no sÉculo xxi, a pesquisa no ensino superior … · 2012-07-11 · dilemas e desafios na...

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III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE NO SÉCULO XXI, A PESQUISA NO ENSINO SUPERIOR DEMANDA UM ORIENTADOR OU UM COACH? Andreza Roberta Rocha 1 Esse estudo dedica-se à análise de uma experiência de ensino na qual uma professora universitária foi procurada por uma aluna do curso de Pedagogia para auxiliar na elaboração do seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Nele, com vistas a contribuir com as discussões sobre o ensino de escrita, investigamos o modo pelo qual a formação de um aluno como pesquisador pode interferir positivamente na sua formação universitária. Defendemos, conforme se verá, que a relação de um sujeito com a escrita pode ser alterada a partir da relação que ele mantém (ou pode ser estimulado a manter) com o ato de pesquisar. Nossa investigação advém do fato de a experiência sobre a qual incide o presente estudo ter colocado para a professora que atuou como co- orientadora do referido TCC um desafio que pode ser equiparado aos diversos dilemas que se colocam ao professor universitário: o de proporcionar condições para uma formação acadêmica mais consistente para o aluno. A análise que apresentaremos no decorrer desse texto desenvolveu- se com o objetivo de responder a duas questões: 1) quais foram as intervenções da professora que resultaram na apresentação por parte da aluna de material escrito a ser trabalhado para a composição da versão final do seu trabalho de conclusão de curso? e 2) como o processo de escrita de seu TCC possibilitou que a aluna se deslocasse de uma identificação à professora para uma identificação ao trabalho, a qual permitiu à aluna produzir um texto com as características necessárias para ser aprovado como quesito para a obtenção do diploma no Curso de Pedagogia? 1 Mestre em Educação FEUSP/GEPPEP

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III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

NO SÉCULO XXI, A PESQUISA NO ENSINO SUPERIOR DEMANDA UM

ORIENTADOR OU UM COACH?

Andreza Roberta Rocha1

Esse estudo dedica-se à análise de uma experiência de ensino na qual

uma professora universitária foi procurada por uma aluna do curso de

Pedagogia para auxiliar na elaboração do seu Trabalho de Conclusão de

Curso (TCC). Nele, com vistas a contribuir com as discussões sobre o ensino

de escrita, investigamos o modo pelo qual a formação de um aluno como

pesquisador pode interferir positivamente na sua formação universitária.

Defendemos, conforme se verá, que a relação de um sujeito com a

escrita pode ser alterada a partir da relação que ele mantém (ou pode ser

estimulado a manter) com o ato de pesquisar.

Nossa investigação advém do fato de a experiência sobre a qual

incide o presente estudo ter colocado para a professora que atuou como co-

orientadora do referido TCC um desafio que pode ser equiparado aos

diversos dilemas que se colocam ao professor universitário: o de

proporcionar condições para uma formação acadêmica mais consistente

para o aluno.

A análise que apresentaremos no decorrer desse texto desenvolveu-

se com o objetivo de responder a duas questões:

1) quais foram as intervenções da professora que resultaram na

apresentação por parte da aluna de material escrito a ser trabalhado para a

composição da versão final do seu trabalho de conclusão de curso? e

2) como o processo de escrita de seu TCC possibilitou que a aluna se

deslocasse de uma identificação à professora para uma identificação ao

trabalho, a qual permitiu à aluna produzir um texto com as características

necessárias para ser aprovado como quesito para a obtenção do diploma no

Curso de Pedagogia?

1 Mestre em Educação FEUSP/GEPPEP

III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Como referência para a compreensão de uma experiência que, do

ponto de vista da aluna-pesquisadora nela envolvida, consistia em uma

segunda tentativa de escrita, recorremos aos trabalhos de Souza (2010); e

de Andrade (2008).

Souza (2010), que investiga aspectos concernentes ao sucesso

escolar num contexto mais propício ao fracasso, apresenta em sua reflexão

sobre o processo de aquisição de escrita raciocínios que se mostraram,

conforme se verá, bastantes esclarecedores para a análise dos dados

analisados no presente estudo.

De fato, considerar que o sujeito que se permite ascender à condição

de quem se apropria da escrita constrói para isso uma chave (Souza 2010:

59) que lhe serve de instrumento para avançar no aprendizado mostrou-se

algo bastante profícuo na tentativa de compreender os momentos de

passagem da inibição de escrever para a escrita de sucessivas produções

que vieram a compor a versão final do TCC.

Finalmente, com relação aos trabalhos consultados para uma

compreensão inicial dos dados sobre os quais se referem o presente estudo,

apresentam-se as contribuições advindas do trabalho de Andrade (2008): a

autora, que em sua dissertação de mestrado toma como objeto o processo

de escrita do texto acadêmico, analisa a produção de duas informantes,

diferenciando em sua reflexão o processo de ensino-aprendizagem e o de

transmissão.

A correlação estabelecida por Andrade (2008:55), para quem o

processo de ensino aprendizagem está ligado à via da reprodução e o de

transmissão, à ética da repetição real, “na qual existe espaço para as

palavras daquele que está sendo formado.” Andrade (2008:56), contribuiu

de modo particular na tentativa de compreender como uma aluna pode

realizar um deslocamento da posição de alguém inibido para escrever para

a posição de autor da escrita de uma pesquisa acadêmica.

Uma vez apresentados os trabalhos que nortearam a abordagem

inicial dos dados, passamos à apresentação das pessoas envolvidas na

experiência de ensino sobre a qual versa este estudo e, na sequência,

procedemos à descrição e à análise dos dados.

III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

DESCRIÇÃO DOS SUJEITOS ENVOLVIDOS

A PROFESSORA

A professora2

Com relação à atuação profissional, possui um período considerável

de prática no Ensino Fundamental, dedicando-se de modo particular ao

trabalho com turmas de alfabetização. O ano no qual se realizou a

experiência sobre a qual versa este trabalho foi seu ano de ingresso no

Ensino Superior. Apesar de ter ingressado recentemente nessa modalidade,

afirma ter se disposto a atuar como orientadora informal de um trabalho de

conclusão de curso por entender que, desde a pós-gradução, vem sendo

familiarizada com uma “cultura de formação pela pesquisa”.

procurada pela aluna para orientar a segunda tentativa

de escrita de seu TCC é graduada em Letras, tendo realizado, ainda,

Mestrado na área de Linguagem e Educação em uma Universidade da região

sudeste do Brasil, região na qual nasceu, reside e trabalha. Outro aspecto

concernente à sua formação trata-se da participação em um Grupo de

Estudos vinculado à Universidade na qual realizou a pós-graduação,

atividade que, nas palavras de X: “É uma das atividades que mais tenho

prazer em fazer, me faz sentir viva, além de ser meu vínculo atual com a

pesquisa, já que ainda não desenvolvi o projeto de Doutorado”.

A ALUNA

A aluna3

Os estudos universitários para Y deixaram as seguintes marcas: i ) o

grande número de leituras de textos que para ela eram “complicados e

difíceis de entender”; ii) “o fato de que os professores só falavam coisas

que se tornou autora do Trabalho de Conclusão de Curso

cujo processo de escrita originou a experiência aqui analisada contava com

vinte e nove anos quando procurou X para auxiliá-la. Havia concluído todas

as disciplinas do Curso de Licenciatura em Pedagogia, mas não pode obter o

diploma por não haver escrito o referido texto.

2 Adotaremos a letra X como pseudônimo para essa informante, que atuou como orientadora informal do TCC. 3 Adotaremos a letra Y como pseudônimo para essa informante, que procurou uma orientadora informal para auxiliá-la na redação de seu TCC.

III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

pela metade”, sem explicar bem e iii) as aulas, que considerava “curtas e

resumidas”. A respeito do curso de Licenciatura em Pedagogia, declara que

“fazer a faculdade foi a realização de um sonho de menina.”

No que se refere aos aspectos que aponta como positivos, Y indica o

fato de ter aprendido coisas novas e adquirido a habilidade de interpretar

leituras diferentes das que já conhecia.

O processo de escolarização de Y foi iniciado em uma escola rural. Na

época ela contava com onze anos de idade e morava na região Nordeste do

país. A informante se recorda de que a escola era para ela um “santuário

sagrado, a melhor coisa de sua vida”.

Apesar de não faltar e de tirar boas notas, a aluna não progrediu

cronologicamente de maneira rápida nos estudos porque precisou sair da

escola por várias vezes, tendo terminado o Ensino Médio com vinte e quatro

anos de idade, quando poderia tê-lo feito dois anos antes, caso não tivesse

estudado ininterruptamente.

Ao ingressar na Licenciatura em Pedagogia, Y tinha como expectativa

adquirir o diploma no Ensino Superior, não entendia que poderia exercer o

magistério. No entanto, sua formação universitária foi marcada por sua

atuação como estagiária em escolas de Educação Infantil e de Educação

Fundamental I, atividade que exerceu não apenas para cumprir as horas de

estágio presentes no currículo, mas também para garantir seu sustento e o

pagamento das mensalidades.

O primeiro encontro de Y com X se deu em função da realização

destes estágios: Y foi designada por dois anos consecutivos para ser

estagiária em classes na qual X era professora regente, período que

favoreceu que se instaurasse entre elas uma relação de amizade, a qual

estimulou Y a procurar X posteriormente para pedir auxílio na elaboração de

seu TCC.

Uma vez apresentados aos sujeitos envolvidos na experiência de

escrita a partir da qual desenvolveremos nossa reflexão sobre ensino-

aprendizagem de escrita e de pesquisa no ensino superior, passamos à

descrição do material coletado sobre o qual incide nossa análise.

III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

DESCRIÇÃO E APRESENTAÇÃO DOS DADOS

O material coletado para a realização do presente estudo é

constituído por dois tipos de registro escrito: a cópia dos emails

trocados entre a professora orientadora e a aluna e o diário de campo

da professora, os quais apresentamos com maiores detalhes no que

se segue:

CÓPIA DOS EMAILS TROCADOS ENTRE A PROFESSORA

ORIENTADORA E A ALUNA

Trata-se da comunicação via correio eletrônico realizada

durante o período de três meses, totalizando quarenta e sete emails

(vinte e nove enviados pela aluna e dezoito enviados pela

professora). Os emails foram classificados em quatro diferentes tipos,

conforme seu conteúdo4

1) Proposição de atividades: nos quais a professora apresentava

uma atividade com vistas a escrita do TCC.

:

2) Devolução de atividades: nos quais a aluna enviava o que havia

produzido a partir da solicitação da professora.

3) Comentários sobre atividades: nos quais a professora

comentava a produção da aluna.

4) Declarações sobre o processo de escrita da parte da aluna:

nos quais a aluna compartilhava suas impressões sobre o processo de

escrita.

4 Cumpre esclarecer que, na transcrição que realizamos, foram preservadas a ortografia, a pontuação e a digitação originais. Nomes, citações de autores e demais referências que pudessem revelar a identidade das informantes foram omitidos.

III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

O quadro a seguir exemplifica o tipo de email correspondente a

cada uma das categorias anteriormente apresentadas

Tipo de email

Exemplo

Proposição de

atividades

Primeira atividade para o TCC

Quarta-feira, 7 de Setembro de 2011 13:28

Oi Y!

Conforme combinamos, envio quatro materiais

para você: dê uma uma(sic) passada de olhos em

cada um e escolha dois para imprimir e ler de

verdade.

Quando você escolher os dois, me avisa por email

para que eu leia também e te ajude a resumir.

Nosso cronograma inicial é esse:

[...]

Se precisar me liga: (nº celular) ou (nº telefone

residencial)

Um grande abraço,

xxxx

Devolução de

atividades

RE: Trabalho para amanhã

Quinta-feira, 22 de Setembro de 2011 14:46

X fiz, a leitura e respondi, mas pedi no pc meu marido

me falou pelo telefone mesmo assim só achei esse a

noite te mando qua o encotrar, pode ser depois que

III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

meu marido chegar?

desculpe!!!

um abraço.

agora to lendo o txto do (sobrenome de um dos

autores consultados)(Pescei (sic) que fosse mulher

kkkk)

Comentários

sobre atividades

realizadas pela

aluna

Considere meu trabalho

Domingo, 16 de Outubro de 2011 13:43

Oi y ,

Não tenho como ver seu texto hoje. Recebi o

email da capa e vou te enviar arrumado. Do jeito

que está não está bom.

Duas coisas:

1) pense em um nome pro seu TCC.

2) faça valer meu trabalho e veja o questionário

corrigido. Ou seja: refaça o arquivo que você me

enviou, considerando a correção que fiz. Na

segunda tentativa, você ainda errou questões.

Um beijo

x

Bom dia

Sexta-feira, 30 de Setembro de 2011 6:24

Bom dia meu anjo, como você esta? Sei que você

tem muita coisa para fazer e ainda estou te dando

esse trabalhão, mas estou muito feliz comigo

III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Declarações

sobre o

processo de

escrita da parte

da aluna

mesma apesar de não ter raciocínio para ligar os

testos fiz a leitura da tese e do outro testo e

escrevi como você me disse uma vez as frases

que considerei importantes, agora estou ansiosa

pela resposta da pro que não respondeu ao email

mandei no sábado e na semana. Esperando

também sua ajuda de como fazer o novo texto, o

meu não encaixa e frio na barriga não sai, nem

durmo mais.

Desculpe me sempre por ta sendo tão chata te

incomodando, mas preciso de sua ajuda anjo, essa

semana fiz muitas idas ao medico com o (nome

do filho)ta tudo bem exames. (sic)

Obrigada por tudo...........

Tenha um ótimo final de semana você e sua

família.

Beijos Y

Quadro 1: Tipos de email

DIÁRIO DE CAMPO DA PROFESSORA

O diário de campo é composto por oito folhas de sulfite

dobradas ao meio de modo a parecer um caderno pequeno. Neles as

anotações foram manuscritas e se referem a seis diferentes datas. As

observações apresentam registradas consistem em a) impressões que

a professora teve sobre a aluna durante a escrita do texto; b)

comentários sobre a produção da aluna e c) descrição dos

procedimentos de ensino feitos pela professora.

III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

O quadro a seguir apresenta trechos referentes a esses tipos de

registros.

Tipo de registro Exemplo

Impressões que a professora

teve sobre a aluna durante a

escrita do texto

5/9

9. [...] Fiquei impressio

10. nada c/ o nervosismo. Ela

perdia

11. o fôlego de tentar repetir

o que

12. a professora pedira para

fazer.

13. Outra coisa, ela que é

super cri-

14. cri em organizar coisas

tinha

15. cada coisa do material em

um

16. canto.

Comentários sobre a produção da

aluna

9/9

1. E não é que ela escreve?

2. Surpeendi com a

produção

3. da Y.

Descrição dos procedimentos de

ensino feitos pela professora

8/9

4. Passei uma estrutura de

texto

5. p/ ela escrever/preencher e

ampliar. Vamos

6. ver no que dá.

Quadro 2: Tipos de registro no Diário de Campo

III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Metodologia

A organização do material recolhido deu-se inicialmente pela

ordenação cronológica dos emails, os quais em seguida foram

separados em sequências conforme a temática sobre a qual

versavam.

Uma vez realizada essa organização preliminar, o conjunto de

emails foi organizado em diversas sequências, sendo que duas foram

selecionadas para serem analisadas. Cumpre esclarecer que, nesse

momento de nosso estudo, tomamos como referência para a análise

dos dados as contribuições de Osakabe (2002).

Tal escolha se deu porque, no trabalho que desenvolve sobre as

formações imaginárias presentes no discurso, Osakabe, a partir das

contribuições de Pêcheux (1975) sobre o jogo de imagens presentes

no discurso, defende a necessidade de se refletir sobre ”a própria

natureza do ato que A pratica ao falar de determinada forma e a

maneira e da natureza do ato que A visa em B.” (Osakabe:2002:55).

No contexto do presente estudo, no qual nos propomos a

refletir sobre o modo como a relação de uma pessoa com a escrita foi

modificada a partir da relação que Y passou a estabelecer com a

pesquisa em função do modo como X conduziu o percurso de

elaboração do TCC de Y, as elaborações de Pêcheux recuperadas por

Osakabe permitiram a sistematização das marcas textuais que

indicaram a mudança da posição subjetiva de Y.

Com vistas a melhor explicitar o percurso da análise dos dados

nesse estudo, reproduzimos o esquema que sistematiza as

considerações de Pêcheux sobre as formações imaginárias:

III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Expressão

designando as

formações

imaginárias

Significado da

Expressão

Questão implícita

cuja “resposta”

sustenta a

formação

imaginária

correspondente

A

IA(A) Imagem do lugar de A

pelo sujeito situado

em A

“Quem sou eu para

lhe falar assim?”

IA(B) Imagem do lugar de B

pelo sujeito situado

em A

“Quem é ele para

eu lhe falar

assim?”

B

IB(B) Imagem do lugar de B

pelo sujeito situado

em B

“Quem sou eu para

que ele me fale

assim?”

IB(A) Imagem do lugar de A

pelo sujeito situado

em B

“Quem é ele para

que ele me fale

assim?”

Os interlocutores e o jogo de imagens

As questões implícitas cujas respostas sustentariam a formação

imaginária correspondente foram transpostas para o contexto desse

trabalho de modo a comporem uma série de perguntas que

nortearam a análise das sequências de emails, dos quais destacamos

excertos que auxiliaram na tentativa de compreender: a) Quem X

acha que é para falar a Y do modo como o faz? b) Quem X pensa que

Y é para lhe falar como o faz?; Quem Y pensa que é para que X lhe

III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

fale do modo como o faz? e d) Quem Y pensa que X é para que lhe

fale do modo como o faz?

Assim, no que se segue apresentamos a primeira sequência de

emails selecionada para análise, a partir da qual elencamos

elementos sobre as formações imaginárias que se pode apreender a

partir da leitura dos emails nela contidos.

Sequência 1

A Sequência 1 é composta por cinco emails, trocados num

período de dois dias. Remete à fase inicial do trabalho e é iniciada por

um email de X para Y, no qual, em resumo, a professora apresenta à

aluna os primeiros passos a serem dados na consecução do trabalho.

Número e data do email Emissor-destinatário Síntese

Email 1: 7/9 X para Y Delineamento das ações

iniciais para consecução do

TCC

Email 2: 8/9 X para Y Tentativa de correção

sobre informações

enviadas anteriormente

Email 3:8/9 Y para X Indicação de erro

cometido pela professora

e devolução de tarefa

proposta

Email 4: 9/9 X para Y Comentário sobre

atividade pela aluna

Quadro 4: Emails da Sequência 1

III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

A seguir, reproduzimos o primeiro email:

l.1 Conforme combinamos, envio quatro materiais para você: dê uma passada de olhos

em cada um e

l.2 escolha dois para imprimir e ler de verdade.

l.3 Quando você escolher os dois, me avisa por email para que eu leia também e te ajude

a resumir. Nosso

l. 4 Cronograma inicial

l. 5 7/9, Escolher dois artigos e enviar para mim os nomes HOJE até às 20h00

l. 6 8/9: Entrar na internet às 17h30m para ver o arquivo que te mandarei para fazer o

texto que você vai mostrar para a sua professora no sábado.

l. 7 9/9: Enviar para mim resposta da atividade da quinta-feira até as 11 horas manhã (vou

sair do trabalho e

l. 8 Corrigir o que vc escreveu. Te ligo quando enviar. Aí vc já deixa impresso para o

sábado.)

l. 9 Veja a lista de links:

l. 10 aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

l.11 Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

l. 12 Bbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbb

l. 13 Ccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccc

l. 14 dddddddddddddddddddddddddddddddddddddddddddddddd

l. 15 Se precisar me liga: (telefone celular) ou (telefone residencial)

l. 16 Um grande abraço,

III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

l. 17 X

A leitura detalhada do email permite a identificação de quatro

diferentes momentos: um momento inicial (linhas 1 a 4), no qual a

professora apresenta de modo geral o que aluna deve fazer para

iniciar o trabalho; um segundo momento (linhas 5 a 9), em que é

apresentado um cronograma das atividades e um terceiro momento (

linhas 10 a 17) no qual são apresentados links a serem lidos pela

aluna. O quarto momento (linhas 17 a 19) trata-se de uma

despedida, na qual a Professora abre canal para a utilização de outro

meio de contato, o telefone.

A partir de algumas ações citadas e/ou relatadas por X no Email

1, uma lista composta por indícios sobre a imagem que X faz de Y,

uma vez que é possível compreender que, para X, Y é alguém que:

1) Precisa ser lembrada do que já foi acordado entre ambas (l.1

“Conforme combinamos”

2) Precisa de ajuda na execução de tarefas (l.3 me avisa por email

para que eu leia também e te ajude)

3) Precisa ser lembrada enfaticamente dos prazos que deve cumprir

(observe-se o uso de caixa alta) (l. enviar para mim os nomes HOJE

até às 20h00)

4) Precisa ser informada minuciosamente sobre o que deve fazer

(linhas 1 e 2 l. 5 a 10)

Nesse contexto, a professora, além de chamar para si as

tarefas que parecem corresponder ao que julga serem as

necessidades da aluna, com relação à escrita do TCC, delega para a

aluna diversas tarefas,as quais sistematizamos no quadro a seguir:

III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Ler de modo preliminar

dos materiais enviados

l. 1 “envio quatro materiais para você: de

uma passada de olhos em cada um” […]

Selecionar os materiais

enviados

l.2 “ escolha dois para imprimir” […]

Ler de modo aprofundado

dos materiais enviados

l.2 “[…] e ler de verdade”

Devolver de atividade

proposta para uma data

determinada

l.5 “Escolher dois e enviar para mim hoje”

Acessar na internet em

horário determinado

l. 6 “Entrar na internet às 17h30m para ver o

arquivo que te mandarei […]”

Responder atividade

proposta para uma data

internet

l.8 “ Enviar para mim resposta da atividade

de quinta até as 11 horas da manhã”

Devolver atividade

proposta para

determinada data

l.8 “Enviar para mim resposta da atividade

de quinta até as 11 horas da manhã”

Utilizar material enviado l. 10: “Veja a lista de links:”

Quadro 5 : Tarefas propostas para Y

Nesse contexto, no que se refere a um dos objetivos de nossa

investigação, qual seja, o de fazer uma levantamento das ações

praticadas por X que levaram a aluna a uma modificação de sua

posição subjetiva com relação à escrita, o Email 1 permite que sejam

elencadas as seguintes as ações praticadas por X

— dar peso a acordos estabelecidos com a aluna

III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

— determinar as etapas a serem realizadas pela aluna no

processo de realização do trabalho

— conferir espaço para que algumas decisões sejam tomadas

pela aluna

— dispor-se a ajudar na execução das tarefas propostas

Além dessas ações, a leitura do email enviado por X permite a

identificação de uma ação que repercutiu de modo particular em Y: X

cometeu um erro: apesar de ter declarado que enviou quatro

materiais, na realidade, enviou três, porque o link 1 era igual ao link

2.

O erro de X teve como consequência duas ações da parte de Y:

1) ligar para a professora e 2) escrever de maneira mais precisa do

que o padrão de seus emails.

Apesar de aproveitar a possibilidade sugerida pela professora

de fazer contato por telefone, conforme pode-se depreender a partir

da leitura do email a seguir, aparentemente, Y não deu conta de

explicar o problema que o erro de X causou, de modo que a

professora, sem perceber o erro que cometera, escreve para Y.

l.1 Bom dia flor do dia!

l.2 Legal você ter me ligado pra contar que teve problemas com o

email que enviei. Pena que não pude falar

l.3 Muito: já havia passado a tarde envolvida com pesquisa e não

queria abusar da paciência do XXX, que

l. 4 estava vendo um filme comigo.

l. 5 Re-envio todos os links: dessa vez pus números, pra vc ver

III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

todos?

l. 6 1)aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

l. 7 2)aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

l. 8 3)bbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbb

l. 9 4)cccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccc

l.

10

Bjo e até mais tarde (lembre que espero saber sua segunda

escolha por email até as 11 horas. A primeira vc

l.11 já disse que é o texto da nome de revista da área da educação)

Ao enviar novamente os links para Y sem se dar conta que dois

deles são iguais, X obriga aluna a esclarecer o equívoco de maneira

pontual, como podemos ver a seguir:

l.1 Bom dia princesa

l.2 Os links 1 e2 são iguais eu vou ficar com o 3 e 4 gostei mais

vooou i(sic) mprimir os tres pode. (sic) é que clicando

l.3 neles não tá abrindo ai colei e deu certo.

l.4 Copiei a agendinha da semana pode deixar.

l.5 Beijos

A leitura do email escrito por Y, embora bastante dificultada

pelos erros de digitação e pela ausência de pontuação, permite o

levantamento de diversas ações por parte da aluna, as quais

apresentamos no quadro a seguir:

III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Indicação do erro da

professora

l 2 “Os links 1 e2 são iguais”

Seleção de dois textos

para trabalhar

l. 2 “eu vou ficar com o 3 e 4 gostei mais”

Pedido de autorização l 2 “vooou imprimir os tres pode.”

Explicação sobre como

resolveu um problema

l. 1-2 “é que clicando neles não tá

abrindo ai colei e deu certo.”

Declaração de

compromisso com o

cronograma proposto

l.3 Copiei a agendinha da semana pode

deixar.

Quadro 6: Ações desempenhadas por Y – Email 3

A atitude tomada por Y de fazer X entender algo que estava

prejudicando o andamento do trabalho, permite recuperarmos as

contribuições de Souza 2010 com relação à mudança de posição que

um aluno pode assumir com relação ao aprendizado.

De fato, as reflexões desenvolvidas pela autora em função de

uma experiência vivenciada no acompanhamento de um grupo de

alunos do ensino fundamental com dificuldades de aprendizagem, os

quais estavam imersos em um contexto de marcado pelo fracasso

escolar com relação à aquisição da língua escrita, permitem uma

série de analogias com a experiência vivenciada por X e Y.

Em seu trabalho, Souza foca sua argumentação sobre a

possibilidade de sucesso escolar tomando como referência um dos

alunos envolvidos na pesquisa-ação que desenvolveu apontando

como “momento de virada”, a oportunidade em que a partir de uma

intervenção da pesquisadora, o aluno passa a agir de um outro modo.

A partir do momento em que uma ação da professora levou o

aluno a entender que precisaria renovar-se, mudar seu modo de

III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

proceder, caso quisesse atingir seus objetivos (o aluno desejava

apresentar seu trabalho numa coletânea feita pela classe, porém,

descontente com seu desempenho, inutilizou sua própria produção,

passando a, na sequência, culpar os outros pelo fato de que sua obra

não faria parte do trabalho final); construiu uma chave para realizar o

seu desejo de ver sua produção exibida junto com a dos demais:

tendo solicitado apoio da professora regente, trabalhou intensamente

na realização de um trabalho digno, a seu ver, de ser exibido como

algo de sua autoria.

No caso da experiência analisada no presente estudo, podemos

entender que, para além das ações sistemáticas para levar a aluna a

produzir, a falta da professora contribuiu para que a aluna muda-se

sua posição: de alguém que fora definida como alguém que não sabe

ler5

O quadro a seguir apresenta excertos, mais precisamente, os

vocativos retirados da segunda sequência de emails.

, Y passou a apresentar-se para si mesma e para a professora

como alguém que lia e que podia interagir com os outros, a partir de

seu trabalho.

Data do email

Vocativo

8/9 Princesa

12/9 querida

22/9 X

III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

A leitura e a comparação dos vocativos empregados por Y ao

endereçar-se a X indicam uma significativa mudança: o tratamento

carinhoso inicial, que confere a X (“Princesa”) um estatuto de realeza,

passa para um tratamento mais próximo (”querida”), para

finalmente, perder qualquer alusão idealizada ou mesmo da dimensão

afetiva. Y passa a tratar X pelo prenome.

Entendemos que essa mudança de tratamento decorre de uma

mudança na imagem que Y faz de X. O rompimento da identificação

da aluna a um ideal de professora, ou melhor, a uma professora

ideal, diante de quem apenas poderia receber ajuda para redigir seu

TCC permite que a aluna passe a agir segundo o que Andrade

(2008:56) aponta como ética de repetição do real, que “implica que o

sujeito tenha uma relação diferente com o saber, envolvendo-se

efetivamente na sua elaboração.”

Considerações finais

O percurso realizado nessa investigação leva-nos elaborar, a

seguinte resposta para pergunta que intitula o presente estudo: para

além de um coach6, a pesquisa no ensino superior e, de modo geral o

processo de ensino-aprendizagem por nós examinado, que é

sintomático da época em que nos encontramos7

1) a posição dos envolvidos seja estabelecida a partir e em função

do trabalho desenvolvido conjuntamente

, demanda que:

6 especialista que, na atualidade, dedica-se ao aprimoramento de pessoas que desejam avançar em seu desempenho profissional e/ou pessoal 7 Caracterizo como retrato do momento atual o fato de já não causar espanto o fato de um aluno chegar ao nível superior sem uma instrumentalização mínima no que se refere a técnicas de estudo, metodologia de pesquisa entre outros conhecimentos e outras habilidades essenciais para realização da escrita de um TCC.

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2) Que o professor considere a relação que mantém com o saber e

reflita como isso interfere no desempenho que obtém na

transmissão/produção de conhecimento

Mais especificamente com relação às perguntas que direcionaram

o exame dos dados, destacamos a responsabilidade assumida pela

professora de organizar para a aluna cada etapa a ser realizada no

processo de escrita do trabalho como principal intervenção, como

elemento fundamental para o sucesso na realização do TCC de Y,

texto que, devidamente concluído e apresentado pela banca

examinadora competente, obteve a média oito.

Quanto ao deslocamento da posição de Y, da saída da aluna de

uma posição de inércia para a de trabalho, entendemos a falta de X

como índice de uma falta mais significativa, a falta que é constitutiva

do sujeito e que, ao ser revelada para Y, convocou-a a criar soluções

para não só o erro de comunicação inicial, mas para todos os

problemas que se apresentaram no decorrer da escrita de seu TCC.

Referências

ANDRADE, Emari. Tessitura da escrita acadêmica: aprender a e

ao escrever. 2008. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade

de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.

OSAKABE, Akira. Argumentação e discurso político. São Paulo:

Martins Fontes, 2002

SOUZA, Edilene Santos. Escrita e sucesso escolar: um diálogo

entre psicanálise e educação. 2010. Dissertação (Mestrado em

Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São

Paulo, 2010.