no sÉculo xxi, a pesquisa no ensino superior … · 2012-07-11 · dilemas e desafios na...
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III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
NO SÉCULO XXI, A PESQUISA NO ENSINO SUPERIOR DEMANDA UM
ORIENTADOR OU UM COACH?
Andreza Roberta Rocha1
Esse estudo dedica-se à análise de uma experiência de ensino na qual
uma professora universitária foi procurada por uma aluna do curso de
Pedagogia para auxiliar na elaboração do seu Trabalho de Conclusão de
Curso (TCC). Nele, com vistas a contribuir com as discussões sobre o ensino
de escrita, investigamos o modo pelo qual a formação de um aluno como
pesquisador pode interferir positivamente na sua formação universitária.
Defendemos, conforme se verá, que a relação de um sujeito com a
escrita pode ser alterada a partir da relação que ele mantém (ou pode ser
estimulado a manter) com o ato de pesquisar.
Nossa investigação advém do fato de a experiência sobre a qual
incide o presente estudo ter colocado para a professora que atuou como co-
orientadora do referido TCC um desafio que pode ser equiparado aos
diversos dilemas que se colocam ao professor universitário: o de
proporcionar condições para uma formação acadêmica mais consistente
para o aluno.
A análise que apresentaremos no decorrer desse texto desenvolveu-
se com o objetivo de responder a duas questões:
1) quais foram as intervenções da professora que resultaram na
apresentação por parte da aluna de material escrito a ser trabalhado para a
composição da versão final do seu trabalho de conclusão de curso? e
2) como o processo de escrita de seu TCC possibilitou que a aluna se
deslocasse de uma identificação à professora para uma identificação ao
trabalho, a qual permitiu à aluna produzir um texto com as características
necessárias para ser aprovado como quesito para a obtenção do diploma no
Curso de Pedagogia?
1 Mestre em Educação FEUSP/GEPPEP
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
Como referência para a compreensão de uma experiência que, do
ponto de vista da aluna-pesquisadora nela envolvida, consistia em uma
segunda tentativa de escrita, recorremos aos trabalhos de Souza (2010); e
de Andrade (2008).
Souza (2010), que investiga aspectos concernentes ao sucesso
escolar num contexto mais propício ao fracasso, apresenta em sua reflexão
sobre o processo de aquisição de escrita raciocínios que se mostraram,
conforme se verá, bastantes esclarecedores para a análise dos dados
analisados no presente estudo.
De fato, considerar que o sujeito que se permite ascender à condição
de quem se apropria da escrita constrói para isso uma chave (Souza 2010:
59) que lhe serve de instrumento para avançar no aprendizado mostrou-se
algo bastante profícuo na tentativa de compreender os momentos de
passagem da inibição de escrever para a escrita de sucessivas produções
que vieram a compor a versão final do TCC.
Finalmente, com relação aos trabalhos consultados para uma
compreensão inicial dos dados sobre os quais se referem o presente estudo,
apresentam-se as contribuições advindas do trabalho de Andrade (2008): a
autora, que em sua dissertação de mestrado toma como objeto o processo
de escrita do texto acadêmico, analisa a produção de duas informantes,
diferenciando em sua reflexão o processo de ensino-aprendizagem e o de
transmissão.
A correlação estabelecida por Andrade (2008:55), para quem o
processo de ensino aprendizagem está ligado à via da reprodução e o de
transmissão, à ética da repetição real, “na qual existe espaço para as
palavras daquele que está sendo formado.” Andrade (2008:56), contribuiu
de modo particular na tentativa de compreender como uma aluna pode
realizar um deslocamento da posição de alguém inibido para escrever para
a posição de autor da escrita de uma pesquisa acadêmica.
Uma vez apresentados os trabalhos que nortearam a abordagem
inicial dos dados, passamos à apresentação das pessoas envolvidas na
experiência de ensino sobre a qual versa este estudo e, na sequência,
procedemos à descrição e à análise dos dados.
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DESCRIÇÃO DOS SUJEITOS ENVOLVIDOS
A PROFESSORA
A professora2
Com relação à atuação profissional, possui um período considerável
de prática no Ensino Fundamental, dedicando-se de modo particular ao
trabalho com turmas de alfabetização. O ano no qual se realizou a
experiência sobre a qual versa este trabalho foi seu ano de ingresso no
Ensino Superior. Apesar de ter ingressado recentemente nessa modalidade,
afirma ter se disposto a atuar como orientadora informal de um trabalho de
conclusão de curso por entender que, desde a pós-gradução, vem sendo
familiarizada com uma “cultura de formação pela pesquisa”.
procurada pela aluna para orientar a segunda tentativa
de escrita de seu TCC é graduada em Letras, tendo realizado, ainda,
Mestrado na área de Linguagem e Educação em uma Universidade da região
sudeste do Brasil, região na qual nasceu, reside e trabalha. Outro aspecto
concernente à sua formação trata-se da participação em um Grupo de
Estudos vinculado à Universidade na qual realizou a pós-graduação,
atividade que, nas palavras de X: “É uma das atividades que mais tenho
prazer em fazer, me faz sentir viva, além de ser meu vínculo atual com a
pesquisa, já que ainda não desenvolvi o projeto de Doutorado”.
A ALUNA
A aluna3
Os estudos universitários para Y deixaram as seguintes marcas: i ) o
grande número de leituras de textos que para ela eram “complicados e
difíceis de entender”; ii) “o fato de que os professores só falavam coisas
que se tornou autora do Trabalho de Conclusão de Curso
cujo processo de escrita originou a experiência aqui analisada contava com
vinte e nove anos quando procurou X para auxiliá-la. Havia concluído todas
as disciplinas do Curso de Licenciatura em Pedagogia, mas não pode obter o
diploma por não haver escrito o referido texto.
2 Adotaremos a letra X como pseudônimo para essa informante, que atuou como orientadora informal do TCC. 3 Adotaremos a letra Y como pseudônimo para essa informante, que procurou uma orientadora informal para auxiliá-la na redação de seu TCC.
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pela metade”, sem explicar bem e iii) as aulas, que considerava “curtas e
resumidas”. A respeito do curso de Licenciatura em Pedagogia, declara que
“fazer a faculdade foi a realização de um sonho de menina.”
No que se refere aos aspectos que aponta como positivos, Y indica o
fato de ter aprendido coisas novas e adquirido a habilidade de interpretar
leituras diferentes das que já conhecia.
O processo de escolarização de Y foi iniciado em uma escola rural. Na
época ela contava com onze anos de idade e morava na região Nordeste do
país. A informante se recorda de que a escola era para ela um “santuário
sagrado, a melhor coisa de sua vida”.
Apesar de não faltar e de tirar boas notas, a aluna não progrediu
cronologicamente de maneira rápida nos estudos porque precisou sair da
escola por várias vezes, tendo terminado o Ensino Médio com vinte e quatro
anos de idade, quando poderia tê-lo feito dois anos antes, caso não tivesse
estudado ininterruptamente.
Ao ingressar na Licenciatura em Pedagogia, Y tinha como expectativa
adquirir o diploma no Ensino Superior, não entendia que poderia exercer o
magistério. No entanto, sua formação universitária foi marcada por sua
atuação como estagiária em escolas de Educação Infantil e de Educação
Fundamental I, atividade que exerceu não apenas para cumprir as horas de
estágio presentes no currículo, mas também para garantir seu sustento e o
pagamento das mensalidades.
O primeiro encontro de Y com X se deu em função da realização
destes estágios: Y foi designada por dois anos consecutivos para ser
estagiária em classes na qual X era professora regente, período que
favoreceu que se instaurasse entre elas uma relação de amizade, a qual
estimulou Y a procurar X posteriormente para pedir auxílio na elaboração de
seu TCC.
Uma vez apresentados aos sujeitos envolvidos na experiência de
escrita a partir da qual desenvolveremos nossa reflexão sobre ensino-
aprendizagem de escrita e de pesquisa no ensino superior, passamos à
descrição do material coletado sobre o qual incide nossa análise.
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DESCRIÇÃO E APRESENTAÇÃO DOS DADOS
O material coletado para a realização do presente estudo é
constituído por dois tipos de registro escrito: a cópia dos emails
trocados entre a professora orientadora e a aluna e o diário de campo
da professora, os quais apresentamos com maiores detalhes no que
se segue:
CÓPIA DOS EMAILS TROCADOS ENTRE A PROFESSORA
ORIENTADORA E A ALUNA
Trata-se da comunicação via correio eletrônico realizada
durante o período de três meses, totalizando quarenta e sete emails
(vinte e nove enviados pela aluna e dezoito enviados pela
professora). Os emails foram classificados em quatro diferentes tipos,
conforme seu conteúdo4
1) Proposição de atividades: nos quais a professora apresentava
uma atividade com vistas a escrita do TCC.
:
2) Devolução de atividades: nos quais a aluna enviava o que havia
produzido a partir da solicitação da professora.
3) Comentários sobre atividades: nos quais a professora
comentava a produção da aluna.
4) Declarações sobre o processo de escrita da parte da aluna:
nos quais a aluna compartilhava suas impressões sobre o processo de
escrita.
4 Cumpre esclarecer que, na transcrição que realizamos, foram preservadas a ortografia, a pontuação e a digitação originais. Nomes, citações de autores e demais referências que pudessem revelar a identidade das informantes foram omitidos.
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O quadro a seguir exemplifica o tipo de email correspondente a
cada uma das categorias anteriormente apresentadas
Tipo de email
Exemplo
Proposição de
atividades
Primeira atividade para o TCC
Quarta-feira, 7 de Setembro de 2011 13:28
Oi Y!
Conforme combinamos, envio quatro materiais
para você: dê uma uma(sic) passada de olhos em
cada um e escolha dois para imprimir e ler de
verdade.
Quando você escolher os dois, me avisa por email
para que eu leia também e te ajude a resumir.
Nosso cronograma inicial é esse:
[...]
Se precisar me liga: (nº celular) ou (nº telefone
residencial)
Um grande abraço,
xxxx
Devolução de
atividades
RE: Trabalho para amanhã
Quinta-feira, 22 de Setembro de 2011 14:46
X fiz, a leitura e respondi, mas pedi no pc meu marido
me falou pelo telefone mesmo assim só achei esse a
noite te mando qua o encotrar, pode ser depois que
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meu marido chegar?
desculpe!!!
um abraço.
agora to lendo o txto do (sobrenome de um dos
autores consultados)(Pescei (sic) que fosse mulher
kkkk)
Comentários
sobre atividades
realizadas pela
aluna
Considere meu trabalho
Domingo, 16 de Outubro de 2011 13:43
Oi y ,
Não tenho como ver seu texto hoje. Recebi o
email da capa e vou te enviar arrumado. Do jeito
que está não está bom.
Duas coisas:
1) pense em um nome pro seu TCC.
2) faça valer meu trabalho e veja o questionário
corrigido. Ou seja: refaça o arquivo que você me
enviou, considerando a correção que fiz. Na
segunda tentativa, você ainda errou questões.
Um beijo
x
Bom dia
Sexta-feira, 30 de Setembro de 2011 6:24
Bom dia meu anjo, como você esta? Sei que você
tem muita coisa para fazer e ainda estou te dando
esse trabalhão, mas estou muito feliz comigo
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Declarações
sobre o
processo de
escrita da parte
da aluna
mesma apesar de não ter raciocínio para ligar os
testos fiz a leitura da tese e do outro testo e
escrevi como você me disse uma vez as frases
que considerei importantes, agora estou ansiosa
pela resposta da pro que não respondeu ao email
mandei no sábado e na semana. Esperando
também sua ajuda de como fazer o novo texto, o
meu não encaixa e frio na barriga não sai, nem
durmo mais.
Desculpe me sempre por ta sendo tão chata te
incomodando, mas preciso de sua ajuda anjo, essa
semana fiz muitas idas ao medico com o (nome
do filho)ta tudo bem exames. (sic)
Obrigada por tudo...........
Tenha um ótimo final de semana você e sua
família.
Beijos Y
Quadro 1: Tipos de email
DIÁRIO DE CAMPO DA PROFESSORA
O diário de campo é composto por oito folhas de sulfite
dobradas ao meio de modo a parecer um caderno pequeno. Neles as
anotações foram manuscritas e se referem a seis diferentes datas. As
observações apresentam registradas consistem em a) impressões que
a professora teve sobre a aluna durante a escrita do texto; b)
comentários sobre a produção da aluna e c) descrição dos
procedimentos de ensino feitos pela professora.
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O quadro a seguir apresenta trechos referentes a esses tipos de
registros.
Tipo de registro Exemplo
Impressões que a professora
teve sobre a aluna durante a
escrita do texto
5/9
9. [...] Fiquei impressio
10. nada c/ o nervosismo. Ela
perdia
11. o fôlego de tentar repetir
o que
12. a professora pedira para
fazer.
13. Outra coisa, ela que é
super cri-
14. cri em organizar coisas
tinha
15. cada coisa do material em
um
16. canto.
Comentários sobre a produção da
aluna
9/9
1. E não é que ela escreve?
2. Surpeendi com a
produção
3. da Y.
Descrição dos procedimentos de
ensino feitos pela professora
8/9
4. Passei uma estrutura de
texto
5. p/ ela escrever/preencher e
ampliar. Vamos
6. ver no que dá.
Quadro 2: Tipos de registro no Diário de Campo
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Metodologia
A organização do material recolhido deu-se inicialmente pela
ordenação cronológica dos emails, os quais em seguida foram
separados em sequências conforme a temática sobre a qual
versavam.
Uma vez realizada essa organização preliminar, o conjunto de
emails foi organizado em diversas sequências, sendo que duas foram
selecionadas para serem analisadas. Cumpre esclarecer que, nesse
momento de nosso estudo, tomamos como referência para a análise
dos dados as contribuições de Osakabe (2002).
Tal escolha se deu porque, no trabalho que desenvolve sobre as
formações imaginárias presentes no discurso, Osakabe, a partir das
contribuições de Pêcheux (1975) sobre o jogo de imagens presentes
no discurso, defende a necessidade de se refletir sobre ”a própria
natureza do ato que A pratica ao falar de determinada forma e a
maneira e da natureza do ato que A visa em B.” (Osakabe:2002:55).
No contexto do presente estudo, no qual nos propomos a
refletir sobre o modo como a relação de uma pessoa com a escrita foi
modificada a partir da relação que Y passou a estabelecer com a
pesquisa em função do modo como X conduziu o percurso de
elaboração do TCC de Y, as elaborações de Pêcheux recuperadas por
Osakabe permitiram a sistematização das marcas textuais que
indicaram a mudança da posição subjetiva de Y.
Com vistas a melhor explicitar o percurso da análise dos dados
nesse estudo, reproduzimos o esquema que sistematiza as
considerações de Pêcheux sobre as formações imaginárias:
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Expressão
designando as
formações
imaginárias
Significado da
Expressão
Questão implícita
cuja “resposta”
sustenta a
formação
imaginária
correspondente
A
IA(A) Imagem do lugar de A
pelo sujeito situado
em A
“Quem sou eu para
lhe falar assim?”
IA(B) Imagem do lugar de B
pelo sujeito situado
em A
“Quem é ele para
eu lhe falar
assim?”
B
IB(B) Imagem do lugar de B
pelo sujeito situado
em B
“Quem sou eu para
que ele me fale
assim?”
IB(A) Imagem do lugar de A
pelo sujeito situado
em B
“Quem é ele para
que ele me fale
assim?”
Os interlocutores e o jogo de imagens
As questões implícitas cujas respostas sustentariam a formação
imaginária correspondente foram transpostas para o contexto desse
trabalho de modo a comporem uma série de perguntas que
nortearam a análise das sequências de emails, dos quais destacamos
excertos que auxiliaram na tentativa de compreender: a) Quem X
acha que é para falar a Y do modo como o faz? b) Quem X pensa que
Y é para lhe falar como o faz?; Quem Y pensa que é para que X lhe
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fale do modo como o faz? e d) Quem Y pensa que X é para que lhe
fale do modo como o faz?
Assim, no que se segue apresentamos a primeira sequência de
emails selecionada para análise, a partir da qual elencamos
elementos sobre as formações imaginárias que se pode apreender a
partir da leitura dos emails nela contidos.
Sequência 1
A Sequência 1 é composta por cinco emails, trocados num
período de dois dias. Remete à fase inicial do trabalho e é iniciada por
um email de X para Y, no qual, em resumo, a professora apresenta à
aluna os primeiros passos a serem dados na consecução do trabalho.
Número e data do email Emissor-destinatário Síntese
Email 1: 7/9 X para Y Delineamento das ações
iniciais para consecução do
TCC
Email 2: 8/9 X para Y Tentativa de correção
sobre informações
enviadas anteriormente
Email 3:8/9 Y para X Indicação de erro
cometido pela professora
e devolução de tarefa
proposta
Email 4: 9/9 X para Y Comentário sobre
atividade pela aluna
Quadro 4: Emails da Sequência 1
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A seguir, reproduzimos o primeiro email:
l.1 Conforme combinamos, envio quatro materiais para você: dê uma passada de olhos
em cada um e
l.2 escolha dois para imprimir e ler de verdade.
l.3 Quando você escolher os dois, me avisa por email para que eu leia também e te ajude
a resumir. Nosso
l. 4 Cronograma inicial
l. 5 7/9, Escolher dois artigos e enviar para mim os nomes HOJE até às 20h00
l. 6 8/9: Entrar na internet às 17h30m para ver o arquivo que te mandarei para fazer o
texto que você vai mostrar para a sua professora no sábado.
l. 7 9/9: Enviar para mim resposta da atividade da quinta-feira até as 11 horas manhã (vou
sair do trabalho e
l. 8 Corrigir o que vc escreveu. Te ligo quando enviar. Aí vc já deixa impresso para o
sábado.)
l. 9 Veja a lista de links:
l. 10 aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
l.11 Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
l. 12 Bbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbb
l. 13 Ccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccc
l. 14 dddddddddddddddddddddddddddddddddddddddddddddddd
l. 15 Se precisar me liga: (telefone celular) ou (telefone residencial)
l. 16 Um grande abraço,
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
l. 17 X
A leitura detalhada do email permite a identificação de quatro
diferentes momentos: um momento inicial (linhas 1 a 4), no qual a
professora apresenta de modo geral o que aluna deve fazer para
iniciar o trabalho; um segundo momento (linhas 5 a 9), em que é
apresentado um cronograma das atividades e um terceiro momento (
linhas 10 a 17) no qual são apresentados links a serem lidos pela
aluna. O quarto momento (linhas 17 a 19) trata-se de uma
despedida, na qual a Professora abre canal para a utilização de outro
meio de contato, o telefone.
A partir de algumas ações citadas e/ou relatadas por X no Email
1, uma lista composta por indícios sobre a imagem que X faz de Y,
uma vez que é possível compreender que, para X, Y é alguém que:
1) Precisa ser lembrada do que já foi acordado entre ambas (l.1
“Conforme combinamos”
2) Precisa de ajuda na execução de tarefas (l.3 me avisa por email
para que eu leia também e te ajude)
3) Precisa ser lembrada enfaticamente dos prazos que deve cumprir
(observe-se o uso de caixa alta) (l. enviar para mim os nomes HOJE
até às 20h00)
4) Precisa ser informada minuciosamente sobre o que deve fazer
(linhas 1 e 2 l. 5 a 10)
Nesse contexto, a professora, além de chamar para si as
tarefas que parecem corresponder ao que julga serem as
necessidades da aluna, com relação à escrita do TCC, delega para a
aluna diversas tarefas,as quais sistematizamos no quadro a seguir:
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Ler de modo preliminar
dos materiais enviados
l. 1 “envio quatro materiais para você: de
uma passada de olhos em cada um” […]
Selecionar os materiais
enviados
l.2 “ escolha dois para imprimir” […]
Ler de modo aprofundado
dos materiais enviados
l.2 “[…] e ler de verdade”
Devolver de atividade
proposta para uma data
determinada
l.5 “Escolher dois e enviar para mim hoje”
Acessar na internet em
horário determinado
l. 6 “Entrar na internet às 17h30m para ver o
arquivo que te mandarei […]”
Responder atividade
proposta para uma data
internet
l.8 “ Enviar para mim resposta da atividade
de quinta até as 11 horas da manhã”
Devolver atividade
proposta para
determinada data
l.8 “Enviar para mim resposta da atividade
de quinta até as 11 horas da manhã”
Utilizar material enviado l. 10: “Veja a lista de links:”
Quadro 5 : Tarefas propostas para Y
Nesse contexto, no que se refere a um dos objetivos de nossa
investigação, qual seja, o de fazer uma levantamento das ações
praticadas por X que levaram a aluna a uma modificação de sua
posição subjetiva com relação à escrita, o Email 1 permite que sejam
elencadas as seguintes as ações praticadas por X
— dar peso a acordos estabelecidos com a aluna
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— determinar as etapas a serem realizadas pela aluna no
processo de realização do trabalho
— conferir espaço para que algumas decisões sejam tomadas
pela aluna
— dispor-se a ajudar na execução das tarefas propostas
Além dessas ações, a leitura do email enviado por X permite a
identificação de uma ação que repercutiu de modo particular em Y: X
cometeu um erro: apesar de ter declarado que enviou quatro
materiais, na realidade, enviou três, porque o link 1 era igual ao link
2.
O erro de X teve como consequência duas ações da parte de Y:
1) ligar para a professora e 2) escrever de maneira mais precisa do
que o padrão de seus emails.
Apesar de aproveitar a possibilidade sugerida pela professora
de fazer contato por telefone, conforme pode-se depreender a partir
da leitura do email a seguir, aparentemente, Y não deu conta de
explicar o problema que o erro de X causou, de modo que a
professora, sem perceber o erro que cometera, escreve para Y.
l.1 Bom dia flor do dia!
l.2 Legal você ter me ligado pra contar que teve problemas com o
email que enviei. Pena que não pude falar
l.3 Muito: já havia passado a tarde envolvida com pesquisa e não
queria abusar da paciência do XXX, que
l. 4 estava vendo um filme comigo.
l. 5 Re-envio todos os links: dessa vez pus números, pra vc ver
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todos?
l. 6 1)aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
l. 7 2)aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
l. 8 3)bbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbb
l. 9 4)cccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccc
l.
10
Bjo e até mais tarde (lembre que espero saber sua segunda
escolha por email até as 11 horas. A primeira vc
l.11 já disse que é o texto da nome de revista da área da educação)
Ao enviar novamente os links para Y sem se dar conta que dois
deles são iguais, X obriga aluna a esclarecer o equívoco de maneira
pontual, como podemos ver a seguir:
l.1 Bom dia princesa
l.2 Os links 1 e2 são iguais eu vou ficar com o 3 e 4 gostei mais
vooou i(sic) mprimir os tres pode. (sic) é que clicando
l.3 neles não tá abrindo ai colei e deu certo.
l.4 Copiei a agendinha da semana pode deixar.
l.5 Beijos
A leitura do email escrito por Y, embora bastante dificultada
pelos erros de digitação e pela ausência de pontuação, permite o
levantamento de diversas ações por parte da aluna, as quais
apresentamos no quadro a seguir:
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
Indicação do erro da
professora
l 2 “Os links 1 e2 são iguais”
Seleção de dois textos
para trabalhar
l. 2 “eu vou ficar com o 3 e 4 gostei mais”
Pedido de autorização l 2 “vooou imprimir os tres pode.”
Explicação sobre como
resolveu um problema
l. 1-2 “é que clicando neles não tá
abrindo ai colei e deu certo.”
Declaração de
compromisso com o
cronograma proposto
l.3 Copiei a agendinha da semana pode
deixar.
Quadro 6: Ações desempenhadas por Y – Email 3
A atitude tomada por Y de fazer X entender algo que estava
prejudicando o andamento do trabalho, permite recuperarmos as
contribuições de Souza 2010 com relação à mudança de posição que
um aluno pode assumir com relação ao aprendizado.
De fato, as reflexões desenvolvidas pela autora em função de
uma experiência vivenciada no acompanhamento de um grupo de
alunos do ensino fundamental com dificuldades de aprendizagem, os
quais estavam imersos em um contexto de marcado pelo fracasso
escolar com relação à aquisição da língua escrita, permitem uma
série de analogias com a experiência vivenciada por X e Y.
Em seu trabalho, Souza foca sua argumentação sobre a
possibilidade de sucesso escolar tomando como referência um dos
alunos envolvidos na pesquisa-ação que desenvolveu apontando
como “momento de virada”, a oportunidade em que a partir de uma
intervenção da pesquisadora, o aluno passa a agir de um outro modo.
A partir do momento em que uma ação da professora levou o
aluno a entender que precisaria renovar-se, mudar seu modo de
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
proceder, caso quisesse atingir seus objetivos (o aluno desejava
apresentar seu trabalho numa coletânea feita pela classe, porém,
descontente com seu desempenho, inutilizou sua própria produção,
passando a, na sequência, culpar os outros pelo fato de que sua obra
não faria parte do trabalho final); construiu uma chave para realizar o
seu desejo de ver sua produção exibida junto com a dos demais:
tendo solicitado apoio da professora regente, trabalhou intensamente
na realização de um trabalho digno, a seu ver, de ser exibido como
algo de sua autoria.
No caso da experiência analisada no presente estudo, podemos
entender que, para além das ações sistemáticas para levar a aluna a
produzir, a falta da professora contribuiu para que a aluna muda-se
sua posição: de alguém que fora definida como alguém que não sabe
ler5
O quadro a seguir apresenta excertos, mais precisamente, os
vocativos retirados da segunda sequência de emails.
, Y passou a apresentar-se para si mesma e para a professora
como alguém que lia e que podia interagir com os outros, a partir de
seu trabalho.
Data do email
Vocativo
8/9 Princesa
12/9 querida
22/9 X
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A leitura e a comparação dos vocativos empregados por Y ao
endereçar-se a X indicam uma significativa mudança: o tratamento
carinhoso inicial, que confere a X (“Princesa”) um estatuto de realeza,
passa para um tratamento mais próximo (”querida”), para
finalmente, perder qualquer alusão idealizada ou mesmo da dimensão
afetiva. Y passa a tratar X pelo prenome.
Entendemos que essa mudança de tratamento decorre de uma
mudança na imagem que Y faz de X. O rompimento da identificação
da aluna a um ideal de professora, ou melhor, a uma professora
ideal, diante de quem apenas poderia receber ajuda para redigir seu
TCC permite que a aluna passe a agir segundo o que Andrade
(2008:56) aponta como ética de repetição do real, que “implica que o
sujeito tenha uma relação diferente com o saber, envolvendo-se
efetivamente na sua elaboração.”
Considerações finais
O percurso realizado nessa investigação leva-nos elaborar, a
seguinte resposta para pergunta que intitula o presente estudo: para
além de um coach6, a pesquisa no ensino superior e, de modo geral o
processo de ensino-aprendizagem por nós examinado, que é
sintomático da época em que nos encontramos7
1) a posição dos envolvidos seja estabelecida a partir e em função
do trabalho desenvolvido conjuntamente
, demanda que:
6 especialista que, na atualidade, dedica-se ao aprimoramento de pessoas que desejam avançar em seu desempenho profissional e/ou pessoal 7 Caracterizo como retrato do momento atual o fato de já não causar espanto o fato de um aluno chegar ao nível superior sem uma instrumentalização mínima no que se refere a técnicas de estudo, metodologia de pesquisa entre outros conhecimentos e outras habilidades essenciais para realização da escrita de um TCC.
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
2) Que o professor considere a relação que mantém com o saber e
reflita como isso interfere no desempenho que obtém na
transmissão/produção de conhecimento
Mais especificamente com relação às perguntas que direcionaram
o exame dos dados, destacamos a responsabilidade assumida pela
professora de organizar para a aluna cada etapa a ser realizada no
processo de escrita do trabalho como principal intervenção, como
elemento fundamental para o sucesso na realização do TCC de Y,
texto que, devidamente concluído e apresentado pela banca
examinadora competente, obteve a média oito.
Quanto ao deslocamento da posição de Y, da saída da aluna de
uma posição de inércia para a de trabalho, entendemos a falta de X
como índice de uma falta mais significativa, a falta que é constitutiva
do sujeito e que, ao ser revelada para Y, convocou-a a criar soluções
para não só o erro de comunicação inicial, mas para todos os
problemas que se apresentaram no decorrer da escrita de seu TCC.
Referências
ANDRADE, Emari. Tessitura da escrita acadêmica: aprender a e
ao escrever. 2008. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade
de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
OSAKABE, Akira. Argumentação e discurso político. São Paulo:
Martins Fontes, 2002
SOUZA, Edilene Santos. Escrita e sucesso escolar: um diálogo
entre psicanálise e educação. 2010. Dissertação (Mestrado em
Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2010.