçando assim, um marxismo que

se nutria de polaridades consideradas por muitos como inconciliáveis, como religião

e luta social, mundo indígena e vanguarda, socialismo e mundo inca.

Tensionado entre duas propostas civilizatórias, duas almas, duas

perspectivas de conhecimento, o pensamento de Mariátegui explicita a dubiedade

própria do continente no qual são entrelaçadas a colonialidade do poder e a sua

mestiçagem crítica, apresentando a dupla consciência histórica latino-americana em

seu movimento de luta constante. Traduzida na chama do socialismo indo-

americano, a via revolucionária defendida por Mariátegui é prova da originalidade de

uma proposta crítica própria da América Latina.

1. A VIDA DE MARIÁTEGUI: A BUSCA DE UMA SÍNTESE

Infância e “Idade de Pedra”

José Carlos Mariátegui nasceu em 1894 na cidade de Moquegua, localizada

ao Sul do Peru, já próxima à fronteira com o Chile. Filho da costureira e professora

mestiça, Maria Amalia La Chira Ballejos e de um funcionário do Tribunal e criollo de

uma família tradicional limenha, Javier Francisco Mariátegui. Órfãos de pai, José

Carlos e seus dois irmãos (Guillermina e Julio) foram muito cedo viver na cidade de

Huacho, localizada na região onde sua mãe pôde criá-los com o apoio de sua

família. A infância de Mariátegui é marcada pelo forte convívio com a vida das

populações indígenas campesinas yungas que viviam em Huacho.

Diferentes de outros distritos da região, em Huacho havia uma grande

quantidade de pequenos agricultores donos de sua própria terra que formavam a

Campina, uma forma de organização coletiva dos campesinos indígenas da região.

Este convívio com os campesinos indígenas marcou a memória de Mariátegui que

escreveria muitos anos depois que, em Huacho, os pequenos proprietários

“herdaram e conservaram de seus descendentes indígenas, a propriedade comum

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da terra, o que demonstra até que ponto, na costa, subsiste o sentimento socialista

do agricultor” (PORTOCARRERO, 1995, p. 53).

Outras experiências marcantes foram a forte religiosidade popular da cidade e

o nível educativo da sociedade local, que contava com periódicos próprios, apesar

de seu pequeno tamanho. Maria Amalia, católica e professora, certamente conviveu

e apresentou aos filhos esses aspectos da sociedade local. Assim como a

experiência religiosa, evidente em toda produção de Mariátegui, a convivência com o

meio intelectual foi extremamente importante para o seu desenvolvimento, já que ele

nunca frequentou regularmente nenhuma instituição escolar. Matriculado na escola

de seu bairro em 1891, um ano mais tarde teve que sair por causa de um acidente

durante o intervalo das aulas. Ferido por um violento golpe na perna esquerda

enquanto brincava com colegas, Mariátegui se transfere com a família para Lima em

busca de um tratamento adequado. Nessa fase, estimulado pela solidão, se entrega

à leitura dos livros deixados pelo pai ausente, começa a aprender francês e ouve

atentamente as histórias cheias de misticismo contadas por um padre, por seus tios

e pela avó materna. O isolamento de mais de dois anos marcaria fortemente a

tendência autodidata do autor e sua forte mística, presente já em seus primeiros

versos escritos nessa época. Como explica Quijano:

Essa experiência infantil, de pobreza e de ausências, de enfermidade e inatividade física, de solidão e melancolia, de religiosidade e de poética mística, de inquietas e interrogadas leituras é, sem dúvida, fundamental para a compreensão da obra adulta mariateguiana. Como não ver ali a origem dos impulsos emocionais que atravessariam permanentemente uma parte de seu desenvolvimento e, em especial, essa tensão agonística entre uma concepção metafísica de existência, alimento de uma vontade heróica de ação e as implicações necessárias para a adesão ao marxismo que caracterizam grande parte de seu pensamento (QUIJANO, 1979, p. 27).

A partir de 1909, Mariátegui passa a trabalhar como entregador, linotipista e

corretor de provas de um jornal limenho. Fascinado pelo mundo jornalístico, em

1914 envia um artigo anônimo para o jornal e é aprovado, tornando-se a partir de

então, um colaborador da publicação. Utilizando o pseudônimo de Juan Croniqueur,

o futuro revolucionário passa a escrever sobre a vida cotidiana do Peru e se torna

amigo de um dos mais importantes poetas locais, Abraham Valdelomar, que o

apelidará de cojito genial (‘manquinho’ genial). A agilidade de seu estilo de escrita

somada às suas observações torna Mariátegui rapidamente conhecido em Lima,

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levando-o a escrever nos mais variados periódicos, entre eles Turf e LuLu,

dedicados a temas hípicos e de moda feminina. Ambos os jornais retratavam a vida

da oligarquia de seu país e ajudaram Mariátegui a conhecer de perto o modo de vida

e os costumes das elites. Sua aguda percepção do universo desse grupo social está

presente em seus escritos, nos quais demonstra uma rara sensibilidade para

analisar o universo intersubjetivo desse grupo que mais tarde chamará de

“burguesia decadente e ameaçada” dotada de um “espiritualismo de menopausa”.

Nesse período, Mariátegui escreve também uma revista humorística chamada

La Noche e reúne diversos poemas em um livro chamado Tristeza, onde coleta

poesias publicadas em diversos lugares. De maneira geral, as poesias tem um tom

místico-sensual voltado a um êxtase da emoção e da reclusão em busca de si

mesmo. A incursão pelo universo da estética rende também a produção de duas

peças de teatro, La Mariscala – um poema dramático, escrito em parceria com

Valdelomar e Las Tapadas – um poema colonial escrito também a duas mãos com

Julio Baudoin. Em 1916, Mariátegui ganha um concurso municipal com a crônica La

processión tradicional sobre o Señor de los Milagros, conhecida imagem que reúne

milhares de devotos em Lima. Durante todos esses anos Mariátegui não deixou de

lado o seu lado religioso, tendo inclusive passagens pelo Convento dos Descalços

onde passava algumas horas orando e meditando. No texto premiado sobre a

procissão, escreve:

As manifestações de fé de uma multidão são imponentes. Dominam, impressionam, seduzem. Oprimem, apaixonam, enternecem. A contemplação de uma multidão que invoca Deus comove sempre, com irresistível força e profunda ternura. A passagem da procissão do Senhor dos Milagres pelas ruas de Lima produz uma emoção muito profunda na cidade, que se acha invadida por um sentimento ingênuo, sedativo e religioso (ALIMONDA,1983, p. 21).

A excentricidade, o aspecto religioso e a vida boêmia que guiavam esses

anos da vida de Mariátegui se evidenciam no famoso episódio da festa de despedida

da dançarina suíça Norka Rouskaya, ocorrido em 1917. Juntamente com alguns

colegas, Mariátegui organizou um espetáculo onde a bailarina dançou seminua no

meio da noite, no cemitério de Lima, a Marcha Fúnebre de Chopin. O evento

resultou na prisão dos organizadores e em forte repercussão por toda a sociedade

limenha que, em sua porção mais conservadora, acusou os jovens de cometerem

um sacrilégio. Misto de erotismo, arte e atmosfera mística, o evento traduz bem o

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universo romântico e sensorial do grupo de jovens que buscava afirmar sua

discordância do mundo burguês e utilitarista, através de manifestações artístico-

estéticas que transbordassem voluptuosidade e sentimento trágico diante da vida.

Outra iniciativa de Mariátegui com um grupo de colegas – que sintetiza sua

atitude intelectual durante a sua “Idade da Pedra” –, é a Revista Colónida, “fugaz

meteoro literário” que durou apenas quatro meses (ESCORSIM, 2006, p. 60).

Diferente de todas as manifestações de renovação da literatura peruana da época,

Colónida se caracterizou por recusar radicalmente qualquer manifestação artística

que pudesse ser absorvida pela elite limenha. Nas palavras do próprio Mariátegui

em avaliação posterior, a revista pregava “a revolta contra todo academicismo” e

“seu vínculo era um protesto e não uma afirmação”, ou seja, era marcada pela

negação de um modelo de vida social existente mais do que pela proposição de um

outro modelo.

Isso começa a mudar com o fim da “Idade da Pedra” e a passagem para um

posicionamento mais crítico a partir de sua entrada, em 1916, no periódico El

Tiempo – formado por jornalistas pertencentes a diferentes linhas ideológicas

identificadas com o liberalismo e, de maneira mais branda, com ideias de traços

socializantes – e, mais tarde na Revista Nuestra Epoca – de caráter mais

progressista e voltada à luta dos trabalhadores.

Como o próprio Mariátegui veio a escrever depois, sua orientação socialista

tem seu “ponto de arranque” nesse momento (ESCORSIM, 2006, p. 69). Dali em

diante, o pensador buscaria uma postura cada vez mais crítica e identificada com o

programa socialista. Outro fato que explicita essa virada ideológica de Mariátegui é

seu escrito no editorial da revista, onde pede perdão a Deus e ao público pelos

pecados cometidos nos anos anteriores, chegando a queimar os escritos guardados

por sua mãe. Para além de mera aventura estética juvenil, este registro demonstra

que a experiência religiosa de Mariátegui se mantém firme e incandescente mesmo

com a orientação socialista que toma a sua trajetória.

Em 1919, após um desentendimento sobre os caminhos políticos do

socialismo, Mariátegui e Cesar Falcón saem do grupo responsável pelo Nuestra

Epoca e fundam o La Razon, que apoia energicamente os trabalhadores que

realizavam uma greve geral em Lima, assim como os estudantes da Universidad

Nacional Mayor San Marcos que também estavam paralisados exigindo uma ampla

reforma universitária. A decidida entrada de Mariátegui e Falcón ao lado do nascente

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proletariado peruano não agradou ao grupo do presidente Leguia que, após um

artigo onde Mariátegui acusa o governo de ser “senil e claudicante” (ESCORSIM,

2006, p. 74), envia-os para a Europa como correspondentes do governo, ou seja,

são mandados para um exílio diplomático, afastando-os de seu país. Acusado de

traidor por parte dos opositores ao regime de Leguia, a viagem de Mariátegui

custará, mais tarde, uma segunda acusação: a de ser um pensador impregnado

pelas ideias europeias.

O período europeu

Mariátegui desembarca em Paris em 10 de novembro de 1919 e encontra um

continente em ebulição. O resultado da I Grande Guerra se observava e se sentia

por todos os lados, nas cidades destruídas, na alta taxa de desemprego, nos

protestos e na organização proletária, cada dia mais fortalecida. O fantasma do

comunismo rondava a Europa e em resposta a ele, sobrevinha o fascismo. Na

periferia mais próxima ao centro do continente, se levantava a Revolução Russa.

Logo após a sua chegada, Mariátegui logo trava contato com o grupo Clarte,

principalmente com Henri Barbusse e Romain Rolland. Desse contato com os dois

intelectuais e com o proletariado parisiense em seus comícios, Mariátegui guardou a

imagem da emoção religiosa com que os trabalhadores da França se organizavam.

Escreve ele: “Minhas melhores lembranças são os comícios de Belleville, onde senti

em sua mais alta intensidade, o calor religioso das multidões”. Em dezembro desse

mesmo ano, Mariátegui parte para a Itália, influenciado pela presença de amigos e

uma maior proximidade com a cultura italiana.

O ambiente italiano naqueles anos de pós-guerra foi reconhecido pelo

Amauta como “um amanhecer”. Dali tirou as impressões e experiências que

alimentaram sua crença de que uma “alma matinal” surgia no horizonte da

humanidade, um novo homem estaria surgindo, tal qual a fênix, após o definitivo

acontecimento da guerra. Sobre o contexto italiano encontrado por Mariátegui,

escreve Alimonda:

Mariátegui descobrirá a Itália como um gigantesco palco. À luz crua desse pós-guerra, desenvolve-se um drama que não é representação e sim paixão. A autenticidade da paixão é o traço do gênio italiano. As figuras, as forças sociais, parecem reconhecer intuitivamente seu lugar na história [...]. José Carlos percorre deslumbrado a vitalidade desse cenário. Reconhece-o como um amanhecer. Com a guerra, um

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mundo morreu; e as forças nascentes, que dominam o palco com sua dinâmica, coincidem em afirmar que estão no começo de uma nova jornada (ALIMONDA, 1983, p. 30).

Mariátegui viaja por várias cidades para visitar amigos, ser representante do

El tiempo e encontrar com companheiros de luta política. Com eles, chega a criar um

núcleo socialista que não ganha fôlego. Em julho de 1920, viaja a Florença, onde

conhece Ana Chiappe, sua futura esposa com quem terá quatro filhos. Mas é em

Roma, onde fixou moradia, que Mariátegui pode absorver toda a riqueza de

informações sobre a situação da luta de classes em diferentes países: A Revolução

Russa, a luta operária da Alemanha e, principalmente, todos os desdobramentos da

ação política de esquerda e do desenvolvimento da teoria revolucionária em solo

italiano.

Pelo país, operários começam a se organizar nos conselhos de fábrica;

Gramsci e seus companheiros publicam o periódico socialista L’Ordine Nuovo e as

camisas negras dos fascistas começam, aos poucos, a ganhar as ruas. As forças

sociais que irão dominar a cena nas próximas décadas estão em pleno surgimento e

ascendência. Assim como em todos os países sob o raio de ação da II Internacional

Socialista, havia um movimento geral de combate ao evolucionismo determinista que

predominava na concepção doutrinária dessa organização. Na Itália, a crítica ao

positivismo naturalista dessa interpretação da teoria de Karl Marx foi realizada pelos

neo-hegelianos Croce e Gentile que defendiam a dignidade do espírito e o elemento

liberador, “elemento que acentua o papel da vontade e da ação na transformação do

real, a recusa do fetichismo dos fatos e dos mitos cientificistas que levavam a um

determinismo vulgar e fatalista” (ESCORSIM, 2006, p. 99). Mariátegui se aproxima

também dessa perspectiva crítica na qual Espírito, Vontade e Ação cumprem papel

central no enfrentamento ao marco positivista.

Outro pensador que influenciou seu pensamento foi Piero Gobetti, com quem

Mariátegui mantinha, em suas palavras, “uma sintonia amorosa”. Ele se

impressionava com a perspicácia de Gobetti para analisar a realidade segundo

critérios econômicos e compartilhava da ideia de criar uma nova classe política que

articulasse as vanguardas política e cultural e soubesse, com base na ação prática,

penetrar amplamente na sociedade. Como explica Escorsim:

O efeito duradouro que o conhecimento da obra e da ação de Gobetti teve sobre Mariátegui, inteiramente perceptível na idade da

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revolução, contribuiu para a incorporação mariateguiana do marxismo: ao lado da fundação da análise histórica-política da economia, um cuidado fino e delicado com as manifestações éticas e culturais (ESCORSIM, 2006, p. 103).

Uma das influências determinantes para a elaboração mariateguiana foi, sem

dúvida, o pensamento de George Sorel. A relação de amizade e mútua admiração

entre Sorel e Croce foi responsável pela aproximação de Mariátegui ao pensamento

do anarcossindicalista francês. Autor das teses sobre o sindicalismo revolucionário e

sobre a força do mito como motor da revolução, Sorel é um ferrenho antipositivista

que vê na ação heroica do proletariado a saída para o mundo desencantado pelo

progresso. Somando-se ao esforço de superar o determinismo cientificista da II

Internacional, a ideia-força do mito exerce profunda influência em Mariátegui que

encontra afinidade entre o mito soreliano e sua ânsia de transcendência religiosa.

Temática central na obra de Mariátegui, o mito, a fé e a emoção religiosa vão, aos

poucos, se incorporando à sua formação de revolucionário. O caminho de encontro

entre fé e revolução é tão presente em seu pensamento que, segundo alguns

estudiosos de sua obra (LOWY, 2005; PARIS, 1981), Mariátegui “inventa” um Sorel

que abre caminho para essa síntese. Como explica Lowy:

É o caso, por exemplo, quando faz de Sorel um pesador que teria exercido uma influência determinante sobre a formação espiritual de Lênin. Trata-se de uma filiação puramente imaginária que não se baseia em nenhuma evidência, além de estar em contradição com as raras referências que o dirigente bolchevique faz a Sorel: como se sabe, Lênin considerava o autor de Reflexões sobre a Violência, antes de mais nada, um “confusionista” (LOWY, 2005, p. 15).

O período de aprendizado na Europa foi de abertura de horizonte intelectual.

Para além das referências principais aqui citadas, Mariátegui mergulhou na densa

atmosfera política europeia e conheceu diferentes linhas de pensamento. Autores

como Unamuno, Bergson, Nietzsche e Freud – presentes em suas reflexões –,

certamente foram conhecidos mais profundamente após essa sua passagem pelo

continente. Antes do retorno à América, Mariátegui realiza uma viagem pela

Alemanha e Áustria onde se encontra com Fálcon para discutir a organização

socialista peruana. Em 18 de março, Mariátegui, Ana Chiappe e o filho Sandro

chegam em Lima. Após três anos e meio em solo europeu, era hora de iniciar aquilo

que o pensador chamou de “tarefa americana”: organizar o nascente socialismo

peruano.

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O retorno ao Peru

Os sete anos seguintes foram de intensa atividade para Mariátegui, que se

dedicou com afinco e em várias frentes de trabalho diferentes – educação, cultura,

organização política – à tentativa de criar bases para aquilo que ele chamou de

socialismo indo-americano. Esse conjunto de atividades, práxis de um militante

profundamente comprometido, teve como eixo fundamental a articulação das suas

experiências europeias com a realidade nacional do Peru, sua especificidade. Essa

tensão dialética entre a realidade de duas latitudes – suas afinidades e distinções –

fez com que Mariátegui buscasse integrar as vanguardas político-culturais da

Europa à realidade peruana em uma nova ideia de sociedade, feita por um novo

homem e ambos alimentados pela alma matinal, um estado de ânimo inédito, um

novo sentido histórico ascendente que superaria o decadentismo e a ideia da ciência

positivista.

Durante o ano de 1923, Mariátegui ministra um ciclo de conferências sobre a

crise mundial nas Universidades Populares Gonzalez Prada, espaço criado e

organizado por trabalhadores e estudantes que tinha como objetivo oferecer

formação à classe trabalhadora acerca da história, da cultura e de seus direitos.

Somando-se a iniciativas semelhantes ocorridas em outros países latino-americanos

como Chile e Cuba, as Universidades Populares Gonzalez Prada sofreram forte

influência de Haya de La Torre, líder político da Alianza Popular Revolucionária

Americana (APRA), movimento político de alcance continental e de forte influência

na política peruana.

Esse período de militância junto aos mais diferentes movimentos de caráter

classista faz com que Mariátegui se converta no principal líder de esquerda do Peru,

após o exílio de Haya de La Torre no início de 1924. A direção de Claridad – revista

da juventude livre do Peru organizada por Haya –, somada ao trabalho como

periodista em outras revistas e à investigação sobre a formação econômica do Peru

resultam na fragilização da saúde de Mariátegui. Em maio de 1924, sua perna é

amputada. Alguns meses depois, já recuperado, faz de sua famosa residência na

calle Washington um local de reuniões de trabalhadores e intelectuais progressistas.

Sobre o episódio de convalescência e seu retorno, escreveu:

Queridos companheiros, não quero estar ausente deste número de Claridad. Se nossa revista aparecesse sem minha assinatura, eu sentiria mais, muito mais minha fraqueza física. [...] É indispensável

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para mim que minha palavra conserve o mesmo acento otimista de antes. Quero me defender de toda influência triste, de toda sugestão melancólica. E sinto, mais do que nunca, a necessidade de nossa fé comum (ALIMONDA, 1983, p. 18).

Em outubro de 1925, Mariátegui cria juntamente com seu irmão Julio, a

Editora Minerva, passo importante rumo ao objetivo de ter uma revista independente

onde pudesse expressar livremente suas ideias. Lança o livro La Scena

Contemporanea no mesmo ano e, em setembro do ano seguinte, lança a revista

Amauta, palavra de origem quéchua que significa sacerdote, sábio. Desde então,

Amauta se tornaria uma espécie de segundo nome de Mariátegui, termo que, não

por acaso, sintetiza a natureza do espírito revolucionário do pensador.

A revista Amauta teve 32 números e durou até a morte de Mariátegui,

sofrendo uma pausa de alguns meses no ano de 1927. Contou com a colaboração

de autores e pensadores destacados de diversas correntes não somente do Peru,

mas de toda a Europa, publicando textos de grandes nomes da intelectualidade de

vanguarda da época. Segundo Anderlee, “Amauta reuniu a vanguarda de sua época.

Entre seus colaboradores vemos os futuros dirigentes das posteriores correntes

políticas comunistas, apristas e de tendência moderada burguesa” (ESCORSIM,

2006, p. 202). Essa pluralidade é explicada por Mariátegui no editorial de número

um, Apresentação de Amauta:

Esta revista, no campo intelectual, não representa um grupo. Representa antes um movimento, um espírito [...]. Os promotores desta renovação são chamados de vanguardistas, socialistas, revolucionários etc. A história ainda não os batizou definitivamente. Existem entre eles algumas discrepâncias formais, algumas diferenças psicológicas. Mas, acima daquilo que os diferencia, todos estes espíritos põem o que os aproxima e associa: a vontade de criar um Peru novo dentro de um mundo novo (REVISTA AMAUTA, 1926, n. 1, s/d).

A revista Amauta se caracterizou pela sua amplitude temática que incluía

artigos teóricos, literários, políticos, trechos de romance, poesias, entrevistas e

resenhas de livros. Trotski, Neruda, Gorki, Cesar Vallejo, Jorge Luis Borges,

Unamuno, Marinetti e Breton são alguns dos intelectuais que colaboraram com a

revista, que contava também com um Boletim de Defesa Indígena, evidenciando a

importância que Mariátegui dava a essa temática.

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Outra característica dessa fase inicial da revista era a sua natureza de espaço

de maturação política. Para Mariátegui, Amauta – “força beligerante e polêmica” –

era um espaço no qual, além de concentrar intelectuais de diversas tendências que

orbitassem em torno da renovação do Peru, ocorreria um processo de decantação e

aprimoramento de um grupo político-cultural da vanguarda revolucionária:

O primeiro resultado que nós escritores de Amauta propomos obter é o de entendermos e conhecermos melhor a nós mesmos. O trabalho da revista nos fará mais solidários. Ao mesmo tempo em que atrairá outros bons elementos, afastará alguns flutuantes e desmotivados que, no momento flertam com o vanguardismo, mas, tão logo este lhes exija algum sacrifício, se apressarão em abandoná-la. Amauta será o crivo dos homens de vanguarda – militantes e simpatizantes – até separar o joio do trigo. Precipitará um fenômeno de polarização e concentração (MARIÁTEGUI, 2005, p. 101).

Esse processo se torna muito claro em seu número 16 – divisor de águas na

história da publicação –, onde Mariátegui dá por encerrado esse processo de

conhecimento mútuo e publicização das vozes insatisfeitas com o Peru das elites.

Escrita no calor de uma acesa polêmica com o fundador do APRA, Haya de la

Torre, o histórico editorial da revista marca um giro político na revista. Apesar de não

ferir sua natureza de espaço aberto de crítica e debate, Amauta passou a centralizar

seu foco naquilo que Mariátegui considerou como a síntese de toda vanguarda

ideológica e se despediu de denominações de caráter mais genérico como “novo

espírito”, “nova sensibilidade” e “renovação”. Dali em diante, tornou-se mais definido

o horizonte perseguido pelo pensador:

Apresentamos Amauta como a voz de um movimento e de uma geração. Amauta foi, nestes dois anos uma revista de definição ideológica. [...] O trabalho de definição ideológica parece-nos realizado. Em todo caso, já ouvimos opiniões categóricas e dispostas a se expressarem. Todo debate abre-se para os que opinam, não para os que calam. A primeira jornada do Amauta terminou. Na segunda jornada, já não precisa mais chamar-se revista de “nova geração”, da “vanguarda”, das “esquerdas”. Para ser fiel à Revolução, basta-lhe ser uma revista socialista (REVISTA AMAUTA, 1928, n. 16, s/d).

Assim, a trajetória de Amauta é bastante ilustrativa do caminho realizado pelo

próprio Mariátegui na construção de seu pensamento e militância. Na sua busca

pelo “Novo Peru”, Mariátegui foi decantando e aprofundando determinados temas e

opções ideológicas. Amauta representou uma importante fase nesse processo de

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autoconstituição prática e teórica de seu “socialismo indo-americano”. Em seus trinta

e dois números concretizou uma nova forma de pensar o Peru enquanto nação

inscrita em uma história específica e que devia, portanto, tentar encontrar seu

próprio lugar e caminho político, econômico e cultural na superação de suas

contradições.

Juntamente com a série de atividades de caráter editorial realizadas por

Mariátegui, destaca-se nesse período sua entrada no debate indigenista que se

travava no Peru. Articulando ao debate existente a vertente marxista de análise da

sociedade peruana, o Amauta propunha um indigenismo revolucionário no qual as

questões do índio e da revolução socialista convergiam na sua proposta de um

socialismo indo-americano onde o ayllu, célula do Estado incaico, se converteria

gradualmente na célula de um Estado Socialista moderno: “Nosso socialismo,

portanto, não seria peruano – nem sequer seria socialista – se não se solidarizasse,

primeiramente, com as reivindicações indígenas”.

Verdadeira pedra de toque de seu pensamento, o indigenismo revolucionário

proposto por Mariátegui buscava articular as antigas tradições incaicas do Peru ao

vanguardismo que despontava como anúncio da modernidade e que tinha seu

epicentro em solo europeu. Juntamente com seus estudos sobre artes e literatura e

com a constituição de uma organização política, a temática indígena ocupou o

centro dos interesses do Amauta, que via nessa especificidade histórico-social do

Peru a chave para a construção do socialismo indo-americano. Essa articulação

entre indigenismo e a formação econômico-cultural do Peru ganha ainda mais força

e centralidade – se convertendo no coração do pensamento de Mariátegui –, a partir

de seu segundo e último livro chamado Sete Ensaios de Interpretação da Realidade

Peruana.

Considerado como a primeira análise de uma formação histórica-política da

América Latina, utilizando-se do referencial teórico do marxismo, a obra Sete

Ensaios foi lançada em 1928 e se destacou pela extrema criatividade e originalidade

de suas análises. Escrevendo de forma aberta e deixando claro que suas análises

não anseiam nenhum caráter definitivo, Mariátegui se propõe a tratar de diferentes

dimensões da sociedade peruana, tentando oferecer assim uma visão totalizante da

sociedade peruana. Analisando a formação econômica do Peru, a questão territorial

indígena, o processo da literatura, da educação e da religião, Mariátegui vincula

nessa obra todas as dimensões em que vinha atuando ao longo dos anos.

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Ao seguirmos o itinerário proposto por Mariátegui em cada um dos ensaios,

mergulhamos em uma tessitura analítica que busca capturar a totalidade social

complexa do Peru, sem prescindir de seus aspectos particulares. Cada um dos

ensaios é um pequeno tratado autônomo sobre uma temática específica, mas é

também, e isso vai se tornando explícito ao longo do livro, parte de uma totalidade

em pleno movimento onde as diferentes estruturas estão imbricadas e seguem,

todas elas, a lógica do capitalismo. Nesse sentido, é também o capitalismo que

organiza os diferentes tempos históricos do Peru de Mariátegui. O tempo ancestral

dos incas, o tempo feudal dos gamonales, o tempo da democracia liberal e do

proletariado, todos formam um mosaico que tem a sua orientação definida segundo

os ditames da acumulação capitalista. O mesmo ocorre com as diferentes formas de

produção: servilismo, escravismo, trabalho assalariado, todas estão organizadas

segundo a lógica deste modo de produção.

As análises de Mariátegui são uma radiografia de um Peru que chegava ao

final de um ciclo e entrava em um novo momento de sua história. Para o peruano, o

destino desse novo ciclo era a sua tarefa americana. Síntese de todo o processo de

maturação do pensador, Sete ensaios foi escrito como uma investigação carregada

de “uma enérgica ambição: contribuir para construção do socialismo peruano”

(ESCORSIM, 2006, p. 214).

As polêmicas com Haya de La Torre e com a Internacional Comunista

Um dos episódios mais importantes desse período foi a ruptura entre

Mariátegui e Haya de La Torre. Mariátegui, até então colaborador e militante do

APRA, discorda frontalmente dos caminhos que Haya, líder máximo da organização,

estava traçando como estratégia revolucionária. Preparando-se para uma prometida

eleição presidencial no primeiro trimestre de 1928, Haya formula o chamado Plano

México, a criação de um partido nacionalista para concorrer às eleições

presidenciais. A proposta de Haya, que vivia exilado no México, era transformar o

APRA, até então uma aliança de frente única, em um Partido Nacionalista

Libertador. Discordando radicalmente desse projeto, Mariátegui e o “grupo de Lima”

defenderam que a transformação do APRA em partido feria os princípios da luta pelo

socialismo, e não passava de “declamação estridente e vazia de liberalóides de

estilo antigo” (ESCORSIM, 2006, p. 256).

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A ruptura entre Haya e Mariátegui, registrada em suas correspondências, foi o

acontecimento mais emblemático do fenômeno de polarização e concentração

previsto por Mariátegui no editorial de lançamento da Revista Amauta. Em frontal

desacordo com a ideia de um Partido Nacional sem identidade de classe definida –

que rapidamente caminharia para uma elitização de sua estrutura –, Mariátegui

defendia a unidade partidária em torno dos trabalhadores e contra o capitalismo. No

editorial número 16 da Revista Amauta, Aniversário e Balanço, Mariátegui escreve:

Na luta entre dois sistemas, entre duas ideias, não nos ocorre sentirmo-nos expectadores nem inventar um terceiro termo. [...] Nessa bandeira inscrevemos somente simples e grande, esta palavra: Socialismo. Com este lema, afirmamos nossa absoluta independência frente à ideia de Partido Nacionalista, pequeno-burguês e demagógico (MARIÁTEGUI, 2005, p. 119).

E, ainda em outro trecho:

A revolução americana será uma etapa, uma fase da revolução mundial, nada mais, nada menos. Será pura e simplesmente, a revolução socialista. A esta palavra acrescentem, segundo os casos, todos os adjetivos que quiserem: “anti-imperialista”, “agrarista”, “nacionalista-revolucionária”. O socialismo os supõe, os antecede, abrange a todos (MARIÁTEGUI, 2005, p. 119).

De sua parte, Haya defendia o APRA como um partido que não precisava

reivindicar o socialismo para alcançar a revolução. Haya acusava Mariátegui de ser

um europeísta “infectado de demagogia tropical” que se alinhava a correntes

europeias e virava as costas ao seu próprio continente. Escreve Haya:

Você [Mariátegui] está causando muitos danos com sua pressa, com seu afã de mostrar-se sempre europeu, com a sua terminologia europeia. Com isso, você racha o APRA. Já sei que você está contra nós. Não me surpreendo. Mas a revolução, nós a faremos – sem mencionar o socialismo, mas distribuindo as terras e lutando contra o imperialismo (MARIÁTEGUI in: ESCORSIM, 2006, p. 258).

Assim, as discordâncias políticas, que chegaram às raias do insulto pessoal,

explicitavam diferenças de projeto entre os dois líderes. Após anos de militância em

conjunto, as diferenças de concepção teórico-prática do caminho até a revolução

dividiram a frente única peruana. Como Explica Pericás:

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A diferença entre os dois pensadores parece sutil, mas é profunda. Para Haya, a descentralização do marxismo teria sido provocada de “fora”, saindo de um centro, a Europa, e sendo reinterpretada em outro, a América Latina, enquanto, de acordo com Mariátegui, a “descentralização” do radasismo não partiria de um centro ao outro, mas de dentro do próprio marxismo, que deveria ter em si essa mesma flexibilidade teórica para se adaptar às diferentes realidades e ter a possibilidade de se expressar de maneiras distintas (PERICÀS, 2005b, p. 26).

O resultado do episódio de ruptura entre Haya e Mariátegui foi uma

polarização em muitos núcleos apristas como o de Paris, Buenos Aires e Cuzco.

Esse processo de desmantelamento gerou a demanda pela criação de um

agrupamento que oferecesse unidade entre aqueles que não concordavam com o

novo rumo do APRA.

Graças à rede de relações geradas pela Revista Amauta e pelo intenso

trabalho organizativo de Mariátegui, é fundado em outubro de 1928, o Partido

Socialista do Peru (PSP), apenas um mês após a publicação do editorial Aniversário

e Balanço. Em um ano, o partido está estruturado e com forte adesão dos

movimentos sindicais e células organizativas de todo o país, contando com cerca de

três mil militantes, muitos de origem camponesa indígena.

Outra iniciativa que teve a participação intensa de Mariátegui foi a

organização da Confederação Geral dos Trabalhadores do Peru (CGTP) – qual o

significado do P?), fundada no início de 1929, que contou com oitenta mil adesões,

cerca de trinta mil somente de camponeses indígenas. Nesse momento, foi muito

importante a fundação da revista quinzenal Labor. Idealizada por Máriategui, Labor

foi responsável pela difusão e organização do sindicalismo, se tornando rapidamente

um canal de comunicação e solidariedade dos trabalhadores peruanos.

Com a concretização do PSP e da CGTP, Mariátegui passou a ser conhecido

pelo Secretariado Sul-Americano da Internacional Comunista que o convida para

participar da I Conferência Comunista Latino-Americana, realizada em Buenos Aires

em junho de 1929. A participação da delegação peruana – Mariátegui não foi por

motivos de saúde – é conhecida como um dos episódios mais importantes da

trajetória do Amauta. Assim como o episódio de ruptura com o APRA, o debate entre

as ideias de Mariátegui e as orientações da III Internacional ficou conhecido como

um dos marcos históricos centrais de seu pensamento.

Se no caso da ruptura com o APRA ficou nítida a posição classista de

Mariátegui, os “debates de Buenos Aires” contribuíram para demarcar a natureza

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específica de seu pensamento crítico. Apesar de sua ausência, as duas teses

apresentadas pelos dois representantes – Hugo Pesce e Julio PortoCarrero – foram

escritas por ele e apresentavam diferenças importantes em relação às orientações

do Komintern. Diferente da oposição aos apristas e à Haya, as divergências entre o

socialista peruano e a Internacional Comunista não eram radicais.

Mariátegui era um profundo admirador do bolchevismo, sendo um estudioso

de todo desenvolvimento do marxismo-leninismo e um defensor do

internacionalismo revolucionário. Porém, como ficou claro no encontro da capital

argentina, tinha diferenças programáticas consideráveis com a Terceira

Internacional, órgão muito centralizador e com forte influência do positivismo e da

“mitologia” do progresso científico, tão criticados por Mariátegui.

Esse posicionamento da III Internacional é personificado pelo Secretário Geral

do Secretariado Latino-Americano da Internacional Comunista, Vittorio Codovilla,

que defendia dois pilares para a revolução democrático-burguesa na América Latina.

Primeiro, de acordo com ele, a “revolução por etapas deve ser o fundamento

inabalável da estratégia do Komintern para a América Latina, independente das

variações táticas para a direita ou para a esquerda” (LOWY, 1999, p. 20). Ou seja,

era preciso transplantar para o continente a lógica universal da história linear e

evolucionista do caminho até a revolução. O outro pilar central defendido pelo porta-

voz da III Internacional era a inexistência de especificidades nacionais no continente

latino-americano, onde só existiriam países semi-coloniais em uma relação de

dependência com os Estados Unidos. Ou seja, a história do continente seguiria a

mesma lógica evolutiva do continente europeu, estando somente mais “atrasada”,

tomada ainda pelo regime feudal em muitos países e regiões. Nesse sentido,

questões raciais e de minorias deviam ser – seguindo o exemplo russo – integradas

ao projeto de nação, reduzindo assim as particularidades socioculturais do

continente a uma problema meramente adaptativo, ou seja, era preciso que os

países adaptassem sua realidade ao modelo universalmente válido de Estado-

Nação pós-feudal. Com base nessas prerrogativas deveriam ser traçadas

estratégias para o processo revolucionário em nível continental (ESCORSIM, 2006,

p. 275).

As duas teses apresentadas pelos peruanos apresentavam críticas

justamente a esses dois pilares. Na primeira tese, Ponto de Vista Anti-imperialista,

Mariátegui se dedica a explicitar sua hipótese de que o caminho para a revolução na

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América Latina não passa por uma etapa democrático-burguesa. Para o Amauta,

apesar dos países do continente apresentarem uma estrutura semi-colonial, suas

burguesias nacionais não “têm nenhuma inclinação para lutar pela segunda

independência” (MARIÁTEGUI, 2005, p. 130). Enquanto em países como a China, o

elemento da “raça” e da tradição milenar enraizada em seu povo encoraja sua

burguesia ao anti-imperialismo, na América Latina ocorre o contrário:

No Peru, o aristocrata e o burguês branco desprezam o popular, o nacional. Sentem-se antes de mais nada, brancos. O pequeno burguês mestiço imita este exemplo. A burguesia limenha confraterniza com os capitalistas ianques e, até mesmo com seus simples empregados no Country Club, no Tennis Club e nas ruas. [...] O fator nacionalista, por estas razões objetivas que, seguramente, a nenhum de vocês escapa, não é decisivo nem fundamental para a luta anti-imperialista em nosso meio (MARIÁTEGUI, 2005, p. 131).

Para Mariátegui, a revolução na América Latina deve ser obra direta dos

trabalhadores, sem etapas intermediárias. A fórmula pretensamente universal da

revolução em duas etapas, sendo a primeira conduzida pela burguesia, é o modelo

de revolução defendida pela ideologia da III Internacional. Mariátegui,

diferentemente, interpreta que o “fator classista está mais desenvolvido” na América

Latina enquanto a ideia de soberania nacional não exerce o magnetismo necessário

à burguesia desses países, sendo uma mitologia de poder passageiro, incapaz de

cativar a elite para um projeto revolucionário de nação. Nesse sentido, somente a

revolução socialista representa um caminho viável:

O que a burguesia mais demagógica pode opor à penetração capitalista? Nada, a não ser palavras. Nada, a não ser uma pequena embriaguez nacionalista [...]. Nossa missão é explicar e demonstrar às massas que só a revolução socialista oporá o avanço do imperialismo um obstáculo definitivo e verdadeiro (MARIÁTEGUI, 2005, p 133).

Em outubro de 1928 – oito meses antes da I Conferência – Mariátegui havia

preparado, a pedido do Comitê Organizador, os Princípios Programáticos do Partido

Socialista. No quinto princípio elaborado por Mariátegui, é exposto de forma clara e

sintética, o essencial acerca deste tema:

A economia pré-capitalista do Peru republicano, pela ausência de uma classe burguesa vigorosa e pelas condições nacionais e internacionais que determinaram o lento avanço do país na via

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capitalista, não pode libertar-se do regime burguês [...]. O destino colonial do país retoma seu processo. A emancipação da economia do país só é possível por meio das massas proletárias solidárias com a luta anti-imperialista mundial (MARIÁTEGUI, 2005, p.123).

Já na segunda tese O problema das raças na América Latina, Mariátegui faz

uma importante retrospectiva sobre a história da dominação colonial em diversas

populações. Analisando a tese aristotélica da “escravidão natural” de alguns povos

por outros, Mariátegui demonstra como essa ideologia justifica a dominação

imperialista (europeia e estadunidense) nos continentes asiático, africano e

americano. Citando dados históricos sobre Kushitas (povos pré-hindus), egípcios,

assírios, babilônios e gregos, Mariátegui demonstra como a ideia de raça como

“natureza eterna” é uma criação que obedece a interesses de dominação e que as

diferenças raciais estão sempre permeadas por valores históricos sendo, portanto,

forjadas no mundo social e em suas relações de produção:

Com efeito, esta teoria reduz todas as qualidades das raças à sua “natureza eterna”. Se fosse assim, essa “natureza” seria sentida em todos os períodos da história. Que se pode deduzir disso? Que a natureza mesma muda constantemente, em relação às condições de existência de uma dada raça. Estas condições estão determinadas pelas relações entre sociedade e natureza, quer dizer, pelo estado das forças produtivas. Portanto, a teoria de raças não explica absolutamente as condições da evolução social (QUIJANO, 1991, p. 217).

Com essa análise, Mariátegui trazia para o campo da história e da realidade

específica da formação socioeconômica de cada povo os fatores que indicavam

como a revolução deveria caminhar. Para o peruano, deixar se levar pela tese de

uma essência racial e, por consequência, nacional, era se deixar levar pelos

“interesseiros desvios que a burguesia pretende imprimir à solução desse problema,

orientando-o num sentido estritamente racial” (ESCORSIM, 2006, p. 277).

Defendendo a tese da revolução por etapas, Codovilla, o representante do

Kominterm, se contrapôs a essas colocações, defendendo que “o problema dos

índios, onde adquire uma forma aguda, é uma questão nacional” (Idem, p. 279).

Outra afirmação contida na tese que causou polêmica na I Conferência foi a

defesa do campesinato indígena como sujeito revolucionário no Peru. Contrariando

a ideia de uma vanguarda proletária que, em uma segunda etapa da revolução,

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“puxaria” o processo de superação da democracia burguesa, Mariátegui defende

que esse protagonismo pertenceria também aos índios camponeses:

Cremos que, entre as populações “atrasadas”, nenhuma reúne, como a população indígena inca, condições tão favoráveis para que o comunismo agrário primitivo, subsistente em estruturas concretas e no profundo espírito coletivista, transforme-se, sob a hegemonia da classe proletária, numa das bases mais sólidas da sociedade coletivista preconizada pelo comunismo marxista (MARIÁTEGUI, 2005, p. 144).

Assim, Mariátegui defendia um proletariado “diferente” daquele apregoado

pela III Internacional. Para o Amauta, deveria desaparecer a sobreposição da classe

operária sobre os camponeses. Ambos os grupos deveriam estabelecer uma relação

igualitária no processo revolucionário do continente, seguindo um caminho diferente

do etapismo europeu, no qual o socialismo seria liderado diretamente pelos

trabalhadores e estes seriam oriundos tanto do mundo agrário como do mundo

urbano. Em um texto dedicado a um livro do escritor Ernesto Reyna sobre uma

importante sublevação indígena ocorrida no Peru, Mariátegui resume bem sua ideia

de um proletariado vanguardista formado também por trabalhadores do campo:

A doutrina socialista é a única que pode dar um sentido moderno, construtivo à causa indígena que, situada no seu verdadeiro terreno social e econômico e elevada ao plano de uma política criadora e realista, conta, para a realização desta empreitada, com a vontade e disciplina de uma classe que hoje surge no nosso processo histórico: o proletariado (MARIÁTEGUI, 2005, p. 158).

Essas diferenças programáticas entre as linhas mestres do Secretariado

Latino-Americano e as propostas dos militantes peruanos geraram em Mariátegui

um sentimento de cuidado em relação ao movimento comunista internacionalista.

Essa apreensão se concretizou em sua recusa de mudar o nome do PSP, que

deveria, segundo claras orientações do Komintern, passar a ser um Partido

Comunista. Como explica Pericás:

É importante lembrar que Mariátegui não funda um partido socialista comunista e sim, explicitamente, um agrupamento com designação socialista. O “Amauta” é um grande admirador de Lênin e da Revolução Russa, mas nem por isso aceita manter-se dentro das normas rígidas do Komintern [...]. Em outras palavras, se Mariátegui se define como marxista e “comunista”, não é por aderir aos preceitos do Komintern, mas sim por sua trajetória intelectual e sua experiência política, muito particulares (PERICÁS, 2005, p. 26).

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No período imediatamente após a I Conferência, em meio a um grande

conjunto de atividades e repressão do governo peruano a essas ações, a saúde de

Mariátegui piora muito. Em março de 1930, ele é internado e passa por duas

operações para tentar brecar a inflamação que se abatia em seu corpo. Após breve

melhora, no dia 16 de abril de 1930, Mariátegui morre na Clínica Villarian, antes de

completar 36 anos. No dia seguinte, seu corpo é levado pelas ruas da capital,

seguido por milhares de trabalhadores empunhando a bandeira vermelha.

A vida de Mariátegui se caracterizou pela constante inquietação e pelo

espírito de investigação e transformação da realidade. Sua fragilidade física desde a

infância tornou essa ânsia um desafio constante em vencer os próprios limites.

Religioso desde a infância, no fim de sua vida, essa tensão fundamental havia se

desdobrado em um engajamento pela vida humana, pela transcendência não de

uma alma individual – a sua – mas pela libertação de toda a humanidade. Estes

traços marcantes da vida de Mariátegui, a revolução e a transcendência, ficam

claros em dois trechos em que o Amauta fala de si mesmo. Em uma carta a seu

amigo Enrique Spinoza, escrita em 1927, ele expõe:

A partir de 1918, nauseado com a política criolla, orientei-me resolutamente para o socialismo, rompendo com meus primeiros ensaios de literato infectado pelo decadentismo e bizantinismo de final de século, então em pleno apogeu. Entre o final de 1919 e meados de 1923, viajei pela Europa. Residi mais de dois anos na Itália, onde desposei uma mulher e algumas ideias. Andei pela França, Alemanha, Áustria e outros países. Minha mulher e meu filho impediram-me de chegar à Rússia. Na Europa, combinei com alguns peruanos uma ação socialista. Quando de meu regresso ao Peru, em 1923, através de reportagens, conferências na Federação de Estudantes, na Universidade Popular, de artigos etc., expliquei a situação europeia e iniciei meu trabalho de investigação da realidade nacional segundo o método marxista (ESCORSIM, 2006, p. 29).

Em outro trecho autobiográfico, dito em uma entrevista cedida em 1926,

meses antes do trecho acima, o Amauta traduz sua trajetória:

Sou pouco autobiográfico. [... Mas] no fundo, não estou muito seguro de ter mudado. Era eu, em minha adolescência literária, aqueles que os outros e eu mesmo acreditavam que eu era? Penso que as primeiras expressões e os primeiros gestos de um homem em formação não o definem. Não há razão para surpresa se, quando adolescente minha atitude foi mais literária e estética do que religiosa e política – esta é uma questão de trajetória e época. Amadureci mais do que mudei. O que agora existe em mim, existia embrionariamente

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e larvadamente quando tinha vinte anos e escrevia disparates, dos quais, não sei por que, as pessoas ainda se recordam. No meu caminho, encontrei uma fé, eis tudo. Mas a encontrei porque, desde muito cedo, parti em busca de Deus. Sou uma alma agônica (agonia, no sentido como ele com tanta razão acentua, não significa morte, significa luta). Agoniza quem combate (ESCORSIM, 2006, p. 46).

Os dois trechos deixam claro duas particularidades da vida de Mariátegui que

dão base ao seu pensamento e ação política. Por um lado, sua trajetória como uma

busca, cada vez mais madura, de organização político-cultural da sociedade que

tenha como horizonte a emancipação humana e o socialismo. Por outro, é um

caminho onde sempre está presente um “eu profundo” que parece orientar suas

ações e guiar seus passos. Chamada pelo próprio Mariátegui de “fé” e “busca de

Deus”, a dimensão místico-religiosa da existência é uma das fontes de sua

inspiração para uma vida dedicada à luta social. Dessas fontes de inspiração tão

distintas, Mariátegui realiza seu pensamento e com elas, preencheu sua vida.

Exemplo vívido da luta que forjou suas ideias, Mariátegui deixou como legado um

pensamento extremamente original que transcendeu o momento histórico de sua

vida e se tornou um marco incontornável para aqueles que pretendem desvendar o

lugar da América Latina no panorama intelectual e político do mundo.

O mariateguismo

O debate sobre o legado de José Carlos Mariátegui teve início imediatamente

após a sua morte. Segundo Aricó, “apenas com a morte de Mariátegui é que se

desata, entre os intelectuais e militantes políticos peruanos, uma aguda polêmica em

torno da definição ideológica e política de suas ideias” (ARICÓ in SORRILHA, 2009,

p. 855). Seguindo a tendência amplamente hegemônica no mundo socialista desse

momento, o pensamento de Mariátegui foi, durante quinze anos após a sua morte,

devidamente moldado para servir à ideologia da III Internacional.

Nesse sentido, após um pouco mais de um mês de sua morte, o novo

Secretário Geral do PSP, Eudócio Ravines, seguindo orientações soviéticas,

consegue mudar o nome do partido para Partido Comunista do Peru. O objetivo é

concretizar a estratégia da classe contra classe, onde é preciso eliminar qualquer

resíduo de intelectualidade e pequena burguesia da direção dos Partidos

Comunistas. Interpretado como um intelectual pequeno burguês, Mariátegui e seu

pensamento foram enterrados juntos.

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Começava aí o encobrimento da obra do Amauta, onde diferentes correntes

ideológicas moldariam o pensamento de Mariátegui segundo suas demandas

políticas imediatas e seguindo uma lógica de fragmentação em pequenos grupos

políticos.

Em 1941, em um artigo emblemático dessa fase, o especialista soviético do

Komintern e conselheiro do birô latino-americano, Mirochevsky, desqualifica

Mariátegui como populista – ofensa grave nos círculos do pensamento crítico da

época. Ao que tudo indica, havia um temor sobre a obra de Mariátegui, já que os

campesinos se apresentavam como um problema fundamental para a Revolução

Russa. Assim, Mariátegui foi considerado persona non grata pelos intelectuais

soviéticos. Sobre isso escreve Aricó:

Como indicam Semionov e Shulgovski, na década de 30 é difícil saber se a crítica à Mariátegui foi sistemática, mas sabemos que foi frequente nas publicações soviéticas. Essas críticas versavam sobre seu populismo e sobre toda uma gama de desvios oriundos de suas opiniões liberais sobre o problema indígena, que Mariátegui recusava a aceitar como questão nacional, sobre concessões ao aprismo, resistência à formação do partido comunista etc. (SOBREVILLA, 2005, p. 39).

Contudo, não foi somente a “versão” populista de Mariátegui que foi

publicizada nos quinze anos decorrentes de sua morte. Interessados em reter para

si o legado político deixado por ele, o movimento aprista também forjou um Amauta

que respondesse aos seus interesses. Nesse sentido, Mariátegui foi moldado como

um intelectual confuso e muito voltado ao misticismo, próprio de um pensamento

ligado à elite. Em um conhecido artigo de tendência aprista, escrito em 1934, Carlos

Manuel Cox defende a tese de que Haya de La Torre e Mariátegui não discordavam

do essencial, a diferença entre os dois pautava-se apenas na opção “metodológica”:

“Enquanto Haya era um homem de ação em favor das massas oprimidas do Peru,

Mariátegui seria um intelectual, um ‘homem de verbo’” (Idem, p.40).

Esta leitura de Mariátegui alinhado à Haya no essencial de suas ideias irá

ganhar muitos adeptos ao longo das décadas. Em diferentes aspectos, diversos

autores reconhecerão mais afinidades que diferenças entre os dois peruanos.

Embora as correspondências trocadas devido ao episódio da fundação do APRA

como partido e as duas teses apresentadas pela delegação peruana na I

Conferência Comunista Latino-Americana deixem claro a oposição ideológica entre

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eles naquele decisivo momento, a relação de ambos passou por diferentes

momentos – amizade, colaboração e oposição –, dando margem a uma série de

interpretações sobre afinidades existentes entre as posições políticas dos dois

militantes.

Em 1943, com o novo ordenamento russo a partir da Segunda Guerra,

Ravines é expulso do PCP e surge uma nova caricatura de Mariátegui. O Amauta é

então ressuscitado como um convicto defensor do marxismo, do leninismo e

seguidor de Stálin. Segundo essas versões, a leitura própria de Mariátegui sobre a

realidade peruana seria a aplicação do método materialista-dialético de forma

exemplar, analisando a época histórica e seus métodos de ação específicos. Não

haveria, portanto, desvio da ortodoxia comunista, sendo o episódio do nome do

partido meramente estratégico. Essa leitura de Mariátegui não se esgotou nos anos

40 e 50, mas gradativamente caiu em descrédito.

A partir dos anos 60, com a crise do comunismo tradicional e com o advento

da Revolução Cubana, ressurge o debate sobre um marxismo latino-americano.

Nesse momento, a obra de Mariátegui passa a ser retomada em busca de

contribuições ao processo latino-americano, estabelecendo uma autonomia de seu

pensamento em relação ao stalinismo e ao APRA. Porém, o processo de

fragmentação partidária no Peru continua, fazendo com que o pensamento de

Mariátegui sirva às mais variadas correntes da chamada “Nova Esquerda” peruana.

Dessa forma, o “mariateguismo” atinge seu ápice na década de 70, catapultando o

pensador ao lugar de mito inspirador das mais diferentes tendências. Esse

Mariátegui caleidoscópico foi, nas palavras de Sorrilha,

[...] referência para justificar as mais diversas práticas e estratégias políticas, inclusive a via armada senderista. O nome do Sendero Luminoso deriva do lema do Partido que dizia: Partido Comunista Peruano por el sendero luminoso de José Carlos Mariátegui. Ainda que reconstruído à imagem e semelhança de cada partido que o adotava, Mariátegui foi o “patriarca” de todos os movimentos da nova esquerda no Peru (SORRILHA, 2009. p. 858).

A partir da década de 80, como resultado dessa multiplicidade de versões e

um maior acesso e publicização da obra do Amauta, inicia-se uma nova etapa no

conhecimento daquilo que foi chamado neste momento de “fenômeno Mariátegui”,

ou seja, um fecundo interesse sobre a obra do pensador não só por estudiosos

peruanos, mas também por estrangeiros. Dois deles, o peruano Alberto Flores

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Galindo e o argentino José Aricó são responsáveis por iniciar esse revisionismo da

obra do Amauta, que tem como marco central o Seminário de Sinaloa, ocorrido em

1980 na Universidade de Sinaloa, cidade de Culliácan, no México, que reuniu

estudiosos latino-americanos e europeus como Robert Paris, César Lévano, Antonio

Melis, Alberto Flores Galindo, José Aricó, Anibal Quijano e Cesar Germaná. Além do

Seminário de Sinaloa, algumas publicações seminais marcaram o surgimento das

investigações sobre o “Fenômeno Mariatégui”. Dentre elas, cabe destacar La agonia

de Mariátegui, la polémica com Komintern, de Alberto Flores Galindo (1982);

Mariátegui y los origenes del marxismo latino-americano, de José Aricó (1978); o

prólogo à edição dos Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana da

Biblioteca Ayacucho escrito pelo sociólogo Anibal Quijano (1979). Assim, após o

revisionismo, o reencontro e o Seminário de Sinaloa, uma nova plataforma de

estudos sobre a obra mariateguiana se estabelece.

Atualmente, embora o número de estudos seja bastante numeroso e

heterogêneo, pode-se dizer que alguns consensos sobre a obra de Mariátegui

balizam a maioria dos estudos atuais. O primeiro deles é o caráter não sistemático

de sua produção. Mariátegui só publicou dois títulos em vida, sendo ambos

formados, em sua maioria, por artigos escritos nas revistas com as quais colaborava.

Periodista de profissão, foi através de seu ofício de analista dos acontecimentos

mais variados no campo da arte, política, religião e da cultura que Mariátegui

produziu suas reflexões. Em constante diálogo com as diferentes forças políticas e

culturais de seu tempo, seja convergindo ou polemizando, Mariátegui não realizou

uma obra sistematizada em um corpo teórico sedimentado e rigoroso. Seus textos

tendem a uma linguagem viva e de tom coloquial, nos quais as ideias vão se

construindo de forma despreocupada com as exigências acadêmicas de demonstrar

uma justificação.

Ótimo escritor, Mariátegui deixou uma obra que se caracteriza pelo tom

informal que frequentemente recorria a recursos estilísticos próprios da literatura e

onde, não raro, o texto assumia deliberadamente um tom poético. Nesse sentido,

temas e reflexões presentes nos seus escritos muitas vezes estavam diluídos em

diversos textos, em uma ou duas frases isoladas de um escrito maior. De caráter

heterogêneo e tomado de sentimentos como a exaltação, a ironia e a religiosidade, o

estilo irregular do Amauta não era fruto da contingência de uma vida atribulada. Ao

contrário, essa forma de elaborar o pensamento foi uma escolha pessoal,

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posicionando-se criticamente ao academicismo e ao pensamento produzido distante

do calor dos acontecimentos.

Autointitulado “extrauniversitário e, talvez, até mesmo anti-universitário”

(ALIMONDA, 1983, p. 8), o pensador era defensor do entrelaçamento entre

realidade e ficção, cotidiano e conhecimento, imaginação e análise científica, ferindo

propositadamente os cânones cientificistas da academia e da “literatura moribunda”.

Seu estilo de escrita e a maleabilidade dos temas que abordou eram, mais do que

mero sintoma de sua profissão de jornalista, uma convergência entre suas ideias,

sua prática militante e sua fé revolucionária. Comentando seu ofício de escritor,

Mariátegui afirma que o seu trabalho se realiza

“segundo a observação de Nietzsche, que não apreciava o autor envolvido na

produção intencional e deliberada de um livro, mas sim aqueles cujos pensamentos

formavam um livro de forma espontânea” (FONTES in: MARIÁTEGUI, 2011, p. 11).

Nesse sentido, há um consenso em reconhecer na obra de Mariátegui a

manifestação direta de sua militância político-cultural. Pensamento enraizado na

realidade presente de seu tempo, a obra de Mariátegui se cria junto ao seu

desenvolvimento, enquanto homem de vanguarda de seu país e também dos

diferentes projetos que realizou. Dimensão menos estudada de sua obra – e que

ocupa quarenta por cento dela –, os textos sobre cultura, a abertura do Editorial

Minerva e o seu esforço pela continuidade de Amauta dentre outras publicações,

explicitam seu intuito de unir a vanguarda política e a vanguarda cultural em um

projeto ainda maior, o socialismo indo-americano. Dessa forma, ação política, ação

cultural e reflexão teórica são, em Mariátegui, dimensões de uma mesma totalidade

heterogênea, a aventura heroica do socialismo.

Outro traço característico da obra de Mariátegui é a sua busca em realizar

uma leitura específica da realidade do Peru e da América Latina. Concretizada

principalmente em sua obra Sete ensaios da realidade peruana, a leitura de

Mariátegui se sobressaiu pela capacidade de utilizar o método de Marx sem perder

de vista as características próprias do contexto latino-americano. O estudo da

presença indígena na formação do Peru e a importância central que Mariátegui dá

às populações camponesas indígenas no protagonismo da revolução socialista do

continente confere ao pensamento do Amauta uma originalidade reconhecida pelos

mais variados analistas de sua obra e coloca-o entre os mais qualificados

debatedores do legado marxista.

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Por fim, é reconhecida abertamente nos debates contemporâneos a

diversidade de autores e correntes filosóficas que concorrem com o marxismo no

interior do pensamento do autor. O vitalismo de Bergson, a ideia de mito em Sorel, a

agonia de Miguel de Unamuno, a crítica historicista ao progresso realizada por

Croce, um interesse pelo trabalho de Freud, Nietzsche e pelas vanguardas

artísticas, em especial o surrealismo. Soma-se a isso seu pendor místico

desenvolvido desde a infância pela mãe católica e onde não faltou a forte matriz

incaica, muito presente no universo cristão mestiço da região em que cresceu.

Dessa maneira, embora haja um forte debate em torno da importância de cada uma

dessas influências sobre Mariátegui e até que ponto elas aproximam mais ou menos

o peruano de sua adesão ao marxismo, é consenso afirmar que o Amauta teceu um

pensamento onde comparecem muitas influências para além do marxismo.

Essa natureza não sistemática, que transita pelos mais variados temas e

âmbitos sociais; que se realiza a partir de uma práxis alimentada por vertentes

filosóficas variadas e até consideradas excludentes; que opera entrelaçando

organização política e expressões artístico-culturais de vanguarda e que reúne em

um mesmo sentido fé religiosa, ação revolucionária e tradição inca configuram um

conjunto bastante heterogêneo e variado de áreas e temáticas tornando um desafio

capturar o sentido comum do legado do Amauta.

Nesse sentido, localizamos a obra de Mariátegui no conjunto de reflexões já

realizadas sobre a matriz filosófica do Dois Como Totalidade, da dialética dos

extremos e do ethos barroco na constituição do pensamento crítico propriamente

latino-americano. Conjunto de reflexões retiradas da intensidade de sentidos que

emana da práxis, a reflexão mariateguiana é expressão dessa mestiçagem crítica

própria à filosofia latino-americana em seu desdobramento próprio ao momento

histórico da passagem do séc. XIX ao início do séc. XX, onde o mundo conheceu

processos sociais que tornaram mais bem delineados os projetos societários

alternativos ao modo de produção capitalista, configurando assim, um pensamento

crítico de caráter latino-americanista.

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2. A PROBLEMÁTICA FILOSÓFICA EM MARIÁTEGUI: POR UMA TOTALIDADE HISTÓRICO-SOCIAL HETEROGÊNEA

Dialética dos extremos e afinidades eletivas: a totalidade aberta

As influências teóricas distintas, a importância dada a dimensões pouco

valorizadas e tematizadas pelo pensamento político – imaginação, poesia, religião –

e o conjunto de atividades no campo da militância cultural e política que exerceu

Mariátegui, dificultam muito o exercício de desvendamento de seu pensamento em

uma totalidade significativa. A admirável capacidade de articular diferentes âmbitos

da vida em sociedade com a dimensão subjetiva e espiritual da luta social é um

desafio à interpretação de sua obra, já que pede daquele que a indaga uma abertura

pouco comum à investigação da ciência.

Nesse sentido, não é à toa que alguns pesquisadores e estudiosos de

décadas da vida do Amauta parecem concordar que o movimento de seu

pensamento apresenta uma problemática filosófica de tal natureza que é preciso

uma arqueologia de nossos pressupostos filosóficos para compreendermos sua

originalidade de pensamento. É caminhando nesse sentido que entendemos que

Mariátegui apresenta mais do que uma obra restrita às análises de seu contexto

histórico, ele dá continuidade e enriquece uma perspectiva de conhecimento que

transcende o momento histórico tematizado por ele em seus escritos.

Reatualizando para o contexto histórico-mundial do séc. XX a especificidade

latino-americana da matriz filosófica do dois como totalidade, Mariátegui apresenta

um pensamento que, seguindo a tensão fundamental entre opostos reúne, em uma

mesma totalidade, logos e mithos, cisão primordial que funda a razão metafísica, o

um como princípio. Explicando como Mariátegui captou essa tensão em seu

contexto histórico e a traduziu, escreve Quijano:

Para Mariátegui estava se constituindo de maneira explícita, um campo cultural original [...]. Este campo cultural original implica que logos e mito não são, não podem ser externos entre si, senão contraditórios. Pertencem a um mesmo movimento intelectivo em que a imaginação atua como e através do lógico para constituir o conhecimento como representação global ou globalizante em movimento, ato indispensável para outorgar status supra-histórico, mítico e, portanto, àquilo que só pode realizar-se na história através de muitas transcendências e transfigurações (QUIJANO, 1987, p. 109).

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Ou seja, Mariátegui propõe uma totalidade entre logos e mithos que fere

radicalmente a compreensão do universo a partir de uma razão onde os opostos se

encontram separados em níveis, dimensões diferentes. Nesse sentido, Mariátegui

irá propor uma alternativa à proposição filosófica idealista do um como princípio.

Confrontando-se a ela em sua manifestação, enquanto pensamento

cientificista e liberal, Mariátegui afirma uma perspectiva de conhecimento do real que

traz em seu fundamento a emergência de forças opostas. Ou seja, o Amauta se

coloca contra a cisão e o domínio entre logos e mithos. Para ele, essa duplicidade

não deve se estabelecer segundo os princípios hierárquicos da ciência positivista,

mas como combate e luta em um mesmo plano.

Seguindo a noção de dois como totalidade, dimensões apartadas e em

relação, Mariátegui defende que a razão científica deve ser confrontada com suas

diferentes oposições – mito, imaginação, poesia, tradição – em uma relação de

complementaridade e tensão entre polaridades extremas, configurando assim uma

dialética dos extremos. Somando-se ao “caldo” filosófico próprio do continente latino-

americano, o pensamento do Amauta é prova dessa construção histórica de uma

filosofia própria do continente. Sua obra, porém, guarda uma singularidade: para

Mariátegui, as polaridades devem estabelecer uma relação de agonia. Admirador

confesso de Unamuno (1864-1936), a quem considerava dono de uma “inteligência

demasiado apaixonada”, Mariátegui encontrou na obra A agonia do cristianismo a

tradução de seu processo criativo e de ação política. Escreve o pensador:

A palavra agonia, na ardente e viva linguagem de Unamuno, recobra sua acepção original. Agonia não é o prelúdio da morte, não é conclusão da vida. Agonia – como Unamuno escreve na introdução de seu livro – quer dizer luta. Agoniza aquele que vive lutando, lutando contra a vida mesma, e contra a morte [...]. Para ele, a morte é vida e a vida é morte. Sua alma, cheia de esperança e desesperança ao mesmo tempo, é uma alma que, como a alma de Santa Tereza, “morre de não morrer” (MARIÁTEGUI, 2005, p. 167).

Nesse trecho, inspirado em Unamuno, Mariátegui defende a agonia enquanto

tensão entre opostos. Agonia é a luta entre a vida e a morte que alimenta a alma;

alma que caminha e que está “morrendo de não morrer”, ou seja, a fonte de

movimento é essa contradição entre opostos que realizam sua presença na forma

de luta e interpenetração. Mariátegui revela a sua convicção filosófica e leitura

própria da unidade tensional entre opostos, da “guerra originária” que alimenta seu

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pensamento. O peruano, que se autodenominava uma “alma agônica”, encontra no

pensamento de Unamuno23 uma ressonância, uma afinidade que ele claramente

utiliza para nortear sua própria vida e pensamento. Se, através do tensionamento

primordial entre logos e mithos, podemos encontrar o fundamento que reúne o

pensamento de Mariátegui ao pensamento crítico latino-americano, é no sentido

dado ao termo agonia que encontramos o marcador específico desse pensamento

em sua obra. Como explica Galindo:

O verbo “agonizar” é uma espécie de “chave” para o mariateguismo: Ele nos abre ao mundo de sua tensão interna e nos aproxima das polêmicas que marcam sua biografia. Por ambos os caminhos terminaremos nos aproximando da imagem de um marxismo elaborado longe de qualquer academicismo, envolto pelos acontecimentos, submerso na vida cotidiana que nasce nas ruas e multidões que inspiraram o ofício jornalístico de Mariátegui (GALINDO, 1982, p. 14).

Crítico radical da ideia de uma razão que nega a fé, Unamuno defende uma

teologia agônica onde o corpo, os sentimentos, a antropormofização da natureza

são manifestações de um Deus vivente em contraposição ao Deus teológico,

abstrato, produto da razão solipsista. Explicitando que a agonia se expressa não

somente na história da sociedade, mas também na vida do indivíduo, nas suas

23

A ideia de agonia expressa em Unamuno pode ser evidenciada em diferentes trechos de sua obra. De modo sintético, podemos dizer que a dialética dos extremos se expressa em Unamuno como afirmação agônica da vida enquanto confronto entre dimensões radicais da existência, como a vida e a morte: “A vida é luta, e a solidariedade para a vida é luta, se faz na luta. Não me cansarei de repetir que o que mais nos une, aos homens uns com os outros, são as nossas discórdias. E o que mais nos une, a cada um consigo mesmo, o que faz a unidade íntima da nossa vida, são as nossas discórdias íntimas, as contradições interiores das nossas discórdias. Cada um de nós só se põe em paz consigo mesmo, como Dom Quixote para morrer” (UNAMUNO, 1952, p. 45). O autor também confronta sua ideia de agonia com a dúvida cartesiana: “O modo de viver, de lutar, de lutar pela vida e viver na luta, da fé, é duvidar [...]. O que é duvidar? Dubitare contém a mesma raiz, a do numeral duo, dois, que duellum, lutam. A dúvida, mas a pascalina, a dúvida agônica ou polêmica, que não a cartesiana ou dúvida metódica, a dúvida de vida – vida é luta – e não de caminho – método é caminho, supõe a dualidade do combate” (Idem, p. 67). E explicando o movimento criativo de sua “agonia dialética” ele complementa: “Crer no que não vimos – ensinou-se no catecismo que é a fé; crer o que vemos – e o que não vemos – é a razão, a ciência; e crer o que veremos – ou não veremos – é a esperança. E tudo é crença. Afirmo, creio como poeta, como criador, olhando ao passado, à recordação; nego, descreio como racionalizador, olhando ao presente; e duvido, luto, agonizo como homem” (Ibidem, p. 51). E, se referindo à paz e à guerra, explica de forma clara, a dialética que funda sua ideia de agonia: “Alguém pode dizer que a paz é vida – ou morte – e que a guerra é a morte – ou a paz – pois é quase indiferente assimilá-la a uma ou a outra respectivamente, e que a paz na guerra – ou a guerra na paz – é a vida na morte, a vida da morte e a morte da vida, que é agonia” (Ibidem, p. 50). Ou seja, para Unamuno, assim como para o Amauta, é na discórdia, no movimento de negação e afirmação de opostos que se constitui o conhecimento, o progresso da história, a vida. Unamuno afirmava em reflexões de caráter teológico aquilo que Mariátegui levaria para o campo do pensamento crítico.

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aspirações e conflitos, na sua espiritualidade; a tensão agônica se assume como a

dinâmica básica da vida e da natureza. Nesse sentido, podemos afirmar que a

agonia enquanto luta e necessidade mútua é absorvida de Unamuno como um pilar

da obra de Mariátegui, como explica Jorge Oshiro, pesquisador que estuda a

influência de Unamuno na obra de Mariátegui:

O pensamento de Unamuno é uma franca rebelião contra a ditadura da razão cartesiana. “Não me submeto à razão e me rebelo contra ela” [...]. E a rebelião contra a nova Inquisição que é a Ciência tem sua contrapartida: a reivindicação e defesa do sentimento, da subjetividade, do irracional, do corpo, da fantasia, da fé contra a razão e a objetividade, a consciência reflexiva a ciência (OSHIRO, 1996, p. 23).

Assim, a oposição entre logos e mithos como agonia inseparável entre os

extremos da vida social dos indivíduos representa a lógica primordial que irá orientar

todo o movimento do pensamento de Mariátegui, marcado por essa tensão

constituinte entre campos distintos. Equação central de sua construção da razão

enquanto dois como totalidade, a agonia entre logos e mithos se desdobra, em

Mariátegui, em inúmeras dualidades que atravessam sua obra. Como oposição

básica à lógica (logos) da ciência, o peruano apresenta a poesia, a imaginação, o

pensamento indígena, a mística, a vontade e a fé. Todas essas construções

carregadas de pensamento mítico (mithos) seriam o complemento em oposição à

razão metafísica isolada do mundo (logos). Nesse sentido, Mariátegui defende uma

ciência baseada em uma razão ampliada, onde a ciência seja conduzida por uma

“lógica atormentada” (NOVAES, 1996, p. 9) pelas dimensões opostas da realidade

social.

Conjuntamente com essa duplicidade elementar entre ciência positivista e

seus opostos, Mariátegui também trabalha com outro conjunto de oposições que

podemos agrupar na tensão elementar entre religião e marxismo e entre tradição e

modernidade. Nesse sentido, o Amauta se esforça em reunir nacionalismo e

marxismo, religião e revolução, indigenismo e vanguarda. Coluna vertebral que

articula toda a abrangência de sua obra, a tensão agônica do pensamento de

Mariátegui é onde reside a maior sofisticação e originalidade do Amauta. Obstinado

a perscrutar e reunir os mais diferentes aspectos do real em uma mesma totalidade

significativa, Mariátegui realiza um modo definido de pensamento que reinsere a

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razão na história e no movimento do real em suas contradições e possibilidades.

Alimonda traduz essa especificidade do pensamento amautista ao afirmar que:

O vigor do discurso mariateguiano reside na fusão de diferentes registros, na constituição de um lugar de enunciação que amalgama elementos heterogêneos, nesse impulso amplo que se esforça em traçar uma unidade possível entre formações discursivas que parecem antagônicas (ALIMONDA, 1994, p. 103).

Assim, em Mariátegui encontramos um esforço constante de capturar esferas

tidas como opostas e reuni-las sobre o signo da tensão agônica. Diferente da

procura pela harmonia que caracteriza o pensamento matemático em sua busca

pela relação perfeita e proporcional; em Mariátegui, a contraposição é matéria de

sua atitude de confronto com o mundo. Franco opositor do espírito gerado pela

sujeição do mundo à análise anestesiada pelos “movimentos medidos e regulados”,

Mariátegui entende a relação entre opostos como “vida de alta tensão” capaz

construir uma nova civilização24. Contra o pensamento científico burguês – um como

princípio – Mariátegui propõe razão onde a tensão agônica – dois como totalidade –

opera, desvendando relações de tensão e copertencimento entre aspectos

contrários. Segundo Gutierrez,

[... Mariatégui] levará adiante seu assédio à relação entre classicismo e romantismo, heterodoxia e ortodoxia, materialismo e espiritualismo, moral e economia, liberdade e determinismo, heresia e dogma e outras antinomias. Não se pense, no entanto, que se trata de ceder a uma fácil conciliação entre polos opostos. O que faz Mariátegui é entrar fina e perspicazmente em cada aspecto, ressaltar seus valores e contribuições, descartar interpretações estreitas e renovar as noções com que tentamos apreender a realidade. Não estamos diante de um acomodamento de noções, e sim de síntese (GUTIERREZ, 1995, p.167).

E se aprofundando na explicação do método de Mariátegui, afirma:

O desejo de captar a totalidade da realidade levará Mariátegui a ser atento a polos considerados opostos desta realidade. Primeiro, ele trabalha separadamente, tornando visível seu alcance, logo afina e apura sua análise até o momento que, chegando a um extremo, esse exige o outro. Esse enriquecimento faz com que se estabeleça uma relação em que cada aspecto adquire seu sentido mais pleno. Temos muitas expressões desse procedimento dialético que Mariátegui tinha

24

Uma das grandes obras que exerceu forte influência para Mariátegui tecer suas reflexões sobre a luta entre duas civilizações foi O declínio do Ocidente, de Spengler.

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em grande estima e que permite que ele alcance todos os recantos da realidade social e histórica (GUTIERREZ, 1995, p. 166).

Para o pensador peruano, a busca por um extremo termina na exigência do

outro, ou seja, é um movimento intencional de busca pelo outro – assim se revela o

sentido estruturante da dialética amautista. A tensão máxima, nascida de um esforço

reflexivo e prático que opera através dos extremos da realidade social em que está

imersa, realiza um movimento onde é buscada uma ligação íntima entre estruturas

de realidades aparentemente opostas, distantes em seu extremo. Nesse sentido, a

dialética dos extremos, em seu movimento agônico, se realiza buscando capturar as

afinidades eletivas25.

Nascida da alquimia medieval e trazida do reino da química para o universo

da literatura por Goethe, o conceito de “afinidade eletiva” procura capturar esse

movimento íntimo entre duas substâncias, entre duas almas que se amam. É Max

Weber que vai transpor essa “metáfora” alquímica literária para o universo da

sociologia, quando busca capturar elementos análogos e convergentes entre uma

determinada ética religiosa e um comportamento econômico. Realizando uma

análise sobre o caminho do conceito desde o seu nascimento científico até a análise

weberiana e sua presença em outros sociólogos26. Lowy propõe uma definição:

Afinidade eletiva é o processo pelo qual duas formas culturais – religiosas, intelectuais, políticas ou econômicas – entram, a partir de determinadas analogias significativas, parentescos íntimos ou afinidades de sentidos, em uma relação de atração e influência recíprocas, escolhas mútuas, convergência ativa e reforço mútuo (LOWY, 2011, p.140).

Ou seja, a partir do conceito de afinidade eletiva, é possível capturar um

movimento intrínseco à dialética dos extremos em Mariátegui onde, por tensão e

copertencimento, oposições extremas realizam um movimento agônico de

reconhecimento e inclusão do outro. Essa dinâmica, que segundo Lowy pode operar

de diferentes formas – convergência, reforço, atração, influência –, apreende

justamente o movimento próprio ao dois como totalidade, já que mantém viva o

25

“São raros os pesquisadores da área da Sociologia das Religiões que não constataram, ao comentarem os escritos de Max Weber, em especial em ‘A Ética Protestante’ e ‘O Espírito do Capitalismo’, a utilização do termo ‘afinidade eletiva’. Mas estranhamente, esse termo não gerou estudos, discussões ou debates; aliás, não é possível encontrar uma identificação mais ordenada das passagens em que a expressão se apresenta, muito menos uma análise sistematizada de seu significado metodológico (LOWY, 2011, p.129). 26

Lowy cita Tonnies, Simmel, Troelttsch e Manhein.

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pertencimento dos extremos no interior de uma totalidade. Não há uma negação

excludente e hierárquica que acomoda âmbitos distintos em uma mesma totalidade

já estruturada de forma simétrica.

Porém, como Zeferino (2010, p. 97) aponta, o conceito de afinidade eletiva

deve contar, dialeticamente, com suas antinomias pouco eletivas, ou seja,

elementos irreconciliáveis mesmo em suas estruturas mais íntimas e que, sendo

assim, não se reúnem. Se, por afinidades eletivas, dimensões opostas vão se reunir

em suas estruturas mais íntimas, pelas antinomias pouco eletivas se mantém um

tensionamento. Ou seja, para Zeferino, essa dinâmica afinidades/antinomias é

responsável pela existência de uma “dialética sem síntese” (Idem, p. 106).

Dessa forma, ao pegarmos o caso do movimento específico da dialética

agônica de Mariátegui, encontramos o exercício de uma síntese totalizadora aberta,

assimétrica e descontínua. Ou seja, a dialética dos extremos em Mariátegui busca

desvendar as relações de afinidade e antinomia, mantendo assim o caráter de

movimento incessante do conjunto, enquanto totalidade saturada de múltiplos

movimentos em seu interior. Mais do que fusão completa ou divergência, o Amauta

opera em uma relação tensão e copertencimento entre distintos, o que abre a

possibilidade de uma totalidade histórico-estrutural heterogênea, já que reúne

lógicas históricas distintas – por vezes contraditórias – em uma mesma totalidade

em movimento e abertura constante:

A ideia de totalidade histórica exclui a possibilidade de que uma única lógica presida a constituição e o processo histórico de uma totalidade social concreta, já que essa é historicamente heterogênea e só pode estar integrada por várias e diversas lógicas. Elas se articulam e certamente produzem uma estrutura e se ordenam em torno de uma lógica de conjunto. Nesse sentido, formam uma lógica de continuidade, porém, ao mesmo tempo, no mesmo movimento, não podem deixar de ser diversas e descontínuas (QUIJANO, 1991, p. 12).

Dessa forma, a dialética amautista gera a possibilidade de diferentes relações

a partir do tensionamento e copertencimento de polaridades, evidentes em suas

proposições sobre a tradição heterodoxa27 e na ideia de uma classe trabalhadora

heterogênea em sua composição, própria à especificidade peruana. Esse traço do

pensamento de Mariátegui se apresenta com maior nitidez nos escritos realizados

27

Sobre tradição heterodoxa, ver subitem neste trabalho, Tradição Heterodoxa.

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nos últimos sete anos de sua vida. É a luta do proletariado, em nível mundial,

continental e nacional, que serve como bússola para o Amauta em suas reflexões

sobre o caminho da humanidade. Guiado pelo eixo comum do anti-positivismo, o

Amauta usa das afinidades eletivas para costurar socialismo, indigenismo,

vanguardas artísticas e dimensão religiosa em uma única totalidade. Unidas por

determinadas condições históricas, essas dimensões se reúnem em uma proposta

original, o socialismo indo-americano. Porém, a proposição mariateguiana não se

encerra em uma fusão absoluta, em uma unidade fechada. Carregada também de

antinomias, as relações que conformam o socialismo indo-americano de Mariátegui

não constituíram uma concepção tida como realizada, fusão completa entre

extremos. Logo no início da obra Sete Ensaios de Interpretação da Realidade

Peruana, é possível encontrar sinais claros dessa consciência do inacabamento de

suas próprias concepções. No prólogo que Mariátegui sugestivamente nomeou de

Advertência, ele escreve:

Voltarei a esses assuntos quantas vezes me for exigido pelo curso de minha pesquisa e da polêmica. Talvez haja, em cada um destes ensaios, o esquema, a intenção de fazer um livro autônomo. Nenhum deles está acabado: e não estarão enquanto eu viva e pense, e tenha algo a acrescentar ao que tenha escrito, vivido e pensado (MARIÁTEGUI, 2010, p. 32).

E, escrevendo sobre este movimento de realização próprio ao pensamento do

Amauta, Galindo (1982) aponta o conjunto de afinidades e divergências no interior

da apreensão de totalidade realizado pelo peruano:

O leitor de Mariátegui deve compreender que marxismo e nação formam um verdadeiro problema – no sentido vital da palavra – para o fundador do socialismo peruano. [... Há] uma verdadeira tensão que atravessa seus escritos e sua vida: algumas vezes prima o marxismo, outras, a nação, nem sempre de forma harmônica e, em muitas ocasiões, essa mesma tensão se expressa no contraponto entre vanguarda e indigenismo, entre ocidente e mundo andino, entre a reivindicação de heterodoxia e a exaltação da disciplina. [...] A tensão entre marxismo e nação gerou traços criativos em sua obra, mas também é motivo de contradições (GALINDO, 1982, p. 11).

O pensamento de Mariátegui estabelece assim uma constituição específica à

ideia do dois como totalidade, ressignificando essa matriz filosófica em um marxismo

agônico saturado de contradições. Perspectiva que nos remete a uma dialética

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originária entre a palavra mítica e a palavra lógica; a ideia de movimento enquanto

fundamento alimentou a noção do mundo enquanto instabilidade.

Expressa na dialética dos extremos, própria ao ethos barroco em Unamuno,

ganha o aspecto de tensionamento entre fé e razão, tensionamento que será

apropriado por Mariátegui nas mais diferentes possibilidades de oposição, afinidade

e constelação entre extremos. Mais do que mera apropriação, a agonia de Unamuno

aparece como tradução do universo de Mariátegui e de seu socialismo indo-

americano. Guiado pelo eixo comum da crítica ao pensamento evolucionista tanto

em sua versão científico-burguesa como no etapismo socialista – um como princípio

–, o Amauta tece um marxismo agônico que relaciona religião, política, economia,

cultura e subjetividade em uma mesma totalidade aberta e em constante movimento

de ressignificação. Este traço de abertura e incompletude que abarca múltiplos

tempos históricos e dimensões da existência social forjou um pensamento

extremamente original que caracteriza o esforço prático-reflexivo de José Carlos

Mariátegui – sua práxis – como uma filosofia que não se pretende um sistema

fechado de conceitos, mas um pensamento que alcance, pela sua abertura, a

plenitude humana.

3. RELIGIÃO, MITO E VONTADE: A DIMENSÃO MÍSTICO-REVOLUCIONÁRIA EM MARIÁTEGUI

A religião como combate revolucionário

Uma das tensões constitutivas da obra de Mariátegui que melhor evidencia

sua capacidade de viajar até polos extremos da realidade para incluí-los em uma

mesma totalidade significativa é a tensão entre religião e política que,

dialeticamente, Mariátegui nos apresenta como participante de uma mesma

dinâmica no interior da realidade. Escrevendo sobre oposição seminal entre a

matéria e a ideia, escreve ele:

O materialismo socialista contém todas as possibilidades de ascensão espiritual, ética e filosófica. E nunca nos sentimos mais veemente, eficaz e religiosamente idealistas do que ao firmar bem os pés na matéria (MARIÁTEGUI, 2005, p. 121).

Frase que sintetiza a tensão agônica que caracteriza sua perspectiva de

conhecimento, ao afirmar a interpenetração entre materialismo socialista e

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religiosidade idealista, Mariátegui explicita a amplitude de seu horizonte filosófico,

sua dialética dos extremos. Considerado como âmbitos irremediavelmente

excludentes, que se negam até a última consequência; ao reunir sobre uma mesma

afirmação e atitude tanto o materialismo e o idealismo, religião e socialismo,

Mariátegui segue o mestre de Salamanca, Unamuno, que reúne razão e fé. Para

Mariátegui, o sentimento religioso de transcendência que aponta para além do

momento histórico presente pode estar reunido e tensionado com a dimensão dos

“pés na matéria”, ou seja, de um enraizamento firme na concretude presente da

vida, o chão de suas determinações. Essa duplicidade se evidencia em outro trecho

em que o Amauta comenta o pensamento de Unamuno, sobre a obra A Agonia do

Cristianismo:

Neste livro, como em todos outros de sua autoria, Unamuno concebe a vida como luta, como combate, como agonia. Esta concepção da vida que contém mais espírito revolucionário que muitas toneladas de literatura socialista, nos fará sempre amar o mestre de Salamanca. “Eu sinto – escreve Unamuno – a política elevada à altura da religião e a religião elevada à altura da política”. Com a mesma paixão falam e sentem os marxistas, os revolucionários. Aqueles em que o marxismo é espírito, é verbo. Aqueles em quem o marxismo é luta, é agonia (MARIATEGUI, 2005, p. 180).

Descrevendo a tensão agônica que forma seu pensamento em movimento

dialético próprio, Mariátegui propõe uma política elevada à altura da religião e, ao

mesmo tempo, uma religião elevada à altura da política. Temos assim um exemplo

nítido do combate em busca do ápice dialético que caracteriza o seu pensamento.

Guerra originária entre opostos – política e religião se engrandecem ao penetrar

uma na outra, porém não se anulam, não se harmonizam em uma integração

unitária. Permanecem separadas, opostas, porém se interpenetram, se alimentam e

se engrandecem em uma mútua correlação de oposição, onde uma se afirma em

relação à outra e, ao mesmo tempo, afirma a outra em relação a si. Radicalmente

distinta da ascendência infinita do progresso positivo do evolucionismo, a tensão

agônica, o combate revolucionário entre dimensões contraditórias que realiza

Mariátegui, não opera sob o signo da harmonia da integração. Ao contrário, é uma

tensão constante que se nega e afirma – nega afirmando e afirma negando seria

mais fidedigno –, gerando assim, o movimento de superação. Em outro conhecido

texto no qual Mariátegui reflete sobre a figura de Gandhi – não por acaso, outra

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personalidade que afirmava constantemente a convergência entre política e

espiritualidade – afirma o Amauta:

As críticas contra o materialismo ocidental são exageradas. O homem do ocidente não é tão prosaico e torpe como alguns contemporâneos e estáticos supõem. O socialismo e o sindicalismo, apesar de sua concepção materialista da história, são menos materialistas do que parecem. Apoiam-se sobre os interesses da maioria, mas tendem a enobrecer e dignificar a vida. Os ocidentais são místicos e religiosos a seu modo. Por acaso a emoção revolucionária não é uma emoção revolucionária? O fato é que no ocidente a religiosidade se transferiu do céu à terra. Seus motivos são humanos, sociais e não divinos. Pertencem à vida terrena e não à celeste (MARIATEGUI, 2005b, p. 113).

Para Mariátegui, a vida de alta tensão produzida pela 1ª. Guerra Mundial

criava um novo estado de ânimo onde a alma guerreira e mística do povo estava

ressurgindo das cinzas do cristianismo institucional e da ciência positivista. Após o

drama bélico da 1ª. Guerra, um novo momento da história da humanidade surgia e,

com ele, um novo espírito religioso, livre e revolucionário tomava forma. Porém, é

preciso delinear bem aquilo que Mariátegui está querendo dizer com espírito

religioso revolucionário. Porque, juntamente com essa fé na revolução, com a tensão

agônica entre luta social e emoção religiosa, a guerra também trouxe uma reação

burguesa aos novos tempos, um espírito de continuidade e conservação

fundamentado na ideia de unidade centralizadora, um como princípio. Essa “religião

social” totalitária é o fascismo. Para Mariátegui, o fascismo surge da tragédia da

guerra como um dos feixes de exaltação da violência, uma das vozes vigorosas

nascidas do drama bélico. Transcrevendo e comentando Mussolini, escreve:

Mussolini revista militarmente o andamento da batalha. Polemiza com a oposição e exalta a disciplina de suas tropas. A disciplina do fascismo – escreve – tem verdadeiros aspectos de religião. […] “Todos os capitães do fascismo falam com uma linguagem mais exaltada e mística do que nunca. O fascismo quer ser uma religião” (MARIATEGUI, s/d)

28.

Apesar desse impulso inicial corresponder ao espírito heroico e místico de

uma religiosidade exaltada; no caso do fascismo, esse espírito guerreiro próprio

28 Excerto retirado do texto “Los Nuevos Aspectos de La Batalla Fascista”,

disponível no sítio Obras Completas de José Carlos Mariátegui, <http://www.patriaroja.org.pe/docs_adic/obras_mariategui/La%20escena%20contemporanea/paginas/los%20nuevos%20aspectos.htm>. Acesso em: 25/02/2014

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rapidamente se realoja em um conservadorismo radical e na busca da normalização

da vida cotidiana. Capturado pelo modo de vida burguês que não se identifica com

“tensões prolongadas e sacudidas bruscas”, o fascismo se transfigura em vida

controlada e sem excessos. Diante do perigo da revolução bolchevique, o retorno à

vida regrada e parlamentar,

[...] o fascismo não concebe a contrarrevolução como um empreendimento vulgar e policial, mas sim épico e heroico. Tese excessiva, tese incandescente, tese exorbitante para velha burguesia, que não quer absolutamente ir tão longe. Que se detenha e se frustre a revolução, claro, mas se possível, com bons modos. [...] A velha burguesia sonha viver de modo suave e parlamentar (MARIÁTEGUI, 2005, p. 54).

Ou seja, após um curto espaço de tempo, a mística heroica própria do espírito

quixotesco é abandonada pela burguesia, que reorienta seu modo de vida sem

superar o rumo metafísico da ciência nem o conservadorismo próprio das

instituições religiosas. Mesmo após a Guerra, se mantêm ambas as ideologias que

passam a ter seus traços agudizados e harmonizados em uma forma

ultraconservadora. A reação fascista após a 1ª. Guerra Mundial é um novo momento

histórico onde há a continuidade e intensificação do um como princípio enquanto

fundamento filosófico dominante. Apesar de pregar o combate, se mantêm os

valores hierárquicos que buscam a organização do conjunto, sua imobilidade e a

conservação dos padrões. O fascismo torna-se um instrumento de controle e

manutenção do poder centralizado que emprega a violência para alcançar esse

objetivo de ordem e unidade.

Diferente do caminho fascista, onde o princípio da violência como

transformação se transfigura em violência para controle e manutenção da unidade, o

sentimento místico de agonia e luta se mantém vigoroso na senda aberta pelos

comunistas. Embora equivalentes na crença pelo combate como prática, não há

forças suficientes no fascismo para manter esse vigor aceso e ascendente. O

conflito, a guerra, a agonia – dois como totalidade – pertence à luta dos

revolucionários:

[... Gentile, pensador italiano] recorda em seu ensaio, as palavras de Jesus Cristo: Non veni pacem mittere, sed gladium. Ignem veni mittere in terram. E remarca, a propósito da questão moral, que esta tonalidade religiosa da psicologia fascista está presente na tonalidade da psicologia antifascista. [...] Somente no misticismo revolucionário

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dos comunistas se constatam as características religiosas que Gentile descobre no misticismo reacionário dos fascistas. A batalha final será, por esse motivo, entre o fascismo e a democracia (MARIATEGUI, s/d)

29.

É nesse sentido que a mística revolucionária de Mariátegui deve ser

interpretada a partir do conflito e da exaltação do combate como meio de

revolucionar o mundo. Enquanto o fascismo utiliza o princípio da exaltação mística

como forma de instituir a obediência religiosa a um controle central de poder, o

sentimento religioso dos revolucionários tem um objetivo libertário. Diferente da

religiosidade defendida pelo fascismo, o sentimento religioso do revolucionário não

deve estar diretamente relacionado a uma instituição centralizadora e saturada de

dogmas como a Igreja. A revolução pede uma nova religião, uma espiritualidade que

seja liberta dos vínculos conservadores da Igreja; mas isso não significa

antirreligiosidade. Para Mariátegui, o comunismo é uma nova forma de religião:

A palavra religião tem um novo valor, um novo sentido. Serve para algo mais que designar um rito ou uma igreja. Pouco importa que os sovietes escrevem em seus cartazes de propaganda que a “religião é o ópio do povo”. O comunismo é essencialmente religioso (MARIÁTEGUI, 2010, p. 250).

Outro aspecto importante sobre a mística revolucionária defendida pelo autor

dos Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana é a sua independência

diante dos critérios científicos de validação da verdade. Já não é mais o tempo da

negação intelectual da religião como dimensão oposta e excluída da razão científica.

Considerada como mero irracionalismo obscurantista pela ciência, segundo o

Amauta, a religiosidade não deve ser enquadrada e limitada a esse lugar. A

religiosidade não está necessariamente identificada com nenhuma instituição. Mas,

ao mesmo tempo, não participa do ceticismo pseudocristão da intelectualidade

liberal burguesa, identificada por Mariátegui como uma concepção de vida em

declínio. É preciso, para além do clericalismo e do racionalismo que se excluem

mutuamente, ampliar o sentido de religiosidade:

29

Excerto retirado do texto “Los Nuevos Aspectos de La Batalla Fascista”,

disponível no sítio <http://www.patriaroja.org.pe/docs_adic/obras_mariategui/La%20escena%20contemporanea/paginas/los%20nuevos%20aspectos.htm>. Acesso em: 25/02/2014

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Já foram superados definitivamente os tempos de apriorismo anticlerical, no qual a crítica “livre pensadora” se contentava com a execução sumária e estéril de todos os dogmas e igrejas, a favor do dogma e da igreja de um “livre pensamento” ortodoxamente ateu, leigo e racionalista. O conceito de religião cresceu em extensão e em profundidade. A religião não é reduzida mais a uma igreja e a um ritual. São reconhecidos nas instituições e nos sentimentos religiosos significados muito diferentes dos que ingenuamente eram atribuídos, com radicalismo incandescente, por pessoas que identificavam religiosidade e obscurantismo (MARIÁTEGUI, 2010, p. 163).

Mariátegui também criticava o espírito humanitário e filantrópico daquilo que

ele chamava de socialismo ético. Se o fascismo é a forma política da violência para

manutenção da ordem e a ciência positivista um modelo de conhecimento próprio

dos liberais, as “especulações altruístas e filantrópicas dos defensores do socialismo

ético” são exemplos do reformismo social-democrata anterior à 1ª. Guerra Mundial,

realizados por aqueles que querem parar a locomotiva revolucionária em nome de

um “romantismo humanitário”. Se os fascistas capturam a energia mística e os

cientistas a negam, para o Amauta, o “socialismo moral” joga água na fervura ao

defender a continuidade de uma moral de escravos. Claramente inspirado em

Nietzsche e sua crítica à moral cristã, para Mariátegui é necessário a criação de uma

moral de produtores30 situada para além do capitalismo. Nesse sentido, o advento

de uma moral de produtores só é possível com uma mudança trágica e definitiva de

um modo de produção a outro, tornando impossível uma passagem histórica desse

vulto ser realizada de maneira apolínea, ou seja, de forma medida, harmônica e

serena. Regido pelo signo da tragédia dionisíaca, a moral de produtores superará a

moral cristã – responsável pela moral do escravo –, a partir da conquista heroica do

socialismo. Em outras palavras, para Mariátegui, o cristianismo caritativo deve ser

superado por um novo e mais combativo sentimento religioso.

30

A ideia de uma moral de produtores que supere a dualidade moral do senhor/moral do escravo está presente em Sorel, que dedica um capítulo inteiro a esse tema em sua principal obra, Reflexões sobre a Violência. Para o autor francês é necessário a criação de uma moral pertencente a homens na “condição de produtores livres trabalhando em uma fábrica, desembaraçados de qualquer patrão”. Tal objetivo, para Sorel, só seria alcançado em uma sociedade socialista e, para alcançá-la, seria necessário recorrer à violência revolucionária, diferente da violência imposta pela burguesia. Para Sorel, a violência revolucionária é heroica e criativa, é uma violência radicalmente oposta à moral dos conservadores, da violência usada para a conservação do sistema. Essa violência só é possível, segundo Sorel, se for alimentada pelo mito da greve geral, ou seja, por um mito social que invista os trabalhadores de ânimo e entusiasmo para empreender essa batalha contra o decadentismo.

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Pela via do socialismo moral e de seus sermões antimaterialistas não se consegue senão recair no mais estéril e lacrimoso romantismo humanitário, na mais decadente apologia do pária, no mais inepto plágio da frase evangélica dos pobres de espírito [...]. Na luta de classes, onde residem todos os elementos do sublime e heroico que há em sua ascensão, o proletariado deve se elevar a uma “moral de produtores” muito distante e distinta da “moral de escravos” (MARIATEGUI, 2011, p. 63).

Segundo Mariátegui, a dimensão espiritual não deve ser identificada com

dogmas ou rituais específicos, tampouco pelo mero irracionalismo acusador da

ciência positivista ou do reducionismo da moral cristã enfraquecida por ideais

assistencialistas de ajuda aos pobres; a dimensão espiritual é uma força incapaz de

ser capturada pela ciência, pela instituição religiosa ou pela moral cristã apolínea

que evita a ruptura a qualquer preço. Para Mariátegui, a mística revolucionária que

envolve o socialismo é uma força formada pelo copertencimento entre a “sede de

infinito” que habita no homem e sua luta por uma sociedade emancipada formada

por trabalhadores livres. A moral de produtores de que fala o Amauta seria resultado

dessa tensão agônica e, portanto, vigorosa entre essas dimensões, que formaria

através da paixão religiosa e da luta política, uma verdadeira mística revolucionária.

Sobre a mística mariateguiana, escreve Lowy:

A palavra "mística", escrita tão frequentemente na pena de Mariátegui, é evidentemente de origem religiosa [...]. Sinaliza a dimensão espiritual e ética do socialismo, a fé no combate revolucionário, o compromisso total pela causa emancipadora, disposição heroica para arriscar a própria vida. Para Mariátegui, a luta revolucionária – ou melhor dito, empregando o termo de Miguel de Unamuno que tanto o fascinava – a agonia revolucionária configura um reencantamento do mundo. Mas, ao mesmo tempo em que é "mística" e "religiosa", esta luta é profana e secular: a dialética mariateguista tenta superar a oposição costumeira entre fé e ateísmo, materialismo e idealismo (LOWY, 2005c, s/d)

31.

O lugar do mito

Essa superação no pensamento de Mariátegui entre polaridades tão extremas

como fé e ateísmo, materialismo e idealismo, é possível através da leitura que o

pensador fez da ideia de mito de George Sorel. Segundo o anarcossindicalista

francês, o mito seria ato volitivo, ação consciente inspirada por uma vontade

coletiva, por uma cosmologia social capaz de alcançar a profundidade do eu através

31

Excerto retirado do texto “Mística revolucionária: José Carlos Mariátegui e a religião”, disponível no sítio <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142005000300008>. Acesso em: 25/02/2014.

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do “sonho de uma transformação profunda”. Essa mudança estrutural, verdadeira

catástrofe prenunciada por esse conjunto de ideias que é o mito, não deve

necessariamente ser concretizável no futuro. Sua principal essência e característica

é ser um instrumento para a ação no presente, visão de mundo utópica que escapa

à razão e alimenta a revolução no momento presente. Segundo Sorel:

A experiência nos mostra que construções de um mundo indeterminado no tempo podem ter uma grande eficácia e muito pouco inconvenientes, quando são de uma certa natureza. Isso ocorre quando se trata de mitos nos quais se encontram as tendências mais fortes de um povo, de um partido ou de uma classe, tendências que se apresentam ao espírito com a insistência de instintos em todas as circunstâncias da vida, e que dão um aspecto de plena realidade e esperança à ação próxima sobre as quais se funda a reforma da vontade (SOREL, 1992, p. 143).

Para Sorel, a realização desse mito social só seria factível se

conseguíssemos vencer os obstáculos da moral cristã e burguesa. Mariátegui,

munido das reflexões sorelianas, interpreta o mito social de que fala o francês como

a possibilidade de preenchimento das mais íntimas aspirações humanas, da

transcendência somente prometida pelas religiões. Sobre isso escreve:

Constata-se, faz algum tempo, o caráter religioso, místico, metafísico do socialismo. Georges Sorel dizia em suas Reflexões sobre a violência: "Estabeleceu-se uma analogia entre a religião e o socialismo revolucionário na sua intenção de preparar e até reconstruir o indivíduo para uma obra gigantesca. Bergson nos ensinou, porém, que não somente a religião pode preencher a região do eu profundo: os mitos revolucionários podem também ocupá-la". Como o mesmo Sorel nos lembra, Renan chamava a atenção sobre a fé religiosa dos socialistas, constatando sua inexpugnabilidade perante qualquer desalento (MARIÁTEGUI, 2005, p. 60).

A partir de Sorel, Mariátegui concebe a possibilidade do caráter místico do

socialismo. Porém, assim como a política elevada ao estatuto de religião de que fala

Unamuno não está ligada diretamente ao socialismo, o mito soreliano da revolução

social não tem uma conexão com a religião. É Mariátegui quem aproxima esses

conceitos, criando o “caráter místico, religioso e metafísico do socialismo”. Não é por

acaso também, que encontramos tanto em Sorel, como em Unamuno, a ideia de um

“eu profundo”, um centro, um “espaço existencial” somente alcançado pelo

sentimento de transcendência – a agonia de Unamuno – ou pela revolução proletária

– no caso de Sorel. Ou seja, a mística revolucionária de Mariátegui reúne tanto a

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ideia de religião política de Unamuno como a ideia de mito revolucionário em Sorel,

superando ambas em uma concepção ainda inédita, a emoção religiosa própria à

revolução socialista. A paixão mística dos revolucionários é, segundo Mariátegui, a

força capaz de reunir religião e política, o céu e a terra no seio da história, criando

assim uma nova tessitura cotidiana, uma nova moral, um novo sentido de porvir.

Escreve ele:

Acontece que a política, para os que a sentimos elevada na categoria de uma religião, como diz Unamuno, é a própria trama da História. Nas épocas clássicas, ou de plenitude de uma ordenação, a política pode ser somente administrativa e parlamentar; nas épocas românticas ou de crise da ordem, a política ocupa o primeiro plano da vida (MARIÁTEGUI, 2005, p. 252).

Dessa forma, o mito ganha, nas reflexões de Mariátegui, uma concepção

muito distinta daquela que o entende como sendo algo do campo do irreal e da

fantasia não verdadeira. Extremamente plástico e instável, o mito também não é

algo transcendente, religioso no sentido de desligamento total com o mundo

humano, força superior e imutável pairando acima de nossas cabeças.

Na tentativa de auxiliar na compreensão deste eixo central da obra de

Mariátegui, o filósofo peruano Zenon Paz de Toledo propõe a aproximação do

sentido de mito em Mariátegui a partir do uso da oposição e da similitude. Dessa

maneira, o filósofo busca delinear a particularidade da ideia de mito em Mariátegui,

já que, como outros aspectos de sua obra, há uma série de alusões e afirmações

dispersas ao longo da obra do Amauta, não havendo uma sistematização mais

organizada em seus escritos de qual seria o sentido exato do mito. Organizando a

sua análise segundo o método de análise filosófica, Toledo se aproxima do sentido

de mito em Mariátegui a partir da sinonímia e da oposição. Sobre a sinonímia,

escreve:

Os termos que funcionam como equivalentes são, entre outros: fé, paixão, encantamento, ideal, mística religião, crença superior, sentimento, animação etc. Vale dizer, é algo capaz de produzir ação, de aglutinar forças e conduzi-las a um objetivo. Mariátegui sustenta a irrenunciável dimensão metafísica da prática humana (TOLEDO, 1991, p. 40).

Já em relação às oposições, assinala:

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Tais conceitos (opostos) são razão, ceticismo, desespero, esgotamento, niilismo, negação, desencanto etc. Daí se deduz que o mito é incompatível com o niilismo, o conformismo e a atitude conservadora diante da vida (TOLEDO, 1991, p. 40).

O mito é, para José Carlos Mariátegui, a força capaz de impulsionar a

vontade humana rumo à superação das limitações que a razão positivista e seu

ancoradouro social – o modo de vida burguês – produzem. Explicitamente contrário

àqueles que defendem a ideia de mito como dimensão falsa e estranha à vida,

Mariátegui eleva o mito ao lugar privilegiado de manifestação da alma e da fé,

fenômenos centrais na existência humana segundo ele, mas considerados alheios e

até inexistentes no universo enquadrado pela razão científica. Na obra O homem e o

Mito, Mariátegui escreve:

O homem ocidental colocou, durante algum tempo a Razão e a Ciência no retábulo dos deuses mortos. Mas nem a Razão nem a Ciência podem ser um mito. Nem a Razão nem a Ciência podem satisfazer toda a necessidade de infinito que existe no homem. A própria razão se encarregou de demonstrar aos homens que não lhes basta e só o Mito possui a preciosa virtude de preencher seu eu profundo (MARIÁTEGUI, 2005, p. 56).

Segundo o Amauta, é como se o mito fosse um veículo de expressão da força

de vontade em suas mais diferentes formas de similitude, no sentido em que aponta

Toledo (1991). A vontade – categoria filosófica que participa tão pouco do

cientificismo mecanicista –, ganha em Mariátegui um lugar central. Fé, paixão,

mística, espiritualidade, sentimento, imaginação poética, encantamento. O mito é a

expressão de tudo aquilo que eleva o homem ao infinito e ao êxtase, contrária,

portanto, à mecanização própria da ciência positivista e de seu mundo suave de

movimentos regulares, temerosa do mundo instável, do mundo pós-guerra

testemunhado por Mariátegui. Convergente com a sua interpretação da vida social

como “drama pós-bélico”, a ideia de mito – como catalisador do conjunto de forças e

do homem na construção de seu devir histórico –, ganha uma função específica na

obra do peruano: servir como fundamento da revolução socialista. Conjunto de

valores, símbolos e sentimentos que devia alimentar a “moral de produtores”, o

“estado de ânimo” e a “paixão mística” dos revolucionários, o mito da revolução

proletária representa a síntese histórica daquilo que ele chamou de “alma matinal”.

Para o Amauta, a falência do modo de vida regido pelo cientificismo permitia a

ascendência de um novo mito, de um novo conjunto de aspirações fundado nas

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contradições originadas na vida regida pelo modo de produção capitalista. Assim

como nos movimentos religiosos, uma fé ardente se acendia nos adeptos do

socialismo revolucionário, na multidão proletária vilipendiada pela exploração de seu

trabalho e fervorosa por uma nova ordem. Escreve Mariátegui:

O proletariado tem um mito: a revolução social. Dirige-se para este mito com uma fé veemente e ativa. [...] A fé dos revolucionários não está na sua ciência; está na sua fé, na sua paixão, na sua vontade. É uma força religiosa, mística, espiritual. É a força do Mito. A emoção revolucionária, como escrevi em um artigo sobre Gandhi, é uma emoção religiosa, se desloca do céu para terra. Não são divinos, são humanos, são sociáveis (MARIÁTEGUI, 2005, p. 59).

Para Mariátegui, essa força transformadora da fé dos revolucionários vinha da

capacidade dela em ocupar o lugar reservado ao mito da ciência. O homem, animal

metafísico, necessita de uma concepção metafísica da vida, de um sentido de

transcendência que ultrapasse o enquadramento científico da realidade. Ele se iludiu

colocando a ciência racional em um lugar onde somente suas certezas são

insuficientes. A civilização burguesa buscou preencher seu anseio espiritual com a

razão científica e essa atitude levou ao colapso da civilização.

Utilizando com frequência palavras como sentimento, emoção, estado de

ânimo, paixão e fé, o pensador deixa claro como a mística revolucionária defendida

por ele pertence ao mundo sensível da corporeidade e da afetividade, mundo esse

incapturável em seus matizes sublimes pela razão científica, um como princípio.

Seguindo assim o trilho de Heráclito e dos sofistas, da Vontade Divina de Duns Scott

e dos jus gentiun dos filósofos ibéricos, o Amauta defende que é no interior do

mundo e em suas relações que se encontram as possibilidades de transcendência.

Segundo Mariátegui, tão real como o mundo objetivo apreensível pela ciência

e suas leis, existe uma dimensão insondável do ser humano, centro da vontade

individual e subjetiva do homem, o “eu profundo”32, que é o lócus da emanação de

32

O termo eu profundo pode ser achado em autores que influenciaram o pensamento de Mariátegui

como Bergson e Unamuno. A utilização desses autores – claramente inspirados nos filósofos chamados de pessimistas (Nietzsche, Schopenhauer e Kierkegaard), renderam à Mariátegui a acusação de ser irracionalista, eclético e místico por boa parte de seus comentaristas ligados às estruturas partidárias que orbitavam no campo socialista. O pensamento de Mariátegui, ao se utilizar de conceitos e estruturas próprias à linhagem filosófica do pessimismo, tece um desafio à compreensão de sua obra. A hipótese que partilhamos em nossas reflexões entende que Mariátegui, ao se utilizar de influências consideradas tão distintas e antagônicas, inaugura um pensamento extremamente original, frutífero e aberto. O desafio do intelectual é justamente desvendá-lo à luz dessa originalidade e abertura. Qualificar a riqueza desse pensamento como mero ecletismo ou como um pensamento que apresenta “desvios” de alguma rota filosófica ou filiação de pensamento, seria

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sua fé. Para ele, a razão sozinha não pode apontar nenhum caminho para a

humanidade, que necessita de um horizonte que preencha as suas mais íntimas

aspirações por transcendência. Assim, somente o mito tem a capacidade de

alcançar, reunir e expressar o conjunto integral das “energias dos homens”.

Segundo Toledo,

[...] o mito pode ser definido como um fator ideológico de coesão e mobilização de uma classe social ou setores sociais afins, onde encarna não de maneira casual ou arbitrária, mas como expressão de seus interesses coletivos. O mito se enraíza nas possibilidades latentes do ser social, é um catalisador poderoso de sua ação, de sua realização, pois tem a virtude de comprometer a integridade das energias dos homens (TOLEDO, 1991, p. 52).

Apesar de ser o único capaz de preencher a sede de infinito daquilo que

Mariátegui se refere como o “eu profundo” do ser humano, devemos lembrar que,

para o Amauta, as dimensões da vontade e da fé não são atributos individuais. Há

sim uma dimensão individual inegável, mas essa em nenhum momento está isolada,

desligada do movimento da história e do papel das coletividades humanas na

construção e transformação desse movimento.

O mito, assim como a vontade, a fé e o mundo imaginário, é uma força ao

mesmo tempo individual e coletiva, é uma força que se situa nesse espaço onde a

subjetividade e a objetividade se interpenetram; espaço intersubjetivo onde ambas

estão imbricadas em um constante movimento histórico. O mito, enquanto força

propulsora e variada, aparece como vetor incapturável pela razão científica, mas é

real e existente no interior do mundo, sua imanência. O mito é, assim, a expressão

da intimidade do homem com o mundo, mas não da intimidade como sinônimo de

privado e individual apartado do todo, mas de intimidade enquanto dimensão

histórica do mundo social, como dimensão própria do “homem metafísico” e de seu

anseio de transcendência:

Mas o homem, tal como a filosofia o define, é um animal metafísico. Não se vive fecundamente sem uma concepção metafísica da vida. O mito move o homem na história. Sem um mito, a existência do homem não tem nenhum sentido histórico. [...] A civilização burguesa caiu no ceticismo (MARIÁTEGUI, 2004, p. 57).

esmaecer sua principal virtude, a sua capacidade antropofágica, própria do pensamento latino-americano, de se “alimentar” de diversas fontes e não perder a sua própria identidade.

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Para compreender o lugar que Mariátegui reserva ao mito e, por conseguinte,

à fé, ao irracional e ao universo místico, é preciso compreender que para o pensador

não há uma cisão estanque entre a dimensão objetiva e subjetiva. Na “civilização

burguesa”, a ciência estaria apartada do campo da religiosidade, sendo esta

dimensão entendida como uma vontade irracional, podendo inclusive, ser extirpada.

Para Mariátegui, subjetividade, imaginação, fé e ciência são partes de uma

totalidade histórica heterogênea onde não há uma divisão, uma cisão exata entre

aspectos distintos. Nesse sentido, o mito é uma dimensão da condição humana,

entranhado no devir histórico dos homens e das coletividades, é uma força atuante e

presente no interior do mundo social em sua cotidianidade.

No caso específico do mito revolucionário, seu conjunto de imagens e

símbolos deve estar enraizado no chão social da vida e da luta dos trabalhadores

por uma transformação radical da sociedade. Ao afirmar o mito, não como um

fenômeno separado da vida social – a ideia de mito como inexistente, inverdade –, e

sim como traço essencial da realidade, propõe uma interpretação filosófica ousada

sobre o fundamento da realidade. A vontade humana, subjetiva ou intersubjetiva, o

psiquismo, a dimensão simbólico-religiosa, o sentimento e os afetos seriam,

juntamente com o previsível, o determinado e o objetivo, um dos pilares do real em

suas múltiplas manifestações.

Imaginação, subjetividade e “eu profundo”: o lugar da vontade

A vontade, assim como as condições objetivas, seria um determinante do real

em seu constante movimento de realização, formando o espírito de uma época ou,

nas palavras do Amauta, o seu “sentido histórico”. Nesse sentido, uma frase de

Gramsci, outro pensador marxista que atribuiu valor fundamental à dimensão da

vontade, explicita essa relação de fundamento duplo – dois como totalidade – da

realidade:

O máximo fator da história [não] são os fatos econômicos, brutos, mas o homem, a sociedade dos homens, dos homens que se aproximam uns dos outros, entendem-se entre si, desenvolvem através destes contatos (civilização) uma vontade social, coletiva e compreendem os fatos econômicos, e os julgam, e os adéquam à sua vontade, até que essa vontade se torne o motor da economia, a plasmadora da realidade objetiva, a qual vive e se move, e adquire o caráter de matéria telúrica em ebulição, que pode ser dirigida para onde a vontade quiser, do modo como a vontade quiser (GRAMSCI, 2004, p. 127).

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Essa relação dialética entre vontade e determinismo, fé e razão,

espiritualidade e ciência pode ser melhor compreendida na interpretação que

Mariátegui faz da relação entre Freud e Marx. A partir de uma original chave

dialética em que confronta e reúne os impulsos reprimidos às condições econômicas

em uma mesma dinâmica de ideologização, Mariátegui possibilita uma articulação

entre a intimidade do “eu profundo” – centro da vontade, da fé, do universo mítico –

e a realidade do “mundo exterior” – regido pelas leis da ciência e do determinismo

econômico –, ou seja, do universo subjetivo e objetivo.

Segundo o pensador, assim como as pulsões sexuais e inconscientes estão

por trás das ações conscientes do homem, a ideologia se mascara de filosofia,

religião e política na determinação econômica da sociedade. Em ambos os casos,

há uma crítica radical ao idealismo científico, realizando uma aproximação entre as

forças “invisíveis” que regem o indivíduo em sua subjetividade – o inconsciente –, e

aquelas que determinam o mundo social e objetivo, também não capturadas pela

consciência dos trabalhadores. Para Mariátegui, objetividade e subjetividade não

são reinos opostos e excludentes, pertencentes a dois mundos distintos. Fazem

parte da mesma realidade e estão em constante diálogo, sendo assim expressões

das mesmas dinâmicas psicossociais, tanto na dimensão subjetiva como na

dimensão objetiva da realidade:

O vocábulo “ideologia” em Marx é simplesmente um nome que serve para designar as deformações do pensamento social e político produzidas por impulsos reprimidos. Esse vocábulo traduz a ideia dos freudianos quando falam de racionalização, substituição, transferência, deslocamento e sublimação. A interpretação econômica da realidade não é mais do que uma psicanálise do espírito social e político (MARIÁTEGUI, 2011, p. 69).

Dessa forma, Mariátegui apresenta uma alternativa à oposição entre mundo

privado e público, crenças pessoais e verdade científica ou, como temos apontado,

às dimensões fundantes de mithos e logos. A articulação entre mundo da vontade e

mundo econômico que Mariátegui propõe rompe com a oposição entre materialismo

e idealismo e com a concepção de que há uma hierarquia entre elas, ou seja, de que

uma das dimensões “manda” na outra sendo, portanto, o fundamento único da

verdade, um como princípio. Mariátegui se opõe a esse posicionamento, reinserindo

a vontade na história e as determinações econômicas no universo das aspirações

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íntimas dos homens. O socialismo e a revolução são, enquanto produtos da agonia,

do combate e da luta entre opostos, uma outra possibilidade de relação entre o

voluntarismo e o determinismo, formando um par dialético que se tensiona e se

interpenetra no desvendamento do real em sua plenitude:

O caráter voluntarista do socialismo, na verdade, não é menos evidente, embora seja menos compreendido pela crítica, que seu fundo determinista [...]. Nesse processo, cada palavra, cada ato do marxismo é acentuado pela fé, pela vontade, pela convicção heroica e criadora – cujo impulso seria absurdo buscar em um edifício medíocre e passivo, sentimento determinista (MARIÁTEGUI, 2011, p. 62).

A importância dada à dimensão da vontade fica explícita na frase em que

Mariátegui cita Unamuno. Segundo ele, ao ser perguntado sobre o esforço

empreendido contra as determinações da realidade objetiva, Lênin, lembrando

Unamuno, disse: “Tanto pior para a realidade!”. Em outro texto, ao comentar a

fórmula ardente e mística do escritor José Vasconcelos , o pensador afirma que ele

encontrou “o pessimismo da realidade e o otimismo do ideal”. É ainda atribuída a

Gramsci a frase “Pessimismo da razão, otimismo da vontade”. Em todas essas

sentenças se evidencia a importância dada à vontade, não só por Mariátegui, mas

por pensadores da época com quem ele estabeleceu contato. Para Mariátegui, os

fatos econômicos por si não determinam a realidade. É a partir da vontade – mística,

paixão, imaginação, fé – e da economia, em interação e movimento, que a realidade

se plasma e se concretiza enquanto totalidade onde se confrontam ambas as forças.

O real, para além de materialmente e cientificamente previsível e determinado, se

constitui a partir do exercício da vontade, motor da realidade, sendo assim “matéria

telúrica”, mundo social que inclui ambas as dimensões.

Dessa forma, pode-se afirmar que para Mariátegui a totalidade social é um

jogo de forças onde os duplos fundamentos da vontade e da determinação, da

subjetividade e da objetividade se realizam na perspectiva do dois como totalidade,

enquanto duplo fundamento do real. Obedecendo à lógica do tensionamento entre

opostos que não se excluem, mas se afirmam e se fortalecem mutuamente em uma

relação de agonia; subjetividade e objetividade são dimensões presentes em todos

os níveis e desdobramentos do real. Tanto nos fenômenos coletivos e de nível

macro-histórico como nas decisões individuais e vivências marcadamente pessoais,

estão presentes ambas as dimensões, ambos os fundamentos da realidade.

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Para além de uma divisão que situa a vontade e a subjetividade como traços

pertencentes ao indivíduo em sua “interioridade” e o determinismo e objetividade

como experiências “exteriores” ao sujeito, a perspectiva apresentada por Mariátegui

parece apontar para uma ontologia na qual interioridade e exterioridade se

combinam dialeticamente na conformação do mundo social em seus mais diferentes

aspectos. Essa habitação daquilo que é mais “exterior” naquilo que é mais interior

fica claro na passagem onde Mariátegui, ao comentar o movimento surrealista, fala

da tensão entre o mito da ciência e o mito revolucionário no “interior” da

subjetividade de um artista:

No mundo contemporâneo, coexistem duas almas, a da revolução e a da decadência. Só a presença da primeira confere a um poema ou a um quadro o valor de arte nova [...]. A distinção entre as duas características de artistas contemporâneos não é fácil. A decadência e a revolução, assim como coexistem no mesmo mundo, também coexistem nos mesmos indivíduos. A consciência do artista é a arena agonística de uma luta entre os dois espíritos. Às vezes, ou quase sempre, a compreensão dessa luta escapa ao artista. Mas finalmente um dos dois espíritos prevalece. O outro resta estrangulado na arena (MARIÁTEGUI, 2005, p. 251).

Essa ideia de que a realidade era fruto de um duplo fundamento, de uma

interação de dimensões opostas e copertencentes também se explicita no valor que

Mariátegui dava à criação artística, à imaginação criadora. Resumida em sua

conhecida afirmação “Os filósofos trazem-nos uma verdade análoga à dos poetas”

(MARIÁTEGUI, 2005, p. 58), a noção de que o espírito criativo é determinante na

manifestação da realidade é muito presente em seus textos dedicados à arte e à

literatura33. Escrevendo sobre o movimento surrealista, exemplo maior da vanguarda

artística revolucionária da Europa de seu tempo, afirma o peruano:

Os surrealistas restauram a dialética dos extremos, o império da imaginação na arte. Mas não renunciam a nenhuma das aquisições do realismo: a superam [...]. Não é paradoxo afirmar hoje que o realismo nos afasta da realidade. Porque ele não capta sua essência

33

Os textos voltados à crítica da literatura e arte em geral constituem cerca de quarenta por cento dos escritos do Amauta. A escassez de trabalhos sobre essa dimensão de sua obra é uma lacuna. Na verdade, seguindo rigorosamente seus aportes, o estudo de qualquer aspecto de sua obra deveria levar em consideração suas reflexões sobre a arte, que ele apontava como uma dimensão tão importante quanto a luta política em seu sentido mais institucionalizado. Para além do manifesto imediato capturável via métodos científico-cognitivos, a percepção mais fidedigna do real deveria contar com o “disparate puro” da imaginação poética. Somente assim poderia ser quebrado o “absoluto burguês” presente na técnica científica e empobrecedora da realidade. A realidade é mais verdadeira, mais “real” quando conta com a “essência vivente” da fantasia.

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vivente. A experiência tem demonstrado que com o voo da fantasia podemos abarcar melhor toda profundidade do real. Isso não significa que há falsificação ou invenção. A fantasia não surge do nada. E só tem valor quando cria algo real (MARIÁTEGUI, 1971, s/d)

34.

No texto O rosto e a alma do Tawantinsuyo, no qual Mariátegui comenta o

livro de Luis E. Valcarcel (Da Vida Inca), encontra-se explícito um exemplo da

importância que ele dava à imaginação. O artigo tematiza justamente a capacidade

de Valcarcel de capturar com destreza o “espírito da civilização inca”, justamente por

utilizar a imaginação poética como forma de aproximação e interpretação da obra.

Comparando o trabalho de Valcarcel com o de outros historiadores voltados à

objetividade, Mariátegui defende claramente a superioridade do uso da fantasia em

relação à mera ciência positivista:

Nas páginas do escritor de Cuzco, sente-se, antes de mais nada, um profundo lirismo indígena. Este lirismo de Valcarcel, na concepção de outros comentaristas, talvez prejudique o valor interpretativo do seu livro. Na minha concepção, não. Não só porque me parece inconsistente, artificial e ridícula a tese da objetividade dos historiadores, mas também porque considero evidente o lirismo de todas as reconstruções históricas mais geniais. A história, em grande medida, é puro subjetivismo e, em alguns casos, é pura poesia (MARIÁTEGUI, 2005, p. 89).

Outro elemento ressaltado por Mariátegui é a intencionalidade presente na

interpretação de Valcarcel. Mais do que distante da objetividade, este autor se utiliza

de recursos estilísticos para dar tom e profundidade a sua exaltação à vida indígena,

buscando ser fiel ao “sentimento cósmico” e comungando dos valores e do ethos

indígena. Nada mais distante de uma postura científica. Porém, para o Amauta, é

justamente essa postura que torna seu livro tão qualificado. A paixão enriquece a

ciência:

Valcarcel, tomado de emoção quíchua, parece destinado a escrever antes um poema do povo do sol do que sua história. Em nenhum momento seu livro é uma crítica. É sempre uma apologia. Tem uma entonação constante de canto. Domina sua prosa e seu pensamento o afã de poetizar a história do Tawantysuyo e a vida do índio. No entanto, esta exaltação lírica consegue aproximar-nos da íntima verdade indígena muito mais do que a gélida crítica do observador imparcial (MARIÁTEGUI, 2005, p. 90).

34

Excerto retirado do texto “Philippe Soupault”, disponível no sítio

<http://www.patriaroja.org.pe/docs_adic/obras_mariategui/Signos%20y%20Obras/paginas/phillipe%20soulpa.htm>. Acesso em: 25/02/2014.

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A imaginação configura assim, uma das forças motriz do real. Fundamento de

uma “razão sábia”, ela é parte de uma epistemologia onde a mitopoética e seus

correlatos não estão apartados da totalidade apreendida, tornando a relação de

conhecimento um movimento dialético pleno de matizes e possibilidades de

significação que a objetividade gélida jamais permitiria. A própria linguagem utilizada

por Mariátegui nesse artigo parece indicar essa lição de afeto. Quase sempre

escrevendo em tom de descontração onde, muitas vezes, aparece o pendor pela

escrita literária, especialmente nesse texto Mariátegui abusa das imagens poéticas e

da sintonia afetiva. É como se aplicasse no corpo do texto aquilo que está

defendendo no campo das ideias. O acento de fé, emoção e vontade que Mariátegui

defende como fundamento do real naquilo que aqui consideramos como uma filiação

filosófica ao dois como totalidade e que parece estar presente em toda sua vida e

obra, ganha maior intensidade nesse texto, no qual a poetização e o acesso ao

imaginário são o próprio tema tratado.

Outra indicação emblemática explicitada nesse artigo é o lugar do indígena na

crítica tantas vezes reiterada pelo Amauta à “decadente civilização burguesa”. Para

ele, o mito da revolução social no Peru, necessariamente deve contar com o “lirismo

indígena”, com seu “sentimento cósmico”. Nascido do “pecado da conquista”, toda

decadência do pensamento liberal burguês estava presente no Peru na figura do

criollo, aristocrata pertencente à burguesia latifundiária própria do país. Nascido

“sem o índio e contra o índio”, a ideologia da nação excluía o Peru e afirmava um

lugar de dependência à Europa em todos os aspectos (político, cultural e

econômico). Mariátegui defendeu que, assim como o mito socialista deveria

combater a burguesia europeia, ele deveria fazer o mesmo em seu país de origem.

Mas, diferentemente do Velho Mundo, no Peru o mito socialista deveria contar com

as “percepções do espírito que animou a vida quéchua”.

A proposição de um socialismo próprio à especificidade peruana e, por

relação direta, ao continente latino-americano é uma dos traços mais originais do

pensamento de Mariátegui. Mas a originalidade da reflexão de Mariátegui sobre o

papel do indígena na construção do socialismo peruano não se reduz a uma

proposta limitada à realidade de um país ou continente. Ela se insere em uma

proposta que redefine a própria concepção de tradição e modernidade a partir da

ideia de uma tradição viva e em relação direta com o presente e com a elaboração

de projetos voltados a realizações futuras.

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Essa interpenetração de tempos históricos e propostas distintas inserem a

relação tradição-modernidade em uma perspectiva de conhecimento, fundamentado

na concepção do dois como totalidade realizado na especificidade da proposição

epistêmico-ideológica de Mariátegui, reorientando o sentido das reflexões sobre o

lugar das diferente tradições socioculturais no mundo moderno.

4. TRADIÇÃO E MODERNIDADE EM MARIÁTEGUI

A vanguarda enraizada

A relação entre tradição e modernidade é um dos eixos centrais do

pensamento de Mariátegui. Linha de força que atravessa toda a sua obra, desde

seus escritos juvenis onde já é possível encontrar alguma abertura à temática do

chamado “Peru Profundo”. Porém, é após a sua viagem à Europa, quando o Amauta

toma contato com as diferentes vanguardas e toda a atmosfera revolucionária do

Velho Mundo, que suas reflexões passam a tocar mais diretamente nessa questão.

Presente de maneira central35 em artigos da obra Sete Ensaios de

Interpretação da Realidade Peruana e na série de artigos intitulada Peruanizemos

ao Peru, o eixo tradição e modernidade é trabalhado por Mariátegui buscando

articular a vida do “Peru Profundo” às vanguardas artísticas e políticas da Europa,

constituindo o que Alfredo Bosi (1990) chamou da “vanguarda enraizada, o

marxismo vivo de Mariátegui”. Segundo esse autor, o Amauta, com sua “largueza de

vista”, conseguiu construir uma crítica tanto ao imperialismo internacional quanto ao

xenofobismo nacionalista, superando assim esses polos excludentes nas

construções e análises sobre a realidade do continente.

Para o pensador Antônio Cornejo Polar (2000), essa superação

mariateguiana formula uma “modernidade de raiz andina” que viceja a aposta de que

o processo histórico da modernidade nos países centrais, entre eles os estados

socialistas nascentes, não é modelo a ser copiado. A modernidade no Peru segue

um caminho sociocultural próprio que deve apontar a um desenvolvimento e sentido

35

Como já foi mencionado, a linguagem e o pensamento de Mariátegui são bastantes assistemáticos. Esse traço faz com que as muitas faces que caracterizam sua obra estejam dispersas pelo tempo e em diferentes textos, muitas vezes aparecendo apenas como uma frase ou alusão. Nesse sentido, apesar de concentrados em alguns textos específicos, as temáticas abordadas se interpenetram e se fazem presentes em diverso escritos, configurando o que ele chamou de “um método um pouco jornalístico, um pouco cinematográfico” (MELIS, 1961, p. 68).

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de futuro também próprios, dentro de uma lógica que abranja as particularidades do

território andino.

É nesse mesmo sentido que, para Galindo, a obra do Amauta representa “a

articulação entre marxismo e nação, o que em outras palavras significa a confluência

entre um fenômeno gerado no interior do Ocidente e uma tradição muitas vezes

distinta e até antagônica em relação à Europa” (GALINDO, 1982, p. 11). De acordo

com o autor, essa tensão contraditória que atravessa o pensamento mariateguiano,

ao se deter na chave heurística peruaneidade/universalidade, foi decisiva na

elaboração de um “marxismo andino, indo-americano” tão original e importante

quanto as contribuições de Lukács e Gramsci.

Já para o sociólogo brasileiro Michael Lowy (2012), essa capacidade de reunir

polos distintos e opostos em uma mesma formulação teórica advém da virtude

teórica do Amauta ao alcançar “o ápice dialético entre cultura e revolução”. Seu

“marxismo herético”, nas palavras do sociólogo, propõe uma crítica romântico-

revolucionária à modernidade capitalista, levando a um caminho alternativo de

modernidade onde o passado pré-capitalista do continente latino-americano seja um

dos elementos centrais na construção de um futuro revolucionário.

Para todos esses pesquisadores, é nítida a capacidade de Mariátegui em

articular os âmbitos da especificidade latino-americana com a universalidade do

socialismo em um movimento filosófico que contradiz a divisão mecânica desses

polos, afirmando sua dialética dos extremos e constituindo um pensamento crítico

latino-americanista. Essa divisão mecânica – um como princípio – entre a

especificidade do processo histórico da Europa e da América Latina deu origem à

duas “tentações”, dois pensamentos opostos e exclusivistas: o excepcionalismo

indo-americano e o eurocentrismo. Lowy explica:

O marxismo indo-americano tende a absolutizar a especificidade da América Latina e de sua cultura, história e estrutura social. Levado às suas últimas consequências, esse particularismo americano acaba por colocar em questão o próprio marxismo com teoria exclusivamente europeia [...]. Foi o eurocentrismo, mais do que qualquer outra tendência, que devastou o marxismo latino-americano. Com esse termo queremos nos referir a uma teoria que se limita a transplantar mecanicamente para a América Latina os modelos do desenvolvimento socioeconômico que explicam a evolução histórica da Europa ao longo do séc. XIX (LOWY, 1999, p. 10).

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E, apresentando o pensamento alternativo – dois como totalidade – a essa

dupla manifestação do cientificismo positivista no pensamento crítico latino-

americano, continua Lowy:

A aplicação criativa do marxismo à realidade latino-americana significa justamente a superação – no sentido da Aufhebung hegeliana – dessas duas tendências e o dilema entre um particularismo hipostasiado e um dogmatismo universalista – graças à unidade dialética concreta entre o específico e o universal. Na nossa opinião, não é acidental que a maioria dos pensadores que compartilham essa posição metodológica, de Mariátegui a Che Guevara – para citar dois exemplos bem conhecidos, chega justamente à conclusão oposta: a revolução na América Latina será socialista ou não será (LOWY, 1999, p. 12).

É no sentido de busca dessa superação das polaridades enquanto extremos

cindidos que devemos situar as reflexões de Mariátegui sobre a díade tradição e

modernidade. Para isso, o Amauta tece uma crítica à perspectiva histórica

evolucionista que entende a história como um processo independente da vontade

humana. Seja pela via de um falso universalismo – Europa como cume

civilizatório –, ou de um latino-americanismo heroicizado – evolucionismo às

avessas –, temos uma interpretação da história enquanto um processo unilinear que

vai de um ponto “inferior” e “atrasado” em evolução até o ponto de máxima

civilização. Consideradas dessa forma, todas as sociedades humanas funcionariam

segundo leis científicas que determinariam a dinâmica histórica. Caminhando

segundo a capacidade de domínio técnico sobre a natureza, essas leis teriam seu

fundamento exclusivamente nos fatores econômicos que impulsionariam, a partir da

contradição entre forças produtivas e relação de produção, saltos históricos de um

nível a outro. Nessa versão, as populações indígenas da América são consideradas

como “primitivas” e parte de um passado que deve ser superado pela “marcha da

história”. Em sua versão heroicizada, no ápice dessa evolução estaria presente a

essência indígena do continente, alçando o índio primitivo ao lugar de herói. Em

ambas as versões, o caminho histórico estaria dado de antemão.

Mariátegui defende uma concepção diferente de história. Para além da ideia

de uma história que se desenvolve segundo leis pré-determinadas e estanques,

onde as ações humanas não teriam outro papel senão harmonizar-se com o

movimento de todo conjunto em sua totalidade homogênea, para o Amauta, a

vontade ocupa um papel central na concretização da realidade. Fiel a um dos mais

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conhecidos pilares teóricos do pensamento de Karl Marx, para quem “os homens

fazem sua própria história, mas não a fazem segundo sua livre vontade, a fazem sob

circunstâncias com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo

passado” (MARX, 1978, p XXIII.). Mariátegui defende a práxis como horizonte da

ação prática dos homens. Ou seja, a vontade individual ou coletiva – expressa sob

diferentes formas e em diferentes dimensões – se inscreve em um conjunto de

tendências pré-existentes que estão dadas de formas variadas e em conjunto, não

obedecendo necessariamente a um caminho pré-concebido por suas

determinações. Em cada época, diferentes sentidos históricos se presentificam na

cotidianidade de homens e mulheres na forma de arte, de formas religiosas,

imaginários e sentimentos.

Essas múltiplas dimensões se mostram mais ou menos visíveis, realizáveis e

factíveis segundo uma correlação de forças onde determinismo econômico e

vontade se tensionam e se interpenetram, realizando o movimento histórico que ora

se manifesta como uma “sonolenta lagoa” – ciclo clássico –, ora como “vida de alta

tensão”, própria do que o peruano chama de ciclo romântico. Ao utilizar termos

ligados aos ciclos literários, Mariátegui imprime à história esse caráter cíclico

enquanto um conjunto de forças em interação, saturada de projetos e elementos

distintos e cambiáveis entre si em intensa interpenetração, conflito e síntese. A

cristalização ou concentração de determinados valores e realizações em

determinadas épocas é resultado de uma “guerra originária” e de um conjunto de

combinações e afinidades que alcançam maior estabilidade e densidade tanto em

seu plano econômico como no plano das vontades associadas. Como explica

Toledo:

A história é antes de tudo, duração, aponta o Amauta. Nela não interessam os elementos episódicos, os fatos enquanto tal. Interessam os elementos germinais, operantes, que geram continuidade. A história é vista por Mariátegui como atualização perene, como prolongação de tradições vivas [...]. História é duração porque acolhe tradições, forças coletivas e em movimento incessante; e esse movimento é possível porque se trata de totalidades que contêm elementos heterogêneos, articulados dinâmica e organicamente e, como tais, capazes de assimilar novos elementos renovando-se a cada momento (TOLEDO, 1995, p. 287).

Essa concepção da história como correlação de forças heterogêneas só foi

possível graças a uma interpretação muito própria do que estava ocorrendo no

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mundo naquele momento. Lembrando o “anjo da história” de Benjamin36, é como se

a cada momento histórico em que o Amauta estivesse presente, sua posição fosse

sempre contrária à direção do vento que soprava, como se ele conseguisse

perceber em cada movimento progressivo suas determinações invisibilizadas pelo

discurso do progresso. Essa postura fica muito clara na viagem de Mariátegui à

Europa. Viajando de um extremo ao outro, a experiência europeia de Mariátegui

proporcionou a possibilidade de perceber nitidamente a multiplicidade de tempos

históricos que se tecem; ao que chamamos de realidade. Se, para um cidadão

europeu a heterogeneidade inerente à realidade social – a multiplicidade de tempos

históricos em relação – está bastante submersa em uma teia discursiva que

invisibiliza essa multiplicidade, para um latino-americano em solo europeu esse

processo não é tão monolítico e acabado. Para Mariátegui, o “contrapelo” necessário

para visibilizar elementos escondidos pela visão historicista predominante é um

esforço reflexivo e prático, onde sua condição de estrangeiro – latino- americano –

auxiliou muito. Por um lado, sua condição de peruano possibilitou a experiência de

estar no lugar de marginal e periférico próprio aos países latino-americanos. Por

outro, possibilitou um entendimento diferenciado da vida europeia. Se nos

basearmos na dialética dos extremos proposta por Mariátegui, é como se em cada

um dos extremos de sua experiência, estivesse o ponto que o auxiliou na

compreensão do outro extremo.

Galindo, ao tentar sintetizar essa qualidade própria à dialética amautista,

encontra em um verso do cubano Alejo Carpentier uma imagem reveladora dessa

expressão filosófica do autor de Sete Ensaios de Interpretação da Realidade

Peruana: “Às vezes é preciso distanciar-se das coisas, colocar um mar entre elas,

para poder vê-las de perto”. A metáfora do oceano inteiro separando – e unindo em

outro nível – o sujeito do conhecimento de si mesmo, para poder olhar para si de um

lugar radicalmente novo é uma imagem que traduz a experiência de Mariátegui ao

36

Existe um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Nele está representado um anjo que parece estar a ponto de afastar-se de algo em que crava o seu olhar. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão estiradas. O anjo da história tem de parecer assim. Ele tem seu rosto voltado para o passado. Onde uma cadeia de eventos aparece diante de nós, ele enxerga uma única catástrofe que, sem cessar, amontoa escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés. Ele bem que gostaria de demorar-se, de despertar os mortos e juntar os destroços. Mas, do paraíso sopra uma tempestade que se emaranhou em suas asas e é tão forte que o anjo não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, para o qual dá as costas, enquanto o amontoado de escombros diante dele cresce até o céu. O que nós chamamos progresso é a tempestade (BENJAMIN in LOWY, 2005, 87).

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conhecer seu país de forma completamente nova após ter passado três anos na

Europa. Sobre a radicalidade e “entrega” à sua experiência europeia, escreve

Mariátegui:

Nós [Mariátegui e Cesar Falcón] havíamos nos entregado sem reservas, até a última célula, com uma ânsia subconsciente de evasão, à Europa, à sua existência, à sua tragédia. E descobrimos ao final, sobretudo, nossa própria tragédia, a tragédia do Peru e da Hispano-América (GALINDO, 1982, p. 42).

Contudo, não foi somente o lugar de peruano que possibilitou a Mariátegui

uma interpretação diferenciada do que se passava no mundo daquele momento

histórico. Apesar de extremamente dedicado ao conhecimento da realidade

europeia, Mariátegui se diferenciava do “afrancesamento” típico dos intelectuais

peruanos da Generación del 900 e de muitos intelectuais latino-americanos da

época, que se viam inebriados pela atmosfera daquilo que Enrique Dussel vai

chamar da “mítica Europa”37, ou seja, o espaço geoterritorial onde, ideologicamente,

pensava-se viver em uma civilização mais evoluída, mais completa do que as outras.

Diferentemente da postura do discípulo magnetizado por essa miragem, a Europa

foi, para Mariátegui, a etapa de um processo de sua maturação crítica sobre

processos que afligiam – diferentemente – tanto o Peru como a Europa. A crítica ao

progresso e à razão científica já estava presente nas crônicas de Juan Croniqueur

pouco antes de sua viagem. O ambiente desolado próprio do pós-guerra e o

sentimento de ocaso que tomavam o Velho Mundo foram interpretados pelo Amauta

como o crepúsculo da “religião do progresso”. Em sua postura, de costas para os

ventos do futuro evoluído, Mariátegui testemunhava a civilização feita de escombros.

Porém, para além da atmosfera melancólica própria à decadência da

civilização ocidental, Mariátegui capturou também o clima de convulsão social, de

movimento em torno da luta revolucionária. Auxiliado mais uma vez pela sua

condição de latino-americano, o Amauta identificava o mesmo impulso

revolucionário que se levantava na Europa presente também na Revolução Agrária

Mexicana e na agitação juvenil em torno da criação das universidades populares. Ou

seja, para Mariátegui, Europa e Peru eram elementos extremos – separados por um

37

Para Dussel (1993), o conceito de Europa é uma construção político-discursiva que criou um lugar

mítico, um espaço geoterritorial que seria lugar da manifestação mais evoluída da civilização. Em seus estudos, Dussel procura demonstrar como a estrutura histórica que está por detrás desse mito é uma produção ideológica intrinsecamente relacionada ao projeto de modernidade capitalista.

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oceano – mas que viviam, cada um a seu modo, um mesmo momento histórico – a

luta final, como ele chamou – com suas forças constituintes.

Diferente da visão dominante de que a Europa era o palco da luta social

“verdadeira” – já que mais avançada – e os outros lugares estariam “atrasados”

nesse processo, Mariátegui entendia a realidade desses territórios como

intercambiantes em uma relação de tensão dialogante, muito distante do lugar de

“eco de ecos”, reflexo imitativo da imagem verdadeira – um como princípio – tão

comum nas interpretações eurocêntricas que devastaram o pensamento crítico

latino-americano. Prova disso é a sua postura em escrever, desde a sua chegada a

Europa, uma série de artigos nos quais passava da condição de imitação e

passividade de seus colegas intelectuais para a condição de protagonista do

pensamento e de análise sobre os processos sociais que se desenrolavam em solo

europeu e mundial. Sobre a posição diferenciada de Mariátegui em relação à

Europa, escreve Galindo:

A atitude de Mariátegui frente à Europa difere daquela que tiveram Belaúnde, Garcia Calderón e Riva Aguero, a geração de novecentos. O jovem Mariátegui, quando toma o barco, é já um intelectual formado e reconhecido por seus leitores e que não quer contemplar a Europa, senão interrogá-la desde a sua condição de peruano [...]. Para Mariátegui foi uma escala imprescindível, mas momentânea em uma aprendizagem tempos antes. Daí ele observar os europeus de maneira poderia evocar a perspectiva de um etnólogo ocidental frente a um país atrasado, com a diferença que, neste caso, a situação foi completamente inversa (GALINDO, 1982, p. 42).

Essa atitude de intelectual crítico, voltado para a crítica do progresso,

etnólogo às avessas que observava além da decadência, as forças que se insurgiam

e se renovavam contém ainda um elemento mais importante. Apesar de fazer seu

estudo e aprendizado sobre a esquerda socialista basicamente depois de 1919, já

havia no peruano a intenção de se somar à luta dos trabalhadores, sendo sua

estada na Europa, inclusive, fruto dessas articulações políticas que estava

realizando no Peru. Nesse sentido, juntamente com o lugar de intelectual de um país

periférico, Mariátegui estava também motivado pelo claro interesse em conhecer e

se somar à luta dos trabalhadores. No poema de Bertold Brecht, Perguntas de um

trabalhador que lê, encontramos explicitado esse lugar de indagação que

certamente também participou do olhar mariateguiano para conseguir enxergar o

que se mantinha invisibilizado:

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Quem construiu a Tebas de sete portas? Nos livros estão nomes de reis. Arrastaram eles os blocos de pedra? E a Babilônia, várias vezes destruída, Quem a reconstruiu tantas vezes? Em que casas da Lima dourada moravam os construtores? Para onde foram os pedreiros na noite em que a Muralha da China ficou pronta? A grande Roma está cheia de arcos do triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem triunfaram os Césares? A decantada Bizâncio tinha somente palácios para seus habitantes? Mesmo na lendária Atlântida, os que se afogavam gritaram por seus escravos na noite em que o mar os tragou. O jovem Alexandre conquistou a Índia. Sozinho?

É no contexto dessa descoberta crítica que Mariátegui realiza acerca do

continente europeu que, ao retornar ao Peru, se mostra disposto a organizar um

movimento socialista no país e construir um amplo movimento contestatório ao

poder ali instituído. Continuando seu processo de aprendizagem crítica e

“desposado de algumas ideias” adquiridas em sua estadia europeia, Mariátegui

passa a realizar uma leitura da realidade peruana seguindo o método de

interpretação marxista. É dessa forma que o Amauta se reencontra com seu país e

vai, com olhos renovados, buscar reconhecê-lo, encontrando-se assim com o rico

universo indígena de seu país. A vida na Europa ofereceu à Mariátegui a

possibilidade de conhecer o lugar considerado o cume da civilização e do progresso;

o retorno ao Peru, em um momento onde se destacava a luta indigenista em

diferentes pontos do país, proporcionou a Mariátegui conhecer a outra “ponta” da

linha histórica.

A descoberta do universo indígena

Não é exatamente conhecido em qual momento desse processo Mariátegui

teria se dado conta da importância da problemática indígena no Peru. Segundo

Galindo (1982), Mariátegui teria tomado contato entre 1923 e 1924 com líderes

indígenas e indigenistas importantes como Ezequiel Urviola, Clorinda Mattos e

Pedro S. Zulen, defensores da cultura indígena e da absorção dos melhores

elementos advindos do Ocidente. Essas lideranças teriam relatado para o Amauta

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todo o contexto das rebeliões indígenas que eclodiam no Peru desde o séc. XVI e

que se renovavam com as mais recentes rebeliões nas províncias de Huancané e

Azangáro em 1923. Esses encontros teriam modificado a visão de Mariátegui sobre

a importância da luta indígena em seu país.

O artigo O problema primário do Peru, publicado em fevereiro de 1925,

demonstra claramente a mudança de mentalidade do Amauta em relação aos índios

peruanos. Antes descritos como “inerte extratos indígenas” (HALIMONDA, 1984),

essas populações passam, a partir de então, a serem descritas como elementos

centrais da nacionalidade em construção do Peru:

A solução do problema do índio deve ser uma solução social. Seus realizadores devem ser os próprios índios [...].No Congresso Indígena, o índio do Norte se encontrou com o índio do sul. Além disso, o índio se comunicou com o homem de vanguarda da capital. Esses homens o tratam como a um irmão. Seu acento é novo, sua linguagem é nova também. O índio reconhece neles a sua própria emoção. Sua emoção de si mesmo amplia-se com esse contato. Porém, algo ainda muito vago, ainda muito confuso de delinear nessa nebulosa humana que contém, provavelmente, os germes do futuro da nacionalidade (MARIÁTEGUI, 2011, p. 65).

Deste artigo em diante, até o fim de sua vida, a temática indígena será

evocada por Mariátegui, que debaterá com as principais correntes ideológicas da

época sobre qual deve ser o encaminhamento da questão indígena nacional do seu

país, elaborando a partir desse ponto de partida, uma original articulação entre

tradição e modernidade, construída a partir dos debates travados com as correntes

ideológicas que discutiam a questão indígena do país naquele momento.

A primeira corrente era o indigenismo. O indigenismo é um movimento

ideológico presente em diversos países latino-americanos – especialmente, Peru e

México –, que procura expressar a alteridade identitária instituída na colônia e

desenvolvida na história do ocidente, ressaltando o seu papel e lugar nas formações

nacionais. O indigenismo peruano – representado por figuras iminentes como

Gonzalez Prada e Luis Valcarcel e outros literatos, a indigenista Dora Mayer e

representantes da Igreja –, defendia que as comunidades e tradições indígenas

deveriam ser mantidas através da intervenção de interlocutores capazes de mediar

as relações entre o índio e o gamonal, e na educação como forma de promover a

integração do índio à sociedade nacional. A nação é entendida pelos indigenistas

como uma ideia absoluta e essencial, na qual o indígena é o representante concreto,

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o detentor dessa nacionalidade intocada e natural. Identificando o indígena como o

elo primordial de ligação entre o povo e sua origem mítica, essa corrente tende a um

romantismo conservador, onde o índio é visto a partir de uma idealização nostálgica

de seu passado originário e paradisíaco. Criticando essa corrente, escreve o

Amauta:

Do preconceito da inferioridade da raça indígena começa a passar-se ao extremo oposto: o de que a criação de uma nova cultura americana será essencialmente obra das forças raciais autóctones. Subscrever essa tese é cair no mais ingênuo e absurdo misticismo. Ao racismo dos que desprezam o índio, porque crêem na superioridade absoluta e permanente da raça branca, seria insensato e perigoso opor o racismo dos que sobestimam o índio, com fé messiânica na sua missão como raça no renascimento americano (MARIÁTEGUI, 1991, p. 217).

Esse posicionamento era bastante divergente da outra corrente ideológica

predominante na época, os hispanistas. Formada basicamente pela Generácion de

900, a corrente ideológica dos hispanistas defendia os ideais do positivismo e da

integração dos índios em um Peru moderno capitalista. Segundo Uriarte:

Frente à afirmação de que os índios eram os verdadeiros peruanos e a base [única] da nacionalidade, esses autores [hispanistas] responderam não negando aos índios o fato de formarem parte do Peru. No entanto, consideravam a herança hispânica muito mais importante do que a indígena, chegando inclusive a negar que a etapa pré-incaica fosse parte da história do Peru [tratava-se só de tribos, pensavam]. A população indígena não tinha outro papel no presente a não ser adaptar-se, modernizar-se e integrar-se a um projeto que devia ser dirigido por uma oligarquia ilustrada (URIARTE, 1998, S/D)

38.

O cerne da concepção hispanista está baseado na ideia de superioridade do

homem europeu e na evolução via embranquecimento, ou seja, em uma “mistura de

raças” que vá, aos poucos, depurando biologicamente o povo peruano até torná-lo o

mais próximo possível da raça mais evoluída e civilizada, a branca. Para alcançar

38

Excerto extraído do artigo Hispanismo e indigenismo: o dualismo cultural no pensamento peruano

(1900-1930). Uma revisão necessária. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-77011998000100005 Acesso em: 25/02/2014.

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isso, os reformadores liberais defendiam uma reforma na estrutura político-jurídica

do Estado, obedecendo ao receituário liberal de modernização capitalista. Os

defensores dessa tese afirmavam que medidas protetivas ao indígena – no que se

referia à proteção de suas comunidades, como a isenção de impostos e decretos

que visavam proteger o índio da servidão –, tinham como objetivo auxiliar os

indígenas a se adaptarem ao funcionamento de um Estado Moderno. Considerados

“inferiores”, os indígenas seriam integrados à sociedade ao serem tratados com o

devido cuidado, tutelados já que não possuíam a capacidade de se desenvolver

sozinhos. Criticando esse posicionamento, escreve Mariátegui:

A suposição de que o problema indígena é um problema étnico se nutre do repertório mais envelhecido das ideias imperialistas. O conceito de raças inferiores serviu ao Ocidente branco para sua obra de expansão e conquista. Esperar a emancipação indígena de um cruzamento ativo da raça aborígene com imigrantes brancos é uma ingenuidade antissociológica(...) A degeneração do índio peruano é uma invenção vagabunda de leguleios feudalistas (MARIÁTEGUI, 2010.p.57 ).

Embora mantivesse relações de afinidade estética e, até certo ponto, política

com membros dessas correntes ideológicas, Mariátegui se posiciona de maneira

clara contra ambas. Segundo ele, as diferentes posições e propostas acerca da

questão indígena estavam baseadas na crença do evolucionismo racial defendida

pela ciência positivista da época, que considerava que a civilização europeia

ocuparia o lugar mais adiantado e distante da “origem” primitiva – estado natural –

da humanidade, lugar ocupado pelos indígenas da América, entre outros.

Essa linearidade e divisão se reflete no campo da história, configurando

povos “atrasados” – pertencentes ao passado – e povos “adiantado” e civilizados –

donos do presente e do porvir da humanidade. Como resultado dessa divisão

temporal e de evolução, são criados diferentes dualismos como tradicional/moderno,

primitivo/civilizado, natureza/cultura. Cisão baseada na ideia hierárquica de domínio

e separação, o evolucionismo racial e o dualismo associado configuram um

expressão do fundamento filosófico do um como princípio.

Para Mariátegui, mundo indígena e europeu não eram extremos separados

por uma linha que os afastava em ordens hierárquicas, em pontas diferentes da

evolução. Rompendo completamente com a noção da civilização indígena como

passado longínquo – pré-história –, Mariátegui defende que a tradição indígena

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ocupe um papel privilegiado na elaboração do socialismo peruano. Utilizando o

método marxista para analisar a realidade peruana, o Amauta encontra na vida

indígena – base amplamente majoritária da classe trabalhadora peruana –, o

“tesouro do passado” que alimentaria o “pressentimento de futuro”39 do socialismo

indo-americano:

Por minha conta, o que afirmo é que, em relação à convergência ou articulação do “indigenismo” e socialismo, ninguém que considere o conteúdo e a essência da coisa pode surpreender-se. O socialismo ordena e define a reivindicação das massas, da classe trabalhadora. E no Peru, as massas – a classe trabalhadora – são indígenas na proporção de quatro quintos. Nosso socialismo não seria peruano, nem sequer seria socialismo, se não se solidarizasse, primeiramente, com as reivindicações indígenas (MARIÁTEGUI, 2005, p. 110).

Assim, para Mariátegui, o mundo indígena, ao cobrir boa parte da classe

trabalhadora, é a base detentora dos “tesouros do passado” que servirão de base

para o socialismo indo-americano. Diferente do processo europeu, o caminho para o

socialismo no Peru deve passar pela memória histórica desses povos, não

entendidos como primitivos e sim como construtores ativos – através de suas

instituições sociopolíticas e costumes ancestrais – do socialismo próprio ao Peru.

Um dos aspectos essenciais da vida indígena no Peru pré-colonial que

deveria se alinhar com a solidariedade própria ao comunismo europeu, deveria ser a

“sobrevivência da comunidade e dos elementos de socialismo prático na agricultura

e vida indígenas” (MARIÁTEGUI, 2010, p. 69). Segundo ele, o socialismo peruano

deveria nascer da síntese entre essas duas formas de solidariedade, já que o

socialismo “está na tradição americana. A mais avançada organização comunista

primitiva que a história registra é a inca” (LOWY, 2005, p. 121). O chamado

comunismo inca, estrutura de produção própria ao mundo andino do mundo pré-

colonial é descrito por Mariátegui:

Até a conquista, desenvolveu-se no Peru uma economia que nascia espontânea e livremente do solo e gente peruana. No Império dos Incas, agremiação de comunas agrícolas e sedentárias, o mais interessante era a economia. Todos os testemunhos históricos

39

“O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana. É uma das mais difíceis de definir. O ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro” (WEIL, 1996, p. 411).

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concordam na afirmação de que o povo incaico – trabalhador, disciplinado, panteísta e simples – vivia com bem-estar material [...]. Os incas tiravam todo proveito social possível dessa virtude de seu povo, valorizavam o vasto território do império construindo caminhos, canais etc., e o estendiam submetendo a sua autoridade a tribos vizinhas. O trabalho coletivo e o esforço comum eram frutiferamente empregados nos fins sociais (MARIÁTEGUI, 2010,p.33).

Apoiado nas reflexões do historiador César Ugarte que descreve a unidade

produtiva da sociedade inca, o ayllu40, Mariátegui defende a possibilidade de um

socialismo de caráter comunitário e descentralizado. O ayllu é uma unidade

comunitária formada por um núcleo familiar extenso, onde o trabalho é realizado de

maneira solidária em uma propriedade de uso comum. Na obra Del ayllu al

cooperativismo, Hildebrando Castro Pozo descreve como o ayllu detém as

característica necessárias para a formação de cooperativas de trabalho a partir de

sua estrutura.

Apoiado nesses autores, Mariátegui defende que o ayllu – costume

tradicional – poderia se compo, juntamente como elementos próprios da

modernidade – a industrialização e a modernização dos meios de transporte, por

exemplo –, e formar cooperativas de produção, consumo e crédito que seriam,

juntamente com o controle das indústrias e das minas pelo proletariado, a espinha

dorsal do socialismo indo-americano. Dessa forma, tradição e modernidade estariam

reunidas em um projeto socialista propriamente latino-americano. Ou seja, tradição e

modernidade se fortaleceriam em uma relação de copertencimento, na qual uma não

anularia a outra, ao contrário, haveria uma potencialização de ambas.

Outro aspecto do universo indígena que chamou a atenção de Mariátegui foi

sua religiosidade. Fiel ao método de investigar as relações entre dimensão místico-

religiosa e estrutura econômica, Mariátegui indica como o mundo social dividido em

tribos agrárias coletivistas estava diretamente relacionado ao mundo simbólico

religioso dos incas:

40

Na verdade o ayllu é uma unidade que tem suas origens ainda no período do pré-incanato, sobrevivente à expansão do Império Inca. Fator fundamental da coesão dos povos andinos, o ayllu é muito anterior ao Incanato, sendo presente de maneira evidente e central em diversas civilizações que compuseram o complexo mosaico de povos andinos dos últimos quatro mil anos. “O ayllu foi a célula do Império. Os incas fizeram a unidade. Inventaram o império; mas não criaram a célula. O Estado jurídico organizado pelos incas reproduziu, sem dúvida, o Estado natural pré-existente” (MARIÁTEGUI, 2005, p. 93). Para Mariátegui, é esta matriz de organização sociopolítica que deve estar na base do socialismo indo-americano.

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A religião do Tawantysuyo, no entanto, não violentava nenhum dos sentimentos nem hábitos dos índios. Não estava feita de abstrações complicadas, e sim de alegorias simples. Todas as suas raízes se alimentavam dos instintos e costume espontâneos de uma nação constituída por tribos agrárias, sãs e ruralmente panteístas, mais propensas à cooperação que à guerra. Os mitos incaicos repousavam sobre a primitiva e rudimentar religiosidade dos aborígenes (MARIATEGUI, 2010, p.166).

A chamada “primitiva e rudimentar religiosidade” de que fala Mariátegui é fruto

de suas leituras do clássico da etnologia O ramo dourado, de James George Frazer.

Em razão de sua saúde debilitada, Mariátegui jamais pôde conviver em um pueblo

indígena. O convívio com os costumes indígenas chegou até o peruano a partir de

sua infância em Huacho, onde havia uma forte presença de populações indígenas, o

que dava um caráter específico ao mundo agrário – mais coletivista – e ao universo

religioso – catolicismo popular. Também recebeu muitos líderes indígenas em sua

casa e leu outros peruanos que tratavam do assunto, dentre os quais Luis Valcarcel,

Castro Pozo e Cesar Ugarte. Seu conhecimento era, porém, restrito a ponto de

construir a argumentação de Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana

explicitamente fundamentado em um evolucionismo elementar combatido por ele

mesmo na maior parte de sua obra. Outro trecho deixa claro essa leitura pouco

aprofundada de Mariátegui:

Os aspectos da religião dos antigos peruanos que mais nos restam esclarecer – em vez dos mistérios ou símbolos de sua metafísica ou de sua simbologia muito embrionárias – são por isso, seus elementos naturais: animismo, magia, totens e tabus. É essa pesquisa que nos deve conduzir a conclusões seguras sobre a evolução moral e religiosa dos índios (MARIÁTEGUI, 2010, p. 67).

Pesa a favor de Mariátegui, a relativa novidade da recém-criada antropologia,

o que dificultava muito uma apreensão menos evolucionista por parte do peruano.

Lembremos também que Valcarcel, a quem Mariátegui admirava, foi o introdutor em

Lima da abordagem acadêmica indigenista cusquenha, calcada na importância da

imersão na vida indígena e que confrontava o modelo baseado nas ciências

humanas da Europa e Estados Unidos, voltada a uma contemplação distanciada

naquele momento. Ou seja, havia em Mariátegui a inclinação de se apropriar da vida

indígena de modo mais consistente. Sua morte prematura, porém, não permitiu que

isso fosse possível.

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Nesse sentido, no artigo O rosto e a alma do Tawantisuyo, é possível

encontrar uma intuição isolada nos escritos de Mariátegui. Ao comentar o estilo de

Valcarcel em seu livro Da vida Inca, Mariátegui aponta como determinado traço

indígena está presente no subconsciente do autor. Apesar de muito embrionário, o

Amauta tece um apontamento que foge do esquema evolucionista presente nos

Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana. No trecho, o “segredo

indígena” alimenta a criação do escritor:

O livro de Valcarcel não é um pórtico monolítico, Valcarcel talhou amorosamente pedras de tamanho diferente. Em seguida, porém, soube combiná-las e ajustá-las num bloco único. A técnica de sua arquitetura é a mesma dos quíchuas. Quem disse que se perdeu o segredo indígena de soldar e juntar pedras em um monumento granítico? Valcarcel guarda-o no fundo de sua subconsciência e usa-o na sua literatura com a marca aborígene (MARIÁTEGUI, 2005, p.89)

Dedicado de maneira mais cuidadosa e competente ao estudo da dimensão

mística do socialismo a partir da relação com a agonia cristã de Unamuno e com o

sentimento estetizante do surrealismo, Mariátegui não deixou muitas reflexões a

esse respeito. Porém, identificou nos indígenas o sentido de trabalho amoroso com

a terra e percebeu nisso um elemento próprio do socialismo indo-americano.

Apesar de poucas e elementares, as observações de Mariátegui deixam os

primeiros passos de um caminho interpretativo, tanto de sua obra como das

possibilidades de construção de uma via socialista na América Latina, a partir dos

saberes e conhecimentos próprios das populações originárias do continente41.

Dessa forma, reunindo as dimensões econômica e religiosa-afetiva,

Mariátegui afirma a necessidade do mundo indígena se fazer presente na

construção do socialismo indo-americano. Apesar de distantes no tempo e no

41

A relação do pensamento de Mariátegui com a simbologia, a cosmologia e os costumes em geral dos povos andinos é um tema praticamente desconhecido e extremamente rico para ser estudado. Segundo o professor Cesar Germaná da Universidad Nacional Mayor San Marcos (em entrevista realizada em dezembro de 2012, Lima), a invisibilidade dessa influência no pensamento do Amauta se deve à própria invisibilidade do mundo indígena na sociedade peruana. Há, porém, muitos elementos no pensador que podem ser lidos a partir da influência do “pensamento indígena” na vida do peruano. Entre eles, se destaca a forte presença da vontade no pensamento andino. Também reconhecido como ânimo ou interesse, é reconhecido na epistemologia andina, a importância da vontade individual na concepção da realidade (ESTERMANN, 2001). Não é difícil supor que a obra do Amauta, tão nutrida do elemento individual da vontade e de suas construções subjetivas – que recebem inclusive o nome de mito – seja um desdobramento do Peru Profundo na obra do autor (Hipótese levantada após entrevista com o professor aposentado da UNMS, Sigfredo Chiroque).

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espaço, entendidos de forma linear e evolucionista, na interpretação do Amauta o

comunismo incaico e o comunismo moderno deveriam estar em profícua

comunicação, compondo um novo projeto societário. Para ele, a tradição indígena e

a modernidade prevista na ideia de progresso deveriam passar por um “relativismo

histórico” capaz de olhar para além do esquema linear da evolução econômica

produzindo, para além daquilo que esta perspectiva permite, uma nova ideia de

civilização na qual tanto a tradição quanto a ideia de progresso seriam renovadas.

Tradição heterodoxa

Não é somente a relação não linear entre comunismo incaico e comunismo

moderno que caracteriza as proposições amautistas sobre a tradição e

modernidade. Para além do universo indígena, a ideia de tradição defendida por

Mariátegui incluía diferentes tempos históricos em um movimento constante de

tensão e complementaridade. Entendendo a totalidade social como um todo

saturado por múltiplas memórias históricas, Mariátegui realoja o lugar da tradição e

da modernidade em sua dialética agônica, ou seja, uma nova relação de embate e

afinidade entre extremos.

A tradição deixa de ser considerada algo do passado, fixo, destinado ao

atraso e à folclorização, enquanto a modernidade não está destinada ao mito do

progresso infinito, próprio da ideologia positivista. Distinguindo tradição e

tradicionalismo, Mariátegui define a tensão filosófica entre o um como princípio e o

dois como totalidade:

Porque a tradição é, contra o que desejam os tradicionalistas, viva e móvel. Criam-na os que a negam para renová-la e enriquecê-la. Matam-na os que a querem morta e imóvel, prolongamento do passado num presente sem forças, para nela incorporar seu espírito e nela transfundir seu sangue. Essas palavras merecem ser cuidadosamente sublinhadas e explicadas. Desde que as escrevi, sinto-me tentado a lançar uma tese revolucionária sobre a tradição. Falo, naturalmente, da tradição entendida como continuidade e patrimônio histórico (MARIÀTEGUI, 2005. p. 113).

De acordo com Mariátegui, os tradicionalistas são aqueles que se recusam

em enxergar na tradição algo além de um passado estacionado e inerte, que não

tem nenhuma capacidade criativa inerente a si. Mero conteúdo de museus e

monumentos, a tradição é, para os tradicionalistas, um passado colonial perdido no

tempo, com datas marcadas e fixas, feitas de fatos únicos. Para ele, a tradição é

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algo móvel e cambiante, em transformação constante a partir do presente, também

em constante convulsão. No caso específico do Peru, a tradição remonta a, ao

menos, três momentos: passado incaico, colônia e república. Cada um desses

momentos com suas especificidades e conflitos, sendo revisto e repensado à luz do

presente. O porvir, o futuro joga sua luz ao passado e o presente – também ele um

heterogêneo campo de disputas – se realiza nesse jogo dialético entre extremos

móveis e múltiplos. Escreve Mariátegui:

Toda doutrina revolucionária atua sobre a realidade por meio de negações intransigentes, que só é possível compreender interpretando-as no seu papel dialético [...]. A tradição, no entanto, se caracteriza precisamente pela sua resistência a deixar-se apreender numa fórmula hermética. Como resultado de uma série de experiências, isto é, de sucessivas transformações da realidade sob a ação de um ideal, que a supera, consultando-a, e a modela, obedecendo-a – a tradição tem componentes heterogêneos e contraditórios. Para reduzi-la a um único conceito, é preciso contentar-se com sua essência, renunciando às suas variadas cristalizações (MARIÁTEGUI,2005, p.113)

Ou seja, indo frontalmente contra a linearidade histórica própria ao um como

princípio, Mariátegui propõe uma tradição múltipla e heterogênea, onde o movimento

dialético imprima uma constante tensão e afinidades entre diferentes projetos,

memórias e ideologias. É nesse sentido que a vontade se estabelece como

fundamento da historicidade. É da correlação de forças entre diferentes projetos e

visões de realidade, na disputa entre diferentes imaginários sociais, visões de

mundo e utopias que vai se estabelecendo a verdade histórica em seus diferentes

ciclos e momentos. Essa percepção da tradição como “patrimônio e continuidade

histórica” (MARIÀTEGUI, 2005, p. 112) fica evidente na reflexão que o Amauta

realiza sobre a tradição nacional peruana e seu movimento de transformação,

plasticidade e inter-relação de diferentes tempos históricos. Explicando a visão de

nação própria de um nacionalismo formado pelas castas feudais, escreve:

Enquanto predominou no país a mentalidade colonialista, fomos um povo que se reconheceu como surgido da conquista. A consciência nacional crioula obedecia indolentemente ao juízo pré-concebido de filiação espanhola. A história do Peru começava com a Ação de Pizarro, fundador de Lima. O Império Inca só era percebido como pré-história. O autóctone estava fora da nossa história e, portanto fora de nossa tradição (MARIÁTEGUI, 2005,p.115)

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Em outras palavras, a tradição entendida como tradicionalismo se restringe a

uma concepção unívoca e unilinear da história do Peru, onde há data de nascimento

para a tradição e aonde a história vai se desencadeando em fatos sucessivos até o

presente. Reorientando essa concepção, o Amauta defende uma tradição múltipla e

em movimento, ou seja, que acolha suas “variadas cristalizações” ao longo do

processo histórico e o conjunto de relações nascida dessa pluralidade de tempos

históricos que permanecem vivos e em transformação constante. Em termos de

“tempo passado” isso significa alargar o olhar ao passado, considerando a época

incaica e sua relação com outros marcos históricos, como a época colonial e a

independência. A tradição é formada por diferentes momentos – cristalizações – que

vão tecendo uma memória histórica heterogênea composta de diferentes

temporalidades e lugares de enunciação:

A tradição nacional ampliou-se com a reincorporação do incaísmo, mas esta reincorporação não anula, por seu turno, outros fatores ou valores também definitivamente admitidos na nossa existência e na nossa personalidade como nação. Com a conquista, a Espanha, seu idioma e sua religião entraram duradouramente na história peruana, articulando-a e fazendo-a comunicar-se com a civilização ocidental. O Evangelho, como verdade ou concepção religiosa, valia certamente mais do que a mitologia indígena. E, mais tarde, com a revolução da Independência, a República também entrou para sempre nessa tradição (MARIÁTEGUI, 2005, p. 116)

E, falando da tradição tripla do Peru e seu aspecto de “fermento” para o

progresso, Mariátegui explicita o caráter da tradição enquanto impulsionadora do

progresso:

Quando se fala de tradição nacional, precisamos estabelecer previamente de que tradição se trata, porque temos uma tríplice tradição. E porque a tradição tem sempre um aspecto ideal – que é o aspecto fecundo como fermento ou impulso do progresso ou superação – e um aspecto empírico, que a reflete sem contê-la essencialmente, e porque a tradição tem sempre em crescimento sob nossos olhos, que tão frequentemente se esforça, para querê-la imóvel e acabada (MARIÁTEGUI, 2005,p.117)

Ou seja, na tradição viva e móvel, defendida por Mariátegui, o passado é

sempre matéria em ebulição, espaço saturado de sentidos visíveis e invisibilizados,

no qual os homens do presente vão, segundo sua vontade, recolhendo e

organizando a memória que possibilite a realização do sentido do porvir. Dessa

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forma, é no mesmo processo de heterogeneização que Mariátegui vislumbra o futuro

como um conjunto de forças em contradição.

Se os tradicionalistas, ao verem a tradição como origem única e imóvel,

projetavam também um futuro linear e infinito; uma tradição viva apontava para um

futuro vivo e também incerto. O caráter “agônico” do pensamento amautista ganha

aqui forte relevo.

Para Mariátegui, estava em curso, no início do séc. XX, um processo de “luta

final” no qual diferentes formas de mentalidade, sentimento e utopia estavam se

digladiando. Inspirado pela ideia do “fim da Civilização” (Spengler), Mariátegui

concebia o fim da primeira Guerra como o anúncio do nascimento de uma nova

aurora, de uma alma matinal para a humanidade. O espírito decadente do

cientificismo da burguesia e sua ideia de progresso técnico-científico disputava lugar

com uma nova utopia para a humanidade, um novo sentido histórico sintetizado na

ideia do socialismo42.

Ou seja, no interior do processo histórico, diferentes projetos societários com

suas específicas “memórias e utopias” se digladiam e buscam visibilidade e

hegemonia. Enquanto para o tradicionalismo – evolucionismo – o passado era uma

data fixada e imóvel, para a tradição era um movimento que alimentava também o

futuro.

Dessa forma, o passado heterogêneo gera um futuro heterogêneo, onde

diferentes projetos societários e utopias estão em disputa. A ação, a práxis social

realizada no presente cotidiano se impulsiona nessa dialética originária, nessa

guerra entre diferentes projetos societários, expresso nas diferentes formas de

conceber o passado e o futuro. É a partir dessa tensão e copertencimento entre

passado e futuro, que Mariátegui defende um caminho para o socialismo, que deve

nascer dessa tradição plural, onde diferentes momentos do passado estão em

constante diálogo e ressiginificação, criando assim uma “vanguarda enraizada”, um

futuro enraizado no passado. Contudo, esse enraizamento não é algo imóvel e sim

um conjunto em movimento. Os “tesouros do passado” que alimentam os

“pressentimentos de futuro” devem partir de um enraizamento onde a pluralidade é o

fundamento do corpo político de uma sociedade e também de sua história. E isso,

42

Importante lembrar que havia um conjunto de correntes no interior daquilo que aqui chamamos genericamente de socialismo. A social democracia, o comunismo e o anarcossindicalismo são exemplos dessas correntes que participaram diretamente – sendo incorporadas ou criticadas – da construção amautista.

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no Peru, significa trazer para o seu projeto de futuro, para o novo sentido histórico

em disputa com o projeto liberal-burguês e com o comunismo etapista, o passado

incaico, a sua tradição.

O comunismo moderno não é algo distinto do comunismo inca [...]. Os dois são produtos de diferentes experiências humanas. Eles pertencem à épocas históricas distintas. Foram elaborados por civilizações diferentes. A dos incas foi uma civilização agrária. A de Marx e Sorel é uma civilização industrial [...]. A autocracia e o comunismo são incompatíveis em nossa época; mas não o eram nas sociedades primitivas. Hoje, uma nova ordem pode renunciar a nenhum dos progressos morais das sociedades modernas (MARIÁTEGUI, 2010, p. 92).

Para Mariátegui, o socialismo indo-americano seria uma síntese das diversas

formas de organização anteriores ao séc. XIX, como também dos diversos regimes

econômicos e políticos que tinham elementos que deviam ser absorvidos. Tanto a

autocracia inca, a célula do ayllu, o mundo colonial, a república, o mundo liberal

(naquilo que ele tem de positivo) como o socialismo da era industrial deveriam

compor o socialismo defendido por Mariátegui. Através do princípio do socialismo,

todos esses diferentes tempos e ideologias poderiam ser aproveitados na

construção do socialismo indo-americano. Escreve ele: “Fiz na Europa minha melhor

aprendizagem. E acredito que não há salvação para a Indo-América sem a ciência e

o pensamento europeu ou ocidental” (MARIÁTEGUI, 2010, p. 32).

Essas características, próprias ao processo peruano, tornavam polêmico o

pensamento do Amauta, que ia contra a ideia evolucionista presente também no

chamado etapismo do comunismo soviético. Ao incorporar a célula incaica do ayllu e

afirmar os possíveis benefícios de outros tempos históricos (já superados, segundo

o etapismo) e ideologias (o anarcossindicalismo de George Sorel, por exemplo),

Mariátegui contradizia a lei universal do evolucionismo econômico que levaria o

mundo todo ao comunismo. Baseado também na ideia de um tempo linear e

monótono, a ideologia etapista defendida pelo Komintern – um como princípio – era

desafiada pelo pensamento amautista, que defendia a especificidade do processo

do Peru e a incorporação dessa especificidade e de traços “positivos” de outras

ideologias, sem abrir mão do método dialético:

O marxismo, do qual todos falam, mas muito poucos conhecem e, sobretudo, compreendem, é um método fundamentalmente dialético. Ou seja, um método que se apoia inteiramente na realidade, nos

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fatos. Não é, como alguns erroneamente supõem, um corpo de princípios de consequências rígidas, iguais para todos os climas históricos e latitudes. Marx extraiu seu método das próprias entranhas da história. O marxismo em cada país, em cada povo, opera e atua sobre o ambiente, sobre o meio, sem descuidar de nenhuma de suas modalidades (MARIÁTEGUI, 2005, p. 103).

Ao afirmar a especificidade do processo peruano no processo de superação

das etapas até o socialismo, escreve:

O advento político do socialismo não pressupõe o cumprimento perfeito e exato da etapa econômico-liberal, segundo um itinerário universal. Já disse em outro lugar que é muito possível que o destino do socialismo no Peru seja, em parte, o de realizar, segundo o ritmo histórico que o governe, certas tarefas teoricamente capitalistas (MARIÁTEGUI, 2005 p. 153).

Assim, discordando frontalmente da tese de uma revolução por etapas que

deteria a fórmula universal para a totalidade dos processos sociais, onde quer que

ocorressem, Mariátegui propõe um funcionamento específico do caminho

revolucionário no Peru. Se opondo radicalmente às teses evolucionistas que

defendem o mundo indígena como “atrasado”, ele expõe:

Cremos que, entre as populações “atrasadas”, nenhuma reúne, como a população indígena inca, condições tão favoráveis para que o comunismo agrário primitivo, subsistente em estruturas concretas e no profundo espírito coletivista, transforme-se, sob a hegemonia da classe proletária, numa das bases mais sólidas da sociedade coletivista preconizada pelo comunismo marxista (MARIÁTEGUI, 2005, p. 144).

A especificidade do socialismo indo-americano torna-se, portanto, evidente no

papel e lugar das populações indígenas e camponesas na superação do modo de

produção capitalista. Porém, isso não significa que o caminho peruano e latino-

americano abra mão da via socialista. O socialismo revolucionário – guardadas as

especificidades de território peruano – é universal em seu objetivo de emancipação

humana. A especificidade do modelo peruano é somente a formulação necessária

do socialismo ao “clima histórico e latitude” peruana, mas não é uma saída desligada

do movimento mundial pela superação do capitalismo.

Buscando se desprender daqueles que consideravam a realidade do

continente como sendo radicalmente única e, portanto, separada do movimento

socialista internacional (especialmente, Haya de La Torre), Mariátegui se posiciona

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em defesa da adesão do específico caminho da América Latina como participante de

um movimento maior, global e explica:

A revolução latino-americana será uma etapa, uma fase da revolução mundial, nada mais, nada menos. Será pura e simplesmente, a revolução socialista. A esta palavra acrescentem, segundo os casos, todos os adjetivos que quiserem: “anti-imperialista”, “agrarista”, “nacionalista-revolucionária”. O socialismo os supõem, os antecede, abrange-os a todos (MARIÁTEGUI,2005, p. 119).

O caráter universal e, ao mesmo tempo, específico do processo social latino-

americano é onde reside o traço mais original da proposição mariateguiana sobre

essa questão. Utilizando a realidade indígena de seu país para demonstrar a

necessidade da criação de um socialismo próprio, essa especificidade não retira o

caráter universal da revolução. Seguindo o princípio da tradição enquanto

heterogeneidade em movimento, que reúne passado e futuro em uma práxis social,

Mariátegui abandona a definição tradicionalista de um socialismo central que

replicaria sua fórmula indefinidamente até alcançar a totalidade dos povos. Para ele,

seguindo o próprio movimento de tensão, o socialismo é algo em transformação

constante, permeável às realidades locais onde a sua mensagem alcança:

E o socialismo, embora tenha nascido na Europa tal como o capitalismo, tampouco é específico ou particularmente europeu. É um movimento mundial, a que não se subtrai nenhum dos países que se movem dentro da órbita da civilização ocidental. Esta civilização conduz, com uma força e meios de que nenhuma civilização dispôs, à universalidade. A Indo-América, nesta ordem mundial, pode e deve ter individualidade de estilo, mas não uma cultura e destino particulares (MARIÁTEGUI, 2005, p. 120).

Dessa forma, Mariátegui inaugura, a partir do pensamento agonístico de sua

dialética dos extremos, um modo de pensar a relação entre diversos elementos de

uma totalidade em constante transformação. Divergindo da temporalidade linear e

progressista seguida tanto pelo evolucionismo cientificista, como pelo etapismo

economicista; Mariátegui propõe o reconhecimento da diversidade de memórias

históricas, situada em diferentes tempos e lugares, na composição de um projeto

societário que consiga abranger essa diversidade.

Nesse sentido, a tradição múltipla significa também a multiplicidade de povos

e suas determinadas memórias participando de um projeto de universalidade que

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consiga articular diferentes combinações e especificidades dinâmicas no interior de

um projeto societário que não perca de vista a dimensão da totalidade.

Para Mariátegui, “a revolução já está contida na tradição. Fora da tradição, só

existe utopia” (MARIATEGUI, 2005, p. 116) e essa construção deve levar em conta

os diversos aspectos da memória coletiva. Assim, essa diversidade de aspectos

propõe uma articulação precisa entre economia, política e cultura, permitindo que a

pluralidade própria de uma historicidade de larga duração e de largo alcance não

impossibilite a coesão em um sentido histórico comum. Como explica Alimonda:

Se algo caracteriza a obra de Mariátegui é justamente essa notável capacidade para transitar pelos diferentes registros que compõem uma sociedade heterogênea e fragmentada e, respeitando suas especificidades, ser capaz de extrair propostas unificadoras. Nesse sentido, é notável a capacidade para desenvolver um agudo tratamento conjunto da política e da cultura a partir de critérios interpretativos comuns (ALIMONDA, 1994, s/d)

43.

Esse esforço de Mariátegui se torna evidente ao atentarmos para a

diversidade de povos, países e personalidades do cenário político-cultural mundial a

que o Amauta dedica seus escritos.

Em O problema de raças na América Latina, o pensador busca entender a

dinâmica da dominação entre povos via discurso do racialismo, exemplificando o seu

texto com diversos exemplos citados pelo sociólogo Pareto, entre eles a Grécia, a

Turquia e o Congo e realizando, em seguida, uma análise sobre o problema da

exploração de indígenas, negros e mestiços, sem descuidar da formação do

campesinato e do proletariado nos países do continente latino-americano.

Em sua obra Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana, seguindo

a obra de Frazer e Vasconcelos , o Amauta cita textos sagrados da religião védica e

zoroástrica, assim como diferentes dinâmicas existentes entre as populações

incaicas e pré-incaicas.

O conjunto de artigos escritos sobre acontecimentos importantes, análises de

caráter estético e dedicado a importantes figuras públicas de seu tempo foi tão

numeroso que rendeu uma publicação tripla como o nome de Figuras e Aspectos da

Vida Mundial. Charles Chaplin, Mahatma Gandhi, León Trotsky, Maximo Gorki,

43

Excerto retirado do texto “Mariátegui: vanguardas, tradição e modernidade”, disponível no sítio <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/brasil/cpda/estudos/tres/hector3>. Acesso em: 25/02/2014

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Tagore, André Breton, Sen são apenas algumas das figuras a quem Mariátegui

dedicou seus escritos. A Revolução Russa, o contexto do Leste europeu, a questão

palestina, a realidade chinesa, indiana, norte-americana e de diversos países

europeus constituem o arcabouço contextual abordado pelo Amauta.

Preocupado em compreender e interpretar a cena contemporânea, a partir da

diversidade de atores que compõem tanto o passado com suas tradições específicas

e processos históricos, como o presente em suas diferentes formas de expressar o

fim da civilização e o surgimento de uma alma matinal, desprendeu Mariátegui do

eixo Peru-Europa. Sua opção cosmopolita de buscar uma perspectiva abrangente

que conseguisse capturar o momento histórico mundial sem reduzi-lo a uma

formulação restrita se traduziu em um pensamento no qual o horizonte da

emancipação humana é uma fórmula em constante renovação.

Por meio de suas reflexões, Mariátegui vislumbrou a possibilidade da

construção do conhecimento – de uma epistemologia, portanto –, capaz de transpor

o eixo eurocêntrico e realizar uma interpretação multicêntrica dos fenômenos

sociais, possibilitando assim, uma visão mais próxima da totalidade social em sua

heterogênea dinâmica.

Mariátegui e a dupla consciência histórica latino-americana44

A obra de José Carlos Mariátegui forma um conjunto de reflexões muito

variado. Extremamente original e compondo um mosaico assimétrico, onde a práxis

militante e o ritmo cotidiano do jornalismo impediram a realização de uma obra mais

sistemática, o pensamento de Mariátegui é uma expressão direta de seu momento

histórico.

44

O termo dupla consciência ficou conhecido a partir da obra As almas da Gente Negra do psicólogo e escritor W. E. B. Du Bois. Nesse livro, Du Bois analisa como o sujeito negro afro-americano vive uma cisão em sua identidade. De um lado, ele se compreende a partir do olhar racializado e hierárquico. De outro, entende sua condição a partir das promessas modernas de uma sociedade igualitária em sua heterogeneidade. Assim como Mariátegui (cf. p. 137), Du Bois também usa a metáfora das “duas almas”. Essa ideia da identidade dividida entre consciência do colonizador e do colonizado também será abordada por Franz Fanon, ao longo de toda a sua obra e militância. No caso latino-americano, é conhecido o caso do escritor José Maria Arguedas, que explicitou o caso da dupla consciência peruana, país conhecido pela sua profunda cisão. De maneira geral, a “dupla consciência” é um dos centros irradiadores da discussão sobre mestiçagem e originalidade da filosofia/cultura latino-americana, tema trabalhado no 3º. capítulo da presente pesquisa. Por fim, em minha dissertação de mestrado (Gonçalves, 2008) foi trabalhada a categoria de dupla consciência social a partir de Martíns (2003), na qual afirma-se a cisão entre modernidade e tradição, presente na consciência moderna brasileira. A presente tese pode ser considerada uma discussão mais fundamentada e inclusive, desconstrutora da divisão mecanicista dessa referência anterior. Tradição, modernidade e dupla consciência ganham, ao longo deste trabalho, uma outra acepção.

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Seus inúmeros artigos possibilitam o conhecimento dos mais variados

acontecimentos de seu tempo com uma linguagem capaz de reunir reflexão

filosófica, informação e um projeto político em constante renovação. Essa

particularidade de Mariátegui, em que a palavra é viva, móvel e dialética com o

tempo vivido, oferece uma análise precisa dos acontecimentos e,

concomitantemente, incompleta, aberta, talhada sem medo da visita crítica e do

reavivamento. Seu esforço reflexivo, como ele mesmo coloca, é fruto de uma

ambição enérgica e apaixonada que busca infundir sangue em cada uma de suas

ideias.

Isso não significa um pensamento datado, de curto fôlego histórico, atado

somente ao chão de seu tempo. Ao contrário, como aponta Quijano (1991), a

escritura mariateguiana parece se renovar a cada novo ciclo histórico, apontando

novos sentidos e caminhos inéditos ao tempo presente. Nesse sentido, o presente

capítulo procurou explicitar o caráter filosófico de seu pensamento e de sua

perspectiva original de “tecer uma relação cognitiva com o mundo” (idem, p. 9) e,

portanto, transcendente do tempo de sua produção.

Se, por um lado, a obra de Mariátegui é testemunho fiel da passagem do séc.

XIX ao séc. XX e de seus acontecimentos cruciais, é também verdade que o

pensamento amautista nos remete a uma totalidade significativa que aponta para um

modo de compreensão da existência social, em sua amplitude macro-histórica e em

seus diferentes momentos, confrontando a ideia de um tempo linear e sucessivo.

Entendido como totalidade múltipla onde se combinam diferentes visões de

mundo e memórias historicamente situadas, suas análises conseguem transcender

a lógica do tempo mensurável, segundo os períodos de evolução.

Como pôde ser visto, essa perspectiva de Mariátegui se enraíza no modo

com que a duplicidade originária de logos/mithos opera em seu pensamento. De um

lado, Mariátegui critica o racionalismo positivista – um como princípio – trajeto

histórico-filosófico que se realiza através de uma cisão entre logos e mithos e

culmina na razão cientificista, onde impera uma relação de dominância em que logos

– entendido como verdade – submete a mithos, entendido como ilusão. Do outro,

Mariátegui propõe a construção de um socialismo indo-americano – dois como

totalidade – que opera segundo uma dialética dos extremos entre logos e mithos.

Assim, podemos afirmar que Mariátegui constrói o seu pensamento a partir

dessa tensão inerente ao mundo latino-americano, sendo a expressão de uma dupla

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consciência histórica latino-americana, na qual a consciência adaptada ao

evolucionismo linear é constantemente comparada, confrontada, dissimulada pela

consciência guiada pela sua dialética dos extremos.

Relação agônica vivida por Mariátegui na forma de uma luta final entre duas

civilizações; uma que está morrendo (sociedade burguesa) e outra que está

nascendo (mundo socialista) em um confronto agônico de vida e morte, luta

extrema. No universo da subjetividade, Mariátegui nomeia esse enfrentamento como

a disputa entre duas almas. No artigo com o sugestivo título Arte, Revolução e

Decadência, ele escreve:

No mundo contemporâneo, coexistem duas almas, a da revolução e da decadência [...]. A distinção entre as duas categorias de artistas contemporâneos não é fácil. A decadência e a revolução, assim como coexistem no mesmo mundo, também coexistem nos mesmos indivíduos. A consciência do artista é arena agonística de uma luta entre dois espíritos. Às vezes, ou quase sempre, a compreensão dessa luta escapa ao artista. Mas finalmente, um dos espíritos prevalece. O outro resta estrangulado na arena (MARIÁTEGUI, 2005, p. 250).

Essa capacidade peculiar de leitura da história em seus diferentes momentos,

da renovação de sua vigência a cada novo ciclo histórico e a aguda percepção da

sutileza dessas contradições no universo subjetivo e da arte não se dá por acaso. O

pensamento de Mariátegui, para além de ser manifestação de um espírito genial ou

mesmo de uma conjuntura específica, é a expressão do jogo de forças constituinte

do eixo central no qual se forjou a identidade latino-americana; é fruto de um

processo histórico de larga duração.

Para além da elaboração do projeto societário inscrito em um determinado

momento, a sensibilidade, a dupla consciência histórica mariateguiana expressa o

conjunto de contradições que vieram conformando o chamado labirinto identitário

latino-americano, sua totalidade aberta e irregular – ao longo de toda a

modernidade.

Não queremos, certamente, que o socialismo seja na América decalque e cópia. Deve ser criação heroica. Temos de dar vida, com nossa própria realidade, na nossa própria linguagem, ao socialismo indo-americano. Eis uma missão digna de uma nova geração (MARIÁTEGUI, 2005, p. 121).

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A obra e vida de José Carlos Mariátegui é um marco fundamental do

pensamento crítico latino-americano. Dando continuidade ao ethos barroco e sua

dialética dos extremos constituinte, Mariátegui acrescenta a essa estrutura histórica

em movimento, a interpretação crítica específica ao modo de produção capitalista

que entrava em sua fase industrial. Juntamente com sua obra e a partir dela, se

estabelecem movimentos durante todo o século XX que vão se nutrir dessa matriz

filosófica do pensamento crítico latino-americanista, dando origem e continuidade à

especificidade do continente no campo da reflexão crítica. Para se compreender a

profundidade histórica desse pensamento e sua filiação filosófica que remete ao

início do que entendemos como civilização ocidental, as reflexões de Mariátegui são

incontornáveis.

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III. A DUPLA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA LATINO-AMERICANA:

LITERATURA, LIBERTAÇÃO E DESCOLONIZAÇÃO

José Arcadio Buendía sonó esa noche que en aquel lugar se levantaba una ciudad ruidosa con casas de paredes de espejo. Preguntó qué ciudad era aquella, y le contestaron con un nombre que nunca había oído, que no tenía significado alguno, pero que tuvo en el sueño una resonancia sobrenatural: Macondo.

(Gabriel García Márquez)

O pensamento de José Carlos Mariátegui representa, no início do século XX,

a atualização da dialética dos extremos própria ao ethos barroco latino-americano

em sua dimensão crítica. Resposta à perspectiva de organização social própria ao

modo de produção capitalista, a práxis amautista é a concretização de pensamento

crítico latino-americano afinado com sua especificidade histórica e com seu lugar no

interior de uma totalidade social mais ampla e heterogênea. Apresentando-se como

uma alternativa ao europeísmo expresso na forte influência do marxo-positivismo da

Internacional Comunista e do excepcionalismo representado pelo pensamento de

Haya de La Torre, Mariátegui realiza um pensamento que não opera cortes

mecânicos na realidade e consegue capturar a dinâmica específica do continente

latino-americano no interior do capitalismo mundial.

Para isso, Mariátegui foi tecendo ao longo de sua vida um conjunto de

reflexões e práticas que expressam uma noção de totalidade social onde há uma

clara tentativa de abranger a diversidade cultural, histórica e econômica do

continente e onde se sobressai uma proposta original do lugar da tradição no

horizonte da modernidade. Nesse sentido, sua obra delineia um pensamento crítico

latino-americanista que se nutre da ideia de uma totalidade histórico-estrutural

heterogênea; categoria que, segundo Quijano, é aquela que melhor expressa a

realidade latino-americana:

Uma totalidade histórico-social é um campo de relações sociais estruturado pela articulação heterogênea e descontínua de diversos meios de existência social, cada um deles por sua vez estruturado com elementos historicamente heterogêneos, descontínuos, no tempo, conflituosos. [...] O que articula elementos heterogêneos e descontínuos numa estrutura histórico-social é um eixo comum, através do qual tudo tende a mover-se geralmente de modo conjunto, agindo assim como uma totalidade (QUIJANO, 2010, p.96).

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De acordo com Quijano, pode-se afirmar que, para além de expressar com

maior fidedignidade a realidade do continente latino-americano, a categoria da

totalidade histórico-estrutural heterogênea é uma categoria de caráter universal,

podendo ser utilizada para qualquer contexto social. É buscando a melhor definição

e ampliação dessa categoria que o autor tem utilizado o termo “totalidade histórico-

social” em seus trabalhos mais recentes. Nesse sentido, assim como temos feito

durante toda a presente tese, é importante demarcar a especificidade do processo

latino-americano no interior de um processo social mais amplo e de larga duração.

Luta agônica entre “duas almas”, como aponta Mariátegui, a entrada do

continente latino-americano na modernidade contemporânea45, é a expressão de

uma “luta final” onde a “alma matinal” de um novo tempo, o socialismo indo-

americano, deve surgir como vencedora. Ou seja, para Mariátegui, a

contemporaneidade se caracteriza por uma guerra de consciências no interior da

história. Consciências que representam, na verdade, civilizações em disputa.

Processo agudizado de uma dinâmica que se inicia no séc. XVI, essa disputa

civilizacional torna-se mais nítida e bem delineada com o advento da industrialização

e do surgimento da classe trabalhadora. Etapa do desenvolvimento do sistema-

mundo colonial-mercantil-capitalista, a Revolução Industrial traz consigo uma nova

correlação de forças, atualizando assim a contradição capital-trabalho.

O advento dessa nova etapa do capitalismo mundial representa, para

Mariátegui, uma agudização ainda maior da divisão no cerne da identidade social

latino-americana. É um novo ciclo do tensionamento entre o um como princípio e o

dois como totalidade, guerra originária que passa a se expressar na luta agônica

entre o modo de produção capitalista e o socialismo indo-americano em construção.

Essa divisão, expressão radical do tensionamento entre colonialidade do poder e

mestiçagem crítica no interior da história do continente, configura uma dupla

consciência histórica latino-americana, expressão de sua realidade estrutural

heterogênea saturada de contradições e tempos históricos distintos.

45

Como temos utilizado aqui a divisão temporal proposta por Dussel (2000) vale a observação de Pensarelli (2010, p. 80), na qual devido à mudança significativa do eixo eurocêntrico a partir do fim da Primeira Guerra, vale demarcar como contemporâneo esse ciclo no interior do que Dussel chama de “segunda modernidade”.

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A obra de Mariátegui é, nesse sentido, um divisor de águas, já que marca a

passagem histórica para o “breve século XX” (HOBSBAWM, 1995), inaugurando a

especificidade do pensamento crítico latino-americano no interior da tradição

marxista – consciência crítica negativa desse período da modernidade. Apesar de

ser um pensador de clara filiação à tradição inaugurada por Marx, Mariátegui se

nutriu de um momento político-social particular da América Latina, criando o seu

pensamento a partir de uma perspectiva de conhecimento própria ao chão do

continente. Como explica Quijano:

A subjetividade mariateguiana faz parte de um processo mais amplo, de um universo intersubjetivo que se constitui no processo da cultura latino-americana desse período, como alternativa à imposição crioula-oligárquica. Trata-se de uma racionalidade distinta que já alguns propunham como “indo-americana”, mas que seria escutada em seus primeiros sons muitas décadas depois com as raposas arguedianas (QUIJANO, 1991, p. 10).

A dimensão intersubjetiva própria ao mundo latino-americano e,

especificamente ao peruano, foi traduzida por Mariátegui ao longo de toda a sua

obra. Porém, como Quijano aponta, havia em toda cultura latino-americana desse

período um movimento de busca por sua identidade diante de um novo período da

modernidade que se iniciava. Nesse sentido, a literatura produzida no continente foi

uma importante forma de expressão dessa consciência. Considerado por muitos

estudiosos como membro do movimento indigenista peruano, Mariátegui foi um

estudioso da literatura indigenista, do qual José Maria Arguedas foi seu principal

continuador.

Do outro lado do continente, voltado para o Oceano Atlântico e inspirado

pelos ritos de devoração dos inimigos realizados pelos índios Tupinambá, surgiu no

Brasil o Movimento Antropofágico, expressão das artes brasileiras – entre elas, a

literatura – que reordenou o lugar da tradição na identidade brasileira, delineando a

sua dupla consciência constituinte. Dessa forma, inspirado pelo indigenismo

mariateguiano e pelo surrealismo europeu, surgiu também o movimento literário que

melhor expressou a dupla consciência histórica latino-americana em sua assimilação

enriquecida do outro: o realismo maravilhoso.

Juntamente com a literatura, outras expressões de caráter sociopolítico,

cultural, religioso e filosófico também explicitaram, ao longo de todo o séc. XX e

início do XXI, essa especificidade do pensamento crítico latino-americano e de sua

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identidade duplicizada. Nesse sentido, as categorias filosóficas da Libertação

sintetizam diversas linhas de forças críticas que estiveram presentes no continente:

a Educação Popular, o Guevarismo, a Teoria da Dependência, a Teologia da

Libertação e, mais recentemente, o conjunto de reflexões sobre a descolonização.

Escura pedra solar de nossa modernidade cindida, a mestiçagem crítica

latino-americana aponta para um novo sentido histórico de emancipação e libertação

dos povos do continente.

1. A LITERATURA

O indigenismo

O indigenismo na literatura da América Latina tem seu início46 já na entrada

do séc. XIX com o escritor peruano Mariano Melgar. Poeta, libertário e combatente

pela independência do Peru, Melgar demonstrou desde a infância uma forte

identificação com as populações indígenas de seu país, e deixou registrada uma

obra de forte caráter lírico, onde procurou traduzir o sentimento indígena presente

nos Yaravis, gênero musical de origem incaica que se caracteriza pelo caráter

elegíaco e melancólico de sua entonação. Precursor dessa forma de literatura,

Melgar foi desdenhado pela crítica peruana da época, muito ligada às expressões

artísticas europeias.

Esta mesma crítica também fustigou o poeta Cesar Vallejo (1892-1938), hoje

considerado um dos maiores poetas hispano-americanos do séc. XX. Neto de

mulheres indígenas, pobre e militante da esquerda revolucionária europeia durante

boa parte de sua vida, Vallejo inaugura alguns artifícios de linguagem que

marcariam a poesia moderna, como a quebra de sintaxe e da gramática, o elogio ao

cotidiano mais simples e a busca em decifrar o olhar dos “vencidos”, no caso

peruano, o olhar indígena.

Reunindo em um único parágrafo a poesia de Melgar e Vallejo, Mariátegui

explicita o caminho realizado pela literatura indigenista peruana desse período:

O sentimento indígena é, em Melgar, algo que se vislumbra apenas no fundo de seus versos. Em Valejjo, é algo que se vê aflorar plenamente no próprio verso, mudando sua estrutura. Em Melgar não

46

Estamos aqui desconsiderando as cartas, crônicas e descrições realizadas por religiosos e inúmeros viajantes durante todo o período colonial. Consideramos literatura indigenista aquela que se debruça sobre o problema indígena, principalmente a partir da passagem do séc. XIX para o XX, período da modernidade contemporânea. Isso não impede, é claro, que haja precedentes anteriores.

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passa de um sotaque, em Vallejo é o verbo. Em Melgar, enfim, não é mais que um queixa erótica. Em Vallejo é empreendimento metafísico. Vallejo é um criador absoluto (MARIÁTEGUI, 2010, p. 291).

Além desses dois autores, outros escritores peruanos foram responsáveis por

esse período inicial do indigenismo, no qual se destacaram basicamente duas

posições. Na primeira, o índio era visto como o “Outro Radical”, índio incontaminado

e essencialmente em oposição ao homem hispânico do litoral e sua mentalidade

voltada para a Europa. O grande símbolo dessa perspectiva é o poeta Valcarcel,

escritor que se dedicou a registrar, a partir de suas impressões, o que seria uma

cosmovisão andina. Já na outra posição estavam aqueles que defendiam a

mestiçagem como a matéria básica do indigenismo. O indigenismo, nutrido pela

mestiçagem, alcançaria assim todos os peruanos em seus diferentes matizes,

realizando um nacionalismo de caráter heterogêneo e não essencialista. Nessa

vertente estavam, além de Mariátegui, os poetas César Vallejo e Luis Alberto

Sanchez.

Porém, é com a obra de José Maria Arguedas que a literatura peruana se

inscreve definitivamente no indigenismo, enquanto busca de um universo

multicultural para além de cortes mecânicos e leituras romantizadas do índio.

Nascido em 1911, Arguedas foi criado em uma rica fazenda, onde cresceu entre os

desmandos patriarcais de sua madrasta e meio-irmãos – típicos gamonales – e a

presença dos empregados índios – los pongos –, em quem encontrou cuidado e

afeto e com quem compartilhou as experiências de profunda opressão e violência

simbólica. Como explica:

Em uma idade onde as lembranças ficam gravadas como fogo no coração do homem, Arguedas viveu a discriminação de que eram vítimas os empregados índios. Essa lembrança o atormentou pelo resto da vida e foi guia espiritual em sua criação literária ao longo de quarenta anos (CANTOR, 2012, p.2).

Extremamente marcado por essas vivências, chega a Lima em 1929, auge da

militância mariateguiana a favor dos povos indígenas. Conhece e se envolve com a

revista Amauta e, dessa relação nasce o interesse pela questão social peruana e

pela proposta do socialismo indo-americano de Mariátegui. Arguedas aprofundou,

tanto do ponto de vista da arte como da militância política, o projeto amautista de

uma vanguarda político-cultural que tivesse nas tradições indígenas – juntamente

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com os avanços do mundo ocidental – um de seus fundamentos. Chegou a se

aproximar do Partido Comunista Peruano, porém teve desentendimentos com o

esquema burocratizado do partido que, em sua avaliação “matava a alegria” dos

povos indígenas. Participou também da Ação Popular Peruana e foi militante junto

às populações camponesas de Sicuani, onde dava aulas na Universidade. Manteve

correspondência com Hugo Blanco, importante liderança campesina, e se mostrou

entusiasmado com a experiência cubana. Uma famosa frase de Arguedas explicita o

lugar do pensamento revolucionário em sua vida:

Foi lendo Mariátegui e Lênin que encontrei uma ordem permanente nas coisas; a teoria socialista não só deu um sentido a todo futuro, mas também ao que havia em mim de energia, deu um destino, carregou ainda de mais força pelo fato de canalizá-la. Até onde entendi o socialismo? Não sei bem, mas sei que não matou em mim o mágico (ARGUEDAS apud BAPTISTA, 2002, p. 8).

Em 1935, Arguedas publica seu primeiro livro Agua. Em 1957, publica Los

Rios Profundos, considerada a sua obra-prima. Em 1965, lança El sueno del pongo,

sua última publicação em vida. A partir dos anos 40, se dedica também a pesquisas

etnológicas e folclóricas que irá desenvolver ao longo de toda a sua vida. Dessa

forma, militância política, literatura e pesquisa antropológica se combinaram em sua

vida, dando forma tanto às suas ideias e literatura como à sua práxis social.

Essa pequena biografia do escritor peruano explicita claramente sua filiação

ao pensamento mariateguiano na defesa da construção de um socialismo que

reunisse indigenismo, nacionalismo e marxismo em um mesmo projeto. Continuador

da chama acesa por Mariátegui, Arguedas aprofundou aquilo que Mariátegui iniciou:

a necessidade de incorporar a visão de mundo indígena e de todo o universo

tradicional em seu conjunto de práticas sociocomunitárias ao projeto de nação

peruano.

O indígena, em Arguedas, adquiria ainda mais presentemente que em

Mariátegui o lugar de sujeito político em substituição ao lugar exotizado e folclórico

do sujeito pertencente ao passado. Aquilo que em Mariátegui talvez tenha sido o

ponto mais frágil de seu pensamento – o conhecimento do mundo indígena – em

Arguedas se aprofunda. Afetiva e profissionalmente – era antropólogo – ligado ao

universo indígena, Arguedas conhece de maneira muito mais pormenorizada e

intensa essa face da questão social de seu país que Mariátegui. Nesse sentido, sua

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própria vida foi um exemplo concreto do combate agonístico entre duas almas –

como coloca Mariátegui –, próprio da dupla consciência histórica latino-americana.

Se, por um lado, Arguedas conheceu a distância e a negação extrema entre

os valores oligárquicos e o universo quéchua47, tendo assim enraizado em sua

existência pessoal a construção de mundos separados e marcados pela dominação

colonial – um como princípio –; ele buscou, ao longo de sua vida de militante,

pesquisador e literato, construir uma ponte entre estes dois mundos, um espaço de

convergência e possíveis afinidades interculturais que possibilitassem a criação de

uma utopia andina – dois como totalidade – superando o indigenismo48 até então

praticado:

Consciente das limitações do indigenismo, Arguedas se incumbiu da tarefa de buscar uma expressão literária e artística que rompesse com todos os dualismos implícitos na literatura predominante: costa e serra, espanhol e quéchua, empregado e fazendeiro, urbano e rural [...]. Desde os seus primeiros escritos, Arguedas compreendeu o sentido da busca e propôs se converter em um nexo cultural entre os dois mundos tradicionalmente cindidos na sociedade peruana, o mundo de cima (serra) e o mundo de baixo (costa): “Que saibam meus amigos costenhos, sentenciava em 1935, como em coração de seu país serei, daqui por diante, testemunha e semente, ponte entre dois mundos” (CANTOR, 2012, s/d).

Assim, para Arguedas, o tensionamento entre colonialidade do poder e

Mestiçagem Crítica – dois polos da dupla consciência histórica latino-americana – é

o próprio motor de seu pensamento e obra. O lugar dessa luta agonística entre

essas duas perspectivas é tão central no pensamento arguediano que torna sua

obra um emblema dessa condição fundamental da identidade latino-americana. É

com base nela que Arguedas foi criando, em sua narrativa, um Peru heterogêneo

por multiplicidade racial, cultural e regional. Uma nação na qual os índios, mestiços,

47

O Peru, talvez mais do que qualquer outro país do continente, tenha vivido em seu cotidiano histórico as marcas de uma negação e submissão extrema de uma cultura à outra. Em sua obra sobre estratégias utilizadas pelo Sendero Luminoso para domínio militar e psicológico das populações, Portocarrero aponta como a sociedade peruana se construiu sobre o signo de uma “dominação total”, relação que se expressa também em um imaginário social constituído na violência entre opressores e oprimidos. Segundo esse autor, “na história peruana são muitos os episódios em que o exercício de violência é um fim em si mesmo. Sobretudo na Conquista, quando, por exemplo, os índios eram queimados ou caçados como cachorros, frequentemente pelo simples gosto de fazê-lo. O resultado dessa inclinação sádica é o ódio, é a resposta natural à opressão e marginalidade” (PORTOCARRERO,1993,p.37)) Nesse sentido, não nos parece estranho que Anibal Quijano, estudioso que cunhou o termo e tem desenvolvido seus estudos sobre a colonialidade do poder, seja nativo desse país. 48

Esse aprofundamento no modo de vida indígena, superando o romantismo exotificante de seus predecessores, faz com que alguns autores qualifiquem a obra de Arguedas como neo-indigenismo.

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hispânicos e demais migrantes vão se forjando a partir desse conflito básico entre

modos de lidar com uma interculturalidade que está presente em todos os estratos

da sociedade peruana, marcada desde o início pela desigualdade e injustiça social.

Imagem muito conhecida desse universo peruano, o muro de pedras incaico é

frequentemente descrito como metáfora dessa geometria plural, por ser uma

construção sólida, de duração milenar, construída com elementos irregulares,

múltiplos e de variados tamanhos. A totalidade constituída pelas formas irregulares,

vivas e desmedidas se concretiza nas pedras incaicas combinadas não só para

formar os muros da civilização indígena, mas reutilizadas nas fortalezas e catedrais

de arquitetura barroca, explicitando assim, sua condição de movimento heterogêneo

e constante mestiçagem.

Arguedas, em um trecho imortalizado de sua obra clássica Os Rios

Profundos, expressa esse tensionamento formador da identidade latino-americana

ao descrever o encontro entre um menino, seu pai e um muro da cidade de Cuzco:

Lembrei-me então das canções quíchuas que repetem constantemente uma frase patética: yamar amyu, rio de sangue, yamar unu, água sangrenta, puktik, yawar k’ocha, lago de sangue que ferve, yamar wek’e, lágrima de sangue. Acaso não se poderia dizer yawar rumi, pedra de sangue; puk tik, yawar rumi, pedra de sangue fervendo? Era estático o muro, mas fervia por todas as suas linhas e a superfície se transformava, como a dos rios no verão [...]. - Papai, disse-lhe eu, cada pedra fala. Vamos esperar um instante. - Não ouviremos nada. Não é que elas falem. Você está enganado. Mexem-se em tua mente e daí te inquietam. - Cada pedra é diferente. Não são cortadas. Estão se mexendo. Segurou-me pelo braço. - Dão a impressão de se mexerem porque são desiguais, mais que as pedras dos campos. É que os incas transformavam em barro a pedra. Eu te disse muitas vezes. - Papai, parece que andam, que se remexem, e estão quietas. Abracei meu pai. Apoiando-me em seu peito contemplei novamente o muro (ARGUEDAS, 1977, p. 12).

Lembrando as canções quéchua ouvidas na infância – rio vivo de sangue –

Arguedas transfigura a noção de mundo estático, pétreo e sem mobilidade trazido

pela presença do muro. Delineando uma totalidade desigual e em “aparente”

movimento, o muro de pedras incaico carrega a contradição, já que é “imóvel”,

milenar. Porém as pedras “falam”, são feitas de sangue indígena e lembram os rios

do verão, quando do alto dos Andes, descem as água que tomam os leitos secos.

Para Arguedas, a sociedade peruana se tensiona entre esses dois polos, muro e rio.

Como esses muros, ela é formada de unidades desiguais aprisionadas em um

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mundo estático que é regido pela opressão e dominação extrema; estando, porém,

vivos, sangue fervente que parece transcender os limites da pedra. De outro, essas

pedras poderiam se transfigurar no próprio rio Pachacaca que atravessa e toma a

cidade de Abancay todo verão, trazendo suas águas do alto dos Andes.

Em outro trecho muito conhecido de Rios Profundos, é possível visualizar

esse tensionamento entre o rio e a construção de pedra e a dimensão subjetiva

desse confronto histórico na vida do personagem. Dessa vez, Arguedas descreve a

ponte sobre o rio Pachacaca:

A ponte do Rio Pachacaca foi construída pelos espanhóis, tem dois olhos altos, sustentados por base de alvenaria, tão poderosa como o rio [...]. Ao entardecer, a água que salta das colunas forma arco-íris fugazes que giram com o vento. Eu não sabia o que amava mais, se a ponte ou o rio. Mas ambos desanuviavam minha alma, inundavam-na de fortaleza e de sonhos heroicos. Apagavam-se da minha mente todas as imagens lastimosas, as dúvidas, as recordações más. E assim, renovado, devolvido ao meu ser, regressava à cidade (ARGUEDAS, 1977, p. 63).

Confronto fundamental da sociedade peruana e da vida de Arguedas, a

descrição da ponte sobre o Rio Pachacaca explicita a tensão entre mundos e a

possibilidade de encontros, possivelmente belos, como os arco-íris formados no fim

da tarde. Na vida do personagem, essa tensão revive memórias, alimenta sua alma,

faz parte do universo pessoal, do seu caminho. Em uma interessante inversão, o

capítulo onde está o trecho citado se chama Ponte sobre o Mundo. Esse nome,

porém, que pode se referir à ponte construída, é também a tradução do nome do rio.

Ou seja, em uma inversão linguística, a ponte sobre o mundo passa a ser o rio que

atravessa o mundo construído pelos europeus e não o contrário. Dessa forma,

obedecendo à antiga profecia andina do Pachacuti, onde guerreiros míticos das

montanhas descerão até a costa para libertar o indígena da opressão49, o rio

Pachacaca – canção indígena, sua memória ancestral – e sua “invasão” a cada

verão seriam uma metáfora desse momento de subversão histórica, momento

revolucionário onde se ergueria uma sociedade onde as populações subalternizadas

49

Retomado de diferentes formas, esse conhecido mito é bastante utilizado para dar sentido a momentos históricos insurrecionais ao longo da história do mundo andino. Desde conflitos pré-coloniais entre incas e povos andinos dominados, passando pelas revoltas lideradas por Túpac Katari e Túpac Amaru no final do séc. XVIII, até as recentes rebeliões dos movimentos indígenas que resultaram na eleição do sindicalista cocalero Evo Morales na Bolívia – início do séc. XXI – todos esses acontecimentos são, na construção cotidiana da memória histórica coletiva das populações andinas, concretização e reoriginalização dessa antiga profecia.

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não estariam mais sobre o jugo da dominação.

É nesse sentido de busca pela libertação que Arguedas procura, em sua

linguagem, abarcar o mundo quéchua, visto e pensado do ponto de vista do indígena

e também em sua língua. Nessa constante tentativa da passagem transcultural50 do

mundo indígena quéchua para o mundo da literatura de língua espanhola –

produzida pela classe oligárquica – mora o núcleo de tensão da obra arguediana.

Na tentativa de passar para a linguagem escrita o mundo ritualístico indígena

que conhecia tão bem, Arguedas busca atualizar o universo mítico indígena para o

mundo peruano moderno e seus entrecruzamentos culturais, políticos e econômicos.

A superação do ar nostálgico e imobilizado – pedra silenciosa milenar – que faz da

cultura indígena um artefato folclórico, uma utopia arcaica diante de uma dominação

violenta e avassaladora – colonialidade do poder – é constantemente tensionada por

Arguedas, que busca compreender como, no campo da mestiçagem alimentada pela

transculturação, é possível criar um novo homem latino-americano, protagonista de

sua memória histórica – sua tradição – e, ao mesmo tempo, moderno e livre da

opressão.

É nesse sentido que o mundo mitológico indígena ganha, em Arguedas, um

sentido diferente daquele que aponta o mundo mítico como algo primitivo e

pertencente ao mundo de um passado perdido, de onde só restariam fragmentos

folclóricos. Assim como em Mariátegui o mito é um horizonte de futuro enraizado no

presente e age sobre as vontades e ações do mundo no espaço social presente e

direciona pensamentos e movimentos coletivos. Nesse sentido, para além de “dado

cultural”, fragmento destituído de seu caráter ético-político, o mito é força viva de

transformação social, como explica Valcarcel:

Valorizar o andino a partir da dimensão arguediana, significa não só recordar os intihuatanas ou os relojes solares, ou os poemas míticos como expressão de uma grande cultura. Significa afirmar a necessidade de novas formas de relacionar-se com os homens e mulheres andinos e com os produtos culturais destas populações, reivindicar sua potencialidade e autonomia nos marcos de uma convivência política onde o racismo não siga condenando-os à miséria, à exclusão permanente e ao massacre dentro de suas próprias comunidades. Surge, então, uma pergunta de resposta indispensável: de que modo cumprir a relação positiva mito-liberação? A falsa contradição entre modernidade e tradição, tão

50

O termo transculturação foi cunhado pelo antropólogo e musicólogo Fernando Ortiz (Cf. Transculturação e Elogio à Mestiçagem).

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popular entre as ciências sociais do Peru, é superada por Arguedas em sua proposta de um socialismo integrador, transparente e humanista (VALCARCEL, s/d)

51.

Na obra de Arguedas encontramos a continuidade dos núcleos problemáticos

de Mariátegui: qual o lugar do mito e da tradição na constituição da modernidade na

América Latina e em sua identidade? Em Mariátegui surge de maneira declarada e

indubitável a possibilidade de uma nova leitura da história da América Latina e seu

lugar na história mundial. Dali para adiante, a relação entre a memória histórica dos

diferentes povos do continente – seus saberes – e a construção de um projeto

societário futuro fidedigno a ela – sua utopia – se inscreveria definitivamente na

história da América Latina, visibilizando a presença das diferentes populações que

formam a diversidade do continente. Porém, em Arguedas, a criação de uma

“relação positiva mito-liberação” ganha contornos mais nítidos da cosmologia

quéchua e das formas de interação desses modos de saber enquanto interpretação

e ação política – práxis – no mundo moderno.

A legitimação do mundo mítico de relatos indígenas – chamados por

Mariátegui e outros pelo vago nome de sentimento indígena – como forma de

conhecimento, ganha em Arguedas um novo estatuto. Se Mariátegui chamou a

atenção para as afinidades eletivas entre o comunismo inca e o comunismo

europeu, em Arguedas o nível de profundidade e interpenetração entre tradição e

modernidade torna-se muito mais elaborado.

Essa relação entre universo mítico indígena e modernidade torna-se bastante

nítida em sua última obra, El zorro de arriba y El zorro de abajo, publicada em 1971.

As raposas do título são uma referência explícita e direta a um mito recolhido pelo

Padre Francisco Ávila ainda no séc. XVI, na cidade de Cuzco. Na história, chamada

Dioses y Hombres de Huarochiri, traduzida por Arguedas em 1966, há uma profunda

relação de afinidade e também de tensão entre a religiosidade inca e católica,

realizada provavelmente a partir da releitura cristianizada do mito feita por Ávila. As

duas raposas do título representam a gênese da dualidade básica, tanto no mundo

indígena quanto católico, assim como as contradições entre esses dois códigos de

moralidade.

51

Excerto extraído do artigo: Peru: Arguedas y el socialismo mágico. Uma primera aproximación. Disponível em: http://servindi.org/actualidad/39123. Acesso em: 25/02/2014

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Segundo a história, Huatyacuri, filho do grande Deus Pariacaca, é visitado em

sonho por duas raposas que passam a dialogar, fazendo de seu mundo onírico um

espaço de elaboração ético-cultural do universo colonial andino. Símbolos de dois

mundos, o mundo da costa e o mundo da serra, as raposas também representam

duas culturas, dois modos de viver distintos entre si. Com a catequização, essa

dualidade aos poucos adquire feições religiosas cristãs e, com o desenvolvimento do

mundo oligárquico, adquire uma conotação de diferença e disputa entre o homem de

Lima e o homem da serra, representada pela cidade de Cuzco.

Todas essas múltiplas camadas são retomadas por Arguedas em seu

romance que é escrito em tom de continuidade do diálogo das raposas, interrompido

no texto recolhido pelo padre. Ou seja, com base no tensionamento fundamental

entre as duas raposas, Arguedas tece uma descrição minuciosa da realidade

moderna do Peru, mesclando assim a realidade mítica, social e literária em múltiplas

camadas históricas e realizando aquilo que Mariátegui chamou de “tradição

heterodoxa”. Esse recurso ao horizonte mítico da identidade peruana, orientado por

uma busca literária de caminhos para um mito-liberação das populações indígenas e

mestiças subalternizadas, dá à obra de Arguedas o contorno de uma investigação

socioantropológico-literária que se propõe ser, de algum modo, a continuação da

existência cíclica do universo indígena em sua dualidade expressa pelas duas

raposas retratadas no mito de Huarochi.

Prova desse projeto é o seu inacabamento (o escrito original feito pelo padre

Ávila não foi terminado, bem como a própria obra de Arguedas, interrompida pelo

seu suicídio). Acontecimento de alto sentido simbólico, o suicídio de Arguedas é o

desfecho de uma trajetória onde as dimensões pessoal, política e mítica estão

inextrincavelmente relacionadas. Comentando a relação entre zorro de arriba y zorro

de abajo, o suicídio de Arguedas e um mito-dança da morte, próprio da cultura

andina, para qual Arguedas dedicou um conto, escreve Natali:

Não é outra a tese que vou defender aqui: a passagem de fato ocorre, graças à transformação do processo de produção de El zorro de arriba y el zorro de abajo em uma cerimônia semelhante à dança ritual descrita no conto "La agonía de Rasu-Ñiti" e em vários textos etnográficos de Arguedas. Entre maio de 1968 e 2 de dezembro de 1969, dia de sua morte, a vida de Arguedas efetivamente mimetiza a dança agônica do dançarino Rasu-Ñiti. [...] Como Rasu-Ñiti ao se vestir para sua última dança, Arguedas, quando sente que está próximo à morte, começa a se preparar e também transforma a morte

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em um acontecimento coletivo e ritual, compartilhando-a com a comunidade de leitores (NATALI, 2005, s/d).

Segundo conta a história, o dançarino continua dançando em outro mundo

após a sua morte, enquanto um discípulo deve continuar a sua trajetória no mundo

dos vivos; trajetória esta que também será inacabada e encerrará seu ciclo com

outra dança da morte. Dessa maneira, o mundo cíclico do indígena andino se

perpetua indefinidamente. Ao trazer para a sua própria vida o universo mítico

indígena-mestiço, Arguedas leva ao extremo o centro de sua indagação estético-

política, presentificando em sua própria existência a guerra originária que permeia a

dupla consciência histórica latino-americana.

Por mergulhar de maneira tão intensa nesse encontro de mundos e suas

contradições, aprofundou ainda mais a possibilidade de uma leitura própria da

modernidade segundo uma pensamento crítico propriamente latino-americano.

Nesse sentido, Arguedas problematiza a cisão originária entre mithos e logos e

aponta para a possibilidade de copertencimento dessas polaridades fundamentais,

possibilitando pensar naquilo que Montoya (1994) denominou de socialismo mágico,

ou seja, um sentido histórico-universal – uma utopia – fundamentado em um

pensamento crítico latino-americano.

A antropofagia

Outro fenômeno de natureza literária que explicita a dialética dos extremos

própria do pensamento crítico latino-americano foi a Antropofagia. Movimento

filosófico literário que se inicia em 1928 com a produção do Manifesto Antropofágico

de Oswald de Andrade, a Antropofagia é um dos marcos do Modernismo brasileiro

e, assim como em outros países da América Latina, se caracterizou pela

convergência entre tradição e modernidade em uma proposta crítica ao cientificismo

tecnicista de matriz positivista.

Assim como o indigenismo revolucionário proposto por Mariátegui e o neo-

indigenismo de Arguedas, a Antropofagia buscou, a partir de seu manifesto, criar

uma proposta alternativa ao nacionalismo de cunho civilizatório e colonizador próprio

à colonialidade do poder. Inspirado no ritual antropofágico indígena de devoração do

inimigo em um ciclo contínuo de vingança e apropriação das qualidades intrínsecas

do “outro de mim”, o Movimento Antropofágico liderado pelo escritor Oswald de

Andrade sintetizou um projeto estético-literário que buscava “deglutir as influências

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poético-ideológicas europeias incorporando-as criticamente às matrizes nacionais”

(HELENA, 1983, p. 23). Porém, a tradição antropofágica da literatura brasileira

manifesta seus primeiros sinais de protesto e elogio a uma identidade intercultural

crítica com a obra do poeta Gregório de Matos (1636-1695).

Dominada pelo viés ideológico do colonizador, a literatura brasileira se

apresentava como porta-voz oficial do status quo dominante através de uma

linguagem em consonância com as correntes literárias europeias. Foi Gregório de

Matos o primeiro a desafiar essa ordem patriarcal fundadora de nosso processo

colonizador. Como explica Helena:

É Gregório de Matos quem inicia em nossa literatura a festa da carnavalização antropofágica, na qual se sacrifica simbolicamente o colonizador e se pratica uma espécie de “parricídio inaugural”. É com sua obra que começa esse longo processo de esvaziamento da influência texto/contexto europeu que, em sua supremacia, legislava sobre o gosto estético da literatura do período colonial [...]. Com a palavra de Gregório de Matos, a palavra poética busca não ser mais um estatuto de oficialização do discurso do poder (HELENA, 1983, p. 24).

Para conseguir expressar sua ordem de rebeldia contra o “macho

despótico”, Gregório de Matos produziu uma obra onde o humor e o riso serviram

como contraponto a uma filosofia da seriedade e seu traço classicizante. Dessa

maneira, explicitou a tensão própria da identidade latino-americana através de uma

linguagem barroca que desafiava o papel normativo e conservador da reprodução

imitativa de valores e estéticas europeias em terras tropicais. Linguagem que critica

o ideário de um único sujeito como centro da verdade e da lei, a poesia de Gregório

de Matos apresenta o “outro silenciado” em suas múltiplas vozes que fogem do

padrão generalizante que busca absorvê-los em uma correlação de forças que anula

a presença do colonizado. Denunciando através do deboche, da sátira e do uso

deseducado da linguagem, Gregório de Matos critica a sociedade da época

carnavalizando a realidade e usando elementos da linguagem e da vida cotidiana da

ampla maioria da população, dos pobres:

Estais dada a Bersebu Chica, e não tendes razão sofrei-me Maria João pois eu sofro a Mungu: vóis daí ao rabo, e ao cu, eu dou ao cu, e ao rabo,

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vós com um Negro, um diabo, eu com uma negrinha brava pois fique fava por fava, e quiabo por quiabo (MATOS apud HELENA, 1983, p. 36).

Esses elementos pervertedores que denunciam o poder de domínio exercido

através da ideologia europeizante e colonizadora do soberano patriarca acabam por

constituir uma dinâmica maniqueísta onde a sensualidade, o relaxamento e

aceitação da inexatidão da vida corpórea são o extremo oposto do padrão regido

pela matriz judaico-cristã onde a linguagem escrita, o tabu do corpo e a hierarquia

das instituições são um instrumento de legitimação de um sistema de domínio.

Opondo assim a lógica do “Bom Senso e Bom Gosto” à lógica do “Muito Siso,

Pouco Riso” (HELENA, 1983, p. 28) a poética de Gregório de Matos problematizava

uma suposta identidade monológica, através do recurso da carnavalização52 da

sociedade brasileira, paródia crítica da sociedade dominante.

Oswald de Andrade

A denúncia da invisibilização do universo do colonizado, o humor como forma

de crítica e a desconstrução da sintaxe e da gramática formal são recursos utilizados

também por Oswald de Andrade, já em 1924 em seu Manifesto da Poesia Pau-

Brasil, manifesto da vanguarda artística brasileira, onde o autor sobrepõe dois

mundos antagônicos e fundantes de nossa sociedade, o mundo da civilização e do

civilizado. Escrito considerado como a entrada do que viria a ser o banquete

antropofágico, O Manifesto da poesia Pau-Brasil aparece no seio histórico do entre

guerras, momento em que a crença absoluta no cientificismo positivista estava em

xeque e, com ela, toda a ideia de progresso infinito.

Ao mesmo tempo, o regionalismo ganhava força em países como o Brasil,

onde a identidade nacional vinha sendo cultivada por uma burguesia letrada e pelos

donos dos meios de produção. Esse choque entre espírito nacional exótico e mundo

industrial estrangeiro em crise aparece, de forma alegórica, logo nos seus primeiros

dois versos, onde o autor apresenta um país cindido socioculturalmente e que

52

Explicando a origem do termo carnavalização, Baktin nos remete à etimologia Karth ou Karne, que significa lugar santo com seus deuses e servidores. Já a palavra Val significa morto, assassinado. Carnavalização seria, portanto, procissão (ação) dos deuses destronados (mortos), seria o “lócus privilegiado da inversão, onde os marginalizados apropriam-se do centro simbólico, numa espécie de explosão de alteridade, onde se privilegia o marginal, o periférico, o excludente” (SOERENSEN, 2011, p. 318).

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necessita de uma nova forma de pensar suas peculiaridades. É essa necessária

construção que dá fundamento à sua defesa de um primitivismo nativo. Escreve ele:

A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos. O Carnaval do Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau- Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro, a dança. Toda história bandeirante e a história comercial dos Brasil. O lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui Barbosa: uma cartola na Senegâmbia, Tudo revertendo em riqueza. A riqueza dos bailes e das frases feitas. Negras de Jockey. Odaliscas no Catumbi. Falar difícil (ANDRADE, O. O Manifesto da poesia Pau-Brasil).

Do carnaval como acontecimento essencial em contraste com o lado

doutor, o lado citações. Diante da riqueza vegetal, do Pau-Brasil e do verde da

Favela, Oswald contrapõe o compositor alemão de música erudita Wagner. Difícil ser

mais contrastante. A ideia de uma nação feita de dois mundos separados e opostos

é defendida ao longo de todo o escrito e se evidencia nas imagens escolhidas pelo

poeta. “Eruditamos tudo e esquecemos o gavião de penacho”, escreve Oswald em

outro trecho, demarcando a ideia de separação entre mundo intelectual e mundo

natural.

Seguindo o Manifesto, se acumulam exemplos dessa divisão crônica de

nossa sociedade. Para Oswald, o mundo Pau-Brasil, mundo “regional e puro” guarda

as qualidades próprias a uma cultura em fase de infância, onde é sentimental,

ingênua e espontânea. Uma cultura que consegue “ver com olhos livres”,

imaculados, poderia se dizer. Guarda por isso, uma “energia íntima”, fruto dessa

força intocada. Já o “lado doutor” traz consigo o “arranjo” monstruoso da vida

industrial e seus aparatos; “Postes, Gasômetros Rails, Laboratórios e oficinas

técnicas”. Assim, dividido radicalmente, é o Brasil descrito por Oswald.

Mas a explicitação desse caráter cindido da nação brasileira não encerra a

mensagem do Manifesto. É preciso apresentar, a partir dessa divisão radical, uma

proposta própria de modernidade, é preciso realizar um projeto onde essas duas

dimensões se unam em benefício de um espírito nacional que não seja mera cópia

do mundo, mera importação. Em outro trecho escreve Oswald:

Temos a base dupla e presente – a floresta e a escola. A raça crédula e dualista e a geometria e a álgebra. E a química logo depois da

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mamadeira de chá de erva-doce. Um misto de dorme-nenê que o bicho vem pegá e de equações. Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas elétricas, nas usinas produtoras, nas questões cambiais, sem perder de vista o Museu Nacional. Pau Brasil (ANDRADE, O. O Manifesto da poesia Pau-Brasil).

Ou seja, Para Oswald, apesar de haverem esses dois mundos

maniqueízados, a modernidade não deve ser negada. A essas novidades exteriores,

vindas de fora para serem mecanicamente copiadas no Brasil, era preciso utilizar a

inventividade própria do espírito nativo e criar uma forma de sensibilidade que

conseguisse conviver com esse espírito novidadeiro sem perder seu “sentido puro”.

Ou seja, manter o estado de magia e natureza intocada apesar do universo técnico e

ilustrado. A esse exercício de convívio, entre mundos separados, o poeta chamou de

“o melhor de nossa demonstração moderna” e seria papel do artista inventar essa

estética do convívio, onde a literatura seria responsável pela criação de uma

“Gramaticazinha da Fala Brasileira” que fosse capaz de criar artesanalmente essas

pontes entre províncias que não se tocam, entre tempos históricos separados.

Denunciar nossa servidão ao mundo europeizado e sua estética asfixiante de nossa

pureza nativista e regional, eis a bússola que guia o Manifesto da Poesia Pau-Brasil.

Como explica Nunes:

O ideal do Manifesto Pau Brasil é conciliar a cultura nativa e a cultura intelectual renovada, a floresta com a escola num componente híbrido que ratificaria a miscigenação étnica do povo brasileiro. [...] A universalidade da época deixaria de ser excêntrica pra se tornar concêntrica, o mundo se regionalizara e o regional continha o universal (NUNES in ANDRADE, 1978, p. 13).

Porém, é somente a partir de 1928, com o Manifesto Antropofágico que o

movimento encabeçado por Oswald parte para uma abordagem mais combativa na

elaboração do “como” promover esse encontro entre o nativo e o moderno. Assim,

nesse segundo momento do movimento, mais do que uma idealizada harmonia

entre distintos, o escritor propõe que a floresta devore a escola e seja esse ato de

devoração o emblema de nossa humanidade, como diz no início do Manifesto:

Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única Lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos coletivismos. De todas religiões. De todos tratados de paz. Tupi or not tupi that is the question. Contra todas as catequeses. E contra a mãe de todos os Gracos. Só

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interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago (ANDRADE, 1978, p.16).

Diferente da perspectiva do Manifesto Pau-Brasil, muito envolvida ainda por

uma ideia mecânica – Um Como Princípio – do que era o encontro intercultural, a

partir do Manifesto Antropofágico, Oswald começa a vislumbrar a noção de uma

devoração crítica do outro como um processo constitutivo da humanidade, “Única lei

do Mundo [...]. Lei do Homem. Lei do antropófago”. E, para o escritor, no caso do

Brasil, essa deglutição de diferentes valores passava por uma apropriação crítica

dos valores eurocêntricos a partir de uma visão situada historicamente no Brasil e

em seu conjunto de memórias coletivas e sociais, ou seja, a partir de uma metafísica

bárbara, metafísica caraíba que constituiria uma outra perspectiva de conhecimento,

uma outra racionalidade – dois como totalidade – capaz de dar contorno a um

“sistema social-planetário”:

Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleção de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos do mapa-mundi do Brasil. Uma consciência participante, uma rítmica religiosa. Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Lévy Brunhl estudar [...]. Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós (ANDRADE, 1978, p.14).

Essa visão de mundo não eurocêntrica, onde o “instinto caraíba” operaria a

tradução – digestão de todas as revoltas da humanidade, criando assim uma lógica

para além da Revolução Francesa e da “verdade dos povos missionários”, operaria

uma deglutição artesanal do outro, um exercício filosófico de reorientação do lugar

do outro enquanto dominador. Para Oswald, a antropofagia, conduzida pelo

pensamento mito-poético próprio ao mundo indígena – “ciência como codificação da

magia” –, engoliria o mundo das ideias objetivadas da razão dominadora. Contra

especulação, a adivinhação. Contra Deus, “consciência do mundo Incriado”,

Guaraci, a “mãe do viventes” e Jaci, a “mãe dos vegetais”. Cada valor do mundo

“ocidental” seria assim transfigurado digestivamente segundo a razão antropofágica.

Um dos traços do pensamento antropofágico de Oswald de Andrade que

melhor expressa esse processo de devoração do outro, de convite à outredade

próprio desse “entre mundos” que caracteriza o pensamento crítico latino-americano

se explicita no uso que o autor faz da teoria freudiana. Para o brasileiro, o modo de

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pensamento que orienta o banquete antropofágico pode ser comparado ao processo

ritualístico de parricídio descrito em Totem e Tabu de Freud. Nesse texto, o pai da

psicanálise defende que a cultura se instauraria no universo humano a partir da

hipótese mítica de um parricídio canibalesco, onde os filhos interiorizariam a moral

paterna (superego) nesse ato antropofágico.

Realizando uma ressignificação antropofágica da teoria freudiana, Oswald

relê esse mito como uma possibilidade de devoração e digestão dos valores

ocidentais não para assumir a moral ocidental, mas para degluti-la e reinventá-la

segundo o instinto caraíba, que se manifestaria segundo um “consciente

antropofágico” que libertaria a libido e os princípios inconscientes do movimento

patológico próprio às sociedades capitalistas patriarcais. Lê-se no Manifesto:

O amor cotidiano e o modus vivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura [...]. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna afetivo e cria a amizade. Afetivo o amor. Especulativo a ciência [...]. Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama (ANDRADE, 1978, p.19).

Assim, com o Manifesto Antropofágico, Oswald de Andrade aprofunda o

caráter de protesto de seu pensamento. “Pedra de escândalo”, a imagem do canibal

é impactante e ofensiva à linhagem dos bons costumes que regem o pensamento

moderado da elite. Com sua linguagem saturada de provocações, o Manifesto

ofende os valores conservadores do “modus vivendi capitalista” a partir de um

conjunto de ideias que reúnem liberação dos instintos, vida mítica baseada na

imanência da vida e pensamento anti-colonialista, não eurocêntrico. Porém, apesar

de propor o bárbaro tecnicizado up to date, a antropofagia exposta pelo Manifesto

guarda ainda traços de filiação ao romantismo rousseauniano e a uma ideia

primitivista que a mantém atrelada ao positivismo de caráter evolucionista.

Como em Mariátegui, o índio tupinambá de Oswald ainda se apresenta com

uma identidade difusa, com um “sentimento indígena” genérico que o aproxima do

homem primitivo que habita os tempos remotos da história53.

53

Importante lembrar que a antropologia evolucionista e, com ela, a ideia de “infância” da humanidade estava em plena vigência. Assim como Mariátegui, Oswald acompanhava muitas das concepções hegemônicas de sua época.

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A crítica a esse resíduo evolucionista em seu pensamento seria realizada a

partir de 1930, quando Oswald se aproxima do comunismo e se torna um defensor

do sistema soviético, chegando até mesmo a negar a antropofagia e chamando-a de

“sarampão antropofágico”, avaliando a sua ação cultural como a de um títere na mão

da burguesia.

Logo no início desse período, ao prefaciar o seu livro Serafim Ponte Grande,

em 1933, Oswald renega a antropofagia ao escrever que “ignorando o Manifesto

Comunista e não querendo ser burguês, passei naturalmente a ser boêmio”. E

continua: “Servi à burguesia sem nela crer”. Encerra dizendo querer ser “pelo menos

casaca de ferro na Revolução Proletária”. A maior expressão desse seu

engajamento surge também em 1933, com a peça O Rei da Vela. Porém, desiludido

com o comunismo apregoado pelo sistema soviético – “sacerdócio empedernido e

dogma imutável da URSS” (ANDRADE, 1978, p. 118) – rompe com o comunismo

oficial em 1945, quando se desliga do “Partidão”, apesar de continuar adotando o

pensamento de Marx e Engels em seus escritos e pensamentos.

É nesse momento final de sua trajetória intelectual que se situam as obras A

Crise da Filosofia Messiânica (1950) e A Marcha das Utopias (1953), quando

Oswald retoma a temática da antropofagia, mais especificamente do Matriarcado,

agora já pensado enquanto uma visão de mundo, uma weltanschauung presente na

humanidade em diferentes momentos e lugares, próxima à ideia da constante da

alma humana com que Eugenio D’ors interpretava o barroco. Para Oswald,

contraposto ao mundo do matriarcado antropofágico, está o patriarcado messiânico.

Escreve ele:

Enquanto na sua escala axiológica fundamental o homem do Ocidente elevou as categorias do seu conhecimento até Deus, supremo bem, o primitivo instituiu em sua escala de valores até Deus, supremo mal. Há nisso uma radical oposição de conduta. E tudo se prende à existência de dois hemisférios culturais que dividiram a história em Matriarcado e Patriarcado. Aquele é o mundo do homem primitivo, este o do civilizado. Aquele produziu uma cultura antropofágica, este uma cultura messiânica (ANDRADE, 1978, p. 77).

Dessa forma, dividindo a história em “dois hemisférios”, Oswald se aproxima

da ideia de um tensionamento básico na história humana e em seu desdobramento

específico no Brasil enquanto dupla consciência histórica regida pelo espírito

messiânico da colonização e domínio do outro – um como princípio – e pelo espírito

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antropofágico de absorção do outro – Dois Como Totalidade. Assim, para Oswald o

Patriarcado que aparece na sociedade brasileira colonizadora e catequista está

presente também na divisão social do trabalho, onde nasce a classe sacerdotal e

monoteísta. Presente no Egito, no Oriente, na Grécia e em Roma, a filosofia

messiânica adentra o Cristianismo e chega até a Revolução Burguesa que protege

sua concentração de poder e de classe, via família monogâmica e Direito Romano.

Já no caso do Matriarcado, presente originalmente naquilo que Oswald

chama de “mundo do homem primitivo”, a propriedade era comum, predominava o

direito natural e não havia classes. Com a superação do mundo medieval, o

Patriarcado começa a apresentar seu primeiro embate.

Com Descartes e Spinoza, o homem passa a ter corpo e razão. A ascensão

da burguesia – apesar de protegida e adepta do Patriarcado – coloca de vez no

centro de importância, o mundo do dinheiro burguês e o êxito humano na terra. Kant,

Nietzsche e Kierkegaard intensificam a crise do homem transcendental próprio à

metafísica messiânica. É nesse contexto que aparece a obra de Marx e, com ela, a

possibilidade do ressurgimento da Era do Matriarcado e do homem tecnicizado.

Para Oswald, apesar dos imensos desvios daquilo que ele chamou de uma

“metafísica proletária”, no pensamento de Marx estaria o conjunto de reflexões que

possibilitaria o retorno do Matriarcado e da vida coletivista em um mundo tecnizado.

Oswal acreditava que, a partir do advento da dialética marxista, era possível pensar

em uma sociedade onde, para além da figura do Pai, enquanto grande orientador da

sociedade, poderia se inaugurar o “senso de Super Ego tribal” (ANDRADE, 1978, p.

125), ou seja, um inconsciente coletivista e primitivo – matriarcal – em plena era

moderna dominada pelo Patriarcado messiânico. Nas teses finais que resumem as

ideias contidas no texto Crise da filosofia messiânica, ele escreve:

1) Que o mundo se divide em sua longa história em: Patriarcado e Matriarcado. 2) Que correspondente a esses hemisférios antagônicos existem: uma cultura antropofágica e uma cultura messiânica. 3) Que esta, dialeticamente, está sendo substituída pela primeira, como síntese ou terceiro termo, acrescentada das conquistas técnicas. 4) Que um novo Matriarcado se anuncia com suas formas de realidade social que são: o filho de Direito materno, a propriedade comum do solo e o Estado sem classes, ou a ausência de classes [...]. 11) Que só a restauração tecnicizada duma cultura antropofágica resolveria os problemas atuais do homem (ANDRADE, 1978, p. 128).

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Assim, para Oswald, a tradição e a modernidade – mundo primitivo e técnico

– encontrariam uma síntese em um Matriarcado que uniria, na sociedade moderna,

o espírito coletivista dos povos “primitivos” e todo o avanço técnico e social de uma

sociedade sem classes. Dessa forma, assim como fez como Mariátegui e Arguedas,

Oswald reatualizou, no contexto de seu tempo, a dialética dos extremos do

pensamento crítico latino-americano e explicitou, em sua obra e vida, a dupla

consciência histórica latino-americana. E, assim como os dois peruanos, constituiu

ao longo do tempo um pensamento que apontava para uma perspectiva de

conhecimento e realização concreta da vida social que superasse a separação

mecânica entre diferentes extremos, visão que essencializa o lugar das populações

tradicionais e ocidentais, invisibilizando as contradições intrínsecas aos processos

históricos onde essas identidades são forjadas.

Macunaíma de Mário de Andrade

Outra marca definitiva do modernismo brasileiro que aponta para esse projeto

de um sentido histórico que supere a marca colonial em suas diferentes dimensões

de dominação foi o livro Macunaíma de Mário de Andrade, escrito em 1928.

Obra que procura expressar a heterogeneidade sociocultural brasileira

através de sua narrativa saturada de linguagem mítica e de elementos das tradições

populares do “Brasil profundo”, Macunaíma narra a saga de um herói que

representaria a natureza mestiça do brasileiro, herói impuro e cortado por inúmeras

contradições. Herói em aberto, inacabado, um anti-herói produzido pelo fluxo de

diferentes realidades sociais e tempos históricos. Como explica Marques:

Tempo, espaço, personagens, vocabulário, tudo é indeterminado, tudo oscila entre o mito e a realidade. Macunaíma é um ser híbrido. Não é adulto nem criança – e foi formado pelo caldeamento das três raças brasileiras: o branco, o índio e o negro. Seu antagonista, o gigante Piamã, também possui uma configuração híbrida, sendo ao mesmo tempo italiano, indígena e sul-americano. Não há nada que escape à indefinição, esse efeito produzido, no plano da linguagem, pela fusão entre os códigos popular e erudito, entre as matrizes folclóricas e as experimentações de vanguarda. Ao longo da narrativa, há uma mistura constante entre o olhar mítico e o enfoque realista, entre o registro cômico e a visão problemática, entre o riso e o desencanto. (MARQUES, s/d)

54.

54

Excerto retirado do texto “Macunaíma e a Organização da Bagunça Nacional”, disponível no sítio <http://www.iiligeorgetown2010.com/2/pdf/Marques.pdf>. Acesso em: 25/02/2014

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Notadamente baseado na obra do etnógrafo alemão Koch-Grumberg, que

escreveu obras importantes sobre os índios da Amazônia e seus mitos, em um claro

ato antropofágico, Mário de Andrade nunca escondeu a utilização dos mitos

descritos no livro Vom Roraima Zum Orinoco (1917), assim como frases inteiras de

outros escritores e estudiosos da época. Para Mário, a saga brasileira descrita em

Macunaíma se caracterizava justamente por essa junção de elementos múltiplos e

distintos entre si, explicitando essa heterogeneidade estrutural da América Latina,

sua capacidade de incorporar e reinventar elementos distintos.

Apresentando diversos traços críticos a uma apreensão positivista da

realidade, o romance se passa em um lugar incerto (os personagens atravessam

grandes distâncias com um só passo) e não segue uma cronologia linear, com

lendas fabulosas e descrições mágico-ilógicas, atravessando a todo tempo o

universo narrativo da sequência dos fatos. A história conta a saga de Macunaíma –

“herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite” – em busca do seu

talismã Muiraquitã, roubado por Piamã, herói comedor de gente que vive em São

Paulo.

O caminho de Macunaíma que nasceu no fundo da mata virgem e vai, de

aventura em aventura, se dirigindo à cidade de São Paulo e sua modernidade é o

trajeto de uma antropofagia transculturadora. Ou seja, é o caminho de devoração do

Outro moderno – e seu lugar hierarquizado no trono da colonialidade do poder –

caminho da gradativa e artesanal assimilação dos valores da modernidade europeia,

deglutição que resulta na modernidade brasileira, modernidade própria, berço

mestiço de inúmeras tradições.

Macunaíma, herói incerto e sem caráter, representa essa abertura essencial

da cultura brasileira, essa incompletude que não forma um caráter no sentido de

uma unidade coesa, é algo sempre cambiante, sempre em relação com o outro,

absorvendo-o em uma colcha de retalhos formada por uma infinidade de influências,

muitas delas contraditórias entre si. Como explica Helena:

Macunaíma é uma alegoria de ruínas de uma cultura híbrida, de uma história escrita a várias mão e várias raças, cujo texto “oficial” foi tantas vezes redigido de um ponto de vista externo, sobre uma ótica europeia [...]. É um texto carnavalizante, enquanto paródia do poder, destronização do homem cordial, do brasileiro doutor – que todo tempo vem questionado no livro. Paródia em que se inscreve a fala

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do “outro”, de tal modo que o mundo surge como algo multifacetado, mutável, no qual se enfatiza a unidade contraditória de todas as coisas, que é sintetizada na alegoria do herói sem nenhum caráter (HELENA, 1983, p. 141).

Essa desconstrução da modernidade europeia a partir de uma ação

transculturadora e de ressignificação dos elementos culturais de distintos lugares só

é possível graças a uma extensa pesquisa de Mário de Andrade sobre o “folclore” e

a cultura brasileira.

Assim, apesar de citar durante todo o livro elementos de diversos países,

brincando com diferentes línguas, costumes europeizados e bens de consumo

internacionais, há uma busca em imprimir ao texto um tom mítico saturado de

elementos africanos, mestiços e, principalmente, indígenas. A saturação de

elementos gráficos e signos que descrevem a fauna, a flora e os costumes de nosso

“Brasil profundo” criam o pano de fundo onde os elementos exógenos são

incorporados a essa “lógica brasileira” e compõem um conjunto onde predomina um

movimento de assimilação do outro, próprio de uma mestiçagem crítica.

Dessa forma, elementos próprios a uma construção de mundo realizada a

partir do Um Como Princípio – costumes afrancesados e a lógica capitalista de

oferecer bens de consumo “modernos” a países como o Brasil – são reelaborados

de maneira a expressarem uma lógica reversa à dominação própria da colonialidade

do poder. Esse recurso de “desconstrução maxilar da tradição” (MACIEL, 1998, p.

225), devoração e reelaboração crítica do outro, fica bastante visível no capítulo

“Carta pras Icamiabas”, onde o herói Macunaíma, já na cidade de São Paulo,

descreve a sua aventura em um escrito endereçado às Icamiabas, mulheres

lendárias da Amazônia. Em uma espécie de etnografia invertida, Macunaíma conta

suas peripécias usando para isso uma linguagem que se pretende formal, mas é,

ironicamente, uma brincadeira com a linguagem culta de Portugal, desconstruída e

satirizada durante todo escrito.

Dessa forma, além de criar uma “história às avessas” onde é o colonizado

que conta a sua história para os seus “parentes” de origem, ele o faz segundo uma

transfiguração da linguagem culta, expressando um jogo de espelhos e uma

complexa codigofagia da língua e dos costumes. Assim, incorporando a escrita

macunaímica, Mário de Andrade descreve o início da aventura do anti-herói em

busca do talismã Muiraquitã:

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Nem cinco sóis eram passados de vós partiríamos, quando a mais temerosa desdita pesou sobre nós. Por uma bela noite dos idos de maio do ano translato, perdíamos a muiraquitã; que outrem grafara muraquitã e, alguns doutos, ciosos de etimologias esdrúxulas, ortografam muyrakitan e até mesmo muraqué-itã, não sorriais! Havei de saber que este vocábulo, tão familiar às vossas trompas de Eustáquio, é quase desconhecido por aqui [...]. Estávamos ainda abatidos por termos perdido a nossa Muiraquitã, em forma de sáurio, quando talvez por algum influxo metapsíquico, ou, qui lo sá, provocado por algum libido saudoso, como explica o sábio tudesco, doutor Sigmundo Freud (lede Fróide), se nos deparou em sonho um arcanjo maravilhoso. Por ele soubemos que o talismã perdido estava nas diletas mãos do doutor Venceslau Pietro Pieta, súdito do Vice-Reinado do Peru, e de origem francamente florentina, como os Cavalcântis de Pernambuco (ANDRADE, 2004, p. 71).

Outro artifício literário filosófico muito utilizado em Macunaíma é o da

descrição do mundo a partir de sua natureza múltipla e metamorfoseante. Assim,

Piaimã, o arque-inimigo gigante de Macunaíma é um ser claramente indígena, mas é

também e ao mesmo tempo, italiano (Pietro Pieta) e peruano (vice-reinado do Peru).

Ou seja, ‘é’ muitos e aparece cada hora sob uma forma diferente, dependendo do

contexto. Essa capacidade que adquire o mundo andradino em Macunaíma é um

desdobramento muito importante para a compreensão da relação da antropofagia

com a modernidade, porque ao mesmo tempo em que abarca a coexistência de

diferentes espaços, proporciona a inter-relação de diferentes tempos históricos –

tempo primitivo, tempo da máquina – e a interpenetração de um no outro, sua

antropofagia, sua transformacionalidade. Dessa forma, a modernidade brasileira é

expressa pela antropormofização da máquina e pela desantropomorfização do

homem. Em outras palavras, a máquina vira bicho-gente e o homem vira coisa do

mundo. Nesse exercício de paridade, tudo se assemelha e ganha convívio em um

mesmo plano; o plano da realidade brasileira regida pela antropofagia que se

reatualiza no início do séc. XX e a sua promessa de modernidade: se a modernidade

europeia traz ao mundo humano a máquina, na modernidade brasileira essa

equação deve contar com o mundo mítico próprio à vida “primitiva”, tradicional do

Brasil. Explica Figueiredo:

No livro, automóvel é automóvel e onça, Maanape é homem e telefone, Naipi é índio e cascata, Capei é lua e serpente –dragão. Oibê é minhocão, lobisomem, cachorro-do-mato, borboleta azul e homem [...], os edifícios são malocas, os elevadores saguis, o ruído urbano ruído orgânico, as chaminés boitatás e assim por diante. Quando deixa a cidade, Macunaíma faz um caborje e a transforma

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em um bicho preguiça de pedra [...]. As metamorfoses constantes e cumulação de concreto são como as lavouras de subsistência amplamente cultivadas para garantir a acumulação no novo sistema produtivo instaurado a partir da Revolução de 1930 (FIGUEIREDO, 2006, p. 7).

Nesse contexto social da modernidade, tempo saturado de diferentes

linguagens, tempos, dimensões e lógicas, é que Mário da Andrade explora ao

extremo, desenhando de forma exemplar a noção de totalidade contraditória e

heterogênea própria da cultura latino-americana (POLAR, 2000) e que encontra

bastante convergência com a noção de totalidade histórico-social de Quijano.

Essa similaridade com trabalhos realizados por estudiosos do continente

como um todo certamente não foi à toa. Processo que se iniciava por todo

continente e que deu origem ao chamado regionalismo, a modernidade própria ao

continente não passou invisível a Mário de Andrade. Ao se dedicar à construção da

ideia de modernidade brasileira, Andrade não se perde em uma noção endógena de

cultura brasileira. Nas linhas de Macunaíma, diversas vezes são citados os Andes,

as Guianas e outras regiões da América como forma de extrapolar o território

brasileiro e a noção de fronteira nacional. Ao descrever o seu exercício literário em

Macunaíma, Mário de Andrade adverte sobre esse caráter “não brasileiro” de seu

anti-herói:

O próprio herói do livro, que tirei do alemão Koch Grumberg, nem se pode falar que é do Brasil. É tão ou mais venezuelano como da gente e desconhece a estupidez dos limites para parar na terra dos ingleses como ele chama a Guiana Inglesa. Essa circunstância de o herói do livro não ser absolutamente brasileiro me agrada como o quê (ANDRADE apud CASTELLO, 1974, p. 84).

Nesse sentido, pode-se afirmar que o escritor brasileiro explicita em seu

romance – ele preferia o termo rapsódia – uma polaridade fundamental da dialética

dos extremos própria da literatura americana do séc. XX e do ethos barroco da

América Latina. Ao mesmo tempo em que é uma busca no descobrimento de uma

tradição, no sentido de um conjunto de elementos que delineiem uma constelação

de memórias próprias, também é uma formulação regida por uma lógica que aponta

para uma modernidade no sentido de uma universalidade. Essa universalidade,

porém, no caso do pensamento crítico latino-americano, se apresenta como uma

modernidade alternativa ou como uma universalidade alternativa à universalidade

própria do logos eurocêntrico.

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Embora não tenha se dedicado a um esforço de síntese entre o socialismo, as

vanguardas e a realidade latino-americana como fez Mariátegui, Mário de Andrade

apresentou uma sensibilidade afinada com uma perspectiva de conhecimento

convergente ao universo latino-americano. Nesse sentido, apresentou na inovação

de sua literatura e na dedicação em descobrir um Brasil para além dos valores e

signos eurocêntricos, uma episteme própria onde não está ausente o princípio

ideológico.

Mesmo não tendo focado na política institucional do projeto revolucionário que

animava militantes políticos da época, a ampla abertura de seu pensamento e a

liberdade com que vislumbrou não somente a cultura brasileira, mas a cultura

humana, o define como um dos grandes pensadores da mestiçagem enquanto uma

estética que supere o mundo regido pelo padrão eurocêntrico.

No trecho final de Macunaíma, Mário explicita essa capacidade de síntese e

de proposição de um novo universalismo. Macunaíma, o anti-herói brasileiro, se

transmuta em saci – símbolo nacional da mestiçagem brasileira – e em constelação,

simbolizando a distância mítica e, ao mesmo tempo, o jogo de transmutações e

espelhos transculturais entre Europa e folclore brasileiro, lógica e magia, imanência

e transcendência, tensão fundamental que funda nossa dupla consciência histórica

latino-americana e a construção de uma totalidade heterogênea que apontam para

um novo universalismo, ele escreve:

Dizem que um professor naturalmente alemão andou falando por aí por causa da perna só da ursa maior que ela é o saci... Não é não! Saci inda para neste mundo espalhando fogueira e trançando crina de bagual... A Ursa maior é Macunaíma. É mesmo o herói capenga que de tanto penar na terra sem saúde e com muita saúva, se aborreceu de tudo, foi-se embora e banza solitário no campo vasto do céu (ANDRADE, 2004, p. 71).

No final do romance, uma etnografia realizada por um alemão, um ser

encantado, uma constelação e o personagem símbolo do Brasil se combinam e se

transformam em um caleidoscópio de imagens que atravessam terra e céu, mito e

ciência. Macunaíma é o herói sem caráter definido e que define, por isso mesmo, a

complexidade do movimento identitário próprio da dupla consciência histórica latino-

americana, sua tensão e transformacionalidade.

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O realismo maravilhoso

Assim como o neo-indigenismo de Arguedas e a antropofagia dos brasileiros

Mário e Oswald de Andrade, outro caminho literário-político próprio do continente

que explicita a dupla consciência histórica latino-americana é o realismo

maravilhoso. Cunhado por Alejo Carpentier, o termo realismo maravilhoso designa

toda uma corrente literária do continente na qual se destacam, para além de

Carpentier, os argentinos Julio Cortázar e Jorge Luis Borges, o brasileiro Murilo

Rubião, o mexicano Juan Rulfo e o colombiano Gabriel García Márquez.

Filho de uma professora russa e de um arquiteto francês, a vida de Alejo

Carpentier (1904-1980) pode ser considerada uma verdadeira viagem “entre

mundos”, onde a dialética dos extremos, mais que investigação filosófica, foi a

própria matéria forjadora da vida. Nascido na Suíça, Carpentier mudou-se com os

pais ainda na primeira infância para Cuba, onde conviveu com campesinos negros,

brancos e mestiços. Essa forte convivência entre a cultura europeia e o mundo

camponês cubano, assim como a vida na Havana moderna, teriam influências

marcantes na busca literária de Carpentier, justamente pela criação em busca de

elucidar esses atravessamentos culturais e o seu lugar na história da humanidade.

Em 1928, quando já era um músico pesquisador e jornalista militante, muda-

se para Paris devido às atividades políticas que exercia contra o governo do ditador

Machado. Em Paris, colabora com movimentos artístico-musicais, onde conhece e

se aproxima do músico Heitor Villa-Lobos, mas o principal movimento político-

artístico em que o escritor se envolve na França é o surrealismo.

Liderado por André Breton e outros poetas como Louis Aragon e Tristán

Tzara, além do pintor Pablo Picasso, o surrealismo exerce forte influência em

Carpentier, que participa da revista do movimento e se envolve profundamente em

suas ações e propostas artísticas. Em 1933, publica o seu primeiro romance Ecu-

Yamba Ô. Sobre o seu tempo de vida na França, diz Carpentier:

“A França me ensinou a ver texturas, aspectos da vida americana que eu não havia

compreendido. Compreendi que por detrás desse nativismo havia algo mais, um

contexto telúrico e um contexto épico-político” (CHIAMPI, 1980, p. 139). A essa

união entre o telúrico e o político, Carpentier dedica sua vida de escritor.

De volta à Cuba em 1939, onde vive até 1945, Carpentier realiza viagens

importantes ao Haiti e ao México, de onde vem a inspiração e o acontecimento

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histórico do romance O Reino deste Mundo, considerado uma de suas obras-primas

e o romance fundante do realismo maravilhoso.

Entre 1945 e 1959, o escritor vive um autoexílio na Venezuela e escreve Os

Passos Perdidos (1952) e Século das Luzes (1956), onde temas aparentemente

distantes, como a América “profunda” da selva amazônica venezuelana, a

Revolução Haitiana e a Revolução Francesa se entrelaçam na tentativa de desenhar

o percurso identitário americano, seu rio de inúmeras fontes.

Retorna a Cuba em 1959, após a Revolução, onde permanece até 1966.

Nesse período, exerce importantes cargos na Imprensa do Estado e em outras

comissões de cultura, sendo um importante elemento para a implementação e

execução do regime socialista cubano. Publica o livro A Consagração da Primavera,

onde faz um balaço literário da Revolução Cubana. Indicado como embaixador

cubano na França em 1966, vive em Paris até a sua morte, em 1980.

A primeira referência ao realismo maravilhoso aparece em 1948, em um

artigo publicado como o prólogo da obra O Reino deste Mundo, onde Carpentier

procura apresentar a sua proposta literário-filosófica. Seguindo a dialética dos

extremos, própria da dupla consciência latino-americana, o escritor defende que o

tema retratado no livro – a Revolução do Haiti – é um exemplo do realismo

maravilhoso latino-americano.

Na obra O Reino deste Mundo, o universo afro-haitiano – culto aos loas

africanos, ao vodu e aos poderes sobrenaturais de transformação de homens em

animais – dialoga, se tensiona e se amestiça com elementos eurocêntricos da Igreja

Católica, de costumes absolutistas e valores da Revolução Francesa. Essa

capacidade de abarcar elementos tão distintos em uma mesma totalidade e

problematizar o processo histórico da América a partir da existência e do

imbricamento dessas diversas memórias, culturas e perspectivas de conhecimento é

o principal traço do realismo maravilhoso – cujo próprio nome já evidencia a sua

dialética dos extremos – e de sua perspectiva de conhecimento e racionalidade,

como explica Chiampi:

[... O real maravilhoso] é a união de elementos díspares, procedentes de culturas heterogêneas, configura uma nova realidade histórica que subverte os padrões de racionalidade ocidental. Essa expressão associada amiúde ao realismo mágico hispano-americano foi cunhada pelo escritor para designar, não as fantasias ou invenções

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do narrador, mas o conjunto de objetos e eventos que singularizam a América no contexto ocidental (CHIAMPI, 1980, p. 32).

Ou seja, segundo Carpentier, a América se caracterizaria pela coexistência

em um mesmo plano, de heterogêneas realidades ou, melhor ainda, de diferentes

concepções de realidade. Influenciado pela sua experiência entre os surrealistas da

Europa e seguindo um caminho parecido com aquele traçado por Mariátegui,

Carpentier percebe na América o espaço privilegiado de uma tradição heterodoxa,

de um conjunto de memórias históricas em constante desconstrução e reconstrução,

codigofagias entre diferentes tempos históricos que se combinam, se tensionam, se

incorporam um ao outro, realizando assim a realidade mestiça própria ao continente.

A proposição do realismo maravilhoso se configura como uma tentativa de

explicitar o lugar mito-histórico da América. Seguidor confesso de Eugeni D’Ors, que

defendia o barroco como uma “constante humana”, Carpentier afirmava que o

território americano era um acontecimento grandioso do barroco enquanto sentido

próprio de humanização, de realização do destino humano. Porém, essa busca por

encontrar o sentido próprio da América, por estabelecer um lugar americano que

estivesse livre das amarras colonizadoras e eurocêntricas, não significou uma

proposição mecânica de separação da América em um isolamento essencializado.

um como princípio. Assim como fez Mariátegui, que seguia a estrela de um

socialismo indo-americano, ou seja, uma formulação que não negasse o percurso

histórico do chamado mundo ocidental, Carpentier realiza sua proposta de realismo

maravilhoso – “crônica da América inteira” – como um espaço entre mundos; espaço

este que combina elementos socioculturais de diferentes lugares e tempos

históricos. Porém, realiza isso a partir de um eixo, de uma centralidade americana.

Em uma história pessoal que guarda muitas semelhanças com o percurso de

Mariátegui, Carpentier descobre a especificidade e a “maravilhosidade” próprias da

América depois de seu retorno à França, onde se nutriu do “espelho de maravilhas”

do surrealismo francês, mas onde também testemunhou e sentiu suas limitações.

Como explica o escritor:

O meu esforço surrealista me pareceu uma tarefa vã. Eu não ia acrescentar nada àquele movimento. Tive uma reação contrária, senti ardentemente uma vontade de expressar o mundo americano. Ainda não sabia como. Me alentava o difícil da tarefa pelo desconhecimento das essências americanas. Me dediquei vários anos a ler tudo o que eu podia sobre a América, desde as cartas de Cristóvão Colombo,

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passando pelo inca Garcilaso, até os autores do século dezoito [...]. Creio que ao final de alguns anos tive alguma ideia do que era esse continente (CHIAMPI, 1980, p. 32).

Além de estar intimamente ligada à expressão de uma filosofia intercultural

própria da América em sua heterogeneidade histórico-cultural, a perspectiva de

conhecimento própria ao realismo maravilhoso também nos remete à duplicidade

fundamental entre logos e mithos, entre o racional e o irracional, apontando assim,

para uma dialética dos extremos já em sua formulação. Enquanto a palavra realismo

nos remete diretamente ao mundo racionalizado e positivista do cientificismo

eurocêntrico em sua busca por esquadrinhar o real, o termo maravilhoso indica

justamente seu extremo oposto direto, caracterizando assim, já em seu léxico

original, um confronto com a razão metafísica.

Componente universal de todas as épocas e culturas, no mundo grego o

maravilhoso já aparece nas epopeias, onde animais e monstros mitológicos passam

a ser separados e substituídos por deuses antropomórficos, à “imagem e

semelhança” dos homens. Fruto dessa divisão, a ideia do maravilhoso surge

enquanto aquilo que espanta, que causa surpresa e admiração.

Segundo Aristóteles em sua Poética, o termo maravilhoso designa o

irracional, a realização do absurdo e do impossível no interior da trama da vida. Essa

noção do maravilhoso no cotidiano, como aquilo que serve de contrapeso à

banalidade regular da repetição, encontrará continuidade durante toda a Idade

Média, aonde o maravilhoso se apresentará como ruptura à grande instituição

reguladora da época, a Igreja. É nesse sentido de tensão e ruptura que o

maravilhoso torna-se o lócus do milagre, da magia, dos poderes do corpo e do

sobrenatural. Já no mundo moderno cartesiano, enquanto a razão regida pelo logos

vai se tornando o espaço da ordem natural, o maravilhoso se torna representante do

irracional, do mitopético, do inconsciente e do primitivo. Ou seja, tudo aquilo que se

contrapõe à razão ocidental eurocêntrica. É essa a concepção de maravilhoso que

está por detrás das palavras de Breton, que acusa a razão eurocêntrica de ódio ao

maravilhoso e defende a “resolução futura destes dois estados tão contraditórios na

aparência, o sonho e a realidade em uma espécie de realidade absoluta, de

surrealidade” (BRETON, 1985, p. 45). Para Breton, há um lugar de fusão, um

espaço reservado ao Grande Mistério, onde não existe mais lugar para as

contradições “quando leva a crer que há um determinado ponto do espírito donde a

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vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o

incomunicável, o alto e o baixo, deixam de ser apreendidos contraditoriamente”

(BRETON, 2002, p.153).

Essa atitude extrema, esse lugar onde real e imaginário deixariam de estar

cindidos por uma espécie de engolfamento do linear pela lógica onírica, também

está presente na definição de maravilhoso de Carpentier:

O maravilhoso começa a sê-lo de maneira inequívoca quando surge de uma inesperada alteração da realidade (o milagre), de uma revelação privilegiada da realidade, de uma iluminação não habitual ou particularmente favorecedora de desconhecidas riquezas da realidade. Percebidas com especial intensidade em virtude de uma exaltação do espírito que o conduz a uma espécie de estado-limite. Para começar, a sensação do maravilhoso pressupõe uma fé (CARPENTIER, 1987, p. 140).

Porém, o universo do maravilhoso em Carpentier traz uma importante

novidade em relação ao maravilhoso europeu. Assim como na experiência do

barroco americano, onde o confronto entre mundos tão distintos produziu um

barroco “mais extremo” e “mais contraditório” que o barroco europeu; no caso do

maravilhoso, o espaço gnóstico americano propiciou o surgimento de um

maravilhoso ainda mais intenso que o maravilhoso surrealista europeu.

O que Carpentier propõe, assim como foi feito com o barroco e com o

socialismo no caso de Mariátegui, é “trazer certas verdades europeias às nossas

latitudes, agindo na direção oposta” (PRATT, 2009, p. 27). Se, para os europeus, o

maravilhoso é fruto da força da imaginação e da dimensão poética, se ele é voo de

criação conseguido através de exercícios de liberação inconsciente; para Carpentier,

o maravilhoso é a própria realidade da América, tanto intersubjetiva (pressupõe uma

fé, uma vontade), quanto objetiva (revelação da realidade), caracterizando assim,

uma realidade maravilhosa.

Embora os surrealistas europeus demonstrassem franca admiração e fascínio

pelo universo místico, de forte mescla de culturas e pela natureza exuberante da

América, para Carpentier o horizonte eurocêntrico desses artistas limitava o alcance

de suas propostas. O real maravilhoso seria assim, um traço fundamental, uma

condição especial da América. Escrevendo sobre a viagem que inspirou o romance

O Reino deste Mundo, ele afirma:

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Isso se tornou especialmente evidente para mim em minha permanência no Haiti, ao estar em contato cotidiano com algumas coisas que poderíamos chamar de real maravilhoso. [...] A cada passo encontrava o real maravilhoso. Mas pensava que essa presença e vigência do real maravilhoso não era privilégio exclusivo do Haiti, mas sim patrimônio da América inteira, onde ainda não se chegou a estabelecer, por exemplo, um inventário de cosmogonias. O real maravilhoso se inscreve em cada passo dos homens que inscreveram datas na história do continente (CARPENTIER, 1987, p.141).

Essa diferenciação realizada por Carpentier entre o mundo europeu e o

mundo americano fica bastante evidente durante todo o prólogo de O Reino deste

Mundo, no qual o escritor vai enumerando criticamente diversas “atitudes” do

surrealismo que são uma tentativa artificial de produzir algo que na América estaria

presente sem necessitar de exercícios de imaginação. Para Carpentier, o

surrealismo é alcançado “com truques de prestidigitação” que acabam por produzir

“burocratas” que aprenderam a seguir “códigos do fantástico”. A essa “pobreza

imaginativa”, truque literário repetitivo que faz dos surrealistas “violadores de

cadáveres de formosas mulheres recém-mortas”, o escritor compara à realidade

haitiana, aos “sinais mágicos da meseta Central” e “os tambores de Rada”. Ou seja,

enquanto a obra europeia se realizava segundo truques de repetições mentais,

artifícios psicológicos e manuseio de imagens inverossímeis; na geografia e cultura

da América estaria o maravilhoso em estado bruto, sem a necessária abstração

artística para encontrá-lo. Se, na Europa da psicanálise e da admiração pelo mundo

primitivo surgia o surrealismo, defendendo essas fontes como via revolucionária, na

América, o próprio real, a própria história era a expressão dessas “forças”

indomáveis que alimentam a dimensão maravilhosa:

Acontece que, pela virgindade da paisagem, pela formação, pela ontologia, pela presença faústica do índio e do negro, pela revelação que constitui sua recente descoberta, pelas fecundas mestiçagens que propiciou, a América está longe de ter esgotado seu caudal de mitologias. Mas o que é a crônica da América inteira senão uma crônica do real maravilhoso? (CARPENTIER, 1987, p. 142).

Esse espelhamento que divide o mundo americano e o mundo europeu no

famoso Prólogo ganhará muitos matizes e profundidades durante a obra que ele

anuncia nos seus subsequentes livros. Considerada sua obra-prima, O Reino deste

Mundo é um relato histórico que preserva datas, fatos históricos, personagens reais

e busca explicitar esse maravilhoso presente na realidade “objetiva” do continente, e

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não um exercício artístico de vanguarda. Se o exercício de uma divisão mecânica

entre o mundo europeu e o mundo americano caracteriza o Prólogo, o próprio

enredo do livro expressa a consciência de um processo histórico de incorporação,

codigofagias e jogo de espelhos muito mais heterogêneo e complexo que o tom de

manifesto contido no Prólogo.

O Reino deste Mundo, publicado em 1949, inaugura o chamado romance

histórico-crítico latino-americano, onde uma dada realidade histórica é contada a

partir da ótica daquele que foi invisibilizado, da ótica do vencido, do interdito. Nesse

sentido, a cultura, a religiosidade, a expressão oral dos povos e dos sujeitos

narradores participam da narrativa, assim como a sua interpretação de fatos

históricos conhecidos apenas em suas versões “oficiais”, contadas pelos vencedores

e a partir de uma racionalidade eurocêntrica.

O romance histórico-crítico surge assim, como uma forma de reinterpretar o

passado e construir uma história saturada de multitemporalidades e de

atravessamento de memórias e registros, mais compatível com a heterogênea

realidade latino-americana.

O reino deste mundo

O romance O reino deste mundo conta a história da Revolução Haitiana,

única revolução de independência da América protagonizada por negros

escravizados. Em uma linguagem permeada pela oralidade haitiana, Carpentier

explicita o modo de vida e a perspectiva do povo negro haitiano em uma narrativa

que descreve todos os acontecimentos históricos, combinando uma descrição linear

dos fatos ao universo mítico e religioso do vodun, religião própria de matriz afro-

haitiana, muito presente na população negra do país.

Essa sobreposição de mundos e de perspectivas sobre os acontecimentos

históricos fica clara através do personagem Mackandal, líder quilombola da

resistência à escravidão, conhecido por seus poderes proféticos e mágicos.

Mackandal, que perdeu seu braço em uma moenda de cana, é descrito como um

sábio feiticeiro – mandinga – capaz de feitos miraculosos. Após envenenar boa parte

das águas e dos animais de sua região por vingança contra os seus opressores,

Mackandal desaparece sem deixar rastros.

Interessante notar que o próprio envenenamento é uma ação que mescla

feitiço e ciência, já que ele descobre o veneno por meio de experimentos com

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plantas e consegue espalhá-lo de maneira misteriosa por toda uma região de

fazendas. Dessa forma, Mackandal, “meio” líder inteligente e até cientista, “meio”

feiticeiro e mágico, é perseguido por meses sem ser achado. A explicação para tal

feito explicita a entrada do maravilhoso na história real da Independência do Haiti.

Escreve Carpentier:

Todos sabiam que o lagarto verde, a mariposa noturna, o cachorro desconhecido e o incrível pelicano não eram senão simples disfarces. Dotado do poder de transformar-se em animal de casco, ave ou peixe, Mackandal visitava constantemente as fazendas da Planície [...]. Um dia, daria o sinal para a grande revolta e os Senhores do Além, tendo à frente Danballah, o Amo das Estradas e Ogum das Armas trariam o raio e o ciclone para desencadear o ciclone que completaria a obra dos homens (CARPENTIER, 1987, p. 23).

A grande revolta é uma grande rebelião liderada por Mackandal entre 1751 e

1757. Utilizando da tradição religiosa do vodun, Mackandal conseguiu unificar a

resistência negra à escravidão em uma rede de organizações secretas. Brancos,

negros e mestiços lutaram entre si em busca do controle da ilha e da produção de

açúcar, a mais importante de toda a América. Capturado em 1758, o corpo de

Mackandal é queimado em praça pública pelos fazendeiros. Este episódio, narrado

do ponto de vista dos escravos, ganha outra interpretação. Se, do ponto de vista

“oficial”, Mackandal foi queimado vivo, sob a ótica do vodun, o episódio comprovou

mais uma vez o poder de transmutação do feiticeiro, que escapa e desaparece:

O fogo começou a subir até o maneta, chamuscando-lhe as pernas. Nesse momento, Mackandal agitou o coto, que não tinham podido amarrar, num gesto ameaçador, que nem por minguado era menos terrível, urrando desconjuros desconhecidos e jogando o torso violentamente para frente. As cordas caíram e o corpo do negro se esticou no ar, voando sobre as cabeças. Antes de mergulhar nas ondas do mar negro de escravos, um só grito ressoou na praça: “Mackandal, sauvé” (CARPENTIER, 1987, p. 31).

Apesar de Carpentier descrever logo depois a morte por imolação de

Makandal, ele insinua o seu renascimento em um filho gerado na mesma noite entre

seu discípulo Ti Noel e uma escrava. Também comenta a ignorância dos franceses

sobre os ritos voduns, tomados como sentimentos animalescos de raças inferiores.

Toda essa incerteza que atravessa um jogo de espelhos e mundos que se

contrastam e se interpenetram, participa da narrativa do cubano que explicita como

a história americana é saturada de contradições e múltiplos olhares, afastando a

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possibilidade de uma interpretação eurocêntrica única que seja fidedigna e indica um

jogo de forças que forma uma totalidade histórico-social aberta e em movimento,

deixando sempre em suspenso a possibilidade do desvendamento total e

encerramento.

Juntamente com a resistência negra à escravidão, outro acontecimento

determinante para o processo de independência do Haiti foi a Revolução Francesa.

Insatisfeitos com a série de restrições impostas pela Coroa Francesa ao seu

comércio, os comerciantes brancos de São Domingos – atual Haiti – passam a se

organizar para conseguir a independência, respaldados pela Declaração de Direito

do Homem e do Cidadão, de 1789.

A partir de então, motivados pelas notícias que chegavam da França, os

escravos passaram a se organizar para uma nova rebelião, ocorrida em 1791 e,

novamente liderada por importantes lideranças do vodun (Dutty Bouckman e

Toussant Loverture). Os ex-escravos, após inúmeras batalhas contra britânicos,

espanhóis e franceses, conquistam a independência no último dia de 1803, quando

é lida a Carta de Independência do Haiti.

Descrevendo os momentos finais dessas batalhas, Carpentier usa novamente

o mundo mítico africano para dar sentido aos fatos narrados. Em um combate entre

o vodun e a “Deusa Razão”, Carpentier narra a derrota da razão a partir da entrada

dos Padres da Savana, religiosos mestiços que passaram a realizar suas crenças

antes proibidas. Mais do que uma guerra mecânica entre certezas, Carpentier

mostra como o mundo escravo e a Revolução Francesa se copertencem na criação

de uma lógica mestiça própria ao mundo americano. Descrevendo todo o processo

de mestiçagem que permeia o episódio político-religioso, Carpentier constrói uma

série de metáforas que explicitam a especificidade do tempo histórico americano:

Os Grandes Loas favoreciam agora as armas dos negros. Ganhavam as batalhas quem tivesse deuses guerreiros para invocar, Ogum Badagri guiava a carga de arma branca contra as últimas trincheiras da Deusa Razão. [...] Foi quando apareceram na Planície aqueles sacerdotes negros, sem tonsura ou ordenação eclesiástica, chamados padres da Savana [...]. Para rezar em Latim junto à enxerga de um agonizante eram tão sábios quanto os padres franceses. E eram entendidos melhor porque quando recitavam o Padre-nosso ou a Ave-Maria sabiam dar ao texto inflexões semelhantes àquelas de outros hinos que todos conheciam (CARPENTIER, 1987, p. 64).

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O Reino deste Mundo, cujo título faz clara referência ao termo “reino do outro

mundo”, estabelece uma nova possibilidade da novela latino-americana, abrindo as

portas da literatura para o mundo “sobrenatural”, ou melhor, um outro mundo natural,

que engloba (ou devora?) a Deusa Razão e se enraíza na perspectiva dos povos

escravizados no Caribe.

Seguindo Mariátegui, Arguedas e os brasileiros do modernismo, Carpentier

busca expressar uma outra modernidade americana, onde a heterogeneidade

histórica e de memórias funda um labirinto de perspectivas de conhecimento. É

justamente esse labirinto sem definição certa, miríade antropofágica, que escapa à

lógica da colonialidade do poder, Um Como Princípio. Categorizada também como

neobarroca, a escritura de Carpentier aponta para essa lógica multicultural mestiça,

própria à tradição americana e estabelecida no entre, no copertencimento entre

diversas matrizes e pontos de vista.

Porém, assim como Mariátegui, Carpentier é bastante seguro quanto ao

sentido ideológico dessa mestiçagem. Participante e defensor, até a sua morte, da

Revolução Cubana, a mestiçagem para Carpentier é, sobretudo, fonte para a ação

revolucionária. Mestiçagem crítica – Dois Como Totalidade –, é pela lógica mestiça

realizada pelos escravos em sua resistência que o poder colonial sucumbe.

Carpentier aponta, com o Reino deste Mundo, um novo horizonte para a dupla

consciência histórica latino-americana. Mais que resistência, ela é espaço de

anunciação e concretização de uma realidade emancipada, um modo de vida

alternativo à realidade opressora própria à colonialidade do poder.

Para além de uma manifestação do mítico, do sobrenatural, do insólito e da

natureza dadivosa, o realismo maravilhoso se constituiu como um caminho político

determinado, um espaço de militância e investigação sobre a história do povo latino-

americano e sua busca por libertação. Nesse sentido, a obra de Carpentier anunciou

toda a leitura crítica sobre a América Latina realizada pós-Revolução Cubana.

Participante direto do processo revolucionário cubano, o escritor reconhecia

na revolução socialista a possibilidade mais profícua da realização do realismo

maravilhoso. Da Revolução em diante, mais do que resistência, se abriu a

possibilidade da concretização de um novo horizonte histórico para o continente.

Alimentada por toda a tradição do ethos barroco em sua entrada como mestiçagem

crítica, o continente passa a se guiar pela real possibilidade de revolucionar a

realidade social dos povos ou, no dizer dos movimentos indígenas da Bolívia e Peru,

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de virar o mundo de cabeça para baixo. Mundo às avessas, onde a lógica do

oprimido, lógica da bricolagem como resistência incorpora o mundo regido pela

Deusa Razão e seu projeto colonial-mercantil-capitalista.

Nesse processo, dois termos se confundem e se entrelaçam na tentativa de

delinear essa especificidade latino-americana na busca de sua emancipação, dessa

subversão em sua dupla consciência histórica. Se, pelo realismo maravilhoso o

continente conhece uma proposta estética revolucionária, é através da Libertação e

da Descolonização, principalmente após a Revolução Cubana, que a especificidade

sociopolítica do mundo latino-americano se realiza.

Categorias que estão imbricadas nas lutas sociais do continente durante todo

o século XX, o horizonte da libertação dos povos e sua descolonização são a

expressão contemporânea dessa tensão que atravessa os séculos de história do

continente em sua dupla consciência histórica. Guerra originária que funda a

modernidade capitalista e onde nasce também, sua escura pedra solar, a

possibilidade de uma outra modernidade.

2. POR UMA FILOSOFIA LATINO-AMERICANA

O latino-americanismo

O pensamento sociocrítico latino-americanista, ou seja, o pensamento que

busca delinear uma contraposição ao mundo colonial-mercantil-capitalista a partir de

uma identidade própria ao continente latino-americano é muito presente na América

Hispânica. Apesar de se fazer presente também no Brasil55, essa busca pela

singularidade da América, pelo seu lugar diante do mundo eurocêntrico, ocupou de

maneira especial os hispano-americanos. Como afirma Chiampi:

A indagação sobre o que é a América tem sido, sistematicamente, a força propulsora e profundamente vitalista do pensamento hispano-americano. Para esse núcleo ontológico irredutível das teses

55

Exemplo dessa reflexão realizada em solo brasileiro é a obra de Manuel Bonfim intitulada A América Latina: Males de Origem, na qual o autor se opõe radicalmente ao pensamento racial-positivista da época e propõe medidas sociopolíticas como modo de combater a miséria. A já citada Marcha das Utopias de Oswald de Andrade e, de algum modo, todo o modernismo antropofágico brasileiro também propõem reflexões continentais acerca da cultura americana e seu eurocentrismo. Darcy Ribeiro em sua antropologia sobre o processo civilizatório, bem como Roberto Cardoso de Oliveira e Eduardo Galvão, também desenvolvem uma teoria antropológica que, inspirada no indigenismo mexicano, propõe, mesmo que indiretamente, reflexões e categorias de fundo americanista.

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americanistas converge todo o interesse pela difusão e penetração das ideologias na América hispânica [...]. Não encontraremos na reflexão norte-americana, nem na brasileira, a veemência, e até obsessão, com que hispano-americanos têm sentido a necessidade de definir sua cultura no contexto ocidental (CHIAMPI, 2008, p. 96).

Uma das consequências dessa atitude interrogativa constante em relação à

própria especificidade gerou uma série de reflexões de caráter filosófico. Diante da

“angústia mestiça” do americano, um dos caminhos tomados pela intelligentsia

latino-americana foi a investigação sobre os fundamentos do ser americano, sobre a

ontologia do continente a partir de seu percurso histórico e suas expressões

socioculturais.

Originário das lutas de independência do continente, o chamado pensamento

latino-americanista surge no final do séc. XVII. Apesar de conhecer inúmeras

revoltas durante seus três primeiros séculos, é somente com Simon Bolívar (1783-

1830) – líder militar e político que lutou pela independência de diversos países e

defendeu a ideia da América Latina como uma grande e unificada potência –, que se

inicia o movimento sobre um pensamento propriamente continental. Chamado de El

Libertador, em contraposição à alcunha de El Conquistador dado ao colonizador

Cortés, Bolívar é o responsável pela realização do Congresso do Panamá (1826),

primeira das Conferências Pan-americanas que ocorreriam até 1954, tornando-se

assim, o idealizador do Pan-americanismo – ideário que defendia a criação de uma

grande federação de nações livres e independentes, unidas pelos mesmos

princípios, leis e interesses de independência e soberania.

A noção de um povo unificado e original era uma das principais inspirações

de Bolívar. Para o líder, a América Latina guardava uma identidade própria, advinda

das múltiplas origens de seus povos constituintes, o que daria aos latino-americanos

o contraditório lugar de encontro pela dessemelhança. Em suas palavras:

É impossível atribuir com propriedade a que família humana pertencemos. A maior parte dos indígenas foi aniquilada, o europeu se misturou com o americano e com o africano e este se misturou com o índio e com o europeu. Nascidos todos do seio de uma mesma mãe, nossos pais, diferentes na origem e no sangue, são estrangeiros e todos diferem visivelmente na epiderme: essa dessemelhança nos impôs uma obrigação de maior transcendência (BOLÍVAR, 1995, p. 439).

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Outro grandioso líder que defendeu a formação de uma grande unidade de

nações no mundo ibero-americano foi o cubano José Martí (1853-1895).

Considerado o grande herói da independência de Cuba, Martí foi o criador do

Partido Revolucionário Cubano e o continuador do legado bolivarista. Como

imagem-síntese dos ideais políticos que defendeu, cunhou a expressão Nuestra

América, que é também o título de seu escrito mais conhecido, onde defende que os

oprimidos – dotados de uma “razão campestre”, natural – se levantem contra o

poder de três séculos de colonização que resultou em uma república controlada

pelos opressores com a sua “razão universitária”, artificial. A culminância desse

processo libertador seria uma “América nova”, formada pela síntese dos povos

constituintes do continente. Guiado por dois eixos centrais, o latino-americanismo e

o anti-imperialismo, Martí buscou alcançar um pensamento que delineasse o latino-

americano de maneira diferenciada dos colonizadores europeus e dos imperialistas

estadunidenses, que se expandiam ferozmente no período de sua atuação política.

Para Martí, o continente americano seria assim formado por “Duas Américas” que,

mais do que dois territórios, seriam dois espíritos, dois modos de vida que dividiam o

continente e diferenciavam o latino-americano “autêntico” tanto do europeu e seus

descendentes, como dos estadunidenses.

A particularidade do latino-americano em relação aos europeus colonizadores

e seus descendentes diretos, os criollos exóticos, seria a existência do “mestiço

autóctone”, fruto da “mistura de povos” e essência da “alma continental” da “América

trabalhadora”. Grupos com interesses antagônicos, criollos e mestiços representam

a divisão entre opressores e oprimidos no interior da América hispânica. Em uma

esclarecedora passagem onde relaciona a libertação do povo latino-americano à sua

autenticidade enquanto povo mestiço, escreve Martí:

Tendo sido interrompido pela conquista, a obra natural e majestosa da civilização americana, criou-se, com a chegada dos europeus, um povo estranho; não espanhol, porque a seiva nova rechaça o corpo velho; não indígena, devido à ingerência de uma civilização devastadora; duas palavras que sendo antagônicas, constituem um processo; criou-se um povo mestiço na forma que, com a reconquista de sua liberdade, desenvolve e restaura sua alma própria. (MARTÍ in RODRIGUEZ, 2006, p. 41).

Outro aspecto fundamental na obra de Martí é a diferenciação dos latino-

americanos em relação ao povo estadunidense. Expoente da nova época que a

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humanidade ingressava, os Estados Unidos viviam um prodigioso desenvolvimento

industrial e científico, irmãos de sangue do mercantilismo competitivo que também

evoluía vigorosamente nas terras norte-americanas. Martí refutava essa sanha

mercantil dos Estados Unidos e opunha a ela uma espiritualidade ética que,

segundo ele, seria própria aos latino-americanos. Em sua interpretação, os latino-

americanos seriam menos individualistas e pragmáticos, se deixando levar mais pelo

sentimento e pela originalidade do universo mestiço:

Os norte-americanos submetem o sentimento à utilidade. Nós submetemos a utilidade ao sentimento [...]. A sensibilidade, entre nós, é muito grande. A sensibilidade é menos positiva, os sentimentos são mais puros; como, com leis iguais, vamos ordenar dois povos diferentes? (MARTÍ, 2006, s/p).

Essa diferenciação entre os dois espíritos formadores das “Duas Américas” é

também o tema central da obra Ariel, escrita pelo uruguaio José Henrique Rodó, em

1900. Inspirado na obra A Tempestade de Shakespeare56, Rodó buscou criar um

programa cultural latino-americano para o século que nascia. Diante da expansão

dos Estados Unidos e do êxito de seus valores pragmáticos e materialistas, Rodó

defendia que a América Latina deveria cultivar seus próprios valores ético-

espirituais, desenvolvendo assim o “gênio de sua raça”. Essa divisão apareceria

encarnada nos personagens Caliban e Ariel. Caliban, anagrama de canibal, escravo

deformado de Próspero, representaria o materialismo norte-americano. Já o deus

Ariel, espírito do ar, dotado de poderes espirituais para além da matéria imediata,

representaria a vocação cultural da América Latina.

Segundo o autor, os Estados Unidos estariam enclausurados em um

materialismo instrumental e em uma concepção mecânica da ideia de governo que

os condenava irremediavelmente à mediocridade. Já os povos latino-americanos

estariam em condições de expressar a aura de uma cultura clássica que

salvaguardasse a originalidade do espírito greco-latino, alinhada aos princípios de

uma educação elevada e nobre.

Embora construída em cima de uma estética classicista e apoiada em valores

aristocráticos de cultura – pensamento que ficou conhecido como arielismo –, a obra

56

Em 1893, o pesquisador paraense João Veríssimo lança a obra A Ilusão Americana, onde traça uma análise do continente a partir da estrutura dos personagens de A Tempestade. A obra, que dificilmente foi lida por Rodó, demonstra a afinidade com preocupações e contextos da época, já que o autor traça a mesma crítica que Rodó ao espírito pragmático dos EUA.

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de Rodó se consagrou como uma referência incontornável desse momento inicial de

diferenciação e delineamento do que seria a especificidade latino-americana.

Outro autor de fundamental importância para a compreensão do percurso

realizado no nascedouro das indagações filosóficas sobre a identidade latino-

americana é José Vasconcelos e sua teoria da raza cósmica, publicada em 1925 no

escrito La Raza Cósmica - Missión de la raza iberoamericana. Retomando a

temática da síntese cultural que José Martí já anunciava como traço marcante da

autenticidade do continente, Vasconcelos foi o responsável por relacionar

diretamente o destino do povo latino-americano – e do mundo – com o processo de

mestiçagem.

Opondo-se frontalmente a todas as teorias das raças puras e da mestiçagem

enquanto um processo de enfraquecimento biológico e cultural, Vasconcelos é o

precursor daquilo que viria a se tornar um traço distintivo do pensamento latino-

americanista: o elogio da mestiçagem. Segundo a teoria de Vasconcelos, o

continente latino-americano seria o lugar de elaboração de uma quinta raça, síntese

aperfeiçoada do branco, indígena, negro e amarelo; raça integral “feita com o gênio

e com o sangue de todos os povos e, por isso, capaz de alcançar a verdadeira

fraternidade e visão universal” (raza cósmica). Traçando um sobrevoo histórico

desde o Egito e relacionando a raça cósmica ibero-americana a uma hipotética e

extinta civilização de Atlântida, Vasconcelos realiza uma leitura extremamente

romântica da ideia de raça. Influenciado pela catástrofe da 1ª. Guerra Mundial, que

colocou em xeque os ideais eurocêntricos de civilização, a obra de Vasconcelos

cria uma visão utópico-poética carregada de misticismo sobre o lugar transcendental

da América para o destino da humanidade. A mestiçagem, no pensamento do

mexicano, é plena de qualidades e se realiza acompanhada essencialmente de

amor, o que animaria a alquimia de elaboração da nova raça:

Nenhuma raça contemporânea pode se apresentar por si só como um modelo acabado que todas as outras devam imitar. O mestiço, o índio e o negro superam o branco em uma infinidade de capacidades propriamente espirituais. Nem na antiguidade, nem no presente, ocorreu um caso de uma raça que tenha se bastado a si mesma [...]. Só uma prolongada experiência manifestará os resultados de uma mescla realizada, não por violência ou necessidade, e sim por

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eleição, fundada no deslumbramento que produz beleza e confirmada pelo pathos do amor (VASCONCELOS, s/d, p.25)

57.

O trecho deixa claro o tom de “esquecimento” da violência extrema que

caracterizou a Conquista das Américas e acaba por defender uma pretensa

harmonia racial que encontrará em Gilberto Freyre o seu equivalente no Brasil.

Contudo, apesar da visível idealização que permeia suas reflexões sobre a raça

cósmica, é inegável a sua referência no sentido de aproximar o pensamento social

latino-americano dos seus processos culturais constitutivos e da visibilidade dada à

presença e importância das populações indígenas, negras e mestiças na

constituição identitária do continente.

A ideia da criação de uma civilização alternativa à modernidade capitalista, ou

ainda, da criação de uma outra modernidade será o horizonte perseguido por

Mariátegui, que realiza uma original leitura da realidade específica do

desenvolvimento histórico, político, econômico e cultural de seu país, seguindo o

horizonte teórico do marxismo. Autor analisado com maior atenção ao longo do

segundo capítulo da presente tese, Mariátegui representou um divisor de águas no

pensamento crítico latino-americano ao introduzir, de maneira original e autônoma, a

ideia do socialismo revolucionário no Peru e defender a construção de um

“socialismo indo-americano” por todo o continente.

Para o pensador peruano, a questão da reprodução da vida e da exploração

do trabalho das populações indígenas não poderia passar ao largo da discussão

sobre a presença da indianeidade na identidade peruana e latino-americana. Se

opondo tanto às teses raciológicas evolucionistas como ao indigenismo ético de

caráter cristão e culturalista, Mariátegui abre a possibilidade de se pensar o universo

cultural-mestiço da América latina em conjunto ao seu processo histórico-político e

suas contradições de classe, antecipando assim, a problemática que viria a ser o

centro das inquietações da Filosofia da Libertação.

Assim como ocorreu com os diferentes ciclos desde a Conquista, a passagem

para a modernidade contemporânea também se deu de maneira específica na

América Latina, um continente forjado no encontro/confronto de tantos povos e

memórias históricas distintas.

57

Excerto tirado de La raza Cosmica, misión de la raza iberoamericana Disponível em: http://www.iphi.org.br/sites/filosofia_brasil/Jos%C3%A9_Vasconcelos_-_La_raza_c%C3%B3smica.pdf Acesso em: 25/02/2014.

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203

Diante da herança colonial europeia e do processo “neocolonial”

protagonizado pelo imperialismo estadunidense, esse traço original de resistência e

assimilação dos processos de dominação passa a ser o centro da preocupação

daqueles que buscam compreender o lugar do continente dentro da história

universal. A partir do exposto, a latinidade e, mais fortemente a mestiçagem e suas

distintas formas – dois como totalidade –, passam a ser tema de reflexão de

diferentes pensadores interessados em desenvolver um pensamento social próprio

ao continente, um pensamento fidedigno às singularidades da formação histórica

latino-americana.

Transculturação e elogio à mestiçagem

A investigação sobre a natureza mestiça da identidade latino-americana

torna-se a principal via para a descoberta e desenvolvimento de uma consciência

que reconhecesse a especificidade de suas nações independentes e, ao mesmo

tempo, o espaço de uma construção identitária comum. Nesse sentido, é papel da

geração pós-arielista (30 e 40) e de pensadores do pós-Segunda Guerra aprofundar

a crítica ao eurocentrismo e à hegemonia cultural dos Estados Unidos, através de

conceitos e categorias que problematizassem a dominação colonial-imperialista nas

mais diferentes dimensões da vida social. O esforço desses autores foi compreender

como, diante do empreendimento de conquista e domínio de tantos séculos, a

América Latina se estabeleceu enquanto espaço de resistência a partir da mistura e

assimilação de diferentes códigos culturais, tanto dos colonizadores como dos

colonizados. Como explica Chiampi:

Conquanto difiram seus objetivos e terrenos de sua discussão, a ideia predominante em suas análises é de que a mestiçagem é o verdadeiro critério para postular uma diferença latino-americana com relação aos modelos europeu e norte-americano, como também é o critério para configurar um bloco cultural [...]. Logo se vê até que ponto o fenômeno da mestiçagem, enquanto padrão diferenciador, funciona como suporte da reivindicação de uma identidade para o homem latino-americano (CHIAMPI, 2008, p.124).

Ou seja, diante do padrão homogeneizador da colonialidade do poder, que

absorve o conjunto de diferenças no interior de um sistema hierárquico que

invisibiliza a alteridade – Um Como Princípio – reforça-se a identidade cultural latino-

americana nascida do diálogo entre diferentes culturas e padrões históricos distintos

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– dois como totalidade. O principal elemento a ser considerado nessa transição é a

passagem de uma ideia de mestiçagem, a partir de critérios baseados na ideia de

raça biológica, para a mestiçagem entendida enquanto dinâmica cultural.

É nesse sentido que, tanto o hispano-americanismo (latinidade) quanto o pan-

americanismo surgem defendendo critérios como a língua e a geografia, deixando

de lados os atributos biológicos nas determinações do homem latino-americano. É

também nesse contexto antipositivista que surge o indigenismo e, correlato a ele, a

ideia de que a identidade latino-americana é formada a partir desse complexo

diálogo/embate entre memórias históricas distintas. A partir disso, a mestiçagem,

mais do que fenômeno histórico-cultural de resistência, passa a ser assumida como

valor cultural positivo e distintivo dos padrões coloniais e imperiais.

Nesse sentido, é nítido o surgimento de um explícito elogio da mestiçagem.

Ao mundo regido por um modelo superior a ser seguido e almejado (raça branca,

cultura eurocêntrica, razão positivista) é contraposto a euforia pelo universo

carnavalizado das transposições e atravessamentos entre modelos e formas. O

discurso racionalizador é questionado, assim como a ideia de um modelo clássico e

harmônico – um como princípio – e, principalmente, a ideia de cópia como modo de

expressão da própria identidade. Essa dinâmica de subversão de valores se torna

ainda mais nítida no universo da estética, como explica Chiampi:

Assim, na expressão artística, a “anormalidade” e “deformação”, antes condenadas pela infidelidade ao modelo, passam a ser consideradas como efeito estético excelente [...]. O modo de apropriação de formas estrangeiras, a séria ou a jocosa, vê-se o signo da abertura americana à recepção geradora, da sua vocação antropofágica, que converte o produto final, não em cópia, mas em simulacro destruidor da dignidade do modelo (CHIAMPI, 2008, p. 127).

Dessa forma, o texto deformado, a imitação paródica, as formas misturadas e

a bricolagem passam a ser partes interpretadas como uma rebeldia mestiça e não

mais como traço perverso, produto da incapacidade da mimesis perfeita.

Contrapondo à ideia de supremacia racial e cultura inautêntica, nessa acepção

enriquecida, a mestiçagem passa a levar vantagem em relação ao purismo da

cultura enquanto exercício da forma inabalável, como expressão do absoluto.

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Um dos primeiros pensadores a tentar dar conta dos processos de

mestiçagem cultural como um processo que não está determinado pela questão

racial foi o cubano Fernando Ortiz, que cunhou o conceito de transculturação58.

Termo desenvolvido pelo antropólogo em seu livro Contrapunto cubano del

tabaco y del azúcar (1940), transculturação é o processo de transição de uma

cultura para outra a partir da emergência de novos fenômenos culturais antes

inexistentes. Segundo Ortiz, a transculturação seria um conceito mais apropriado à

realidade latino-americana do que o processo de aculturação estudado por

Malinovski, que privilegiou em seus estudos a perda e o desenraizamento apenas da

cultura dominada. Para ele, enquanto a aculturação se deteria somente ao processo

de perda e desenraizamento da cultura dominada, na transculturação há uma

transformação de todas as culturas envolvidas, ocorrendo de modo global nas

diferentes matrizes culturais formadoras de um determinado povo ou nação. Assim,

para além de uma dinâmica própria ao continente latino-americano, a

transculturação seria algo inerente a todas as culturas humanas. Porém, na América

latina, diferente de outros lugares, a rapidez e intensidade dessas dinâmicas

culturais tornam ainda mais nítidas essas transformações e convívios entre

58

No Brasil, a passagem da ideia de cultura para a ideia de raça foi realizada por Gilberto Freyre em seu clássico Casa Grande e Senzala, de 1933. Tanto Ortiz quanto Freyre buscam, através da cultura, compreender o “caráter” nacional de seus países, procurando entender o lugar das matrizes culturais e o papel central da produção econômica nessa integração. No caso brasileiro, a noção da produção cultural de nacionalidade criou o mito da “democracia racial”, ou seja, a ideia de que no Brasil os brancos não teriam desenvolvido a consciência de uma raça diferenciada e de que a miscigenação foi consentida e estimulada desde o período colonial, forjando assim uma nação multirracial, mestiça sem uma “linha de cor” discriminatória. Mito que vai se forjando historicamente a partir do Estado Novo como oposição ao totalitarismo racista do nazi-fascismo. A noção de democracia racial remete a um pacto político com o objetivo de planificar a integração social no interior do Estado brasileiro. Nesse processo, é excluída a possibilidade de uma diferenciação étnica na participação do sistema político, direcionando essa identidade para o campo “cultural” e caracterizando, assim, uma mestiçagem conservadora própria da dominação colonial, já que anula qualquer possibilidade de efetiva participação nas decisões políticas. Juntamente com essa ordenação de caráter mais institucional, a “democracia racial” vem, paradoxalmente, acompanhada da ideologia do embranquecimento. Com base nas teorias raciais europeias produzidas a partir da segunda metade do séc. XIX, produziu-se a “solução à brasileira”, ou seja, uma forma específica de racismo que ia no caminho contrário à tese científica de que a miscigenação seria deteriorante. Nesse sentido foi formulada a doutrina do branqueamento, que defendia que as raças inferiores seriam abrandadas ao se miscigenarem com a raça branca superior. Segundo Skidmore, a tese do branqueamento “baseava-se na presunção da superioridade branca, às vezes, pelo uso dos eufemismos das raças 'mais adiantadas' e 'menos adiantadas' e pelo fato de ficar em aberto a questão de ser a inferioridade inata. À suposição inicial, juntavam-se mais duas. Primeiro, a população negra diminuía progressivamente em relação à branca por motivos que incluíam a suposta taxa de natalidade mais baixa, a maior incidência de doenças e a desorganização social. Segundo, a miscigenação produzia 'naturalmente' uma população mais clara, em parte porque o gene branco era mais forte e em parte porque as pessoas procuravam parceiros mais claros do que elas (a imigração branca reforçaria a resultante predominância branca)” (SKIDMORE, 1981, p. 81).

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diferentes matrizes, o que daria um aspecto diferenciado a essa realidade cultural.

Explica Ortiz:

Em todos os povos, a evolução histórica significa sempre um trânsito vital de culturas a um ritmo mais ou menos lento ou rápido; mas em Cuba, foram tantas e tão diversas, em posições espaciais e categorias estruturais, as culturas que influenciaram na formação do povo, que esta imensa mestiçagem de raças e culturas sobrepuja em transcendência qualquer outro fenômeno histórico. [...] Toda a escala cultural que a Europa experimentou em mais de quatro milênios, em Cuba ocorreu em menos de quatro séculos. O que no velho continente subiu por rampas e degraus aqui se deu aos saltos e sobressaltos (ORTIZ, 1940, p. 2).

Assim, segundo Ortiz, na América Latina, a rapidez dessas transformações e

seu caráter de união de matrizes tão distintas e de maneira tão intensa, teriam

produzido culturas onde essas diferentes fontes se expressariam simultaneamente e

em recíproca transformação, formando uma totalidade maior que elas59.

Em um contexto no qual as nações latino-americanas necessitavam

desenvolver a sua autonomia diante dos centros coloniais e do crescente

imperialismo estadunidense, a passagem ao estudo da cultura operado pelo

conceito de transculturação60 abria a possibilidade de encarar as identidades

nacionais como formas originais, além de proporcionar a referência teórica aos

59

Os estudos dos processos de transculturação nas formações nacionais da América Latina encontraram continuidade na obra do crítico literário Angel Rama (1926-1983), que levou a transculturação para o campo dos estudos literários, criando o conceito de transculturação narrativa. Analisando diferentes escritores latino-americanos – Arguedas, García Márquez e Guimarães Rosa, dentre outros –, Rama identificará operações transculturadoras que articuladas entre si formam estratégias próprias de mestiçagem. Realizando a migração do conceito de transculturação para a literatura até tangenciar o fazer filosófico, Rama defende que há um perspectivismo latino-americano na transculturação, na medida em que não há passividade alguma nas chamadas culturas tradicionais, que são muito mais que um mero conjunto de normas e costumes. Há, na transculturação uma força que se desenvolve segundo o seu próprio marco histórico de experiências anteriores e que, ao ser submetida, imprime sua dinâmica e seus traços fundamentais no fenômeno cultural nascido desse tensionamento. Fruto dessa complexa rede de relações sociais e de poder, as cidades latino-americanas são, para Rama, o espaço maior dessa mestiçagem que busca, no código ilustrado da cidade, expressar tradições, memórias e perspectivas que a vida na urbes tende a rechaçar. Dessa tensão constituída entre tradição e moderno, rural e urbano, oral e escrito, a cultura latino-americana teria desenvolvido uma forma própria de entrar na modernidade, desenvolvendo estratégias de expressão para aqueles que não encontram espaço instituído para isso, constituindo assim, a mestiçagem cultural própria de sua realidade. Nesse sentido, a transculturação seria a lógica fundamental dos diversos processos de mistura no continente latino-americano. 60

Importante notar a leitura original que Ortiz realiza do conceito de aculturação do seu “mestre Malinovski”. Assim como Mariátegui e Carpentier, Ortiz “devora” a realidade e a teoria produzida na Europa e a transforma segundo o seu lugar de latino-americano. Ortiz realiza uma releitura onde está presente aquilo que, no olhar eurocêntrico, está invisibilizado. Ou seja, se Mariátegui propõe um socialismo que inclui o índio latino-americano e Carpentier uma ontologia “maravilhosa” para além do surreal subjetivista, Ortiz reivindica a capacidade de transformação em duas vias do processo cultural e não somente o desaparecimento da cultura “dominada”.

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espíritos de coesão e diferenciação necessários para a formação de um Estado-

Nação. Nesse sentido, a obra de Ortiz e de outros estudiosos entre as décadas de

40 e 60 solidificaram a ideia da mestiçagem cultural como emblema da identidade

latino-americana. Como explica Chiampi:

Com os estudos de Fernando Ortiz sobre os processos de transculturação, os de Reyes sobre abertura às influências, os de Mariano Picón Salas sobre a combinação das formas europeias com as indígenas, os de Uslar Pietri sobre o processo aluvional do nosso sistema literário ou com a proposta de Alejo Carpentier sobre o real maravilhoso americano, dá-se o reconhecimento da mestiçagem como o nosso signo cultural. Com este ideologema, que se fixa desde os 40, o discurso americanista parecia ter resolvido o problema crucial do complexo de inferioridade, assumindo a heterogeneidade da sua formação racial, sem renunciar ao ambicionado universalismo (CHIAMPI,1988, p. 18).

Nesse movimento de assunção e reconhecimento não só da especificidade,

mas também da grandiosidade das expressões culturais do continente, passa a ser

gestada a ideia de que a cultura e o pensamento latino-americanos carregam uma

perspectiva original de apreensão da totalidade, ou seja, uma forma específica de

Razão Universal. Seguindo o caminho iniciado pelos ideais bolivarianos,

acompanhados por Martí e pela série de pensadores que deram corpo à noção de

uma cultura latino-americana independente e plena de legitimidade, emerge a noção

de que é possível se pensar uma ontologia a partir da América Latina. A história e a

cultura do continente, vistas cada vez mais a partir da tentativa de se diferenciar da

pretensa história universal eurocêntrica, se desdobram em um conjunto de reflexões

que tem no seu horizonte a relação filosófica entre a particularidade e a totalidade,

ou seja, como, de uma perspectiva latino-americana, se pode apreender a

realidade? Se o trabalho de Vasconcelos abriu a possibilidade de uma raça cósmica,

uma raça universal e com Mariátegui se vislumbra um socialismo universal que não

ignora as particularidades locais, o pensamento latino-americanista avançava ainda

mais a partir da década de 40, já que começava a se indagar por uma racionalidade,

um logos propriamente latino-americano que fosse, ao mesmo tempo, universal.

Seguindo o movimento dinâmico do que estamos considerando como dupla

consciência histórica latino-americana, a partir dos anos 50 começa-se a pensar

uma subversão na tensão fundante da Modernidade. A mestiçagem crítica,

reiteradamente invisibilizada e de difícil apreensão enquanto proposta alternativa de

apreensão da totalidade, passa a ser considerada como o possível eixo estruturador

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alternativo à colonialidade do poder. A mestiçagem cultural, entendida como eixo

estruturante, opera uma subversão ao status clássico da busca pelo absoluto,

assimilado pela lógica do pensamento mestiço e sua racionalidade histórica

alternativa. A mestiçagem é então compreendida como uma perspectiva universal de

conhecimento sendo, até mesmo, considerada “mais universal” que a racionalidade

eurocêntrica.

É nesse contexto de surgimento de uma subversão epistêmico-ideológica na

dupla consciência histórica latino-americana que se destaca a obra do cubano

Lezama Lima. Nascido em 1910, Lezama foi poeta e ensaísta, líder do grupo

artístico-literário cubano que deu origem à revista Orígenes (1944) que tinha como

eixo central a busca pela expressão de uma cubanidade para além do momento

atual que a ilha vivia. Para os participantes de Orígenes, a expressão cultural de um

povo deveria ir para além da relação direta com o contexto sociopolítico em que

estava inserida “epidermicamente”, indo buscar, em seu fundo ancestral, os enlaces

ocultos que formam o sentimento de uma nação.

Cuba, assim como os demais países do Caribe, vivia tanto os efeitos da 2ª.

Guerra Mundial como da insidiosa influência do american way of life. Como aponta

Cintio Vitier, poeta-membro do grupo, a revista Orígenes nascia como uma resposta

ao “estupor ontológico”61 que pairava na sociedade cubana. É nesse contexto de alta

desconfiança com os caminhos que tomava a história que Lezama Lima profere

cinco conferências que darão origem à obra A Expressão Americana, na qual o

cubano faz uma interpretação da cultura continental que leva às últimas

consequências a noção de originalidade latino-americana ao mesmo tempo em que

critica o cânone filosófico do eurocentrismo representado pelo historicismo de Hegel.

Dessa forma, Lezama apresenta de maneira radicalizada e extrema, a tensão

constituinte da identidade latino-americana. De um lado, o espírito germânico

altamente metafísico – um como princípio – representante da razão universalista

própria ao eurocentrismo e, do outro, a filosofia intercultural latino-americana – e

universal – que defende o barroco e a mestiçagem como forças criativas superiores

da civilização – dois como totalidade.

Em A Expressão Americana, Lezama parte de um confronto filosófico sobre

as concepções de evolução histórica desenvolvidas por Hegel em sua obra Lições

61

Termo utilizado pelos artistas do grupo Orígenes para descrever a atmosfera cubana na época.

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de Filosofia da História Universal e aquela que Lezama chamará de Era Imaginária.

Lembrando a teoria hegeliana, a história se desenvolve seguindo a Razão ( logos)

que, de forma dialética move a história até o ponto culminante de sua expressão, o

Espírito Universal. Para Hegel, a história só deve levar em consideração aqueles

que, segundo essa teoria, estiverem aptos a manifestar o Espírito Absoluto, sendo

ele o responsável por “abrir o mundo” para os outros. Nas palavras do filósofo:

Ao povo a que corresponde tal momento como princípio natural, é-lhe encomendada a execução do mesmo no progresso da autoconsciência do espírito do mundo que se abre. Este povo, na história universal e para essa época, é o dominante e nela só pode fazer época uma vez. Contra este seu absoluto direito de ser portador do atual grau de desenvolvimento do espírito do mundo, os espíritos dos outros povos não têm direitos, e eles, como aqueles cuja época passou, não contam na história universal (HEGEL apud LANDER, 2000, p. 11).

A ausência, segundo o historicismo hegeliano, de qualquer possibilidade de

contribuição à História Universal por parte da América é um fato bastante

reconhecido. Ao historicismo hegeliano e sua Razão (logos) que a tudo inclui sobre

seu manto unitário e que se move por sínteses – totalizações – completas, Lezama

contrapõe sua teoria do Imago, enquanto unidade fundamental da dinâmica

histórica, tecido poético regido por uma causalidade metafórica que não obedece à

linearidade histórica, mas sim à capacidade constante de assimilação e recriação do

fundo temporal mítico. Como explica Chiampi:

A essa concepção (hegeliana), Lezama pretende opor uma visão histórica direcionada não pela razão – que só leva a um dever ser – mas por outro logos: o logos poético. Daí a proposição de um contraponto de imagens – atividade metafórica por excelência – que permite apontar o poder ser (o Imago) e abranger, contrariamente ao logos hegeliano, a multiformidade do real [...]. Desconfiança da razão e hipóstase da poesia, claro está que, ao converter o logos poético num absoluto, derivara na tomada de imagens com a “última das histórias possíveis” (CHIAMPI, 1988, p. 24).

Ou seja, segundo Lezama, ao invés do causalismo historicista hegeliano, se

manifesta na América Latina uma constante regida pelo logos poético, gerando

assim uma outra forma de encadeamento e permanência histórica. A “última das

histórias possíveis”, ápice da compreensão humana sobre sua existência e da

realidade seria então uma poesia feita de poesias, metáfora maior que uniria as

imagens – unidades-síntese das diferentes culturas humanas – através de uma

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poiesis demoníaca (CHIAMPI, 1988, p. 41), que operaria assimilando as imagens

que formariam o devir próprio de uma Era imaginária. Para além do encadeamento

linear positivista ou das totalizações do universalismo hegeliano, a poiesis

demoníaca de Lezama seria própria de uma racionalidade aberta às diferentes

influências e transmigrações de imagens em diferentes tempos e momentos. Nesse

sentido, a dinâmica histórica das culturas se realizaria segundo uma constante, uma

reoriginalização – retorno à origem a partir do mundo imanente – onde o vasto

universo mítico-simbólico da humanidade ocuparia lugar privilegiado.

Como exemplo, Lezama compara a luta mítica dos deuses cosmogônicos dos

Popol Vuh com a guerra entre famílias que anima todo o poema épico Baghavagad

Gita, assim como nos combates testemunhados por Marco Polo onde se sobressai a

aura do maravilhoso nas descrições. Para Lezama, em todas essas passagens

estariam inscritas a busca “ígnea” (CHIAMPI, 1988, p. 31) pela liberdade, o que

inscreveria esses diferentes conjuntos de imagens em um mesmo Imago, formador

de uma Era Imaginária. Ou seja, assim como seu contemporâneo Carpentier,

Lezama encontrava em diversas mitologias, obras de arte e acontecimentos

históricos de seu tempo, uma prova dessa relação “difícil, mas estimulante” entre

ocorrências desconexas, segundo o historicismo hegeliano, mas que, seguindo o

logos poético formador da Era imaginária, encontraria uma lógica específica. Dessa

forma, seguindo essa poiesis demoníaca, o devir americano estaria sendo

constantemente reoriginalizado.

Segundo Lezama, enquanto no pensamento ocidental eurocêntrico

representado por Hegel, a história seria redigida por um Espírito Absoluto, na

América haveria um Eros cognoscente (CHIAMPI, 1988, p. 32), princípio imanente

de incorporação e transformação operando as miríades metafóricas da expressão

americana. Para além da dialética evolutiva, haveria na América a manifestação de

uma lógica “tão dionisíaca quanto dialética”, ou seja, uma lógica que acrescentaria à

dialética hegeliana a história diversa de diferentes povos e suas memórias

históricas, universo mítico-simbólico e formas de produção e reprodução da vida

cotidiana. Ou seja, uma “dialética dos sentidos” onde estariam expressos modos de

vida dos povos originários, negros e mestiços do continente, assim como a tradição

de povos do Oriente como persas, hindus e chineses. Essa capacidade de assimilar

e realizar uma bricolagem constante das mais variadas tradições e formas de

manifestações – do cotidiano às mais sofisticadas formas artísticas – se sintetizam

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na ideia da existência de um “protoplasma incorporativo” (CHIAMPI, 1988, p. 181),

que participa da própria ontologia do homem e da realidade americana, delineando

uma expressão barroca.

Como metáfora maior desse processo, Lezama se refere ao “Senhor

Barroco”, personagem fictício que o escritor descreve como o demiurgo que rege

diferentes manifestações culturais latino-americanas, unindo diferentes tradições em

sua varanda e multiplicando-as diante “da cascata lunar que se constrói no sonho de

sua própria pertença” (idem, p. 82) e “com todos os lustres multiplicando seus fogos-

fátuos no espelho” (op. cit.). Com uma escrita rebuscada e por vezes hermética,

Lezama descreve o barroco americano como essa capacidade de ordenar o

maravilhoso reflexo entre mundos em um devir próprio, em uma perspectiva que

nega o eurocentrismo ao mesmo tempo em que o incorpora em seu processo de

metaforização. Semelhante ao universo antropofágico brasileiro, o Senhor Barroco

lezamiano, alça a modernidade sem, porém, abrir mão do mundo ancestral do

continente, alma e espírito do Senhor Barroco Americano:

As formas congeladas do barroco europeu, e toda proliferação expressa um corpo danificado, desapareceram na América nesse espaço gnóstico, que conhece por sua própria amplitude de paisagem, por seus dons sobrantes. O sympathos desse espaço gnóstico deve-se ao seu legítimo mundo ancestral, é um primitivo que conhece, que herda pecados e maldições que insere nas formas de um conhecimento que agoniza, tendo que justificar-se, paradoxalmente, com um espírito que começa (LEZAMA, 1988, p. 183).

Dessa forma, Lezama Lima cria um rico mosaico reflexivo em torno do

pensamento mestiço latino-americano. O protoplasma incorporativo, essa índole

antropofágica inerente ao Eros cognoscente, cria uma perspectiva de conhecimento

própria. Na história regida por Hegel, Lezama encontra o ápice da metafísica

eurocêntrica ocidental em seu desdobramento em uma inteléquia propriamente

germânica, voltada para o estudo dos a priori. Já naquilo que ele chama de espaço

gnóstico americano, a imanência está presente como centro irradiador das imagens

que formam a poesia do mundo. Esse Eros cognoscente aparece tanto na

consciência humana como na natureza, espaço “pleno de dons de si”, paisagem

multiforme ao invés de espaço cartesiano.

O mundo, ao invés de natura dessensibilizada, é lócus de vigência do

mitopoético, a natureza é também uma extensão do maravilhoso americano, da

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poiesis demoníaca própria do continente, mas que é, ao mesmo tempo,

manifestação que se encontra em diferentes épocas, configurando assim, uma

concepção própria do que é a totalidade histórica. A cultura latino-americana ganha,

pelo pensamento de Lezama Lima, o lugar de expressão de uma racionalidade

própria porque poética, suplantando assim, as limitações da dialética hegeliana,

atada a uma metafísica idealista.

Nesse sentido o escritor cubano inscreve a mestiçagem em um novo patamar

no interior da tensão constituinte da dupla consciência histórica latino-americana,

que propõe uma universalidade com base em uma ontologia mestiça, invertendo o

lugar de submissão do universo cultural latino-americano que, para Lezama, passa a

ser referência para uma filosofia intercultual. A essa subversão de consciência,

Lezama chama de contraconquista, ou seja, é uma reviravolta onde o conquistado –

o colonizado, o oprimido – emerge da invisibilidade e incorpora o conquistador,

passando a ser a referência hegemônica da consciência social.

Lezama viveu em Cuba durante o período imediatamente anterior e posterior

à revolução. Líder do grupo Orígenes, participou ativamente da elaboração e

tradução da atmosfera cultural-filosófica do conturbado cenário político cubano que

culminou, em 1959, na Revolução Cubana.

A categoria filosófica da Libertação

A Filosofia da Libertação

O trabalho de Lezama Lima, assim como a concepção do realismo

maravilhoso de Alejo Carpentier produziram em Cuba as reflexões que levaram ao

extremo a ideia de uma especificidade radical da cultura mestiça latino-americana

diante da cultura ocidental eurocêntrica. Com sua crítica à razão dialética de Hegel,

Lezama explicita – via proposição do logos poético – essa oposição entre duas

razões. É essa cisão que também move as reflexões sobre a ontologia latino-

americana de Carpentier.

A partir da reflexão desses dois cubanos, torna-se mais nítida a dupla

racionalidade que, segundo nossa tese, está presente na constante tensão da dupla

consciência histórica latino-americana. Porém, se com a obra dos cubanos Lezama

Lima e Alejo Carpentier se delineia com maior nitidez o caráter específico da cultura

latino-americana e o seu papel em uma investigação de natureza filosófica sobre o

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pensamento próprio do continente, é somente a partir das décadas de 60 e 70 que

essa singularidade de pensamento adquire a forma de uma filosofia propriamente

latino-americana.

Essa diferenciação, essa singularidade do pensamento filosófico do

continente emerge desafiando justamente os cânones da filosofia ocidental clássica.

Seguindo (de maneira consciente?) uma das mais consagradas sentenças do

pensamento de Marx62, o reconhecimento pela autenticidade na filosofia latino-

americana surgirá da concepção de que, somente com a práxis transformadora da

realidade, pode-se chegar à uma reflexão – e prática, portanto – filosófica original.

Assim, se no início do séc. XX, o antipositivismo e a “decadência do ocidente”

marcaram o pensamento de Mariátegui e, a partir da década de quarenta surge a

necessidade de construção de uma identidade nacional através de uma identidade

cultural diferenciada, a partir do final dos anos 60, essa dinâmica se desdobra no

surgimento de uma filosofia inserida no contexto mundial da Guerra Fria e, em

especial, do continente latino-americano. Nesse sentido, é decisiva e incontestável a

influência da Revolução Cubana.

País que conheceu tardiamente a estrutura do sistema colonial espanhol

baseado no latifúndio e no escravismo, Cuba construiu, durante a sua história, um

forte espírito patriótico. Após a sublevação de 1896, liderada por Martí e o assalto ao

Quartel de Moncada em 1953, Cuba vive a Revolução Socialista de 1959. Dessa

data em diante, o continente latino-americano conheceu uma nova realidade. Se, de

um lado, as forças conservadoras e apoiadoras do capitalismo norte-americano

cerraram fileiras a qualquer ameaça “comunista”, movimento que desembocou nos

diferentes golpes militares e ditaduras ao longo de sua décadas, abriu-se também

uma nova etapa para a esquerda do continente – e do mundo –, que passou a

contar com uma experiência concreta de construção do socialismo pós-revolução.

A Revolução liderada por Fidel Castro é um marco fundamental na história do

continente, sendo o contraponto constante aos governos ditatoriais do continente.

Nesse sentido, ela foi o principal acontecimento do continente durante o período da

62

“Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém,

é transformá-lo” (MARX, 2005).

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214

Guerra Fria, servindo de estrela-guia para o conjunto das forças da chamada

esquerda de todo o continente.

Dessa forma, ao esforço de delinear o aporte específico da cultura latino-

americana na história das sociedades humanas que caracterizou a primeira metade

do séc. XX, soma-se a necessidade de pensar o continente a partir da etapa

histórica inaugurada pela Revolução Cubana63. Ao reconhecimento da originalidade

cultural diante da Europa/Estados Unidos – ethos barroco – e de suas múltiplas

formas de resistência – mestiçagem crítica –, junta-se a possibilidade de

emancipação política e econômica do domínio colonial responsável pela pobreza do

continente. Ou seja, para além da resistência, se abriu a possibilidade real de uma

concretização, de uma subversão na dupla consciência histórica do continente,

através da concretização de um projeto revolucionário que superasse o sistema

63

Uma das principais contribuições trazidas pela Revolução Cubana para a esquerda latino-americana foi o Guevarismo. Baseado nas ideias e principalmente na prática do comandante Ernesto Che Guevara, o “Che”, o guevarismo se caracteriza por defender uma sensibilidade revolucionária onde a dimensão ética do socialismo ocupa lugar central. Assim como Mariátegui, que no conjunto de textos Defesa do marxismo já afirmava que o socialismo “não surge mecanicamente do interesse econômico: ele afirma-se na luta de classes, dada com um espírito heroico, uma vontade apaixonada”. Che Guevara defendia que o ânimo essencial que deve alimentar a busca pela superação do sistema capitalista – para além de questões econômicas específicas – é a consciência de que o socialismo só triunfará se representar um projeto de civilização que abranja a totalidade da vida social. Para Guevara, a construção do socialismo é inseparável de certos valores éticos que, de acordo com seus escritos, haviam sido deixados de lado pelo marxismo do tipo soviético. Para Che, “o socialismo econômico, sem a moral comunista, não me interessa. Nós lutamos contra a miséria, mas, ao mesmo tempo, contra a alienação. [...] Caso o comunismo ignore os fatos de consciência, pode ser um método de distribuição, mas nunca uma moral socialista” (LOWY, s/d, disponível em: <http://www.primeiralinha.org/abrente/lowy45.htm>). Segundo Lowy, essa ética revolucionária própria ao Guevarismo pode ser sintetizada em quatro pontos: 1) O internacionalismo socialista: Para Che, o internacionalismo é uma estratégia política indispensável para a realização do socialismo. É também a materialização do princípio ético de fraternidade e solidariedade para todo aquele que estiver sofrendo uma injustiça em qualquer parte do mundo; 2) O socialismo da fraternidade: Segundo o guerrilheiro, é preciso uma mudança integral na humanidade para a realização efetiva do socialismo. Somente um “homem novo”, constituído em bases morais de igualdade e fraternidade pode assumir o compromisso de uma sociedade socialista; 3) Liberdade de discussão: Che defendia uma espécie de pluralismo democrático para a construção do socialismo. O debate amplo, com abertura ao contraditório e uma reconstrução constante de caminhos e opiniões sobre a sociedade e a revolução são marcas de seus escritos; 4) Democracia Socialista: Crítico da democracia burguesa, mas defensor de valores que expressassem a liberdade dos indivíduos e o seu poder de participação direta no processo revolucionário, Che defendia uma democracia socialista. Porém, esse é o traço menos claro do pensamento do argentino, que nunca definiu bem como conciliar democracia e planificação. Além desses traços fundamentais, o guevarismo se notabilizou por apresentar um marxismo que valorizava o lugar do camponês na revolução, assim como carregou de sentimento elevado e de uma aura

mítica (no sentido mariateguiano do termo) o combate revolucionário através da guerrilha.

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215

colonial-mercantil-capitalista. É nesse contexto de convergência e construção da

inter-relação entre a questão identitária latino-americana e a luta social no continente

que surge a Filosofia da Libertação64.

A primeira referência a uma filosofia latino-americana que tenha seus

fundamentos na realidade histórica específica do continente foi realizada pelo

filósofo argentino Juan Bautista Alberdi (1810-1887), que defendia a elaboração de

uma filosofia americana que emergisse das “nossas necessidades”. Para Alberdi, a

chamada filosofia universal se atém às necessidades históricas e, a partir delas,

tenta formular teses de caráter mais amplo. Nesse sentido, defendia uma filosofia

americana nutrida pelas correntes e teorias que apresentassem os caminhos de

solução para os impasses históricos do continente. Em um texto publicado em 1842,

Ideas para um Curso de Filosofia Contemporânea, escreve o autor:

A filosofia americana deve ser essencialmente política e social em seu objeto; ardente e profética em seus instintos; sintética e orgânica em seu método; positiva e realista em seus procederes; republicana em seu espírito e destino. Americana será aquela que resolva o problema dos destinos americanos (ALBERDI in ZEA, 1993, p. 149).

64

O conjunto de reflexões em torno da libertação latino-americana também sofreu influências de outros contextos para além do território latino-americano. Assim como ocorria na América Latina, na África dos anos 60 e 70 houve um movimento de construção de uma filosofia enraizada no contexto histórico-social do continente, levando em conta, principalmente, as transformações profundas advindas do processo de descolonização de diferentes países africanos. A dupla consciência, o mimetismo cultural e a relação de alteridade que funda uma racionalidade distinta do logos eurocêntrico são temas que também estão presentes no contexto africano, influenciando de maneira determinante o debate latino-americano. Deste conjunto de autores, destaca-se a obra de Frantz Fanon, psiquiatra e ensaísta que dedicou sua vida à luta anticolonial. Atuou na Frente de Libertação Nacional da Argélia e foi um ativo defensor do pan-africanismo. Em sua obra, Fanon faz uma acurada análise dos processos subjetivos que envolvem a condição colonial, tanto do colonizador como do colonizado. Para Fanon, diante da consciência da opressão colonial que se impõe sobre sua vida, a opção do colonizado é se rebelar, conhecendo e construindo assim, o seu processo de libertação. Para ele, a condição dupla da existência colonial só é superada quando concretizada a descolonização, processo que é histórico, político, intersubjetivo e que liberta, porque atinge a base da estrutura de dominação, a relação colonial: “Através da percepção da influência da filosofia africana e do seu pensamento descolonizador na Filosofia da Libertação latino-americana, torna-se claro a mútua influência entre os termos libertação e descolonização. Se na América do século XIX o termo libertação deu contorno para as lutas independentistas do continente, a partir do séc. XX ela participa diretamente da crítica à continuidade da estrutura colonial no continente e se nutre também dos ideais da luta pela descolonização dos países africanos. Por outro lado, o termo libertação está muito presente nas obras de Fanon e outros filósofos africanos do séc. XX, assim como em movimentos nacionais que utilizam o termo libertação em seus nomes, manifestos e declarações. Leopold Zea, um dos principais formuladores da Filosofia da Libertação, se remete diversas vezes à obra de Fanon e sua relação com a libertação” (CERUTTI, 1992, p. 162). Porém, apesar das múltiplas convergências em torno da crítica ao eurocentrismo em suas mais diferentes dimensões e a proximidade em torno da questão colonial e da identidade subalterna, o percurso histórico da América Latina deu origem a formas bastante específicas de resistência que vieram tecendo uma perspectiva própria de libertação.

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Ao defender uma filosofia que “resolva os problemas do destino americano”,

Alberdi anuncia a passagem da filosofia americana – pensamento que não tematiza

especificamente os problemas latino-americanos – para uma Filosofia da Libertação,

ou seja, uma filosofia tenha como núcleo irradiador o contexto histórico do

continente. Porém, a problemática específica da Filosofia da Libertação – a

realidade latino-americana e o caminho concreto de sua libertação – só será

efetivamente tematizada a partir dos anos 7065.

Um dos marcos fundamentais da Filosofia da Libertação é a publicação, em

1968, da obra Existe una filosofia de nuestra América?, do peruano Augusto Salazar

Bondy. Segundo este pensador, a pergunta que deve nortear a realização de uma

filosofia propriamente latino-americana deve questionar sobre a autenticidade da

cultura latino-americana em todo o seu conjunto66. Ou seja, para realizarmos um

pensamento que seja autêntico, é necessário que a nossa realidade social supere

aquilo que Bondy considera uma situação de inautenticidade cultural ou, em suas

palavras, que a América Latina deixe de ser uma “cultura de dominação”. Segundo o

peruano, a inautenticidade da cultura – entendida como valores, atividades e ideias

que orientam a vida de um povo – está imbricada na situação de

subdesenvolvimento trazida pelo domínio colonial e pela dependência67. Devido a

esse sistema de dominação que caracteriza a realidade social do continente desde o

séc. XV, o pensamento hispano-americano tem sido “uma novela plagiada e não

uma crônica verídica de nossa aventura humana”. Desde o séc. XVI, a filosofia tem

sido algo imposto pelos conquistadores europeus e pela Coroa. Séculos depois, a

matriz eurocêntrica continua com a imposição do pensamento das elites oligárquicas

e das classes dirigentes.

65

A Filosofia da Libertação surge de variadas iniciativas e autores, não sendo possível identificar sua origem em uma única fonte. É fato que chama a atenção, inclusive, a diversidade de temas, autores e a condição polêmica que se inscreve nesse conjunto de reflexões desde o seu início. Parece-nos que aí temos um traço que explicita o “latino-americanismo” dessas formulações, já que é uma filosofia que se desenvolve prioritariamente a partir do diálogo e da relação entre diferentes lugares e problemáticas, se realizando assim como o movimento de uma totalidade heterogênea. Uma melhor explanação sobre os diferentes matizes da Filosofia da Libertação pode ser verificada em Mance (2000) e Cerutti (1976). 66

Embora Bondy chame a atenção para o fato de que suas reflexões são sobre a filosofia hispano-americana, já na introdução de seu livro ele indica que considera bastante provável que suas conclusões sejam válidas para a filosofia do Brasil e da América Latina como um todo. 67

O termo dependência, presente em muitos escritos da Filosofia da Libertação, se refere à Teoria da Dependência (TD), formulada na América Latina a partir do final da década de 60. A TD influenciou decisivamente diferentes pensadores do campo cultural-filosófico do continente, sendo considerada como um de seus fundamentos centrais,

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Nesse sentido, Bondy defende que a filosofia latino-americana não deve ser a

variante de nenhuma das concepções do mundo, que tem como finalidade a

manutenção dos grandes centros de poder e seus interesses de manutenção da

ordem de dominação. É preciso, portanto, criar um pensamento social que incorpore

a história e as necessidades das comunidades e que se constitua no próprio

movimento de sua realização, ou seja, que crie condições de libertação ao mesmo

tempo em que se cria enquanto uma Filosofia da Libertação. Escreve o autor:

O problema de nossa filosofia é a inautenticidade. A inautenticidade se enraíza em nossa condição histórica de países subdesenvolvidos e dominados. A superação da filosofia está assim, intimamente ligada à superação do subdesenvolvimento e da dominação. Se pode haver uma filosofia autêntica, ela tem que ser fruto de uma mudança histórica transcendental. Mas não é necessário esperá-la; ela não deve ser somente um pensamento que sanciona os fatos consumados. Pode ganhar sua autenticidade como parte do movimento de superação de nossa negatividade histórica, assumindo-a e esforçando-se para cancelar suas raízes (BONDY in ZEA, 1995, p. 90).

Dessa forma, segundo o filósofo, é preciso criar uma “consciência libertadora”

que esteja imbricada diretamente no processo de passagem de uma filosofia

inautêntica e imitativa – pensamento que expressa a condição de cultura de

dominação – para uma “cultura de libertação”. Para Bondy, apesar de ter

conseguido produzir uma filosofia “peculiar”, ou seja, com traços característicos que

remontam ao processo histórico-cultural do continente, não foi possível criar uma

filosofia autêntica. Para tal, somente com um pensamento que busque a superação

da dominação econômica que coloca os países latino-americanos “sem nenhuma

vigência diretiva no processo mundial de poder” (Idem) é possível a criação de uma

filosofia capaz de produzir libertação.

Outra contribuição fundamental para o desenvolvimento de uma Filosofia da

Libertação é o livro La filosofia americana como filosofia sin más, de Leopoldo Zea,

publicado em 1969. Construindo suas ideias em um diálogo direto com os

argumentos de Bondy, Zea afirma que, mesmo em uma situação de dominação, a

América produziu um pensamento autêntico. Segundo ele, para além de uma

imitação inautêntica, o pensamento latino-americano criou uma “autenticidade de

assimilação”, ou seja, a autenticidade da filosofia americana está no modo como ela

veio se apropriando – antropofagizando – o pensamento eurocêntrico. Como explica

Carvalho:

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[... Para Zea] na medida em que a repetição, imitação ou cópia fossem empregadas como instrumentos de solução de problemas concretos (sociais, políticos, culturais) já não seria uma distorção, deformação ou cópia defeituosa da filosofia importada. Tratar-se-ia de uma adaptação ou assimilação – segundo a terminologia de Zea – que poderia resultar num pensamento diferente e inovador, portanto, autêntico e original. [...] Ou seja, na adoção realizada, o sujeito latino-americano expressava a si mesmo e a sua realidade de forma autêntica (CARVALHO, 2010, p. 3).

Assim, ao invés de estar somente preocupada com questões de caráter

metafísico e abstrato – que marcam o universalismo da filosofia clássica ocidental –,

a filosofia latino-americana se preocupou, desde o seu início, com questões

histórico-culturais concretas, produzindo dessa forma, uma filosofia autêntica. Para

Zea, essa capacidade de assimilação é justamente a mestiçagem que forma a base

da identidade latino-americana. Porém, historicamente negamos essa condição ao

nos espelharmos em um homem estrangeiro e abstrato, fruto de uma metafísica

idealista eurocêntrica. Segundo ele, ao assumirmos nossa condição de identidade

diversa, formada por uma justaposição de culturas no seio do mundo cotidiano,

estaremos entrando em contato com a condição concreta de nossa humanidade

determinada por suas circunstâncias históricas e, nos deparando assim, com nossa

condição de dominados. Ou seja, para realizarmos a cultura de um “homem novo” é

preciso reconhecer nossa história e, reconhecendo-a, darmo-nos conta da

necessidade de libertação.

Dessa forma, mesmo discordando em alguns pontos com Salazar Bondy,

ambos convergem na opinião de que é preciso dar atenção aos problemas histórico-

concretos específicos da América Latina, buscando soluções para eles e

constituindo dessa forma, uma filosofia autenticamente latino-americana. Assim

como para Bondy, Zea afirma que:

A filosofia é um elemento que deve colaborar no processo de destruição do subdesenvolvimento e dependência presente [...]. Com nossa filosofia sem mais, ou seja, plenamente ideológica em função da transformação de uma realidade intolerável, se garantirá uma transformação radical (ZEA, 1995, p. 150).

A partir da famosa polêmica entre Augusto Salazar Bondy e Leopold Zea, se

inaugura a relação entre mestiçagem cultural, pensamento filosófico e dependência

político-econômica estrutural do continente. Dessa inter-relação surge a Filosofia da

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Libertação; proposta que busca dar elementos para uma práxis de superação da

condição de dependência e subdesenvolvimento do continente, através do

reconhecimento da dimensão crítica presente na cultura latino-americana em sua

condição mestiça e de assimilação constante do novo.

Uma das principais consequências dessa atividade prático-reflexiva da

Filosofia da Libertação é uma relação mais direta com outras disciplinas do

conhecimento. Voltada para a resolução dos impasses históricos do continente, a

Filosofia da Libertação estabelece um constante diálogo com outros campos dos

saberes, ferindo assim, já em seu surgimento, o isolamento da filosofia em uma

“torre de marfim”. Dessa forma, baseados nos fundamentos da Filosofia da

Libertação, surgiram a Pedagogia da Libertação68, a Sociologia da Libertação69, a

Antropologia da Libertação70 e, mais recentemente, o Jornalismo da Libertação71,

além da área onde ela ganhou maior expressividade, a Teologia da Libertação.

A Teologia da Libertação

Movimento sociorreligioso que ganha corpo no interior da Igreja Católica

latino-americana, a Teologia da Libertação surge após a publicação de uma série de

obras teológicas no final dos anos 60 que continha como elemento comum uma

reinterpretação analítica e antropológica da fé cristã a partir de um diálogo com o

pensamento laico das ciências sociais. Essa aproximação já vinha sendo realizada

68

A obra de Paulo Freire (1921–1997), educador brasileiro, é reconhecida como a expressão de maior relevância da Pedagogia da Libertação. Destacam-se nesse período os livros Educação como

Prática de Liberdade (1967) e Pedagogia do Oprimido, escrito em 1968 no exílio em Santiago (Chile).

Na pedagogia de Paulo Freire, podemos notar nitidamente a ideia de dupla consciência social e a tensão existente entre elas: “aquela que tem que ser forjada com ele (oprimido) e não para ele,

enquanto homens e povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto de reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que esta pedagogia se fará e refará. O grande problema está em como poderão os oprimidos, que ‘hospedam' o opressor em si, participar da elaboração, como seres duplos, inautênticos, da pedagogia de sua libertação” (Freire, 1987, p. 32). 69

Na obra de Orlando Falas Borda, sociólogo colombiano que propôs o termo Sociologia da Libertação lê-se: “Um desses campos novos para sociologia seria, sem dúvida, a libertação, ou seja, o uso do método científico para descrever, analisar e aplicar conhecimento para transformar a sociedade, mover o eixo da estrutura de poder e de classes colocando em marcha todas as medidas que conduzam a uma satisfação mais ampla do povo” (BORDA, s/d, disponível em: < http://www.ram-wan.net/restrepo/decolonial/6-fals%20borda-colonialismo%20intelectual.pdf>). 70

Para uma discussão sobre a relação entre antropologia e a categoria da Libertação, ver Sansonov (2012). 71

Segundo Tavares, o Jornalismo da Libertação é “um jornalismo que não é servil, nem porta voz dos poderosos, mas que narra a vida desde o olhar da comunidade das vítimas” (TAVARES, 2012, s/n).

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desde 1962, quando o Concílio Vaticano II72 propôs reformas na Igreja Católica que

direcionavam o pensamento teológico para uma relação mais aberta com diferentes

formas de pensamento, afirmando assim a sua contemporaneidade e sensibilidade

histórica. Outro fator histórico importante foi a realização do Encontro de Medellín

(Colômbia, 1968), que estabeleceu em seu documento final uma série de mudanças

de caráter litúrgico determinando que os religiosos deveriam seguir o método Ver-

Julgar-Agir desenvolvido pela Ação Católica – movimento progressista com forte

participação do cristianismo laico, voltado para a transformação social.

A partir do Encontro de Medellín, a dogmática abstrata que caracterizava a

conduta de setores conservadores da Igreja perdia espaço para uma ação mais

voltada ao combate das injustiças sociais do continente. Entre as obras

consideradas como marcadores iniciais da Teologia da Libertação estão Teologia da

Libertação (1970), do padre peruano Gustavo Gutierrez; Jesus Cristo Libertador

(1972), de Leonardo Boff e Teologia desde uma práxis libertadora (1973), de Hugo

Assman73 – ambos brasileiros –, e A Libertação da Teologia (1975), do uruguaio

Juan Luis Segundo.

Um dos traços mais marcantes da Teologia da Libertação foi a sua estreita

aproximação com o marxismo. Diferente dos demais filósofos da libertação, não

foram os temas da identidade e do processo histórico-cultural que levaram os

teólogos da libertação a se aproximarem da questão social latino-americana. Esse

“notório descuido” da Teologia da Libertação com a tradição latino-americanista se

deve ao fato, segundo Betancourt, da formação essencialmente eurocêntrica nos

centros eclesiais. Por outro lado, há uma clara procura dos teólogos da libertação

pelas mediações teóricas das Ciências Sociais que apresentavam propostas efetivas

para a superação da pobreza e da exploração da maioria da população mundial.

A influência marxista contida na Teologia da Libertação pode ser justificada

por duas vertentes diferentes. A primeira foi a Teoria da Dependência. Formulada na

América Latina a partir do final da década de 60, a Teoria da Dependência

influenciou decisivamente diferentes pensadores do campo cultural-filosófico do

continente, sendo considerada um dos fundamentos centrais do pensamento crítico

72

Como lembra Lowy (2000), é extremamente simbólico o fato do chamado oficial do Papa para o Concílio Vaticano II ocorrer em janeiro de 1959, justamente o período de entrada das tropas revolucionárias comandadas por Fidel Castro para tomarem Havana e iniciarem o governo revolucionário de Cuba. 73

Outros teólogos da libertação importantes foram Ignacio L (El Salvado), Enrique Dussel (Argentina-México), Ronaldo Munoz (Chile) e Frei Betto e Dom Helder Câmara (Brasil).

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latino-americano. A Teoria da Dependência surge como uma formulação crítica ao

etapismo economicista de viés ortodoxo que defendia que o subdesenvolvimento

econômico da América Latina – seu “atraso” – seria fruto da condição agrário-

exportadora dos países e de seu passado feudal pré-capitalista. Assim sendo, a

solução para a América Latina estaria na modernização de sua economia a partir do

fortalecimento de uma burguesia nacional progressista que alavancaria um

desenvolvimento independentista da economia do continente. Para os teóricos da

Teoria da Dependência, o que havia era uma subordinação dos países periféricos

aos países centrais que necessitavam dessa relação de desigualdade para

manterem o seu nível de desenvolvimento. Ou seja, havia uma relação de

“dependência” estrutural entre as economias desenvolvidas e subdesenvolvidas

impedindo a possibilidade de um caminho nacional-democrático para o

desenvolvimento social74. Essa relação, além de ocorrer entre os países

desenvolvidos e subdesenvolvidos, se reproduzia também em nível interno e

regional nos países subdesenvolvidos, em escala local, perpetuando a lógica de

desenvolvimento do capitalismo dependente. Além da dependência, outras

categorias relacionadas se somaram a essa teoria. A noção de subdesenvolvimento

de Andre Gunther Frank , muito utilizada pelos pensadores da libertação – assim

como as reflexões sobre o colonialismo interno (Pablo Gonzalez Casanova) e

marginalidade (Anibal Quijano, Fracisco Weffort) são desdobramentos da noção de

dependência. Dessa maneira, assim como a Filosofia da Libertação, a Teologia da

Libertação se apropriou de conceitos e chaves de compreensão elaboradas pela

Teoria da Dependência para dar fundamento à sua ação pastoral junto à população

latino-americana.

A segunda está relacionada aos teóricos do chamado marxismo cultural,

especialmente Ernst Bloch, com seu conjunto de reflexões sobre a utopia e Herbert

Marcuse com seus escritos sobre a Libertação75. A influência de Ernst Bloch à

74

Assim como ocorreu na Filosofia da Libertação e na Teologia da Libertação, na Teoria da Dependência existem inúmeros matizes na aproximação com a teoria marxista. Em sua corrente mais radical – onde estão Ruy Mauro Marini, Andre Gunther Frank e Anibal Quijano – é claramente defendida a necessidade de uma revolução socialista para responder ao subdesenvolvimento e à dependência. No caso da Filosofia da Libertação temos Augusto Salazar Bondy, Raul Fernant Betancourt, Enrique Dussel como importantes representantes dessa corrente mais radical. E, na Teologia da Libertação, Gustavo Gutierrez – leitor atento de Mariátegui –, Inacio de Ellacuria e Frei Betto. Para estes pensadores, a revolução socialista é vista como um dado incontornável para o fim das desigualdades sociais do continente latino-americano. 75

Frontalmente críticos ao Diamat soviético, Bloch e Marcuse foram renegados por parte dos marxistas latino-americanos muito ligados ao marxismo ortodoxo. As relações entre Teologia da

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Teologia da Libertação é amplamente conhecida. Baseado na Teologia da Liberdade

e na Utopia Social Cristã (desenvolvida pelo pastor Tomas Muntzer, Alemanha),

Bloch pensava a condição humana como fundamentada na ideia do “ainda não”.

Para ele, a condição humana é um estado de espera ativa, espera impulsionada ao

futuro e voltada para a realização de algo que “ainda não” se realizou, mas que se

realizará. Esse movimento essencial da humanidade em busca da concretização do

irrealizável é o que alimenta a categoria central de seu pensamento, o Princípio

Esperança.

Segundo o pensador alemão, é o Princípio Esperança que alimenta a

constante expectativa humana em um mundo que se realizará, abrindo assim o

espaço da utopia na vida social do presente e impulsionando a luta pela revolução

socialista. Para Bloch – assim como para Mariátegui –, há uma convergência entre o

sonho incondicional impulsionado pela utopia religiosa e o seu espírito revolucionário

socialista. Como explica Vieira:

Segundo a linha de reflexão de Bloch, a utopia não é algo fantasioso, simples produto da imaginação, mas possui uma base real, com funções abertas à reestruturação da sociedade, obrigando a militância do sujeito, engajado em mudanças concretas, visando à nova sociedade. Assim, a utopia se torna viável à medida que possui o explícito desejo de ser realizada coletivamente (VIEIRA, 2000, s/d).

Já o pensamento de Marcuse foi muito utilizado pela Teologia da Libertação

graças às suas reflexões sobre a sociedade industrial e do entretenimento, onde a

questão da libertação irá ocupar um lugar central. Buscando encontrar os nexos

causais entre o processo de ideologização das sociedades capitalistas altamente

industrializadas e a produção tanto da cultura de massa como de uma subjetividade

“unidimensional”, Marcuse constrói uma análise cuidadosa da produção social de

indivíduos através da lógica do consumo e pelo controle ideológico da sociedade do

capital76. Relacionando a teoria marxista com o pensamento freudiano, Marcuse

Libertação e marxistas latino-americanos muitas vezes expressou a animosidade entre essas tendências do campo marxista, o que ampliava ainda mais, a tensão já existente entre a religiosidade cristã e o ateísmo comunista. 76

É nesse contexto da sociedade industrial do pós-guerra que Horkheimer (1989) vai cunhar o termo razão instrumental. Segundo este estudioso da Escola de Frankfurt, a razão instrumental seria esse processo intersubjetivo de produção do conhecimento dominado pela noção de finalidade e controle absoluto da natureza. Para Quijano (1988), a razão instrumental surge a partir do domínio comercial inglês sobre os mercados europeus. Segundo o peruano, contraposta a ela, estaria a razão histórica, oriunda das utopias por liberdade, fraternidade e igualdade, inspiradas a partir da vida autóctone

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desenvolve reflexões que buscam compreender como a consciência e a

individualidade são sufocadas pela mass midia e quais as possibilidades de

libertação que, dialeticamente, se abrem nesse processo. Por sua atualidade nas

análises sobre a indústria cultural e subjetividade, Marcuse influenciou

decisivamente os movimentos sociais dos anos 70, onde a crítica da cultura, a

revolução dos costumes e a liberdade individual estavam entre as demandas

principais. Sobre o seu pensamento, escreve Ventura:

Conciliando Marx e Freud, ele fornecia ambiciosos objetivos políticos ao movimento estudantil, já que o papel de vanguarda da revolução – ele dizia – se transferira da classe operária, engajada no processo produtivo, para as minorias raciais, para os marginalizados pela sociedade industrial e, principalmente, para os estudantes. [...] Havia proposta mais sedutora para quem – como o jovem idealizado por Marcuse – estava ‘biologicamente destinado à revolta’ (GONÇALVES, 2008, p. 23).

Juntamente com as contribuições do pensamento crítico marxista, a Teologia

da Libertação se utilizou amplamente, por óbvia dedução, da exegese dos textos

sagrados do Cristianismo. Porém essa exegese se caracterizou por uma renovada

interpretação analítica de categorias centrais ao pensamento teológico à luz do

momento histórico que o continente e o mundo atravessavam. Dessa forma,

segundo a Teologia da Libertação, as escrituras deveriam ser interpretadas segundo

um método histórico crítico, ou seja, tratadas como um texto produzido a partir da

meditação e interpretação de uma determinada comunidade humana sobre os fatos

de sua época.

A vida de Jesus e os acontecimentos narrados nas escrituras seriam o

resultado desse conjunto de interpretações sobre a vida de homens e

acontecimentos concretos e não como a “verdade revelada nos textos” expressando

normas fixas e atemporais, leis constituintes de uma dogmática. Nesse sentido,

Jesus é visto como um homem histórico que deve ser compreendido mais a partir de

sua vida humana do que pela sua suposta condição de divindade. Um homem

histórico que viveu em um contexto de extrema opressão e que ilumina – com sua

conduta contra a opressão e a injustiça de seu tempo – a vida dos oprimidos da

América Latina.

ameríndia. Nesse sentido, a razão instrumental – um como princípio – seria copertencente à razão histórica –dois como totalidade –, realizando assim, o tensionamento entre uma dupla racionalidade.

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Já no caso da noção de pecado, a grande renovação da Teologia da

Libertação é a ideia de pecado estrutural. Nessa acepção, a noção de pecado

estaria diretamente ligada à realidade de injustiça social. A pobreza não é

reconhecida como simplesmente natural, nem como um fenômeno de caráter

estritamente individual, mas é identificada como fruto do pecado coletivo das

pessoas, que gerariam a condição estrutural de uma sociedade injusta, o maior de

todos os pecados. Nesse novo sentido, o pecado passa de um acontecimento de

cunho transcendental, entre o ser e seu Criador – expressão clara da perspectiva

aristotélica da Igreja – para se realizar concretamente em um mundo onde o homem

esqueceu valores fundamentais como a fraternidade e o amor. Ou seja, o pecado é

uma construção sócio-histórica de grupos sociais que, ao longo do tempo, vieram se

afastando de Deus.

Dessa forma, a noção de pecado estrutural, pecado social e coletivo,

complementa a ideia de uma salvação historicizada onde a práxis social, buscando

efetivar o Reino de Deus na história da humanidade, é mais importante do que uma

relação intimista com o Criador. A salvação é a redenção da humanidade por ter

reestabelecido seu vínculo com a divindade, não mais após a morte e a partir da

comunhão transcendental da alma individual; ela se personifica na libertação

histórica daqueles que sofrem por serem vítimas de um sistema onde impera a

injustiça social.

É nesse sentido que é pensada uma nova hermenêutica do sujeito na

Teologia da Libertação. Realizando um giro completo na ideia de salvação enquanto

graça divina exterior, se desloca também a ideia de “caminho para salvação”, que

passa a ser compreendida como o trilho daqueles que vivem como o Jesus histórico

e que, assim como ele, são sujeitos da salvação da humanidade. Surge o mote que

sintetiza o conjunto de reflexões e práticas da Teologia da Libertação, a “opção

preferencial pelos pobres” que representa o centro nevrálgico da afinidade eletiva da

Teologia da Libertação com o pensamento marxiano, como escreve Lowy:

Para eles (os teólogos latino-americanos), os pobres já não são basicamente objeto de caridade e sim agentes de sua própria libertação. A ajuda ou assistência paternalista é substituída pela solidariedade com a luta dos pobres por autoemancipação. Aqui é que se estabelece a conexão com o princípio político marxista fundamental: a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores (LOWY, 2000, p. 123).

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Dessa forma, teologia cristã e marxismo se conjugam na constituição de um

cristianismo da libertação. Porém, a distância inicial entre Filosofia da Libertação e

Teologia da Libertação dificultou a penetração do debate sobre a especificidade da

cultura e da identidade latino-americana no interior da Teologia da Libertação.

Apesar da inversão realizada em favor dos pobres – classe trabalhadora –, a

penetração do debate sobre as matrizes culturais ocorreu com mais dificuldade,

criando, muitas vezes, uma utilização genérica do termo pobre em seu sentido

teórico-social, muito vaga se levarmos em consideração seu peso heurístico na

constituição do pensamento e da práxis da Teologia da Libertação.

Um importante pensador da Filosofia da Libertação que contribuiu para

superar essa clara deficiência foi Enrique Dussel. Para Dussel, para além da opção

pelos pobres e da ética comunitária que deve nortear a prática da Teologia da

Libertação, é necessário desenvolver uma filosofia intercultural que seja capaz de

incluir as diferentes memórias históricas invisibilizadas pelo projeto colonial-

mercantil-capitalista. Ou seja, é preciso reconhecer no universo da história mundial

quais são os fluxos culturais e as múltiplas construções sociais que vieram

resistindo, se transformando e se combinando até o momento presente. Dessa

forma, é possível conceber qual é a real heterogeneidade presente na ideia de

cultura popular, conceito amplamente utilizado pelos teólogos da libertação, mas que

tende a perder o seu vigor, porque invisibiliza sua interculturalidade em uma

identidade reduzida à díade cristianismo/marxismo. Como explica Dussel:

O povo, como o conjunto orgânico das classes, etnias e outros grupos oprimidos, como "bloco social", é o sujeito histórico da cultura mais autêntica, a cultura popular latino-americana. Ela vem de longe, da época em que os primeiros asiáticos atravessaram o estreito de Bering, e continuará adiante. Em todas as mudanças, em todos os processos de libertação, esse povo se expressa de alguma maneira, mas hoje, mais do que nunca no passado, esse povo cresce e se afirma (DUSSEL, 1997, p. 190).

Assim, seguindo a ideia da cultura latino-americana enquanto mestiçagem

heterogênea em movimento, Dussel defende que a noção de povo seja investida de

uma análise que leve em conta as diferentes camadas históricas presentes em sua

constituição. Nesse sentido, propõe uma subversão na dupla consciência latino-

americana, já que seguindo o padrão de poder próprio da dominação colonial –

colonialidade do poder – a noção de povo indica justamente o contrário, ou seja, a

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ausência de saberes e densidade histórica, já que formada por seres inferiorizados

na escala hierárquica racial.

Para Dussel, a cultura popular é a detentora desse conjunto de saberes que

remontam a diferentes memórias históricas e se combinam de múltiplos modos

tecendo um modo de vida próprio daqueles que são invisibilizados, ou melhor, que

são visibilizados somente como parte de uma totalidade social que os homogeneíza

e simplifica a sua complexidade. Sujeito negado pela colonialidade do poder, o povo

pobre é, portanto, o sujeito por excelência da transformação radical da sociedade.

Porém, diferentemente do esquema clássico que interpreta a classe trabalhadora

enquanto proletariado – e até mesmo pobretariado77 – para Dussel é necessário

reconhecer as diferentes camadas históricas em suas distintas racionalidades

constituídas ao longo dos séculos de opressão, para que se possa construir uma

práxis libertadora autêntica, onde fique explícita a heterogeneidade e densidade

cultural-filosófica do povo latino-americano.

A Filosofia da Libertação e a Teologia da Libertação se desenvolveram assim,

a partir da tradição multicultural do continente e da necessidade histórica de

emancipação de suas populações. Dessa forma, ambas partem da necessidade de

superação da condição de subdesenvolvimento econômico, político e cultural trazida

pela condição de dependência estrutural que conformam o território latino-

americano. A libertação emerge como a categoria que explicita a relação existente

entre exploração econômica e a produção do universo cultural latino-americano.

Nesse sentido, a partir da libertação pode-se vislumbrar uma subversão na dupla

consciência histórica do continente, onde se estabelece uma nova correlação na

tensão entre suas forças constituintes.

Essa dinâmica se torna bastante visível ao analisarmos como, em cada um

dos eixos que formam a Filosofia da Libertação, é possível identificar a tensão

filosófica entre o um como princípio e o dois como totalidade. Se nos atermos à

dimensão cultural, a Filosofia da Libertação defende que a cultura latino-americana

assuma seu ethos barroco produzindo assim uma contraconquista. Ou seja, que

faça a mestiçagem cultural ser reconhecida como dado original do modo de ser

77

Pobretariado é um termo cunhado por sindicalistas marxistas cristãos de El Salvador para designar a ampla parcela da população que é oprimida: desempregados do campo e da cidade, grupos racializados e subjugados, culturas marginalizadas e os proletários (LOWY, 1989).

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latino-americano – crítico – e não como uma prática de mimetismo mecânico e

imperfeito de uma cultura colonial e autodesignada como superior.

No caso da estrutura econômica, a Teoria da Dependência mostra a

inoperância de categoria evolucionista do pensamento economicista e demonstra

como é necessário reconhecer a interdependência entre territórios, privilegiando

assim a noção de relação e copertencimento entre estâncias aparentemente

separadas. Nesse sentido, a Teoria da Dependência é uma produção legitimamente

latino-americana em contraponto com as teorias clássica da economia.

Por fim, se nos detivermos no pensamento teológico, a libertação é um claro

giro epistemológico para uma noção historicizada da religião, onde a relação entre a

humanidade e a dimensão transcendente da existência estão balizadas pelas

relações sociais e onde o Outro, enquanto oprimido , é sujeito da salvação coletiva

em detrimento de uma relação intimista em busca da salvação da alma individual.

Dessa forma, vemos nos anos 60, 70 e 80 do séc. XX, a ideia de uma

revolução socialista a partir da especificidade histórico-cultural do continente ganhar

um novo contorno. A ideia de Libertação, contraponto à ideia de dependência,

expressa essa possibilidade. A partir dos anos 90, com o fim da União Soviética,

estabelece-se uma nova correlação de forças onde a bandeira do comunismo

perderá muita força e, com ela, a ideia de uma revolução proletária.

Se os movimentos sociais de 1968 já apontavam para a necessidade de

repensar algumas práticas que se cristalizaram na práxis política do bloco socialista,

a partir da década de 90 essas distorções se evidenciam ainda mais. Por outro lado,

a dimensão crítica da memória coletiva das populações se fortalece e ganha mais

espaço e visibilidade sociopolítica. Nesse contexto uma nova articulação entre luta

pelo fim do subdesenvolvimento econômico e autenticidade cultural se organiza,

ressaltando ainda mais a dimensão colonial da dominação e, portanto, a

necessidade de uma descolonização de todos os âmbitos das sociedades latino-

americanas.

Descolonização e filosofia intercultural crítica

O processo de erosão que culmina com o fim da antiga União Soviética no fim

dos anos 80 explicitou a necessidade de se debater de maneira crítica – e

autocrítica, principalmente – os caminhos tomados hegemonicamente pelo projeto

socialista. Sobre diferentes aspectos, surgiram críticas e denúncias ao bloco

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socialista, evidenciando a racionalidade instrumental própria aos regimes

burocráticos centralizados e seu aparato de controle e homogeneização da

sociedade. Um dos desdobramentos dessa política é a submissão da diferentes

matrizes étnicas e nacionais em uma mesma identidade, muitas vezes ignorando

suas diferenças, produzindo invisibilidade, de um lado, e conflitos étnicos de

diferentes ordens, de outro.

Nesse sentido, com a queda do muro de Berlim se abre um novo ciclo no

debate sobre a diversidade cultural e seu lugar no interior do pensamento crítico do

séc. XXI. No centro da questão está o papel do Estado-Nação na opressão das

diferentes minorias e como repensar suas práticas políticas a partir da legitimação

dessa diversidade e de sua demanda por participação. Há também uma ascensão

de movimentos sociais de caráter étnico, racial e de gênero, evidenciando a matriz

colonial e patriarcalista do Estado-Nação moderno.

Por outro lado, o fim da URSS é o marco do fim de uma bipolaridade e do

início de um processo de mundialização do capital em sua forma neoliberal. Nessa

nova etapa do capitalismo, há um claro interesse no enfraquecimento das fronteiras

Estado-Nação e no fortalecimento de identidades minoritárias como estratégia de

desmonte e fragmentação de instituições de controle ao fluxo de capital,

inaugurando o que Jameson (2007) chamou de lógica cultural do capitalismo tardio.

É nesse contexto que, a partir do final dos anos 90, década da penetração do

capitalismo neoliberal no continente, via Consenso de Washington78, e do

consequente agravamento nas desigualdades sociais dos países da região, se inicia

o debate sobre a descolonização da América Latina.

Impulsionada principalmente pela chegada de Hugo Chavez à presidência da

Venezuela, em 199879, pela eleição de Evo Moralez na Bolívia (2005) e de Rafael

Correa no Equador (2006), a ideia de descolonização do continente latino-americano

não é nova. Ela remonta diretamente aos processos de independência de todo o

78

Consenso de Washington é um receituário formulado por instituições financeiras sediadas na capital dos Estados Unidos, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Segundo seu receituário, o Estado deve se retirar da economia, abandonando assim a regulação do mercado e abrindo suas fronteiras para a livre circulação das mercadorias. 79

Chávez assume a presidência da Venezuela afirmando que seu governo continuará a obra de El Libertador Simon Bolívar, promovendo a integração regional, a educação para toda a população e, talvez a bandeira mais forte do bolivarianismo, a realização de um governo anti-imperialista. A declarada e publicizada intenção do governo Hugo Chávez de se realizar como uma continuidade do legado de Bolívar explicita claramente o lugar de toda a memória histórica da Libertação e do Latino-americanismo que continua presente no pensamento crítico do continente.

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continente e, principalmente, pela figura de Simon Bolívar, El Libertador. Mais tarde,

a partir da emergência filosófica da categoria da Libertação, a descolonização, termo

utilizado no processo de luta anticolonial dos países africanos80, exerce também

clara influência nos filósofos da libertação latino-americanos. Ou seja, o termo

descolonização guarda uma profunda relação com a categoria da Libertação.

Porém, apesar dessas semelhanças estruturais, há um novo elemento que

distingue a categoria da descolonização latino-americana: uma ênfase maior nas

relações de poder que se configuram através das identidades culturais relacionadas

à raça e etnia81. Nesse sentido, se nos anos 60, 70 e 80 a Teoria da Dependência –

dividida entre marxistas e weberianos – e a Teologia exercem papel central na

formulação da Libertação, a partir dos anos 90, tanto os militantes como os

estudiosos das Ciências Sociais e da Teologia passam a dar maior ênfase à noção

de dominação cultural presente na relação colonial. Ou seja, se a partir dos nos 60 a

dimensão econômica da dominação colonial-mercantil-capitalista – a dependência –

aparece como elemento central na elaboração da categoria da Libertação e na

fundamentação de uma filosofia crítica latino-americana, a partir dos anos 90 a

dimensão intercultural retorna com maior ênfase ao campo do pensamento crítico

latino-americano82.

80

Interessante lembrar que, na Argélia de Frantz Fanon, principal pensador da descolonização africana, o nome do principal movimento de descolonização – do qual Fanon era militante – se chamava justamente Frente de Libertação Nacional da Argélia. 81

Um importante conjunto de estudos que ajudam a entender o debate sobre a descolonização são os chamados estudos pós-coloniais. Surgidos na década de 70 e 80, a partir da produção de intelectuais vindos do chamado terceiro mundo, geralmente de ex-colônias britânicas, que começaram a abrir novas possibilidades de estudos dentro das universidades em razão das novas configurações e rearticulações do capitalismo global pós-Guerra Fria, os estudos pós-coloniais partem da ideia central de que há um processo de invisibilização da vida e da voz de uma imensa população subalternizada nos países não centrais do capitalismo. A teoria pós-colonial analisa o efeito do discurso e das identidades produzidas a partir da realidade social desses países e busca empreender um descentramento dos discursos oficiais instituídos, a partir da desconstrução desses lugares de poder. As obras Orientalismo do pensador palestino Edwar Said (1978), Pode o subalterno falar? da indiana Gayatri Spivak (2010) e Identidade cultural na pós-modernidade do jamaicano Stuart Hall (2003) são exemplos de obras importantes que explicitam a proposta dos estudos pós-coloniais. 82

A partir dos anos 90, são formados grupos e redes de pesquisadores espalhados em diversos países da América, com o objetivo de se debruçar sobre a realidade latino-americana, tendo como horizonte teórico a descolonização. A rede de pesquisadores da colonialidade/modernidade é formada por um conjunto de pensadores que orbitam em torno da categoria da colonialidade. Cunhada ao longo dos anos 90 por uma série de pesquisadores, a colonialidade alcança lugar de categoria central a partir da noção de colonialidade do poder desenvolvida por Anibal Quijano. Sua ideia básica – já explicada no presente estudo – consiste na ideia de que a modernidade se inicia em 1492 quando, a partir da Conquista da América, funda-se um padrão de poder baseado na ideia de raça e no controle hierarquizado do trabalho ligado a essa ideia. A partir da colonialidade do poder, surge a noção de colonialidade da natureza (Escobar e Coronil, 2000), colonialidade do conhecimento (Lander, 2000; Mignolo, 2003), colonialidade das Ciências Sociais (Castro Gomez e

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Assim, pode-se perceber como a ideia de interculturalidade passa a participar

da agenda sociopolítica dos países latino-americanos, seja a partir da entrada aguda

de políticas neoliberais em todo o continente e sua noção de um multiculturalismo

neoliberal – interculturalidade conservadora –, seja a partir do debate da

descolonização. Estabelece-se assim uma nova circunstância histórica no debate

sobre a identidade latino-americana. Dessa forma, a partir dos anos 90, destacam-

se dois horizontes filosóficos na utilização do termo interculturalidade. Como explica

Fleuri:

A multiplicidade de sentidos da interculturalidade no atual contexto intertransnacional resulta, por um lado, dos movimentos sociais-políticos-ancestrais e de suas lutas por reconhecimento, de direito e de transformação social. Por outro, a importância da interculturalidade no mundo contemporâneo está ligado às configurações globais de

Lopez Segrera, 2000) e colonialidade de gênero (Lugones, 2008). Outras categorias diretamente vinculadas à colonialidade são o eurocentrismo (Dussel, 2000), epistemícidio (Mignolo, 2007), sistema mundo (Wallerstein, 1974-1989), totalidade heterogênea (Quijano, 2008) e interculturalidade crítica (Walsh, 2009). Catherine Walsh é professora da Universidad Andina Simon Bolívar, localizada em Quito no Equador – considerada uma das instituições de maior comprometimento com o chamado pensamento decolonial. Outro grupo importante a trabalhar com a categoria da descolonização é o boliviano Grupo Comuna formado por intelectuais militantes que se reúnem a partir de 1998 para discutir e publicar livros e artigos extremamente críticos ao neoliberalismo e baseados em diversos autores de filiação marxista. Entre seus membros está Alvaro Garcia Linera, que se tornou vice-presidente de Evo Morales; Luis Tapia, considerado o maior estudioso de Rene Zavaleta (reconhecido teórico comunista boliviano); Raquel Gutierrez, intelectual mexicana e Raul Prada. Porém, muitos outros intelectuais se relacionaram diretamente com o Grupo Comuna como Jorge Viana e Silvia Rivera Cusicanqui, coordenadora do Taller de Historia Oral Andina (THOA), reconhecido núcleo de pesquisa da Universidad San Andres, em La Paz. A partir da eleição de Evo Morales, pode-se afirmar que uma parcela significativa dos intelectuais da esquerda boliviana passou a considerar o tema da descolonização, seja para defendê-lo, como Felix Patzi (2010); ou criticá-lo, como o faz Speedding (2010). Interessante ressaltar a não vinculação desses intelectuais ao pensamento de Mariátegui (afirmação feita por Tapia, em entrevista realizada janeiro de 2012, em La Paz). Outro intelectual importante da temática da descolonização é Boaventura de Souza Santos que, a partir de categorias como Ecologia dos Saberes e Epistemologias do Sul (2010), tem se debruçado sobre a temática da descolonização em suas mais diferentes esferas. Embora não estejam diretamente vinculados aos estudos da descolonização, outros dois intelectuais se dedicaram (e dedicam) ao estudo de temáticas convergentes com o horizonte descolonizador. São eles o sociólogo brasileiro Michael Lowy e o sociólogo mexicano Bolívar Echeverría. Considerado um dos maiores estudiosos da obra de Marx e de alguns de seus continuadores, como Walter Benjamim e José Carlos Mariátegui, Lowy é um profundo estudioso da sociologia da religião, tendo se dedicado aos estudos sobre a Teologia da Libertação (2000), o pensamento romântico (1998), a relação entre judaísmo e anarquismo, o surrealismo e outras inúmeras temáticas onde se destacam o estudo das afinidades eletivas entre diferentes dimensões da cultura como religião, política e arte. Desde 2000 tem-se dedicado aos estudos e militância do ecossocialismo, ou seja, uma proposta socialista que busque absorver o necessário debate em torno da ecologia. Já Bolívar Echeverría é um conhecido estudioso de Sartre e Heidegger. Porém, suas formulações mais conhecidas têm como fundamento a teoria de Marx e da Escola de Frankfurt, notadamente Walter Benjamin. As ideias expressas através de suas reflexões sobre os ethos históricos, o ethos barroco e a mestiçagem crítica são nitidamente convergentes com a temática da descolonização, apresentando matizes e interpretações que enriquecem a tradição latino-americana em torno da relação entre mestiçagem, identidade e pensamento crítico do continente.

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poder, de capital e de mercado [...]. A interculturalidade crítica aponta, pois, para um projeto decolonial (FLEURI, 2012, p. 9).

Essa dupla acepção do termo interculturalidade remete diretamente à tensão

constituinte de nossa dupla consciência histórica latino-americana. De um lado

temos a interculturalidade conservadora – um como princípio – na forma de uma

proposta multiculturalista neoliberal. Segundo essa vertente do pensamento

intercultural83, o diálogo deve se estabelecer dentro dos limites da estrutura social

capitalista. Ou seja, destituído de todo caráter crítico que ameace o status quo

monocultural eurocêntrico. Para o multiculturalismo, a pluralidade de diferentes

tradições e memórias pode estar presente na sociedade, desde que não se

contradigam os procedimentos de nível político-econômico estruturais do sistema

colonial-mercantil-capitalista. Nessa concepção, cultura é entendida com uma

unidade encerrada em si mesma, dotada de características imóveis no tempo e na

história. O encontro intercultural seria assim, um exercício de demonstração de suas

características culturais ao outro dentro de um espaço de “diálogo e tolerância”,

criando uma sociedade que é aparentemente diversa, mas que, em suas mediações

estruturais se orienta segundo uma lógica monolítica e hierarquizada, já que não há

possibilidade real de mudança e reestruturação da lógica de opressão e exploração

que produz subalternidade.

Destituído do caráter crítico, essa noção de diálogo intercultural prevê a

integração da diversidade no interior de um sistema hierárquico pré-determinado

onde a noção de diversidade cultural se realiza como um novo desdobramento do

projeto de dominação colonial, a colonialidade do poder. Segundo Walsh,

[...] isso forma parte do que vários autores têm definido como “a nova lógica cultural do capitalismo global”, uma lógica que reconhece a diferença, sustentando sua produção e administração dentro da ordem nacional, neutralizando e esvaziando seu significado efetivo, tornando-a funcional a essa ordem e aos ditames do sistema mundo e da expansão do neoliberalismo. Nesse sentido o reconhecimento e respeito às diferenças culturais se convertem em uma nova estratégia de dominação (WALSH, 2009, p.78).

83

Segundo Viana, a concepção conservadora de interculturalidade é “dominante”, sendo amplamente hegemônica nas universidades e em políticas ao redor do globo. A interculturalidade crítica é uma proposição minoritária, que vem se construindo nos últimos anos a partir da realidade latino-americana, seus movimentos sociais etnopolíticos e como um dos desdobramentos da filosofia latino-americana da Libertação. Para Walsh (2009), “a interculturalidade entendida criticamente ainda não existe, é algo por se construir”.

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Dessa forma, o multiculturalismo conserva a lógica central da colonialidade do

poder, apesar de propor a tolerância e a igualdade entre distintas formas culturais no

interior de uma mesma totalidade. Mantida a hierarquia racial e o controle do

trabalho que estruturam as sociedades em torno da colonialidade do poder, a

diversidade é absorvida em uma estrutura sociopolítico econômica onde a “cultura” é

reconhecida como conjunto de costumes e práticas sociais diversas que podem ser

intercambiadas sem maiores prejuízos à lógica de acumulação que se mantêm.

Como resultado disso, para Walsh, a interculturalidade proposta pelo

multiculturalismo passa a ser uma estratégia para controle dos conflitos étnicos e

dos diversos movimentos sociais de recorte sociocultural já que produzem

“conservação da estabilidade social com o fim de impulsionar os imperativos

econômicos do modelo (neoliberal) de acumulação capitalista”.

Do outro lado temos a interculturalidade crítica – dois como totalidade – que

tem como fundamento a crítica estrutural à colonialidade do poder e a construção de

uma outra forma de sociabilidade, descolonizada em todas as suas dimensões. Para

que isso se concretize, o diálogo e as tensões entre as diferentes memórias

históricas no interior da sociedade são entendidos como dinâmica alienável do

projeto de libertação dos povos e de sua condição de subalternidade, opressão e

exploração. Nesse sentido, podemos falar de uma interculturalidade crítica onde o

sistema hierárquico próprio da colonialidade do poder é subvertido a partir da noção

de que há um conhecimento construído desde abajo, que se constitui em um centro

de irradiação de um pensamento alternativo ao capitalismo global.

Ou seja, a interculturalidade crítica se realiza a partir de um projeto de

libertação dos povos, de um projeto descolonizador de toda a sociedade criado

desde abajo e trazendo à centralidade, portanto, a construção popular do

conhecimento e das práticas sociais de “diálogo” e de igualdade.

Nesse sentido, a interculturalidade crítica é inseparável de um projeto ético-

político que se oriente pela superação da colonialidade do poder através, também,

de novos mecanismos de organização social e de controle do poder. Referindo-se à

interculturalidade em países andinos, afirma Viana:

O que a interculturalidade em seu uso crítico busca hoje é uma intervenção de paridade entre subalternos e grupos dominantes, compondo instituições do mundo liberal capitalista com instituições que asseguram a abertura de um novo tipo de democracia com elementos de democracia direta por meio de costumes e usos dos

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povos indígenas, abrindo, por fim, um novo processo de constitucionalismo e de processo democrático. Uma reinvenção do Estado e da chamada democracia (VIANA, 2010, p. 129).

Além de ser guiada por um novo projeto ético-político que redistribua e

reorganize o controle de poder a partir da memória histórica dos povos latino-

americanos em suas experiências de luta social, a interculturalidade crítica deve se

balizar por uma concepção da cultura enquanto formação histórica no seio do

mundo cotidiano, se afastando assim da concepção de cultura “pura”. A identidade

cultural é assim um campo histórico de luta onde, além de voltada ao seu exterior –

indígenas x estado nação capitalista –, deve buscar suas próprias contradições

internas84, como explica Dussel:

O diálogo intercultural presente não é só um diálogo entre os apologistas de suas próprias culturas, que tentam mostrar aos outros as virtudes e valores de sua própria cultura. É antes de tudo, o diálogo entre os criadores críticos de sua própria cultura (intelectuais da fronteira entre a própria cultura e a Modernidade). Não são aqueles que meramente defendem sua cultura diante do inimigo, e sim aqueles que a recriam em sua própria tradição cultural da mesma modernidade que se globaliza (DUSSEL, 2004, p. 24).

Assim, a interculturalidade crítica prevê que, antes da possibilidade de diálogo

abstrato a partir de uma pretensa igualdade de condições, é necessário que as

estruturas de poder e dominação em suas diferentes formas sejam questionadas. É

esta a base que deve estruturar o debate intercultural crítico e, como consequência,

uma filosofia intercultural crítica. Partindo desse pressuposto que fundou a Filosofia

da Libertação – o fim da dependência e da dominação em diferentes níveis – e a

tradição da mestiçagem cultural latino-americana, formam-se as bases para uma

filosofia intercultural crítica onde o horizonte de libertação dos povos se ressignifica

e se renova.

A filosofia intercultural crítica se constitui dessa forma como um

desdobramento histórico da Filosofia da Libertação latino-americana, onde se

reconhece a necessidade de desconstruir a ideia de que a filosofia é um exercício

realizado segundo critérios eurocêntricos sobre a investigação da verdade. A

84

Interno e externo aqui não são referência geométricas que remetem a uma ideia funcional da cultura. O uso da dimensão espacial neste contexto tem relação com a dimensão intersubjetiva de cultura, ou seja, mais do que uma fronteira delimitada, externo e interno são medidores relativos e em constante transformação, sendo, em última análise determinações apontadas pela livre indicação de seus indivíduos.

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filosofia intercultural parte de um fundamento epistemológico que defende que há

diferentes “filosofias” ao redor do mundo, cada uma delas dona de sua

complexidade, contradições e subdivisões próprias ao seu processo histórico e sua

situação geopolítica. Dessa maneira, a filosofia intercultural deve partir da premissa

que diferentes culturas foram capazes de realizar, ao longo do tempo, um saber

ético-filosófico capaz de responder às questões fundamentais da humanidade.

Ou seja, uma filosofia intercultural busca visibilizar e alcançar pensamentos

distanciados e invisibilizados pela razão eurocêntrica, tentando criar um diálogo

entre as chamadas “Epistemologias do Sul”, ou seja, entre esse conjunto de saberes

que tem sido sistematicamente inferiorizado, segundo a classificação própria à

colonialidade do poder. Assim, muitas formas de saberes próprios de diferentes

povos e nações colonizadas são desconsideradas enquanto saberes autênticos e

válidos. A filosofia intercultural busca superar essa desigualdade ao pensar

maneiras de realização de um verdadeiro diálogo horizontal entre culturas diversas.

Porém, seguindo o caminho trilhado pela Filosofia da Libertação, também na

filosofia intercultural crítica não é possível a ideia de diálogo sem levar em

consideração as assimetrias político-econômicas existentes entre os diferentes

povos. Nesse sentido, a filosofia intercultural crítica – assim como a

interculturalidade crítica – só pode efetivar-se plenamente a partir de um projeto

societário libertador, ou seja, que esteja fundamentado em um horizonte de

superação da exploração, opressão e subalternização de amplas parcelas da

população mundial.

Dessa forma, polarizada entre o multiculturalismo neoliberal e uma filosofia

intercultural crítica, a dupla consciência histórica latino-americana, em sua luta

agônica entre duas almas – como aponta Mariátegui – ganha, no séc. XXI, o

contorno de duas formas de relação entre o modo de produção capitalista – e sua

crítica – e a diversidade cultural. Seguindo a lógica cultural do capitalismo tardio, se

agudiza ainda mais a colonialidade do poder e o entrelaçamento entre controle de

trabalho e raça.

Eixo central do desenvolvimento do capitalismo mundial, a colonialidade do

poder se reorienta ao renovar a sua estratégia de dominação. Se antes, a

branquitude era entendida como o padrão único a ser seguido na corporificação do

conjunto de valores e da racionalidade tomada como modelo, a partir dos anos 90 a

diversidade cultural, expandida pelos fluxos semióticos cada dia mais velozes em

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produzir hibridismos, multiplica a aparência desse padrão. A pluralidade é então

enaltecida e comemorada, desde que não atinja os fundamentos da acumulação e

da exploração econômica.

Por outro lado, a mestiçagem crítica também se desdobra e se renova,

aprofundando o projeto de Libertação para um horizonte de descolonização radical.

Este horizonte desponta a partir de uma interculturalidade crítica, de uma filosofia

intercultural crítica que se concretiza na práxis histórica de diferentes movimentos

sociais do continente, vislumbrando uma subversão na formação da dupla

consciência histórica e reacendendo a esperança de um processo revolucionário

surgido da lutas sociais protagonizadas pelos povos da América Latina.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Subitamente na esquina do poema, duas rimas olham-se atônitas, comovidas, como duas irmãs desconhecidas...

(Mário Quintana)

Em dezembro de 2012, durante minha estada em Lima para a pesquisa sobre

a obra de Mariátegui, tive a oportunidade de me encontrar com o professor Anibal

Quijano. Conversamos sobre Mariátegui, a teoria da colonialidade do poder, o

socialismo e outros temas relativos à sua obra. Já no fim da entrevista, perguntei ao

professor Quijano quais eram, além de Mariátegui, suas principais influências

teóricas. Foi o primeiro momento de toda a nossa conversa em que ele se pôs em

silêncio pensativo antes de responder. A impressão que tive é que foi a única vez

em todo o nosso encontro que ele precisou dizer algo que não costuma dizer e

explicar cotidianamente. Após uma pausa, ele falou:

Uma grande parte da narrativa e da poética latino-americana é a fonte mais direta. Há uma poética latino-americana. Seja em César, Vallejo ou Oswald de Andrade, seja em Arguedas ou Guimarães Rosa. Está no francês, no português e no espanhol muito mais rico daqui. Porque são muitas fontes. É um mundo muito mais rico, mais potente, mais vivo e produtivo esse da América Latina. Há uma poética latino-americana que cruza sua música, sua poesia e seus relatos. Tudo isso eu tenho lido muito e durante todo tempo. Acho que trabalho mais com isso que com a teoria sociológica. O realismo de que fala García Márquez é real. Tudo que ele descreve é real, aconteceu de verdade. É um mundo realmente mágico se quiser. Há uma poética latino-americana que produz uma imensa densidade, é uma maneira de existir onde a heterogeneidade estrutural é a própria possibilidade da produção histórica se realizar. Se há que buscar uma fonte, é essa (entrevista concedida ao autor em dez./2012, cidade de Lima)

Do um como princípio ao dois como totalidade. Dupla racionalidade fundante

do chamado pensamento ocidental, a tensão existente na dupla consciência latino-

americana esteve presente durante todo o trajeto deste trabalho. Remontando ainda

ao recuado período da mitopoética de Homero e Hesíodo, os dois fundamentos

filosóficos do mundo ocidental estão presentes na base da construção identitária

latino-americana. Foi objetivo deste trabalho indicar esse percurso histórico-

filosófico, seus marcos mais importante, os caminhos de sua construção.

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Dividido entre formas opostas de lidar com o outro, com o não ser, um desses

marcos é a relação entre logos e mithos. De um lado, a cisão entre essas

dimensões, mithos sendo destituído de existência, não ser invisibilizado, gênese de

razão metafísica que se isola do mundo da vida. Do outro, o mithos imbricado em

logos, em tensão e copertencimento com seu elemento oposto, formando uma razão

nutrida pelo universo mitopoético onde a verdade, assim como o reino dos deuses, é

múltipla e rica de diferenças, se transforma historicamente, pertence ao mudo da

vida. É essa divisão primeira que, para Quijano, Mariátegui enfrenta. É também essa

diferença que o sociólogo identifica no trecho da entrevista citado acima como sendo

a especificidade maior da identidade latino-americana. Porém, como em Mariátegui,

o universo mítico em que se apoia a realidade da América Latina não é um mundo

ideal, reino apartado da vida política, da vida corpórea e cotidiana com seus

variados sentidos. É um mito essencialmente histórico, forjado no seio do mundo

pela vontade humana. Mito que não opera segundo leis imutáveis, mas que se

transforma como o rio heraclidiano, que ganha sua unidade ao estar sempre em

mutação. Mito que, nos alvores do século XX, se torna, para o Amauta o horizonte

da revolução socialista, subversão total na dupla consciência latino-americana.

Porém, não é só no universo da filosofia e da religião que essa via duplicizada

do mundo ocidental colonial se concretizou. Formada por diferentes memórias

históricas que se reorganizam a partir do caos e da violência surgida do confronto

entre civilizações europeias e indígenas, uma nova realidade social se estrutura

seguindo essa dupla orientação do pensamento. A dupla consciência histórica latino-

americana se desenvolve na tensão entre colonialidade do poder e mestiçagem

crítica – lógicas opostas que se digladiam na constituição do mundo latino-

americano, concretizando-se em valores, estéticas e modos de organização social.

Enquanto hierarquização racial e controle do trabalho, o modo de pensamento

baseado na mesmidade se desdobra no padrão de dominação próprio da

colonialidade do poder, que hierarquiza e invisibiliza a diversidade segundo um

padrão monológico de classificação social. Contrário a ele, a mestiçagem crítica cria

uma modernidade dissonante no interior do sistema capitalista. Seguindo a lógica da

outredade, ela combina diferentes elementos de maneira descontínua em um

mesmo plano. A esse processo de resistência, Lezama Lima chamará

contraconquista, ou seja, a capacidade de subverter a conquista colonial a partir de

um logos poético, esteio de uma história pensada através da heterogeneidade

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estrutural da sociedade. Nela, diferentes tempos e memórias se combinam e se

tensionam em uma poiesis demoníaca, lógica mestiça própria da América Latina.

Mariátegui constitui sua ideia de socialismo com base nessa heterogeneidade

estrutural que fundamenta a mestiçagem e a poética propriamente latino-

americanas. Capturando diferentes dimensões da realidade em uma dialética dos

extremos, Mariátegui reúne polos opostos em uma mesma totalidade heterogênea,

apresentando uma alternativa socialista capaz de reunir mundo indígena, revolução,

espiritualidade e poética em um mesmo movimento. Para Mariátegui, havia uma luta

agônica entre duas almas na consciência latino-americana. De um lado, o decadente

edifício positivista erigido a partir do capitalismo. Do outro, o novo ânimo, a vontade

apaixonada, o mito revolucionário e a liberdade absoluta da imaginação capazes de

subverter a dupla consciência social latino-americana. Reagindo contra a versão

eurocêntrica do marxismo, Mariátegui produz uma visão descolonizada da luta de

classes, na qual a heterogeneidade histórica do continente e sua tradição

heterodoxa, se somam ao escopo teórico marxiano, ampliando seu alcance.

As noções de tempo mítico, de logos poético e de uma mística revolucionária

ganham ainda mais densidade na literatura latino-americana do século XX.

Reunindo tradições e regionalismos às vanguardas estéticas e revolucionárias, a

literatura bebe diretamente nessa fonte imaginária própria da mestiçagem crítica do

continente, levando para o mundo das obras literárias o ethos barroco próprio do

labirinto identitário latino-americano. O indigenismo de Arguedas, o realismo

maravilhoso de Carpentier e a antropofagia de Mário e Oswald de Andrade são,

cada um ao seu modo, fenômenos que reúnem – como a obra de Mariátegui

também o fez – diferentes perspectivas históricas presentes no continente, com seus

percursos e dinâmicas de entrelaçamento.

Essa variedade de fontes que se reúne em uma totalidade heterogênea

também está presente na categoria filosófica da libertação, síntese de múltiplas

determinações que remonta diretamente ao legado das utopias evangélicas da

colonização, ao mundo barroco popular, com sua mestiçagem e sua dialética dos

extremos. Reunindo mística revolucionária, crítica à razão instrumental e

pensamento marxista, a libertação é um dos elementos centrais presentes na práxis

que resultou nas revoluções do continente, assim como no trabalho de base

realizado pela Teologia da Libertação.

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É a partir desses elementos que, no século XXI, se abre a possibilidade de

pensar em um horizonte descolonizado para o continente. Projeto visualizado por

Mariátegui no início do séc. XX e chamado de socialismo indo-americano, a utopia

revolucionária descolonizada do Amauta reuniu, pela primeira vez, a vanguarda

política europeia, o mundo indígena e outras tradições em um mesmo projeto contra

o capital. Ou seja, a partir da ideia de uma revolução construída com base em uma

filosofia intercultural crítica que abranja as diferentes memórias históricas na

realidade social. No início do séc. XXI, quando o nível de conflito social e o

esgotamento do modelo neoliberal de desenvolvimento atingem seus níveis mais

elevados, torna-se mais atual a luta alternativa radicalmente anticapitalista. Herdeiro

do socialismo mariateguiano e das lutar revolucionarias do século XX, esse

horizonte aponta assim, uma nova/velha estrela da manhã para os povos do

continente e do mundo. Essa nova relação entre prática e utopia revolucionária, mito

multifacetado entranhado na história do continente, deve ser capaz de subverter a

correlação de forças na dupla consciência latino-americana. A esse novo imaginário

social, Anibal Quijano chamou novo sentido histórico.

A expressão “novo sentido histórico” aparece em 1941 em um texto de José

Maria Arguedas, El nuevo sentido histórico del Cuzco, em que o escritor descreve a

história da ocupação do antigo centro do mundo incaico. Para Arguedas, Cuzco, o

“umbigo do mundo”, estaria em oposição à cidade de Lima, representante de um

Peru tomado por valores eurocêntricos, coloniais e criollos. Segundo o escritor,

haveria uma subversão dessa luta entre “dois Perus” – duas almas, dupla

consciência – graças a um processo de retomada indígena de seu território e de sua

autonomia. Cuzco, como representação desse universo indígena mestiço, seria o

símbolo maior do novo sentido histórico do Peru. Esse evento de revolução

indígena-mestiça – pachacuti – que recolocaria o universo em seu lugar, é retomado

inúmeras vezes por Arguedas e representa um marco não só em sua obra, mas em

toda a cultura andina, com forte presença na mítica, nas artes e na política de todos

os países dessa região.

A noção de pachacuti, cataclisma mítico que destruirá o mundo para

reconstruí-lo sob novas formas, ganha assim uma ordenação sócio-histórica

moderna na obra de Arguedas e aponta para uma interpretação indígena-mestiça da

utopia social no continente. Revolução social de caráter mítico, o pachacuti

representa a chegada de uma nova era a partir da emergência de um novo tempo-

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espaço. É uma utopia cosmopolítica que orienta a práxis de diferentes povos

andinos em sua organização social ao longo de quinhentos anos. Subversão

violenta na realidade que é descrita pelo menino que olha a ponte e o rio no livro Os

rios profundos, pachacuti é o marcador do tempo cíclico do antigo mundo inca que

ganha uma releitura na ideia de novo sentido histórico proposto por Arguedas e

Quijano, assim como no mundo macunaímico brasileiro ou no universo mitológico da

santeria cubana-haitiana, “reino deste mundo” que inspirou Carpentier.

É tempo agora de uma subversão nos valores instituídos a partir de uma

práxis popular e mestiça. Tempo de descolonização radical de todos os âmbitos da

sociedade e de um debate intercultural que inclua a antropofagia cultural do universo

indígena e caboclo brasileiro, assim como toda a ancestralidade afro-brasileira

sintetizada no complexo conceito de Asè, – Axé – e a ancestralidade afro-caribenha

em sua gana por liberdade. Que inclua também as diferentes elaborações do

pensamento contemporâneo mestiço, indígena e teológico: sumac kawsay

(quéchua), sumac qamanã (aimara), teko porá (guarani), bem viver cristão e os

caracoles zapatistas. Que respeite o legado e o acúmulo das lutas do proletariado e

das populações agrárias do continente em suas diferentes realidades, assim como

as novas lutas protagonizadas pelas populações nas grandes cosmópoles,

principalmente da juventude racializada.

Saber articular essa enorme multiplicidade é saber dar continuidade a um

processo que existiu desde o início da América, mesmo que invisibilizado. Mundo

realmente mágico em seu labirinto barroco, como afirmou Quijano. É Borges quem

melhor descreve nosso caminho quando escreve em um conto a história do labirinto

invertido, contada do ponto de vista do minotauro, ser mítico cindido ao meio. Em

uma canção criada em homenagem ao guerrilheiro cubano Abel Santamaría, Silvio

Rodriguez canta a história de um “animal de galáxias”, guerrilheiro interestelar e

revolucionário feito de mundos opostos. Mariátegui nos fala de uma criação heroica

que una céu e terra, como fazem os Andes. Os zapatistas, em um conto infantil,

falam da origem das cores, querendo contar a diversidade do mundo.

No extremo dialético da poética latino americana, guerrilha revolucionária,

filosofia e espiritualidade cósmica se reúnem. Heterogeneidade estrutural e novo

sentido histórico para um mundo além do capital. Mundo de ponta-cabeça que será

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subvertido e descolonizado pela luta social e que construirá, para além da

multiplicidade, o mundo do igualitarismo.

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