noites sem lei - portal puc-rio digitalpuc-riodigital.com.puc-rio.br/media/13 - noites sem...

4
ern a rdo Guimarães, morador do Leblon. Thiago Souza, mo- rador de Ipanema. Antonio Augusto Farias, morador da Lagoa. Além da zona sul como residência, outro ponto comum une a vida destes três jovens: a ficha na polí- cia. Hoje, eles respondem por pro- cessos de crimes praticados na calada da noite: pichações em patrimônio público, brigas em boates e homicídio causado por c o rridas de carro – os chamados “pegas” –, respectivamente. Segundo dados do Instituto de Pesquisa da Polícia carioca, estes são os três atos mais violentos praticados por jovens de classe média entre 20 e 25 anos. “Fica c l a ro que o jovem de hoje tem cada vez menos limites. Isto só demonstra a enorme dificuldade que eles têm para lidar com nor- mas. Não sabem o que é o espaço alheio e não respeitam os o u t ros porque não se respeitam”, afirma o psicólogo Eduardo Mendes. Pichação Quando a noite cai, o respeito pelas leis, cada vez mais raro entre os cariocas, é banido no Rio de Janeiro. As normas sociais, imprescindíveis para evitar que o convívio entre os membros de uma sociedade se transforme em uma guerra urbana – mazela que hoje já se tornou rotineira na “cidade maravilhosa” –, tornam- se invisíveis. Irregularidades brotam de to- dos os cantos da cidade, e a cada esquina surge um novo delito. Os jovens, sem dúvida, são os que mais contribuem para que a noite seja uma espécie de univer- so anárquico. Entre as ilegalida- des que compõem este cenário estão, além de brigas, pegas, con- sumo de drogas e ignorância às leis de trânsito. Um exemplo são as pichações, crimes que, em sua maioria, são realizados por ado- lescentes, atraídos pela emoção do perigo e por uma promessa de ascensão social: “Eu comecei a pichar com 14 anos. Gostei da sensação de desafiar o perigo e a pichação logo se transformou num vício. A adrenalina de pen- sar que a polícia pode aparecer a qualquer momento ou que um descuido pode se transformar num acidente fatal me atrai. Mas, sobretudo, faço pelo reco- nhecimento e pela popularidade que se adquire dentro do grupo. É claro que me sinto envergonhado Julho/Dezembro de 2003 46 ANA LUÍSA HISSA, CAMILLA RIZZO, GUSTAVO SERRA E V ANESSA PENA Noites sem Lei Jovens de classe média do Rio abusam de práticas violentas “Minha reputação de pichador faz sucesso entre os amigos e as garotas” M.V., 17 anos, estudante Pichação: arte e adrenalina

Upload: phamkhuong

Post on 23-Nov-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Noites sem Lei - Portal PUC-Rio Digitalpuc-riodigital.com.puc-rio.br/media/13 - noites sem lei.pdf · pichador faz sucesso entre os amigos ... tane, Carpetas, DNS (ou Da-nados) e

e rn a rdo Guimarães,morador do Leblon.Thiago Souza, mo-rador de Ipanema.Antonio Augusto

Farias, morador da Lagoa. Alémda zona sul como re s i d ê n c i a ,outro ponto comum une a vidadestes três jovens: a ficha na polí-cia.

Hoje, eles respondem por pro-cessos de crimes praticados nacalada da noite: pichações empatrimônio público, brigas emboates e homicídio causado porc o rridas de carro – os chamados“pegas” –, re s p e c t i v a m e n t e .

Segundo dados do Instituto dePesquisa da Polícia carioca, estessão os três atos mais violentospraticados por jovens de classemédia entre 20 e 25 anos. “Ficac l a ro que o jovem de hoje temcada vez menos limites. Isto sódemonstra a enorme dificuldadeque eles têm para lidar com nor-mas. Não sabem o que é oespaço alheio e não respeitam oso u t ros porque não se re s p e i t a m ” ,a f i rma o psicólogo Eduard oM e n d e s .

PichaçãoQuando a noite cai, o respeito

pelas leis, cada vez mais raroentre os cariocas, é banido no Riode Janeiro. As normas sociais,

imprescindíveis para evitar que oconvívio entre os membros deuma sociedade se transforme emuma guerra urbana – mazela quehoje já se tornou rotineira na“cidade maravilhosa” –, tornam-se invisíveis.

Irregularidades brotam de to-dos os cantos da cidade, e a cadaesquina surge um novo delito. Osjovens, sem dúvida, são os que

mais contribuem para que anoite seja uma espécie de univer-so anárquico. Entre as ilegalida-des que compõem este cenárioestão, além de brigas, pegas, con-sumo de drogas e ignorância àsleis de trânsito. Um exemplo sãoas pichações, crimes que, em suamaioria, são realizados por ado-lescentes, atraídos pela emoçãodo perigo e por uma promessa deascensão social: “Eu comecei apichar com 14 anos. Gostei dasensação de desafiar o perigo e apichação logo se transform o unum vício. A adrenalina de pen-sar que a polícia pode aparecer aqualquer momento ou que umdescuido pode se transform a rnum acidente fatal me atrai.Mas, sobretudo, faço pelo reco-nhecimento e pela popularidadeque se adquire dentro do grupo. Éclaro que me sinto envergonhado

Julho/Dezembro de 200346

ANA LUÍSA HISSA, CAMILLA RIZZO, GUSTAVO SERRA E VANESSA PENA

Noites sem LeiJovens de classe média do Rio abusam de práticas violentas

“Minha reputação depichador faz sucesso

entre os amigos e as garotas”

M.V., 17 anos, estudante

Pichação: arte e adrenalina

Page 2: Noites sem Lei - Portal PUC-Rio Digitalpuc-riodigital.com.puc-rio.br/media/13 - noites sem lei.pdf · pichador faz sucesso entre os amigos ... tane, Carpetas, DNS (ou Da-nados) e

de admitir o que faço para meusparentes. Por outro lado, minhareputação como pichador fazsucesso entre os amigos e as garo-tas”, diz M. V., 17 anos, conheci-do como Nuk.

Morador do Centro, o estu-dante acredita que o hábito decometer tal crime, visto por elecomo lazer, pode ser passageiro.No entanto, ele afirma que nãoguarda remorso: “Tenho a cons-ciência de que pichar não é cor-reto, mas não me sinto arrepen-dido dos meus atos. Quandopicho uma parede, não fico pen-sando sobre os prejuízos queestou causando. Sei que estoudegradando um patrimônio pú-blico ou privado, mas não meimporto. Eu gosto de pichar e voucontinuar fazendo enquanto meder prazer em fazê-lo. E não temoas conseqüências dos meus atos.Sei de pessoas que já morrerampichando e de outras que jáapanharam da polícia. Mas é asensação de perigo que me se-duz”, afirma.

Apesar de desrespeitar as regrassociais, há duas leis que M.V. nãoburla: a das ruas e a dos céus.Para o adolescente, igrejas ecemitérios são territórios sagra-dos e invioláveis. Escrever porcima da pichação de outro tam-bém é proibido: “Eu tenho fé emDeus, mas não nas leis. Mesmoassim, cumpro elas até o fim desemana, quando entro em outrouniverso. A pichação é um mun-do sem lei. E a noite é quem dávida a este mundo”, conta.

ViolênciaMuitos jovens de classe média

alta se reúnem na noite carioca

em busca de diversão. Uns prefe-rem dançar, outros conversar,namorar e há aqueles que saempara brigar. Para estes, a diversãocomeça com um simples esbar-rão, um olhar atravessado e, empouco tempo, a festa vira umpesadelo, com correria e pessoasmachucadas. Essas cenas não sãomais raras nas boates do Rio deJ a n e i ro. Com freqüência, nosdeparamos com brigas envolven-do muitas vezes lutadores de jiu-jitsu e seguranças. Para atacar,vale tudo. Socos, mordidas, pon-tapés e até tiros. Como se já nãobastasse a violência nas ruas, ocarioca tem que conviver com oterror dentro das boates.

Os donos das casas noturnastêm investido muito em segu-rança e tentam contornar a situ-ação de diferentes formas. Nosestabelecimentos, os homens pa-gam mais caro e esperam mais

nas filas. Para evitar os confron-tos, não existe mais o interesseem encher as boates de homens,embora eles consumam mais doque as mulheres.

Em 2000, a boate Slavia, quefuncionava na Barra da Tijuca,adotou um novo estilo de vigilân-cia. Contratou lutadores de jiu-jitsu para trabalhar à paisana,identificando os brigões antesmesmo de entrarem na boate. Abebida é outro fator que contribuipara o início da baderna. Al-gumas pessoas bebem excessiva-mente, tornam-se inconveni-entes, e pequenas desavenças sãosuficientes para o início das a-gressões.

T. S., de 23 anos, é um dosexemplos que colabora paraaumentar a fama de que asbrigas são, na maioria das vezes,praticadas por alunos de acade-mias de luta. Após se envolverem uma confusão na boate, hojeele responde a um processo poragressão gratuita.

“Estava com a minha namora-da na boate quando começouuma briga. Fui protegê-la e aca-bei levando três socos no estôma-go e vários pontapés na cabeça.Fiquei internado no hospital por

Boas Noites 47

Eu tenho fé em Deus,mas não nas leis”M.V., 17 anos, estudante

Os brigões denigrem a imagem do esporte

Page 3: Noites sem Lei - Portal PUC-Rio Digitalpuc-riodigital.com.puc-rio.br/media/13 - noites sem lei.pdf · pichador faz sucesso entre os amigos ... tane, Carpetas, DNS (ou Da-nados) e

uma semana”, conta R. S., a víti-ma de T. S.

Os lutadores que saem com ointuito de colocar em prática oque aprendem nas academiassão conhecidos como pitboys.Eles nunca estão sozinhos, an-dam em bandos e sempre bus-cam uma desculpa para começaruma briga ou até mesmo aprovocam.

“Eu estava em uma festa e umcara me abordou. Eu disse queestava acompanhada. Ele alegouque lutava jiu-jitsu e quis agrediro meu namorado”, conta F. F., de21 anos, estudante de engenha-ria.

L. B., estudante de jornalismo,é outra vítima dos pitboys e foiagredido pelas costas na antigaboate W, no Leblon. “Tinha umcara me encarando desde a horaque eu cheguei, mas fiquei qui-eto. Uma hora eu estava dançan-do na pista e levei um socão naminha nuca. Caí no chão, e unsdez vieram em cima, chutando edando socos. Montaram em cimade mim como se eu fosse umtapete, desmaiei e fui levadopara o hospital. O exame médicoconstatou que os golpes atingi-ram o meu labirinto, que é umaparte do cérebro responsável peloequilíbrio.”

L. B., que ficou durante seismeses com a noção de equilíbrioprejudicada, revela que pensouem dar queixa contra o agressor,mas achou que o esforço nãovaleria as punições. “Uns amigosadvogados dos meus pais comen-taram que a pena estava emmais ou menos seis cestas bási-cas, eu achei muito pouco”, ex-plica.

Segundo o advogado FredericoPereira, existem dois tipos de pe-nas. O indivíduo pode ser en-quadrado no crime de rixa (lutaentre três ou mais pessoas comviolências recíprocas), conformeo art. 137 do Código Penal, quediz o seguinte: “Participar derixa, salvo para separar os con-tendores: pena – detenção de 15dias a dois meses”. Ou pode tam-bém estar sujeito a um crime delesão corporal, segundo o art. 129do Código Penal. Neste caso, apena pode variar de três meses acinco anos de prisão, de acordocom a gravidade da lesão.

Outros tipos de brigões são osimpacientes, que não podem verninguém conversando com anamorada ou encarar qualquerolhar atravessado que já queremtirar satisfação. Já os chamados“esquentadinhos” vão para asboates com boas intenções, masacabam se aborrecendo por qual-quer coisa. “Eu até gosto debrigar, mas não vou pra nightcom esse objetivo. Normalmente,quando me meto em algumaconfusão é por causa de algumamigo meu que está envolvidona briga ou por causa de mulher,

se eu estiver acompanhado”, ex-plica R. S., de 20 anos, estudantede direito.

A médica Carla Martins contaque atendia diversos pacientesenvolvidos em brigas no HospitalL o u renço Jorge, na Barra daTijuca, e que a maioria deles eraformada por adolescentes, de nomáximo 20 anos, que brigavampela namorada. “Muitos deleschegavam com cortes na cabeça,não conseguiam andar, nem fa-lar. Vinham de festas de ´filhi-nhos de papai´ onde rola muitabebida e droga; inclusive meni-nas até mais novas, de 15 a 16anos, chegavam machucadas porse meterem na confusão”, re v e l aa doutora.

Além do público carioca quequer se divertir sem tapas e pon-tapés, quem também acabas o f rendo as conseqüências dessaviolência nas boates são os atletasp rofissionais de jiu-jitsu, pre j u-dicados por esse pequeno gru p o ,que acaba deturpando a imagemdo esporte. Geralmente, as pes-soas costumam pensar que todolutador é ignorante e baderneiro.

No entanto, o Brasil tem exce-lentes lutadores de jiu-jitsu evale-tudo que não são reconheci-dos nacionalmente. “Os luta-dores de jiu-jitsu e vale-tudo nãosão valorizados aqui no Brasil.Não há investimento no esporte ea gente tem dificuldades paraconseguir patrocínios. Isso acon-tece porque alguns lutadores de-n i g rem a imagem do esport e ,a rranjando brigas. A maioria des-tes lutadores que arrumam con-fusão é praticante do esporte enão profissional”, conta PedroRizzo, profissional de vale-tudo.

Julho/Dezembro de 200348

“A velocidade queemociona é a mesmaque mata... e daí? O

risco anda junto coma adrenalina, e isso é

que é o barato”J. M., 19 anos, estudante de dire i t o

Page 4: Noites sem Lei - Portal PUC-Rio Digitalpuc-riodigital.com.puc-rio.br/media/13 - noites sem lei.pdf · pichador faz sucesso entre os amigos ... tane, Carpetas, DNS (ou Da-nados) e

PegasLatinhas e socos saem de cena

e dão lugar a carros num ambi-ente onde jovens de classe médiaalta do Rio pisam fundo nosa c e l e r a d o res e ultrapassam todosos limites da lei. Pesquisas ems i t e s que promovem os pegas ca-riocas apontam que 12 postos decombustível e 12 avenidas daB a rra da Tijuca e zona sul vi-raram palco de perigosas exi-bições.

Assim como nas pichações, osamantes da velocidade tambémse dividem em grupos. Atual-mente, quatro deles estão sendoinvestigados pela polícia: Ok-tane, Carpetas, DNS (ou Da-nados) e Ousados. Em marçodeste ano, o Honda Civic LJD -8459, dirigido por A. A. F., de 20anos e acusado de participar deum racha na Avenida Vi e i r aSouto, tinha um adesivo daOktane. Na disputa de potênciae n t re o Honda e o Audi A4 LBY-1275, guiado por F. G. H., de 19,o Uno do universitário G. F. D.,de 26, foi atingido. Ele morre una hora, e um amigo que estavano veículo ficou gravemente feri-do. A. A. F. está sendo indiciadopor homicídio doloso (comintenção), e F. G. H., como co-a u t o r.

“A velocidade que emociona éa mesma que mata... E daí? Orisco anda junto com a adrenali-na, e isso é que é o barato. Vamoscurtir a night (noite), e quando agente sai da boate já vai com opé na lata”, conta J. M., 19 anos,estudante de direito. Muitosencontros são marcados em fó-runs de discussão de sites. Entreeles, estão o das terças-feiras, no

Posto BR ao lado do MAM, noAterro do Flamengo; o das quar-tas, no Posto Mengão, na Lagoa;e o das quintas, no Posto Ipi-

ranga próximo ao Shopping Bar-ra Garden, na Barra, todos a par-tir das 22h. Nos fins de semana, aescolha é aleatória. A l g u m a sdestas disputas chegam a re u n i raté 200 pessoas, e tornam-se umevento a parte. São cobrados decada participante entre R$ 5,00e R$ 10,00, enquanto os carro sf i cam em exibição nos postos. Oa rrecadado paga policiais cor-ruptos, gorjetas para frentistas egerentes, além de bebidas para os

motoristas. “Em certos lugares,como perto do autódromo, hápoliciais que sabem da existênciade pegas. Mas a galera se junta edá uma ‘colaboração’ para eles...Já vi até mesmo um grupo passari n f o rmações para os policiaisretirarem equipes adversárias docaminho”, conta R. S., 24 anos,que já praticou pega e após umacidente decidiu abandonar aspistas. Na tentativa de controlaro problema, as polícias Civil eMilitar, a Guarda Municipal e aC E T-Rio fizeram um plano deoperações nos pontos de reuniãodos grupos e nas avenidas ondedisputam rachas. A falta de limi-tes da selvageria no asfalto nãoanda só. Drogas, segundo espe-cialistas, são os combustíveis dabaderna. A Associação Brasilei-ra de Medicina do Tr á f e g o(Abramet) vai estudar a cone-xão dos rachas e pegas com ouniverso de consumo de álcool eentorpecentes. Atualmente, 52%dos acidentes de trânsito têmrelação direta com o álcool. Nocaso dos pegas, por exemplo,talvez não fossem realizados seos condutores estivessem só-brios”, diz o oftalmologista San-d ro Barroso We rneck, pre s i d e n t eda instituição.

Boas Noites 49

“Em certos lugares,como perto doautódromo, há policiais que

sabem da existênciade pegas. Mas a

galera se junta e dáuma grana para eles”

R. S., 24 anos, ex-praticantede pegas

O resultado dos pegas costuma ser fatal