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Museologia e Património – Volume 1 57 NO PRINCÍPIO ERA O “PATRIMÓNIO”: REFLEXÕES (POSSÍVEIS) ACERCA DOS SIGNIFICADOS E APROPRIAÇÕES DE PATRIMÓNIO” 1 Cândida Cadavez Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, Portugal https://orcid.org/0000-0001-8129-0238 1. A tessitura Para iniciar a discussão que este capítulo pretende desenvolver é necessário evocar e debater uma série de noções, sem o que a desconstrução de património que se propõe surgiria desprovida da rede que eventualmente a permite. De facto, seja qual for a perspetiva a partir da qual património é visitado importa, antes de mais, parar nas noções de cultura, identidade, representação, tradição, autenticidade e memória que serão, por certo, aquelas que concorrem para o entendimento possível das questões que guiam estas páginas. Raymond Williams (1988) afirmou que cultura é uma das duas ou três palavras mais difíceis de toda a língua inglesa (vd. p. 87). Esta asserção extrapola o cenário único da língua inglesa, evocando em pleno a vasta abrangência e a consequente vacuidade que tendem a ser associadas a cultura, um título que invariavelmente acaba por ser entendido como uma expressão clara, inequívoca e estagnada de valores comuns, com origens remotas e difusas, que transformam cultura numa linha agregadora e inquestionável, impermeável às mutações mais naturais, inevitáveis e óbvias. Para um senso comum pronto a aceitar de modo passivo conceptualizações ditas doutas e intocáveis cultura não é recebido como o conceito aberto e plural que espelha e simultaneamente molda identidades individuais e de grupo. 1 Este capítulo é o resultado de uma investigação desenvolvida no âmbito de um curso de Pós-graduação em Direito do Património Cultural, frequentado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Portugal.

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NOPRINCÍPIOERAO“PATRIMÓNIO”:REFLEXÕES

(POSSÍVEIS)ACERCADOSSIGNIFICADOSEAPROPRIAÇÕESDEPATRIMÓNIO”1

CândidaCadavez

EscolaSuperiordeHotelariaeTurismodoEstoril,Portugalhttps://orcid.org/0000-0001-8129-0238

1.Atessitura

Parainiciaradiscussãoqueestecapítulopretendedesenvolveré necessário evocar e debater uma série de noções, sem o que adesconstrução de património que se propõe surgiria desprovida daredequeeventualmenteapermite.Defacto,sejaqualforaperspetivaapartirdaqualpatrimónioévisitadoimporta,antesdemais,pararnasnoçõesdecultura, identidade,representação, tradição,autenticidadeememória que serão, por certo, aquelas que concorrem para oentendimentopossíveldasquestõesqueguiamestaspáginas.

RaymondWilliams(1988)afirmouqueculturaéumadasduasoutrêspalavrasmaisdifíceisdetodaalínguainglesa(vd.p.87).Estaasserção extrapola o cenário único da língua inglesa, evocando emplenoavastaabrangênciaeaconsequentevacuidadequetendemaserassociadas a cultura, um título que invariavelmente acaba por serentendido como uma expressão clara, inequívoca e estagnada devalores comuns, com origens remotas e difusas, que transformamcultura numa linha agregadora e inquestionável, impermeável àsmutaçõesmaisnaturais, inevitáveis e óbvias. Paraumsenso comumpronto a aceitar de modo passivo conceptualizações ditas doutas eintocáveisculturanãoérecebidocomooconceitoabertoepluralqueespelhaesimultaneamentemoldaidentidadesindividuaisedegrupo.

1Estecapítuloéoresultadodeumainvestigaçãodesenvolvidanoâmbitodeum curso de Pós-graduaçãoemDireito doPatrimónioCultural, frequentadonaFaculdadedeDireitodaUniversidadedeLisboa,Portugal.

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Elaéaoinvésentendidacomoumamolduraperene,invariávele quase como o fruto de uma decisão do destino que a proíbe deassumirocaráterdecomplexidadeeperplexidadequefazemdelaumatessituramanipulávelemanipulada,abertaeplural,equeserpenteiaconsoanteoqueostemposeospoderesqueremexibirouesconder.

Como bem indicou José Barata-Moura (2016), “[h]á formasculturaisondeseculturaum«monológio»pretendido.Masmesmoelenunca despede a alteridade” (p. 4), evocando as diversidades ealternativas sempre presentes, muitas vezes escondidas, queacompanham e (con)formam a cultura. Contudo, quadros querepresentam comunidades culturais sólidas e homogéneas sãoevocados para justificar e demonstrar o alegado caráter óbvio eessencial destanoção. Essa essencialidade facilita a identificação dosvalores de um determinado grupo e valida a imposição dashomogeneidades que descrevem comunidades mais pequenas ounaçõesmaisvastas,comosugereGellner(2001,p.26).

Mais do que nunca, e perante todos os constrangimentos efacilidades proporcionados pelas vivências globais coevas,compreender a contemporaneidade só é possível se se aceitar comBarata-Moura (2016) que a “cultura é uma caixa de ferramentas nocon-frontoenasfeituriasdofronteiro”(p.5)muitomaisversátil,ricaeenriquecedora do que o corpus sereno, parado e não agenciável quealgumasnarrativasinsistemempropagar.Nestesentido,culturaéumtermoquecontinuainvariavelmenteassociadoàcriaçãodeconsensosinibidoresdediferençasoudedivisões(vd.Williams,1988,p.25)aomesmo tempo que impõe o balanço necessário à vida e ao convívioentregrupos(vd.Eco,1998,p.177).Tamanhosdevaneiosacabamporhierarquizarculturas,abrindo,dessaforma,caminhoaintolerânciasemortes, alegadamente a bem da exibição e da proliferação de umacultura mostrada como a única verdade que descreve um grupo.Culturaacaba,assim,porcorresponderaumquadrodereferênciaseinterpretações apriorísticas que condiciona o entendimento deagregados diferentes (vd. Morgan & Pritchard, 2000, p. 31), o queparece, de algum modo, constituir um permanente desrespeito, porexemplo,pelasconclusõesdaConferênciadoMéxicode1982emqueformalmente, e a um nível global, se entendeu dever compreender eassociarculturaaalgomaisinclusivoeenglobante,dandoprimaziaàscaracterísticasdedinamismoeabrangênciadissociáveisdeumanoção

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deculturaquesepretendesejavividasempreemlinhacomorespeitopelosDireitosHumanos.

Numa perspetiva cristalizante e cristalizada, cultura surgecomo veículo e justificação perfeita e incontroversa de identidadesigualmentesolidificadasporumdestinoqueparecepré-determiná-lasefixá-lasadeternumacomunidadesinconfundíveisemuitocertasdopapelquedesempenhamnavastageografiadosgrupos-tipoenquantoempedernimentos persistentes (vd. Barata-Moura, 2016, p. 6). Estasnarrativas identitárias concretizam-se em funçãode uma retórica doesquecimento, resultante da negociação entre o que deverá serrecordado e exibido, e aquilo que deverá ser negligenciado pelamemória coletiva. De acordo com Maurice Halbwachs (1992), asociedade tendeareorganizarassuasrecordaçõesde formaaajustá-las às condições variáveis do seu equilíbrio identitário (vd. pp. 172-173,183).PierreNora(1989),porseuturno,afirmaquemuitasvezesoslieuxdemémoirenãotêmqualquerreferentereal,constituindoelesprópriososseusúnicosreferentes,taléopoderdeseleçãoeimposiçãodos seus agentes e produtores (vd. p. 23). Ainda a propósito daintervençãodamemórianacriaçãoenamanutençãodas identidadesculturais empedernidas, importa evocar Aleida Assmann (2010)quando refere que as memórias são dinâmicas e que aquilo que érecordado do passado, de modo a cristalizar identidades, dependelargamente dos contextos culturais, das sensibilidades morais e dasexigênciasdopresente(vd.p.21).Quandoestesjogossãotranspostospara a dinâmica da valorização cultural e da patrimonializaçãoidentificamos a existência de episódios, características e padrõescriteriosamente selecionados e que se apresentam como provasirrefutáveis de modos de vida e de habitus. O resultado final é umencadeamento harmonioso e coerente, resultante de amnésiasconcebidasdeformainteligenteeobjetivaequemostramidentidadese símbolos inabaláveis, onde não há lugar para qualquer tipo decontradiçãoouerrointerpretativoquepossafazerperigarospoderese ideologias que alimentam as “tradições” e “autenticidades” queidentificam(vd.Howard,2003,p.18).

NaóticadeMarcGuillaume (2013), osdiversos tiposdebensculturais e rituais considerados como património corporizamprecisamenterepositóriosinformativosesímbolosdeacontecimentosquenãoescaparamainterpretaçõeseatualizaçõesconstantesparaque

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melhor se implemente a função mnemotécnica contemporânea quelhes compete (vd. pp. 24-25). Para Guillaume (2013), o passado,enquanto pseudotopia, e o modo como, por motivações diversas, seconvencionou entendê-lo representado através de inúmerasexpressões patrimoniais, é uma narrativa sempre em processo dereformulação ou de negociação para que se atinja a coesão e aidentidadesociaispretendidas(vd.p.24).Namesmalinha,Hodgkin&Radstone(2007)defendemque “memoriaisemuseussãoafirmaçõespúblicas daquilo que foi o passado e de como o presente o devereconhecer” (pp. 12-13). Curiosamente, ou não, será nasrepresentações (momentaneamente) solidificadas disponíveis nosespaços de exibição que encontramos asmetáforasmais inabaláveisdas comunidades imaginadas que Benedict Andersen (2006) nosapresenta (vd. p.4),algo semelhantea constrangimentos eurgênciasclaramentelocalizadosnopoderqueformataumtempoeumespaço.Éaquiqueasmemóriasautorizadas,oficiaisesimbólicasnosconvencemacerca da existência de comunidades perenes e únicas, evidenciadasporrepresentaçõespatrimoniais.

Identidade e memória, por sua vez, constituem um par queraramente é arredado de tradição, o termo que, como refere Barata-Moura (2016), sinaliza trajetóriasprocuradas, e que, ao contráriodoque comummente se aceita, resulta de escolhas e de genealogiasoriginadas por necessidades seletivas (vd. p. 11), i.e., “[a] tradição ésempre um acidentado processo de trans-porte, em que as cargasoriundasdopassadosãopostasausonumpresentequelhesoperare-sinificações”(p.12).

Michael Ignatieff (1999) menciona a necessidade de se criartradições que permitam evocar e glorificar um passado no qual acomunidade se revê e encontra um destino comum (vd. p. 80),enquanto Maurice Halbwachs (1992) defende que as tradiçõesrepresentam a consciência que a sociedade tem de si própria nopresente(vd.p.183).ParaEricHobsbawm(2000),astradiçõessãoumconjunto de práticas gerido por regras tacitamente aceites, ecaracterizadopelasuanaturezaritualousimbólica,comopropósitodeinculcardeterminadosvaloresenormasdecomportamentoatravésdarepetição,ligando-se,destaforma,inevitavelmenteaopassadodoqualaparenta emanarde formanatural e contínua(vd. p. 14).Hobsbawm(2000)advogaqueestaestratégiaéresponsávelpelacriaçãodenovos

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íconesnacionaisquerepresentamsimbolicamenteacoesãosocialouapertençaagruposecomunidades,legitimandorelaçõesdeautoridadee impondo valores e comportamentos (vd. pp. 7-9). Das palavras deHobsbawm (2000) importa ainda destacar que as tradições queaparentam ser antigas são, inúmeras vezes, não só criações recentescomoatéinventadas,queacabaramporseimporrapidamente(vd.p.1).Oobsessivoeomnipresenteimpulsodecriaçãodetradiçõeséalgopresente quer nas narrativas das nações, quer nas representaçõespatrimoniais, em particular em cenários multiculturais, tornando-seresponsável pela organização de festejos públicos e de exposições(demasiado)recorrentescomointuitoderepovoaramemóriacomastradiçõesconsideradasmaisadequadas.

Nestes palcos, as culturas, identidades, memórias e tradiçõessão autorizadas apenas quando exibem consigo o (devido) título deautenticidade. O uso recorrente deste rótulo fundamenta-se quasesempre numa alegada antiguidade nacional ou regional, econsequentemente cultural, que permite e força a transmissão dedeterminados quadros que deverão ser aceites como óbvios eessenciais num dado contexto. Impede-se, assim, como refere PeterHoward (2003), o surgimento de contradições ou as interpretaçõeserradasquepoderiamfazerperigarpodereseideologias(vd.p.18).2.Patrimonialização,sempre.Porquê?

Sãoasrepresentaçõespatrimoniais,sejaqualforomoldecomque se materializam, que se diz exibirem de modo inequívoco estasculturas, memórias, tradições e identidades tidas como perenes ecristalizadas.Serãotambémasrepresentaçõesque,secrê,evidenciamtodosessesconceitosquetêmaheroicamissãode,numalutadesigualcontra os tentáculos de uma globalização apresentada comoameaçadora, manter inalteráveis e autênticas as “verdadeiras”culturas, memórias, tradições e identidades. Pedras, ameias, telas,paisagens, ritmos, coreografias, rituais, superstições ou gastronomiascorporizam representações patrimoniais em que as comunidades sehabituaramaencontrarreflexosdaquiloquelheséditoquesão.Comoindica Barata-Moura (2016), “[n]ão há cultivo de cultura semmaterialização em«monumento»: emobra que fazpensarnoque foi

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feito (equenão se restringeaosprodígiosdaalvenaria)” (p.10), emsuma,“[nãoháculturasemcriaçãodepatrimónio”(p.14).

Os receios, já referidos, quanto às mais do que certeirashomogeneizações culturais impostas pela globalização estarão talveznaorigemdaumatãopopularinsistênciananecessidadedepreservarrepresentações patrimoniais com o intuito principal de manternarrativas identitárias tradicionais e autênticas que quase nuncacontemplamrealidadesconcretasquenaturalmente(re)estruturamosdiversos patrimónios que compõem os cenários do século XXI. Osmovimentos migratórios impossíveis de dissociar do modus vivendicoevo, e tudo aquilo que transportam consigo, desde práticas,possibilidades de intercâmbios e permutas, ou atémesmo diferentessabores e texturas com outras origens, constituem uma dascaracterísticasmaispresentesnassociedades contemporâneas eque,por insistências teimosas e desajustadas, continuam a ser quasesempre afastados das validações do património cultural por nãoevocarem, como se espera de tais representações, o âmago maisautênticodaidentidadedeumlugar.

Zygmunt Bauman (2000) conceptualizou a noção demodernidadelíquida,pretendendocomelasignificaredesconstruiradescartabilidade que caracteriza as vivências pós-modernasalimentadas pela velocidade e pela repugna do sólido, enquantometáfora de permanência e de fixação, e do permanente. O cidadãopós-moderno será, então, um ser em constante divagação e angústiaem busca de novas e “melhores” representações que prontamentesubstitui por outras,mal surjam a oportunidade ou a necessidade. Alutaobstinadapeladivulgaçãoepelapreservaçãopatrimonial,muitasvezesàcustadetécnicaseestratégiaspoucoautênticasetradicionais,materializaráquiçáocombatedafrustraçãoedosentimentodeperdaqueestamodernidadelíquidanosindicaerecorda.

As representações patrimoniais autorizadas e a importânciaque lhes é atribuída enquanto elementos narrativos de identidadescomunitárias recordam o que Anderson (2006) designa como“artefactos agregadores” a propósito da dinâmica das comunidadesimaginadas(vd.p.4).Dissertandoacercadosgrupos locais, regionaisou nacionais a que todos afirmamos pertencer, Anderson (2006)conclui que tais grupos são maioritariamente comunidadesimaginadas, pois até osmembros damaispequena nação jamais se

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conhecerão ou encontrarão. Contudo, nas mentes de cada um delesexistem a imagem e a certeza dessa comunhão (vd. p. 6). Anderson(2006)defende, então, que é a existênciados já referidos “artefactosagregadores” que confere esta noção de pertença e de quasefraternidade sentida por e com desconhecidos – as representaçõespatrimoniais serão porventura osmais fortes artefactos agregadoresprecisamente pelas narrativas identitárias e de autenticidadesassociadasagruposquelhessãoinerentes.3.O“ajuízamento”patrimonial

Importa, agora, evocar documentos e suportes que permitementender precisamente o significado e a pertinência associados apatrimónio,eaojáindicadoimpulsoparaodivulgareproteger.A Constituição da República Portuguesa (CRP) (1976), no seu Artigo78.º,intitulado“Fruiçãoecriaçãocultural”,garante,nonúmero1,que“[t]odostêmdireitoàfruiçãoecriaçãocultural,bemcomoodeverdepreservar,defenderevalorizaropatrimóniocultural.”AoEstado,porseuturno,emcolaboração2comtodososagentesculturais,competiráincentivar e assegurar a fruição pelos cidadãos, apoiar a criaçãocultural,salvaguardarevalorizaropatrimóniocultural,que,porém,aCRP (1976) não explana, “tornando-o elemento vivificador daidentidade cultural comum”3 (Artigo 78.º, n.º 2, alínea c), e aindaasseguraradefesaeapromoçãodaculturaportuguesanoestrangeiro.

Assim,aCRP(1976)assumecomosendomatériaclaraparaodomínio público a significação de património (cultural), partilha asresponsabilidadesdepreservação,divulgaçãoeautorizaçãoeacessoàfruição com os agentes culturais, e exalta a função do patrimónioenquanto agregador das comunidades imaginadas conceptualizadasporAnderson(vd.2006).

ORelatórioIntercalardaPropostadeLeideBasesdoPatrimónioCultural (1998) também é esclarecedor quanto às certezasmaterializadas pelas representações patrimoniais quando refere ser“indesmentívelque,navisãodaactualidadeenoprojectodefuturodolegisladorconstituinte,aindependêncianacionalsurgealicerçadanuma

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identidadeculturalportuguesacujosesteiosfundamentaissãoalínguaeo património ultural do nosso povo4” (p. 66), ou seja, fazendo ecoarargumentos semelhantes aos difundidos pela CRP (1976) no querespeita à validação e à sustentação de uma identidade nacionalatravés de um corpus que narra histórias inegáveis e autênticas, econdensa vivências sociais revolutas (vd. p. 44). Este Relatório…(1998) chega mesmo a estabelecer que “a defesa do patrimónioculturaléumdosvectoresdapolíticadapreservaçãodaindependêncianacional,tarefaprioritáriadoEstado”(p.68).Tendoemcontaovalornacional atribuído a estas representações patrimoniais, asconsideraçõespreambularesdoRelatórioIntercalardaPropostadeLeideBasesdoPatrimónioCultural(1998)informamque

[é] nos dias de hoje preocupação comum à generalidadedospaísesdomundoadefesa, preservação e valorizaçãodo respectivo património cultural, podendo declarar-sequaseunânimeavisãodequeosbensque integramessaessa classificação – cujo conteúdo e escopo registamapesardetudovariaçõesdeEstadoaEstado–devemserobjectode legislaçãoqueosdistingadosdemaisbensdeusoeconsumooudosimóveisesítiosaquenãoseatribuasignificadoartísticoouhistórico.(p.7)

A referida necessidade desta proteção legislativa justifica-senosseguintesargumentos: porum lado,entende-sequeoacessoeafruição de património cultural são vitais para a formação e odesenvolvimentoindividuais;poroutro,defende-sequeaconservaçãode determinados objetos é indispensável à preservação (“nalgunscasos,àconsolidação5”)daidentidadeculturaldanação;e,porúltimo,enfatiza-se a importância que o património cultural detém enquantogerador de receitas, nomeadamente pela prática turística (vd. p.8).Assimsejustificaanecessidadedeumenquadramentomaisconcretoeadequado à realidade face a um regime, vigente à data, tido comodeficiente (vd. p. 36). É curioso constatar como a premência dapreservaçãodopatrimónioculturaléumfatorque,emalgunscasos,se

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dizconcorrerparaaconsolidaçãodaidentidadenacional,i.e.,asolidezdasrepresentaçõespatrimoniaisfuncionacomooelixirnecessárioquepermiteeforçaacoesãodosgrupos.EstaafirmaçãoevocaoArtigo27.ºdaDeclaraçãoUniversal dosDireitosHumanos (1948), que refereque“[t]odo ser humano tem o direito de participar livremente da vidacultural da comunidade, de fruir asartes edeparticipardoprocessocientíficoedeseusbenefícios”.

ALein.º107/2001de8desetembrofornecenoseuArtigo14.ºalgumas pistas que permitem entender que os bens culturais quematerializam o património cultural são aqueles representam“testemunhomaterial com valor de civilização ou de cultura”. Nesteâmbito,esejamquais foremascategoriaspatrimoniaisemcausa(vd.Artigo 15.º), devem ser objeto de especial proteção e valorizaçãorepresentaçõespatrimoniaisimóveis,móveisouimateriais,bemcomoos respetivos contextos, sempre que “constituam parcelasestruturantes da identidade e da memória colectiva portuguesas”(Artigo14.º).4.Os“ajuizamentos”patrimoniais–pelomundo

Pode afirmar-se que, antes do grande receio dasuniformizaçõesculturaisglobais,adestruiçãopatrimonialidentificadanoperíodoqueseseguiuàSegundaGuerraMundialteráconstituídooalerta maior sentido até então no que respeita à necessidade depreservar o património cultural. Atestam-no inúmeros manifestos edocumentos,commaisoumenosprojeçãopráticanoterreno.

A Convenção Cultural Europeia (1954) terá sido, contudo, oprimeiro e mais seriamente acolhido documento que convidava osdiversosEstadosaadotarmedidasdeproteçãopatrimonial.Continua,porisso,aseraindaevocadopelostextosmaisrecentescomoafonteinicial do que posteriormente veio a ser formalizado em termos denormas, regulamentos e legislação relativos à pertinência dapreservaçãopatrimonial.OConselhodaEuropaéumdosautorescommais produção sobre património cultural imóvel materializadosobretudo em monumentos, mas também acerca do patrimónioassociado às artes ou à cultura popular, ou ainda ao patrimónioimaterial.AComissãoEuropeia, por seu turno, tem sido emissoradenormasvárias,indicadorasdediretrizesedemodelos,edeconvenções

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relativasapatrimónio,que,depoisderatificadas,ganhamumestatutovinculativo nos estadosmembros. AConvenção da UNESCO (1972) éumaplataformadereferênciaincontornávelnoquerespeitaàgestãoeàs boas práticas no âmbito do património e da sua relação com amemória, a preservação, a partilha e a fruição. Este documentoapresentaanovidadedeseconsideraropatrimóniocomoalgocomum,que deve, por isso mesmo, convidar a uma partilha deresponsabilidadeeaorespeitomútuo.

A Carta de Veneza (1964), resultante do II CongressoInternacional de Arquitetos e Técnicos deMonumentos Históricos, éum documento extremamente esclarecedor quanto ao significado depatrimónio e à sua pertinência para efeitos de coesão identitária.Assim,opreâmbulodessedocumento tornaclaroque“[i]mbuídosdeumamensagemdopassado,osmonumentoshistóricosperduramatéaos nossos dias como testemunhas vivas de várias gerações” etestemunhos da história (pp. 1-2), acrescentando que as unidadescomunitárias, a quem compete proteger essas representações, sesolidificam perante esse património comum. O Artigo 1.º da cartasugere uma definição para monumento histórico, corpus que, comofacilmente se reconhece, será talvezo exemplodepatrimónio imóvelconstruído quemais atrai consensos quanto às narrativas autênticasque alegadamente transporta e exibe. Este artigo indica argumentosque serão, anosmais tarde, recuperados pela Convenção da UNESCO(1972) quando explica que estes monumentos testemunham umacivilização em particular, uma evolução significativa ou umacontecimento histórico. Insiste, ainda, em políticas de restauro e demanutençãosobretudo tradicionais6 (vd.pp.2,3)por formaaquesemantenhamautenticidades.AConvençãodeFaro(2005),ratificadapeloEstadoPortuguês em2008, evocaaDeclaraçãoUniversal dosDireitosHumanos (1948) para confirmar que os direitos relativos aopatrimónio cultural são inerentes ao direito de participação na vidacultural, acrescentando, em termos diversos daqueles queencontrámosnaCartadeVeneza (1964), queopatrimónio cultural éapresentadocomofontedeconhecimento(vd.Artigo13.º).Alémdisso,o Artigo 1.º desta convenção (2005) é inovador ao referir como opatrimónioculturalpode teruma funçãodeterminantenaconstrução

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deumasociedadepacíficaedemocrática,bemcomonosprocessosdedesenvolvimentosustentávelenapromoçãodadiversidadecultural.

Outro elemento que distingue este documento de outrosredigidos a propósito de património cultural reside na alusão quedirigeàexistênciadepatrimóniosqueidentificamáreasmaisextensasdo que países, como sucede com a referência ao património culturalcomumàEuropa(vd.Artigo3.º).AafirmaçãoqueagregapatrimónioculturalepazseráretomadapeloCódigoGlobalÉticoparaoTurismo(2001) a propósito daquela que é uma prática global cada vezmaiscomum nas rotinas do século XXI, o turismo, e que é, sem dúvida,encenada e recriada em função de representações patrimoniais. Emcomum, estes dois documentos referem ainda odireito que todos oscidadãosdevem ter à fruiçãodopatrimónio cultural (vd.Artigo4.º e12.º, e Artigos 4.º e 7.º). Também a chamada de atenção para anecessidadedeseencorajarumareflexãoética,bemcomooapeloaorespeito pela diversidade de interpretações e o imperativo de seestabelecer estratégias que permitam a convivência pacífica derepresentaçõesculturaiscontraditóriasnummesmopalcocultural(vd.Artigo7.º)levam-nosaevocar,denovo,oCódigoGlobalÉticoparaoTurismo(2001)nasuainsistênciadequeummelhoremaisconscienteconhecimentodepatrimónio cultural poderão conduzir a atitudesdemais tolerância e paz entre comunidades distintas (vd. Preâmbulo,Artigo 1.º) .À imagemdoquesugereoArtigo78.ºdaCRP(1976),aConvençãodeFaro(2005)reiteraaresponsabilidadecoletivadevidaaopatrimónio cultural e quedeve serpartilhadapelosdiversos agentessociais.Patrimónioculturalserá,segundoosditamesdestaconvenção,compreendido como um grupo de recursos herdados do passado,identificado por uma comunidade, independentemente de quem ospossui7, como o reflexo e a expressão de valores, crenças, saberes etradiçõespróprioseempermanenteevolução(vd.Artigo2.º).

Todososdocumentosevocados,independentedeseremcartas,convenções ou códigos, destacam de modo inequívoco que, por sertestemunhodahistóriaedacivilizaçãoaque“pertence”,opatrimóniocultural deve ser entendido como um símbolo evidente einquestionável da identidade dessa comunidade, que representa demodoautênticoetradicionale,deumaformaoudeoutra,deveráser

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acolhidocomofontedeconhecimento.Deummodogeral,emesmonocaso de documentos que não distinguem os diversos tipos depatrimónio,opatrimónioculturalédescritoinvariavelmentecomoumcorpusquedevesermantidoepreservadocomassuascaracterísticastradicionais, principalmente por contribuir para amanutenção, e atépara a consolidação8, como é indicado no Relatório Intercalar daProposta de Lei de Bases do Património Cultural (vd. 1998, p. 8), dacoesão de um grupo local, regional ou nacional. Esta ideia é, semdúvida,o leitmotiv comumaosdocumentosevocados,notando-sequeaquiloqueosdistingueésobretudoamaioroumenordiscriminaçãoou justificação dessa crença transversal. Independentemente doregistoutilizado,todosessestextossãounânimesemnomearodireitoà fruição cultural e emapelar às comunidadesparaqueparticipemeinterajam de modo mais ativo, tornando-se agentes visíveis einterventivos,enãomerosobservadores.5.A“naturalidade”dapatrimonializaçãooficial

Masseráapatrimonialização,istoé,adecisãodequeumdadobemmaterial (móvel ou imóvel), ouumadeterminada representaçãoimaterial “merecem” a distinção de ser elevado até ao patamar ondepassaaserobservadoevivenciadocomadeferênciaqueamemória,atradição e a identidade impõem, um ato inocente e natural quepretende apenas embelezar paisagens e relembrar passados? A serassim,dequemodoéquetaisautorizaçãoevalidaçãosucedem?

Recordaroqueosdocumentosantesreferidosindicamquantoao significado de património permite concluir que, de facto, o valorculturalatribuídoadeterminadosbens,espaçosouexperiências,bemcomoapatrimonialização(maisoumenosformal)quedaíadvémsãooresultado de decisões ponderadas e de poderes assertivos comautoridade, conferidapelo contexto emque agenciam,paradeliberaracerca do que constitui uma representação patrimonial adequada eilustradoradamemóriamaiscorreta,datradiçãomaisadequadaedaidentidademaisapropriada,tendoemcontaumdeterminadofimque,muitasvezes,poucoterádacanduraedanaturalidadequeseassociacomummente ao processo. Na verdade, identificar e credenciar

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memórias, pois é esse o cerne do ato de patrimonializar, será tudomenos uma seleção natural e inocente de eventos, personagens erituaiscomorigemnopassado.RecordandoAleidaAssman(2010),sãofascinantes, mas, aomesmo tempo, também um pouco perversas, asestratégias de fixação ou de ocultação de memórias, e os jogospraticadoscoma finalidadedeexibiroudeesconder tudoaquiloquemais convenha a um dado contexto ideológico. Ou seja, serãonecessidadespráticasmuitopoucoimparciaisquetalhamospercursosda patrimonialização, pelo que diferentes contextos atribuírampropósitosdistintosaosbens,sítioserituaisqueserão,assim,corporautilizados com a intenção de narrar a melhor história associada àcomunidadequealegadamenteosdetém.

Tome-se por exemplo o contexto particular do regime doEstadoNovoportuguês,easuacoincidênciatemporalcomavigênciada Carta de Atenas (1931). Este documento confirma a tendência, àépoca, da “instituição de uma manutenção regular e permanente,adequadaaasseguraraconservaçãodosedifícios”(p.1)erecomendaque “se assegure a continuidade da sua vida consagrando [osmonumentos] contudo a utilizações que respeitem o seu carácterhistóricoouartístico”(p.1).Deveserdestacadaigualmentenestacartaapreocupaçãocomaharmoniadocontextosemprequesepretendesseconstruir novos edifícios, antecipando já a designação de “sítios”conceptualizada em 1972 pela UNESCO, e o cariz imperativo de umrestauro cuidado e adequado (vd. III, V: 2,5). Trata-se, em suma, deumaenumeraçãodeconstataçõeserecomendaçõesqueespelhambemapreocupaçãopelapreservaçãoepelaexibiçãopatrimonialporpartedos regimes com características semelhantes ao Estado Novoportuguêsque se iam, entretanto, implementando, eparaosquaisasrepresentações patrimoniais desempenhavam um importante papelpropagandístico. Principalmente, nos primeiros anos do regimeportuguês,quandoseapostavanumaestratégiapropagandísticaqueoautorizasse, diversos tipos e representações patrimoniais foramidentificados edivulgadospelosórgãos competentesdoEstadoNovocom o propósito de enfatizar e justificar noções de autenticidade,identidadeetipicidadenacionais.

AprópriaConstituiçãoPolíticadaRepúblicaPortuguesa(1933),i.e., o documento que estabelece o enquadramento legal para avalidação do regime de António de Oliveira Salazar, indica de forma

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inequívocaaimportânciadestesbensquandodeclaraque“estãosobaprotecçãodoEstadoosmonumentosartísticos,históricosenaturais,eosobjetosartísticosoficialmentereconhecidoscomotais9”(Artigo52.º).Porumlado,estabelece-seatutela,poroutrolado,esclarece-sequeaacreditação daquilo que deverá ser considerado bem patrimonial étarefa do Estado. Nesta senda, o regime de Salazar evocavarecorrentemente a razão por que atribuía tamanho valor aopatrimónio,as“páginasvivasdanacionalidade”,talcomoexplicadoemACulturaPortuguesaeoEstado(1945,p.50),ereplicadonoexemploseguinte:

aHistóriadePortugal está admiràvelmente escrita, dêsdeoinício da nossa nacionalidade, em todos os monumentosguerreirosoureligiososqueseencontramacadacanto,etãofirmes quási todos êles na terra, que de tão belos parecemdesafiar o tempo, e tão vivos que dir-se-ia quererem viverparaalémdamorte.Viagem.RevistadeTurismo,DivulgaçãoeCultura,fevereirode

1941,p.1

As medidas de recuperação patrimonial foram, ao longo detodooEstadoNovoportuguês,enaltecidaseentendidascomoumadasprincipaismudançastrazidaspelaRevoluçãoNacionalde1926.Aparda busca da beleza e do conforto estético, tais políticas visavamaumentar o património moral da “Nação”, i.e., recuperar provas dagrandeza pátria e, assim, agregar os nacionais em torno de umaidentidade inequívoca, com o propósito de transmitir uma imagemcoesaeclaradePortugal,querparaoexterior,querparaosprópriosportugueses.

Anos depois de a Sociedade de Propaganda de Portugal terrealizadouminventáriodopatrimónionacional,oConselhoNacionaldeTurismoviureferidacomoumadassuastarefasmaissignificativasa “caracterização dos nossos monumentos e a catalogação da nossariquezaarqueológicaeartística,esubvencionandoasobrasdeméritoinconcusso, trasladando-as para outras línguas e fazendo-as circulargratuitamentenoestrangeiro”(decreton.º17:605,15deNovembrode

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1929).ODiariodeLisbôade24denovembrode1937referiaquenaDirecção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais existia “umaintençãoquenãoesmorece,umpensamentofecundoquesemanifestano labor patriótico de «reparar»(…) os monumentos que maispadeceram”deumcertotipodevandalismoquedurouduranteanos”(p.: 1). Além disso, um decreto-lei de fevereiro do ano seguintereiteravaque

Não podem ser consideradas injustificadas as medidas dedefesado património artístico e histórico daNação, nem seignoramosresultadosobtidosdafirmeecriteriosaexecuçãodasmedidasreferidas,nomeadamentenosúltimosanos,emque, sob o impulso da Revolução Nacional, se deudesenvolvimento de vulto à obra de conservação ereconstruçãodetantosdosnossosprincipaismonumentos.(...) Estas providências, apesar de impostas principalmentepormotivosdeordemestética,vãocontribuirparaaumentaropatrimóniomoraldaNação10.

Decreto-lein.º28:468,15defevereirode1938

Datadoanode1929afundaçãodaDirecção-GeraldosEdifíciose Monumentos Nacionais, integrada no Ministério do Comércio eComunicações, que, nas palavras de Margarida Acciaiuoli (1998),materializavaaordempatrimonialqueonovoregimeinstauraraequedefendia as práticas de restauro que valorizassem o passado e ascaracterísticasnacionais (vd. p. 11).Maria JoãoNeto (2001)defendeque este organismo servia a necessidade de preservar a memóriahistórica criada pelo regime, pelo que são alvo de restauro osmonumentosque,aosolhosdoEstadoNovo,melhor “autenticamos momentos de triunfo da Nação secular”(p. 145) pela evocação quefazemdeepisódios-chavedePortugal,comoadescobertadocaminhomarítimoparaaIndiaouarestauraçãodaindependência.

Em 1932, três anos depois da criação desta direção geral, aRepartiçãode JogoseTurismodeclaraatravésdodecreton.º21:261,de 20 de maio, a existência de “sítios e locais de turismo emonumentosnaturaisaqueémesterconservarasuafeiçãopitoresca,

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adoptando preceitos adequados a subtraí-los ao mau gôsto,intolerânciaecaprichosdaacçãohumana”. Estaparece tersidoumaferramenta particularmente importante no âmbito da valorização dopatrimónio, pois, além do acima exposto, o seu Artigo 2.º estipulavaque tais espaços e monumentos não poderiam jamais serintervencionados sem a autorização do Governo, depois de ouvido oConselhoNacionaldeTurismo.

Neste sentido, assistimos logo nos primeiros anos do EstadoNovo a uma profusão legislativa que visa classificar monumentos eespaços patrimoniais, dá conta de edifícios que passavam a serpatrimónio do Estado, anuncia a construção demonumentos, prestacontasdeverbasusadasemrestauro,eautorizaaDirecçãoGeraldosEdifícioseMonumentosacelebrarcontratosparaaexecuçãodeobrasde conservação, entre outras prorrogativas11. O significado atribuídoaopatrimónioconstruídoeàsuarecuperação,segundooscânonesdoregimedeSalazar,eratalque,apartirdemarçode1936,passouaserpermitidaaaposiçãodevinhetasemitidaspeloConselhoNacionaldeTurismo que representavam alguns dos principais monumentosnacionais (vd. portaria n.º 8:378 de 6 de março de 1936). No anoseguinte,aportarian.º8:672,de2deabril,determinavaque“fôssemcriados e postos a circular bilhetes postais ilustrados para serviçonacional,reproduzindocinqüentadesenhosoriginaisdemonumentos,costumesregionaisepaïsagenstípicasportuguesas”.

Noanode1934teve lugarumacontecimentoque foideveraselucidativo quanto à real motivação do Estado Novo no que toca ànecessidade de recuperar e divulgar diversas formas de património.Assim,oICongressodaUniãoNacional,reuniãomagnacujopropósitoinicial seria evocar e elogiar o chefe da “nova Nação” e os feitosconquistadosporsuainterceção,acabouporincluirnasuaagendadetrabalhosaapresentaçãodealgumas“teses”sobreotemaemapreço, 11 Vd.Decretos n.º 26:235e n.º 26:236, 20 de janeiro de 1936, decreto n.º26:450, 24 de março de 1936, decreto n.º 26:453, 25 de março de 1936,decreto n.º 26:461, 26 demarço de 1936, decretos n.º26:499 e decreto n.º26:500, 4 de abril de 1936, decreto-lei n.º 27:878, 21 de junho de 1937,decreto-lei n.º 28:067, 8 de outubro de 1937, decreto-lei n.º 28:129, 3 denovembrode1937,decreto-lein.º28:468,15defevereirode1938,edecreto-lein.º28:869,26dejunhode1938.

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i.e.,património. Atemáticadopatrimóniomaterialedoseurestaurofoi,assim,apresentadanesteencontro,tendosidosempreconsideradacomo uma das mais importantes evidências da renovação nacional.Deve, neste âmbito, destacar-se as comunicações “MonumentosNacionais – Orientação técnica a seguir no seu restaúro” (1935),daautoriadoengenheiroHenriqueG.daSilva, “A IndústriadeTurismo”(1935),proferidapeloengenheiroJoséDuarteFerreira,eaindaatesedo engenheiro Carlos dos Santos intitulada “Turismo” (1935), pelofactodetodaselasdesconstruírem,naóticadoregime,bementendido,a pertinência da recuperação, da exibição e da conservaçãopatrimoniais. O primeiro título exalta as recuperações patrimoniaismaisrecentesdesenvolvidasemPortugal,“semdeixardeacalentarosnaturais anceios pelas conquistas da civilização moderna” (1935, p.55), e reforça que “Portugal voltou ao Passado no culto dos seusMonumentos, restaurando uns, conservando outros, dando, enfim, atodos a pureza da sua traça primitiva” (1935, p. 55). Os outros doistítulos justificam a importância que o regime atribui ao turismo,impulsionandooseudesenvolvimento,porsetratardeumsectorquepromove precisamente o restauro e a exibição patrimoniais. Assim,num contexto de exaltação nacionalista criado por afirmações quedestacamPortugaleassuasvirtudescoevasdaquiloaqueseassistiano resto do mundo, não é difícil entender a afirmação de ManittoTorres(1935),segundoaqualosetor turísticorepresentavamaisdoque uma mera fonte de rendimento nacional, materializandoigualmente um valioso instrumento de revivalismo histórico etradicional,“fixadordasriquezasmateriaisemoraisdopatrimónio(...)duma consciêncianacional do passado,do presente e do futuro”(p.71),eadivinhá-locomoumútilveículodepropaganda:

Demodoque é a tradição–mais cheiade encantos, quantomais se exhuma e revéla, mais prenhe de ensinamentos,quanto mais recúa e a civilização avança na sua desilusãodiária – o único atractivo turístico que resiste, incolume, aotempo,ganhando,aocontrário,comêle,novointerêsse!(...)Cada vez mais cheios de prestígio o passado e a tradição,servidosemtôdoomundopormuseusereconstituiçõescadadiamaisnumerososemagníficos,o turismotomou-osàsuacontaedêlesfezoseumaisresistenteeirresistívelatractivo!

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(...) O turismo sabe isto muito bem e assim, ao lado daantiguidade provecta, surge, tão matemáticamente como asombra segue a vara, o hotel moderníssimo, com ascensor,águacorrenteeguarda-portãodebarbafrizada!(p.93)

Doisanosdepois,em1936,oICongressoNacionaldeTurismo,

que reuniu cerca de cento e oitenta participantes na Sociedade deGeografia de Lisboa, também viria a ocupar-se de questõespatrimoniais, esse tema tão caro a um regime como o de Salazar.Cumpre, neste contexto, destacar a tese apresentada por MárioCardozo (1936), “Museus e monumentos nacionais nodesenvolvimentodoturismo”.Apropósitodasexigênciasdosturistascoevos e da importância atribuída ao património material, o autorconcluiu ser indispensável ao país cuidar “essencialmente das suasinstituiçõesculturaisesociais,quesãooselementosdamaissólidaeverdadeira propaganda, capazes de reter a atenção do viajante quepassa”(p.4).MárioCardozodefendeuaindaqueosmonumentoseosmuseus constituíam lições eficazes para os visitantes aprenderemacercadodestino,destacandoopapeldoscastelos,queentendiacomosímbolos da fundação do país, pelo que deveriam ser classificadoscomomonumentosnacionais(vd.pp.4,6).

Em1945,numajáusualmanobraderecapitulaçãodaobrafeitapelo regimedo EstadoNovo, o SecretariadoNacionalde Informação,CulturaPopulareTurismo(SNI)publicouolivroACulturaPortuguesae o Estado, no qual se referia o restauro recente de mais de duascentenasemeiademonumentosdeacordocomatraçaoriginal,numato de “devoção patriótica para influir na educação”(p. 53). Poucosanos depois, a obra 15 Anos de Obras Públicas 1932-1947 (1949)reiterouacertezadequeaconservaçãodosmonumentosnacionaiseraalgoqueprestigiavaa“Nação”(vd.p.9).

OopúsculoeditadopeloSecretariadodePropagandaNacional(SPN)CadernosdaRevoluçãoNacional.PortugaldeOntem.PortugaldeHoje.PortugaldeAmanhã(s/d)denunciarajáantesapreocupaçãodoregime com o património, quando assinalou que os “monumentosnacionais,quási abandonados,muitos quási totalmente em ruínas,receberamdoEstadoNovooportunaebenéficaprotecção”(pp.64-65),o que permitiu que os mesmos fossem salvos da ruína, passando aconstituirdocumentospreciososevenerandosdaseraspassadas(vd.

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pp. 64-65). Ainda com o intuito de tentar demonstrar a importânciaatribuída ao património, enquanto símbolo da continuidade e doequilíbrio históricos existentes no regime salazarista, recordamos oálbum intitulado Representação A Sua Excelencia O Presidente DoMinisterioDoutorAntonioDeOliveiraSalazarParaQueSejaConstruidoEmSagresOMonumentoDignoDosDescobrimentosEDoInfante(1935)que incluía mais um dos diversos projetos que vinham sendoelaboradosparaarealizaçãodeummonumentoevocativodo InfanteD.Henrique, figura comquem, aliás, Salazar eraamiúde comparado,noquetocaaumalegadoespíritoempreendedoreprotetor.Dotextoqueacompanhaasimagensdasmaquetaspropostas,citamospartedeuma longa exposição que legitimaria esta edificação, porque nelaencontramos uma clara evidência da vontade que o regime tinha deconstruirobrasqueoeternizassem,poisque

surgem perfeitas e grandes porque nelas colabora umprincípioespiritualdirigente,uma fécolectivaeo géniodosartistas,criadoresmas integrados,sobumacomumdirecçãoespiritual,numplanomaisvasto.(...)Aideiadirectrizédadapela fé religiosa e nacional representada pelos própriosGovernantes,transmitidaporhomensdeIgrejaedeGovêrno.NãodeverádenovooGovêrnodaNação (...) fazer comquerealize a obra de arte colectiva que exprima todo o valorcriadordaNaçãoPortuguesanasuaépoca?(...)Oqueimportaé queoChefe doGovêrno saiba escolher o quemais emelhorpode engrandecer a Nação12. (...) E a grande e novaconsagração dos Descobrimentos será perfeita e eterna”.(1935:s/p)Face àpertinênciados espaçosmuseológicos e expositivosna

construçãoenareproduçãodasretóricasnacionalizanteseturísticas,éfácilentenderqueoregimesalazaristasetenhaigualmentedestacadono domínio das obras públicas. A prová-lo cumpre-nos realçar aExposição de Obras Públicas 1932-1947, cuja comissão executiva foipresidida por Eduardo Rodrigues de Carvalho, engenheiro inspetorsuperior do Conselho Superior de Obras Públicas. Do catálogo dessa

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exposição(1947)retemosolouvorfeitoàpolíticadoEstadoNovoportersabidocriarnapopulaçãooorgulhodepertencerà“comunidadedaNação”(s/p),eoreiterardacrençaoficial,segundoaqualcaberiaaoEstadomostrarerecordaraosseuscidadãosaquiloquedeviamvereobservar:

o português é, por sua natureza, pouco observador emuitoesquecido, nunca será de mais relembrar-lhe o caminhoandado, levando-o a concentrar a sua atenção, aindaque sópor momentos, no extraordinário esforço despendido, e apoder assim apreciar os benefícios que para o país têmresultadodapolíticafinanceira,económicaesocialque,comfirmezasemprecedentes,vemnorteandoanossagovernaçãopúblicanoperíododepaz edeprogressodosúltimosvinteanosdavidanacional.(s/p)Inúmeros foram os projetos elaborados e muitas foram as

obrasde estatuária realizadas em louvordaspersonagenspreferidasda ideologia salazarista. De todos os projetos apresentadosdestacamos, naturalmente, omonumento ao InfanteD. Henrique e oPadrão dos Descobrimentos, assim como as propostas para aconstruçãodeestátuaserigidasemhomenagemaestadistas, “heróis”dos descobrimentos e reis, como D. Afonso Henriques, Rainha D.Leonor, D. Fernando II, António José de Almeida, Óscar Carmona enaturalmente Salazar, com uma estátua de corpo inteiro produzidapropositadamente para a Exposição Internacional de Paris em 1937.Além disso, as iniciativas oficiais realizadas em prol da defesa e darecuperação patrimoniais eram tema recorrente na imprensa comoforma de divulgar à “Nação” aquilo que o regime resultante daRevolução Nacional concretizava para manter as vivas memórias dasuahistória.Amaioriadasnotícias referia as verbasdespendidas, asmedidas tomadas, os casos particulares, como foi a conversão doantigoMosteirodeSantaEngráciaemPanteãoNacional(vd.DiáriodeNotícias, 20 de janeiro de 1935: 1), todos os restauros que seriamexibidosporocasiãodoDuploCentenário(vd.OSeculoIlustrado,27demaiode1939:16-17),ouaespecificidadeassociadaàrecuperaçãodoCastelodeSão Jorge,emLisboa, “verdadeira acrópole da nação” (OSeculoIlustrado,30demarçode1940:16).

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Os estudiosos da recuperação patrimonial desenvolvidaduranteoEstadoNovoportuguêssãounânimesnoreconhecimentodocaráter eminentemente ideológicoquemotivava tais ações.DanieldeMelo(1997)explicaqueoregimeselecionava,sobretudo,“oscastelos,as igrejas e outros monumentos nacionais que simbolizavam umaligação concreta ao passado histórico edificante, um testemunho doespírito patriótico, um marco da sublimação criadora”(p.58),enquanto Susana Lobo (2006) defende que interessavafundamentalmente recuperar os monumentos medievais, entendidoscomotestemunhosdonascimentoedaconsolidaçãoda“Nação”(vd.p.32). De acordo com a mesma autora,não havia lugar paraequívocos,“clarificavam-se os ideais estéticos identificados com oRegime em projectos de marcada simbologia nacionalista”(p. 33).TambémDomingosBucho(2000)destacaafortemotivaçãopolíticaeaforma como era encarada a recuperação das fortificaçõesmedievais,entendidascomoamaterializaçãodaalmaportuguesa(vd.p.19).JoséRodrigues (1999), por seu turno, recorda que, no meio de tantosímpetosde recuperação, instigadospormotivos fortementepolíticos,surgiraminúmeroserrosdeinterpretaçãoartísticaqueacabarampordestruir oumutilarmonumentos de grande significado histórico queforam forçados a adaptar-se a constrangimentos coevos, como foicomumacontecercoma“recuperação”dostemplosmedievais(vd.pp.75,76,79).

SepensarmosnavertentenacionalizantedoregimedeSalazarnãoserádifícil compreenderanecessidadederecuperar,conservareexibirtestemunhosreaisdopassadoeartefactosdeartepopularcomorepresentaçõespatrimoniaisválidasda“Nação”.Estaestratégiaserviasimultaneamente para convencer públicos nacionais e visitantesestrangeiros, já que, como sabemos, a observação e a visita depatrimóniomaterial e imaterial são rotinas apreciadas e procuradasporturistas.

AntónioFerro, responsávelpelapropagandada“Nação”entre1933 e 1949, período durante o qual dirigiu o Secretariado dePropagandaNacional (SPN)eoSecretariadoNacionalde Informação,Cultura Popular e Turismo (SNI), é uma figura incontornávelno queconcerneàidentificaçãoeàdivulgaçãodascorporapatrimoniaismaisadequadaspararepresentara “Nação”.Recorde-senesteparticular,emeramente a título ilustrativo das inúmeras intervenções de Ferro

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nesse sentido, a designada visita dos intelectuais que promoveu em1935 e na qual acompanhou um grupo de convidados estrangeirosilustres(queincluíaUnamunoouPirandelo,porexemplo)navisitaaossítios patrimoniais que melhor representavam a “Nação”, comoGuimarães, Batalha, bairros históricos de Lisboa ou Mosteiro dosJerónimos.A açãodeAntónioFerro é igualmente inegável quando serecorda um dos momentos mais paradigmáticos no âmbito daidentificação do património popular que mais se adequaria arepresentaraverdadeiraessêncianacionalequesucedeuporocasiãodo concurso para eleger a Aldeia Mais Portuguesa de Portugal, em1938, ano em que o SPN lançou um concurso que visava nomear olugarejomaistípicodePortugal.NoBoletimOficialde7defevereirode1938, Ferro divulgava as regras da competição, convidando aslocalidadesruraisaprocurar “nomistériodassuasgavetas(…) tudoquanto era raiz,tradição,tudo quanto era passado com restos devida”(1948, s/p). Oficialmente, o evento justificava-se como umnecessáriocombateàsinfluênciasperturbadorasdaunidadenacional,ao mesmo tempo que se anunciava como uma manifestação públicaque tinha por propósito educar e fazer propaganda da verdadeira“Nação”.

ComoreferiuFerronainauguraçãodoMuseudeArtePopular,dez anos depois, o concurso da Aldeia Mais Portuguesa visaraselecionar a localidade “menos penetrada da civilização dos outros,aindaque tal carácternão fosse incompatível comaquelemínimodeprogresso que se considera indispensável à saúde e dignidade dospovos”(s/p)e,na lógicadoregime,convocarapopulaçãoaobservarexemplosconcretosda“Nação”materializadosemdiversasformasderepresentação patrimonial material e imaterial. Tal é explicado pelodocumentoItinerário(s/d),disponívelnoespóliodaFundaçãoAntónioQuadros, que refere que este evento pretendia encontrar um lugarmarcadoporumaarquiteturasimples,eondeapopulaçãousasseummobiliáriodomésticoigualmenterudimentar.Adistribuiçãodocasarioseria igualmente avaliada, bem como os trajos, as alfaias e as lidesagrícolas,asartes e indústriaspopulares,asatividadesartesanais, osmeiosdetransporte,easrotinasassociadasaolazereaorecreio(vd.s/p).

O périplo pelas aldeias a concurso decorreu entre 18 desetembroe5deoutubro,comumaparagemparadescansoemÉvora,

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no dia 1 de outubro. Durante esses dias a caravana avaliou as dozepovoações concorrentes, que deveriam exibir, perante a comitiva dejurados, representações de património material e imaterial queprovassemquenãotinhamsidomodificadasoumodernizadasdevidoaocontactoouàproximidadecomcentrosmaispopulosose,porisso,“poucoautênticos”.MonsantodaBeiracedoseapresentoucomoumaforte candidata ao troféu Galo de Prata, por alegadamente ser umarepresentação adequadada boapropagandanacional e por ter “umabase séria de regionalismo” (O Seculo Ilustrado, 24 de setembro de1938, p. 4).O concursoparaa eleiçãodaAldeiaMaisPortuguesa foi,como era hábito, tema de inúmeras páginas da imprensa generalistaportuguesadoanode1938.OSéculoIlustradofalavadoconcursocomo“umalindainiciativadoSPN”(OSéculoIlustrado,18dejunhode1938,p. 9). Em setembro do mesmo ano, a publicação Viagem. Revista deTurismo, Divulgação e Cultura destacava a iniciativa como uma dasmais brilhantes páginas do SPN, recordando que o Secretariadosempresustentaraadefesadastradiçõespopulares,i.e.,dopatrimónioimaterial, como afirmação de nacionalismo inteligente e controlado,numa permanente crença de que o progresso não implicavanecessariamenteperdade tipicidade(vd.Viagem.RevistadeTurismo,Divulgação e Cultura, setembro de 1938, p. 1). Para esta publicação,“carecemosadjectivosdevaloraosetentardefiniroalcance,nacionalepatriótico,decriar,comoestímuloehomenagem,umprémioàaldeiamais portuguesa que melhor souber guardar as suas antigascaracterísticas”(p.1).

EllenW. Sapega(2008) acreditaque este concursopretendeurecuperar tradições e reinventar memórias coletivas (vd. p. 18). Apobreza, o primitivismo e o arcaico, por um lado, e a calma, avirtuosidade e a pureza, por outro, eram termos usados paraapresentarejustificarascandidaturas,ecadavisitadoselementosdojúri resultavanaencenaçãodeumespetáculoque recriavaà forçaasalegadas características e o património da região. O facto de, aocontrário do inicialmente previsto, o concurso ter tido apenas umaúnicaediçãofortaleceoidealdeunidadenacional,pois,aotornar-seaalegoria real da ruralidade portuguesa, Monsanto terá adquirido asqualidades de ummuseu vivo, i.e., passou a ser entendido como umespaçodeevocaçãoconstantedamemóriada“Nação”(vd.pp.22,23).

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Grande parte do património que foi identificado esistematizadocomoresultadodesteconcursoacabouporsermostradoeminúmerasexposições,muitasdasquaiseramfrequentespontosdeinteressedepasseioseexcursõesorganizadospelaFundaçãoNacionalpara a Alegria no Trabalho (FNAT), estabelecida por um decreto-leique descrevia como sua principalmissão “a transformação profundadanossamentalidade,orevigoramentodetodososlaçosedetodosossentimentos que mantêm a comunidade nacional e a perpetuamatravésdostempos”(Decreto-lein.º25:495,13dejunhode1935).Eratambém omesmo património oficializado pelo concurso Aldeia MaisPortuguesa de Portugal que se exibia nas incontáveis feiras eexposiçõesnacionaiseinternacionaisemquea“Nação”participavaoudequeeraorganizadora,comoaconteceucomaExposiçãodoMundoPortuguêsem1940.

6.Onovohabituseademocratizaçãodacriação,daexibiçãoedafruição

OcasodoEstadoNovoportuguêsevocaumexemploextremodeumcontextopolítico-socialmuitoespecíficoemquerepresentaçõespatrimoniais, identificadas e divulgadas com o propósito demostrarconhecimentos tidos como certos e corretos, foram assertivamenteapropriadas pelo poder institucional que as (sobre)usaram com finspropagandísticos muito óbvios e pragmáticos. Contudo,independentemente dos enquadramentos que as acolhem emoldam,estas representações patrimoniais serão sempre corpora que seconfundemcomobjetivosenarrativasemnadainocentes,equejamaispoderão afastar-se dos caminhos trilhados pelos diversos tipos depoder dos seus atores, dos mais localizados e frágeis aos maisabrangenteseconstrangedores.Aseleçãoeahierarquizaçãoinerentesao complexo processo de patrimonialização tendem no sentido daconcretizaçãodamelhoredamaisadequadarepresentaçãodopontode vista do agente promotor, cujo objetivo final ambicionaráinvariavelmente o balanço pluridimensional possível e sustentávelentreaquiloquesequer,defacto,mostrar,omodocomotaldeveserexibido, as expetativas dos visitantes (locais ou forasteiros) e osdiversos tipos de lucros emais-valias que daí poderão ser retiradospor todos os intervenientes. Como refere Marc Guillaume (2003),

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“[c]onservarésempreartificializar,encenar, (…) transformarooutro(coisa, ser vivo, pessoa) em objeto de observação de um sujeitoobservador”(p.19).

Porém, “[m]udam-seos tempos,mudam-se as vontades” e, aosabor destas mutações sem fim, também as representaçõespatrimoniais exibidas em contextos pós-modernos de liquidez (vd.Bauman, 2000) podem adquirir novas formas e ser validadas poroutras vozes em prol de uma autenticidade e de uma tradição que,apesar de tudo, teimam em ser evocadas. Não descartando jamais aconvicçãodequeovaloratribuídoaumbemouaumaexperiência,ouritual,comointuitodeodaraentendercomo“Património”,nãoseránuncaalienadodeestratégiasmanipulatóriasdeumqualquer tipodepoder que em tempo algum se afastará de parcialidadesincontornáveis, os cenários sociais coevos sugerem que algo dediferentesepassa.O“Património”autorizadoseráagora“património”democratizado,nãosóporpermitirqueadesignaçãosejaformalmenteaplicada a novos configurações de representações, mas tambémporque a valorização cultural estará hoje tambémumpouco do ladodaqueles que antigamente apenas eram autorizados a fruir o queoutrosidentificavamcomosendoválido.ApardoPatrimóniocanónicoacreditadoinstitucionalmente–o“Património”sólidoeindiscutível-eque continua a ser exibido emáreasmais convencionais, atualmentecria-se,exibe-seefrui-seoutroscorporaderepresentação-osolharesdasprimeirasdécadasdoséculoXXIprocuramnovastelasdeexibiçãoe não se coíbem de dirigir os seus focos de atenção para lugaresdiferentesdaquelesqueatéhápoucotempoeramosúnicosdignosdeexporPatrimónio.

Estar-se-á eventualmente perante a materialização de algoexposto pela Constituição da República Portuguesa (1976) vigente.Assim,oArtigo42.ºdaCRP,Liberdadedecriaçãocultural,estabelecealiberdadequedeveráestarassociadaàscriaçõesintelectual,artísticaecientífica, especificando que a mesma “compreende o direito àinvenção, produção e divulgação da obra científica, literária ouartística”. Por seu turno, o Artigo 73.º, Educação, cultura e ciência,refere o direito à educação e à cultura, sendo que é competência doEstado promover a “democratização da cultura, incentivando eassegurando o acesso de todos os cidadãos à fruição e à criaçãocultural”.Acriaçãodepatrimóniodistintodaquelequesevalorizavano

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passadoeosnovosmodosdefruiçãodomesmosãoagoralivresparaacriatividade e para um acesso não constrangido e democrático porpartedosolharesedaspráticasquecomelesinteragem.

Identificado e compreendido o modo como as normaspresentes na CRP (1976) abordam estas novas práticas relacionais(liberdadede) criação / (liberdadede) fruição, cumpre entenderquepalco é este, em que criadores e fruidores se permitem tamanhaemancipaçãodecomportamentoscanonizados.RecordemoscomIlídioSalteiro(2016)queo“tempoéumaentidadefísicaconcretaemtornodaqualserelacionamoespaço,amatériaeaenergia”(p.15).Torna-se,assim,maisnaturalentenderoauxílioconceptualquePierreBourdieu(1979) poderá proporcionar para que se perceba que fenómenossociais terão consentido esta mudança de paradigma. Habitus é oconceitoque,nestemomento,convidaaevocarBourdieu(1979),porpermitir(tentar)compreenderaausênciadesolidezquepossibilitouosurgimento desta democratização nos momentos de criação, devalidação e de fruição patrimoniais a que se assiste hoje em dia. Naótica de Bourdieu (1979), a (constante) reciclagem de gostos outendências, ou habitus, seja qual for a sua natureza, resulta deexperiências tidas, com alguma regularidade, enquanto membros degrupos. Nas primeiras décadas do século XXI, pertencemos a grupostão diferentes (mesmo que apenas a nível virtual) e tão facilmentedescartáveiserecicláveisqueacabamosporviverexperiênciasmuitodiferentesquemoldamonossohabitusequeabremosnossossentidosa novas representações que reconhecemos como exemplos (mais)válidosesignificativosderepresentaçõescomunitárias,comumpesotão grande quanto têm, ou tinham no passado, as representaçõesobservadas num museu ou num templo religioso, por exemplo. AformaçãodetendênciaséexplanadaporBourdieu(1979)comosendoo natural resultado dessas experiências sociais vivenciadas pelossujeitos nas aglomerações a que pertencem, e cuja recorrência criapadrõesdegostosepreferências(vd.p.191).Extrapolamososlimitesde classe social utilizados por Bourdieu (1979) a favor de diversosoutros polos agregadores eventualmente pertinentes sempre quefalamos de práticas de visitas e de observações exibicionais,nomeadamenteemcontextodepráticas turísticas.Rotinas familiares,constrangimentosetários,formaçãoacadémica,curiosidadeeânsiapormais conhecimento poderão servir atualmente como fatores

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condicionantes de gostos e de tendências, nomeadamente no querefereàquiloqueseprocuraparavisitareatentarenquantoviajanteeobservadornoséculoXXI.

Esta é a época em que rotinas, comportamentos e tendênciaspodem ser explicados metaforicamente pela modernidade líquidaconceptualizada por Bauman (2000), antes evocada, e queconsubstancia a crença de que até os símbolos e representaçõespatrimoniaismaisortodoxosjánãosãosólidos.Emvezdisso,devemoscompreendê-los como algo que pode ser rapidamente substituído edesprovidodesignificado,paraadquirirumoutrosentidomaisútilouajustado a novas realidades várias. Estes são os tempos em que asousadias da vanguarda já não surpreendem e são entendidas comocomuns,talcomoidentificadoporLipovetsky(1983).

A par das inegáveis, salutares e incontornáveis mutações dohabitus, enquanto resultado e concretização real do modo comofazemosusodonossocapitalcultural, frutodasdiversasexperiênciasde vida percorridas, entendidas como estruturas estruturantes queorganizamtodasaspráticaseasuaperceção(vd.Bourdieu,1979,pp.191-195),aprocuradeidentidadesedeautenticidades continuaaserassociadaàobservaçãoeàexperimentaçãodebensculturaisdiversosquesãoentendidosevalorizadoscomopatrimónioqueveiculasaberese conhecimentosperenes.Bourdieu (1979)aplicaanoçãodehabitustambémaogostoeàspreferênciaspordeterminadosobjetosculturais,emdetrimentodeoutrosdisponíveis.Será,então,esteocontextopós-modernoqueautorizaefomentaaliquidezformaleumadeterminadaaceitação vanguardista que, em concerto, proporcionam o palcoperfeito para a liberdade e a democratização associadas à criação, àvalidaçãoeàfruiçãono/domundodopatrimónio,antesreferidas.

Atente-se,pois,aalgunsexemplosqueevidenciamestasnovaspráticas, referindo, desde já, a intervenção criativa de Vhils, ouAlexandreFarto,oartistaurbanoquedesde2000começouafazer-senotarcomografitter, equedesconstróie “ [problematiza]amemóriacoletivadascidades,avertigemdassuasimagens,ashistóriasdosseushabitantes”(http://www.fundacaoedp.pt/exposicoes/disseccao/dissection/180),fazendo uso de métodos de trabalho que conquistaram críticos epúblico,principalmenteapósteremsidoapresentadosnoemblemáticoCans Festival de Londresno ano de 2008. Aomesmo tempo em que

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participaemexposiçõescoletivasouindividuaisemespaçoscanónicosdeexibiçãopatrimonial,como,porexemplo,noMuseudaEletricidade,emLisboa,ounaLazaridesGallery,emLondres,Vhilscontinuaausarcomo telasparaos seus trabalhosmuros eparedesde cidades, ondeopta pela utilização de técnicas pouco ou nada convencionais queincluem a remoção das camadas superficiaisde estruturas ou a suaescavação.

O reconhecimentopúblico e oficial que lhe atribuiu em junhode2015ograudeCavaleirodaOrdemdeSant'IagodaEspada,amaisantiga ordem honorífica de Portugal, usada para distinguir oméritoliterário, científico e artístico de cidadãos portugueses, é o fruto dosucesso alcançado pelas suas inúmeras obras com localizações tãodíspares como Las Vegas ou Paris, e também em distintas cidadesalemãs,espanholas,inglesas,brasileiras,australianasoumexicanas.Naárea de Lisboa existem diversas representações emblemáticas doartista em igual número de telas exteriores situadas em muitos dositineráriospercorridosemAlfama,naAvenidaInfanteD.Henrique,emSanta Apolónia, em Alcântara ou na Avenida da India (vd.http://www.alexandrefarto.com/),semprequeseprocuraosíconeserepresentações patrimoniais divulgados pelas narrativas maiscanónicas, como sucede nas zonas mais antigas da cidade e noconglomerado Belém/Jerónimos. Estas localizações remetem-nos emconcreto para alguns dos mais conhecidos polos frequentados porturistas,que,quandoosatravessam,nãopodemdeixardeobservarasexibições criadas por um artista reconhecido nacional einternacionalmente, cuja obra também poderão visitar em espaçosmais tradicionais,mas que lhes são, assim, oferecidas gratuitamente,numaesquinaounumprédiomaisantigo,semquetenhamdeesperarou de procurar. Assim, percorrer e visitar exibições patrimoniais emLisboa, num habitus imposto pelos manuais de história ou pelosditamesdeguiasturísticosmaisoumenosconceituadosqueostornamimperdíveis em quase todos os percursos de lazer calcorreados nacapitalportuguesa,é,nasprimeirasdécadasdoséculoXXI,umapráticamais heterogénea, mais criativa e, em última análise, maissurpreendentedoquenopassado.

O próximo caso remete para uma localização geralmenteafastadadasrotinasdosqueprocuramrepresentaçõespatrimoniaisnaárea da Grande Lisboa, a zona da Amadora. Parece-nos, por isso,

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pertinenteevocá-loportambémelenosfornecerindíciosassertivosdeuma mudança de habitus nas práticas de observação e fruiçãopatrimonial, representando o acesso democrático e livre antesevocado, nomeadamente pela Constituição da República Portuguesa(1976).ArevistaSmartCitiesdemarçoeabrilde2015foidedicadaàarteurbana,enessecontextopublicouumabrevenota,disponibilizadatambém no seu sítio eletrónico, a propósito do lançamento de umaplataformadigitalconcebidanoâmbitodeumtrabalhoacadémicodepós-graduação na Faculdade de Letras de Lisboa e patrocinada pelaCâmara Municipal da Amadora (vd. www.smart-cities.pt/pt/noticia/mapa-do-graffiti-o-acervo-de-arte-urbana-da-amadora3004/). O Mapa do Graffitti da Amadora (www.cm-amadora.pt/patrimonio-cultura/335-informacao-geografica/1354-graffiti) tem por objetivo dar a conhecer a arte urbana existente noconcelho,paraoquesedisponibilizainformaçãosobreosartistas,bemcomo imagens e pequenos filmes acerca das suas criações, com ointuitodequepossaservirparaatrairvisitantesque,semesta formadedivulgação,provavelmentenãovisitariamaquelasruasporfaltadeconhecimentodasofertasdisponíveisparaonovohabitusdapráticadefruiçãopatrimonial(vd.www.rtp.pt/noticias/index.php?article).

Já em 2016, o Bairro Padre Cruz, nos arredores de Lisboa,serviu de galeria ao ar livre para a criação e a exibição derepresentaçõessobaformadegrafiti.Estacomunidade,omaiorbairrosocial da Península Ibérica, habitualmente afastada dos roteiros dosquebuscamexibiçõesautênticase tradicionaisde identidadesporserassociada a práticas de convívio e de rotinas sociais mais fora dodesignadocânone,foienvolvidanumprojetoqueteve,comomomentomaisformal,umcongressointernacionalorganizadopelaGAU(GaleriadeArteUrbana),onde foi transmitidaa informaçãodecomotambémeste espaço começou a atrair ao bairro um número crescente devisitantes à procura das novas telas que movem os cidadãoscontemporâneos.Aprópriacomunidadelocalinsisteagoraemmanteressastelas,eemcriaroutras,emanifestapublicamenteoseuorgulhopelanovaidentidadequeagoralheestáassociada.

Aúltimareferênciaexemplificativadonovoemutávelhabitusde exibição ede fruiçãopatrimonial indicaummododiferentede seobservar e desfrutar de representações patrimoniais, e édisponibilizada pela Associação Renovar a Mouraria

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(www.renovaramouraria.pt/).Desde2008queaassociaçãotemvindoa trabalhar coma comunidade localdaMouraria, conhecidapela suaheterogeneidade cultural e pelos baixos rendimentos, que terãoconotado o bairro com práticas sociais menos convidativas e, porconsequência, com um espaço a evitar por não habitantes. Estaintervenção agenciada pela Associação Renovar a Mourariapossibilitouque a comunidade tivesse acessoa instrumentosque lhepermitamreconstruir-secombaseempráticassustentáveisenãoemimposições artificiais esboçadas a nível global ou administrativo. Oprincipalpatrocinadordesteprojetoéumprogramadefinanciamentoeuropeu que possibilitou o desenvolvimento de uma série deatividades destinadas a toda a comunidade e a criação deinfraestruturas como cantinas solidárias, apoio jurídico à populaçãomigrante, apoio escolar, e organização de atividades de convívio. Aoportunidade de se exibir as diversas representações patrimoniaisexistentesnumbairro tãopeculiar comoaMouraria, em concertaçãocomas várias iniciativasdesenvolvidasno âmbitoda inovação socialemcurso,originouacriaçãodeumpercursoturísticopelasruelasdobairro, local recomendado por todos os guias turísticos e percorridotambém por caravanas de tuk-tuks. Contudo, a diferença e acriatividadedestaofertalocal,materializadapeloprojetoMigrantour,refletem,denovo,odispostopelaCRP(1976),nosArtigos42.ºe73.º,i.e. a liberdade de criação e de fruição patrimoniais. O que torna ositinerários oferecidos pela Associação Renovar a Mouraria e peloprojeto Migrantour diferentes é o facto de serem guiados porresidenteslocaisquetransportamosvisitantesatravésdassuasvielasepraçasdobairro,oque lhespermite terumcontactocomosváriospatrimónios materiais e imateriais que vão encontrando a partir daperspetivadealguémquevive,convivetrabalha,diverte-se,eaprendenaquelasruas.Esteprojeto,talcomorefereosite,“promoveotrabalholocal. História e estórias com gente dentro é o tema destas visitas.VivemosetrabalhamosnaMouraria.Recolhemoshistóriasememóriasdaqueles que, tal como nós, fizerem deste espaço a sua casa eenriquecem-nosemprequeabremasportasdassuascasas,dossítiosonde trabalham ou rezam, e nos convidam para entrar”(www.renovaramouraria.pt/category/visita-a-mouraria/portugues-visitas-guiadas/).

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Poderiam ter sido aqui igualmente referidos outros casos emqueossímbolosculturaiseasrepresentaçõespatrimoniaisqueatraemosolharesno séculoXXI estão forados espaços convencionais, ou seapresentam de acesso livre direto e gratuito, ou, ainda, querepresentamformasinovadorasequecostumavamserrejeitadas,masque agora estão disponíveis a todos aqueles, cujo habitus assim opermita. Poder-se-ia ter nomeado, por exemplo, um conjunto detalheres de plástico, organizado em formato de coração pela artistaJoana Vasconcelos e que foi exibido no Palácio Nacional da Ajuda,atraindomilhares de visitantes; ou ainda o nome de Bordalo II, quemanipula diversos tipos de despojos e resíduos materiais paraconseguir exibir representações de um novo património a poucosmetros do Mosteiro dos Jerónimos e da Torre Belém, reconhecidoscomoPatrimóniodaHumanidade.

Patrimónios“marginais”,locais“marginais”evozes“marginais”são, de repente, rececionados como as representações patrimoniaismais autênticas e significativas do mundo contemporâneo. O“ajuizamento” e a validação do bem cultural está agora também emmãos anteriormente “marginais” e desacreditadas, mas que afinaltalvez sejam a possível e melhor materialização da liberdade e dademocratização nas práticas de criação, validação e fruiçãopatrimoniaiscoevas.

As sociedades alteram os padrões por que se regem, os seusmembros (re)agem em conformidade, mudando ou adaptandotendências e gostos em sentidos diversos e aparentemente infinitos,líquidosedescartáveis.Estaéumarealidadesólidaeque terádesertidaemcontaparaqueseconsigaatingirumaplataformadesatisfaçãocomum a todos os que participam nas experiências da criação, davalidação e da fruição das diversas representações de patrimóniocultural.Maisdoquenunca,todoomundoéagora,defacto,umespaçode exibição patrimonial de mais fácil alcance e disponibilizado emlugares,sobformaseporvozesantesindizíveis.

ConclusãoEstecapítulopretendeurefletiracercadaevoluçãodoconceito

de “Património” / “património” e demonstrar que os processos quelevam à identificação de representações patrimoniais não são oresultadode“rotulagens”inocentesenaturais,dependendo,antes,demotivações do contexto social e político que permitem ou excluem

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agentes de autorização cultural, e do consequente reconhecimentopatrimonialdeumbemoudeumapráticacomunitária.Apesardisso,“Património” e “património” surgem invariavelmente associados àexibiçãode identidades e autenticidades culturaisde gruposmais oumenos extensos, mas são sempre o produto de um “ajuizamento”constrangidopelos intuitosmais importantespara a época emque omesmoéarquitetadoeproduzido.

Ostemposcoevosdaglobalizaçãoedeumademocratizaçãoporquesealmeja,tambémemtermosdecriaçãoefruiçãopatrimonial,talcomo evidenciado por alguns dos diversos corpora normativosreferidos, provocaram e promoveram a passagem gradual de umconceitosólidode“Património”,identificadooficialmenteeexpostoemespaços canónicos, onde eram apresentados por vozes autorizadas,paraum“património”maisabrangente,demaislivrecriaçãoedemaisfácilacesso,equesurgecomomaisnaturalfaceàs(não)característicasdapós-modernidadelíquidadasprimeirasdécadasdoséculoXXI.

É outro o habitus de partilha, vivência e fruição culturais epatrimoniais. Quem observa e experimenta é também instigado acolaborar na produção, na acreditação e na preservação. Parece quenãoexistemformas,matérias,espaçosevozes“in-autorizáveis”ou“in-autorizadas”.São,também,outrasaspráticaseastendênciasque,emúltima instância, fazemcrerque já se entendeacultura, a identidadeculturaleopatrimóniocomoJoséBarata-Moura(2016)osdesconstrói,i.e., “cultura não é um depósito de inertes, identidade não éempedernimento, identidade cultural é um trabalhointer/intracomunitário de convivência” (p. 7), ou seja, são conceitostrabalhadoseexibidosemresultadoeemfunçãodeponderaçõesedepoderes vários. Usando, ainda, a voz de Barata-Moura (2016), emtempos líquidos pós-modernos, e em mundos de rápidadescartabilidadeereciclagemurgente,énecessárioque

maisaquémdaestéticadossentimentos,edeumaapregoada«éticadosnegócios»-opatrimóniodasculturas[seja]tratadoà luzdeumintenso(polifónico,multilinear,controvertido,ecertamente polémico) ajuizamento cultural. Saído de – eprotagonizadopor–umacomunidadeviva,emqueaCulturanão apenas disponha de tabuleta no portal, e poiso numasinstalações,mastenhaverdadeirarespiraçãoefectiva.(p.20)

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MuseologiaePatrimónio–Volume1

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Decreton.º26:453,25demarçode1936.Decreton.º26:461,26demarçode1936.Decretosn.º26:499edecreton.º26:500,4deabrilde1936.Decreto-lein.º25:495,13dejunhode1935.Decreto-lein.º28:468,15defevereirode1938.Decreto-lein.º27:878,21dejunhode1937.Decreto-lein.º28:067,8deoutubrode1937.Decreto-lein.º28:129,3denovembrode1937.Decreto-lein.º28:468,15defevereirode1938.Decreto-lein.º28:869,26dejunhode1938.Lein.º107/2001,8desetembro.Portarian.º8:672,2deabril,1937.Portarian.º8:378,6demarçode1936.Referênciasemsítioseletrónicoshttp://www.alexandrefarto.com/(últimoacesso:14/10/2016).http://www.cm-amadora.pt/patrimonio-cultura/335-informacao-geografica/1354-graffiti(últimoacesso:14/10/2016).http://www.fundacaoedp.pt/exposicoes/disseccao/dissection/180(últimoacesso:14/10/2016).http://www.renovaramouraria.pt/(últimoacesso:14/10/2016).http://www.renovaramouraria.pt/category/visita-a-mouraria/portugues-visitas-guiadas/(últimoacesso:14/10/2016).http://www.smart-cities.pt/pt/noticia/mapa-do-graffiti-o-acervo-de-arte-urbana-da-amadora3004/(últimoacesso:14/10/2016).