nóis mudemo

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Nóis mudemo, por Fidência Bogo sab, 08/11/2014 - 07:29 Atualizado em 08/11/2014 - 07:41 Enviado por JNS Nóis mudemo De Fidêncio Bogo O ônibus da Transbrasiliana deslizava manso ela !el"m-!ras#lia ru %a&ional' (ra abril, m)s das derradeiras &*uvas' %o &"u, uma luazona enorme nen*um botar de+eito' ob o luar eneroso, o &errado verde.ante er oesia e misti&ismo' As aulas tin*am &ome ado numa se unda-+eira' (s&ola de eri+eria, *etero )neas, retardat rios' (ntre eles, uma &rian a &res&ida,

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Nis mudemo, por Fidncia Bogo sab, 08/11/2014 - 07:29Atualizado em 08/11/2014 - 07:41Enviado por JNSNis mudemoDe Fidncio BogoO nibus da Transbrasiliana deslizava manso pela Belm-Braslia rumo ao Porto Nacional.Era abril, ms das derradeiras chuvas. No cu, uma luazona enorme pra namorado nenhum botar defeito. Sob o luar generoso, o cerrado verdejante era um prespio, todo poesia e misticismo.

As aulas tinham comeado numa segunda-feira. Escola de periferia, classes heterogneas, retardatrios. Entre eles, uma criana crescida, quase um rapaz.- Por que voc faltou esses dias todos?- que nis mudemo onti, fessora. Nis veio da fazenda.Risadinhas da turma.- No se diz nis mudemo menino! A gente deve dizer: ns mudamos, t?- T fessora!No recreio as chacotas dos colegas: Oi, nis mudemo! At amanh, nis mudemo!

No dia seguinte, a mesma coisa: risadinhas, cochichos, gozaes.- Pai, no v mais pra escola!- Oxente! Mdi qu?Ouvida a histria, o pai coou a cabea e disse:- Meu fio, num deixa a escola por uma bobagem dessa! No liga pras gozaes da mininada!Logo eles esquece.No esqueceram.Na quarta-feira, dei pela falta do menino. Ele no apareceu no resto da semana, nem na segunda-feira seguinte. A me dei conta de que eu nem sabia o nome dele. Procurei no dirio de classe e soube que se chamava Lcio Lcio Rodrigues Barbosa. Achei o endereo.Longe, um dos ltimos casebres do bairro. Fui l, uma tarde. O rapaz tinha partido no dia anterior para casa de um tio, no sul do Par.

-, professora, meu fio no aguentou as gozaes da mininada. Eu tentei faz ele continu, mas no teve jeito. Ele tava chateado demais. Bosta de vida! Eu devia di t ficado na fazenda coa famia. Na cidade nis no tem veis. Nis fala tudo errado.Inexperiente, confusa, sem saber o que dizer. Engoli em seco e me despedi.

O episdio ocorrera h dezessete anos e tinha cado em total esquecimento, ao menos de minha parte.Uma tarde, um povoado beira da Belm-Braslia, eu ia pegar o nibus, quando algum me chamou.Olhei e vi, acenando para mim, um rapaz pobremente vestido, magro, com aparncia doentia.-O que , moo?-A senhora no se lembra de mim, fessora?Olhei para ele, dei tratos bola. Reconstitui num momento meus longos anos de sacerdcio, digo de magistrio. Tudo escuro.-No me lembro no, moo. Voc me conhece? De onde? Foi meu aluno? Como se chama?

Para tantas perguntas, uma resposta lacnica:- Eu sou Nis mudemo, lembra?Comecei a tremer.- Sim, moo. Agora lembro. Como era mesmo o seu nome?- Lcio Lcio Rodrigues Barbosa.- O que aconteceu?

- Ah! Fessora! mais fcil diz o que no aconteceu. Comi o po que o diabo amasso. E ta diabo bom de padaria! Fui garimpeiro. Fui boia-fria, um gato me arrecadou e levou num caminho pruma fazenda no meio da mata. L trabaiei como escravo, passei fome, fui baleado quando conseguir fugi. Peguei tudo quando doena. At na cadeia j fui par. Nis ignorante as veis fais coisa sem quer faz. A escola fais uma farta danada. Eu no devia t sado daquele jeito, fessora, mais no aguentei as gozao da turma. Eu vi logo que nunca ia consegui fal direito. Ainda hoje no sei.-Meu Deus!Aquela revelao me virou pelo avesso. Foi demais para mim. Descontrolada, comecei a soluar convulsivamente. Como eu podia ter sido to burra e m? E abracei o rapaz, o que restava do rapaz que me olhava atarantado.O nibus buzinou com insistncia.O rapaz afastou-me de si suavemente.- Chora no, fessora! A senhora no tem curpa.Como? Eu no tenho culpa? Deus do cu!

Entrei no nibus apinhado. Cem olhos eram cem flechas vingadoras apontadas para mim. O nibus partiu. Pensei na minha sala de aula. Eu era uma assassina a caminho da guilhotina. Hoje tenho raiva da gramtica. Eu mudo, tu mudas, ele muda, ns mudamos... Super usada, mal usada, abusada, ela uma guilhotina dentro da escola. A gramtica faz gato e sapato da lngua materna, a lngua que a criana aprendeu com seus pais e irmos e colegas e se torna o terror dos alunos. Em vez de estimular e fazer crescer, comunicando, ela reprime e oprime, cobrando centenas de regrinhas estpidas para aquela idade.

E os lcios da vida, os milhares lcios da periferia e do interior, barrados nas salas de aula:No assim que se diz, menino! Como se o professor quisesse dizer: Voc est errado! Os seus pais esto errados! Seus irmos e amigos e vizinhos esto errados! A certa sou eu! Imite-me!Copie-me! Fale como eu! Voc no seja voc! Renegue suas razes! Diminua-se ! Desfigure-se! Fique no seu lugar!Seja uma sombra!E siga desarmado para o matadouro da vida...* * *As fotos so de Franco Hoff e Ins Calixto, Sebastio Salgado, Andr Dusek e Jorge Arajo