nº4 | maio 2005 | trimestral aprender · a queda do muro de berlim é o aconte-cimento que melhor...

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BUDD HALL RÁDIO TRIÂNGULO SAUDE APRENDER A TER IVAN ILLICH MUITO FAMOSO NOS ANOS 70 E HOJE QUASE ESQUECIDO, É PRECISO REDESCOBRI-LO Aprender AO LONGO DA VIDA Nº4 | MAIO 2005 | TRIMESTRAL ISSN 1645-9784 3 , 8 0 (IVA incluído) TUDO O QUE APRENDI FOI EM GRUPOS COMUNITÁRIOS, EM CONVERSAS COM PESSOAS. EM PEDROGÃO GRANDE, UMA EXPERIÊNCIA DE FORMAÇÃO PROFISSIONAL E DE LIGAÇÃO À COMUNIDADE TEXTOS DE ANTÓNIO CARDOSO FERREIRA, BERTA NUNES, ROGÉRIO ROQUE AMARO Ano Europeu da Cidadania pela Educação FORMAÇÃO PARA A CIDADANIA NUMA PERSPECTIVA DE APRENDIZAGEM AO LONGO DA VIDA

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BUDD HALL

RÁDIOTRIÂNGULO

SAUDEAPRENDER A TER

IVAN ILLICHMUITO FAMOSO NOS ANOS70 E HOJE QUASE ESQUECIDO,É PRECISO REDESCOBRI-LO

AprenderAO LONGO DA VIDA

Nº4 | MAIO 2005 | TRIMESTRALISSN 1645-9784

€ 3,80 (IVA incluído)

TUDO O QUE APRENDI FOI EMGRUPOS COMUNITÁRIOS, EMCONVERSAS COM PESSOAS.

EM PEDROGÃO GRANDE,UMA EXPERIÊNCIA DEFORMAÇÃO PROFISSIONAL EDE LIGAÇÃO À COMUNIDADE

TEXTOS DE ANTÓNIO CARDOSO FERREIRA, BERTA NUNES, ROGÉRIO ROQUE AMARO

Ano Europeuda Cidadania pela Educação

FORMAÇÃO PARA A CIDADANIANUMA PERSPECTIVA DE APRENDIZAGEM AO LONGO DA VIDA

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AO LONGO DA VIDA 3

H oje, a situação é bem diferen-te. Basta ver as propostas doConselho da Europa que pro-

clamou 2005 “Ano Europeu daCidadania pela Educação/ Aprender eViver a Democracia” “para chamar aatenção para a importância que a edu-cação, formal e não formal, numa pers-pectiva de aprendizagem ao longo davida, tem para o desenvolvimentoduma cidadania activa e para promo-ver uma cultura democrática…” Ou asda ONU que, depois de consagrar adécada de 1995 a 2004 à celebraçãodos 50 anos da Declaração Universaldos Direitos do Homem, aprovou, na

sua Assembleia Geral de Dezembro de2004, um plano para a 1ª fase (2005-2007) de um programa mundial deEducação para os Direitos Humanos,entendida esta como “um processo alongo prazo que se desenrola durantetoda a vida e através do qual cada umaprende a tolerância e o respeito peladignidade de outrem e os meios emétodos para assegurar este respeitoem todas as sociedades.”

Que se passou entretanto que

explique esta mudança?

A queda do muro de Berlim é o aconte-cimento que melhor pode simbolizar o

desmoronar do muro de indiferençacom que os países ocidentais encara-vam a formação cívica, tão seguros queestavam dos seus regimes democráti-cos, dos seus Estados de direito e dosresultados da formação experiencialdos seus cidadãos.A liberalização dos países de Lestesuscitou a consciência da necessidadeduma formação para a construção denovas instituições, para a compre-ensão dos processos de intervençãodemocrática e de resolução de confli-tos e para atitudes e valores diferentesdos que haviam sido prezados e desen-volvidos anteriormente.

Nos anos 70 e 80, a seguir ao 25 de Abril, Portugal propunha frequentemente, nos mais diversos“fora” internacionais, estudos, investigações, programas de acção e materiais dedicados à formaçãopara uma cidadania democrática. Essas suas propostas embatiam geralmente num “muro” de desin-teresse e incompreensão.

FORMAÇÃO PARA A CIDADANIA

NUMA PERSPECTIVA DE EDUCAÇÃO AO LONGO DA VIDA

Texto: Maria Emília Brederode Santos (Assessora no Conselho Nacional de Educação (CNE))

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4 APRENDER

Também ali, como eventualmente an-tes em Portugal, Espanha ou Grécia,para só referir países europeus comditaduras tardias, se verificaram mui-tas vezes casos de incompreensãoperante o conceito de Estado de direi-to, a divisão de poderes, a importânciado poder legislativo e fiscalizador doParlamento, o funcionamento do poderjudicial, a separação do Estado daIgreja, a responsabilização individual ea necessária participação na vidacolectiva, as diferentes formas dessaparticipação, a necessidade e o papeldos partidos políticos, as implicaçõesdo princípio da igual dignidade detodos os seres humanos, os limites aopoder das maiorias, o respeito peladiferença e pelos direitos individuais eminoritários, as diferenças e modalida-des existentes entre endoutrinaçãoideológica e relativismo moral.Ou seja, sentiu-se então nesses países- e nos que os desejavam acolher numanova realidade internacional em cons-trução, a Europa dita alargada - anecessidade de formar os cidadãosquer ao nível da informação (esclareci-da e crítica), quer ao nível das com-petências de intervenção (capacidadesde se exprimir articuladamente, oral-mente e por escrito, de procurar con-sensos e gerir conflitos, de auscultar erepresentar outros , um colectivo ou asi mesmo, de se afirmar nos seus direi-tos e de respeitar e defender os direi-tos de outros, de decidir democratica-mente e a favor do bem comum.

Uma contradição?

Verificou-se contudo que os saberes ecompetências necessários a uma for-mação para uma cidadania democráticanão são, não podem ser, não devem sermeramente “técnicos” e neutros masque requerem a construção de umaconsciência moral e de valores, o queparece contradizer o pluralismo e o res-peito pela diferença característicos dassociedades democráticas modernas ecomplexas. A existência de uma Decla-ração Universal dos Direitos do Homem,e dos Pactos e Convenções que se lheseguiram, já com valor jurídico para ospaíses assinantes como Portugal, veioultrapassar esta aparente contradição:aqueles textos consagram um “consen-so prático”, um sistema de valoresvoluntariamente partilhado e tornadodepois coercivo, não só possibilitandouma “formação para a cidadania” ade-quada a uma sociedade democrática ecoerente com os seus princípios, comotornando-a mesmo obrigatória (ver oPreâmbulo da Declaração).Os atentados terroristas de 11 deSetembro 2001 e os outros subse-quentes vieram reforçar a consciênciada necessidade duma educação quedefendesse os valores da vida. E a deri-va securitária a que a resposta àquelesatentados deu origem, pondo em cau-sa direitos e liberdades que se julgavajá definitivamente conquistados egarantidos, veio relançar a necessida-de duma formação para a cidadaniaassente no respeito e na defesa dos

direitos humanos.A globalização da economia, a mobili-dade populacional (transformando,através da presença de minorias étni-cas e culturais, sociedades anteshomogéneas em sociedades profunda-mente heterogéneas) e as novas tecno-logias da informação e da comuni-cação (TIC) permitiram o alargamento atodo o planeta da consciência destanecessidade e das possibilidades dasua satisfação.Ao mesmo tempo, a inclusão dosDireitos Humanos nos textos fundado-res de várias realidades territoriais –por exemplo, na Constituição da Re-pública Portuguesa, nas declaraçõesde direitos a nível continental (porexemplo, na Convenção Europeia dosDireitos Humanos) ou na DeclaraçãoUniversal – permite a sua defesa e edu-cação em vários âmbitos territoriais etemporais.

A Educação para os Direitos Humanosaparece, assim, como uma fortíssimacomponente da Formação para uma Ci-dadania Democrática, de facto, como asua espinha dorsal.

Uma heresia?

A Educação para os Direitos Humanosassenta num princípio básico funda-mental: a igual dignidade de todos osseres humanos. Ora a compreensãodeste princípio e das suas implicaçõestanto na vida quotidiana como noplano abstracto não é uma aprendiza-

DESTAQUE

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gem evidente nem espontânea nemsimples. De facto, diria mesmo que éuma aprendizagem necessária durantetoda a vida, uma construção perma-nente e nunca acabada.Implica uma descentração de si que éuma longa e difícil conquista na evo-lução do ser humano e que Piaget tãobem descreveu. Mas mesmo na idadeadulta, a tendência para o egocentris-mo caracteriza muitas das nossas re-lações com alguém que nos seja estra-nho, que seja diferente de nós. Que-remos um outro “igual” a nós e quandoisso não acontece recusamos-lhe atédignidade humana. Na Idade Média oshomens discutiam se as mulheresteriam alma, na Renascença faziam-noem relação aos indígenas dos novosterritórios encontrados e o enclausura-mento dos loucos do século XIX ou osmovimento racistas e anti-minorias doséculo XX mostram bem como é possí-vel ao ser humano não ver no outro umseu semelhante.Ou seja, “a nossa tendência primeira(natural?) é para ver o mundo a girar ànossa volta e em função dos nossosesquemas mentais. Ver o outro comodiferente mas semelhante é uma longaaprendizagem que só não é penosaporque, como seres sociais que somos,também necessitamos do outro e porele somos gratificados.” Por outro lado, a Educação para osDireitos Humanos não tem por finalida-de a mera “compreensão” daquele prin-cípio mas sim o seu respeito na prática.

O “pensar global, agir local” da Educa-ção Ambiental aplica-se também aqui.Para praticar os Direitos Humanos,para exigir o seu cumprimento, há sabe-res, competências e instrumentos quesão necessários embora podendo nãoparecer estar directamente relaciona-dos com os Direitos Humanos. Porexemplo, o direito à vida, à integridadepessoal ou à saúde requerem com-petências de segurança rodoviária, con-hecimentos de nutricionismo, bonshábitos alimentares, a capacidade derecusa de comportamentos auto-des-trutivos, etc. Como o direito de livreexpressão e a liberdade de imprensa/comunicação social requerem não sóo dever de respeitar a privacidade ou aimagem dos outros mas também co-nhecimentos sobre o funcionamentodos media e a sua linguagem, a capaci-dade de leitura da imagem e um senti-do crítico desenvolvido. Ouso incluir aqui um currículo pensadopara todos, desde crianças com idadesinferiores a 5 anos a adultos, por meparecer que a “aprendizagem ao longoda vida” não é exclusiva dos adultos e atodos se aplica. As competências, sabe-

res e valores possíveis numa determi-nada faixa etária têm que estar garanti-dos e integrados nos estádios maisavançados e podem servir de diagnósti-co de necessidades. Os métodos emateriais sugeridos fazem apelo a dife-rentes tipos de aprendizagem e podemdesenrolar-se em contexto extra-escolar(exemplo: situações de desporto para aaprendizagem de regras; contactos eintercâmbios com estrangeiros para oconfronto com culturas diferentes; par-ticipação em ONG’s, situações dedirecção e gestão de organizações parao desenvolvimento de competências deescuta dos outros e tomada democráti-ca de decisões e conhecimentos deorganização e gestão, leitura de livros efilmes de ficção para aprendizagensvicariantes e de ensaios ou documentá-rios para reflexão crítica e debate emgrupo, etc.) As fontes remetem em mui-tos casos para autorias extra-escolares.Trata-se assim de um currículo que,podendo ser levado a cabo na escola,pode também servir de guia de orien-tação para aprendizagens noutros con-textos, em qualquer momento e aolongo de toda a vida.

AO LONGO DA VIDA 5

A Educação para os Direitos Humanosassenta num princípio básico fundamental:a igual dignidade de todos os sereshumanos. Ora a compreensão desteprincípio e das suas implicações tanto na vida quotidiana como no planoabstracto não é uma aprendizagemevidente nem espontânea nem simples

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6 APRENDER

Anos

5 anos ou menos de

6 a 10 anos

11 a 12 anos

13 a 15 anos

Idades superiores a 16 anos

CURRÍCULOValores

Normas morais simples :

“Não se faz mal aos outros”;

“não se estraga o que é de todos”…

Confiança em e respeito por si, pelos outros,pelo que é comum, porcompromissos e regras.

Interesse por terras e seres exóticos.

Reconhecer aos outros iguais direitos.

Valorizar diferenças

Valorizar diferençascomo desafios;confiança em si, nos outros e no futuro.

Compreender e apreciar diversidade deinteresses, posições, pontos de vista;

Compreender e apreciar liberdade, igualdade,fraternidade…

Sentir-se responsável pelo bem-estar ecumprimento de DH no geral e no particular

Saberes

Características comuns dos seres vivos.

Diferenças entre sujo e limpo, velho e novo;meu, teu, de todos…

Algumas regras de saúde e higiene,segurança e prevenção rodoviária

Direitos da Criança

Os 3 “Rs” da Educação Ambiental.

Tomar consciência de influência dapublicidade e dos media .

Conceitos deDemocracia, Ditadura e Anarquia.

Instituições e processos democráticos.

Direitos Humanos e contexto histórico do seuaparecimento.

O 25 de Abril.

Noções básicas de Economia (impostos…),Direito e de organizações internacionais.

Conhecimento de temas actuais e polémicos(genética, ambiente, limites da democracia…);

DH actuais em debate;

Constituição europeia, etc.

DESTAQUE

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AO LONGO DA VIDA 7

Competências

Capaz de se “pôr na pele de…” graças aimaginação e empatia.

Participar nalgumas decisões simples(pessoais e colectivas)

Esperar pela sua vez, pedir para falar…

Reciprocidade e reversibilidade.

Aplicar a “regra de ouro”.

Negociar e resolver conflitos sem violência.

Participar em decisões relativas a si e aogrupo.

Assumir algumas responsabilidades

Projectar-se no futuro;

Sentido crítico;

Ser capaz de escolher e de justificar escolhas(representantes, programas TV, compras,roupas, comidas…)

Saber como participar em decisões locais

Compreender conflitos de valores.

Fazer e justificar opções.

Projectar-se profissionalmente no futuro.

Leitura e interpretação de quadros eestatísticas.

Visão mais complexa e flexível;

Ser capaz de se pôr em causa e de chegar aconsensos.

Ser capaz de decidir, planear e levar a caboas acções necessárias para fazer cumprir DH

Métodos e Materiais

Jogos de “faz de conta” ;

Histórias (Ex. “Os ovos misteriosos” de L.Ducla Soares; “O Patinho feio” de H.C.Andersen)

Ensino directo

Debate de regras próximas

Jogos de regras.

Desportos de equipa.

“Role-play”

Assembleias de Turma e de escola paradecisões conjuntas.

Histórias maravilhosas e de terras distantes .

Ensino directo : Direitos da Criança eintervenções a propósito de conflitos.

Actividades de Ed. Amb. e de Ed pª os Media(fazer jornal, video…)

Livros e filmes :“O Diário de Anne Frank”, “A Cabana do pai Tomás”(H.B Stowe),“Amistad” e “E.T.” (Spielberg).

Eleição de delegado, elaboração oudiscussão de regulamento de turma, escola,grupo…

Savater – “Ética para um jovem”

Clarificação de valores

Viajar, acolher estrangeiros.

Participar na organização e gestão deactividades escolares e extra-escolares

Gestão autónoma (embora enquadrada) deorganizações juvenis;

Viver no estrangeiro;

Debates em torno de valores e de questõesactuais;

Sua transposição para teatro, cinema, etc.

Fontes

Civitas de Aveiro – Caderneta e Jogos

Assembleias de escola e de turma - v.MEM

Histórias de Grimm e outros (conceitos dejustiça/injustiça)

“Os DH Contados às Crianças”, “A Injustiçacontada às crianças"- Terramar.“Kit” da Civitas “Falar e pensar os DH”“O Nosso Mundo, os Nossos Direitos”, A.I.“A Cidadania de A a Z” do ME; “AConstituição da R.P. Trocada por/paraMiúdos” A.R.;Manuais de Ed. Amb. e de Ed. Media.

Maleta Pedagógica “Meninos de todas asCores” da Oikos e da UNICEF.“Primeiros Passos”,Amnistia I.“Todos os seres humanos” – Manual paraprofessores da UNESCO;

Acções de Formação da AmnistiaInternacional, Civitas e Centro deInformação da ONU

Idem

“Capitães de Abril”, Maria de Medeiros

“O meu pé esquerdo”, Jim Sherdan

Debates em torno de filmes :“A vida é bela” de Roberto Benigni.

“Mr. Smith goes to Washington”, FrankKapra;

“Young Mr. Lincoln” , John Ford…

“Aristides de Sousa Mendes – O Cônsulinjustiçado” de Teresa Olga e DianaAndringa

Textos originais.Jogo “Direitos à Solta – A democracia atrês dimensões” - APCC

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ENTREVISTA COM BUDD HALL

TUDO O QUE APRENDI FOI EM GRUPOSCOMUNITÁRIOS, EM CONVERSAS, E TRABALHANDO COM AS PESSOASO NORTE-AMERICANO BUDD HALL DIZ-SE UM ESTUDIOSO DA APRENDIZAGEM DOS MOVI-MENTOS SOCIAIS. E O QUE É FACTO É QUE AO LONGO DA VIDA, COMO ELE MESMO DIZ,TUDO O QUE APRENDEU FOI FORA DAS UNIVERSIDADES. DEPOIS DE UMA TEMPORADA NATANZÂNIA, NOS ANOS 60, DESCOBRIU QUE HAVIA MUITOS PARALELOS ENTRE O POBRE PAÍSAFRICANO E O RICO CANADÁ. A DESCOBERTA DE PAULO FREIRE FOI PARA O ACTUAL DIREC-TOR DA FACULDADE DE EDUCAÇÃO DA UNIVERSIDADE DE VICTORIA UMA REVELAÇÃO. HOJE,DEDICA-SE PRINCIPALMENTE À EDUCAÇÃO AMBIENTAL DE ADULTOS. E TAMBÉM À MAGIA DAPOESIA. NESTA ENTREVISTA À APRENDER AO LONGO DA VIDA, BUDD HALL CONDUZ-NOS AUMA VIAGEM FASCINANTE.Entrevista: Rui Seguro # Fotografias: Paulo Figueiredo # Tradução: Daniela Silveira

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10 APRENDER

Tem uma enorme experiência, de

África ao Canadá, mas a

experiência da Tanzânia foi muito

importante para si...

Trabalhei durante alguns anos no norteda Nigéria. Encontrei uma cultura muitoantiga e diferentes caminhos para chegarao conhecimento. Ali as pessoas tam-bém estudam a sociedade, falando, can-tando, rezando, mas a partir de umabase muito diferente, numa análise não-ocidental. Interessei-me pelos estudos eeducação africanos, e voltei para aCalifórnia, onde fiz o meu PhD e estudeiEstudos Africanos e Educação Compa-rativa. Eram os anos 60 e, como paratantas pessoas da minha geração, foiuma época muito especial. Tomámos consciência da política mun-dial, e envolvi-me em movimentos acti-vistas de trabalhadores/estudantes naCalifórnia. Num movimento bastanteagressivo, andávamos a fazer coisascomo atirar tijolos às janelas do Bancoda América. Depois de cerca de um anodeste activismo, comecei a procuraralgo onde pudesse usar a minha ener-gia a construir coisas, em vez de asdestruir.Comecei a estudar os trabalhos de JuliusNyerere, que dizia que “os pobres nãousam o dinheiro como uma arma”. Comisto ele queria dizer que até as pessoascomuns, pessoas pobres, podem mudaras suas vidas, não através do investi-mento, como fazem os capitalistas, mastendo ideias e liderança. Este pensamen-

to atraiu-me muito e, como muitas coisasna vida, foi por acaso que o director doInstituto de Educação de Adultos naTanzânia veio à nossa Universidade edisse-me que havia um lugar de investi-gador disponível. Perguntou-me se euestaria interessado, e eu disse “Uau, cla-ro que estou interessado!” E assim, seis semanas depois, fui parar àTanzânia como investigador no InstitutoNacional de Educação de Adultos. Estivelá durante quatro anos, a trabalhar nocampo da educação de adultos, aplican-do as ideias de Nyerere sobre Ujamaa,socialismo africano, etc. Nyerere sempredisse que não podemos ficar à esperaque as nossas crianças acabem a escola,que temos de educar os adultos de hoje,porque têm a possibilidade de tomardecisões que podem mudar o futuro dosseus filhos. Em 1970, quando cheguei àTanzânia, era o Ano Nacional daEducação de Adultos. O país inteiro esta-va mobilizado, desde as instâncias maisaltas até ao nível da comunidade, parafalar sobre educação de adultos, trabal-har, organizar aulas, realizar debatessobre que tipo de conteúdo, que tipo deprocesso, e eu tenho trabalhado na edu-cação de adultos desde então.

E o salto para o Canadá? Quais as

diferenças e quais as semelhanças?

Uma das coisas que aprendi naTanzânia (lembre-se que eu era investi-gador e o meu papel era fazer ava-liações e trabalhar em equipas de pes-

quisa para analisar o progresso daspessoas) foi que os métodos de pesqui-sa que usávamos na Tanzânia eramprecisamente aqueles que apelidára-mos de “abordagens coloniais”. Ficá-vamos sentados na capital, Dar esSalaam, e pensávamos em perguntaspara a pesquisa, saíamos e fazíamosperguntas às pessoas, e depois de elasresponderem sentávamo-nos outra vezem Dar es Salaam “a tentar dar um sig-nificado a essa vida”. Descobrimos queas pessoas comuns têm de facto análi-ses muito profundas e sofisticadassobre a sua situação, e isso justificavaplenamente uma nova abordagem àpesquisa, à qual chamámos “investi-gação participativa”. Descobri, depoisde regressar ao Canadá, que havia mui-tas pessoas a viver em condiçõessemelhantes. Apesar de o Canadá sermuito rico, pessoas da classe trabalha-dora, pessoas com deficiências físicas,indígenas, mães solteiras a viver sozi-nhas com os filhos, imigrantes, etc.,muitas pessoas no Canadá, viviamnuma situação semelhante. Apesar deo seu estatuto ser mais elevado do queo de pobre na Tanzânia, não estavam aparticipar activamente na sociedadedemocrática canadiana. Por isso, criá-mos um centro para investigação parti-cipativa no Canadá, adoptámos osmétodos que aprendemos na Tanzâniae começámos a aplicá-los com os imi-grantes. Tivemos projectos com imi-grantes latino-americanos, até com

ENTREVISTA

JULIUS NYERERE DIZIA QUE“OS POBRES NÃO USAM ODINHEIRO COMO UMAARMA”. COM ISTO ELEQUERIA DIZER QUE ATÉ ASPESSOAS COMUNS,PESSOAS POBRES, PODEM MUDAR AS SUASVIDAS, NÃO ATRAVÉS DOINVESTIMENTO, COMOFAZEM OS CAPITALISTAS,MAS TENDO IDEIAS ELIDERANÇA.

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pessoas de origem portuguesa, que tra-balhavam em fábricas, portugueses aquerer aprender inglês. Trabalhávamoscom o inglês como segunda língua, edepois começámos a trabalhar comaborígenes, e descobrimos que, embo-ra a sociedade canadiana, no seu con-junto, seja bastante mais rica, os prin-cípios democráticos, os serviços desaúde, o acesso à educação, o acessoao saber, acabavam de facto por sermuito semelhantes no Canadá e naTanzânia.

É possível explicar um pouco melhor

o conceito de investigação

participativa?

Pesquisa participativa é um processo deaprendizagem, de acção e de investi-gação social em simultâneo. Faz tudoparte de um processo orgânico, quereconhece que todas as pessoas sãointelectuais; mas só algumas são reco-nhecidas como tal pela sociedade.Encontramos, nas nossas sociedades,em muitas comunidades, pessoas quetêm muita sabedoria e fazem uma aná-lise profunda da sociedade. Eles estãode facto a criar teoria, mas ninguém lhechama teoria, chamam-lhe senso co-mum, ou sabedoria, e a investigaçãoparticipativa é um processo em que aspróprias pessoas decidem qual o temada sua pesquisa, quais os métodos quevão usar, estudam a informação e dãosignificado às histórias que ouvemdurante a pesquisa. Nós tornamo-nosfacilitadores da criação de conhecimen-to por parte de outras pessoas. Não são apenas os académicos quepodem criar conhecimento. As própriaspessoas, nos seus próprios contextos,podem criar conhecimento. Não sópodem, como o fazem: 90 a 95% dasinvenções intelectuais do mundo, espe-cialmente nas ciências sociais, são fei-tas por pessoas comuns. Só depoischegam as pessoas das universidadespara as estudar. Por isso, qualquerassunto que se possa imaginar é emprimeiro lugar descoberto nas comuni-dades, nas lutas, quando as pessoasestão a tentar ter acesso a serviços desaúde, ou a educação, ou querem ummelhor tratamento porque trabalhamnum dado local. Nessa luta, estão acriar novas ideias. Fomos muito influenciados pelo traba-

lho de Paulo Freire, que disse que a edu-cação não é neutra, por isso nós tam-bém dissemos que a pesquisa não éneutra, e fizemos a escolha de trabalhara favor das pessoas mais pobres e commenos poder.

Podemos encarar a pesquisa

participativa como educação de

adultos, ou trata-se de um processo

completamente diferente?

É um processo muito semelhante. Eudiria que a pesquisa participativa reco-nhece o diálogo entre os investigadores eas pessoas de uma comunidade comoum processo de aprendizagem, quer paraa pessoa que vem da universidade, querpara a pessoa que vem da comunidade.Onde vai mais além do que a educaçãode adultos é no facto de prestar maisatenção à documentação do discurso, àdocumentação do conhecimento que écriado, a registar sob qualquer forma alição da experiência, quer de um modoacadémico quer de uma maneira maispopular, para que possa ser partilhadacom outras pessoas. Por isso, a ideia éque a experiência não só tome a formade um trabalho académico, mas possatambém ser partilhada com outras pes-soas de outras comunidades que es-tejam a fazer um trabalho semelhante. A maior parte da investigação participati-va não é feita por académicos mas simpor movimentos sociais ou organizaçõescomunitárias, e aí não precisam de lhechamar pesquisa participativa, limitam-se a fazê-lo. Só nas universidades é queprecisamos de atribuir rótulos.

Li muitos nomes, Marja Liisa

Swantz, Paulo Freire... Todas estas

pessoas foram importantes para o

conceito de pesquisa participativa?

Sim, muito. Marja Liisa Swantz era umaantropóloga, casada com um pastor daigreja, um missionário na Tanzânia.Marja Liisa Swantz era uma académica,por isso tinha ligação à Universidade deDar es Salaam. Não se podia ser antro-pólogo na Tanzânia, porque a palavra“antropologia” estava demasiado asso-ciada a aspectos negativos do colonialis-mo; por isso é que ela mudou o seu títu-lo para geógrafa.

Geógrafa humana...

Sim, geógrafa humana. Ela trabalhava

com mulheres, em especial mulheresdas regiões costeiras da Tanzânia. Fezparte do grupo que, na Tanzânia, ajudoua criar o conceito de pesquisa participa-tiva. Ainda é viva, reformou-se há unsanos e vive na Finlândia. Quando saímosda Tanzânia, verificámos que muitaspessoas em muitas partes do mundoestavam a trabalhar com ideias semel-

AO LONGO DA VIDA 11

QUEM É BUDD HALL

Budd Hall é actualmente directorda Faculdade de Educação daUniversidade de Victoria, noCanadá. É pai de dois jovens criati-vos e marido de uma professora damesma Universidade. Diz-se umestudioso da aprendizagem dosmovimentos sociais.Budd tem um extenso currículo emeducação de adultos e educação aolongo da vida, tendo também esta-do ligado às dimensões de aprendi-zagem das mudanças sociaisdurante grande parte da sua vida.Já foi por muitos anos DirectorExecutivo do Conselho Interna-cional de Educação de Adultos econsultor de Educação de Adultos eDesenvolvimento Comunitário naUniversidade de Toronto. É umpoeta prolífico, deu aulas de litera-tura, poesia e movimentos sociais,tendo organizado recentementesessões de “Poetas pela Paz” emVictoria.

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hantes. Havia pessoas na Europa a tra-balhar assim, descobrimos também quea América Latina estava cheia de pesso-as a fazer este tipo de trabalho: OrlandoFals Borda, por exemplo, que é um soció-logo muito importante da Colômbia, eque estava a usar a terminologia “inves-tigação-acção”. Conhecemo-nos em1977, no primeiro CongressoInternacional de Pesquisa Participativaem Cartagena, na Colômbia, e depois dealguma discussão entre nós e o Orlando,ele mudou o nome do seu trabalho para“investigação-acção participativa”. O pri-meiro grande trabalho do Orlando foi

com a comunidade afro-colombiana. Há antigos escravos, agora livres masmuito pobres, a viver nas regiões costei-ras da Colômbia. A história deles tinhasido ignorada, porque a História eraescrita principalmente por pessoas deorigem espanhola, e quanto mais brancose fosse, mais probabilidades se tinha dea sua história aparecer nos livros deHistória colombiana. Por isso, um negrocolombiano a viver nas áreas litoraistinha de ser bastante invisível. O livrosobre os povos costeiros da Colômbia tor-nou-se quase um best-seller, era uma his-tória tão nova e as pessoas estavamansiosas por este tipo de trabalhos. Defacto, ele regressou a Cartagena em1997 para celebrar o 20º aniversário da

primeira conferência. Na primeira con-ferência, estavam 72 pessoas; em 1997,estavam 1700, que vieram de todo omundo e se juntaram para falar de inves-tigação-acção participativa!

E também conheceu Paulo Freire?

Num dos gabinetes da Universidade doMinho há uma fotografia do Paulo Freire.Eu também tenho uma fotografia dele nomeu gabinete no Canadá. Na Tanzânia,descobrimos pela primeira vez o livro doPaulo em 1971, o mesmo ano em queele veio visitar o país. Éramos jovens, educadores muito idealis-

tas, queríamos mudar o mundo. Até aíninguém tinha falado da possibilidade detransformar o mundo usando a edu-cação. Até aí eram só partidos políticos,movimentos culturais, algo de que nen-hum de nós fazia parte. Até podíamosfazer parte de movimentos, mas qual erao papel dos educadores? Então apareceuum livro a dizer que a educação, a manei-ra como ensinamos e aprendemos, podecontribuir para transformar o mundo. Istofoi como a luz, como encontrar o Corãopela primeira vez, para quem acreditenisso: uma revelação. E acabou por seraquilo que todos tínhamos descoberto,que não só ele era um intelectual – era,de facto, um bom intelectual, mas tam-bém um dos melhores seres humanos

que algum de nós alguma vez conheceu.Tinha uma capacidade fabulosa para aamizade; quando nos sentávamos comele, fazia-nos sentir de repente que éra-mos os seus melhores amigos. Deu-nos asua contribuição específica para a pes-quisa participativa. Pedimos-lhe quefalasse no Instituto de Educação deAdultos sobre metodologia de pesquisa emais tarde transcrevemos e publicámos.E também no capítulo três do livroPedagogia do Oprimido, ele fala de“investigação temática”, e isso é umaespécie de descrição técnica do proces-so que usaram. Tive a sorte de podermanter-me em contacto com ele, de dife-rentes maneiras, durante toda a suavida. Mais tarde, ele pôde regressar aoBrasil, enquanto eu me tornei activo noConselho Internacional para a Educaçãode Adultos, de que Paulo foi Presidentehonorário (o segundo Presidente honorá-rio, o primeiro era Julius Nyerere) até àsua morte.

E qual era o papel deste Conselho

Internacional para a Educação de

Adultos?

O Conselho Internacional era uma redenão-governamental que unia educado-res de adultos, educadores popularesde todo o mundo, que estavam interes-sados em usar a educação de adultospara aprofundar a democracia e fazerum mundo melhor. Por isso, no seuauge, tínhamos associações de mem-bros em 122 países, e trabalhávamoscom treze grupos diferentes: pesquisaparticipativa, saúde, temas femininos,literacia, povos indígenas, formação epor aí fora. No seu auge, provavelmenteem meados dos anos 80 e princípiosdos 90, era uma organização não-gover-namental muito poderosa, com algunslíderes maravilhosos vindos de quasetodo o mundo.

E a situação hoje?

O Conselho continua a existir, mas ossubsídios são difíceis, as agências finan-ciadoras tornaram-se mais tecnocráticas,cortando o financiamento que estava dis-ponível nos anos 70 e 80, que permitia amuitas organizações fazer um trabalhomuito criativo e ter muita autonomia. Aassistência ao desenvolvimento tornou-se muito mais influenciada pelo BancoMundial, por exemplo. No entanto, o Con-

12 APRENDER

ENTREVISTA

APARECEU UM LIVRO ADIZER QUE A EDUCAÇÃO, A MANEIRA COMOENSINAMOS E APRENDEMOS, PODE CONTRIBUIR PARATRANSFORMAR O MUNDO.ISTO FOI COMO A LUZ,COMO ENCONTRAR OCORÃO PELA PRIMEIRA VEZ,PARA QUEM ACREDITENISSO: UMA REVELAÇÃO.

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selho Internacional para a Educação deAdultos continua a existir, continua apublicar a revista Convergence, tem umexcelente website, a secretária-geral émuito capaz (uma senhora chamadaCelita Eccher, do Uruguai), publica umarevista quinzenal na Internet, chamadaVoices Rising, que é editada em espan-hol, inglês e creio que em francês, estáno site www.icae.org.uy, tem imensainformação importante, especialmentesobre acções internacionais, conferên-cias internacionais, por vezes livros, e éuma boa fonte de informação.

Li alguns dos seus textos onde faz

sempre perguntas. Diz: “Tenho

muitas dúvidas”. Quer dizer que,

quanto mais experiência se tem,

mais dúvidas surgem?

Sim. Mas aprendi que às vezes aquestão é a melhor resposta. Porque assoluções para qualquer situação sãomuito baseadas no seu contexto, porisso a resposta para um problema espe-cífico de uma comunidade no Oeste doCanadá não é necessariamente amesma para uma comunidade emBraga, apesar de alguns problemasserem os mesmos. Queremos mais em-pregos, queremos mais acesso à edu-cação para mais pessoas, mas a histó-ria das comunidades é diferente, a his-tória das regiões é diferente, a estrutu-ra da língua é diferente, a história eestrutura de governo são diferentes, ahistória e as lutas populares são dife-rentes, e a história dos líderes indivi-duais é diferente. Muitas vezes é mais importante fazerperguntas, porque a maior parte dasvezes as pessoas sabem as respostas.Às vezes preferem ouvir alguém de foradizê-lo, porque não se sentem confian-tes ou porque é perigoso dizê-lo. Lem-bro-me de estar a trabalhar na Coreia doSul, há cerca de 12 anos. Estava numaconferência sobre Educação para a Paz,e fui convidado por um educador deadultos para ir à sua cidade falar sobreEducação para a Paz. Incluí no meu dis-curso um poema que traduzi do corea-no. Quando li a tradução, o homem cho-rou. Depois explicou: “eu próprio nãopoderia ter lido esse poema”, porque naaltura a situação era muito complicada,“mas tive a oportunidade de dizer essepoema a estas pessoas todas porque

Este capítulo apela a que os teóricos e activistas dos movimentos sociais consi-derem as dimensões da aprendizagem destas poderosas formas de organizaçãohumana. Alerta-nos para considerar a possibilidade de as dimensões de aprendi-zagem nos movimentos sociais poderem ampliar a nossa capacidade para com-preender o verdadeiro impacto dos movimentos sociais em relação melhor do queoutras explicações políticas ou sociológicas.(…)A aprendizagem nos movimentos sociais, do meu ponto de vista, refere-se a váriosfenómenos interligados. A Aprendizagem nos Movimentos Sociais é (a) aprendiza-gem das pessoas que integram qualquer movimento social, (b) aprendizagem daspessoas exteriores a um dado movimento social causada pela acção dessemesmo movimento social.(…)Os próprios movimentos sociais definem-se através da criação de novos conheci-mentos, novos pensamentos e novas ideias. São uma força socialmente constru-tiva e uma determinante fundamental do conhecimento humano. Como tal têmimplicações profundas na teoria da aprendizagem. Os movimentos sociais sãomuito mais do que ‘lugares de aprendizagem’, porque estão no cerne do conteú-do da própria aprendizagem.(…)Quer as lideranças dos movimentos sociais estejam conscientes quer não, existeuma criação de conhecimento que emerge e toma forma, assim como a emergên-cia de um leque variado de estratégias de aprendizagem pedagógicas e sociaisdentro dos espaços dos movimentos sociais. É por isso que valorizamos osespaços dos movimentos sociais tanto pelo seus processos como pelos seusresultados. O conteúdo pedagógico dos espaços dos movimentos sociais seduz-nos pelas suas tendências específicas e potenciais contribuições. O carácterúnico dos movimentos sociais pode ser visto no contexto: a) do esmagamento doconhecimento sob a globalização da economia; b) do movimento que vai do pro-testo à proposta; c) do facto de os actores dos movimentos sociais serem simul-taneamente conhecedores, aprendizes e professores que visam a diversificaçãodo conhecimento; d) da diversidade de conhecimentos e modos de saber; e) datransição de formações sociais ‘residuais’ para ‘emergentes’; f) dos contributospara a democratização da sociedade civil e para a governação ao nível das basespopulares (…)Prestar atenção à aprendizagem nos movimentos sociais é essencial no momen-to transformativo actual. Para sermos capazes de fazer as mudanças na escalaque muitos de nós sentem ser necessárias no nosso conturbado mundo, precisa-mos de ser capazes de ir além do mercado como principal motor da teoria daaprendizagem. Precisamos de ultrapassar as concepções sobre o processo deaprendizagem dos indivíduos, quer adultos quer crianças, que o apresentam comoalgo descontextualizado, independente do género ou da raça. A nossa capacidadepara aprofundar a nossa compreensão dos movimentos sociais depende em partedo estudo que fizermos das dimensões ocultas da acção dos movimentos sociais,a dimensão da aprendizagem. Dar atenção à aprendizagem nos movimentossociais vai também contribuir para uma melhor compreensão da educação deadultos, popular e transformadora, numa altura em que tal atenção é necessária.(…)Dar atenção ao poder de aprendizagem, ao poder de criação de conhecimento emcontextos de movimentos sociais é um contributo que pode ser feito por quemestá interessado na educação, formação e mobilização das sociedades civis.

EXCERTOS DO TEXTO

SOCIAL MOVEMENT LEARNING IN A WORLD AT RISK

AO LONGO DA VIDA 13

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você veio e leu”. Às vezes, quem vem defora pode dizer coisas para apoiar o queas pessoas no local estão a fazer. Dizem-me que sou um optimista, e euacho que no geral sou. Tenho muitaesperança, mas devo dizer que a actualconjuntura mundial é extremamentepreocupante. Vivo no país mesmo aolado dos EUA. Há um estreitamento dodiscurso público, e o espaço democráti-co nos Estados Unidos está a desapa-recer. Ser chamado de “liberal” nos EUAaté já é um pouco perigoso, por issopode imaginar-se o que será ser cha-mado de “radical”. E a tendência doactual governo americano, o seu con-forto em usar a violência para atingir osseus objectivos nacionalistas muitoredutores, tudo isto é extremamentepreocupante. Nestas alturas, é bomfazer muitas perguntas sobre a direc-ção que estamos a tomar.

O seu trabalho actual é promover a

criação de emprego?

Não exactamente. Estou muito interessa-do na Educação Ambiental de Adultos. O que descobrimos com a pesquisa par-ticipativa é que se fosse dada a mais pes-soas a possibilidade de criar conheci-mento, poderíamos conseguir muitas coi-sas. Se tornarmos a investigação maisdemocrática, para que muitas pessoaspossam criar conhecimento, e esse co-nhecimento for reconhecido, a democra-cia é maior. Ainda temos muito trabalho a fazer.Porque agora temos aceitação. Euposso ser, por exemplo, um académicoe dar uma conferência sobre pesquisaparticipativa, mas a maior parte da in-vestigação na minha universidade nãoé assim. A maior parte é tradicional. Oque percebi nos últimos anos é que apesquisa participativa é essencialmen-te sobre co-criação de conhecimentoentre seres humanos, mas a novaquestão é: será possível co-criar con-hecimento com outras formas de vidaque não só a humana? Haverá umapossibilidade de criar conhecimentocom outras formas de vida animal? Ouaté co-criar conhecimento com plantas,com árvores, com florestas? Acho quea resposta mais provável é que sim. Por exemplo, na Idade Média, era aceiteque os nobres viviam nos seus castelos etinham poder sobre os seus servos, e a

ENTREVISTA

APRENDER A IMAGINAR

Um poema de Bud Hall

Alguma vez ouviram ou leram um poema que parece exprimir per-feitamente os vossos sentimentos sobre o mundo em que gosta-riam de viver? Alguma vez se perguntaram porque é que os poe-tas são tantas vezes citados em manifestações? Alguma vezviram numa newsletter um poema que vos sensibilizasse?Alguma vez escreveram um poema em resposta a assuntos davossa comunidade ou do mundo? Se responderam que sim aqualquer das questões, então já entraram no mundo da poesia edos movimentos sociais.

Aprender a Imaginar

Educação tem a ver com as nossas relações, as nossas comunidades, os nos-sos locais de trabalho,As nossas bio-regiões, as nossas estruturas políticas, o nosso planeta e onosso universo.Tem a ver connosco.Tem a ver com o tipo de trabalho que fazemos.Mas, acima de tudo, tem a ver com o direito de imaginar.Imaginar um contexto em que cada um de nós é respeitado por aquilo que é;Imaginar uma vida de suficiência e de saúde;Imaginar que todas as nossas crianças poderão viver sem sofrer abusos;Imaginar que a violência ou o medo da violência nas vidas de todasas mulheres e crianças poderão diminuir; Imaginar que a raça virá a ser um código para a criatividade e um contributo

14 APRENDER

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AO LONGO DA VIDA 15

Revolução Francesa disse-nos que essasrelações de poder iriam mudar. No sécu-lo XIX, disseram-nos que os proprietáriostinham poder sobre os trabalhadores, evimos algumas modificações através dacriação de sindicatos e aceitamos hojeque trabalhadores e proprietários pos-sam co-criar um local de trabalho.Durante muitos anos, achámos que oconhecimento dos homens era superiorao das mulheres, e muitos de nós apren-demos através de árduas lições que asmulheres e os homens podem juntar-separa co-criar conhecimento. Por isso,será tão difícil de acreditar que um diapossamos aprender a co-criar com oresto da natureza? Porque é que essa éuma pergunta importante? Não é maisimportante do que a questão da relaçãoentre o conhecimento e a construção davida democrática, ou de uma vida maisjusta para os seres humanos. Mas,sabendo o que sabemos sobre a situa-ção ambiental e ecológica do planeta,se queremos ter um planeta, se quere-mos ter a Terra e ar e água e árvores eágua, precisamos de encontrar umamaneira de ter um contacto mais próxi-mo com estas formas de vida, porqueelas vão sobreviver, mas nós talvez não.É por isto que estou interessado nestaquestão.

Educação de Adultos ecológica e

transformadora?

Sim, Educação de Adultos ecológica etransformadora!

É isto que faz actualmente?

Sim. Eu e a minha mulher, Darlene, escre-vemos um livro chamado A Natureza daTransformação. Isto é educação ambien-tal de adultos, e trabalhámos muito nosúltimos cinco, seis anos nessa área comgrupos comunitários, trabalhámos muitonuma forma de pesquisa participativa eeducação popular, mas centrando-nosmais na acção ambiental. Hoje em dia,acreditem ou não, sou director de umafaculdade de educação, por isso interes-so-me muito pela reforma universitária,acelerando o passo da mudança, porquese não fizermos alguma coisa acerca damaneira como as nossas universidadesfuncionam, vamos estar a repetir os mes-mos problemas. Tudo o que tenho apren-dido, aprendi em grupos comunitários eem conversas como esta, em seminários

e trabalhando com as pessoas. Nãoaprendi nada disso na universidade. Na minha faculdade, sei que os estudan-tes saem sem consciência suficiente acer-ca das práticas democráticas, sem cons-ciência suficiente sobre como podem sermembros activos na sociedade e no pla-neta, e sem sensibilidade suficiente emrelação às diferenças entre os sereshumanos. O que me preocupa agora é ten-tar perceber o que podemos fazer paraacelerar as mudanças nas universidadespara permitir que os estudantes saiamcom mais consciência e mais sensibilida-

de do que muitos de nós. É a mais difícilde todas as lutas que já travei.

Parece que a mudança nas universi-

dades é mais difícil que a mudança

no mundo...

Exactamente...

Uma última questão. Que importân-

cia é que a poesia tem na sua vida?

Descobri a poesia através da educaçãode adultos. Lembro-me de uma históriade Paulo Freire sobre um grupo de estu-do no Recife. Havia um homem, um cam-ponês, que estava a aprender a ler, e quena abordagem à literacia, logo no primei-ro dia, tinha de escrever uma palavra.Eles estavam a estudar sílabas: ni-na-nu-no, por aí fora, e o Paulo disse: “agora

juntem as sílabas e escrevam uma pala-vra”, e o velhote estava a pensar, e derepente fez um sorriso enorme e o Pauloperguntou-lhe: “o que é que escreveu noseu papel?” e ele tinha escrito “Nina,Nina”. E explicou: “é o nome da minhamulher: é a primeira vez na vida que con-sigo escrever o nome da minha mulher!”.Eu achei isto um momento poético“Nina...”. De início, a escrita dos recém-alfabetizados é poesia, porque eles nãosabem as regras da gramática, por issojuntam palavras que lhes vêm do cora-ção e da mente.

Rapidamente lhes ensinamos que “não,não, não pode juntar Nina a esta ouàquela palavra”, ou seja, ensinamos-lhes a não ser poetas, mas, no seu inte-rior, são naturalmente poetas. Quandovamos a manifestações ou a um comí-cio político, ou há talvez um grande ora-dor, ou se publica um folheto, muitasvezes se convida um poeta para recitarum poema, ou se põe um poema noboletim. Como activista, despertou-mea atenção o facto de tantas vezes ospoetas tomarem parte nas nossaslutas. Quando estava na Tanzânia, osquartéis-generais da Frelimo (Moçam-bique) e do MPLA (Angola) estavam se-diados lá, e Nyerere deu-lhes espaçopara fazerem a sua educação e o seutreino na Tanzânia, que era um lugar

O QUE EU GOSTO NAPOESIA É O SEU MISTÉRIO,A SUA MAGIA. COM O FACTODE ENCADEARMOS ASPALAVRAS DE FORMA NÃO-GRAMATICAL, PODEMOSFAZER DUAS COISAS: UMA,SENTIR, UNIR A VIDACONCEPTUAL COM A VIDAAFECTIVA E ISSO É ALGOMUITO PODEROSO. A SEGUNDA COISA É QUEPODE DIZER-SE ALGO NUMPOEMA QUE DEMORARIAQUATRO NÚMEROS DESTAREVISTA PARA DIZER

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16 APRENDER

ENTREVISTA

seguro para eles. Agostinho Neto eraum grande líder político e também erapoeta; no movimento sandinista naNicarágua de 1980-81, eram todos poe-tas. Fiquei a pensar que devia haveralgo especial. De volta à sua pergunta, o que eu gostona poesia é o seu mistério, a sua magia.Com o facto de encadearmos as palavrasde forma não-gramatical, podemos fazerduas coisas: uma, sentir, unir o cognitivo,a vida conceptual com a vida afectiva, demaneira que o coração e a mente seunem, e isso é algo muito poderoso. Asegunda coisa é que a poesia pode sermuito mais concisa, pode dizer-se algonum poema que demoraria quatro núme-ros desta revista para dizer. Porquê, por-que é que é assim? Não sei. Mas essa éa magia da poesia. Nos últimos dez anos, na Universidadede Toronto, tenho dado uma cadeirachamada “Poesia, Movimentos Sociaise Educação de Adultos”. Não lemosanálises de poesia de ninguém, nãofazemos crítica literária, trazemos poe-mas. Se estamos interessados emdesenvolvimento rural, procuramos umpoema. Eu diria “Alberto, traga umpoema. Não quero uma história sobreFaro, nenhum texto intelectual. Traga-me um poema sobre o que está a acon-tecer.” E digo o mesmo a si, pode estarinteressado no assunto da paz mundial,eu não quero um grande discurso deKofi Annan sobre paz mundial, oumesmo um texto de algum escritorindiano, não, encontre-me um poema eaí teremos a nossa conversa. Às vezesperguntam-me “Tenho de escrever umpoema?”, e eu digo, “não, não tem deescrever um poema, mas tem de estarpreparado para ter uma conversa combase na poesia”. Todos os alunos quevieram às minhas aulas escreverampoemas, todos se transformaram empoetas. Alguns já o eram e vieram àsaulas porque estavam curiosos acercade como um educador aborda a poesia.A maioria deles eram pessoas quenunca tinham sido poetas, alguns aca-baram por se tornar poetas com obrapublicada, muitos deles usam a poesiano seu trabalho. A poesia tem um podermaravilhoso, tal como a música. A mú-sica é muito poderosa mas a poesiatem um lugar muito especial e já meofereceu tanta coisa.

em vez de um filtro de exclusão;Imaginar relações de harmonia e de ritmo com a Terra;Imaginar que as diferentes capacidades poderão ser celebradas pelas dádivasque possibilitam;Imaginar que temos a coragem de falar.Contudo, para sermos capazes de avançar,Segurando com firmeza o direito de imaginar e nele ganhando raiz,Precisamos de aceitar algumas noções muito simples e básicas:Que as coisas não estão bem da forma como estão;Que temos a capacidade de transformar as nossas vidas;Que a actual máquina económica global está a matar seres humanos, todasas outras formas de vida e põe em risco a sobrevivência do planeta;Que a maneira como pensamos constrói a nossa vida;Que as nossas vidas, incluindo a nossa raça, género, orientação sexual,aptidões, idade, classee relações com a Terra, construem os modos como nós pensamos;Que as sementes de um mundo transformado existem dentro das nossascomunidades, das nossas escolas, dos nossos movimentos sociais, dos nossosespaços de resistência e até dentro de quem ouve ou lê este poema.

Learning to Imagine

Education is about our relationships, our communities, our places of work, Our bio-regions, our political structures, our planet and our universe. It is about us. It is about the kind of work we do. But above all it is about the right to imagine.To imagine a context where we are each respected for who we are;To imagine a life of sufficiency and health;To imagine that all our children could live without abuse;To imagine that violence or the fear of violence in the lives of all women andchildren could decline;To imagine that race would be a code for creativity and contribution rather thana filter which excludes;To imagine relationships of harmony and rhythm with the earth;To imagine that differences in ability could be cherished for the gifts they makepossible;To imagine that we have the courage to speak.But to be able to move forward Taking firm hold of or on the right to imagine, We need to accept some quite simple and basic notions:That things are not OK the way they are;That we have the capacity to transform our lives;That the current global economic machine is killing humans, all other forms oflife and puts the survival of the planet at risk;That the ways in which we think constructs our lives;That our lives, including our race, gender, sexual orientation, abilities, age,class and relations with the earth, construct the ways in which we think; That the seeds of a transformed world exists within our communities, ourschools, our social movements, our locations of resistance and even amongstthose who hear or read this poem.

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UNIÃO EUROPEIA

FUNDO SOCIAL EUROPEU

Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social

PROGRAMA DE INICIATIVA COMUNITÁRIA EQUALCOMBATER AS DESIGUALDADES E AS DISCRIMINAÇÕES

QUALIFICAR AS PESSOAS E AS ORGANIZAÇÕES

Gabinete de Gestão EqualAv. da República, 62 - 7º; 1050-197 LisboaTel.: 21 799 49 30 o Fax. 21 793 39 20; E-mail: [email protected]

Para mais informações consultar

www.equal.pt

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APRENDER A TER

SAUDENO DOSSIER DESTA EDIÇÃO MOSTRAMOS COMO A APRENDIZAGEM AO LONGO DA VIDA E ASAÚDE ESTÃO INTIMAMENTE LIGADAS. EM ACÇÕES DE MEDICINA PREVENTIVA, COMO A PRA-TICADA PELA UNIDADE MÓVEL DA MOITA, OU EM ACÇÕES DE FORMAÇÃO, COMO MOSTRA ANOSSA REPORTAGEM EM PALMELA. AFINAL, VIVER COM SAÚDE É TAMBÉM UM OBJECTO (EBOM) DE APRENDIZAGEM, COMO APONTA ANTÓNIO CARDOSO FERREIRA. NOUTRO PLANO,BERTA NUNES MOSTRA COMO OS SABERES DAS COMUNIDADES, SEJAM ELES INFORMAIS,POPULARES OU PROFISSIONAIS, SERVEM PARA RESOLVER MUITOS PROBLEMAS DE SAÚDE.DE VOLTA À ESTRADA, A REPORTAGEM EM CASTELO BRANCO MOSTRA COMO SE PROMOVE ASAÚDE USANDO A INTERNET PARA FORMAR TÉCNICOS QUE AJUDAM AGRICULTORES A ADOP-TAR MEDIDAS DE HIGIENE E SEGURANÇA. FINALMENTE, ROGÉRIO ROQUE AMARO EXPLICACOMO SAÚDE E DESENVOLVIMENTO PASSARAM A SER COMPONENTES FUNDAMENTAIS DOBEM-ESTAR, E COMO A SAÚDE COMUNITÁRIA É UM PILAR DO DESENVOLVIMENTO.

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20 APRENDER

APRENDER A TER SAÚDE

NO CENTRO DE SAÚDE (CS) DAMOITA EXISTE UMA UNIDADE MÓVELQUE SE DESLOCA A LOCALIDADESDO CONCELHO. TAMBÉM O CS DEPALMELA SE TEM PREOCUPADO EMPROMOVER A SAÚDE NA ÁREA DAHIGIENE E SEGURANÇA ALIMENTAR.DUAS EXPERIÊNCIAS EXEMPLARES,PELOS RESULTADOS OBTIDOS, ETAMBÉM POR REVELAREM O QUAN-TO AS COMUNIDADES PODEM, TAM-BÉM ELAS, GERAR AGENTES DIVUL-GADORES DA PREVENÇÃO.

DUAS EXPERIÊNCIASEXEMPLARES

SAÚDE, HIGIENE E SEGURANÇA ALIMENTAR

Texto: Guiomar Belo Marques # Fotografias: Paulo Figueiredo

T odas as quartas-feiras, aUnidade Móvel (UM) do Centrode Saúde (CS) da Moita estacio-na no mais movimentado largo

de Sarilhos Pequenos para aí fazer oseu atendimento semanal à populaçãoda freguesia, caracterizada pela predo-minância de idosos, e toda ela inscritano CS. Organizadamente, os utentesaguardam a sua vez no exterior dacarrinha. Lá dentro são feitos pequenostratamentos, planeamento familiar, pas-sam-se receitas relacionadas comdoença crónica, marcam-se consultas,vacina-se, fazem-se rastreios, etc. Se é

detectado algum problema que inspirecuidados, particularmente no caso dosdiabéticos ou hipertensos, é feito oencaminhamento para o CS. Equipadacom tudo aquilo que é indispensávelpara cumprir com o serviço que presta,a unidade móvel conta com dois médi-cos de saúde pública, um outro de medi-cina de família e dois enfermeiros. Aequipa que faz ainda visitas domiciliá-rias, principalmente a doentes acama-dos. A Junta de Freguesia disponibilizouuma sala onde são feitas acções de sen-sibilização por um fisioterapeuta.Diferente é o contexto vivido na Quinta

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AO LONGO DA VIDA 21

da Fonte de Prata, o outro local ao quala UM se desloca semanalmente às quin-tas-feiras. Apesar de não distar muito doCentro de Saúde, as suas característicasespecíficas ditaram a necessidade detambém este bairro receber as visitasdeste serviço. Segundo Luciana Bastos,uma das médicas de saúde pública quefaz parte desta equipa, trata-se de umapopulação maioritariamente constituídapor imigrantes. Existem muitos jovens,mas a percentagem de inscritos no CS éainda considerada baixa. “As pessoasnão vão às consultas e, portanto, umdos nossos objectivos é sensibilizá-laspara a importância da saúde e convidá-las a inscreverem-se, já que a funçãoprincipal desta UM é chegar aos locaisonde existem barreiras, sejam elas físi-cas, como é o caso de Sarilhos, ousociais, como neste segundo caso. NaQuinta da fonte de Prata trabalhamosem colaboração com a Associação daParagem das Freiras, além de recorrer-mos a um café como ponto de distri-buição”.

Um trabalho com dois anos

Apesar de se encontrar ao serviço do CSda Moita, esta Unidade Móvel foi-lheatribuída ao abrigo do Projecto SaúdeXXI, que goza de fundos comunitários eé gerido pela Direcção-Geral de Saúde,

na sequência de um projecto apresenta-do por este CS. Uma vez aprovado, aequipa avançou, então, para a realiza-ção de inquéritos de prospecção denecessidades, porta a porta, em 2003,e no início do ano seguinte iniciaram asua actividade nas duas localidades ini-cialmente seleccionadas, embora estejaprevisto avançarem para outras duasdentro em breve. “A ideia nunca foi a detransformar a Unidade Móvel numaextensão do Centro de Saúde, masantes a de dar apoio complementar”,explica Luís Hermenegildo, responsávelpelo projecto. “Embora a sua função

seja a de fazer rastreios, prestar cuida-dos primários e desenvolver acções desensibilização, a equipa tem de estarsempre atenta a outras necessidadesque vão surgindo”, acrescenta estemédico que considera que na promoçãoda saúde a Unidade Móvel “é muitomais eficaz do que a dada no Centro deSaúde. Aliás, temos o projecto de fazeranimação de rua com esse mesmoobjectivo, já que as pessoas é que têmde perceber em que devem mudar; nãosomos nós que vamos dizer como odeverão fazer”.Muito dinâmico e possuindo há jáalguns anos diversos projectos inova-dores destinados a promover a saúde,particularmente junto de crianças,jovens e idosos, é talvez a populaçãoactiva aquela à qual tem sido prestadamenor atenção em termos de acçõesespecíficas. Convivências/Envelhecer,com Projecto constitui um dos maisinteressantes conceitos de aplicaçãoprática deste CS. Partindo da consta-tação de que havia muitos idosos querecorriam ao Centro semanalmente,não objectivamente por questões desaúde, mas antes por falta de projectode vida, solidão e reduzida auto-esti-ma, este projecto consistiu na criaçãode um grupo, composto actualmentepor cerca de 33 idosos, e que, não

Luciana Bastos: superar barreirasLuís Hermenegildo: dar apoio complementar ao Centro de Saúde

A construção de um projecto de vida é fundamental e é algoque pode ser feito em qualquer altura davida, independentementeda idade

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22 APRENDER

sendo exactamente de interajuda, per-mite troca de experiências e de apoio,desenvolvendo-se, ainda, outras activi-dades. A funcionar há cinco anos, estegrupo reúne três vezes por semanapara conversar, passear, receber mas-sagens, programar actividades, etc.Para os técnicos do Centro directamen-te envolvidos neste projecto, não háqualquer dúvida quanto à positiva evo-lução das conversas, inicialmentemuito circunscritas à doença e agoratão diferentes, ao prazer em desenvol-verem actividades e, ainda, à reduçãosignificativa de consultas solicitadaspor aqueles que compõem o grupo. Ouseja, os problemas de solidão foramultrapassados, que o mesmo é dizer, asaúde mental (e com ela a física) me-lhorou consideravelmente.Luís Hermenegildo faz questão desalientar que toda esta actividade do

Centro de Saúde tem a ver “com o con-ceito de saúde que nós temos, nocaminho do bem-estar e da boa saúdemental. A construção de um projecto devida é fundamental e é algo que podeser feito em qualquer altura da vida,independentemente da idade. O melhorprojecto de vida é aquele que permitelevar um moribundo a pensar no queainda pode fazer”.

Formar para melhor alimentar

Dora é auxiliar de acção educativa naEB 2,3 Hermenegildo Capelo, emPalmela, mas foi destacada para fazer oatendimento no bar da escola. Sem for-mação específica para exercer estafunção, tem procurado desempenhá-lao melhor possível dentro das condiçõesexistentes e do seu bom senso. Quandolhe foi proposto realizar uma acção deformação integrada no projecto de Ali-

mentação Saudável Com Peso e Medi-da, promovido pela Câmara Municipalde Palmela em colaboração com oCentro de Saúde, Dora não hesitou emaceitar. “Quis fazê-la, e a escola tam-bém queria que fosse alguém do bar”,explica. Sobre aquilo que lá aprendeu,realça que agora sabe melhor comoacondicionar os alimentos, “o quetemos no bar e não deveríamos ter,como um balcão não refrigerado ondeguardamos alimentos, e que têm a vercom a estrutura do próprio bar. Aprendi,também, como devo descongelar o pão,que antes metíamos no microondas epronto”. Estas, e muitas outras coisasque Dora, assim de repente, não sabedizer, mas se confrontada com elassabe como fazer, foram uma importanteajuda no seu trabalho, que o mesmo édizer, para um mais saudável serviçoprestado aos alunos da escola.

Ricardina e Ana Serra: a acção de formação ensinou a chefe de cozinha a perceber como confeccionar pratos mais saudáveis

APRENDER A TER SAÚDE

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Também Dina, como é chamada Ricar-dina, a chefe de cozinha da cantina,sabe agora melhor como conjugar os ali-mentos. Tal como Dora, fez esta for-mação (embora já anteriormente tivessefeito várias outras da responsabilidadeda DREL) sob proposta da escola mastambém por ter interesse. No seu caso,foi particularmente importante percebercomo pode confeccionar os pratos demodo mais saudável. “Aprendemos anão dar tantos fritos, embora tambémaconteça que por vezes damos aos alu-nos coisas que são aconselháveis e elesacabam por as deixar no prato. É o casoda sopa, por exemplo, que muitos nãocomem, porque a má alimentação jávem de casa. Procuro dar sempre legu-mes, mas como uns os preferem crus eoutros cozinhados, compomos os pratoscom uns e outros, ou seja, damos legu-mes cozidos, mas também pomos alfa-ce e cenoura ralada”. Embora a elabo-ração dos menus semanais não seja dasua directa responsabilidade, consideramuito importante aquilo que aprendeupara a confecção mais saudável e equi-librada dos pratos. Ana Serra, presidente do ConselhoExecutivo da escola, tem consciênciadas dificuldades existentes para que osalunos comam o que lhes é proposto.“Há limitações que vão para lá das pos-sibilidades que temos”, afirma. “Pro-curamos sensibilizar os pais, mas mui-

tos deles são resistentes a aceitarsugestões. Não entendem, por exemplo,por que razão a escola não vende deter-minado tipo de refrigerantes, como acoca-cola, se são bebidas que eles habi-tualmente deixam os filhos consumir.Por outro lado, temos consciência danecessidade de fazermos obras no bare de lá colocar um balcão de refrige-ração, mas ainda não o conseguimosfazer porque o bar é, precisamente, aúnica fonte de receitas que a escolapossui. No entanto, garante,”iremosfazê-las o mais depressa possível”.

Com Peso e Medida

Dirigido às auxiliares que trabalham nasescolas e jardins-de-infância, ou emInstituições Particulares de Solidarieda-de Social (IPSS) do concelho de Palmela,o III Curso sobre Alimentação Saudáveldecorreu em Julho de 2004 e abrangeu40 funcionárias, depois de em 2003 teracolhido 86 responsáveis pelo forneci-mento de refeições a 823 crianças.Consequência de uma parceria entre aautarquia e o Centro de Saúde, JoãoDiegues, médico de saúde pública e res-ponsável pela Saúde Escolar desteCentro, recorda que “este projecto come-çou com um diagnóstico feito no Centrode Saúde relativamente às condiçõeshigieno-sanitárias das escolas às quaisfomos regularmente. Portanto, estaacção de formação foi pensada em ter-

mos de prevenção de toxi-infecções ali-mentares e uma parte foi feita por nós,outra por uma dietista e uma terceira poruma cozinheira, para introduzir a temáti-ca da alimentação racional. Tambémprocurámos ver com as funcionárias ascondições de trabalho de que dispõem ecomo melhor podem funcionar nessecontexto, além de as ajudarmos a enten-der a importância da sua própria valori-zação profissional”. O balanço actualmente feito por estemédico é claramente positivo já que, noespaço de dois anos, foi possível sensi-bilizar um total de 160 funcionárias,além de melhor terem aferido “o que éque nós, enquanto técnicos, podemosdar como suporte para melhorar as con-dições de trabalhos destas pessoas,além de as ajudarmos a se auto-valori-zarem e avaliarem, para depois seremcapazes de, no dia a dia, introduziremmelhorias”.Para João Diegues, os principais objecti-vos que esta formação se propunhaatingir foram alcançados, já que as mu-lheres que nela participaram passarama sentir-se mais valorizadas, “o que tam-bém é importante, porque não nos inte-ressa, em termos de saúde pública, quenos vejam como estando aqui mera-mente para fiscalizar, mas também paracolaborar e procurar uma contínua me-lhoria de qualidade. Queremos que nosvejam como parceiros de mudança”.

João Diegues, médico de saude pública: a formação foi pensadapara prever as toxi-infecções alimentarese ajudar as funcionárias a entenderem a importância da suaprópria valorizaçãoprofissional

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A visão do “aprender” aparece-nos muito mais larga do quequando se refere apenas ao que se julga saber atravésda leitura dos livros, pois passa necessariamente por

conscientizar, corporizar, saborear, sonhar, criar, aceitar limites econstruir mudanças em interacção com os outros e com o ambien-te que nos rodeia, avaliando e reformulando os passos que damos.Será este, afinal, o projecto de vida que cada um de nós e cadacomunidade poderão desenvolver em direcção a um bem-estarque nunca será completo, porque somos limitados, mas que, porisso mesmo, é dinâmico, e aponta para um futuro que ultrapassaa nossa própria morte.

Pensar Saúde

Nascemos trazendo connosco uma energia potencial e um con-junto de limitações, assentes na nossa carga genética, à esperado desenvolvimento que decorrerá da nossa relação com osoutros, com o mundo e com a história.Podemos dizer que a saúde é então uma semente que faz parte

de nós, desde o início, um recurso para enfrentar os desafios davida, se for devidamente regada e adubada, dia a dia.Uma vez, em conversa com um grupo de pastores da Serra daEstrela, e lembrando-me das caminhadas de vários dias que elesfaziam nos tempos de transumância, levando os rebanhos parapastos muito distantes, ocorreu-me comparar a saúde a umacabaça com água fresca, que cada pastor costumava levar consi-go, procurando não a esvaziar nunca até encontrar uma nova nas-cente onde pudesse enchê-la de novo. Penso que a comparaçãoresultou, na medida em que abre a porta para a ideia de que estánas nossas mãos promover o nosso potencial de saúde, atravésdos nossos comportamentos, em vez de nos limitarmos a “invo-car Santa Bárbara quando ouvimos os trovões”, isto é, em vez dereduzirmos a relação que temos com a nossa própria saúde ape-nas a uma correcção dos desequilíbrios resultantes das doençase acidentes que nos atinjam. Infelizmente, as próprias políticas desaúde, neste país aparentemente desenvolvido, têm-se centradoquase só nos tratamentos e pouco tem sido investido na saúde

APRENDER A PROMOVER ASAÚDE AO LONGO DA VIDA

APRENDER A TER SAÚDE

“APRENDER AO LONGO DA VIDA” É UM BOM MOTE PARA FALAR DA PROMOÇÃO DA SAÚDE, NA PERSPEC-TIVA DO “APRENDER FAZENDO”/”APRENDER VIVENDO”/”APRENDER A SER MAIS”.

“A saúde é a capacidade de cada homem, mulherou criança para criar e lutar pelo seu projecto de

vida pessoal e original em direcção ao bem-estar.”Christoph Djours

Texto: António Cardoso Ferreira (médico de saúde pública)Ilustração: Luís Miguel Castro

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como um bem a promover. Claro que há bastantes situações emque surgem problemas de saúde condicionados por factores quesão independentes dos nossos comportamentos. No entanto,mesmo em relação a essas situações, a nossa capacidade paraenfrentá-las e corrigi-las depende em grande parte da formacomo promovemos a nossa saúde.Por outro lado, actualmente, as principais causas de morte e inca-pacidade prematuras nos países desenvolvidos (doenças cardio-vasculares, cancro, causas violentas, doenças sexualmente trans-missíveis, toxicodependências, etc) têm a ver com a prática de com-portamentos de risco em que se despreza a importância do poten-cial de saúde. Por isso mesmo, os grandes investimentos económi-cos no diagnóstico e tratamento de doenças têm tido resultadosbastante fracos no que respeita à relação custo-benefício.Falemos pois da saúde que, da semente à nascença, se pode tor-nar uma árvore frondosa por dentro de cada um de nós, atravésdo desenvolvimento de competências partilhadas com os outros,da longa aprendizagem a partir da vida, escolhendo caminhos,avaliando resultados, saboreando prazeres que nos expandem,sonhando mudanças e tentando construí-las em comunidade eem diálogo com a natureza que nos sustenta.

Promoção da saúde – Que práticas

Os princípios acima enunciados pretendem apenas constituir umenquadramento, no contexto do qual gostaria de apontar algu-mas estratégias em que acredito e referir sinteticamente meiadúzia de experiências significativas na minha própria aprendiza-gem em torno dos processos de promoção da saúde.Curiosamente, ao pensar nestas experiências, verifico que esco-lhi exemplos que decorreram entre 1975 e o presente, mas quena sua maioria dizem respeito às duas primeiras décadas.Aqueles que estão mais por dentro dos investimentos que as polí-ticas de saúde e educação têm vindo a efectuar no âmbito da pro-moção da saúde junto de crianças, jovens e comunidades locais,decerto concordarão com a referência de que, nos últimos anos,este investimento tem vindo a decair, e que outras prioridadestêm vindo a preencher o seu lugar em ambos os ministérios ...Quanto às estratégias a desenvolver, temo-nos vindo a afastarcada vez mais das velhasintervenções expositivas e pontuais para muita gente, injectandosaberes que se esquecem facilmente porque não chegam a sertocados nem saboreados na própria vida das pessoas.Também me vou afastando dos slogans e lições em que se tentaimpor os caminhos dos “não” que alimentam medos e geramproibições.Em vez disso, vão-se multiplicando as estratégias de promover asaúde “porque sim”, pelo caminho positivo de procurarmos sermais livres, mais solidários e mais felizes, pois só a vivênciadesse caminho positivo e a esperança de conseguirmos ir aindamais longe podem constituir para nós uma referência forte quenos leve a pôr de lado o que contraria a liberdade, a solidarieda-de e a alegria.

Aljustrel – Animação Comunitária

Em Aljustrel, entre 1975 e 1982, fiz parte da equipa do Centro deSaúde que desenvolveu diversas iniciativas de promoção desaúde com base em equipas por freguesia, professores, mem-bros da Junta de Freguesia e alguns voluntários. Procurávamos

sobretudo estar atentos ao que as escolas, as famílias ou a comu-nidade sentiam necessidade de promover, e não tanto aos crité-rios nascidos da nossa leitura técnica dos problemas existentes.Uma experiência que me marcou, por exemplo, foi aAssembleia de Freguesia de Messejana, que, a partir de deter-minado momento, decidiu reunir regularmente de forma alar-gada, envolvendo os profissionais de saúde e educação, bemcomo os membros da comunidade local, distribuindo funçõesque iam desde a vigilância da água ou da iluminação públicaà recolha de críticas e propostas relativas à satisfação dasnecessidades da população face aos serviços da autarquia,do Centro de Saúde, do apoio aos idosos, etc, tornando-seaquelas reuniões um fórum de intercomunicação e de pro-moção de iniciativas conjuntas.

Paredes de Coura – Saúde e Desenvolvimento das

Crianças

No Concelho de Paredes de Coura, entre 1982 e 1987, a equipado Centro de Saúde, de que fiz parte, identificou como prioritárioo problema das deficientes condições de saúde e desenvolvi-mento de competências psicossociais em relação às crianças,antes da sua entrada para a escola, muitas delas dispersas porlugares sem cobertura por Jardim de Infância e entregues a si pró-prias enquanto os pais trabalhavam.Nasceu assim um Projecto (“À descoberta do ser criança no meiorural”) apoiado por uma Associação então criada (OUSAM), impul-sionada sobretudo por vários profissionais de saúde e da edu-cação. Este Projecto constitui aliás uma das primeiras experiên-cias portuguesas de educação de infância itinerante, em que sedeu atenção especial às iniciativas comunitárias, à comunicaçãocom pais e avós, e à promoção da saúde a partir da realidade deque se ia tomando consciência, sendo de sublinhar que aAssociação e o Projecto continuam bem vivos ainda hoje.

Distrito da Guarda – Alimentação Saudável

No Distrito da Guarda, funcionou durante algum tempo uma equi-pa interdisciplinar que se designou como Grupo Intersectorialpara a Alimentação, e cuja actividade foi sobretudo importanteentre 1988 e 1993.De entre as iniciativas de promoção da saúde realizadas poreste grupo, com a participação de serviços da saúde, edu-cação, segurança social e associação de pais, são de salien-tar o “Projecto das Sementes”, com distribuição de sementespara desafiar a criação de pequenas hortas escolares, valori-zando-se alimentos com importância nutritiva; o “Projecto dopão”, envolvendo padeiros, profissionais de saúde, professo-res e alunos na divulgação do pão como alimento e na pro-moção do fabrico de pão como alimento e na promoção dofabrico de pão com mais fibras e menos sal. Um outro projecto promovido também por este grupo chamou-se“Eu sei comer ... e tu?” e teve a participação de dezenas de esco-las e jardins-de-infância do distrito; o desafio foi o de cada escolaou jardim promover pelo menos uma iniciativa comunitária emtorno da alimentação (festas, exposições, sessões de debate,pesquisas sobre os hábitos alimentares em relação com a cultu-ra local, etc.). O grupo promotor aliou a este desafio a distribuiçãode materiais de apoio e disponibilizou a colaboração de váriostécnicos. Como resultado das iniciativas realizadas publicou-se

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um livro e promoveu-se uma exposição itinerante que percorreudepois todo o distrito, servindo ela própria de pretexto para encon-tros de convívio, encenações, festas e jogos tendo a alimentaçãocomo tema central.

Três Experiências no Concelho de Gouveia

Desde 1987, integro a equipa do Centro de Saúde de Gouveia, eparece-me interessante referir aqui três experiências em áreasdiferentes.As caminhadas Há cerca de dez anos, a Escola Secundária deGouveia promoveu, com o apoio do Centro de Saúde, umaSemana da Saúde, no “mês do coração”, e decidiu concluir estainiciativa com a realização de uma caminhada pela serra, aber-ta à comunidade local. Foi este o ponto de partida para acriação de um grupo promotor de caminhadas cuja actividaderegular se estendeu durante cerca de quatro anos, envolvendomuitas pessoas de diferentes gerações, valorizando-se o exercí-cio físico, a relação com a natureza e o convívio entre crianças,jovens e adultos.O grupo promotor veio entretanto a dissolver-se, mas a EscolaSecundária e outras entidades continuam a organizar caminha-das de vez em quando.Educação sexual ao nível das crianças O Centro de Saúdetem cooperado com escolas do 1ºciclo e jardins-de-infância noâmbito da educação sexual das crianças.Em alguns locais tem sido possível realizar iniciativas com conti-nuidade, envolvendo as crianças e respectivos pais, promovendoa comunicação entre todos, integrando a sexualidade com outrosaspectos da vida afectiva e relacional, e ajudando os pais a sen-tirem-se capacitados para intervir de forma adequada face àsquestões com que se confrontam nesta matéria.Os jovens face à saúde e à prevenção de comportamentos

de risco O Grupo Aprender em Festa (GAF) é uma associaçãonascida em Gouveia há uns quinze anos, que assume como fina-lidade a animação do desenvolvimento das pessoas e das comu-nidades.Através dela, e em articulação com o Centro de Saúde, escolas eoutros espaços, alguns de nós têm vindo a aprender caminhospara animação com jovens, nomeadamente em relação à pro-moção da saúde.Neste percurso, demorámos bastante tempo até ultrapassar afase em que promovíamos iniciativas e nos frustrávamos a seguirporque os jovens não lhes davam a continuidade que desejáva-mos. Entretanto, hoje já podemos dizer que partilhamos com bas-tantes jovens diversos projectos, e temos até a alegria de ver quealguns desse jovens vão animando grupos informais, novas asso-ciações ou até empresas com impacto entre a juventude. O inves-timento em processos formativos, ajudando a desenvolver aspotencialidades de jovens animadores de outros jovens terá sidoum importante passo neste caminho.As estratégias que têm vindo a constituir o principal suporte naanimação com jovens, visando a promoção da saúde e a pre-venção de comportamentos de risco, assentam sobretudo novalor do favorecimento da comunicação inter-pares, na interacçãoem equipas, nos jogos com simulação de situações, na ponde-ração dos riscos que vale ou não a pena correr, na responsabili-zação por iniciativas, na reflexão e avaliação conjunta sobre osresultados conseguidos, na ligação estreita entre o lúdico e o

pedagógico e na valorização dos afectos, da solidariedade, dacriatividade e da relação com a natureza.Nos últimos anos, muitas destas iniciativas do GAF com jovenstêm estado integradas no Projecto Animabué, no âmbito do PlanoMunicipal de Prevenção das Toxicodependências.

Tentativa de síntese, pela mão da poesia

Como sintetizar, em jeito de conclusão, as ideias e relatos aquiapresentados em torno da promoção da saúde?Creio que a abordagem poética é o melhor caminho para esta sín-tese, porque associa palavras e silêncios, imagens e imaginação,realidade e sonho.A poesia é afinal também uma energia potencial, à espera quenos deixemos embeber por ela e nos libertemos das amarras quenos condicionam, descobrindo novos caminhos do olhar, do sen-tir, do fazer e do sonhar.A minha tentativa de síntese é então a de juntar aqui dois frag-mentos de poemas que escrevi à procura de “pensar saúde”:

Saúde será talvezUma mulher que riEnquanto atravessa a tarde Em passadas largas e firmes

Saúde poderá serO voo sereno do pássaroPor sobre a planície verde

Saúde será também o riso transparente da criançaA melodia da chuva a encher a terra A ternura das mãos a moldar o barroO roçar dos pincéis na tela coloridaE todo o trabalhoQue produz saber e transforma o mundo

A saúde é como uma sementeQue nasce connoscoPequeninaE cresce devagarÀ medida que aprendemosA regá-la e cuidar dela

Dizemos então Pessoa, cidadão, comunidadeSaúde, educação, ecologiaLiberdade, paz, desenvolvimentoConsciência, afecto, interacçãoAlegria e bem-estar e mais-ser

Depois fazemos tranças com estas palavrasE elas dançam por dentro dos nossos corposPalavras geradoras de mudançaPontas de dedos tacteandoA fresta de sol que surgeQuando a esperança se entorna pelo mundoComo se fosse uma janelaQue começa a abrir-se devagar.

APRENDER A TER SAÚDE

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A QUESTÃO DAS MEDICINAS POPULARES

Texto: Berta Nunes (Médica em Alfândega da Fé e professora de Antropologia Médica na Universidade de Trás-os-Montes e Alto-Douro (UTAD))Ilustração: Luís Miguel Castro

T odos aprendemos ao longo da vida, começamos a apren-der já no ventre da nossa mãe e até talvez mesmo antes desermos concebidos, já que as informações que transporta-

mos nos genes são o resultado de uma longa aprendizagem (ouselecção).Quando nascemos, nascemos numa família e num grupo socialcom uma determinada cultura, cultura essa que foi construídapor esse grupo social ao longo do tempo e que contribui para asobrevivência do mesmo e a sua adaptação ao ecossistema deque faz parte.Nas sociedades complexas em que vivemos, existem culturasdominantes, que possuem instrumentos para impor a sua cultura

a outros grupos sociais (subculturas ou culturas dominadas)dessa mesma sociedade. Estas subculturas ou culturas domina-das resistem de várias formas à cultura dominante, podendo serprogressivamente aculturadas (incluídas total ou parcialmente nacultura dominante).

A questão das medicinas populares

Nas sociedades ocidentais, a biomedicina, ou medicina cien-tífica, faz parte da cultura dominante e pretende impor a todaa sociedade o seu paradigma (modelo teórico) sobre a saúde,a doença e o corpo.Segundo este paradigma, que tem vindo a ser criticado como

A BIOMEDICINA NÃO RESPONDE A TODOS OS PROBLEMAS DE DOENÇA E SOFRIMENTO HUMANO DEFORMA CABAL. MUITOS PROBLEMAS DE SAÚDE CONTINUARÃO A SER TRATADOS E RESOLVIDOS NOUTROSSECTORES DO SISTEMA LOCAL DE SAÚDE, UTILIZANDO OS RECURSOS DA COMUNIDADE, SEJAM ELESINFORMAIS, POPULARES OU PROFISSIONAIS.

DIREITO DE APRENDER, DIREITO DE ENSINAR

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reducionista e incapaz de lidar com a doença e o sofrimentohumano de uma forma global, o corpo é visto como um conjuntode órgãos, tecidos e células que quando funcionam mal, provo-cam a doença.É a visão cartesiana da doença, que vê o organismo como um reló-gio e que pressupõe que quando uma peça avaria é quase semprepossível repará-la ou substituí-la. Também segundo Descartes(século XVI), espírito e matéria são duas realidades distintas cujanatureza é completamente diferente e não sobreponível.Desta forma, são excluídas deste paradigma explicativo da natu-reza do corpo e da doença os aspectos psicológicos e sociais dosofrimento humano, o que torna este modelo incapaz de abordara doença e o sofrimento humano de uma forma holística.As doenças mentais, segundo este paradigma, não são verdadei-ras doenças (pelo menos enquanto não se descobrir alguma ano-malia bioquímica ou genética objectivável que permita explicar acausa das mesmas, o que aliás tem sido objecto de investigação)e os factores sociais e culturais que podem causar doenças ouinterferir no seu tratamento são simplesmente ignorados.No entanto, a crítica que tem vindo a ser feita ao paradigma bio-médico, de fora e de dentro da instituição médica, tem vindo aalterar esta situação, existindo especialidades médicas, como amedicina geral e familiar, que afirmam como sua referência umparadigma bio-psico-social.Na tradição “popular” em Portugal (e vou reportar-me aqui ao tra-balho de campo que realizei numa aldeia de Trás-os-Montes) (1), ocorpo, a saúde e a doença incluem-se num modelo mais abran-gente que considera os aspectos psicológicos, sociais e culturaiscomo causas das doenças e do sofrimento humano.Emoções intensas podem ser causa de doença grave ou mesmomorte, como o medo, a paixão (que na cultura local significa tris-teza profunda) e a cólera. Problemas nas relações entre vizinhos,conhecidos ou familiares podem ser causa de doença (mal deinveja, mau olhado, bruxarias – também referidas como “fazermal a alguém”) e a ligação entre o mundo dos vivos e o mundodos mortos está presente na ideia de que as almas dos defuntosque não puderam ir para “bô lugar” (bom lugar é o equivalente decéu na cultura local), porque “deixaram qualquer coisa por dizerou por fazer”, podem “encostar-se” ou “entrar no corpo” dos vivose provocar doenças.Estas doenças e as suas causas são diagnosticadas e tratadaspelos terapeutas locais que são os “homens e mulheres de virtu-de”, também chamados de “sábios” ou “bruxos”, sendo as pro-messas aos santos outro importante recurso terapêutico.As doenças físicas mais frequentes, como as doenças dos ossos,músculos e tendões, são tratadas pelos endireitas e tambémpelos médicos, existindo outros recursos utilizados no tratamentodas doenças mais comuns, como as plantas medicinais, o mel, ovinho, o vinagre, certos alimentos, etc.

Os sistemas locais de saúde e os seus sectores

Todas as sociedades têm um conjunto de recursos diagnósticos eterapêuticos que lhes permitem lidar com a doença, diagnosticá--la, tratá-la e preveni-la.Esse conjunto de recursos diagnósticos e terapêuticos é o queKleinman (2) chama de “sistemas locais de saúde”, sendo queestes variam em contextos culturais diferentes. Segundo esteautor, podemos encontrar sempre três sectores nos sistemas

locais de saúde que têm características diferenciadas. O sector informal inclui o doente e a sua rede social de apoio(família, vizinhos, amigos, colegas de trabalho, etc.) e é neste sec-tor que se avaliam as queixas do doente, se faz um primeiro diag-nóstico e se propõem as primeiras medidas terapêuticas.Também é neste sector que se decide sobre a gravidade dadoença e a necessidade ou não de recorrer a outros sectores.O segundo sector é o sector popular (ou folk) que inclui os espe-cialistas da cultura local, que em Trás-os-Montes são os endirei-tas, os curandeiros, os sábios ou bruxos e outros.O terceiro sector é o sector profissional, que inclui todas as pro-fissões legalmente reconhecidas para poderem tratar as doenças.Em Portugal, abrange os médicos e as profissões paramédicas, etambém as “medicinas alternativas” já legalizadas pela Assembleiada República – acupunctura, naturopatia, homeopatia. De notar que estas chamadas “medicinas alternativas” são medi-cinas eruditas e não medicinas populares. A acupunctura, porexemplo, faz parte da medicina tradicional chinesa que, duranteséculos, foi a medicina oficial da China, com livros escritos e umsistema de ensino que formava estes terapeutas. Na sociedadechinesa, existem também sistemas locais de saúde com um sec-tor informal e um sector popular (ou folk), como foi estudado porvários antropólogos, entre os quais Kleinman e Leslie (3).

Os itinerários terapêuticos

Desta forma, quando uma pessoa adoece, adoece numa família,num grupo social e numa cultura que condiciona as interpre-tações da doença e as decisões que se tomam para explicar ecompreender o mal.Os itinerários terapêuticos (percursos que a pessoa doente, efrequentemente os seus familiares, descrevem para compre-enderem a doença e obterem a cura) são pois variáveis eincluem frequentemente estes três sectores, simultânea ousequencialmente.A maior parte dos problemas são resolvidos no sector informal enas situações mais graves pode recorrer-se ao sector popular ouao sector profissional.Um estudo recente (4), numa zona rural de Trás-os-Montes e nou-tra urbana (cidade do Porto), mostra que 25% dos inquiridos nazona urbana e 72% dos inquiridos na zona rural utilizaram recur-sos terapêuticos diferentes dos biomédicos. Os mais frequente-mente utilizados foram os endireitas, os ervanários, a acupunctu-ra e a homeopatia, nas zonas urbanas; nas zonas rurais, foram osendireitas, os bruxos e os chás. Outros recursos menos frequen-temente utilizados foram o shiatsu, os massagistas, os produtosnaturais, os osteopatas, as rezas, os curandeiros, os padres, asmezinhas caseiras, etc.Existe pois uma grande variabilidade de recursos terapêuticosque as pessoas utilizam tanto nas zonas urbanas como naszonas rurais e, segundo este estudo (4), cerca de dois terços dosinquiridos dizem ter ficado satisfeitos com os tratamentos, sendoa principal razão referida a eficácia dos mesmos.Também verificamos que a maior parte dos inquiridos neste estu-do não dizem nada ao médico sobre a utilização destes recursosterapêuticos heterodoxos, porque consideram que os médicosnão aceitam esta opção dos doentes ou ainda que não se devecontar tudo ao médico mas apenas aquilo que interessa, sendo odoente que decide o que pode ou não ser apropriado referir ao

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médico durante a consulta. No entanto, a quase totalidade dosinquiridos, tanto nas zonas urbanas como nas zonas rurais, dis-cutiram estes tratamentos com a sua família.Na zona urbana estudada (cidade do Porto), um número conside-rável de inquiridos consideram que os tratamentos foram caros edeviam ser comparticipados, enquanto nas zonas rurais a quasetotalidade considerou os tratamentos baratos e afirmou que“cada um dá o que quer”.

A relação entre a biomedicina e as outras medicinas

Põe-se frequentemente o problema da relação entre estesdiferentes saberes e, como ficou claro neste estudo (4), osmédicos e outros profissionais de saúde têm de uma formageral uma atitude arrogante e de não-aceitação destes outrosrecursos terapêuticos. Sem pôr em causa os grandes avanços da medicina científica e asua eficácia em muitas situações, a verdade é que a biomedicinanão responde a todos os problemas de doença e sofrimentohumano de uma forma cabal e muitos problemas de saúde con-tinuarão a ser tratados e resolvidos noutros sectores do sistemalocal de saúde, utilizando os recursos da comunidade, sejam elesinformais, populares ou profissionais.Segundo Kleinman (2), a perspectiva habitual é a de que são osprofissionais de saúde que organizam os cuidados para os leigos,mas o que acontece de facto é que são os leigos que activam osistema local de saúde, decidindo quando e quem consultar, se

aderem ou não ao tratamento, quando mudam para tratamentosalternativos, quando os cuidados são eficazes e se estão ou nãosatisfeitos com a qualidade dos cuidados.Desta forma, seria desejável que os profissionais da biomedicinaconhecessem estes factos e os incluíssem na sua forma de lidarcom a doença e o doente, sob pena da ineficácia do próprio actomédico e de problemas evitáveis na relação com os doentes queos procuram.A Antropologia da saúde, como ciência que estuda a saúde e adoença em diferentes culturas e grupos sociais, tem sido impor-tante para combater o etnocentrismo dos profissionais de saúdee promover uma melhor compreensão do comportamento dosdoentes em contextos diferentes. A relação entre a biomedicina e as outras medicinas deve ser derespeito mútuo, melhor conhecimento e compreensão do quecada um pode fazer para melhorar a saúde das pessoas e dascomunidades.

Alfândega da Fé, Março de 2005

Bibliografia:

1. Nunes Berta, 1997, O Saber Médico do Povo, Editora Fim de Século, Lisboa

2. Kleinman Arthur, 1980, Patients and Healers in the Context of Culture,

University of California Press.

3. Leslie Charles, 1976, Asian Medical Systems: a Comparative Study, University

of California Press, Berkley.

4. Nunes Berta, 2005, Itinerários Terapêuticos em Portugal (aguarda publicação).

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Teixeira, do ISHST. No fundo, tratou-se deresolver as dificuldades decorrentes dadistância geográfica existente entre oconjunto destes formandos, através dorecurso às Tecnologias de Informação,funcionando as sessões de trabalhocomo uma sala de conversação.Tendo como área de intervenção a regiãoda Beira Interior, “a SHSTA pretendeu pro-mover a implementação de medidas deprevenção em matéria de Saúde eSegurança no sector agrícola, visando amelhoria da qualidade de vida dos seusintervenientes - empresas e seus trabal-hadores, e população agrícola em geral”,esclarece Ana Bragança, da AMAP.Decorreu ao longo de 150 horas, comuma estrutura modular, permitindo, destemodo, que cada formando participasse àmedida do seu próprio ritmo e disponibili-dade. “Só depois de cada um cumprir ummódulo avançava para outro, o que possi-bilitou uma evolução personalizada aolongo do curso”, explica Ana Luísa Gama,da Ovibeira, uma das formandas. “Noentanto”, acrescenta, “cada módulo tinhaum prazo limite para cada um de nós ocompletar”.O facto da acção ter decorrido atravésdas TIC também contribuiu para estesformandos melhor saberem recorrer aesta ferramenta. “Havia um que nuncativera conhecimento de informática eagora domina a técnica perfeitamente”,recorda Cristina Santos, da Suibeira, “oque lhe permite ir buscar mais infor-

mação para si”. Por outro lado, propi-ciou uma interactividade mais diversifi-cada e dinâmica e um melhor cruza-mento de materiais de apoio. “Existemuito pouca informação em português,portanto, esta acção também teve a vir-tude de adaptar à realidade portuguesainformação específica”.

Sem regulamento

A inexistência de um regulamentosobre higiene e segurança para o sec-tor agrícola tem conduzido a situaçõesconsideradas muito graves no que aestes aspectos se refere. Por isso, aju-dar a ultrapassar o desconhecimentoquanto à necessidade de implementarmedidas (em muitos casos elementa-res e de solução simples) nas suasexplorações agrícolas, que evitem aci-dentes, é agora uma tarefa para a qualos 25 formandos estão melhor prepa-rados e até alertados, já que, segundoos próprios afirmam, também elesdesconheciam grande parte das medi-das que agora aconselham aos agri-cultores. Carlos Branco, da DRABI, não tem dúvi-das quanto à grande utilidade queteve, para o seu trabalho, o ter fre-quentado esta acção. “Agora, no meudia a dia, posso ajudar os agricultoresa melhorar as suas condições e, simul-taneamente, a aumentarem a sua pro-dução, já que a higiene e a saúdereflectem-se no bom produto”. Entre os

aspectos que domina agora melhorincluem-se o como manusear, acomo-dar e guardar os produtos tóxicos. “Sãovários, muito diferentes e todos elesmuito perigosos, pelo que têm de serbem usados. E acontece que os projec-tos agrícolas são aprovados sem quealguém se preocupe com esta vertente.Além disso, a maioria das explorações,além de produzir o leite, ainda fabricaqueijo, portanto, a falta de condiçõessanitárias em todo o processo é gravee reflecte-se no produto final. Aqui, nazona de Castelo Branco, temos siste-mas de agricultura de baixo impactonegativo no ecossistema. Ora, assimsendo, não é muito complicado fazê-loem qualidade. O leite é o produto ali-mentar mais sensível de todos, portan-to, não deveria haver uma única salade ordenha sem tanque de refrige-ração. Mas não é isso que acontece,porque enquanto a produção de leitede vaca está regulamentada, a de ovel-ha não está”, conclui.Tal como Carlos Branco, também AnaLuísa e Cristina Santos concordam quesó depois da acção de formação perce-beram realmente a importância destasquestões. “Agora há aqui um grupo detécnicos que pode ajudar os agriculto-res, explicando-lhes o que está errado ecomo o podem alterar. No fundo, ajudá-los a perceber que isso também irá me-lhorar o desempenho e a produtividadeda sua exploração agrícola”.

AO LONGO DA VIDA 31

AnaBragança, Filomena Teixeira, Ana Luísa Gama, Cristina Santos

Os formandos destaacção apenas seencontraram fisicamenteem três sessõespresenciais, já que toda a formação decorreu on-line, em encontrosvirtuais

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32 APRENDER

Um caso raro de boa prática

José Maria Afonso é unanimementeconsiderado, por este grupo de técni-cos, um caso exemplar e, lamentavel-mente, quase único na região. A suaexploração agrícola, que se estende aolongo de 220 hectares, é motivo deorgulho para este agricultor de 48anos e referida por todos os técnicoscomo uma boa prova de que é possívelfazer diferente e bem. Possuindo 900ovelhas e 600 cabras, nada é aqui dei-xado ao acaso e muito menos ao aban-dono. Além de possuir tanques derefrigeração em todas as salas deordenha, o que permite manter emexcelentes condições os mil litros diá-rios de leite que os seus animais pro-duzem, este agricultor não descura omais ínfimo pormenor: os produtostóxicos estão devidamente guardadose claramente identificados, as man-gueiras correctamente arrumadas emsuporte próprio, tal como os extinto-res, as vassouras, os quadros de elec-tricidade e tudo o mais se encontra emsegurança máxima. Não há registo deacidentes de trabalho, mas uma com-pleta caixa de primeiros socorrosespreita atenta e, também ela, emlocal visível e correctamente identifica-da. As rações dos animais estão acon-dicionadas em silos que as protegemde ratos, humidades ou outras agres-sões que as deteriorem. Os seus dois

compradores de leite sabem o que le-vam: os animais, todos de raça pura(as cabras são espanholas e as ove-lhas israelitas), crescem com as con-dições ideais, são correctamente ali-mentados, não se coçam com pulgas,são felizes e dão um excelente leitecujo destino é o fabrico de queijo.Natural de Idanha-a-Nova e filho de tra-balhadores rurais, pensou um dia emser toureiro e rumou a Lisboa com esseobjectivo. Mas o declínio vivido poresta arte após o 25 de Abril devolveu-oà sua primeira paixão: o campo. Há 25anos adquiriu a sua primeira proprie-dade, então com apenas 7 ha, e adqui-riu ovelhas. Depois, foi aumentando aárea e o número de animais. Afirma,com naturalidade, que tudo o queaprendeu se deveu à própria realidade.“Se fiz um percurso diferente dosdemais agricultores da região foi por-que percebi que as explorações agríco-las tinham de se modernizar. Aquitodos tinham vacas, galinhas, coelhos,ou milho, seara. Eu decidi só ter ovel-has e borregos, especializar-me, e háseis anos comprei cabras. Em 2000,comecei a concorrer aos fundos comu-nitários e, no prazo de quatro anos,apresentei dois projectos e temos tidoum sucesso acima da média”.Sobre as razões que levaram este filhoda terra a seguir um rumo muito dife-rente dos demais, José Maria não sabe

exactamente onde elas residem, masalvitra, com humor, que talvez se devaao facto de pertencer ao signo deVirgem e de sempre ter gostado “dascoisas bem feitas. Sou perfeccionistae tenho orgulho e prazer no que faço,é muito estimulante. Talvez tenha a vercom isso e com o facto de, no fundo,não sentir o meu trabalho como umacondenação. Gosto de ter as coisasbem feitas, respeito os meus trabalha-dores, preocupo-me sempre com osoutros pois se não forem eles, o queseria desta casa?” Sempre que admiteum trabalhador, este é submetido aexames médicos para se certificar deque está apto para o serviço. Depois,são-lhe dadas todas as instruçõesnecessárias, para que tudo funcionena perfeição. Apesar de isto ter osseus custos, acredita que vale a pena,porque é através deste conjunto depreocupações que o leite ali produzidopossui as excelentes qualidades pre-tendidas. “Agora vou passar um boca-dinho porque tenho de pagar os inves-timentos, mas gostava de fazer a linhacompleta, fabricando os queijos, atéporque os espanhóis absorvem tudo,já que estamos muito mais perto deEspanha do que do Porto ou de Lisboa.Hoje há ovelhas que dão três litros deleite por dia. Se eu dissesse isso aosmeus avós, diriam que eu estavalouco”.

José Maria: percebeu que as que as explorações agrícolas tinham de se modernizar Carlos Branco: acção muito útil

APRENDER A TER SAÚDE

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AO LONGO DA VIDA 33AO LONGO DA VIDA 33

UM CAMINHO PARA O DESENVOLVIMENTO

L onge deveriam ir os tempos em que os conceitos e as prá-ticas de Saúde e Desenvolvimento estavam de costas vira-das e só indirectamente de forma subordinada se ligavam.

Para um conceito de Desenvolvimento marcadamente economi-cista e produtivista (em que se confundia com o crescimento eco-nómico e/ou só este lhe servia de indicador e caminho), a Saúdeera fundamentalmente uma consequência, ou seja: com maisriqueza e níveis de rendimento mais elevados de forma generali-zada, também haveria melhor Saúde, com mais e melhores médi-cos, enfermeiros e outros técnicos, equipamentos e outros recur-sos, mais medicamentos produzidos por uma indústria far-macêutica mais avançada, mais investigação e progresso técniconesse domínio, além de uma população com mais poder de com-pra e, portanto, mais “consumidora”, de serviços de saúde (inclu-sive, de forma preventiva).Para um conceito de Saúde apenas como “ausência dedoença”, a sua verificação seria um factor importante para ocrescimento económico, entendido como sinónimo ou base

essencial do desenvolvimento, no sentido em que uma popu-lação saudável (entenda-se “sem doenças”) é mais produtiva epode ser melhor rentabilizada.Em ambos os casos, tem-se a Economia a determinar, quer amontante (criando condições para a Saúde), quer a jusante(requerendo que ela lhe assegure uma população produtiva).Não é, no entanto, neste sentido que vão as novas formulaçõesde Saúde e Desenvolvimento, que se têm proposto nos últimoscerca de 30 anos.Por um lado, a própria Organização Mundial de Saúde passou aconsiderar a Saúde como um estado e um processo de bem-estar físico e psicológico, ou seja:não apenas como uma situação, mas como um processo dinâ-mico, em permanente evolução e transformação;mas também como um processo integrado, que tem em contavárias dimensões (físicas e psíquicas) e outras vertentes e siste-mas de bem-estar, ligando-a às componentes económicas,sociais, ambientais, políticas e culturais em que este se exprime.

NÃO SE COMPREENDE O RETORNO, NOS ÚLTIMOS ANOS, DA “FEBRE PRODUTIVISTA” NOS CENTROS DESAÚDE E HOSPITAIS, QUE MANDOU “RETIRAR” OS TÉCNICOS DE SAÚDE DO TRABALHO COMUNITÁRIO,PARA… AUMENTAR OS INDICADORES DE PRODUTIVIDADE.

SAÚDE COMUNITÁRIA

Texto: Rogério Roque Amaro (Economista e Investigador no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE))Ilustração: Luís Miguel Castro

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36 APRENDER

D istanciamento, bem vincado em termos de podersocial e económico, mas com igual projecção no quese refere a índices de educação formal ou de acesso à

chamada cultura erudita. Em lugar de me socorrer da suposta objectividade das estatís-ticas, prefiro ilustrar este depoimento com duas referências

que são para mim sintomáticas desta ‘especificidade portu-guesa’ dentro do contexto europeu.A primeira foi a ‘revelação’ que me surgiu ao visitar, em 1991,a Europália – um conjunto de exposições na Bélgica que nesseano escolhera Portugal como tema central. A exposição“Tesouros do Barroco”, através daquelas peças dos séculos

A AUSÊNCIA DE UMA POLÍTICA DE EDUCAÇÃO DE ADULTOS É UMAFORMA DE CONTROLE SOCIAL

OPINIÃO

A EDUCAÇÃO PARA OS DIREITOS HUMANOS ASSENTA NUM PRINCÍPIO BÁSICO FUNDAMENTAL: A IGUALDIGNIDADE DE TODOS OS SERES HUMANOS. ORA A COMPREENSÃO DESTE PRINCÍPIO E DAS SUAS IMPLI-CAÇÕES TANTO NA VIDA QUOTIDIANA COMO NO PLANO ABSTRACTO NÃO É UMA APRENDIZAGEM EVIDEN-TE NEM ESPONTÂNEA NEM SIMPLES.Texto: Alberto Melo (Director da revista Aprender ao Longo da Vida, assessor-principal junto à reitoria da Universidade do Algarve, pós-graduadoem Educação de Adultos pela Universidade de Manchester) # Ilustração: Luís Miguel Castro

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XVII e XVIII, de um valor incalculável, preparadas com matériasprimas – ouro, prata, pedras preciosas – trazidas dos territóriosentão ocupados pela Coroa portuguesa, é prova inquestionávelde que Portugal seria então um dos mais ricos países domundo, em termos de riqueza acumulada e concentrada.Perante um tal entesouramento, duas opções fundamentaisestariam abertas. A primeira seria a do desenvolvimento emprol da população em geral, trocando essas valiosas matériaspor um capital produtivo - obras, equipamentos e infraestrutu-ras - capaz de satisfazer as necessidades básicas por todo oterritório, o que asseguraria desde logo um nível de vida satis-fatório a todos e produziria, eventualmente, um efeito multipli-cador susceptível de colocar o país entre os pioneiros da ‘revo-lução industrial’. Havia, com efeito, em Portugal um capitalpotencial mais que suficiente para esse efeito, tanto ou maisimportante do que aquele que nos Países Baixos e na Grã-Bretanha veio a assegurar a respectiva “descolagem económi-ca”. Tal opção, contudo, era perigosa para a casta que mono-polizava o poder e que fazia de Portugal uma verdadeira ‘coló-nia colonizadora’. Investir numa produção de massas significa-va um acesso alargado por parte dos ‘colonizados’ ao salário,ao consumo, e tudo o mais que viria por acréscimo. Significavaum caminho de inclusão para todos, quando o sistema socialse baseava na exclusão da grande maioria, nessa altura (e atéaos anos 60 do séc. XX) predominantemente representadapelos camponeses pobres e pelos trabalhadores agrícolas.Então foi possível às considerações sociais falarem mais forteque as lógicas económicas e adoptar-se a segunda opção. Oimenso tesouro, então disponível para possíveis investimentosúteis e produtivos, foi artisticamente neutralizado em relicá-rios, custódias, baixelas, inúmeras importações de artigos deluxo e, igualmente, em sumptuosos monumentos de pedra:uma aplicação que reforçava visivelmente o prestígio da classedominante e, ao mesmo tempo, abortava qualquer hipótese deprogresso social e económico. A segunda constatação, que pessoalmente considero muitoreveladora da enraizada incoesão portuguesa, é a obsoletaobsessão com o ‘prefixo’ Dr. (ou Engº ou Arquitecto...) aplica-do aos membros da ‘elite qualificada’. Em contraste flagran-te com os monsieur/madame, mr/ms, ou até os “you”, “tu”,“usted”, ou a facilidade com que se introduzem, nos paísesde vivência democrática, os nomes próprios logo em diálogosintrodutórios, este surpreendente fenómeno revela, a meuver, por um lado, uma atávica dificuldade em adoptar umapelativo paritário nas relações entre cidadãos após tantosséculos de tratamento desigual entre as “senhorias” e “vos-sas excelências”2 e os simples plebeus; e, por outro lado, oatributo de “raridade” com que se pretendeu enaltecer e, aomesmo tempo, proteger o estatuto de (social, tecnica e cultu-ralmente) “superior”. É que, paralelamente à paralisação

forçada da sociedade portuguesa, e a fim de manter os ‘colo-nizados’ portugueses em permanente situação de resignadaaceitação, foi-se propagando a ideologia das virtudes daignorância, pois “não queira o sapateiro ir além da sua chi-nela”, num processo em que colaborou activa e consciente-mente a igreja católica oficial. Saber ler era perigoso, dadoque permitiria o acesso a ideias alheias ou opostas aos dog-mas em vigor. Era até praticamente interdito, ou fortementedesaconselhado, ler a Bíblia – um acto associado com umaprofissão de fé “protestante”. A Bíblia era, em princípio, pro-priedade do ministro da igreja, que regularmente e oralmen-te a transmitia – na única interpretação religiosamente cor-recta – ao congregado “rebanho de fiéis”.

Um obscurantismo programado

É paradigmático desta posição obscurantista por parte da clas-se política portuguesa o discurso de um dos ideólogos do regi-me despótico de Oliveira Salazar. Escreveu Alfredo Pimenta,em 1932, no jornal “A Voz”: “Ensinar o povo português a ler ea escrever, para tomar conhecimento das doutrinas corrosivasde panfletários sem escrúpulos, ou de facécias mal cheirosasque no seu beco escuro vomita todos os dias qualquer garotoda vida airada ou das mentiras criminosas dos foliculários polí-ticos é inadmissível. Logo, concluo eu, para a péssima edu-cação que possui e para a natureza da instrução que lhe vãodar, o povo português já sabe de mais.” Por certo inspirado poresta fundamentada argumentação, o regime de Salazar tinhajá reduzido por esta altura o período de escolaridade mínimade 4 para 3 anos... E, em 1938, um deputado do partido único,Pinto da Mota, afirmava: “Deformar o espírito de quem apren-de é a maior das desgraças; é melhor deixá-los analfabetos doque com o espírito deformado... Se nós queremos entregaresse milhão e seiscentos mil analfabetos nas mãos de qual-quer professor, esses homens podem vir a transformar-se eminimigos da sociedade.”3

Dado todo este contexto desfavorável a uma educação detodos, e particularmente dos milhões de adultos portugueses,é natural que se tenha iniciado o séc. XX com uma taxa de anal-fabetismo bem superior a 60% e que, por ocasião do golpe mili-tar de Abril de 1974, essa taxa não tenha baixado significati-vamente (quase 40%). E, contudo, estas taxas de analfabetis-mo serão apenas a ‘ponta do iceberg’ de um fenómeno aindamais vasto e profundo. O 1º Estudo Nacional sobre Literacia,apresentado publicamente em Outubro de 1985, avaliava daseguinte forma a capacidade dos adultos portugueses relativa-mente às competências de leitura, escrita e cálculo:10,3% (600.000 pessoas) não passam o nível zero;37% (ou 2 milhões e 300 mil) só atingem o nível 1;32,1% (2 milhões) não ultrapassam o nível 2.Ora, como se admite geralmente que os níveis 3 e 4 de com-

A sociedade portuguesa necessita de um forte movimento social que, mobili-zando múltiplos e diversos quadrantes, privados e públicos, locais ou regio-nais, permita pressionar no sentido de um contexto cultural, legal e organiza-cional mais propício à educação de todos e à cidadania activa e participativa

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AO LONGO DA VIDA

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petências em literacia / numeracia são hoje exigidos paraassegurar uma participação consciente e construtiva nasociedade moderna, serão bem mais de 80%4 os portugue-ses excluídos, por esse factor, das bases necessárias aopleno desenvolvimento das suas capacidades e, por conse-guinte, destituídos de uma cidadania em todas as suas com-ponentes5. E esta fractura 80%-20% é aparentemente omni-presente nas várias assimetrias da sociedade portuguesa,quer se refira a propriedade ou rendimentos, quer a posse eleitura de livros, a compra de jornais, a fruição de bens cul-turais...6

Vão no mesmo sentido as estatísticas do INE, segundo asquais, entre os cerca de 4,9 milhões de adultos activos, maisde 3,2 milhões não possuem certificação equivalente aos 9anos de escolaridade (hoje escolaridade mínima obrigatória).Neste domínio, o atraso relativo de Portugal é confrangedor,tanto na comparação com os demais Estados-Membros daUnião Europeia, como até com muitos países do chamado“Terceiro Mundo”. E não apenas as diferenças actuais são sig-nificativas, como a evolução recente nos diferentes países daEuropa aponta para um agravamento relativo constante daposição portuguesa em matéria de educação e formação dasua população adulta.Apesar das baixíssimas taxas de escolarização, de qualificaçãoe de demonstração de competências / conhecimentos chavepor parte da população adulta portuguesa, nunca a educaçãode adultos foi prioridade na agenda política dos governantes,quer em Monarquia quer em República, quer em regime dita-torial ou democrático. Os poderes públicos têm sido, assim,capazes de manter um dispositivo eficaz e coerente para desin-centivar e impedir as pessoas adultas, e muito especialmenteas mais necessitadas, de aceder à aprendizagem básica oucontínua. É que apenas a concretização, ao longo de anos, deuma estratégia voluntarista de elevação dos níveis de edu-cação, de formação e de participação cívica de toda a popu-lação adulta poderia fazer face ao autoritarismo e elitismo queainda caracterizam, de uma maneira geral, as relações e asinstituições em Portugal, incluindo obviamente as instâncias eos processos formais da educação e formação.Principal conclusão a retirar desde já: a classe política portu-guesa, os sectores hegemónicos na sociedade de ontem comode hoje, sempre alcançaram o maior sucesso no seu intento,ora deliberado e explícito, ora oculto e subliminar, de impedirque a grande maioria dos adultos portugueses se construíssecomo cidadãos de pleno direito, a fim de poderem participar deforma informada e consciente na (re)organização e (re)criaçãoda ‘res publica’.Com efeito, educação para todos e plena expressão da cidada-nia são faces de uma mesma moeda, instrumentos essenciaiscom que se reforça a democracia, a coesão e justiça sociaisnuma sociedade. Têm-se revelado como directamente propor-cionais, nos vários Estados deste planeta, por um lado, o inte-resse e o investimento públicos na educação de adultos e noapoio às organizações de cidadãos e, por outro, os níveis dedemocraticidade nas instituições e na sociedade em geral. Atradicional indiferença ou hostilidade dos poderes públicos por-tugueses perante a educação de adultos e os movimentossociais de iniciativa cidadã é causa e efeito de uma sociedade

fracturada, ainda autoritária, conservadora, fechada àmudança – em suma, uma sociedade ‘deseducadora’. Defacto, se não há, nem nunca houve, uma política nacional deeducação de adultos, também não se tomaram iniciativas,nem nunca foi lançado um debate a nível parlamentar ou públi-co, visando um quadro legal e institucional dedicado à pro-moção das organizações dos cidadãos e respectivas activida-des e à regulação dos relacionamentos entre elas e as estru-turas governamentais ou administrativas. Vive-se ainda emPortugal num regime sociopolítico em que está inerente umaficção de coincidência entre ‘espaço público’ e ‘espaço dasinstâncias políticas’. Mais do que crescimento económico, expresso em percentuaisde PIB, a sociedade portuguesa precisa acima de tudo decoesão, de uma consciência generalizada do que é e de comodeve promover-se o serviço público, como um bem comum;fixando, como ponto de partida, a resolução ou redução dosproblemas multidimensionais que afectam a população emgeral e, em particular, os mais desfavorecidos e marginaliza-dos. A sociedade portuguesa necessita, pois, de um forte movi-mento social que, mobilizando múltiplos e diversos quadran-tes, privados e públicos, locais ou regionais, permita pressionarno sentido de um contexto cultural, legal e organizacional maispropício à educação de todos e à cidadania activa e participa-tiva. Uma tal dinâmica, embora devendo exercer-se fundamen-talmente “de baixo para cima”, deverá ser considerada comoum real ‘projecto de sociedade’ e, como tal, desenvolver-se emestreita cooperação entre os poderes e os cidadãos. E, paraarrancar, estruturar-se e ganhar peso social, dependerá semdúvida de uma iniciativa voluntarista por parte da própria ‘clas-se política’. A inércia actual mais não faz que reforçar constan-temente este estado de coisas: arrogância e miopia política, dolado dos poderes instituídos, e desresponsabilização7 e ‘quei-xotismo’8, por parte dos quase-cidadãos. Não se entendeuainda que as aparentes “falta de competitividade” e “baixa pro-dutividade” em Portugal estão em correlação directa com estaflagrante fractura sociocultural e política?

Alberto Melo

(extracto do capítulo The Absence of an Adult Education Policy as a Form of SocialControl and Some Processes of Resistance, in Licínio C. Lima & Paula Guimarães(eds.), Perspectives on Adult Education in Portugal, Universidade do Minho,Unidade de Educação de Adultos, Braga 2004.1 Onde, por exemplo, os 10% mais ricos usufruem de um rendimento que é 15vezes superior aos 10% mais pobres.2 Tratamento ainda adoptado nos simples ofícios administrativos de rotina, dirigi-dos, por exemplo, a um director de serviços.3 Trata-se de citações que não recolhi directamente mas encontrei em leitura feitahá alguns anos atrás e de que, “mea culpa”, não anotei a origem.4 Porque o Estudo não incluiu o milhão e 300 mil com mais de 64 anos, que apre-sentam índices certamente ainda mais baixos.5 Segundo este mesmo Estudo, 50% dos inquiridos gostaria efectivamente demelhorar as suas capacidades nos âmbitos da leitura, da escrita e do cálculo.6 Afinal para quem escrevem os 20% que sabem ler e escrever com maior profi-ciência? Uns para os outros, por certo, dado que os restantes 80% não mostramprovas de saber apreender e interpretar mensagens escritas complexas. Mais umfactor de agravamento da já referida ‘incoesão portuguesa’.7 Os níveis mais elevados da UE em sinistralidade rodoviária serão também, ameu ver, uma expressão muito visível e dramática da ‘incoesão portuguesa’.8 Em paralelo com o ‘quixotismo’ espanhol, trata-se aqui de uma atitude muitoportuguesa de combinação de queixa permanente com inacção quanto a alterar oque está mal, podendo falar-se também de uma ‘resignação ressentida’.

OPINIÃO

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Se considera que a Educação ao Longo da Vida é um direito!

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e assine a revistaPessoas ligadas a projectos de terreno, a estabelecimen-tos de ensino, à administração pública, à investigaçãoassumiram o envolvimento na Associação “O Direito aAprender”. Queremos também contar consigo comoapoiante: quer tornando-se membro da Associação “ODireito a Aprender” quer como leitor da revista “Aprenderao Longo da Vida”.Aderir é também contribuir para o alargamento destarede: fotocopie este cupão e distribua-o pelo maior núme-ro possível de amigos e conhecidos.Aqui fica então o convite para formalizar a sua adesão à

Associação “O Direito de Aprender” e à assinatura darevista “Aprender ao Longo da Vida”. Caso aceite o desa-fio, e esperamos bem que o faça, preencha por favor aseguinte ficha de inscrição e envie para:

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Olga Pombo: O primeiro traço que gos-tava de sublinhar em Ivan Illich é aquestão da utopia. Há duas espécies deutopias e Illich pertence à espécie maisbonita. A primeira espécie é constituídapor aquelas utopias que conjugam osverbos no futuro: “será”, “amanhã se-rá.” Estas utopias têm por base a crençano progresso e é a partir dessa crença

que idealizam a sociedade futura. IvanIllich pertence ao segundo grupo, queeu aprecio mais, aquele que conjuga osverbos no imperfeito do condicional.Aqui, não se diz “será” mas sim: “pode-ria ter sido”, “poderia vir a ser”. Em vezde partir da crença num desenvolvimen-to mais ou menos linear, Illich tem aqui-lo a que eu chamaria uma apurada sen-

sibilidade à alteridade. As coisas sãoassim mas poderiam ter sido outras, oupodem ainda vir a ser de outra maneira.Daí a sua capacidade para, ao olhar omundo, descolar rapidamente do realpara o possível. Isto é assim mas não éinevitável que assim seja. Nada na his-tória justifica que assim tivesse sido. Enão é necessário que assim continue a

NOS ANOS 70, O AUSTRÍACO IVAN ILLICH ERA MUITO LIDO E DISCUTIDO. AS SUAS OBRAS INFLUENCIAVAM TODOSOS QUE QUERIAM PENSAR A ESCOLA E PROBLEMATIZAR A EDUCAÇÃO. HOJE, ESTÁ QUASE COMPLETAMENTEESQUECIDO. E, NO ENTANTO, AS SUAS IDEIAS SÃO, EM MUITOS ASPECTOS, MAIS ACTUAIS DO QUE NUNCA.PARA UMA CONVERSA SOBRE O LEGADO E A ACTUALIDADE DE IVAN ILLICH, REUNIMOS OS PROFESSORESRUI CANÁRIO, DA FACULDADE DE PSICOLOGIA E CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA, EOLGA POMBO, DA FACULDADE DE CIÊNCIAS DA MESMA UNIVERSIDADE.

DIÁLOGO

UM VISIONÁRIO QUE É PRECISO RELERIVAN ILLICH

MIG

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R

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ser. Podemos sempre admitir a possibi-lidade de que as coisas possam ser deoutra maneira. Neste ponto, Illich está ao lado de umoutro grande utopista, Jean-JacquesRousseau. Rousseau antecipou aRevolução Francesa. Ivan Illich cons-truiu a sua vida como uma militânciaque, muitas vezes, tocou as raias damissão enquadrada religiosamente.Actividade militante essa que teve efei-tos interessantes na América do Sul eum pouco por todo o mundo. Illich aca-bou por ser uma voz escutada e nãoapenas um solitário a pregar no deser-to. No meu tempo, ele tinha imensoimpacto. É certo que hoje é desconhe-cido. Mas, hoje, só se conhece aquiloque acontece hoje. Há uma memóriamuito curta. Estamos num períodomuito grave, de perda da memória.

Rui Canário: A primeira coisa que gos-tava de dizer é que o Ivan Illich, ao con-trário do que algumas pessoas pensam,não terminou a sua intervenção nos anos70. Nem a intervenção nem a escrita. Elecontinuou a escrever e a intervir até aofim do século. Faleceu há pouco tempo[2002], e não é por ter deixado de inter-vir que foi esquecido. Há aqui realmenteum problema de memória, mas há umesquecimento selectivo. Há tempos, tive a curiosidade de verificarque em alguns grandes congressos deeducação em Portugal, com centenas de

comunicações e conferências, o IvanIllich não era citado uma única vez. Emcontrapartida, há autores que se torna-ram conhecidos também nos anos 70,como o Paulo Freire ou um autor comple-tamente diferente, o Bourdieu, que conti-nuam a ser abundantemente citados. Háaqui alguma coisa que tem a ver com opróprio pensamento do Illich, que sesituou sempre em contracorrente. Em Portugal, os livros dele foram edita-dos nos anos 70, no período do Prec eimediatamente a seguir, e o ambienteque se vivia era o menos propício possí-

“Uma sociedadeconvivencial é umasociedade que oferece ao homem a possibilidade de exerceruma acção maisautónoma e mais criativa,com auxílio das ferramentas menoscontroláveis pelosoutros.” Ivan Illich

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vel a receber e analisar de forma cons-trutiva as propostas de Ivan Illich, porqueestavam em contracorrente com o queera dominante. O marxismo e o pensa-mento de Paulo Freire aparecem muitomais em consonância com o espírito daépoca. Acho que, de facto, ele foi ignora-do, e hoje merece ser relido. Reli nos últimos tempos textos que sótinha lido nos anos 70 e outros que entre-tanto foram publicados. A impressão comque fico é que ele antecipa, com grandelucidez, problemas que hoje estão emcima da mesa. É possível, do ponto devista da Sociologia da Educação, mostrarque há uma certa convergência entreideias que ele enunciou e que apareciam– e ainda hoje aparecem – como ideias deum visionário, mas que estão totalmenteem convergência com a investigaçãoempírica e com os problemas com quenos defrontamos hoje nos sistemas esco-lares e na educação em geral. Acho queele é bastante actual e deve ser relido erecuperado. Esta tendência de limitar asbibliografias aos últimos três anos conduza deitar património pela borda fora.

Olga Pombo: Eu acrescentaria uma outrarazão para esse “esquecimento selectivo”de que Illich está a ser alvo: o facto de elenão ter uma utopia normativa. Illich nuncadiz como é que as coisas devem ser, nãofaz parte dessa praga terrível que consisteem indicar logo o caminho, em fornecerimediatamente a solução. A normativida-de trava a possibilidade de as pessoasinventarem por si próprias, impede-as dese apropriarem de forma criativa daquiloque aprendem e vivem. Talvez por issoIllich seja hoje menos lido do que PauloFreire, que eu também aprecio, mas que,

apesar de tudo, não deixa de dizer comose deve fazer. Quanto a Illich, ele escreveexplicitamente: “eu não proponho umautopia normativa”. Por outras palavras,Illich não é um pedagogo. Se virmos bem,ele nunca diz como se deve fazer. O queprocura, isso sim, é determinar comopoderia ser de outra maneira. O seu objec-tivo consiste em inventar condições for-mais para que as coisas pudessem ser deoutra maneira. E isto é talvez o que explicapor que é que as pessoas não dão tantaatenção ao que ele diz. Se desse um recei-tuário, seria certamente mais ouvido.

Rui Canário: Acho que ele é muito,muito diferente de Paulo Freire, e muitomais profundo nas críticas que faz. PauloFreire tem um pensamento construídosem pôr em causa os princípios que nor-teiam todo o pensamento da modernida-

de: a crença absoluta no papel da escola,no progresso, numa certa ideia de ciên-cia, numa certa ideia normativa damudança social, a ideia do Estado, doprogresso... Enquanto que Illich põe tudoisto em causa. Illich diz que a escola éuma vaca sagrada da civilização ociden-tal. Já o pensamento de Paulo Freiresitua-se dentro dos limites do escolar,não critica o escolar nem o que lhe estáagregado, o papel do Estado, o papel quea escola e a escolarização têm, de acor-do com uma certa ideia de progresso. Illich coloca uma coisa que, a meu ver,era difícil de compreender também naépoca. Ele critica ao mesmo tempo ocapitalismo, na sua forma ocidentaliza-da, e o capitalismo de Estado. E isso eraincompreensível no Portugal de 74, e nãoé esse o ponto de vista de Paulo Freire. Do ponto de vista humano, para uma

“A crise no ensino só pode ser resolvida por uma inversão da estruturainstitucional. Pode ser dominada somente se as escolas actuais, com ou semparedes, que preparam e autorizam programas para os estudantes, foremsubstituídas por novas instituições, assemelhando-se mais às bibliotecas e aosseus serviços anexos, que permitem, a quem quiser instruir-se, ter acesso aosutensílios e aos encontros que lhe são necessários para aprender a realizar aspróprias escolhas.” Ivan Illich

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pessoa que vive do seu trabalho, é relati-vamente indiferente que trabalhe para oEstado ou para o Henry Ford. As relaçõessociais podem ser exactamente idênticase, nesse aspecto, o Illich tem uma críticamuito mais profunda. Há uma questãoque a Professora Olga Pombo referiu queme parece extremamente importante e àqual sou particularmente sensível: aideia de a autonomia e a criatividadehumanas poderem ser postas em causae contrariadas pela crença também umpouco cega nas virtudes da técnica daciência e no poder profissional.

Olga Pombo: Sem dúvida. A pedagogiapretende resolver os problemas do ensi-no ao nível das técnicas de comuni-cação entre professor e aluno. Como seas coisas apenas se passassem, ou nointerior da sala de aula, ou naquilo aque se chama “a relação profes-sor/aluno”. Ora, uma das vantagens deIvan Illich é que ele coloca a escolanuma perspectiva eminentemente políti-ca. É por isso que ela lhe aparece ime-diatamente como uma instituição sópensável ao lado de outras, nomeada-mente, a saúde, os transportes, a ener-gia, etc. É tão flagrante, tão interessan-te essa contiguidade que Illich estabele-ce entre a escola e a saúde, a manufac-tura, a indústria, a fábrica, que eu sentinecessidade de ir verificar a data deSurveiller et Punir, de Michel Foucault.Há uma proximidade muito curiosaentre as duas obras. Em Surveiller etPunir, de 1975, Foucault faz um parale-lo muito forte entre a escola, o hospital,a caserna, a fábrica e o asilo que definecomo instituições de encarceramento enormalização. Curiosamente, esta mes-ma análise, profundamente política, crí-tica e arrasadora de uma série de valo-res indiscutidos nas nossas sociedades,estava feita por Ivan Illich um ano antes.Claro que há outros autores que perten-cem ao mesmo universo. Claro queBourdieux também é dessa geração.Mas a voz de Illich é uma voz indepen-dente e este facto, assim como o seucombate sem tréguas contra os limitesteóricos da pedagogia, é um méritomuito grande da sua obra. Ele escavafundo, não se limita a olhar para o quese passa no interior da sala de aula. Asala de aula tem que ser pensada noenquadramento mais amplo de uma ins-

tituição que é a escola; e a escola, porseu lado, tem de ser olhada em articu-lação com outras instituições. E isso elefaz muito bem.

Rui Canário: Há um conceito na obrado Ivan Illich que é confirmado pelosfactos. É o conceito de contra-produtivi-dade. Hoje, claramente, os sistemasescolares são contra-produtivos. Fa-bricam uma infância anormal, fabricamproblemas de aprendizagem, fabricamdesfuncionalidades, subordinam a edu-cação à produtividade e àquilo que elecritica em termos de desenvolvimento.Illich pensa globalmente a educação,tendo como referência uma outra socie-dade baseada naquilo que ele chama aconvivialidade, ou convivencialidade, eque é uma outra referência. Nesse sen-tido, ele recupera o debate, a dimensãopolítica e filosófica da educação comoquestões centrais. Paulo Freire tambémfaz isso, só que produz uma críticamuito mais interna à escola e ao Estadocomo instituição, presumo que, paraele, se os objectivos forem outros, é pos-sível pôr essas instituições ao serviçodoutras causas. Ora a esse respeito, a meu ver, Ivan Illichtem uma visão mais profunda e mais lúci-da. Hoje, independentemente de sermosadmiradores ou não de Illich e críticos ounão de Bourdieu ou de Paulo Freire, aquiloque se verifica é que a escolarização, aescola enquanto forma escolar, como sis-tema escolar, como forma, como insti-tuição é uma coisa obsoleta. Aquilo queIllich claramente intui, sobretudo no livroEducação sem Escola, são as potenciali-dades, a importância da autoformação,das situações educativas não-formais, darelação muito directa entre a socializaçãoe a aprendizagem, a valorização daquiloque as pessoas sabem como ponto departida para construírem a sua autonomia– tudo contrário àquilo que faz a escola. Quando olhamos hoje para os diagnósti-cos das políticas educativas e os remé-dios que são propostos, a sensação quese tem é que o problema é sempre agra-vado pelas soluções. Nesse sentido, em75 era mais fácil dizer que ele era umvisionário. Hoje em dia parece-me quemesmo alguns aspectos das políticas ofi-ciais estão a reconhecer implicitamenteas ideias da formação em contexto detrabalho, da formação no quotidiano, do

papel da educação não-formal, das taisredes informais para pôr ao serviço dou-tras modalidades de relação que estãonos escritos de Illich.

Olga Pombo: A meu ver, Ivan Illich fazuma coisa muito importante que é sepa-rar ensino e educação. Em geral, quandose fala de escola, confundem-se sistema-ticamente as funções de ensino e de edu-cação. Pensa-se que essas funções têmde estar sempre associadas. Ora, Illichdistingue claramente na escola três tiposde funções: a função desempenhada poraqueles que designa por “administrado-res”, as pessoas que fariam funcionar asredes. Depois, as funções do pedagogo,a quem Illich chama “conselheiro peda-gogo”, alguém que encaminha, queorienta, que prolonga o pai e a mãe, istoé, alguém que dilata a acção educativada família. Em terceiro lugar, o professor.Há momentos neste livrinho minúsculomas muito interessante em que Illich émuito claro sobre o que é o professor: “éum ser humano possuidor de uma ciên-cia e pronto a auxiliar o recém-chegadono limiar da sua aventura educativa”.Claro está que Illich deveria ser mais pre-ciso e dizer: “no limiar da sua aventuraintelectual”. De qualquer forma, ele temclara consciência da especificidade dasfunções do professor. Enquanto que oadministrador e o pedagogo são profis-sionais, com as suas técnicas, as suasmetodologias, os seus procedimentosespecíficos, o professor é o tal ser huma-no possuidor de uma ciência e disponívelpara auxiliar os recém-chegados nos difí-ceis caminhos da exploração intelectual.Ou seja, Illich sabe muito bem que o pro-fessor não é, nem tem que ser, o peda-gogo. Ele não está lá para “orientar” oestudante, para prolongar a acção edu-cativa dos pais. Ele está lá para transmi-tir – ou para contribuir, para facilitar, ousimplesmente para apoiar – o caminhoque o aluno vai ter que percorrer na suaaprendizagem do mundo. E o apoio a es-se caminho de desbravamento intelec-tual nada tem a ver com a veiculação devalores morais, nem com a imposição deregras de conduta. Uma coisa é o ensino,outra a educação, outra o trabalho dosadministradores escolares. Infelizmente, hoje baralha-se tudo isto.Cada vez mais, se atribuem aos profes-sores funções administrativas, de gestão,

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de direcção de turma - funções que Illichdiria que cabem aos administradores – efunções pedagógicas, de orientação edu-cativa. O que daqui resulta é que o pro-fessor fica perdido, sem tempo e semmotivação para exercer as suas funçõesde professor. Não quero com isto dizerque o administrador ou o pedagogo nãodevam ter um lugar na escola. O que pre-tendo é que não podemos confundiressas figuras com o professor. Enquantocontinuarmos a fazer essa confusão, nãopercebemos nada da escola e do ensinoque nela pode ter lugar. Ivan Illich perce-beu isso muito bem.

Rui Canário: Acho que o Illich nosajuda numa questão decisiva: nóstemos um défice de crítica e de lucidezrelativamente aos problemas que vive-mos. Todos os contributos nesse senti-do são, a meu ver, decisivos. Do contri-buto dele, eu retiro a ideia de que fazmais sentido orientar as nossas escol-has educativas para processos que vãono sentido da desescolarização, do queo contrário. E é a isso que nós assistimos. Podemosinterrogar algumas medidas que as pes-soas continuam a defender como so-luções para os problemas actuais. Umadelas continua a ser a escolarização,outra é o crescimento, o desenvolvimen-to económico, relativamente ao qual Illichmostra ser uma das raízes fundamentaisdos nossos problemas, não funcionando,portanto, como solução. Se aprendermoscom ele a pôr em causa algumas dasideias recebidas e que permanecem semser criticadas, já é uma contribuiçãoimportante.

Olga Pombo: Estou de acordo quandodiz que Ivan Illich nos pode ajudar a fazera crítica da escola. Mas, a meu ver, aqui-lo que ele critica na escola é ela ser umaparelho de manipulação e de encarce-ramento. Quando Illich pensa alternati-vas, quando imagina que as coisas pode-riam ser de outra maneira, não esquecea transmissão do conhecimento. Pelocontrário, é nela que se concentra parti-cularmente. Só que essa transmissãoaparece pura, separada daquilo que é amanipulação das vontades. De facto,aquilo que é terrível na escola não é elaser um veículo de transmissão do conhe-cimento. O que é terrível é que essa

transmissão seja acompanhada pelasujeição das autonomias. O que é tre-mendo é que o estudante tenha que acei-tar perder alguma coisa para poderadquirir um diploma. O que a desescola-rização de Illich vem dizer, não é que nãointeressa adquirir conhecimento mas simque é possível adquiri-lo sem perda deautonomia. O que Illich pretende mostraré que é possível promover a aquisição deconhecimentos sem que, quem aprende,tenha que pagar o preço que os nossossistemas escolares exigem, o preço dasubordinação das vontades.

Rui Canário: A escola, tal como nós aconhecemos e é criticada por Ivan Illich,é um fenómeno histórico relativamenterecente. Estamos prisioneiros, de algumamaneira, de um conjunto de conceitos emaneiras de pensar que o Ivan Illich vemcriticar de forma radical. Julgo que, naépoca, foi pouco percebido. Agora estána altura de o reler e de repensar os pro-blemas que temos, confrontá-los outravez com as propostas críticas que faz,que são extremamente importantes.

Olga Pombo: E actuais. Realmente,Illich pode ser considerado um visioná-rio quando fala das redes enquanto ele-mentos de disponibilização dos objec-tos educativos. Por exemplo: umacriança que vive numa aldeia não podeir a um museu porque na terra dela nãohá museu algum e porque o pai nãotem automóvel para ir à grande cidade.Mas hoje, essa criança tem acesso,através da Internet, não propriamenteao museu mas a uma viagem virtual aomuseu. E isso Ivan Illich previu. E não ésó o museu, é a biblioteca, são os labo-ratórios, etc. Estranhamente, Illichnunca fala da Internet. Está sempre afalar de algo que diz estar a imaginarmas que, de facto, nesse momento,estava a dar os primeiros passos. E nãoé crível que ele não tivesse conheci-mento disso!Ainda em relação às redes, Illich diz tam-bém uma outra coisa muito importante: éque a rede não anula a função do profes-sor. Digamos que Illich arrasa a escolaenquanto instituição educativa mas, aoafirmar o papel fundamental do profes-sor, está a reconhecer o destino cognitivoda escola. Não é por acaso que este liv-rinho - “Desescolarizar a Sociedade” - ter-

mina com um elogio à figura do professor.Illich chega mesmo a falar da relação deamor que se estabelece entre o professore o aluno. E, aqui, mais uma vez a suaanálise é muito fina. Essa relação deamor resulta, não das boas relações decomunicação que se podem estabelecerentre professor e aluno, mas do facto deo aluno reconhecer que o professor o aju-dou a conhecer o mundo. Ora, não háInternet alguma que cumpra essa função.A Internet oferece informação, não ofere-ce conhecimento. Há muita gente queadvoga o fim próximo da profissão docen-te porque não consegue perceber a enor-me diferença que há entre informação(que os novos meios de comunicação per-mitem obter com grande eficácia e veloci-dade) e conhecimento (que passa pelodesenvolvimento de capacidades carto-gráficas e integradoras que só o professorpode ajudar a adquirir).

Rui Canário: O que o Illich tem emcomum com Paulo Freire é o reconheci-mento de que todo o ser humano écapaz de construir a aventura intelec-tual. Esse é um distintivo da humanida-de: a capacidade de criar, pôr pergun-tas, ser curioso. Isso é comum às pes-soas mais escolarizadas ou aos campo-neses analfabetos com quem trabalha-va Paulo Freire, e que o Illich visitou.Desse ponto de vista, há a possibilidadede haver uma reversibilidade de papéiseducativos entre as pessoas. Todos nós,em diferentes momentos, desempenha-mos o papel de ajudar outros a construira sua aventura intelectual e beneficia-mos da interacção com eles. Do ponto de vista da escola tradicional,essa relação é irreversível, há alguémque sabe. É a crítica que Paulo Freire fazà educação “bancária”. Mas o Ivan Illichvai além disso, coloca o problema daautonomia humana e liga-a às relaçõessociais e às ferramentas. Porque amesma ferramenta, no caso da Internet,pode ter as mais diversas utilizações etambém pode ter efeitos perversos.Neste sentido é que este livro sobre aconvivencialidade é importante, porqueaquilo que pode dar um ou outro senti-do ao uso das ferramentas é adimensão política, são as escolhas quenós somos capazes de fazer em socie-dade e a maneira como nos organiza-

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mos. Há uma visão profundamentehumanista, mas que se distingue dohumanismo presente na educação deadultos tal como é impulsionada pelaUnesco: um humanismo baseado naideia do crescimento económico, dodesenvolvimento, do acreditar no pro-gresso, do papel dos profissionais e queé, exactamente, tudo aquilo que o Illichprofundamente critica.

Olga Pombo: A definição que Illich dá deprofessor é muito bonita: o professor éaquele sabe e que tem vontade de escla-recer. Ou seja, para ser professor sãoprecisas duas condições fundamentais:saber e ter vontade de esclarecer. Hámaus professores que até podem sabermuito mas não têm vontade de esclare-cer. E há pessoas que, mesmo com muitavontade de esclarecer, nunca serão pro-fessores porque não têm nada para ensi-nar. Agora, se eu estiver ao pé de umsapateiro que me está alegremente amostrar como se faz um sapato, euposso aprender com ele. Nesse momen-to ele é meu professor. Da mesma manei-ra, o professor pode aprender com oaluno... Os papéis podem inverter-se.Hoje cada vez mais é assim, até porquejá ninguém detém saberes universais. Derepente, o aluno pode transformar-se noprofessor se possuir, não só um saberespecífico para ensinar, como o gosto, oamor pela transmissão, pela facilitaçãoda aprendizagem do outro.

Rui Canário: Queria voltar àquele con-ceito da contra-produtividade. Há aspec-tos que o Illich não nega em absoluto, dizé que, a partir de um certo limiar, eles setornam contra-produtivos. Portanto, o

facto de eu utilizar transportes cada vezmais rápidos e mais consumidores deenergia acaba por conduzir a um limiarque é contra-produtivo – criam-se maisproblemas do que se resolvem. Eledefende um socialismo baseado na bici-cleta, e isto está também muito ligado àépoca, significa que há instituições quepodem ser vantajosas; mas a partir decertos limites tornam-se perversas.Um dos exemplos mais evidentes do quepode ser este limiar contra-produtivo é aescolarização da infância, na qual nãovejo qualquer vantagem. Ainda recente-mente visitei instituições de acolhimentode crianças em idade anterior à escola,onde elas são divididas de acordo comas dificuldades de aprendizagem. Isto éclaramente um efeito perverso. Foi istoque se fez em Portugal e também nou-tros países: estender a escolarização ca-

da vez mais para trás. Escolarizar moda-lidades educativas que não eram escola-rizadas e não deixavam por isso de serinteressantes. Acho que o Ivan Illich é uma referênciapara pensar estas questões. Aliás, nãohá dúvida, todas as pessoas que traba-lham em ciências da educação e na for-mação de professores e da pedagogia,não podem deixar de pensar como é pos-sível que o desenvolvimento desse cam-po, em vez de se traduzir em melhoriasevidentes, se transforme muitas vezes,na origem de problemas.

Olga Pombo: Estou inteiramente deacordo consigo. As crianças foram con-vidadas a ir mais cedo para a escolaporque os pais tiveram que ir trabalhar.A essa “escola”, chamava-se “jardim-de-infância”. Agora é o “pré-primário”. É

“As nossas actuais instituições são crateras de alta pressão que, pela sua própriaestrutura, contribuem para a proliferação de profissões e de para-profissõeshierarquizadas. As instituições desejáveis, pela sua própria estrutura, obrigariamos dirigentes a permitirem a não especialistas instruirem-se, tratarem-se, mudaremde casa, uns com os outros, com a esperança de que as pessoas que tivessemparticipado uma vez numa dessas actividades especializadas iniciariam outraspessoas nas funções que, provisoriamente, estão nas mãos dos especialistas.”Ivan Illich

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uma expressão engraçadíssima, porqueé primário mas é antes do primário.Logo aqui se dá conta da dificuldade depensar esses espaços, que sãoespaços de encarceramento. Encarce-ramento benévolo, é certo, mas, apesarde tudo, encarceramento. A sua funçãoé guardar as crianças, alimentá-las,mantê-las disciplinadas, ou seja, con-trariar aquilo que é o espontâneo, omovimento da vida, da irrequietude, daprocura. A criança é irrequieta porquequer conhecer o mundo e isso é contra-riado por um esquema benévolo queaparenta ser familiar mas não é. Seolharmos para uma sala de uma dessasinstituições infantis, as crianças estãolá num modelo muito próximo dos câno-nes de uma escola secundária ou pri-mária. Começam aliás a ser ensinadascada vez mais cedo. E isto porque achamada “educadora de infância” vai,pouco a pouco, assumindo o papel daprofessora. É que, a autoridade educa-tiva é dos pais. E a “educadora infantil”,para conseguir ter alguma autoridadesem ser autoritária, tem que se apre-sentar, face às crianças, como repre-sentante de algum saber. Por outrolado, os próprios pais estão interessa-dos em que a educadora de infânciatenha alguma autoridade. Se lhe vãoentregar diariamente o cuidado dosseus filhos, durante horas seguidas,alguma autoridade ela tem de ter. ´E, assim, temos uma situação terrível: asnossas crianças estão a ser entregues apais artificiais que estabelecem com elasrelações falsas que, por isso, não podemser senão de deterioração educativa. Omais fácil seria prolongar a estadia dascrianças na família, no bairro, na rua. Não

estou a falar da imagem bucólica de umaaldeia de Trás-os-Montes onde as criançasandassem ainda a brincar sobre a pro-tecção dos adultos. Estou a falar daquilo aque Ivan Illich chama convivencialidade.

Rui Canário: Em Portugal, as poucasexperiências inovadoras no domínio doatendimento à infância vão justamenteno sentido de haver pessoas que desem-penham um papel educativo junto dascrianças e das famílias, mas não no pres-suposto de que os pais e as mães sãoincompetentes. Alguns dos projectosmais interessantes são de qualificaçãodas próprias famílias, das próprias comu-nidades para proporcionar um melhoratendimento às crianças. O problemacentral é sempre quando o profissionalreduz a capacidade de autonomia quecada um de nós deverá ter.

Olga Pombo: Sou a favor de uma con-vivência democrática nas escolas, semdiscursos sobre o que é a democracia.Nada de moralizações. Sou absoluta-mente contra a Educação para a Cida-dania. Parece-me um produto perversoda lógica de institucionalização. Já nemsomos senhores da nossa cidadania! Atéjá isso nos querem ensinar. É terrível,mas é assim. E tenho muita pena de ver os esforçosque os Estado fazem, os milhões emilhões de euros que gastam parafazer o alargamento da rede do pré-escolar. Estou convencida que, se fizes-sem bem as contas, mais valia deixa-rem as crianças em casa, ou no bairro,ou na junta de freguesia, ou nas asso-ciações que se criariam com esseobjectivo, associações públicas de ci-dadãos, de pais, de avós, de reforma-

“As nossas actuais instituições são crateras de alta pressão que, pela suaprópria estrutura, contribuem para a proliferação de profissões e de para-profissões hierarquizadas. As instituições desejáveis, pela sua própriaestrutura, obrigariam os dirigentes a permitirem a não especialistasinstruirem-se, tratarem-se, mudarem de casa, uns com os outros, com aesperança de que as pessoas que tivessem participado uma vez numadessas actividades especializadas iniciariam outras pessoas nas funçõesque, provisoriamente, estão nas mãos dos especialistas.” Ivan Illich

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dos. As pessoas dirão: “que lunáticaé aquela senhora”. De facto, nesteponto, não posso deixar de estar deacordo com a ideia de Illich da convi-vencialidade. As crianças seriamcom certeza mais felizes e maiscapazes de, mais tarde, ter uma par-ticipação política mais interessantedo que com aulas de educação paraa cidadania.

Rui Canário: Acho que o essencialda actividade educativa, no sentidoemancipatório e da cidadania, é dar apalavra às pessoas. É o contrário deas pessoas serem domesticadas porinstituições ou ficarem na dependên-cia de profissionais. A autonomiaestá no centro da ideia de uma socie-dade convivencial, que deixa desubordinar a actividade humana àideia de produzir mais bens, de terriquezas, de ter lucros, da produçãopela produção. Estes são conceitoscentrais do Ivan Illich e ele está emcontracorrente com tudo.

Olga Pombo: É curioso que, nesseponto, Ivan Illich hesita: umas vezesdiz que o próprio sistema de desesco-larização é uma via para a construçãode uma sociedade convivencial, outrasvezes diz que, para que o regime dedesescolarização fosse possível, eranecessário que já tivéssemos umasociedade convivencial. Por um lado,diz “temos primeiro que construir uma

sociedade em que o acto pessoal reen-contre um valor mais alto que o fabri-co de coisas e a manipulação dosseres”. Mas, depois, diz o contrário:“as instituições educativas que eu pre-tenderia esboçar pertencem a umasociedade que ainda não existe, masque elas contribuiriam para formar”.Tão depressa a escola contribui paratransformar a política, como é neces-sário alterar a política para podermoster uma escola diferente.

Rui Canário: Só que ele não tem umateoria de transformação social, e asteorias que temos são voluntaristas edificultam a possibilidade de ver alter-nativas. Nesse sentido, Paulo Freiretambém tem o mérito de não imaginarnem dar muitas soluções; de se colo-car numa posição mais modesta, dequerer problematizar o futuro: “eu pre-firo não saber qual é a solução do queestar amarrado a certezas que sãoobstáculos.”Fazendo a ponte com a revista, odesenvolvimento da educação deadultos faz-se em contraposição àeducação escolar, no sentido tradicio-nal que temos estado aqui a criticar; eé nesse sentido que o Ivan Illich hojeaparece como um inspirador dos quepretendem repensar a educação a par-tir de alguns dos aspectos que forammais criativos e inovadores no campoeducativo, como é o caso da educaçãode adultos.

IVAN ILLICH nasceu em Viena no ano de1926 e faleceu em Bremen, na Alemanha emDezembro de 2002. Filho de pai jugoslavo emãe com ascendência judia, teve de abando-nar a Áustria quando tinha cinco anos. A famí-lia mudou-se para Roma, onde Illich comple-tou os seus estudos: Física (Florença),Filosofia e Teologia (Roma) e doutoramentoem História (Salzburgo). Durante a infância ejuventude conviveu com o círculo de nobresrussos que se refugiaram na capital italianadepois de terem saído do seu país aquandoda revolução comunista de 1917. Foi tambémem Roma que Illich entrou para o seminário(1951), onde teve como colegas muitos dosfuturos diplomatas do Vaticano e onde seordenou sacerdote. O Cardeal Spellman, arce-bispo de Nova Iorque, convidou-o para seuauxiliar. Por ser fluente em dez línguas, Illichtornou-se intérprete do Cardeal e teve comofunção preparar sacerdotes e religiosas paraa comunidade hispano-americana. Nos anos60 mudou-se para o México onde criou oCentro Intercultural de Formação (CIF), com oobjectivo de sensibilizar missionários paratrabalhar na América Latina. Na década de70 foi co-fundador do Centro de Informação eDocumentação (CIDOC), espécie de universi-dade aberta, especialmente voltada para osproblemas da educação e independência cul-tural do Terceiro Mundo, sobretudo daAmérica Latina.A partir de 1980, dividiu o seu tempo entre oMéxico, os Estados Unidos e a Alemanha. Nosúltimos anos de sua vida, Illich foi professorconvidado de filosofia, de ciência, tecnologiae sociedade no estado da Pensilvânia, sendotambém docente na Universidade de Bremenonde morreu no dia 2 de Dezembro de 2002.(Extraído de http://www.educ.fc.ul.pt/do-centes/opombo/hfe/illich/)

http://www.ivanillich.org/Principal.htm (site em Espanhol)http://www.preservenet.com/theory/Illich.html (site em Inglês)http://en.wikipedia.org/wiki/Ivan_Illich (site em Inglês)http://homepage.mac.com/tinapple/illich/ (site em Inglês)

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E ste tem sido um trabalho inovador, dado que no nossopaís este é o único departamento de uma instituiçãode ensino superior a desenvolver acções neste campo.Talvez devido a este facto, trata-se de um trabalho

corajoso, uma vez que a educação de adultos não tem obtidopor parte das organizações públicas, privadas e até do terceirosector, a atenção que lhe é devida. Apesar de actuar num contexto educativo, social e até organi-zativo que é complexo e por vezes adverso, a UEA, através dasiniciativas levadas a efeito, tem contribuído, por um lado, para aidentificação e análise de práticas educativas e formativas queenvolvem adultos, e, por outro lado, para a interpretação e com-preensão de um domínio que se tem construído e estruturadocom as forças e as fraquezas da nossa jovem democracia.Neste contexto, a UEA tem realizado acções em três grandesáreas de intervenção: i) a educação e formação de adultos, como objectivo de desenvolver acções de formação e cursos dirigi-dos a formadores de formadores, monitores, gestores de for-mação de serviços e empresas, animadores e agentes dedesenvolvimento local, dirigentes associativos e educadores emgeral, e de promover o estímulo e apoio a formas de organi-zação e metodologias participativas, nas quais caiba ao adultointervir activamente em todas as fases do processo (concepção,organização, gestão, avaliação, etc.); ii) a investigação, procu-rando conhecer o campo da educação de adultos, pela reali-zação de estudos, da disseminação de resultados e do desen-volvimento de projectos de investigação e investigação-acção,bem como pelo apoio, pela supervisão e orientação científica epedagógica de projectos de formação e de intervenção socio-educativa promovidos por estabelecimentos de ensino, asso-ciações, cooperativas, empresas, serviços públicos, autarquias,etc.; iii) e a actividade editorial, pela publicação de textos nosquais se reflicta e interprete a situação deste campo de práticasem Portugal e noutros países.Uma avaliação destes 30 anos de história revela-nos a consoli-dação de uma intervenção pioneira no contexto português, mastambém evidencia as contradições de uma aposta num sectorque se tem desenvolvido de modo descontínuo e fragmentado,evidenciando a falta de vontade política do Estado pelo seudesenvolvimento.

Alguns princípios

Apesar destes constrangimentos, o desenvolvimento das iniciati-vas promovidas pela UEA sempre foi orientado por alguns princí-pios que gostaríamos de destacar. Em primeiro lugar, a necessi-dade de articular o estudo da educação e formação com a inter-venção, entendida enquanto conjunto das iniciativas levadas acabo pela UEA ou por outra instituição. Esta relação entre areflexão e a acção sempre assentou num processo dialéctico, noqual se tem procurado valorizar o significado e a coerência entreestes dois aspectos, na procura e na análise de soluções para osproblemas que os adultos vivem nos seus quotidianos. Esta articulação assenta num outro princípio igualmente impor-tante: a promoção do diálogo entre quem investiga e aqueles queenfrentam os problemas, que querem educar-se, de modo a queexistam condições para que todos possam participar, avaliar a uti-lidade e o significado das mudanças sociais e educativas que seregistam ou que possam vir a ocorrer no futuro. Na construçãodeste diálogo entre os diversos actores, a UEA tem consideradoque as relações de poder que se estabelecem entre quem estu-da e quem é estudado devem ser menos assimétricas, de modoa que sejam criadas condições de discussão e compreensão dascondições de vida das pessoas, bem como da sua transformação.Por outro lado, nas diferentes actividades empreendidas tem-seregistado um esforço de contextualização das acções, pela pro-moção de iniciativas que favoreçam a inclusão social, a igualda-de e a participação, entendida enquanto oportunidade de desen-volver formas de apropriação da realidade, a sua conscienciali-zação e a sua mudança por parte dos adultos.

Mais de uma centena de acções de formação

Estes foram alguns dos princípios que orientaram a realizaçãode mais de uma centena de acções de formação, de curta,média ou longa duração, iniciativas que envolveram muitos for-mandos adultos, profissionais de distintos sectores, ligados aorganizações públicas, privadas, sem fins lucrativos, não-gover-namentais, etc., formadores, directa ou indirectamente ligadosà UEA, e responsáveis por departamentos e serviços de edu-cação e formação de adultos, como se pode avaliar, de resto,pela informação que consta na sua página da internet(http://www.uea.uminho.pt). Foram também estes os princípios

DESDE A SUA CRIAÇÃO EM 1976, AINDA ENQUANTO PROJECTO, ATÉ HOJE, A UNIDADE DE EDUCAÇÃO DEADULTOS (UEA) DA UNIVERSIDADE DO MINHO TEM PROCURADO MARCAR PRESENÇA ATRAVÉS DAREFLEXÃO E DA INTERVENÇÃO NA ÁREA DA EDUCAÇÃO DE ADULTOS.

A UNIDADE DE EDUCAÇÃO DE ADULTOS

TRÊS DÉCADAS DE REFLEXÃOE DE INTERVENÇÃO

Texto: Paula Guimarães (Técnica Superior Principal do quadro da Universidade do Minho e investigadora do Centro de Estudos em Educação doInstituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho)

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AO LONGO DA VIDA 49

nos quais se basearam os diferentes projectos levados a cabo,quer tenham sido estas pesquisas nas quais se estudaram asassociações populares e a sua intervenção, quer tenham sidoestudos que favorecessem a compreensão da educação e for-mação desenvolvidas nos locais de trabalho.Após 30 anos de trabalho reconhecido, não só nacional comointernacionalmente, alguns desafios colocam-se hoje à UEA, emparticular, como à educação de adultos, em geral. O primeiro pren-de-se com o espaço e a intervenção que esta Unidade deverá ocu-par no actual contexto educativo em Portugal. Apesar de, em mui-tas instituições de ensino superior de diversos países da UniãoEuropeia, departamentos que se assemelhavam à UEA teremdesaparecido ou terem sido integrados noutros mais direcciona-dos para as problemáticas da aprendizagem organizacional e daformação, ou ainda terem sido re-estruturados para a partir deentão passarem a organizar iniciativas de formação contínua eprofissional, a tradição da UEA no trabalho de extensão universi-tária terá que ser mantida, na ligação entre um contexto educati-vo específico, em muitas circunstâncias fechado sobre si mesmo,e os mundos sociais, do trabalho, da política, da cultura, etc.Sendo esta uma relação marcada pelos problemas, riscos e con-tradições que caracterizam a nossa sociedade, ela permitirá iden-tificar, conhecer e avaliar novas modalidades de trabalho pedagó-gico, favorecendo a compreensão destes modos inovadores deintervenção educativa. Neste âmbito, a UEA levou recentemente acabo diversas iniciativas de formação que tiveram como finalida-de aproximar a Universidade destes mesmos mundos, pela con-cepção, desenvolvimento e avaliação de acções de prevenção dastoxicodependências, de desenvolvimento local e comunitário, deeducação e promoção das literacias em contexto de trabalho e deformação de educadores de adultos.O segundo prende-se com a necessidade de continuar a resis-tir, em tempos pouco favoráveis, à educação de adultos e maispropensos à formação profissional e à aprendizagem ao longoda vida. Embora numa primeira análise estes conceitos possamparecer similares, a verdade é que escondem diferenças muitosignificativas, não só para as instituições que dinamizam as ini-ciativas, como para os adultos que desejam educar-se. Esta mudança de tónica, evidente em particular nos discursospolíticos, revela uma aposta já distante da promoção da edu-cação de adultos e da educação permanente, baseada em pro-cessos colectivos, na participação e na oferta pública, centran-do-se antes na formação profissional, fomentada pelas políti-cas e programas da União Europeia, camuflada pelo discursoda aprendizagem ao longo da vida e de que cabe aos adultos aresponsabilidade relativa aos seus percursos educativos e for-mativos. Porém, esta necessidade de resistir não poderá levarao esquecimento dos princípios que têm marcado o trabalho

realizado pela UEA, não deixando que os imperativos da com-petitividade e da produtividade sustentem a produção de con-hecimento e a necessária intervenção. De resto, nos projectos de investigação que têm sido desenvolvi-dos sempre se registou a preocupação de promover a partici-pação de todos os actores envolvidos, os investigadores, forman-dos, responsáveis por departamentos de formação, etc.Referindo apenas como exemplo a pesquisa mais recente, desig-nada Literacia(s) em Contexto de Trabalho. Investigação e edu-cação/formação, a UEA preocupou-se com o envolvimento detodos os interessados no desenvolvimento do projecto, tendo-seapostado no estabelecimento de relações o mais simétricas pos-sível e de um diálogo que beneficiasse os intervenientes na cons-trução de um contexto de trabalho mais justo e motivador. Pelaexperiência adquirida, este parece ser o caminho certo.

É necessário articular o estudo da educação e formação com a inter-venção. Esta relação entre a reflexão e a acção sempre assentou numprocesso dialéctico, no qual se tem procurado valorizar o significado e acoerência entre estes dois aspectos, na procura e na análise desoluções para os problemas que os adultos vivem nos seus quotidianos.

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50 APRENDER50 APRENDER

REPORTAGEM

QUEM ESTIVER A PASSAR PELO DISTRITO DE LEIRIA E, SE POR ACASO, SINTONIZAR O RÁDIO DO CARRONA FREQUÊNCIA 99.0 ESTARÁ A OUVIR A RÁDIO TRIÂNGULO, A VOZ DE PEDRÓGÃO GRANDE. COMOTODAS AS RÁDIOS LOCAIS, ESTA TAMBÉM ENFRENTA PROBLEMAS DE SOBREVIVÊNCIA, APESAR DECUMPRIR O PAPEL DE GARANTIR AOS HABITANTES DA VILA QUE O SEU DIA-A-DIA PODE SER NOTÍCIA.

ANTENA ABERTAÀ COMUNIDADETexto: Cristina Portella # Fotografias: Miguel Baltasar

Alunos da Escola Tecnológica e Profissional da Zona do Pinhal

RÁDIO EM PEDRÓGÃO GRANDE

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REPORTAGEM

tos ouvintes. Eram os nossos colegas que ouviam, para dizerbem ou para criticar, mas ouviam”, avaliou Marlene Fernandes,18 anos, aluna do curso de Hotelaria. Ela era uma das respon-sáveis pelo “Quando elas falam” e saiu-se tão bem que conti-nuou a trabalhar na rádio depois de Junho de 2004, quando oprograma terminou. O facto de os jovens da Escola Tecnológicaterem passado, durante aquele período, a ouvir a RádioTriângulo é um bom parâmetro para medir o sucesso da expe-riência. Até aquela data, segundo Marlene, eles não tinham ohábito de sintonizar a 99.0. “Preferiam ouvir os CDs que fazemem casa com as músicas que gostam ou aquelas rádios nacio-nais como a Antena 3”.

Públicos

Mas não foi só o público jovem que a programação criadapelos alunos da Escola Tecnológica cativou para a RádioTriângulo. O povo da vila também passou a ouvir a rádio. “Ospais dos alunos ouviam-nos e comentavam na mercearia que‘eles são muito engraçados’, e aí cada vez mais pessoas sin-tonizavam a Triângulo...”, contou Tiago. Mesmo que fossepara dizer mal. “A nossa tendência, como jovens, é passarmúsica para o nosso gosto. Mas as pessoas daqui, os adul-tos, não gostam. Eles queixavam-se de não passarmos músi-ca portuguesa e popular no nosso programa”, relembrouCindy Viana, 19 anos, aluna de Comunicação. “Uma vez fize-mos a experiência de passar música pimba. No outro dia tín-

hamos a escola toda em cima de nós. Não se pode agradar agregos e a troianos. Passávamos muito rock, pop, aquilo quea malta jovem gosta de ouvir”, acrescentou Andreia Amadeu,17 anos, igualmente aluna de Comunicação.Cindy e Andreia também integraram o núcleo de jovens surgidona Escola Tecnológica. Elas apontaram um dos impasses vivi-dos pelas rádios locais, como a Triângulo, muitas vezes semsaber a que público agradar. “A população de Pedrógão é muitoidosa. Por isso é que uma rádio local tem que passar maiorita-riamente música portuguesa, senão ninguém vai ouvir”, opinouAndreia. “De certa forma é mais difícil gerir rádios locais do quenacionais, porque estas últimas são mais específicas paradeterminado público, enquanto as locais têm que agradar aosvelhotes. Mas depois, se só agradam a eles, também não pres-tam, porque são rádios só de velhotes. Então também têm deagradar aos jovens, e são os velhotes que se queixam”, con-cordou Tiago.

Viabilidade

O envelhecimento da população de Pedrógão Grande é apenasum dos aspectos do já conhecido fenómeno de desertificaçãoque atinge boa parte do interior de Portugal. Com menos de 5mil habitantes, espalhados numa área de 130 quilómetrosquadrados, é um concelho com grande tradição rural, mas semalternativas de emprego que possam fixar os jovens à terra.“Penso que ninguém quer ficar aqui porque aqui não aprende-mos nada. Vamos simplesmente prender-nos à terra, que, secalhar, também é nossa, mas que não nos diz nada. Diz muitomais aos nossos pais do que a nós. Nós temos ambições muitomais altas, ir para uma cidade, conhecer mais gente”, sinteti-zou Marlene. “Os grandes motores da economia local, isto é, os grandesempregadores, são a Câmara Municipal, o MatadouroIndustrial e a Escola Profissional ETPZP”, explicou HenriquePires Teixeira, director do jornal A Comarca, parceiro da RádioTriângulo. O jornal, com quase 30 anos de existência na região,fornece o material para os noticiários locais veiculados pelarádio três vezes ao dia, como manda a lei. A lei também delimita o âmbito de difusão das rádios locais eacaba, segundo o empresário, por sufocá-las. A frequência deuma rádio local, como a Triângulo, está prevista para atingirexclusivamente o seu próprio concelho. Se este, como é o casode Pedrógão Grande, não possui dinamismo suficiente paragarantir publicidade que sustente a rádio, esta acaba por setornar inviável. “É um diploma que ignora a realidade. A rádioé importante para animar em termos locais, mas não se anali-sou a vertente da sustentabilidade que estes projectos têm deter. Os 5 mil habitantes deste concelho não totalizam númerosuficiente para justificar a grande publicidade, e a rádio vive sóde publicidade, não tem outras receitas.” Em Pedrógão Grande, quem anuncia é o comércio local, jásacrificado com pedidos de apoio que vão dos bombeiros,passando pela Misericórdia até os escuteiros. Para estescomerciantes, a publicidade não tem a função de divulgar,porque a população já conhece e frequenta os seus estabe-lecimentos. Nesse caso, a publicidade representaria muitomais um apoio filantrópico aos meios de comunicação daterra, sejam eles o rádio ou o jornal. “Tem de haver uma rede-

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Anabela Guerreiro: a rádio é uma porta aberta para os alunos

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finição dos limites de implantação de uma rádio, que permitaestender as suas emissões para concelhos vizinhos”, anali-sou Henrique.Apesar de a antena da Triângulo, localizada numa serra com1.200 metros de altitude, permitir que a rádio seja ouvidanuma área maior do que a do concelho, seria necessário umretransmissor para impedir eventuais falhas de transmissão.“Mas dizem que não é possível, porque em Pedrógão se ouvemuito bem, e a licença é só para o concelho”, acrescentou oempresário. Com esta limitação, os potenciais anunciantes,locais ou regionais, acabam por não ter uma estimativa preci-sa sobre o público que os anúncios veiculados pela rádiopodem atingir.

Dificuldades

Essas limitações talvez expliquem a actual situação da RádioTriângulo, sem pessoal e publicidade em quantidade suficientepara garantir uma programação mais profissional. Com apenasduas funcionárias em regime de tempo integral, conta com aparticipação de alguns antigos e actuais alunos da EscolaTecnológica para diversificar a grelha de emissões. Marlene edois colegas apresentam, às terças-feiras, “180 minutos”.“Tem muita música, falamos de bandas, mas, principalmente,aquilo que nos vem à cabeça, para tentar fazer rir o público”,contou ela. “Voltei a fazer o programa pelo simples facto deque adorei a experiência.” Mas o dia-a-dia da rádio é assegurado por Catarina Silva, for-

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Apesar de a antena da Triângulo permitir que a rádio seja ouvida numaárea maior que a do concelho, seria necessário um retransmissor paraimpedir eventuais falhas de transmissão. Mas não é possível, porque alicença é só para Pedrógão.

Fernando Marinho: no interior, uma rádio local é um factor de coesão

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mada em Comunicação Social na Escola Superior deTecnologia de Abrantes. Há dois anos na rádio, completa agorao seu estágio profissional de nove meses, mas adoraria conti-nuar. Ela é uma espécie de faz-tudo: apresentação de progra-mas em directo, publicidade, edição das notícias locais e nacio-nais, locução e programação musical. Só não faz entrevistasporque não dá tempo, mas bem que gostaria. A sua presençana rádio deve-se à mãe, contrária à ideia da filha de procurartrabalho em Abrantes, céptica sobre a possibilidade de encon-trar uma saída profissional em Pedrógão. Moradora do concel-ho, queria que a filha continuasse a viver ao pé de si, e conse-guiu. “Eu nem quis acreditar”, contou.É a história da aproximação de Catarina à rádio, mas tam-bém a experiência dos jovens da Escola Profissional queconferem fundamento à opinião do proprietário da RádioTriângulo de que as rádios locais podem funcionar comoâncoras para fixar a população, em especial os jovens, àsvilas e aldeias do interior do país. Para Fernando Marinho,que trabalhou no antigo Rádio Clube Português, actualRádio Comercial, entre 1981 e 1983, elas cumpririam umpapel que as rádios nacionais não conseguem cumprir.“Uma rádio local, para uma zona do interior como esta, ondeas pessoas se sentem abandonadas, esquecidas, é um fac-

tor de coesão, valoriza a auto-estima, porque fala delas edos problemas locais dos quais mais ninguém fala”, anali-sou o parceiro do jornal A Comarca.Talvez seja por isso que a rádio receba tantos telefonemas, nãosó de Pedrógão, mas também de Proença-a-Nova, Castanheirade Pêra ou da Sertã. Até os emigrantes chegam a telefonarpara pedir música para dedicar a algum morador. Se a músicaportuguesa está praticamente ausente das emissões nacio-nais, ela ocupa uma boa parcela da programação da Triângulo.“Das 18 às 21 horas passamos a música tradicional portugue-sa, depois vamos para o rock português. Tentamos satisfazertodas as camadas”, disse Fernando. As informações nacionaissão garantidas pela retransmissão diária de um noticiárionacional da Rádio Comercial. Quanto a projectos, Fernando Marinho mostra-se céptico: “Onosso projecto é tentar sobreviver”. Ele e o seu parceiro de AComarca pretendem reeditar a parceria com a EscolaProfissional. A experiência dos doze jovens que montaramprogramas de sucesso durante alguns meses no ano passa-do foi avaliada como positiva por todos. Segundo a professo-ra Anabela Guerreiro, “a experiência com a rádio foi um exem-plo da preocupação da escola” com a prática profissional dosalunos.

REPORTAGEM

Fernando Marinho e Henrique Pires Teixeira, director de A Comarca: parceria entre rádio e jornal é fundamental

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Enciclopédia livre

AWikipédia é uma enciclopédia livre baseada em wiki eescrita por voluntários. Livre aqui significa que qualquer

artigo da Wikipédia pode ser copiado e modificado desde queos direitos de cópia e modificação sejam preservados. O conte-údo da Wikipédia está sob licença GNU FDL.A Wikipédia é gerida e operada pela Wikimedia Foundation,organização sem fins lucrativos. O projecto iniciou-se em 15 dejaneiro de 2001 e atualmente (Setembro de 2004) abriga quase1 milhão de artigos nos mais diversos idiomas, sendo aproxi-madamente 430 mil em língua inglesa e 36718 em língua por-tuguesa.A Wikipédia foi fundada por Jimmy Wales e Larry Sanger, tendosua origem no projecto Nupedia. Ambos os projectos foram ini-cialmente financiados por capitais privados (Jimmy Wales).Larry Sanger foi durante vários meses editor em tempo integraldos dois projectos.Os projectos Nupedia e Wikipédia têm modelos diferentes defuncionamento. A Nupedia tem um modelo de revisão e de apro-vação rígido e elevados critérios de exigência. Os artigos sãorevistos e aprovados por reputados académicos, muitos delescom PhD, e só depois são publicados. O modelo de funciona-mento da Wikipédia baseia-se num wiki - uma rede de páginasweb que podem ser modificadas através de um browser comumcomo o Internet Explorer ou o Mozilla. Este é o fator que distin-gue a Wikipédia de todas as outras enciclopédias: qualquer pes-soa pode modificar qualquer artigo, sendo cada leitor um poten-

cial colaborador do projecto.Na Wikipédia, os artigos são escritos de forma colaborativa. AWikipédia é suportada por um software próprio desenvolvidopor voluntários e sob licença GNU GPL. Vários autores podemtrabalhar em conjunto editando sucessivamente a mesma pági-na. Um colaborador pode assumir de entre vários níveis de cola-boração. Pode escrever artigos, corrigir artigos, corrigir gralhase erros ortográficos, participar esporadicamente, produzir soft-ware, traduzir artigos, divulgar ou participar nas discussõessobre o projecto.Site: http://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%A1gina_principal

NET

Divulgação de ciência

A revista Com Ciência é uma revista on-line Brasileira, cria-da, originalmente, por iniciativa do Laboratório de Estudos

Avançados em Jornalismo (LABJOR), da Universidade Estadualde Campinas, em parceria com a Sociedade Brasileira para oConhecimento (SBPC) para satisfazer objectivos pedagógicos ede divulgação científica.Em Abril está disponível o número 64 que tem como tema “OsDireitos Indígenas”. A utilização do conhecimento dos povos indígenas, seja em pes-quisas científicas, seja em projectos com finalidades comerciais,vem suscitando questões importantes no debate sobre proprie-dade intelectual, dentre elas: como deve ser a repartição dos pos-síveis recursos provenientes desse uso? Discute-se desde o esta-belecimento de percentagem sobre a venda do produto geradocom a utilização do conhecimento tradicional, até investimentosem infra-estrutura para as comunidades detentoras do conheci-mento tais como escolas, energia eléctrica, transporte.Nesse sentido Carlos Vogt no seu editorial pergunta?A quem pertence o conhecimento? Aos cientistas, pesquisadorese pensadores que o produzem? Àqueles a quem é ensinado que,se o aprendem, são também seus co-proprietários? À sociedadeque deve dele beneficiar-se e que, sabendo ou não disso, ofereceas condições culturais, políticas, económicas e morais para a sua

busca, o seu desenvolvimento, a sua multiplicação e transfor-mação? Aos governos que o financiam, quando o financiam, e quedeveriam manter boas políticas públicas para a sua produção,desenvolvimento e apropriação social? Às empresas que dele seapropriam por investimentos, compra, acções jurídicas e/ou judi-ciais, registros de patentes, lideranças em pesquisas sectoriais,propriedade, enfim, do que é de todos, mas com direitos exclusi-vos de controle e de formas de socialização, via as práticas comer-ciais vigentes nos sistemas de troca da economia global.Site: http://www.comciencia.br

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E sta obra é a versão revista e resumida da dissertação de dou-toramento do autor.

Daniel Melo analisa a evolução da leitura pública em Portugal noséculo XX, desde o primeiro projecto oficial de uma estrutura biblio-tecária metropolitana até à consagração de uma estrutura estatalcontinental de bibliotecas municipais. Aborda a principal legis-lação específica, fornece uma panorâmica comparativa dos movi-mentos de leitura e de alfabetização e analisa 35 estudos e inqué-ritos sobre a leitura e os leitores. Para determinar o que liam osportugueses no séc. XX (e o que lhes foi censurado), procede tam-bém a uma caracterização dos principais tipos de bibliotecas(municipais, distritais, populares, do SNI, etc.) e respectivos fundosbibliográficos. Apresenta ainda o estudo de caso da FundaçãoGulbenkian, dado o seu contributo fundamental para a leiturapública. Este projecto das bibliotecas itinerantes e fixas (lançadoem 1958) consolidou em definitivo a matriz municipal de umaestrutura nacional de leitura. Associando-se ao poder municipal eao associativismo livre, viabilizou uma política cultural sectorialdinamizada pela sociedade civil e assente nas comunidades locaismais desfavorecidas quanto ao acesso ao livro e à leitura.A págs. 42 a 44, Daniel Melo refere o PEP, ou Plano de EducaçãoPopular que, além de visar o reforço do cumprimento da obrigato-riedade escolar, criava cursos de educação de adultos e lançavauma campanha nacional de educação de adultos (CNEA). EstePrograma foi criado para dois anos (1952-54) e posteriormenteprorrogado por mais dois. “Através deste plano dava-se, finalmen-te, andamento ao projecto das bibliotecas junto das escolas doensino primário, segundo uma perspectiva articulada de educaçãopopular, funcionando em complementaridade da alfabetização ouda educação de adultos. O então subsecretário de Estado da

Educação Nacional, Henrique Veiga de Macedo, mentor do PEP,tentou ainda, em 1956, impedir a sua extinção, no que não foibem sucedido. Acrescenta Daniel Melo: “A defesa da continuaçãodo modelo da CNEA seria retomada por este político dez anosdepois... Ambas as tentativas de reincidência serão recusadassuperiormente devido ao facto de a prioridade oficial ser a escola-ridade obrigatória para as crianças, e não a educação de adultos”.Como se vê, já é uma história antiga, esta marginalização da edu-cação de adultos e a crença de que é a aposta na escolaridade dosgrupos etários mais jovens que resolverá o problema nacional dasub-educação e da sub-qualificação. E, como se tem visto nestes úl-timos 50 anos, tal estratégia não tocou no cerne cultural do proble-ma, dado que famílias que não valorizem a cultura e a educaçãonunca encorajarão os filhos nesse sentido, mas o facto é que esteconservadorismo educacional se vem mantendo ao longo dos tem-pos, com argumentos mais reaccionárias ou mais progresssistas.

Alberto Melo

A Leitura Pública no PortugalContemporâneo: 1926-1987 (Open University Press)Daniel Melo. Lisboa: Imprensa de CiênciasSociais, 2004

L IVROS

Sciences Humaines Número Especial - SaúdeEdição Sciences Humaines, Março-Abril-Maio, 2005www.scienceshumaines.com

A inda se pode encontrar em muitasbancas de jornais o último número

especial da revista Sciences Humainesdedicado ao tema deste número da“Aprender ao Longo da Vida” – Saúde.A Sciences Humaines, apesar de seruma revista destinada a um públicovasto, aborda os temas com um grau deprofundidade que faz dela uma referên-cia para quem se interessa pela análisede temas sociais na perspectiva dediversas áreas do saber como a His-

tória, Sociologia, Psicologia, Antropolo-gia ou Geografia.A Saúde é sem dúvida um tema que setornou uma obsessão na sociedadeactual, como as dietas, o retardar doenvelhecimento, os hospitais, os medi-camentos...É com alguma satisfação que ao lermoso texto de introdução deste número inti-tulado “A saúde: na perseguição deuma utopia” vemos que Ivan Illich, quetambém é tema deste nosso número, écitado frequentemente. A título deexemplo:“E que observamos? Quanto maior é aoferta de “saúde” mais pessoas dizemque ter problemas, necessidades,doenças e pedem garantias contra osriscos, enquanto nas regiões profunda-mente iletradas os “sub-desenvolvi-

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A Leitura Pública no Portugal Contemporâneo: 1926-1987 éuma versão revista de uma tese de doutoramento. A quem

interessará? Mais uma entre tantas teses, tantos doutoramen-tos. Ou tratar-se-á de uma obra ponto de partida?Leia-se e acre-dite-se que sim. Que se trata de um ponto de partida.Sugere, pelo menos, algumas perguntas.Logo a páginas 30, 31 e seguintes: O que foi realmente feito doLegado Cultural da I República?Não se evoque a legislação (sempre em abundância e por cum-prir). Mas, por exemplo, os livros que se distribuíam como pré-mio de aproveitamento ao fim da Instrução Primária.Virgínia de Castro e Almeida / Motta Prego, embora a dupla setenha quebrado em 1913. Céu Aberto falando de meninos queiam a educar na Suiça. Sim, mas ficar em Portugal seria parar, nãover nada. Não aprender mais nada. LER. Sempre se poderia ler.Em Céu Aberto, surgiam defensores da liberdade [Garibaldi,Cavour]. Abordava-se a ciência [O microscópio, os bacilos deKock]. Encontrava-se o Presidente da Confederação Helvéticaviajando de comboio, cidadão comum entre outros cidadãos.A Horta do Tomé. O Pomar do Adrião. O que a gente do campopoderia aprender/saber, mesmo não chegando às Escolas deAgricultura. E a grande maioria não chegava.O que foi feito dessa experiência de leituras, de instrução pós-escolar? Um decreto (nº13726 de 27/Maio/1927) terá sido tãoeficaz que nunca mais os bons livros tenham chegado às mãosde quem os merecia?– E a Campanha Nacional de Educação de Adultos? (páginas42, 44, seguintes). Tentativa séria de inverter os dados do cen-sus de 1950? Ou antes maneira de manipular as respostasdevidas a inquéritos da Organização Europeia de Cooperação e

Desenvolvimento?- Antes, ainda, as Bibliotecas Municipais. As Bibliotecas Públicas.Quantos anos cumpridos a custo? O que se recomendava, aoemprestar-se um livro? Que perguntas, no momento da devolução?Mais: as Edições COSMOS para a Educação Popular. Música,Matemática, Ciências Naturais, Literatura. Orientação editorial:Professor Bento de Jesus Caraça. Orientação gráfica: PintorCarlos Botelho. Quem se lembra?– Depois a GULBENKIAN.As carrinhas por caminhos difíceis. O motorista é o bibliotecário.Acervos que diríamos pobres. E no entanto as crianças, os ado-lescentes, as mulheres. Uma única obra de Cardoso Pires?Então, levava-se Júlio Dinis.Anoiteceu. O motorista/bibliotecário tem frio. Ainda não jantoue está muito longe de casa. Pensa que poderá ter um furo pelocaminho. Que tornará, daí por duas semanas, recolhendo JúlioDinis. Deixando Camões. É um passador de livros.Chega-se a 1974. A 1987. À “Conclusão” do trabalho. (Páginas345-353). “Antigamente. Foi antigamente que tudo isto se deu”,pensamos. Antigamente. Hoje.Quem hoje se interessa pela Leitura Pública será um verdadei-ro passador de Livros? Ou limitar-se-á a conservá-los nas estan-tes e a pôr-lhes as referências nas bases de dados? Exigirá bole-tins de requisição correctamente preenchidos?Não se negará pelo menos a um sorriso, colocando Sophia emcima do balcão?Ficam as perguntas. E não se deixe de ler a obra. Sim, começoupor ser uma tese de doutoramento. Que mal tem?

Filomena Marona Beja

dos” aceitam sem problema a sua con-dição”.Assim, no primeiro capítulo “Os males eos Homens”, destaca-se o artigo sobre apossibilidade de se prevenir “atenta-dos” à saúde por motivos profissionais eo artigo sobre pessoas com deficiênciaque apesar das disposições legais, con-tinuam excluídas em questões como aeducação, o acesso às infra-estruturas,à integração profissional, mas tambémda aceitação social.No segundo capítulo, que se debruçasobre “Actores da Saúde”, dois dos prin-cipais artigos são sobre a relação médi-co-paciente e a redefinição da activida-de dos enfermeiros.Podem ler-se ainda outros artigos inte-ressantes como “O Declínio do ImpérioFarmacêutico” em que são questiona-

das as estratégias da indústria far-macêutica e o artigo “O hospital sob ten-são” onde se analisa a evolução do con-ceito de hospital.O último capítulo aborda as “Políticas eDebates Públicos”. O artigo sobre a uti-lização de campanhas de prevenção, deinformação e formação é particular-mente importante para os técnicos daárea de educação/formação de adul-tos. Para os menos familiarizados comas metodologias das campanhas deprevenção há um pequeno artigo quecompara, de uma forma esquemática,as três estratégias psicossociais utiliza-das para este fim: A investigação-acçãoLewiniana, a estratégia de engajamen-to e as intervenções de orientação só-cio-cognitivistas.Houve progressos consideráveis no

domínio da saúde que foram atingidosna segunda metade do século XX: astaxas de mortalidade infantil passaramde 148% em 1955 para 57% em 1997.No mesmo período, a esperança de vidaaumentou 18 anos. Mas os relatóriossão esclarecedores, estes dados mun-diais escondem um fenómeno que nãose reduz à saúde: o da desigualdadecrescente do mundo.E nada melhor para verificarmos estadesigualdade do que olharmos para osmapas do mundo com as percentagensde existência de paludismo, tuberculosee sida.Mas pode pode ficar a saber o indícecompleto deste número se consultar osite:http://www.scienceshumaines.com/sommaire.do?id=40443

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58 APRENDER

N a cidade e aldeia histórica deTrancoso vai realizar-se nos dias

25, 26, 27, 28 e 29 de Maio a VI MANI-FESTA. A Animar (Associação Portugue-sa para o Desenvolvimento Local) e aRaia Histórica são as entidades promo-toras da VI MANIFesta, que reúne carac-terísticas únicas no universo do Desen-volvimento Local europeu.A realização da MANIFesta Trancoso2005 acolhe o espírito das organi-zações anteriores, baseando a suaconstrução em três eixos essenciais:Assembleia, Animação, Feira.A especificidade da MANIFesta advémda articulação destas três componen-

tes cujos conteúdos provêm dos contri-butos fornecidos de norte a sul do terri-tório nacional (incluindo ilhas) pelosagentes/actores do desenvolvimentolocal português. A dimensão da reali-zação não se resume aos dias do even-to. Trata-se de um processo que nascede uma participação heterogénea aonível das Organizações e Iniciativas doDesenvolvimento Local (OIDL’s) do país.O espaço Feira vai ter exposições,stands, bancas de artesanato, feira dolivro, tasquinhas.Mas a MANIFesta é muito mais do queuma festa. É acima de tudo umespaço de cidadania, no qual a socie-dade civil tem oportunidade de se“manifestar”. Uma mostra multiface-tada de projectos, iniciativas, mastambém espaço de debate e reflexão,numa lógica de afirmação de ummovimento: o movimento do Desenvo-lvimento Local, cuja essência consisteem proporcionar melhores condiçõesde vida às pessoas.Site: http://www.animar-dl.pt

A Manifesta volta a animar Portugal…

P ara este III Encontro Regional deEducação, o Departamento de Pe-

dagogia e Educação da Universidadede Évora, propõe a reflexão em tornodas “Boas Práticas de Educação eFormação no Alentejo”, com os seguin-tes objectivos:

• Identificar e divulgar boas práti-cas de educação e formação pro-tagonizadas no território alenteja-no;

• Analisar, de forma prospectiva, asorientações para a Educação e aFormação que procurem a melho-ria da qualificação dos (as) alente-janos(as);

• Discutir modalidades de aprendiza-gem (formal, não formal e infor-mal), respectivas características epossibilidades de articulação.

Local: Auditório da Universidade deÉvoraData: 24 e 25 de Maio de 2005

Mais informações:

Departamento de Pedagogia eEducação da Universidade de ÉvoraApartado 947002-554 Évoratel.: 266 706 581email: [email protected]://www.eventos.uevora.pt/aprende-ralentejo

N OTÍCIAS

III Encontro Regional de Educação Aprender no Alentejo

Dia Internacional dos Museus

M useus, Pontes entre Culturas” é otema de reflexão proposto pelo

Conselho Internacional de Museus(ICOM) este ano para a 27ª edição doDia Internacional dos Museus, celebra-do no dia 18 de Maio em todo o Mundo.Estas comemorações têm vindo a evi-denciar linhas de trabalho dos museusmenos visíveis, mas fundamentais paraassegurar a preservação e a divulgaçãodas suas colecções e dos seus patrimó-nios, bem como para reforçar a aproxi-mação dos museus à diversidade dosseus públicos. O tema proposto para 2005 – “Museus,Pontes entre Culturas” – sublinha omuseu como mediador entre culturas ecomo lugar de encontro de culturas, por-que neles conflui a pluralidade deheranças culturais dos povos. Uma ini-ciativa que também se insere nesteespírito de privilegiar o encontro entreos museus e o público é a “Noite dosMuseus” convidando a descobrir, gratui-tamente, a riqueza das colecções e aoferta cultural dos museus, sempre emtorno de um tema diferente. A primeira edição deste projecto, pro-movido pelo Ministério da Cultura eComunicação Francês, será no próximodia 14 de Maio (sábado). Neste serão,até por volta da 1h00 da madrugada, osMuseus do IPM que aderiram à iniciati-va permitirão a entrada gratuita detodos os visitantes e apresentarão acti-vidades de animação dedicadas aotema “Luz(es) na noite”. São eles: Mu-seu de Alberto Sampaio, Museu de Ce-râmica, Museu de Francisco TavaresProença Júnior, Museu Grão Vasco,Museu de Lamego, Museu da Música,Museu Nacional de Arte Antiga, MuseuNacional do Azulejo, Museu nacionaldos Coches, Museu Nacional de Etno-logia e Museu Nacional do Traje e daModa) No âmbito destas celebrações, a entradanos Museus do IPM será gratuita (dia 14– só museus participantes – e dia 18 deMaio – todos os museus). Sites recomendados para mais infor-mação:http://www.ipmuseus.pt (em Português)http://icom.museum/jim.html (em Francês)http://icom.museum/imd.html (em Inglês)

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