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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – UnB INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – IH DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA – HIS NO RASTRO DA TINTA representações demoníacas na Ordem Terceira Carmelita do Recife RAFAEL LIMA MEIRELES DE QUEIROZ BRASÍLIA 2018

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – UnB

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – IH

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA – HIS

NO RASTRO DA TINTA representações demoníacas na Ordem Terceira Carmelita

do Recife

RAFAEL LIMA MEIRELES DE QUEIROZ

BRASÍLIA

2018

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RAFAEL LIMA MEIRELES DE QUEIROZ

NO RASTRO DA TINTA representações demoníacas na Ordem Terceira Carmelita

do Recife

Trabalho de Conclusão de Cursoapresentado ao Departamento deHistória do Instituto de CiênciasHumanas da Universidade deBrasília como requisito parcialpara a obtenção do grau delicenciado em História. Orientador: Prof. Dr. André CabralHonor

BRASÍLIA

2018

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Banca Examinadora

_________________________________________________ Prof. Dr. André Cabral Honor

(Orientador)

_________________________________________________ Profa. Dra. Maria Filomena Pinto da Costa Coelho

_________________________________________________ Prof. Dr. Jonas Wilson Pegoraro

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AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar agradeço aos meus pais, Lúzia e Rogério, por sempre me

proporcionarem o melhor que puderam para que eu estudasse e tivesse uma vida excelente e

digna. Faço uma menção especial à minha mãe que criou em mim o amor à leitura ainda na

infância, não deixando faltar uma edição sequer da Turma da Mônica e me acompanhando

para comprar todos os livros da saga Harry Potter ainda no lançamento.

Agradeço a todos os amigos e a minha namorada, Maria Clara, pela compreensão em

todas as vezes que não pude estar presente pra passar mais um tempinho na presença de Santa

Teresa e Sepúlveda. O apoio de vocês foi fundamental.

Gostaria de reconhecer também a importância de todos os professores que tive em

minha vida, em especial os professores Jonas Wilson Pegoraro e Maria Filomena Pinto da

Costa Coelho, que tão gentilmente se dispuseram a compor a banca avaliadora deste trabalho.

Agradeço também aos técnicos e terceirizados que compõem o Departamento de História e

nossa Universidade, sem vocês o espaço acadêmico não existiria.

Agradeço ao CNPq e à FUB pelo apoio dado em forma de bolsas para Iniciação

Científica. Os dois projetos realizados com estes incentivos são a base desta dissertação e

criaram também a minha base enquanto pesquisador. Incentivemos a ciência e o

desenvolvimento, pois só a educação salva!

Por fim, e provavelmente mais importante, agradeço ao meu orientador, André Honor,

pelo apoio, pelas ideias, pelas recomendações de leitura (que geralmente eram transformadas

em presentes), pelos “refaça, você pode mais”, e pela amizade que, com certeza, permanecerá

quando terminado o curso.

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RESUMO

O objetivo desta monografia é realizar uma análise iconológica de três painéis alegóricos

referentes à hagiografia de Santa Teresa d’Ávila, confeccionados por João de Deus e

Sepúlveda para a Igreja da Ordem Terceira do Carmo do Recife, no século XVIII. Estes

painéis, quando analisados em conjunto, contam-nos uma história extremamente interessante

acerca dos confrontos entre Santa Teresa e os demônios que a atormentaram em vida. A

presente monografia, neste texto buscará compreender qual o papel desempenhado por essas

pinturas, que apresentam retratos alegóricos de figuras demoníacas, na composição harmônica

e divina do ambiente sacro. Para isto, perguntamo-nos quais as significações e utilizações

práticas que tais representações podem assumir no momento de sua produção e até que

medida elas se relacionam com o contexto histórico na qual estão inseridas.

Palavras-chave: Ordem Terceira do Carmo do Recife; Santa Teresa D’Ávila; Iconologia;

Demônios; Barroco.

ABSTRACT

This study aims to perform an iconological analysis of three allegorical panels related to the

hagiography of Saint Teresa d’Ávila, made by João de Deus e Sepúlveda for the Church of the

Third Order of Carmo of Recife, in the 18th century. These panels, when analyzed together,

tell us an extremely interesting story about the confrontations between Saint Teresa and the

demons that tormented her in life. This analysis seeks to explain the role played by the

paintings that feature allegorical portrayals of demonic figures in the harmonic and divine

composition of the sacred environment. To achieve this, we ask ourselves what are the

meanings and practical uses that such representations can assume in the moment of their

creation and to what extent they relate to the historical context in which they are inserted.

Keywords: Third Order of Carmo of Recife; Demons; Baroque.

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SUMÁRIO

Introdução 3

Estão eivados o Profeta e o Sacerdote 10

O gladiador rubro 21

Livrai-nos de todo o mal. Amém! 29

Conclusão 39

Referências Bibliográficas 42

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Introdução

Como se conta uma boa história?

Ora, tratando o assunto em termos básicos podemos postular que toda narrativa que se

preze nos apresenta personagens que dialogam entre si desenvolvendo um enredo, geralmente

conflituoso, em um cenário contextualizado. Partindo desta premissa, e tendo em mente que

para além do rigor científico um texto histórico deve ser prazeroso ao leitor, buscarei contar-

vos uma história dentro da História.

Cenário de nossa trama, o templo da Ordem Terceira do Carmo do Recife foi

construído e inaugurado no ano de 1710, sendo consagrado a Santa Teresa de Jesus. A

fundação desta Igreja insere-se no contexto pós-tridentino, quando a Igreja Católica deixa de

ser vista como a instituição única do cristianismo, por consequência do cisma causado pela

Reforma Protestante. Neste sentido, buscou-se o fortalecimento das instituições do

catolicismo através do aprofundamento da relação entre a Igreja Católica e a vontade da

coroa.

Em Portugal e Espanha, o relacionamento entre estes dois núcleos de poder deu-se

com afinidade, tendo o Padroado ali existente fomentado a manutenção dessa parceria. O

Padroado Português consistiu, basicamente, no poder delegado ao Rei de Portugal pela Santa

Sé, para que este pudesse organizar e financiar todas as instituições religiosas em seus

domínios, incluindo os ultramarinos. Parte desse financiamento era destinado às ordens

religiosas, que tinham, entre outros papéis, o de impulsionar uma “nova espiritualidade” que

fizesse frente aos ideais reformadores.

Com essa relação simbiótica1 entre a Coroa e a estrutura clerical, operou-se o

fortalecimento das instituições religiosas no corpo social. Inserida neste contexto, assim como

ocorre com a Ordem Primeira, a Ordem Terceira do Carmo do Recife é atingida por esse

movimento, o que atribuía maior possibilidade de exercer o poder ao ocupante de um posto no1 Ainda que o Padroado remeta à ideia de colaboração mútua entre o Clero e o Poder Régio, faz-se necessário

compreender que ele não eliminava o conflito entre as duas esferas, sendo muitas vezes o intensificador decontendas entre as autoridades seculares e religiosas. Para ler mais sobre o assunto recomendo o capítuloJogo de Forças: os atores sociais e o poder das Instituições, presente na dissertação de mestrado de PatríciaFerreira dos Santos. SANTOS, Patricia. Poder e palavra: discursos, contendas e direito de padroado emMariana (1748-1764). Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo, p. 18-74.

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interior da Igreja, fazendo com que no século XVIII muitos leigos vissem a oportunidade de

ascensão social por meio do ingresso no seu corpo de irmãos.

Entretanto, a população dispunha de diversas irmandades e associações religiosas na

Capitania de Pernambuco que impulsionavam a subida dos degraus na “escada social”, o que

dava aos fiéis a opção de escolher em qual destas instituições gostariam de participar. Diante

dessa disputa por espaço, a Ordem Carmelita implementou estratégias para atrair a elite

pernambucana através de uma relação mútuo beneficiária que levasse essa camada da

população a optar por fazer parte do corpo de membros da Ordem Terceira do Carmo em

detrimento das demais.

A entrada de leigos na Ordem era regulada pelo Compromisso dos terceiros em Recife,

de 1788. Em seu capítulo 14, intitulado, “Das condições que há de indagar os informantes,

sobre os pertendentes da entrada na nossa Ordem, e como se hão de comportar”, são

elencadas algumas características indispensáveis para o ingresso na irmandade. Os homens,

por exemplo, deviam ser batizados, honrados, sem vícios, sem pendências judiciais e deviam

ter “bens, que bastem, para que sem detrimento da sua família, possa satisfazer as obrigaçoes

da ordem”2.

Demonstrar-se qualificado perante o rigoroso sistema de seleção desta instituição,

além de aumentar o prestígio do indivíduo atestando sua riqueza e sua idoneidade moral,

servia ainda como uma chave para as portas de patamares mais elevados na hierarquia social,

permitindo o trânsito entre as diferentes classes existentes na sociedade recifense e o

estabelecimento de redes de conexões interpessoais que serviam aos objetivos pessoais do

irmão leigo. Como nos ensina Bourdieu, “as diferentes classes e fracções de classes estão

envolvidas numa luta propriamente simbólica para imporem a definição do mundo social mais

conforme aos seus interesses”3.

Desta forma, tudo se passa como se os sistemas simbólicos estivessemdestinados pela lógica de seu funcionamento [...] a preencher uma funçãosocial de sociação e dissociação, ou então, a exprimir os desvios diferenciaisque definem a estrutura de uma sociedade enquanto sistema de significações,arrancando os elementos constitutivos desta estrutura, grupos ou indivíduos,

2 AHU_ACL_CU_COMPROMISSOS, Cod. 1941. As siglas desta citação são: AHU – Arquivo Histórico Ultramarino; ACL – Arquivo da administração geral; CU – Conselho Ultramarino.

3 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa, 1989, p. 11.

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da insignificância.4

Partindo para o plano da disputa simbólica, percebe-se a necessidade de a Ordem

Terceira possuir uma Igreja monumental, uma “construção expressiva de valores ideológicos”

que se apresentasse como o “núcleo de máximo prestígio no tecido urbano”5. Para tanto,

valendo-se da cultura histórica carmelita como elemento teórico, estabeleceu-se o poder

simbólico da ordem através da suntuosidade de sua ornamentação barroca.

Sendo conceito bastante amplo, apesar de o Barroco englobar diversas esferas da

sociedade, como a religião, a economia e a política, seu escopo principal nunca deixa de ser a

arte, esfera na qual se criou tal conceito. Para Giulio Carlo Argan, esta corrente estilística está

ligada sobretudo ao domínio da arte como “manifestação sensível do movimento, do ritmo e

dos valores da existência”, na qual a arte é posta como revelação sensível e formal do dogma,

sendo extremamente utilizada pela Igreja para persuadir os fiéis através da visualização de

seus rituais, com a natureza e a história tidas como reflexos da vontade de Deus.6

Através da persuasão, a arte barroca incute no leigo que a vislumbra um sentimento

acerca de algo que o faz ter, mesmo que involuntariamente, a vontade de exercer alguma ação

em relação ao objeto que gerou essa sensação. Em outros termos, a Igreja barroca persuade

através de impulsos afetivos originados pela sua composição profundamente dramática e

verossímil, pautada em uma retórica extremamente simbólica cujo principal objetivo, no caso

da Ordem Terceira Carmelita do Recife, é agremiar seguidores distintos e evangelizar de

forma decorosa o corpo de irmãos terceiros.

A igreja devia compôr-se como uma maravilha7, demonstrando o seu poder e atraindo

os poderosos, para que dessa união, afluísse autoridade maior. “Magnifica no seu aspecto,

embellezada por seis altares, ornada de ricos painéis representando os diversos passos da vida

de Santa Thereza”. Foi com tais palavras que, no ano de 1937, Fernando Pio descreveu a

4 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva, 2007, p. 17.5 ARGAN, Giulio. Imagem e persuasão: ensaios sobre o barroco, São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p.

78.6 ARGAN, 2004, p. 47.7 O conceito de maravilha faz referência ao esplendor da composição e ornamentação dos ambientes sacros.

Para Rodrigo Bastos, a maravilha relaciona-se à “luz, ao esplendor e à formosura, qualidade inerente a todasas coisas feitas com graça e beleza, o que proporciona encanto e deleite”. BASTOS, Rodrigo. A maravilhosafábrica de virtudes: o decoro na arquitetura religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (1711-1822). São Paulo:Edusp, 2013, p. 61.

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Igreja da Ordem Terceira do Carmo do Recife e nos apresentou o principal foco de expressão

imagética do poder simbólico dos terceiros: os painéis pintados por Sepúlveda sobre a vida de

Santa Teresa d’Ávila.

Descendente de negros, João de Deus e Sepúlveda foi considerado um dos maiores

expoentes das artes visuais de seu período, dominando a arte pictórica e do douramento, além

de ser um exímio músico. É nesta última esfera, através dos encontros com outros músicos e

das participações em eventos eclesiásticos que Sepúlveda encontra solo fértil à semeadura de

novas relações de poder. Unindo a imagem estereotipada do “negro bom cantador”, ao gosto

refinado dos portugueses por música erudita, o artífice pernambucano fez-se conhecer tanto

pela elite, quanto pelos menos abastados. Exemplo dos patamares elevados que os mestiços

conseguiam alcançar no Recife do século XVIII, Sepúlveda ainda serviu como militar por 14

anos, onde galgou diversas patentes e ampliou sua rede de relacionamentos e

consequentemente, seu mecenato8.

Desse mecenato surgiram as oportunidades pelas quais João de Deus se destacou,

como suas pinturas representando a batalha dos Guararapes, sob o coro da Igreja da

Conceição dos Militares, e ornamentação do forro da nave da Igreja de São Pedro dos

Clérigos9. Foi ele também, o artista responsável pela confecção dos 58 painéis presentes na

Igreja da Ordem Terceira do Carmo do Recife. Os quadros estão distribuídos no teto da nave

principal (40 painéis) e ao longo da nave principal, ao lado das janelas laterais e do arco

cruzeiro (18 painéis), dos quais 53 fazem referência direta à vida de Santa Teresa,

apresentando diversos momentos de sua hagiografia.

Em 20 de abril de 1760 foi ajustado com o mestre pintor Tenente João de DeusSepúlveda a pintura e douração dos cinco paineis fronteiros a cobertura dopulpito pela quantia 345$000. Em 30 de Novembro de 1760 contracta a mesacom o mesmo pintor a “continuação dos paineis do forro e lados da igreja,num total de 20, inclusive dois grandes por cima das portas travessas que

8 PEREIRA, José. Além das formas, a bem dos rostos: faces mestiças da produção cultural barroca recifense –1701-1789. Dissertação de mestrado da Universidade Federal Rural de Pernambuco, Departamento de Letrase Ciências Humanas. Recife, 2009, p. 117-148.

9 MOURA FILHA, Maria. Artistas e artífices a serviço das irmandades religiosas do Recife nos séculos XVIIIe XIX. In: FERREIRA-ALVES, Natália (coord.). A Encomenda, o Artista, a Obra; org. Centro de Estudosda População, Economia e Sociedade. - Porto: CEPESE - Centro de Estudos da População, Economia eSociedade, 2010, p. 359-378.

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encontram para o cruzeiro”. Um anno depois, em 15 de Novembro de 1761, éajustado com o mesmo pintor o restante dos paineis10.

As obras deste artista na Ordem Terceira do Carmo do Recife constituem hoje em dia

o maior acervo imagético dentro de uma igreja sobre a vida de Santa Teresa, e foram de

extrema importância para a consolidação da cultura histórica carmelita na região de Recife.

Inseridas nesta grande narrativa sobre a vida da santa abulense, três imagens nas quais

os cavaleiros infernais se fazem presentes sobressaem aos olhos de quem busca pelos traços

sutis do profano. À primeira vista parecem se tratar apenas de representações de alguns dos

enfrentamentos vividos por Santa Teresa, mas ao atentarmo-nos às alegorias presentes

naquelas composições podemos extrair estes três painéis do todo do qual fazem parte e, de

certa forma, escrever a sua própria história, pois:

entender a importância que o elemento alegórico barroco tem para acompreensão de um modelo de conduta cristã nos frequentadores da Igreja deNossa Senhora do Carmo, é conceber o conceito de alegoria como umalinguagem que busca dizer mais do que palavras ou ideogramas; cujo objetivoé se introjetar no cristão como uma verdade que não mais pode ser contestadadevendo, pois, ser assimilada.11

Protagonista de nossa trama, Teresa de Ahumada e Cepeda nasceu em Ávila, no dia 28

de março de 1515, e após uma infância e adolescência marcadas pela doença e pela confusão

interna que sofria entre as paixões mundanas e a vida religiosa, enveredou-se pelo caminho

santo, tornando-se, a partir de orações mentais e de sua íntima relação com Cristo, um dos

mais importantes ícones da religiosidade de seu tempo. Aos 20 anos entrou para o Convento

Carmelita da Encarnação, onde as liberdades concedidas pela não observância à Regra

Primitiva do Carmelo, fizeram com que sofresse ao longo de muitos anos pensando não se

esforçar o bastante na servidão a Cristo, até o momento em que, imbuída da inspiração divina,

decidiu reformar a ordem da qual fazia parte, reformulando os focos de seus

descontentamentos. Suas ações influenciaram não só os carmelitas, mas toda a fé cristã,

10 PIO, Historico da Igreja de Santa Thereza ou Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo da Cidade do Recife, Recife, Jornal do Comércio, 1937, p. 21.

11 HONOR, André Cabral. O verbo mais que perfeito: uma análise alegórica da cultura histórica carmelita naParaíba colonial. Belo Horizonte, Fino Traço, 2013, p. 16. Cabe destacar que o conceito de alegoria presente neste excerto foi buscado pelo autor na obra de WalterBenjamin.

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atingindo inclusive as terras recém-colonizadas pelos europeus.12

Para além desta trajetória básica referente à biografia teresiana, alguns autores

definem Santa Teresa como a “última grande visionária do além infernal”, com uma série de

“testemunhos diretos do reino de Satã”13. Estes testemunhos, amplamente difundidos e

ressignificados, servem de base para a construção do enredo de nossa história, delineando o

embate entre forças demoníacas e Santa Teresa d'Ávila, confronto que está representado em

três painéis localizados na Ordem Terceira Carmelita do Recife.

Tais alegorias fazem-nos indagar acerca da importância da representação do maligno

nos adornos de um templo sagrado e seu caráter evangelizador. Buscou-se entender, a partir

da iconografia dessas três imagens, a relevância e a influência das representações pictóricas

que contêm visões e aparições do profano na constituição de um ambiente persuasivo que,

através do deleite provocado pela sensação de maravilha, inspira a elite pernambucana a fazer

parte desta estrutura sublime e monumental.

Para assimilar o conteúdo simbólico dos painéis em sua ampla complexidade foi

aplicada a metodologia de análise imagética proposta por Erwin Panofsky em Os Significados

nas Artes Visuais. Tecnicamente, a análise iconológica é dividida em três etapas. A primeira,

essencialmente formalista, é chamada de pré-iconográfica e busca entender os motivos

artísticos, as formas que compõem a imagem. Em seguida, a análise iconográfica, a qual

corresponde à identificação das imagens a partir de certa experiência em relação ao tema14

tratado na obra e ao contexto em que foi produzida. Por fim, a iconologia, que exige

conhecimentos específicos sobre significados contextualizados da obra para que se possa

destrinchar o conteúdo dos valores simbólicos da imagem, é ela “um método de interpretação

que advém da síntese mais que da análise”15, tendo por objetivo desvendar a significação

intrínseca dada aos elementos pictóricos.

12 A biografia de Santa Teresa utilizada na pesquisa foi produzida pela renomada escritora francesa Marcelle Auclair. Além desta biografia, a autora traduziu todos os textos teresianos do espanhol para o francês, o que lhe conferiu vasto conhecimento sobre sua obra e sua vida. É importante destacar que a autora parte de uma abordagem que não se rende ao discurso religioso, se atendo aos fatos e não somente às crenças. AUCLAIR, Marcelle. Teresa de Ávila. 2. ed. São Paulo: Quadrante, 2015.

13 MINOIS, Georges. História dos Infernos. Lisboa, Editorial Teorema, 1991, p. 257.14 Para Rafael Mahíques, o tema é, juntamente com os materiais e as técnicas, um dos aspectos primordiais do

estilo artístico. Na esteira dos pensamentos de Panofsky, Mahíques trata o conteúdo temático como sendo oaspecto controlador da história dos tipos iconográficos. MAHÍQUES, Rafael. Iconografía y Iconología.Cuestiones de método. Volumes 2. Madrid. Encuentro, 2011, p. 165-166.

15 PANOFSKY, 2001, p.54.

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A partir desta análise foi possível estabelecer uma espécie de “cronologia” da narrativa

demoníaca na Igreja da Ordem Terceira do Carmo do Recife, na qual os três quadros se

entrelaçam em uma relação de multiplicidades interpretativas complementares.

O primeiro capítulo, intitulado Estão eivados o profeta e o sacerdote, além de

apresentar ao leitor o templo objeto de nosso estudo e o artista por trás da obra analisada, traz-

nos a primeira faceta desta multiplicidade interpretativa do demônio, presente no painel em

que o Padre celebra missa em pecado mortal por razão da influência maligna ao seu redor.

Além disso, são elencados conceitos essenciais ao estudo da arte barroca cristã na América

portuguesa, tais como o decoro e a mimesis.

No capítulo seguinte, O gladiador rubro, partimos do processo de análise iconológica

do quadro Teresa é empurrada por demônios para apresentar a segunda interpretação

conferida ao demônio na produção de Sepúlveda, estabelecendo uma conexão entre elementos

inseridos na pintura pelo artífice pernambucano e o contexto social no qual este estava

inserido.

No terceiro e último capítulo, Livrai-nos de todo o Mal. Amém, o painel derradeiro

mostra Teresa em penitência e nos exige maior esforço para desvendar suas alegorias e seus

sentidos intrínsecos, resultando em uma análise iconológica mais extensa. Além disso,

estabelece um diálogo entre a pintura e testamentos coloniais, através da lógica do bem-

morrer e da ressignificação do processo penitencial.

Utilizando o conhecimento historiográfico e munido por fontes estimulantes traço nas

páginas seguintes uma trama sobre uma Santa e os “seus” demônios, enfatizando a

importância do maligno para o fortalecimento da Igreja através da evangelização, pois como

diz uma frase creditada ao escritor indiano Deepak Chopra “soltar os demônios pode ser

muito educativo em certas ocasiões”, e esta, com certeza, é uma delas.

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Capítulo 1 - Estão eivados o profeta e o sacerdotes16

Em meados do século XII, com a existência de uma Igreja Católica influente, em um

contexto marcado pelas mutações estruturantes sofridos pela Europa e pelo receio que essas

mudanças inculcavam, a figura do Diabo e de seus demônios cristalizaram-se no imaginário

popular absorvendo o espaço e muitas das características dos deuses do politeísmo17, sendo

muitas das vezes responsabilizados pelo que ocorresse de ruim.18

Esses demônios não se apresentavam somente para os leigos, mas também para

aquelas pessoas de extrema devoção, como veremos no relato de Santa Teresa d’Ávila.19

Seguindo normalmente sua rotina religiosa, certo dia, ao aproximar-se para comungar, Teresa

nota “com os olhos da alma, mais claramente do que com os do corpo, dois demônios de

muito abominável figura”20 cujos chifres rodeavam o clérigo que manipulava a hóstia a ela

destinada. Percebendo estar o padre em pecado mortal, a Santa desconcerta-se pela ofensa que

aquelas mãos causam ao tocar o corpo de Cristo.

Descrito pela Santa em sua autobiografia, este primeiro momento de nossa narrativa

está retratado em um dos painéis laterais que ornam a Ordem Terceira do Carmo do Recife.

16 Jeremias 23:11.17 É recorrente na historiografia sobre o Diabo sua associação ao deus grego Pã, tido como fonte para uma

concepção visual do rei infernal no imaginário popular. “Para Luther Link, as características pictóricas de Pãinfluenciaram a iconografia e a representação do Diabo em cinco características físicas que persistem até osdias de hoje no imaginário ocidental sobre o Diabo. Essas características incluem os chifres, cascos, orelhas,rabo, e a parte inferior do corpo peluda.”ALMEIDA, Marcos. O Diabo e a Indústria Cultural: as diversas faces da personificação do mal nas telas decinema. In: Revista Nures, nº. 16, set./dez, 2010, p. 31.

18 MUCHEMBLED, Robert. Uma História do Diabo: séculos XII a XX. Lisboa: Terramar, 2003, p. 19-21.19 Inclusive há mais mérito na tentação do virtuoso do que na do homem comum, pois este está mais próximo

de Deus.20 ÁVILA, Santa Teresa. Livro da vida. Trad. Marcelo Musa Cavallari. São Paulo. Penguin: Companhia das

Letras, 2010, p. 368.

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Figura 1 - Padre celebra missa empecado mortal – Igreja da OrdemTerceira do Carmo do Recife.Pintura: João de Deus e Sepúlveda.Foto: André Honor. Dia 20, Abr.201521

Com a presença do clérigo preparando a comunhão, da mulher vestida com o traje

tipicamente utilizado nas retratações da santa abulense e das duas figuras grotescas no canto

superior esquerdo, é possível estabelecer a relação entre esta imagem e o acontecimento

narrado por Teresa no Livro da Vida. Todavia, uma boa história é sempre mais complexa do

que parece, sendo necessário esmiuçá-la para a compreensão geral de sua mensagem.

Se nos atentarmos à posição de cada personagem na cena, percebemos nitidamente a

divisão destes em duas extremidades opostas do quadro, trazendo a simbologia presente na

separação entre “direita” e “esquerda”. A direita na composição artística traz a ideia de

destreza, advinda da habilidade com a lança na antiguidade clássica; além disso, é à direita

que estarão os Eleitos no dia do Juízo Final e, portanto, é a localidade do bem no plano

bidimensional da pintura. Em contraposição, os Danados estarão à esquerda no dia da

21 Esta imagem, e todas as outras que se seguirem neste trabalho, foram retiradas do sitehttps://pinturasantateresa.wordpress.com/, confeccionado por mim e pelo meu orientador André CabralHonor, como resultado da pesquisa “A hagiografia de Santa Teresa de Jesus em 13 painéis da Igreja daOrdem Terceira do Carmo do Recife, capitania de Pernambuco”.

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Prestação de Contas com o Senhor e, inclusive a palavra sinistro derivada do latim sinistre,

significa esquerdo(a)22, demonstrando o espectro infausto no qual o termo se insere.

Na Bíblia, olhar à direita (Salmos, 142, 5) é olhar para o lado do defensor; élá o seu lugar. Como será o dos eleitos no Juízo Final, quando os Danadosficarão à esquerda. A esquerda é a direção do inferno; a direita, a do paraíso[...] Enfim, a direita possui um valor benéfico, e a esquerda parecemaléfica.23

Essa divisão bilateral evidencia de forma bastante latente a contraposição dicotômica

entre o bem e o mal, alegorizados nos personagens de nossa história. Do lado direito do painel

vemos Santa Teresa ajoelhada abaixo de um anjo vindo do céu. Essa dupla postada no lado

direito do painel desempenha o papel dos “heróis” que buscam a salvação do padre

atormentado pelos demônios. No lado esquerdo estão o padre em pecado preparando a hóstia

e duas figuras demoníacas acima dele, demonstrando o poder que exercem sobre aquele

clérigo e agindo como transmissores do pecado, estimulado pela tentação profana. Segundo

Clarice Aguiar no texto Com a permissão de Deus: o papel do Diabo em narrativas de

milagres, “é recorrente a disputa do diabo com anjos e santos pela alma dos pecadores, cujos

argumentos são fundados na lógica jurisdicional. Em princípio, aquele que peca pertence à

jurisdição do diabo, pois ao seguir o caminho do mal abandonou a proteção divina e a

possibilidade de se salvar”.24

Se compararmos a descrição do momento vivido por Teresa, constante em seu Livro

da Vida, e a composição utilizada por João de Deus e Sepúlveda, podemos notar uma espécie

de conflito em relação ao modo como o demônio se porta para exercer seu poder. Na narrativa

primeira, a Santa descreve dois demônios de abominável figura cujos chifres rodeavam a

garganta do clérigo, entretanto, no painel da Ordem Terceira Carmelita do Recife, percebe-se

na representação dos demônios a modificação de sua caracterização e de sua posição na cena.

Essas modificações podem ser vistas a partir da comparação de modelos iconográficos

diferentes que representam o mesmo episódio.

22 CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro, José Olympio, 1998,p. 342.

23 CHEVALIER; GHEERBRANT, 1998. p. 341-343.24 AGUIAR, Clarice. Com a permissão de Deus: o papel do diabo em narrativas de milagres (Península Ibérica

séculos XIII e XIV). Brasília, Dissertação de Mestrado, 2017, p. 13.

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Figura 2 – Gravura de Adriaen Collaert e Cornelis Galle, 1613.

A imagem acima foi retirada do livro de gravuras intitulado Vita S. Virginis Teresiæ a

Iesv ordinis carmelitarvm excalceatorvm piae restavratricis, de Adriaen Collaert e Cornelis

Galle, publicado pela primeira vez no ano de 1613 em Amberes, na Bélgica. Sua publicação

insere-se no contexto de reformulações pregadas pelo Concílio de Trento, no qual o ímpeto

em conter os avanços da Reforma Protestante estabeleceu um caráter difusor em relação aos

ritos da Igreja Católica e à Liturgia. Com esta finalidade, incentivou-se a publicação e

disseminação de livros, missais, crônicas, hagiografias e tudo mais que pudesse difundir o

ideal contrarreformista, com a pretensão de educar melhor os fiéis na dita verdadeira moral

cristã. Estas obras difundidas continham diversas ilustrações, principalmente gravuras, que,

além de complementarem o conteúdo litúrgico, contribuíram significativamente para a

expansão do catolicismo no território luso-americano.

Extremamente fiel à narrativa teresiana, esta primeira gravura traz o sacerdote com um

semblante abatido e triste, sendo aparentemente coagido pelas imensas figuras demoníacas

que, utilizando de sua força e de seus chifres afiados, dominam completamente a vítima.

Extremamente fortes e poderosos, os demônios parecem nem perceber a presença da

impotente Santa Teresa na cena.

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Essa representação passou a ser reformulada com o tempo de maneira a dar maior

protagonismo à Santa abulense, como é o caso de uma gravura do livro Vita effigiata et

essercizi affettiui di S. Teresa di giesu maestra di celeste dottrina per il giorno della sacra

comunione, publicado originalmente em 1655 e editado em Roma em 1670.

Figura 3 – Gravura da obra Vita effigiata et essercizi (...), 1670.

Aqui, em vez de ser colocada como mera espectadora do acontecimento, Teresa é

posta em primeiro plano com um reforço angelical que a retira de sua impotência e lhe

permite confrontar os enviados do Diabo. Confirmando o protagonismo dado à Santa e

reformulando a narrativa da cena, as representações dos demônios também são alteradas. As

duas criaturas são representadas em um tamanho muito menor e apenas um deles segura o

padre e o ameaça com o chifre, enquanto o outro leva as mãos à cabeça em uma reação de

desespero, provavelmente com medo da intervenção feita pela agora imponente Santa Teresa

d’Ávila.

Seguindo o movimento de reestruturação e ressignificação deste capítulo da história e

de seus personagens, trato agora de uma gravura do livro Vita effigiata della seráfica vergine

S Teresa di Gesú fondatrice dell'Ordine Carmelitano Scalxo, publicado por Arnold van

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Westerhout em Roma, no ano de 1716 (Fig. 4). Esta é a obra que mais se aproxima

cronologicamente e esteticamente das representações elaboradas por João de Deus e

Sepúlveda para os painéis da Ordem Terceira do Carmo do Recife, sendo seguramente

atestada como o modelo utilizado pelo artificie pernambucano.25

Figura 4 – Gravura de Arnold van Westerhout, 1716

Nesta imagem, muito parecida com a pintura feita por Sepúlveda, a Santa segue

acompanhada pelo anjo enquanto tenta interferir no domínio estabelecido pelos demônios em

relação ao sacerdote. Entretanto, os seres malignos são gravados em uma escala menor do que

se imaginaria utilizar para representar as criaturas ditas abomináveis na autobiografia

teresiana. Além disso, os demônios são retirados de sua proximidade física com o padre,

sendo colocados em outra localidade.

25 Esta conclusão é fruto do projeto “A hagiografia de Santa Teresa de Jesus em 13 painéis da Igreja da OrdemTerceira do Carmo do Recife, capitania de Pernambuco”, realizado no programa de Iniciação Científica daUniversidade de Brasília, sendo sua primeira etapa financiada pelo CNPq e sua segunda etapa pela FAP-DF.

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A cabeça é tida na simbologia como a parte do corpo capaz de exercer a autoridade de

governar, ordenar e esclarecer os demais componentes de nosso sistema.26 Posicionados

naquela localidade da composição, os demônios passam a deter o poder de governar o

sacerdote em pecado, não mais pela coerção física ilustrada nas gravuras anteriores, mas por

meio das tentações inculcadas a partir do domínio sobre a mente daquele homem.

É possível notar ainda as expressões de preocupação emitidas pelas criaturas malignas

ao verem Teresa, iluminada pela ação angelical, aproximar-se do padre. Um dos demônios

chega a puxar os seus cabelos, enquanto o outro estica os braços em direção ao pecador, como

se quisesse retirá-lo da influência da Santa.

Se na primeira gravura não há intervenção divina, na segunda a cena é modificada

para iniciar a manifestação angelical, que será concretizada na Figura 4. Essa narrativa

demonstra através do seu desenvolvimento cadencioso o conflito de opostos totalmente

antagônicos que acaba por confirmar suas virtudes intrínsecas, pois assim como o demônio é

capaz de influenciar o ser humano, o divino também o faz, alterando apenas o sentido desta

intervenção.

A polarização da experiência religiosa no mesmo período, com suademonização de oponentes religiosos e sua preocupação com o Anticristo,também atesta o poder formativo do dualismo cristão, bem como a enormeextensão do interesse no demoníaco que marcou a teologia e a escatologia dasduas reformas.27

Percebe-se então que Sepúlveda segue em sua produção as alterações efetuadas no

sentido simbólico da representação demoníaca no episódio em questão, em um movimento

que retira a coercitividade física e violenta do ato diabólico, e o enquadra em um patamar

muito mais sutil, mas não menos danoso, dos pecados e tentações.

A alegoria do padre que peca por influência do demônio não é novidade nas narrativas

cristãs, sendo um exemplo característico da disputa maniqueísta entre o bem e o mal.

26 CHEVALIER; GHEERBRANT, 1998. p. 221.27 CLARK, Stuart. Pensando com Demônios: a ideia de bruxaria no princípio da Europa Moderna. São Paulo;

EDUSP, 2006, p. 122.

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[...] havia uma descrição da história humana como uma guerra contra a“cidade de Deus” com suas perfeições, e a “cidade de Babilônia”, com ascorrupções contrárias: as últimas incluíam “o príncipe injusto, o cortesãosicofanta, o soldado desleal, o conselheiro falso, o comissário não dedicado,o parente sem amor, o advogado cúpido, o clérigo ignorante, o padrevaidoso, o mercador desonesto, o jovem imodesto e o povo sem amizade”.Deste embate se originavam os ataques e decepções demoníacos quegeralmente perturbavam a fortaleza da fé.28

O painel representado na Figura 1, utilizando-se desta alegoria, traduz a dicotomia

entre bem e mal, céu e inferno, Deus e Diabo, remetendo à ideia de uma ação indireta do

maligno, na qual os demônios demonstram o poder que exercem sobre cristão ao retirá-lo de

seu caminho sagrado, pois assim como a serpente agiu com Adão e Eva, os demônios

simbolicamente postados sobre a cabeça do padre, dominam os seus pensamentos e,

consequentemente, as suas ações. Corroborando com esta alegorização do clérigo ignorante e

do padre vaidoso, encontramos um caso inusitado entre os padres da própria Ordem Carmelita

do Recife.

Cansado de “regular” a boa disciplina de alguns religiosos sob sua jurisdição, o frei

João de Santa Rosa, provincial da Ordem sobredita, envia a 22 de agosto de 1770 um ofício

ao Secretário de Estado da Marina e Ultramar comunicando sua desistência do cargo do qual

estava incumbido. Segundo relata o provincial existiam em Recife alguns escândalos carnais

relacionados a alguns religiosos carmelitas e, mesmo que ele os tentasse “recolher ao

convento aonde se reprimissem dos excessos escandalozos que cauzavai a tantos annos na

referida caza de prazer”, seus esforços se demonstravam em vão.29

Acrescentando valor a essa documentação (e à fofoca), frei João de Santa Rosa anexa

ao ofício uma relação dos padres ignorantes e de seus respectivos delitos, sendo comum a

reclamação referente ao gasto exorbitante dos religiosos com comes e bebes e com o aluguel e

construção de casas sem valor para a Igreja, tendo o Padre Frei Francisco de Santa Rita

Aragão chegado a cometer o “grande crime do furto de dez mil, tantos cruzados, feito ao

vigário desta paroquial”.

É interessante notar ainda a forma pela qual Santa Rosa refere-se aos motivadores de

seu descontentamento

28 CLARK, 2006, p. 122.29 AHU_ACL_CU_015, Cx. 109, D. 8461. CD 12, Pasta 146, 003, Arquivo 469.

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O Padre Frei Feliz de Santa Clara Irmão do dito Prior, vivendo fora doconvento em sua companhia com trattos illicitos e profanos sem lhe dar o ditoprior a reprehensão e castigo que merece sem culpa. […] e o Padre FreiFrancisco de Santa Rita Aragão, o maior hypocrita malévolo, e perseguidorda sua própria religião que desde os seus princípios deu evidentes provas dasua soberba. (Grifos meus)

Percebe-se neste discurso uma espécie de demonização dos religiosos envolvidos nos

“escandalos carnais”, estando estes em contato direto com o profano e tornando-se, de certa

forma, os perversos destruidores de sua própria fé, portando-se como um péssimo exemplo

aos fiéis da Ordem.

Inimigos internos da Igreja, estes clérigos frequentavam o Templo Terceiro do

Carmelo em Recife num período em que boa parte das pinturas já haviam sido feitas e

entregue e, ainda que não se possa inferir com certeza a relação entre os dois acontecimentos,

é seguro dizer que o quadro em que o padre celebra a missa em pecado ocupa lugar de

proeminência na constituição da narrativa persuasiva transmitida por Sepúlveda, pelo fato de

se tratar de um dos maiores painéis do templo, ocupando lugar de destaque em uma das

laterais da nave principal.

Essa busca deliberada pela persuasão através da arte barroca funciona por intermédio

de dois conceitos aristotélicos, a poética e a retórica. O primeiro nos traz os ideais de mimeses

e verossimilhança, ela é o “apropriar-se” dito por Argan30.

El recurrir a las categorias estéticas de Aristoteles nos ha mostrado que nonos encontramos ante un arte de lo real, sino de lo verosímil; la pretensión deuma imagen persuasiva hace elaborar una imagen sintética, más simbólicaque realista, que toma sus ideas de unos presupuestos esenciamente teóricose intelectuales.31

Já a retórica, pode ser definida como a capacidade de encontrar a melhor forma para se

passar uma mensagem, convencendo o receptor de que a ideia ali apresentada deve ser

adotada. Ela “não trata de nenhuma matéria específica, é apenas o meio de encontrar, ordenar

e expor ‘as coisas que são propícias para persuadir em qualquer assunto, numa civilização em

que ‘o falar é próprio do homem’”32. Portanto, pode-se dizer que a retórica é o aparato

30 ARGAN., 2004, p. 58.31 CHECA, Fernando; TURINA, José. El barrocoCHECA, Fernando; TURINA, Madrid, 1989, p. 221.32 ARGAN, 2004, p. 69

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utilizado para instaurar o caráter persuasivo por meio da teatralidade barroca.

Ao percorrer as mutações ocorridas no modelo iconográfico do painel representado na

Figura 1, sabendo que este processo se deu com todas as imagens presentes na Ordem,

podemos estabelecer a utilização da poética como forma de adaptação do painel a um formato

mais condizente ao contexto no qual se insere. Apropriando-se da vida de Santa Teresa, com

representações verossímeis de seu confronto com o demoníaco, buscava-se em sua

especificidade, um molde de conduta cristã que se opusesse ao profano. O mecanismo retórico

de transmissão deste modelo foi a teatralização da igreja terceira carmelita.

Neste caso, o próprio templo era um palco, onde as cenas, retratadas nas imagens,

encontravam na celebração da missa o enredo de sua peça. O fiel que adentrava aquela igreja

para assistir a uma celebração estava submetido a um turbilhão de sensações que

proporcionavam uma vivência única e transcendental.

As sensações eram transmitidas pelo cheiro dos incensos, pelos painéis com imagens

alegóricas e seus conceitos intrínsecos, pelas luzes das velas ou as que adentravam os vitrais,

e pelos cânticos que constituíam a trilha sonora daquela peça teatral. Tudo com o objetivo de

“fazer com que o Cristão se envolvesse por completo no culto católico, introjetando-o no

plano espiritual”33, internalizando no fiel o modelo de conduta cristão. “O ambiente barroco

desenvolvia-se, dessa forma, como uma grande encenação dramática, onde todos eram

espectadores de uma experiência inebriante, inusitada, monumental.”34

Ao encomendar retratos de momentos cruciais da vida de Santa Teresa, os mecenas de

João de Deus buscam estabelecer na nave do convento carmelita uma narrativa acerca do

modelo de vida a ser seguido pelos fiéis. Após conhecer a vida desta santa, tendo contato com

representações de seus ensinamentos e de suas visões, seguir seus passos torna-se o melhor

caminho a percorrer na busca de uma vida em conformidade com a doutrina cristã.

Essa conformidade remete-nos a outro conceito de extrema importância para a

compreensão do ambiente barroco-religioso. Herdada do latim, decorum, a ideia de decoro é

apresentada por Rodrigo Bastos como uma referência ao que convém, ao que é adequado. É

um conceito que remete ao devir a ser, à ideia de tornar-se algo em concordância com sua

essência. Aplicado ao campo das artes, o decoro é a bússola que guiará o artista pelo caminho

33 HONOR, 2013, p. 132.34 BAETA, Rodrigo Espinha. Teoria do Barroco. Salvador: EDUFBA; PPGAU, 2012, p. 196.

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da decência.

O decoro conservou sempre a responsabilidade por orientar o artista naprocura do que é adequado e conveniente, tanto em relação aos aspectosinternos e implícitos à obra (matéria, gênero, estilos, proporções, ordem edisposição apropriada de elementos e partes, ornamentos e elocuçãocaracterística, ética e patética, proporção de comodidades e efeitosadequados) quanto também em relação aos aspectos externos e circunstantesa ela, a recepção que a obra deveria ter pelos destinatários35.

No caso das três imagens selecionadas para esta pesquisa, um roteiro à parte é

recortado da grande peça teatral à qual a Ordem Terceira do Carmo do Recife se submete,

sendo as sensações e emoções transmitidas pela narrativa, estritamente ligadas à forma com a

qual o imaginário popular daquele contexto lidava com o demoníaco.

O primeiro painel discutido nos apresenta um par de demônios mais ardilosos do que

necessariamente fortes e que, em seu confronto com Teresa, tornam-se decorosos ao

confirmar a virtude da reformadora carmelita e o seu poder frente ao maligno, demonstrando

o quão benéfico foi o modelo de vida espiritual adotado pela santa e transmitindo a sensação

de segurança frente à atuação indireta do Diabo; ao contemplar o painel compreendemos que

para o nosso bem, basta afastarmo-nos do pecado e seguir o caminho da santidade.

No capítulo inicial de nossa história, os personagens são apresentados e o confronto

inaugurado, com aparente vantagem da santa abulense, que escoltada pela presença angelical,

interfere no domínio profano ao qual o sacerdote se submetia. Entretanto, como nos livros que

mais amamos, nossa história também traz uma belíssima reviravolta, redesenhando o

confronto e colocando em dúvida a supremacia teresiana frente aos vilões diabólicos.

35 BASTOS, 2013, p. 32.

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Capítulo 2 – O gladiador rubro

Prosseguindo no embate entre Santa Teresa e os demônios que a perseguiam, o

segundo retrato de nossa história diminui a expectativa daqueles que esperavam uma vitória

da carmelita ainda no primeiro round. Na Figura 5 está representado de forma explicita um

momento de dificuldade da Santa perante as forças malignas, no qual ao descer as escadas do

convento duas figuras aterrorizantes a empurram, jogando-a ao chão e subjugando-a.

Na busca pelo correspondente intertextual36 da obra em questão, descobrimos que,

diferentemente do que ocorreu com a Figura 1, o trecho utilizado para a construção imagética

da gravura utilizada por Sepúlveda não se encontra no Livro da Vida, mas sim na primeira

biografia escrita sobre Santa Teresa.

    Excluída sua autobiografia, o primeiro texto sobre a trajetória teresiana se deve ao

padre jesuíta Francisco de Ribera, que conviveu com Teresa em suas passagens por Medina

del Campo, Ávila, Salamanca e Valladolid, e se tornou um profundo conhecedor das obras

escritas pela Santa. Em 1587, Francisco redigiu o livro “La vida de la Madre Teresa de Jesús,

fundadora de las Descalças y Descalços Carmelitas”, que por conflitos em razão da obra não

ter sido escrita por um carmelita, só viria a ser lançado no ano de 1590.37

Segundo a historiadora Maria José Pinilla Martin, na biografia escrita pelo jesuíta

encontramos o enredo de nosso segundo capítulo.

“iba la Madre a completas con su luz en la mano, y después de habersubido toda la escalera, estando para entrar en el coro, quedó depresto como desatinada de la cabeza, y volvió atrás, y cayó, yquebróse el brazo izquierdo (…) la caída fue tal, y tan sin pensar, ytan sin ocasión, y tan grande, de que todas las de casa tuvieron porcierto haber sido el demonio el que se la hizo dar, y pareció más claro,porque diciéndola una hermana que el demonio debía de haber hechoaquello, respondió la Madre: Más mal quisiera aún él hacer, si ledejaran”38

36 Definida por Omar Calabrese, a intertextualidade denota a capacidade de um leitor compreender umanarrativa de forma pressuposta, através do conhecimento prévio de alguma história já produzida,denominada intertexto. CALABRESE, Omar. Como se lê uma obra de arte. Lisboa: Cátedra, 1993, p. 39.

37 BEZARES, Luis. La dualidad de Teresa de Jesús y el proyecto de “Jesuitas descalzos”.Hispania Sacra, v.68, n. 137, 2016, p. 304.

38 RIBERA, F. de, Vida de la Madre Teresa de Jesús, Salamanca, Pedro Lasso, 1590. in Pinilla Martín, MaríaJosé, Iconografía de santa Teresa de Jesús, Universidad de Valladolid, 2012, p. 694.

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De acordo com Ribera, ao subir a escada do convento que levava ao coro alto Santa

Teresa sofre um mal súbito e, antes mesmo de conseguir se apoiar, cai de costas e despenca

pela escada, fraturando seu braço esquerdo com o impacto. Por ter sido uma queda tão boba,

com um estrago tão grande, certamente só poderia ser obra do demônio, como assim disseram

as irmãs que rodeavam a cena.

Alguns desses elementos presentes no discurso são ressignificados ou adquirem um

papel mais relevante quando transpassados para o plano imagético da reprodução

sepulvediana. Se nos atentarmos à construção iconográfica da Figura 2 veremos dois

demônios pintados em uma escala muito maior que na Figura 1, sendo que um deles traz

ainda uma serpente – figuração do espírito do mal39 - enrolada ao redor de seu corpo. Os

demônios aqui são representados com mais poder, com sua força somada ao espírito maligno

da serpente.

Figura 5 – Teresa é Empurrada por Demônios – Igreja da Ordem Terceira doCarmo do Recife. Pintura: João de Deus e Sepúlveda. Foto: André Honor. Dia 20,

Abr. 2015.

39 CHEVALIER; GHEERBRANT, 1998, p. 805.

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Segundo Maria Cristina Bonetti, a simbologia da serpente é múltipla e expressa as

contradições presentes na dualidade entre o bem e o mal. Diz a autora que “a separação dos

dois conceitos como antagônicos coloca a Divindade, o bem, como criadora e vencedora; e a

Serpente40 como monstro, o mal”41.

Abrindo mão de toda a discussão acerca da sobrevivência e mutação do mito da

serpente, feita por Bonetti em sua tese de doutaramento, e focalizando o aspecto simbólico

que este animal adquire em diversas partes dos textos cristãos, podemos elencar dois

momentos extremamente importantes da doutrina católica nos quais a serpente se fez presente

como a grande hospedeira do Mal.

O primeiro, e provavelmente mais conhecido, remete à criação do mundo e do homem

descrita no livro de Gênesis. Após ter realizado quase toda sua criação, Deus decide conceber

o homem à sua imagem e semelhança e dar-lhe a mulher como parceira. Presenteando-os com

todo o Éden, a única ressalva feita pela divindade é a de que nenhum dos dois consumisse os

frutos da árvore da ciência do bem e do mal, sob pena de morte. Entretanto, tentada pela

astúcia da Serpente que um dia a acompanhava, Eva decidiu experimentar o fruto proibido e

deu a seu companheiro partes do alimento, cometendo o Pecado Original e comprometendo a

existência do restante da humanidade.

O segundo trecho, também retirado da Bíblia, é encontrado em Apocalipse 11:12. Nele

é descrita a aparição de uma mulher grávida revestida pelo sol, com a lua abaixo dos seus pés

e uma coroa de estrelas sobre a cabeça. Enquanto a mulher paira pelo céu, um abominável

dragão de sete cabeças coroadas e dez chifres aparece na espreita, ansioso pelo parto da

criança que desejava assassinar. No entanto, por interseção divina o filho da mulher é

resgatado e posto sob a guarda de Deus, ao passo que a mulher consegue fugir para o deserto.

Irado com o acontecido, a criatura maligna entra em guerra contra os anjos do Senhor e após

40 Em alguns momentos a serpente também carrega a simbologia de algo benéfico, principalmente quandorelacionada a Moisés. Dois são os exemplos bíblicos desta representação: em Êxodo, Capítulo 7, a vara deMoisés transforma-se numa serpente frente ao Faraó, como forma de se provar os milagres de Deus; já emNúmeros, Capítulo 21, Moisés fez uma serpente de bronze e a colocou num poste. Quando alguém erapicado por uma serpente peçonhenta e olhava para a serpente de bronze, permanecia vivo e curado.

41 BONETTI, Cristina. O sagrado feminino e a serpente: Performance mítica na simbologia das dançascirculares sagradas. (Tese de doutorado). Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, Goiânia, 2013. p. 342.

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ser derrotado é revelada sua verdadeira identidade, ao dizer que “foi então precipitado o

grande Dragão, a primitiva Serpente, chamado Demônio e Satanás.”

Presente do início ao fim da Sagrada Escritura, a serpente é a materialização do mal,

representando inicialmente a tentação ardilosa pela qual Eva se deixou manipular, e mais

adiante, fortalecida, aparecendo sob a forma do grande Dragão, que ousa desafiar o próprio

Deus. Além do mais, é importante destacar nos dois trechos o fato de as vítimas da cobra

serem mulheres. Segundo Maria Bonetti, o Mito da Serpente

considerado sagrado para muitas culturas, foi constitutivo na políticapatriarcal, tornando-se um símbolo demonizante e atuando em detrimento doSagrado Feminino. Verifica-se, ainda, no ocidente, sob a influência da IgrejaCristã, que esta representação foi marcada pela associação da serpente com ofeminino sinistro. 42

Isto posto, o fato de se representar a serpente como parte do demônio que ataca Santa

Teresa vai além da simples potencialização da força da criatura pela importância simbólica

que este animal carrega relacionado ao maligno na doutrina cristã. Tendo enganado Eva nos

primórdios da humanidade, e atacado a mulher que dava à luz a um menino santo e protegido

por Deus, a serpente representa a fragilidade da mulher frente o demoníaco.

Ao contrário da madona do apocalipse, Santa Teresa não consegue conter o ataque da

Serpente, nem fugir para o deserto, sendo representada no chão, impotente, derrubada pelas

forças do mal e com uma expressão de terror. Em mais uma ligação com a Figura 1

percebemos que agora os demônios, após empurrarem Teresa ao chão, assumem o lugar que

na primeira imagem era ocupado pelo anjo. Agora são eles que estão sobre a cabeça da

carmelita, do mesmo modo como anteriormente estiveram sobre a cabeça do padre pecador.

Cabe destacar que Teresa foi empurrada de cima de uma escada. A escadaria da qual

Santa Teresa é empurrada nos permite compreender a imagem em um sentido mais amplo.

Recorrendo aos escritos teresianos que encontramos no Livro da Vida podemos nos

questionar acerca da importância simbólica que a escada e a queda podem assumir nas

produções referentes à vida da santa abulense e ao seu confronto com o demônio.

Já basta para se ver as Suas grandes misericórdias, não uma senão muitasvezes em que tem perdoado tanta ingratidão. A S. Pedro, uma vez; a mim,

42 BONETTI, 2013. p. 27.

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muitas. Com razão me tentava o demônio para não pretender amizade tãoestreita com Quem usava de inimizade tão pública. Que cegueira tão grandea minha! Onde pensava eu, Senhor meu, encontrar remédio senão em Vós?Que disparate fugir da luz para andar sempre tropeçando! Que humildade tãosoberba inventava em mim o demônio: apartar-me de estar arrimada à colunae ao báculo que me havia de sustentar para não dar tão grande queda!43

Nesse trecho, Teresa expõe a dicotomia entre o bem e o mal e a forma com que o

demônio buscava desvirtuá-la por meio das tentações, fazendo-a pensar em “fugir da luz para

andar sempre tropeçando”. É interessante notar que a Santa realiza uma espécie de autocritica

com relação ao seu comportamento soberbo, à sua falta de humildade. Assim como a soberba

de Eva fez com que ela, tentada pela serpente, rejeitasse os ensinamentos de Deus para se

alimentar do fruto proibido, os demônios inventavam em Teresa a soberba para apartá-la da

coluna e do báculo.

A temática deste excerto conserva muito da apresentada no Capítulo 1 acerca do padre

em pecado, pois traz a ideia do demônio como tentação, mas o que nos importa agora é a

simbologia pela ideia da “coluna e do báculo44” que segundo Teresa, deveriam sustentá-la

“para não dar tão grande queda!”.

Nessa passagem o báculo pode ser entendido como um símbolo da Igreja e do Clero

como detentores do poder de guiar os fiéis na estrada da devoção. Já a coluna tem uma forte

carga simbólica na trajetória de Teresa, pois em 1556, participando de uma festa de

Pentecostes, Teresa é arrebatada ante uma imagem de Cristo atado à coluna no momento de

sua Paixão. Segundo a Santa, ao ver Cristo tão chagado e ainda assim tão piedoso, ela se

jogou aos pés da imagem chorando compulsivamente e experimentou naquele momento sua

conversão definitiva.

Com o exame intertextual entre os dois trechos trazidos até aqui somado à imagem,

podemos entender a escada da qual Santa Teresa cai como a coluna e o báculo que a

mantinham na retidão do caminho de Cristo, sendo a queda da Santa o momento no qual as

forças demoníacas conseguem diminuir a sua força espiritual, ainda que temporariamente.

43 ÁVILA, 2010, p. 174.44 O báculo é um bastão de extremidade curva utilizado por pastores para auxiliar na condução do gado.

Adaptado à Igreja Católica, este bastão é utilizado pelos bispos como instrumento simbólico que ostransforma em guias do rebanho de Deus.

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A escada é o símbolo da evolução, do caminho a ser percorrido para subir aos céus e

alcançar o saber divino. Além disso, traz a ideia de sustentação, sendo a representação do

“eixo do mundo” e da conformidade. Ao empurrar Teresa da escada, os demônios retiram sua

sustentação e a desviam de seu caminho divino, gerando o caos.

Na Figura 5, ao extrapolar o que é dito nos textos teresianos, os demônios são

representados em uma situação que demonstra a ação do mal de forma mais direta, trazendo a

noção de que a força maligna não se limita apenas às tentações. Nesse contexto, o Diabo é

uma criatura poderosa, que pode causar algo além do simples conflito moral e espiritual.

Aqui, o inimigo de Deus é colocado como uma ameaça física, que tem o poder de subjugar até

mesmo a uma Santa tão poderosa quanto Teresa de Jesus.

Além disso, acho importante trazer uma última análise, que foge um pouco ao tema

central da narrativa, mas que é extremamente relevante. Ofuscado pelo grandioso demônio

fortalecido pela cobra, existe uma segunda figura diabólica que chama atenção pelo atributo

que veste: uma saia de penas, típica das representações de indígenas americanos.

O primeiro passo dado ao buscar compreender a importância deste elemento na

composição do painel em questão foi compará-lo à gravura matriz de Arnold von Westerhout,

que como vimos no capítulo anterior, serviu de modelo decoroso à produção de Sepúlveda.

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Figura 6 – Gravura Arnold van Westerhout, 1716

Detendo-nos na imagem do demônio em segundo plano, postado atrás do companheiro

que carrega a serpente, constatamos a ausência da saia de penas vestida pelo demônio de

Sepúlveda, demonstrando um dos raros momentos no qual o artífice pernambucano altera

algum atributo da gravura original. Isto posto, não se pode esclarecer se esse foi um pedido

feito pela ordem, ou uma alteração feita pelo próprio pintor, o que se pode acertar é que, ao

caracterizar um dos filhos de Satã com as vestes atribuídas aos indígenas, Sepúlveda perpetua

a demonização alegórica dos nativos, pensamento comum ao período.

A mescla do demônio com o índio – ambas figuras do medo – sugereque o temor do desconhecido também se misturou com a condenaçãodos costumes indígenas, de acordo com as pregações dos missionáriosportugueses. Ao apresentar o demônio com atributos do indígena [...],a pintura provoca uma inversão de sentido, pela qual o índio passa ater os atributos do demônio.45

45 BELLUZZO, Ana. Brasil dos Viajantes – A Propósito D’o Brasil dos Viajantes. Revista USP. São Paulo,1996, p. 13.

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Laura de Mello e Souza nos oferece uma bela reflexão em seu O Diabo e a Terra de

Santa Cruz, na qual defende que, assim como fez com a Ásia durante muitos anos, o europeu

projetava no Outro da América portuguesa alguns traços de seu imaginário, sendo o novo

continente visto ora como Paraíso, ora como o Inferno.46

Entretanto, neste paradoxo em que está inserido o Novo Mundo, prevaleceu a ideia de

um ser humano bestial e na maioria das vezes demonizado, como podemos notar na afirmação

do frade franciscano André Thévet de que “induzidos ao erro pelo Maligno, incapazes de

discernimento por serem privados de razão, os indígenas atolam-se mais e mais no engano da

idolatria: adorando o Diabo através de seus ministros, os pajés”.47

Desta forma, o demônio alegorizado realiza mais um de seus deveres decorosos,

alertando para uma das possíveis formas de manifestação do poder diabólico na sociedade

daquele contexto, através da “bestialidade” indígena. Como defendido por Vainfas em um

diálogo com Jean Delumeau, os europeus, “prisioneiros da confusão entre céu e inferno”

presente na velha cristandade, trouxeram para a América “seu próprio diabo nos porões de

seus navios” junto de “seus conflitos e dilemas religiosos, que não tardariam a projetar-se em

seus discursos e imagens acerca do índio”.48 Através da relação entre um forte imaginário

europeu que tende a projetar no Outro os seus medos e os seus desejos, somado às incertezas

do desconhecido e ao estilo de vida “prófugo” dos nativos, a demonização do índio segue a

lógica do comportamento tipicamente europeu nas suas relações com aqueles que são

diferentes49.

Fátima de Martins Lopes traz, em sua tese de doutoramento, um caso extremamente

útil para entendermos como essa visão profana do índio perdurou através do tempo. Em 10 de

junho de 1779 o índio José Antônio de Crato denunciou outros índigenas na Paraíba por

serem surpesticiosos e renunciarem a fé cristã. Segundo a transcrição do documento presente

na tese supracitada, José Antônio acusou seus semelhantes de serem “...curadores de feitiços”,

para os quais era necessário a utilização de “cruzes de fumo, chamando por Deus, e ao mesmo

46 SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no BrasilColonial. São Paulo: Cia das Letras, 1989. p. 25-47

47 SOUZA, 1989., p. 7048 VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios. Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia

das Letras, 1995, p. 63.49 Tzvetan Todorov demonstra esta relação de maneira brilhante em seu A Conquista da América: a questão do

outro.

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tempo tocando maracás, dançando e cantando despropósitos e profanidades; tomando e dando

bebidas aos enfeitiçados, com certos modos de postura, para verem o que querem, dizendo

que o que não podem conseguir por bem, conseguem pelo diabo”50.

A autora reconhece na prática denunciada traços do chamado catimbó, ritual indígena

que sincretizava elementos do cristianismo e da religião nativa.51 Diferente do tradicional rito

cristão e levado a cabo por criaturas que se equilibravam em uma linha tênue entre o humano

e o animalesco, a tradição indígena era facilmente ligada à feitiçaria e os seus praticantes

eram vistos como servos do senhor das Trevas.

Com a inserção da besta-índio na narrativa transmitida, Sepúlveda aproxima a história

contada à realidade, demonstrando que aqueles demônios extremamente poderosos e

auxiliados pela Serpente estão ao redor de toda a sociedade e podem, a qualquer momento,

atacá-los e tomá-los sob o seu poder, tal qual feito com Santa Teresa. A história agora torna-se

mais interessante, pois descobrir se (e como) Teresa escapa do jugo demoníaco, além de saciar

a curiosidade, indicaria que os irmãos leigos também poderiam fazê-lo.

50 LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o DiretórioPombalino no século XVIII. 2005. (Doutorado em História do Brasil). Universidade Federal de Pernambuco.Recife, p. 337-338.

51 LOPES, 2005, p. 338

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Capítulo 3 – Livrai-nos de todo o Mal. Amém!

Nas figuras 1 e 5 os demônios são representados como seres extremamente ardilosos e

poderosos, conquistando no primeiro momento o padre, que deveria ser um “soldado” de

Deus, e subjugando num segundo momento, através da força bruta, uma das mais importantes

santas do catolicismo. Sendo assim, como poderia o pobre irmão terceiro carmelita, um leigo,

filho do mundo, resistir às ações e tentações do maligno? É neste sentido que caminha o

terceiro painel.

Entretanto, para a melhor compreensão da mensagem transmitida por este painel é

necessária uma análise de sequência inversa à que está sendo feita até aqui, passando a ter

como ponto de partida a observação da gravura para só depois nos debruçarmos sobre a peça

confeccionada por Sepúlveda.

Figura 7 – Gravura Arnold van Westerhout, 1716

A Figura 7 também faz parte do livro de gravuras produzido pelo artista romano

Arnold van Westerhout. A qualidade técnica empregada por Arnold na representação dos

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utensílios carregados pelos anjos permite que os identifiquemos com facilidade e,

consequentemente, que entendamos melhor o contexto retratado. Na gravura podemos

perceber claramente que Teresa segura uma espécie de cinto em suas mãos e que, diante dela,

estão expostos um crânio, um molho de chaves e um ramalhete de urtigas, como indica a

descrição da imagem. Aos seus pés notamos diversos arbustos espinhosos. Na parte superior,

alguns anjos assistem à cena e três deles carregam os seguintes instrumentos: ramos

espinhosos envoltos por um manto, um pilar e uma lança. No fundo da cena um demônio foge

enquanto olha para trás com um semblante raivoso.

Percorrendo os textos teresianos através de suas obras publicadas e das biografias

produzidas sobre sua jornada, encontramos um trecho que faz alusão a um demônio que foge

após muito mal ter feito à santa carmelita. Caminhando para o final de sua autobiografia,

Santa Teresa queixa-se forçosamente das ideias que lhe “punha na mente o demônio” de

questionar sua vocação, fazendo-a refletir se aguentaria ou não, com tantas doenças,

enclausurar-se em uma “casa tão rigorosa, pois desta forma como aguentaria tanta

penitência...?”52

Neste fragmento Teresa expõe seus anseios e as provocações que sofre pela ação

instigante do demônio. Mas logo em seguida ela mesma informa sobre os artifícios de que se

utilizou para se tranquilizar e se libertar da influência maligna, espantando os filhos de

Lúcifer para longe de si.

E assim comecei a recordar-me de minhas grandes decisões de servir aoSenhor e desejos de padecer por Ele. E pensei que, se havia de cumpri-los,não deveria andar à procura de descanso. E que, se tivesse provações, esseera o mérito, e se tivesse tristeza, desde que eu a tomasse para servir a Deus,me serviria de Purgatório. De que tinha medo? Se desejava provações, queboas eram estas! Na maior oposição estava o lucro. Por que haveria de mefaltar a coragem para servir aquele a quem tanto devia? Com essas e outrasconsiderações, esforçando-me muito, prometi diante do SantíssimoSacramento fazer tudo que pudesse para ter licença para vir para esta casae, podendo fazê-lo com boa consciência, prometer clausura. Fazendo isso,num instante fugiu o demônio e me deixou sossegada e contente.53 (Grifosmeus)

52

ÁVILA, 2010, p. 338.53 ÁVILA, 2010, p. 339-340.

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No trecho sobredito os medos e confusões de Teresa cessam na medida em que ela se

recorda de seu dever de servir e padecer perante Cristo, pois se esta é sua missão, “por que

haveria de lhe faltar coragem?”. Essa consciência faz com que a Santa prometa diante do

Santíssimo Sacramento enclausurar-se e fazer tudo o que for possível para servir bem a Deus.

Feito isso, o demônio foge instantaneamente, deixando-a em paz de espírito.

Isto posto, partamos para uma análise mais aprofundada da gravura, buscando

identificar a função de cada elemento e a mensagem a ser passada pelo último capítulo de

nossa história. Começando pela representação da mesa posta com um crânio, um molho de

chaves e um feixe de urtigas, encontramos uma alegoria de significação ampla na qual os três

elementos se complementam.

Segundo o Professor e Investigador de Teoria da Arte Luís Calheiros, o crânio é é o

“emblema mais imediato e certeiro” da morte, sendo utilizado no decorrer dos séculos para a

composição imagética das Vanitas, famosas “expressões artísticas que traduzem, de maneira

simbólica e num registo eloquente, sibilino, a nossa relação conflituosa com a morte”54. Para

Chevalier e Gheerbrant, ele pode ser um símbolo referente ao “ciclo iniciático: a morte

corporal, prelúdio do renascimento em um nível de vida superior, e condição do reino do

espírito”55. Já a chave representa “não só uma entrada num lugar, cidade ou casa, mas acesso a

um estado, morada espiritual, ou grau iniciático”56.

O crânio e a chave trazem para a cena a ideia da transcendência espiritual de Santa

Teresa naquele momento, passando de um estado inicial para um estado mais sublime. Aos

que meditam e buscam compreender a fugacidade da morte é dada a chave para a experiência

divina.

Mas para compreender o meio para se alcançar tamanha graça, é necessário atentar-se

ao papel da urtiga nesse cenário e compreender sua função narrativa. A urtiga é uma planta

que causa queimaduras na pele, mas que se bem preparada pode tornar-se um valoroso

remédio. Sendo uma substância capaz de causar dor, mas que ao mesmo tempo pode ser

utilizada para potencializar a cura, a representação simbólica da urtiga pode ser entendida

54 CALHEIROS, Luís. Entradas para um Dicionário de Estética: Vanittas Vanitas et Vanitatem - VanitasVanitatum - Vanitas Vanitatis et Omniia Vanitas. Revista Millenium, nº 13, 1999 p. 1.

55 CHEVALIER; GHEERBRANT, 1998, p. 29956 CHEVALIER; GHEERBRANT, 1998. p. 233

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como uma alegoria da Salvação intermediada pelo sofrimento e pela penitência, pois através

de ações consideradas prejudiciais em si mesmas almeja-se alcançar um bem maior em

potencial.

Ora, movendo os olhos da mesa para Santa Teresa, percebemos que sua efígie é

representada segurando um cilício e pisando sobre ramos espinhosos. Estes elementos aludem

à ideia da penitência mediante a mortificação do próprio corpo para a remissão dos pecados.

Corroborando com a interpretação de que se trata de um momento de penitência, María José

Pinilla Martín propõe que os anjos desenhados nesta gravura carregam a “coluna da

flagelação, a coroa de espinhos e uma lança”, símbolos da Paixão de Cristo.

Teresa de Jesús se encuentra de pie en el centro de la celda. Sostiene en susmanos un cinturón y observa un grupo que ángeles que portan losinstrumentos de la Pasión de Cristo (columna de la flagelación, corona deespinas, lanza y tenazas). En la mesa hay una calavera, ortigas y llaves. Bajolos pies de Teresa, espinas. Un diablo huye por la puerta.57

Mais uma vez a conversão de Teresa frente ao Ecce Homo faz-se presente na

argumentação retórica da produção artística sobre sua vida. O impacto que este momento

causa na Santa reverbera em diversas partes de seus ensinamentos e é geralmente atrelado à

importância da meditação e da flagelação.

Em seu Caminho de Perfeição, Teresa prega que nos momentos de tristezas e

sofrimento devemos olhar para a imagem de Cristo “atado à coluna, cheio de dores”, com “as

carnes dilaceradas, pelo muito que vos ama”, ou observá-lo “carregando a cruz, sem que os

algozes o deixem respirar à vontade”58. Diante destas visões o nosso sofrimento seria nada e

nos restaria a penitência como forma de compartilhar da dor de Cristo nos redimindo de

nossas culpas.

Luís Felipe Sobral, ao comentar a obra Investigando Piero: o Batismo, o ciclo de

Arezzo, a Flagelação de Urbino, de Carlo Ginzburg, também expõe essa forte ligação entre a

flagelação e o episódio da Paixão de Cristo.

Se quarenta anos de discussão não produziram nenhum consenso sobre aFlagelação, ao menos delinearam duas teses gerais: de um lado, ela se aloja

57 PINILLA, María. Iconografía de santa Teresa de Jesús, 2013, p. 522.58 SANTA Teresa de Jesus. Caminho de perfeição, São Paulo: Paulinas, 1984, p. 152.

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em uma série iconográfica preexistente relacionada com a paixão de Cristo;de outro, trata-se de uma iconografia anômala, referente a acontecimentospolíticos e religiosos contemporâneos que mantêm uma relação simbólicacom a paixão de Cristo.59

A alegoria da flagelação, segundo Chevalier e Gheerbrant é o “símbolo de ações

próprias a pôr em fuga forças ou demônios que entravam a fecundidade material ou o

desenvolvimento espiritual”, ela representa a destruição da “desordem na sociedade ou no

indivíduo”.60

Deste modo, a fuga do demônio seria explicada pela flagelação de Teresa. Com a

automutilação e a purificação de sua alma, a Santa resiste às provações do maligno e

aproxima-se da vontade divina. Sua atitude penitencial ilustra aos fiéis uma maneira para se

livrar das tentações e agressões realizadas pelo Diabo e representa a derrota do pecado diante

do correto comportamento cristão.

Partindo agora para a tela na qual se transmite o capítulo final da história aos leigos da

Ordem Terceira Carmelita do Recife, é necessário reexaminarmos os variados aspectos que

constituem a composição imagética da gravura belga a fim de compreender as suas

continuidades e rupturas.

59 SOBRAL, Luís Felipe. No rastro de Piero. Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo, v. 2, n. 79, p. 217-220, 2012.Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092012000200017&lng=en&nrm=iso> Acesso em: 16 Mar. 2018.

60 CHEVALIER; GHEERBRANT, 1998, p. 433.

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Figura 8 – Teresa em Penitência – Igreja da Ordem Terceira do Carmo doRecife. Pintura: João de Deus e Sepúlveda. Foto: André Honor. Dia 20, Abr.

2015.

Na imagem, Teresa é apresentada pisando em um amontoado de galhas, segurando

algo semelhante a um lenço branco diante de um crânio posto sobre uma mesa. Na parte

superior, diversos anjos assistem à cena, sendo que três deles carregam um manto roxo com

algo esverdeado no centro, um pilar e uma lança. No fundo da cena o demônio da gravura

continua a fugir.

A alteração de alguns dos elementos da composição imagética do episódio em questão

são essenciais na busca por compreender o intuito da narrativa proposta por Sepúlveda. À

primeira vista a mudança que mais salta aos olhos é a troca feita por Teresa, que deixa de lado

o cilício que empunhava para carregar um lenço branco. Aos pés da Santa encontramos outra

modificação, muito mais sutil do que a primeira, mas, ainda assim, extremamente

significativa. Nos traços de Westerhout Teresa pisa em ramos cobertos por espinhos afiados,

em alusão à mortificação do corpo para a remissão dos pecados. Não obstante, na versão de

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Sepúlveda o chão está forrado por galhos sem espinhos que, por serem da mesma cor do piso,

passam despercebidos pelo olhar do observador desatento.

Em vista disso já podemos fazer algumas ponderações. As duas variações percebidas

até aqui revelam a preocupação de Sepúlveda e de seus encomendantes em amenizar o rigor

da penitência proposta pela gravura de Arnold. A supressão do cilício e dos espinhos retira da

cena muito de sua carga dramática, ao passo que a inserção do lenço branco, cor da pureza e

da inocência, suaviza o dever de penitência vinculada à mortificação do corpo. Levando em

consideração que o painel foi encomendado por uma Ordem Carmelita composta por leigos,

esse movimento de amenização das disciplinas é de extrema importância na preservação do

seu corpo de membros, já que estes não se submetiam à mesma cultura de autoflagelação que

os membros do clero regular.

Corroborando com a ideia de um painel confeccionado com o intuito de atingir a

população leiga do Recife podemos elencar mais uma modificação feita por Sepúlveda. A

Paixão de Cristo, alegorizada nos objetos carregados pelos anjos, continua como tema central

da narrativa, permitindo-nos compreender que toda a ação realizada por Santa Teresa objetiva

a remissão dos pecados em busca da transcendência espiritual que leva à salvação da alma.

No entanto, a coroa de espinhos foi substituída no painel por uma coroa de louros e ainda que

a coroa de espinhos seja o símbolo originário da cena em questão, sendo um dos instrumentos

utilizados para torturar Jesus pouco antes de sua morte, acredito que trocá-la por uma coroa de

louros não fere o decoro da representação, pois unida à vara e à pilastra ainda é possível

identificá-la como parte da alegoria da Paixão de Cristo.

Por outro lado, essa nova láurea carrega um duplo significado que transcende a pura

representação da Paixão. Em primeiro lugar ela alude ao pensamento de dar a César o que é

de César e a Deus o que é de Deus61. Ao substituir a coroa de Cristo pela coroa de louros o

pintor confirma o objetivo de construir um discurso imagético dirigido ao público leigo, pois

se a primeira é tida como o prêmio das pessoas santas, a segunda remete à glória do homem

comum. A coroa de louros é representante da graça e da vitória62, sinalizando aos leigos do

61 Mateus 22:21.62 Segundo Chevalier e Gheerbrant, na página 19 de seu Diccionario de Los Símbolos, do mesmo modo que

“la bandera es el emblema de la patria, el laurel” representa “la gloria”.

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Recife que eles também podem enfrentar os demônios que os perseguem e saírem vencedores,

dando formato ao segundo significado da coroa de louros.

As alterações feitas por Sepúlveda demonstram toda sua engenhosidade ao

transformar a gravura de Westerhout adequando-a às necessidades e aos objetivos da Ordem

Terceira do Carmo do Recife sem ferir o decoro artístico-religioso. Apoiado pelo pensamento

de Hansen, Rodrigo Bastos descreve o engenho como “uma capacidade do artífice em,

primeiramente, penetrar com perspicácia as matérias de invenção, para depois, com

versatilidade, aliá-las decorosamente na produção, criando efeitos convenientes de agudeza e

maravilha.”.63

A maravilha da obra dá-se pela sua capacidade de proporcionar encanto e deleite

através da formosura e do esplendor.64 Já a agudeza a que Bastos se refere alude à capacidade

de abstração e representação da realidade concreta na composição imagética estabelecida. É a

sensibilidade em se conformar harmonicamente pintura e contexto. Para compreender,

portanto, todo o engenho das alterações feitas por Sepúlveda, é necessário buscar nas fontes

como se comportava a população leiga do Recife setecentista com relação à forma de espantar

os seus “demônios”.

Na América portuguesa a reflexão penitencial com a ponderação acerca dos pecados

cometidos era comumente encontrada nos testamentos, onde a iminência da morte e o medo

do julgamento celestial orquestravam a confissão das transgressões empreendidas em vida.

Obra de incontestável valor em relação à prática do bem morrer no Brasil oitocentista, o livro

Nas fronteiras do além de Cláudia Rodrigues nos traz diversos testamentos que corroboram

com este pensamento.

Pelo fato de apresentar um texto que carrega muito da temática tratada neste capítulo,

decidi examinar aqui o testamento da pernambucana Francisca de Souza Melo, redigido no

dia 30 de dezembro de 1755, oito dias antes de seu falecimento. Protagonista de uma

existência difícil e atribulada, Francisca se despede da vida com evidente preocupação sobre

os pecados e as infrações que cometeu.

63 BASTOS, 2013, p. 49.64 BASTOS, 2013, p. 61.

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Primeiramente declaro e protesto que sou cristã por graça de Deus NossoSenhor e fiel católica romana, e que como tal creio e confesso tudo o queensina e crê a Santa Madre Igreja de Roma, estando pronta com a graça deDeus a dar a vida e derramar o sangue por está fé se necessário for, como omesmo Deus se dignou fazer mercê de dar a vida por ela tendo firme aesperança na misericórdia infinita de Deus de que sem embargos dos meusinumeráveis pecados me há de perdoar pelos infinitos merecimentos de NossoSenhor Jesus Cristo, fazendo eu da minha parte ajuda da sua graça, e pelapaixão e morte deste salvador, me há de dar a bem-aventurança eternaintercedendo a Santíssima Virgem Maria sua mãe refúgio dos pecadores,suposto que conheço que sou a maior delas e a mais ingrata que pisa a terra,e a que merece, eu ela não converta para mim seus olhos misericordiosos.(grifos meus)65

Aqui o testamento caminha diretamente para a ideia de um documento penitencial

através do qual se almeja alcançar a salvação. Ao mesmo tempo que reconhece seus pecados

perante a Igreja, se declarando a maior das pecadoras e a mais ingrata que pisa a terra,

Francisca se diz pronta com a graça de Deus a dar a vida e derramar o sangue por esta fé e

no cerne de seu discurso, barganhando com Deus por um lugar no céu, utiliza de um recurso

discursivo também empregado por Sepúlveda na construção do terceiro painel: a Paixão de

Cristo.

Quando Francisca pede para que Deus perdoe seus inumeráveis pecados por causa dos

merecimentos obtidos por Cristo na ocasião de sua paixão e morte sela-se a relação entre o

documento testamentário, a ideia de penitência e a pintura sepulvediana. Se levarmos em

consideração que Francisca busca desvencilhar-se de seus malefícios através do

derramamento de seu sangue pela fé66 podemos ligar diretamente este discurso à ideia da

Paixão de Cristo, mas ainda assim, não passa de um discurso retórico que muito difere da

flagelação que Teresa incita quando utiliza o cilício e os espinhos para sangrar perante a

representação do Santíssimo Sacramento, como demonstrado na gravura de Westerhout.

É importante ressaltar que a representação mais comedida do processo de mortificação

reflete o cuidado com que se tratava as manifestações excessivas da piedade popular no

século XVIII. O surgimento de indivíduos que realizassem tais manifestações podia65 ACMJR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé, nº 16 (1746-1758). Testamento de Francisca de

Souza Melo, p. 328 in RODRIGUES, Claudia. Nas fronteira do além: a secularização da morte no Rio deJaneiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005, p. 94.

66 Cabe ressaltar que o derramar do sangue de Francisca pode ser uma alusão ao ato penitencial, pois atémesmo a própria Santa Teresa está se flagelando e pisando em espinhos na Figura 7.

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descambar na idolatria, o que os tornaria pessoas influentes e consequentemente poderosas, o

que não era visto com bons olhos tanto pela Igreja, quanto pela Coroa, que estava em um

processo de centralização do poder.

Desta forma percebemos que o capítulo final de nossa história, escrito por João de

Deus e Sepúlveda, é alterado conforme as necessidades do contexto histórico-social no qual

está sendo redigido. A História age na narrativa, tal como a narrativa age perante os atores da

História. Assim como o painel indica uma branda “mortificação” dos leigos, sem ignorar a

importância da prestação de contas em razão do sacrifício que Cristo realizou em nosso

benefício, percebemos no testamento a preocupação em redimir-se dos pecados e escapar do

perigo do inferno através da confissão das falhas humanas unida a uma apelação à Paixão de

Cristo.

Ao entender a narrativa proposta na nave da Igreja da Ordem Terceira do Carmo do

Recife percebe-se uma sequência que demonstra a importância do demoníaco na construção

de um bom fiel. Trata-se de uma ideia presente na lógica agostiniana: a concepção de que

Deus permitiu a existência do Mal, para que dele o Bem surgisse e se fortalecesse, pois “a

queda de Satanás faz parte do “plano divino” que deve conduzir à Redenção, sendo o Diabo

apenas um instrumento de correção dos erros e desvios humanos, ou seja, o inimigo de Deus

não passa de um meio de conversão”.67

67 MUCHEMBLED, 2003, p. 22.

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Considerações finais

Com a realização de um exercício de interpretação que se utiliza do método

iconográfico e iconológico de Panosfky, pudemos identificar os atributos, as personagens e

compreender a mensagem das três obras escolhidas. Com este esforço os painéis deixam de

ser imagens estáticas e isoladas e passam a contar-nos uma história dinâmica e persuasiva,

característica da teatralidade barroca. A impressão que tenho é que se pudéssemos colocar em

películas cinematográficas os quadros do “diretor” Sepúlveda, teríamos uma grande obra

sobre o papel dos demônios, usado na evangelização pelos irmãos terceiros carmelitas do

Recife.

Burke nos diz que “Panofsky insistia na ideia de que as imagens são parte de toda uma

cultura e não podem ser compreendidas sem um conhecimento daquela cultura”68. Isso fica

bem claro na comparação feita entre obras similares (painéis e gravuras) que são posicionadas

no tempo e no espaço e analisadas de acordo com as suas particularidades, para que assim se

possa explicar as mudanças e continuidades atreladas aos contextos específicos aos quais

pertenciam. Por conta disso busquei agir em concordância com as abordagens da História

Social da Cultura69, tratando as pinturas de João de Deus e Sepúlveda como produções com

um importante papel no contexto sociocultural do Recife no século XVIII, pois “a construção

e a manutenção das crenças do imaginário se dão num processo de longa duração. O

imaginário se constrói dentro e em função de um determinado contexto social.”70

Personagens principais no ponto de vista de nossa análise, os demônios são

representados na Figura 1 realizando o mais comum de seus afazares: o domínio do homem

através da tentação, do pecado. Em oposição, Teresa percebe a influência maligna sobre o

padre e busca interceder por ele. A consequência sofrida pela Santa por causa de sua

intromissão na relação entre os demônios e o padre pecador é retratada na Figura 5. Saindo do

68 BURKE, Peter. Testemunha ocular. São Paulo: Bauru, EDUSC, 2004, p. 46.69 Por esta ótica podemos definir parcamente a história social da cultura como aquela que tem por objeto a

sociedade, numa abordagem que privilegia por um lado a experiência dos grupos sociais – experiência estaque se constitui como resultado das relações entre grupos e no interior dos próprios grupos – ou por outro oentendimento das (supostas) estruturas sociais; valendo-se de uma “interpretação” dos costumes, hábitos,crenças, artes, etc., ou seja, da cultura. SILVA, Ribamar. A História Social da Cultura e a História Culturaldo Social: aproximações e possibilidades na pesquisa histórica em educação. Cadernos de História daEducação, v. 9, n. 2, 2010, p.470.

70 FELDMAN, Sérgio. A presença do Diabo no cotidiano medieval judaico: os ritos de passagem. Revista de História e Estudos Culturais, v. 4, n. 9, 2007, p. 4.

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comum de suas ações, os demônios aqui são representados em uma ação direta, física. Ao

empurrar Teresa da escada – símbolo do correto caminho espiritual a ser seguido – os vilões

da história retiram a heroína de seu caminho e tentam submetê-la a seu poder.

Mas é a Figura 8 que traz o cerne de todo esse confronto. Ao dominar o padre por

meio das tentações e subjugar fisicamente Santa Teresa, o exército do Diabo demonstra todo

seu poder. Entretanto, por meio da Penitência e da Paixão de Cristo, Teresa reencontra o

caminho da santidade e fortalece seu espírito, conseguindo desta maneira livrar-se da

perseguição das forças do mal e afugentar os demônios.

Ao comentar sobre o Breve aparelho e modo fácil para ensinar a bem morrer um

cristão, escrito pelo jesuíta Estevam de Castro, a historiadora Cláudia Rodrigues nos diz que

com base nas idéias de Jean Delumeau, percebe-se no texto do jesuíta aquelaação eclesiástica no sentido de ameaçar e, paralelamente, indicar oapaziguamento, através dos seus ritos, orações e palavras de consolo, a fim detransmitir confiança e segurança ao fiel desesperado, num esquema queparecia ser perfeitamente encadeado.71

É neste mesmo sentido que caminha a narrativa dos painéis aqui tratados, sendo os

dois primeiros as “ameaças eclesiásticas” apaziguadas pela penitência encenada por Santa

Teresa d’Ávila.

Com o foco na compreensão dos painéis a partir da reconstrução de uma “genealogia”

iconográfica das imagens, seguiu-se os rastros da tinta, o que nos levou até a compreensão da

existência de uma atualização da tradição para sua adequação ao contexto em que se insere.

Na busca das atualizações realizadas para a manutenção do decoro em conformidade às

necessidades da Ordem Terceira Carmelita do Recife, percebemos o templo barroco, como

“uma grande encenação dramática, onde todos eram espectadores de uma experiência

inebriante, inusitada, monumental”72, que fazia com que o “Cristão se envolvesse por

completo no culto católico, introjetando-o no plano espiritual”73, internalizando no fiel o

modelo de conduta cristão espelhado na hagiografia de Santa Teresa, “até o ponto em que as

fronteiras entre realidade e ficção, vida e representação se tornem cada vez mais tênues até

desaparecer por completo, em um lugar […] onde se leva a cabo uma completa teatralização

71 RODRIGUES, Cláudia. The Well Dying's art in Rio de Janeiro.Varia Historia, 2008, p. 264-65.72 BAETA, Rodrigo. Teoria do Barroco. Salvador: EDUFBA; PPGAU, 2012, p. 196.73 HONOR, André Cabral. O verbo mais que perfeito: uma análise alegórica da cultura histórica carmelita na

Paraíba colonial. Belo Horizonte, Fino Traço, 2013, p. 132.

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da vida”74.

É possível perceber nessa grande encenação a colocação da imagem dos demônios

com três facetas distintas que convergem a um objetivo comum, a renovação do processo de

evangelização da população do Recife que frequentasse a Ordem Terceira do Carmo do

Recife, tendo como molde os preceitos que regiam aquela sociedade, como no caso da

amenização do processo de mortificação com a intenção de evitar o surgimento de

concorrentes para a idolatria prestada à Igreja.

Além do mais, toda a narrativa servia como um manual para se alcançar o bem-morrer,

pois a representação do demônio enquanto tentação, a exposição de sua força física como

ameaça direta sobre a vida dos seres humanos e a demonstração da forma de como derrotar

inimigo tão poderoso fazem parte de um discurso doutrinador no qual a imagem do Diabo faz-

se necessária no combate das ações dessa mesma entidade, pois como disse São João

Crisóstomo, em seu De diabolo tentatore: “não é para mim nenhum prazer falar-vos do diabo,

mas a doutrina que este tema me sugere será muito útil para vós”75.

74 CHECA; TURINA, 1989, p. 161.75 MARCON, Marco Antonio. O Mal, o Diabo e os Agentes Esvaziadores do Bem na Doutrina Católica.

Revista Relegens Thréskeia, v. 3, n. 1, p. 129, 2014.

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