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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, n o 34, p. 127-138, 2008 127 NO REINO DAS MÃES: NOTAS SOBRE A POÉTICA DE HERBERTO HELDER Izabela Leal RESUMO A relação do poeta com a sua língua materna é para- doxal e violenta. Por um lado, ele precisa despren- der-se dela para que encontre o seu próprio idioma, por outro, deixará sempre em evidência a sua dívida para com ela. Este trabalho procurará investigar a relação entre presente e passado na construção do idioma poético, utilizando, para isso, a metáfora da mãe e do filho presentes na poesia de Herberto Helder. PALAVRAS-CHAVE: Língua materna; memória; passado. A procura do idioma poético não se dá sem uma certa dose de violência em relação à língua materna. É preciso que o poeta, ao buscar a sua dicção, desate os laços que modulam a sua fala, per- mitindo que uma nova voz irrompa da massa compacta da língua. Nesse sentido, o poeta é aquele que precisa se insurgir contra a língua mãe, ainda que a voz que fala através dele continue a ser proveniente desta. A fala do poeta é portadora de uma condição paradoxal na medida em que encena a separação da língua materna ao mesmo tempo em que explicita a sua dívi- da para com ela. A relação entre a língua materna e a construção do idioma poético é inseparável do processo de formação do poeta a partir do registro da me- mória – e da ancestralidade – que toda poesia carrega em si. Na poética de Herberto Helder, a língua materna encontra um eco na figura da própria mãe, que, por um lado, é aquela que dá a vida e é portadora da memória, e, por outro, é também aquela que é modificada pelo nascimento do fi-

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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 127-138, 2008 127

NO REINO DAS MÃES: NOTAS SOBRE A POÉTICADE HERBERTO HELDER

Izabela Leal

RESUMO

A relação do poeta com a sua língua materna é para-doxal e violenta. Por um lado, ele precisa despren-der-se dela para que encontre o seu próprio idioma,por outro, deixará sempre em evidência a sua dívidapara com ela. Este trabalho procurará investigar arelação entre presente e passado na construção doidioma poético, utilizando, para isso, a metáfora damãe e do filho presentes na poesia de HerbertoHelder.

PALAVRAS-CHAVE: Língua materna; memória;passado.

Aprocura do idioma poético não se dá sem uma certa dose deviolência em relação à língua materna. É preciso que o poeta, aobuscar a sua dicção, desate os laços que modulam a sua fala, per-

mitindo que uma nova voz irrompa da massa compacta da língua. Nessesentido, o poeta é aquele que precisa se insurgir contra a língua mãe, aindaque a voz que fala através dele continue a ser proveniente desta. A fala dopoeta é portadora de uma condição paradoxal na medida em que encena aseparação da língua materna ao mesmo tempo em que explicita a sua dívi-da para com ela.

A relação entre a língua materna e a construção do idioma poético éinseparável do processo de formação do poeta a partir do registro da me-mória – e da ancestralidade – que toda poesia carrega em si. Na poética deHerberto Helder, a língua materna encontra um eco na figura da própriamãe, que, por um lado, é aquela que dá a vida e é portadora da memória,e, por outro, é também aquela que é modificada pelo nascimento do fi-

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lho. Assim é que no poema “Fonte”, poema dividido em seis partes emque a mãe ocupa um lugar central, Herberto Helder dá a esta o caráterincendiário e arqueológico do petróleo: “E as mães são poços de petróleonas palavras dos filhos, / e atiram-se, através deles, como jactos / parafora da terra.”1. Arqueológico porque o petróleo traz em si camadas ecamadas de memória, o “húmus” da matéria orgânica em decomposiçãoque irrompe “para fora da terra” e se transforma em “fonte” de energia.De fato, Húmus é também o título de um livro de Raul Brandão “deslido”por Herberto Helder, livro que dá a ver, como observa Silvina RodriguesLopes, “o peso dos mortos na linguagem --– o domínio que eles exercemsobre os vivos, ditando-lhes a vida na linguagem que lhes legam, e assim atransformando em morte – num texto que lhe contrapõe o sonho, a lou-cura, a reinvenção de palavras em ‘carne viva’.”2 Entretanto, a autora es-clarece ainda que em Herberto Helder a morte não é apenas aquilo quenega o indivíduo na linguagem que o precede, mas é também a morte queorigina outra vida no instante da criação.

De fato, no Húmus de Herberto Helder há uma relação dialética en-tre vivos e mortos pois, por um lado, os mortos respondem por umainstância que antecede o sujeito e o constitui, mas, por outro, são o resul-tado do processo de criação desse mesmo sujeito a partir do qual existi-rão. Cumpre observar que o domínio dos mortos é aquele da linguagemque é legada a todo e qualquer indivíduo por ocasião de seu nascimento,sendo a emergência da subjetividade um acontecimento desta, ainda que osujeito, ao escrever, isto é, ao criar a sua dicção própria, procure negá-la,como se fosse possível estar fora dela. Essa duas dimensões da relaçãoentre sujeito e linguagem -– o legado dos mortos aos vivos e a necessidadede criar os mortos a partir dos vivos, através de uma tentativa de negação– estão presentes em Húmus:

Tocamo-nos todos como as árvores de uma florestano interior da terra. Somosum reflexo dos mortos, o mundonão é real. Para poder com isto e não morrer de espanto– as palavras, palavras.3

1 HELDER, Herberto. Poesia toda. Lisboa: Assírio e Alvim, 2004. p. 48.2 LOPES, Silvina Rodrigues. A inocência do devir. Lisboa: Vendaval, 2003. p. 3 1.3 HELDER, 2004, p. 226.

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Os versos citados atestam o caráter paradoxal da relação entre sujei-to e linguagem, pois somos apenas “um reflexo dos mortos”, ou seja, umamera ocorrência no plano já dado da linguagem, mas, surpreendentemen-te, é dela também – das “palavras” – que lançaremos mão para “podercom isto e não morrer de espanto”. Como o phármakon apontado porDerrida, as palavras são o veneno e o remédio, o que causa a morte etambém o que dá a vida. Nesse sentido, a subjetividade pode ser entendi-da como um processo de escrita de si, segundo o qual a própria linguagemé recriada. Daí a outra dimensão apontada anteriormente: “É preciso cri-ar palavras, sons, palavras / vivas, obscuras, terríveis. / É preciso criar osmortos pela força / magnética das palavras.”4

Assinala-se, portanto, a necessidade de criar os mortos para que osvivos não sucumbam na subordinação a eles, ou seja, é preciso criar osmortos para que os vivos se tornem realmente vivos. O enunciado “criaros mortos” abre uma perspectiva de duplo sentido, já que pode ser lidocomo a possibilidade de restituir a vida aos mortos através do ato de cria-ção, ou de torná-los efetivamente mortos. Na primeira acepção os mortosretornariam à vida pelo surgimento dos vivos, pois estes determinam umnovo rearranjo do passado, fazendo com que aquilo que estava sepultadoe esquecido retorne à superfície. A segunda acepção, entretanto, revelaum projeto mais radical. Cumpre notar que o poema não expressa a ne-cessidade de criar mortos – o que seria fácil, bastando para isso matar osvivos –, mas de criar os mortos, ou seja, de tornar mortos aqueles que já oestão. Em outras palavras, o que está dito é que o sujeito, em seu afã de“não morrer de espanto” com a linguagem que lhe é legada, em sua tenta-tiva de não sucumbir a ela e nela, deseja matar os mortos, separar-se radi-calmente deles. E é justamente pela enunciação dessa exigência que termi-na o poema: “É preciso matar os mortos, / outra vez, / os mortos.”5 Masserá possível matar os mortos?

De acordo com a primeira perspectiva, o fato de a mãe ocupar olugar dos mortos não faz com que eles determinem complemente a falado filho, já que a própria mãe também será criada a partir da existênciadeste. Um bom exemplo para esclarecer a relação dinâmica entre mortos

4 Ibidem, p. 228.5 HELDER, p. 239.

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e vivos na poética de Herberto Helder é a história contada no prólogo daantologia por ele organizada, Edoi Lelia Doura:

Eu poderia contar gemeamente duas histórias: uma afro-carnívora, simbólica, a outra silenciosa, subtil, japonesa. Decada uma delas acabariam por decorrer um tom e um tema.A história carnívora foi colhida algures, de leitura, e respeitauma tribo que sepultava os seus mortos no côncavo degrandes árvores. As árvores, a que tinham dado o nome dopovo: baobab, devoravam os cadáveres, deles iam urdindo asua própria carne natural. Pelo nome tirado de si e posto naalquimia, a tribo investia-se nas transmutações gerais: a mortelevava o nome, e o nome, activo e tangível, crescia na terra.Emocionam-me a fome botânica e o triunfo das copas, oempenho tribalmente mágico, regrado pelo insondávelentendimento das metamorfoses da carne no esquemaorgânico da matéria.6

O que há, portanto, é uma espécie de impregnação, de contamina-ção entre os vivos e os mortos. Os mortos formam os vivos, transfor-mam-se em seu alimento, mas são também transformados por estes. Domesmo modo, se a fala poética fosse apenas a marca da presença materna,nenhuma voz inaudita surgiria para escrever o lugar que agora pertenceao filho. Pois o filho tira o seu alimento da voz materna, não para copiá-la, mas na tentativa de negá-la e reinventá-la. O filho é aquele que renovaa língua materna, que revolve o solo do passado para extrair o substrato apartir do qual se constrói o presente. Entretanto, tal construção não sefaz sem atrito, como indica ainda o mesmo poema:

As mães são as mais altas coisasque os filhos criam, porque se colocamna combustão dos filhos, porqueos filhos estão como invasores dentes-de-leãono terreno das mães.7

Lembremos que as mães são “poços de petróleo”, matéria que seráqueimada na “combustão dos filhos”. A mãe, como num ato de sacrifício,

6 HELDER, Herberto (Org.). Edoi Lelia Doura – antologia das vozes comunicantes dapoesia moderna portuguesa. Lisboa: Assírio & Alvim, 1985. p. 7.

7 HELDER, 2004, p. 48.

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oferece o seu corpo para ser consumido, utilizado pelo filho. Mas esse atonão significa o aniquilamento ou desaparecimento da mãe, muito ao con-trário. As mães, como fênix renascidas, surgem das cinzas e são “as maisaltas coisas que os filhos criam”. De modo que se estamos associando ofilho à criação de um idioma poético novo, a mãe será não apenas a “fon-te” desse idioma, como também, e necessariamente, aquilo que se produza partir dele. Pois não podemos dizer que, em última análise, o que a falapoética faz é consagrar a língua mãe, ainda que isso ocorra através da suaparcial destruição?

Num instigante ensaio intitulado “O amor cru: Herberto Helder eCamões ou as duas mães”, Jorge Fernandes da Silveira aborda o tema domatricídio na cultura portuguesa. Tomando como base algumas consi-derações de Eduardo Lourenço e António José Saraiva, o autor empre-enderá a leitura de versos de Camões e Herberto Helder a partir dosurgimento traumático da nação, representado por D.Tareja e AfonsoHenriques, isto é, pelo mito do filho que se volta contra a figura mater-na. Se a imagem de Afonso Henriques é aqui convocada como o arautodo matricídio, é em grande parte por ser ele quem melhor representa,na história de Portugal e, segundo a epopéia camoniana, a memória des-sa insurreição, revelada através da presença do “filho fero contra a mãeadúltera”.8

No referido episódio histórico, o matricídio ocorre para que se dê afundação do reino, e o mesmo pode ser dito a respeito do nascimento dopoeta, isto é, de seu processo de formação. Nascer é separar-se da mãe. Omatricídio será, portanto, uma metáfora emblemática do trabalho do po-eta, ainda que o crime poético apresente particularidades que apontempara a relação entre amor e morte, ou, em outras palavras, que a realiza-ção do trabalho de escrita constitua uma espécie de crime que envolve, aomesmo tempo, o matricídio e o incesto.

Rosemary Arrojos, num texto intitulado “A tradução e o flagranteda transferência”, compara a tradução e a escrita ao processo de transfe-rência em análise, mostrando que o traduzir e o escrever envolvem umarelação afetiva com a língua materna, relação essa que se expressa através

8 SILVEIRA, Jorge Fernandes da. O amor cru: Herberto Helder e Camões ou as duasmães. In: ______. Verso com verso. Coimbra: Angelus Novus, 2004. p. 73-91.

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de amor e ódio, de violência e sedução. É também através do matricídioque Jorge retorna aos versos anteriormente citados – “os filhos estão comoinvasores dentes-de-leão / no terreno das mães” – para lê-los em conso-nância com outro, ainda do mesmo poema: “[...] e as calmas mães intrín-secas sentam-se / nas cabeças filiais.”9 Da combinação desses dois versos, oautor observa que a violência filial – a invasão do terreno das mães, oterreno da língua materna, ou do literário, como prefere – tem comoobjetivo a coroação dos filhos:

neste reino, as mães sentam-se sobre as cabeças dos filhos,coroam-nos delas e, em assentos comburentes, levantam-se‘cabeças filiais’, como se reais fossem, neste território que,em suma, está para aquém de Leão e Castela, numa zonaprofunda, lá para os lados do inconsciente, digo, doliterário.10

O que acontece de notável nesse reino do literário – diferente-mente do reino da historiografia – é que a mãe não é rechaçada parafora do lugar do filho, ela é a própria coroa que assenta sobre a cabeçadeste. Mesmo que o matricídio ocorra, o reino do literário continua aser o lugar em que mãe e filho coexistem, enfrentam-se e reinventam-se. E é justamente nesta imbricação entre mãe e filho que se abre aperspectiva do incesto. Como salienta ainda Rosemary Arrojos, agoraretomando Harold Bloom em seu famoso livro A angústia da influência, oescritor escreve a partir dos outros textos que o antecedem, isto é, detudo aquilo que já foi dito em sua própria língua, e essa relação estáimpregnada de violência e desejo, uma vez que o passado “jamais serárepetido ou resgatado num processo impessoal ou desinteressado, e simtomado, possuído e transformado pelo desejo e pelas circunstâncias doleitor que com ele se misturar”.11

O que poderia ser um assassinato transforma-se em celebração: aofilho resta a necessidade de aceitar a separação, de saber que é preciso

9 HELDER, op. cit., p. 47.10 SILVEIRA, op.cit., p. 81.11 ARROJOS, Rosemary. A tradução e o flagrante da transferência: algumas aventuras

textuais com Dom Quixote e Pierre Menard. In: ______. Tradução, desconstrução e psicanáli-se. Rio de Janeiro, Imago, 1993. p. 151-175.

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descolar-se do corpo da mãe, o que num certo sentido é também matá-la. Mas nesse assassinato o corpo da mãe não se torna jamais um cadá-ver, ele é a própria coroa, um emblema que o filho exibe orgulhosa-mente:

E os filhos mergulham em escafandros no interiorde muitas águas,e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãose na agudeza de toda a sua vida.12

Da invasão dessas águas, similares aos campos de guerra – aqui tam-bém camadas de memória que compõem o corpo da mãe –, os filhos tra-zem polvos, animais das profundezas, que exibem na forma de troféus.Como se praticasse uma arte da escavação, o filho desce em direção àhistória de sua própria língua, e invadindo esse aquoso terreno literário,faz emergir a voz materna do fundo do abismo marinho. Entretanto, aoentrar em contato com os mergulhadores/filhos os polvos/mães são mo-dificados, de modo que o polvo retirado das águas já não é o mesmo pol-vo do fundo do oceano, ele emerge do fundo transformado, e torna-se,agora, o emblema “embrulhado nas mãos” do filho, que, por sua vez, étambém uma marca indelével que o acompanhará “na agudeza de toda asua vida”.

Evidencia-se, aqui, um paralelo com o ato da escrita. Como afirmaAntoine Compagnon retomando T.S.Eliot em seu célebre texto “A tradi-ção e o talento individual”, o surgimento de um novo escritor altera apaisagem do seu passado literário, de forma que cada nova obra modificao sentido e o valor das obras que a antecedem. Tal idéia não se afasta daconcepção de Herberto Helder, observada por Pedro Eiras em sua tese dedoutorado intitulada Esquecer Fausto, de que o poeta, apesar de estar sem-pre inscrito numa rede formada por outros textos e outros poetas, é aque-le que cria a sua própria tradição. Prova disso é a já citada antologia EdoiLelia Doura organizada por Helder, que traz de forma sugestiva o subtítu-lo: Antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa, e é descrita,assumidamente, como “uma antologia de teor e amor, unívoca namultiplicidade vocal, e ferozmente parcialíssima.”13

12 HELDER, 2004, p. 48.13 HELDER, 1985, p. 8.

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O que significa que a manifestação do amor que o poeta afirma ex-perimentar por sua tradição não se opõe ao ato de violência que exercesobre ela, mas é como o seu avesso. Na leitura dos outros textos e dosoutros poetas, na escolha que é feita a partir deles para a formação de umaantologia, o poeta demonstra, por um lado, que é devedor daqueles que oprecedem e, por outro, que aqueles que o precedem só encontram o seulugar através da leitura posterior que os recorta e ressignifica. A leituraconstitui um investimento “parcialíssimo” no passado, e é por isso queRosemary Arrojos afirmará que “ler é sempre uma forma de se estar apai-xonado.”14

Retomando o poema, a expressão utilizada por Herberto Helderpara falar desse mergulho no solo, digo, nas águas maternas não poderiaser mais elucidativa. Pois os polvos não vêm apenas expostos nas mãosfiliais, mas “embrulhados” nelas. O acoplamento mão/polvo é, de fato, ametáfora para a cópula entre mãe e filho, a partir da qual se torna eviden-te o caráter paradoxal da escrita como ato de união e separação da mãe.Como aponta Arrojos, citando Michel Schneider:

Escrever é sempre um projeto arriscado, investido de cargaemocional, porque implica uma relação transgressora, atémesmo incestuosa, com a língua materna de quem escreve[...] Quem escreve escreve sobre e contra sua língua maternapara escapar à angústia da influência.15

A “angústia da influência” é um tema bastante caro também a PedroEiras, que estabelecerá a correspondência entre o movimento de negaçãoda tradição descrito por Bloom e a idéia de crime em Herberto Helder. Setoda escrita está inserida na teia de textos e autores que a precedem, paraEiras, “o crime herbertiano é a afirmação metaliterária dessa rede: Photomaton& Vox ao mesmo tempo recusa a relação com determinadas poéticas erefere, cita, parafraseia, desconstrói autores e obras.”16 Entretanto, comoo autor observa ainda, há um outro crime na poética herbertiana, crimeesse que se constitui como a negação mesma da textualidade. Tal crime

14 ARROJOS, 1993, p. 158.15 Ibidem, p. 160.16 EIRAS, Pedro. Esquecer Fausto – a fragmentação do sujeito em Fernando Pessoa, Raul

Brandão, Herberto Helder e Maria Gabriela Llansol. Porto: Campo das Letras, 2005.

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encontra o seu modelo no silêncio rimbaudiano, na recusa completa aodiscurso literário. Formula-se, portanto, a exigência paradoxal de se escre-ver para negar a escrita, ou de dizer para atingir o silêncio. Esta seria aexigência que assinalamos atrás como a necessidade, impossível, diga-se depassagem, de “matar os mortos”, isto é, de saltar para fora de qualquer me-mória e de qualquer história, enfim, de negar a própria linguagem. É comose o sujeito, ao escrever, procurasse fazer uma espécie de tabula rasa, elimi-nando tudo o que o precede. Como afirma Rosemary Arrojos, “quer sejacontra a mãe, contra a língua materna, ou contra o pai/precursor, podemosver naquilo que dá início à escritura uma tentativa impossível do escritor dese tornar sua própria origem, uma origem, entretanto, que inevitavelmentese localiza na leitura de um texto alheio.”17

Assim, retornando ao reino das mães, devemos lembrar que a voz dofilho, apesar de ser uma tentativa de buscar uma originalidade absoluta,carregará sempre o peso dos mortos, a esfera da repetição. Não é possívelfalar de um começo absoluto, uma vez que, na escrita, trata-se sempre detrabalhar com o resíduo inelutável que são as próprias palavras, aquilo queaparece quando se procura fazer com que tudo o mais desapareça, e é justa-mente esse aparecer o que determina que haja sempre um movimento derepetição naquilo que se pretendia inscrever como pura diferença. A pró-pria tentativa de escrever para apagar o passado já carregará em si traçosdesse mesmo passado que se repete, que não pode ser eliminado e, por issomesmo, retorna na forma de algo que interpela o sujeito. Tavez por issoHerberto Helder encerre o conjunto intitulado “Fonte” com um poemadedicado à mãe morta, poema em que se evidencia a ausência da mãe comouma presença sintomática do sujeito:

Mãe, pouco resta de ti na exaltação do mundo. Às vezesmisturas-te um pouco nos terrores da noite ou olhas-me,vertiginosa e triste, atravésdas palavras.18

É importante notar que a mãe olha o sujeito “através das palavras”,como se essa dimensão lingüística fosse justamente o lugar em que o sujei-to se constitui no ato de separação, que é ainda uma forma de estar ligado

17 ARROJOS, 1993, p. 161.18 HELDER, 2004, p, 55.

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a ela. A relação entre olhar e ser olhado como dinâmica de constituiçãodo sujeito foi apontada por Didi-Huberman no livro O que vemos, o que nosolha19. O capítulo de abertura do livro remete, coincidentemente, a umapassagem do Ulysses, de James Joyce, em que o narrador contempla o cor-po morto da mãe que lhe aparece num ambiente marinho de sargaços edestroços. Do vazio que se abre através da dimensão visível da perda,inscreve-se o lugar a partir do qual a mãe morta olha o narrador, comoocorre também no poema de Herberto Helder. E é a visão desse lugarvazio que o concerne e o constitui enquanto sujeito da escrita.

A escrita é, portanto, o efeito, ou, como prefere Didi-Huberman, osintoma, desse jogo de aparecimento e desaparecimento posto em evidên-cia por uma determinada imagem. Nesse sentido, a imagem da mãe mortaacarreta uma ruptura na ordenação do mundo, exigindo a construção deum novo idioma capaz de dar sentido a ele, isto é, de suportar a perda. Nopoema de Herberto Helder, o desaparecimento da mãe faz com que omundo todo seja assinalado com a marca dessa perda: “Conheço grandescasas / onde não habitas, flores que cheiro, tarefas / silenciosas que cum-pro humildemente, e luzes, / instrumentos de música, / laranjas que de-voro sentindo o gosto da vida desde a garganta / às mais finas raízes dasvísceras. Tu / desapareceste.”20

É isso o que Marcelo Jacques de Moraes, retomando Didi-Hubermannum ensaio sobre Bataille, chamou de “forma informe”, ou seja, um tipode imagem que nos invade e nos interpela: “essa forma informe, essa for-mação abjeta, promoveria, portanto, ao ofertar-se, uma espécie de perdade sentido daquilo que ela dá a ver – o mundo mediado pelo sintoma –,exigindo em contrapartida, daquele que com ela se depara, um suplemen-to de sentido, uma escrita [...].”21 Tal é o caráter paradoxal da escrita: porum lado, o escritor pretende – como no Húmus de Herberto Helder –“matar os mortos”, sepultá-los de vez para que seja possível instaurar umafala absolutamente nova, uma fala sem história, descolada do passado.

19 DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998.20 HELDER, 2004, p. 56.21 MORAES, Marcelo Jacques. Georges Bataille e as formações do abjeto. In: ______.

Outra travessia, n. 5, p. 107-120, Universidade Federal de Santa Catarina, 2° semestre de2005.

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Mas essa tentativa de assassinar o passado produz sempre um resíduoque retorna, fazendo com que o escritor exiba em seu discurso as mar-cas daquilo que não pôde ser apagado, e que caracterizará a construçãoda sua escrita, ou seja, a criação do seu idioma. Ora, se é impossívelprojetar-se para fora da linguagem, a construção do idioma poético é aevidência – o sintoma – da separação e da ligação do sujeito à sua línguamaterna. Essa idéia aproxima-se da noção de estilo em Barthes. ParaBarthes, o estilo

[...] é a ‘coisa’ do escritor, seu esplendor e sua prisão, é a suasolidão. [...]. É a parte privada do ritual, ergue-se a partir dasprofundezas míticas do escritor, e se expande para fora de suaresponsabilidade. [...]. A fala tem uma estrutura horizontal[...]. O estilo, ao contrário, só tem uma dimensão vertical;mergulha na lembrança enclaustrada da pessoa, compõe a suaopacidade a partir de certa experiência da matéria [...].22

Assim é que o idioma poético se constrói numa dimensão vertical,num “mergulho”, e aqui lembramos novamente do poema herbertianoem que os filhos são comparados a mergulhadores que descem “no interi-or / de muitas águas, / e trazem as mães como polvos embrulhados nasmãos”. O paradoxo com o qual o poeta tem que conviver é então o deestar sempre em dívida com a linguagem que o precede e lhe dá a vida, aomesmo tempo em que a nega na tentativa de encontrar a sua própria voz.E é essa dimensão solitária assinalada por Barthes, dimensão de perda ecriação, de vida e de morte que mais uma vez é posta em evidência por umpoema de “Fonte”:

Ó mãe violada pela noite, deposta, dispostaagora entre águas e silêncios.Nada te acorda – nem as folhas dos ulmos,nem os rios, nem os girassóis,nem a paisagem arrebatada.– Espero do tempo novo todos os milagres,menos tu.23

Nesse poema a mãe também é assinalada através de uma experiênciada perda. A mãe foi “deposta”, “disposta agora entre águas e silêncios”.

22 BARTHES, Roland. O grau zero da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2000.23 HELDER, 2004, p. 49.

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138 Leal, Izabela. No reino das mães: notas sobre a poética de Herberto Helder

Aqui, algo de essencial também é dito: que, a partir do momento em quese escreve, a mãe não pode ser recuperada – “nada te acorda” –, que não épossível ressuscitar os mortos, apesar de o “tempo novo” ser um tempode “todos os milagres”. Contudo, entre todos esses milagres não se podecontar o da ressurreição da mãe morta. O que significa que a criação poé-tica não é um retorno à “fonte”, como se poderia pensar, mas um nasci-mento, um acontecimento imprevisível no seio da linguagem que antece-de o sujeito. O “tempo novo”, o tempo da criação é o do advento dopoeta, de sua emergência como linguagem – a fundação do reino. A perdada mãe é, portanto, a condição necessária para que uma nova voz irrompa,ainda que a memória dessa perda continue como uma marca no corpo dofilho. E essa marca é justamente a coroa que assenta sobre a cabeça deste,como já havia observado Jorge Fernandes, fazendo com que a morte damãe não seja apenas um momento de perda. Termino, assim, com maisalguns versos de “Fonte”:

Corres somente no meu sangue memoriadoe sobes, carne das palavras outra vezimperecíveis e virgens.– Do tempo jovem espero o vinho e o pólen,outras mãos mais purase mais sagazes,e outro sexo, outra voz, outro gosto, outra virtudeinteligente.24

ABSTRACT

The relationship between the poet and his mothertongue is paradoxical and violent. On the one hand,he must free himself from it in order to find his ownidiom, but on the other hand he will always makeevident his debt to it. This work will try to investigatethe relationship between present and past in theconstruction of the poetic idiom, using for this themetaphor of mother and son present in the poetryof Herberto Helder.

KEY-WORDS: Mother tongue; memory; past.

24 HELDER, 2004, p. 49.