no corpo de minha mãe

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    Todos os direitos reservados

    FICHA CATALOGRÁFICAFicha elaborada pela Seção de Processamento Técnico da Biblioteca Sebasão

    Fernandes do Campus Natal Central do IFRN.

     

    DIAGRAMAÇÃOGuilherme Henrique Kramer Dantas de Lima (Estagiário)

    CAPACrisB (Crisana Barbosa)

    REVISÃO LINGUÍSTICA E ORTOGRÁFICAAurélia Bento Alexandre

    Davi Tinno FilhoTRADUÇÃO

    Terezinha Petrucia da Nóbrega

    CONTATOSEditora do IFRN

    Rua Dr. Nilo Bezerra Ramalho, 1692, Tirol. CEP: 59015-300Natal-RN. Fone: (84) 4005-0763

    Email: [email protected]

    A573n No corpo de minha mãe : método emersivo = Dans le corps de ma Mère:Méthode émersive. / Bernard Andrieu ;

    tradução de Terezinha Petrucia da Nóbrega. – Natal : IFRN, 2015.  166 p. ; il. color.Edição bilíngue.

      ISBN 978-85-8333-124-7

      1. Corpo humano – Psicologia. 2. Imagem corporal. 3. Corpo –Filosoa. I. Título.

    CDU 159.922.5=134.3=133.1

    Presidenta da República Dilma Rousse 

    Ministro da Educação Renato Janine Ribeiro

    Secretário de Educação Prossionale Tecnológica

    Marcelo Machado Feres

    Instuto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia

    do Rio Grande do Norte

    Reitor Belchior de Oliveira Rocha

    Pró-Reitor de Pesquisa e Inovação José Yvan Pereira Leite

    Coordenador da Editora do IFRN Paulo Pereira da Silva

    Conselho Editorial André Luiz Calado de AraújoDante Henrique MouraJerônimo Pereira dos Santos

    José Yvan Pereira LeiteSamir Crisno de SouzaValdenildo Pedro da Silva

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    Nos olhos de minha mãe há sempre luz.Arno , Dans les yeux de ma mère.

     Julgar sua mãe é se lançar um bumerangueNelly Arcan , Burqa de chair, 2011.

    Tu és insubstuível, por isso está condenada à solidão, à vida queme destes. E eu não quero car só. Tenho uma fome desmedida

    de amor, de amor corpos sem alma permanecem, pois a almaestá em , tu és simplesmente minha mãe e teu amor é minha

    servidão.Pasolini , Poésie en forme de rose, 1964

    Mas, agora quero o plasma, quero me alimentar diretamente da placenta.

    Clarice Lispector , Água viva, 1973.

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    NO CORPO DE MINHA MÃE

     Prefácio 7

    A osmose aquáca 19

    A mãe em mim 25

    Somos assim tão livres? 31

    A verdade de meu corpo? 35

    Fazer seu coming-out  metodológico 41

    Até onde se unir ? 47

    O corpo torna-se seu próprio narrador 51

    Escrever seu corpo 57

    Manter o diário de seu corpo 59

    A sinceridade corporal! 63

    O núcleo mnemônico 67

    Conclusão 73

    DANS LE CORPS DE MA MÈRE

    Préface 81

    L’osmose aquaque 93

    La mère en moi 99

    Sommes-nous si délivrés ? 105

    La vérité de mon corps ? 109Faire son coming-out méthodologique 115

    Jusqu’où se lier ? 121

    Le corps devient son propre narrateur 125

    Écrire avec son corps 133

    Tenir le journal de son corps 135

    La sincérité corporelle ! 139

    Le noyau mnésique 143Conclusion 149

    Bibliograa / Bibliographie 152

    Sumário

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    Prefácio

    Prematuro no inverno de 1959,naquele 24 de dezembro, longede meu pai, conscrito na Algéria,e tendo saído do ventre de minhamãe no frio de Agen - longe do seiomaternal, não estando mais emseu seio - acreditei dever escrever,

    tendo tornado-me universitário,essa história de prematuro (...).Não conseguindo mais voltar aocorpo da mãe, o que é impossível,estar no corpo da mãe, fantasmadas origens, é diferente de escreverdesde o corpo de sua mãe eapós, no lugar do filho ou da filha

    (Bernard Andrieu, dans le corps dema mère).

      Apresentar o livro de Bernard Andrieu nessa ediçãobilíngue é ao mesmo tempo um desao, uma honra e um prazer.Trata-se de uma obra original, mesmo em língua francesa; além do

    mais, tendo a responsabilidade de ter feito a tradução o desaoaumenta, sobretudo quando nos damos conta da profundidadedo seu conteúdo e da vasta experiência do seu autor no domínioda losoa do corpo. Imersa na leitura do manuscrito e animadapelo desejo do aprofundamento no corpo e na língua francesa,aceitei esse duplo desao: a tradução e o prefácio. Então, a cadatrecho, parágrafo, sendos do texto desenhavam-se diante demeus olhos e uma emoção profunda tomava meu corpo inteiro na

    leitura de uma obra seminal que arcula referências do corpo vivoe da experiência vivida de seu autor e também da nossa.

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    “Do corpo de nossa mãe saímos todos”: Barthes, Freud,Leonardo Da Vinci, Merleau-Ponty, Mélanie Klein, Luce Irigaray,Nelly Arcan, todos os autores e autoras citados por Bernard Andrieu

    em uma vasta e atual bibliograa. Mas, de qual mãe falamos?Que experiência de maternidade nos atravessa e nos constui?Ao nos referirmos ao corpo da mãe estamos nos referindo à mãebiológica, àquela que nos portou em seu ventre ou no ventre deoutra, àquela que nos alimentou, nos afagou, nos deixou, nosamou? A todas essas, certamente. Ah! “Só as mães são felizes”,canta sob o signo da AIDS, o jovem poeta Cazuza, em homenagem asua mãe Lucinha. Lembro-me ainda de Zuzu Angel que se exprime

    por meio da canção de Chico Buarque de Holanda “Eu só queriaenterrar meu lho”, o jovem Stuart Jones, estudante e militantepolíco desaparecido e morto nos anos duros da ditadura militarno Brasil. E o que dizer de nossas mães cuja imagem especular nosassombra, nos seduz ou nos tranquiliza?

    A porosidade do cordão umbilical, o contato com o seiomaterno como nos apresenta Mélanie Klein ou ainda o cuidado(holding), conforme Winnico, que afetam profundamente nossa

    experiência. Esses traços que marcam nosso corpo vivo pelocontato com o ventre, o seio, os braços, com o corpo de nossasmães, habitam em nós em uma memória tatuada na pele ouincrustrada em nosso inconsciente; alimentando cada passo denossa existência e que, de alguma maneira, congura a escolhade nossos objetos de pesquisa, desejos, preferências afevas eintelectuais e, evidentemente, nossa forma de expressão e deescritura. Essa é a tese apresentada neste livro apaixonante que

    mostra como não apenas não conseguimos escapar inteiramenteàs nossas idiossincrasias, mas o quanto elas podem ser preciosaspara a losoa do corpo e para as pesquisas em torno dacorporeidade.

      “Não tenho outro ponto de vista sobre mim mesmosenão o que emerge à or da pele”, diz o autor. “Organizada emtorno dos traços sensoriais, minha sensibilidade acredita poderencontrar parâmetros para decidir entre os corpos aqueles

    que seriam melhores para minha curiosidade e para nossa

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    parlha”. Assim constuídos, corpo a corpo com as sensaçõese experiências corporais, nos dirigimos ao outro em busca dassensações primeiras e inconscientes, da doçura e tepidez da

    pele, do movimento de utuação que nos embalava no ventree nos braços de nossa mãe. E “por jamais voltar ao corpo damãe”, somos precipitados em direção ao outro. O outro quese apresenta em nossos desejos, nossos objetos intelectuais,nossas referências de pensamento, em nossa escrita. “O livro éesse cordão que nos religa pela escrita à mãe perdida”, resumeBernard Andrieu.

    O livro No corpo de minha mãe provém da profundidade

    sensível do corpo do autor e de sua percepção em ummovimento de pensamento que não se completa jamais. Ao lero livro de Bernard Andrieu ressentimos, revivemos em nossocorpo e em nossa história essas experiências profundas quenos constituem, nos assombram, nos emocionam, nos tocam.Ao nos mergulhar nesse sentimento de empatia, o métodoemersivo sugere pistas, veredas, estratégias para nos conectarcom o corpo, sua estesiologia e sua linguagem nos processos

    de pesquisa, escrita do texto e formulação da obra. De acordocom o autor, “de Montaigne a Cixous, passando por Simone deBeauvoir, a leitura de seu próprio corpo é uma entrada para aescrita biográfica”. Nesse contexto, o método emersivo buscaconectar as sensações do corpo vivo com a experiência vividanos relatos autobiográficos, na escrita do jornal do corpo, nasnarrativas e testemunhos em primeira pessoa.

    Essa escuta sensível compõe uma lógica de pensamento

    que reconhece a descontinuidade entre o corpo em ato e anarrativa, entre as sensações do corpo e sua expressão nalinguagem. Esse método emersivo vem sendo construído porBernard Andrieu de forma rigorosa e extensa, como podemosperceber em sua obra, notadamente em L’écologie Corporelle,em Donner Le vertige ou ainda no livro Le corps du chercheur:une méthodologie immersive, apenas para citar algunsexemplos de um pensamento que se coloca em movimento

    e ousa criar horizontes de investigação capazes de ampliar a

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    filosofia e a produção de conhecimento sobre a corporeidade,as práticas corporais e outros domínios da existência, comolemos no livro La peur de l’orgasme1.

    No corpo de minha mãe encontramos o aprofundamentodas ideias do método emersivo. O autor discute o “coming-out  metodológico”, o qual tem se tornado uma passagem obrigatóriaem busca de legimidade do pesquisador frente ao seu campode pesquisa. Assim, “face ao que deveria ser uma objevidadepuricada, a objevidade desvelada de sua subjevidade teriamais legimidade, pois estaria engajada na história das relaçõesdo pesquisador (a) com seu objeto de pesquisa. Assim, o objeto

    de pesquisa não é mais um objeto à parte e separado, é uma partedo sujeito”, arma Bernard Andrieu.

    Muitos aspectos se desdobram dessa posturaepistemológica e éca em uma críca da neutralidade axiológica deum corpo envolvido em seu saber: o corpo do ciensta, do lósofo,do professor. Convém, no entanto, reconhecer nossa fragilidadeno interior mesmo da produção do nosso saber. Eis a nossa tarefacodiana, inclusive em uma críca ininterrupta do nosso próprio

    imaginário. Nota-se ainda o esforço necessário para não “explicara obra pela vida dos corpos”, evitando assim “uma análise do textoele mesmo”, adverte Bernard Andrieu. Para o autor, “no corpodo pesquisador estariam ligados a escritura sobre o corpo e aescrita de meu corpo em uma formação idiossincrásica, conformea fórmula de Nietzsche, ao invés de uma conssão testamentária”.

    O método emersivo reconhece o “atraso ontológico daconsciência do corpo vivido sobre seu corpo vivo. A consciência

    do corpo vivido tem acesso à informação produzida por seucorpo vivo somente 450ms após o processamento no sistemanervoso”. Nesse contexto, “o escritor ou o arsta ressente apotência e a intensidade do que advém de seu corpo (cólera,orgasmo, alucinação, dor, imaginação), tentando traduzi-la emum modo de expressão mais ou menos direta na obra”. O método

    1 ANDRIEU, B. L’ecologie Corporelle  – 4 tomes (Atlanca, 2009-2011);ANDRIEU, B. Donner le verge: les arts immersifs (Liber, 2014) ; ANDRIEU, B. (Éd). Le

    corps du chercheur : une méthodologie immersive (Presses Universitaire de Nancy,2011) ; ANDRIEU, B. La peur de l’orgasme (Le murmure, 2013).

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    emersivo busca esse vivo que se anima de minhas sensaçõesinternas sem que minha vontade consciente consiga contê-las novivido do relato, em uma linguagem que tentaria exprimir esses

    espectros que se agitam no interior de nosso corpo e cujo desejonos impulsiona em direção a determinados objetos de afeto, deconhecimento, de expressão.

    Certamente esse desejo encontra obstáculos a suarealização: “seja porque o sujeito não deseja sucientementeou porque o objeto é ausente ou ainda proibido”, conforme nosindica Françoise Dolto (1984, p. 63)2. Esse jogo de presença,ausência, privação do objeto de desejo e sua sasfação é um lugar

    de nossas percepções sutis e que de certo modo funda o processode elaboração narcísica e subjeva das imagens de nosso própriocorpo, do corpo de nossa mãe e do corpo do outro. Assim, onascimento é acompanhado de um “grito sonoro” pelo qual nosexpressamos. O “traumasmo“ do nascimento marca por todaa vida o eslo de nossa angúsa mais ou menos memorizadacomo uma parte importante de nossa ligação com o outro, nossosdesejos e escolhas.

    De acordo com Françoise Dolto essa respiração primeira nosdá um novo ritmo e, posteriormente, teremos a sensação da massado corpo submisso à gravidade e às modalidades de manipulação,à luz, aos odores e sonoridades do mundo que formam a imageminconsciente do corpo. Essas sensações irão constuir nossosmodos de expressão, nossos desejos e potencialidades criadoras.“Eu e não você”: essa diferenciação parcular do corpo da mãenos coloca na direção do pai, da liberdade e do mundo em busca

    de nossa individuação e da parlha com o outro em esquemascorporais cada vez mais diversicados e polissêmicos. A separaçãodo corpo da mãe, separação sica e simbólica, constui-se comoum fenômeno fundamental nesse processo de individuação.

    A separação do corpo da mãe, a separação Eu-Não você é uma primeira experiência de lidar com a perda que se tornacada vez mais presente ao longo da vida. Trata-se de um processocomplexo de elaboração da perda do objeto amado que, em úlma

    2 DOLTO, Françoise. L’image inconsciente du corps. Paris: Seuil, 1984. p. 67.

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    análise, representa o medo e a angúsa da morte. A perda da mãe,a perda de um lho nos coloca em sofrimento, em especial quandose trata do “luto insólito”, como por exemplo, na perda de um feto

    ou de um recém-nascido cuja mãe enlutada perde as referênciastemporais e algo de urgência precisa preencher este lapso  quenão é somente de ordem cronológica, mas da ordem do tempovivido (kairós). Já adultos, em outras situações de perda, diante daausência, a escrita ou a leitura, como a desse livro, é o “traço dosilêncio” para fazer a experiência do luto que nos permite acionarmecanismos de reparação para lidar com os afetos ligados à perdae reencontrar o equilíbrio entre esses gradientes de concentração

    de nossas sensações em uma osmose entre o corpo vivo e ocorpo vivido, tal como proposto no método emersivo de BernardAndrieu.

     A mãe em mim, a verdade do meu corpo, manter o diáriode seu corpo são apenas algumas entradas de leitura dessa obraque nos faz pensar, ao precisar o lugar do corpo em nossa vida,em nosso desejo, em nossa expressão, em nosso conhecimentopor meio da profundidade das sensações do corpo vivo desde o

    ventre materno e as experiências de contato, cuidado e afeto.Assim, entre as sensações e a linguagem são tecidas ligaçõesque nos conectam a esse desejo de expressão como forma desublimação e criação de novos sendos para nossa presença nomundo e para a escrita de uma obra. Em No corpo de minha mãe:método emersivo encontramos uma reexão plural e espessa desendos capaz de tornar inteligível as sensações do corpo vivo ede amplicar a losoa do corpo.

    Petrucia Nóbrega

    Paris, primavera de 2015

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    No corpo de minha mãe, do corpo de nossa mãe, saímos todos,

    como escreve Roland Barthes. “Na Mãe, havia um núcleo radiante,irreduvel: minha mãe” (Barthes, 1989, p. 117). O problema éproduzir, a parr da perda do corpo de sua mãe, uma obra quenão seja seu trabalho de parto, “eu não quero reduzir minha mãeà Mãe” (Barthes, 1980, 116). Essa consciência da diferença entreo corpo de minha mãe e o corpo das obras que produzimos seria,assim, tão fácil para cada um(a) entre nós?

    “Quando Leonardo angiu o apogeu de sua vida, reencontranovamente esse sorriso de beatude extáca, semelhante àqueleque se via sobre os lábios de sua mãe enquanto ela lhe acariciava.Ele mesmo, por muito tempo, foi preso a uma inibição que lheinterditava de jamais demandar tais carícias a lábios femininos.Mas ele se tornou pintor e se esforça para recriar, com seupincel, esse sorriso. Ele o fará em todos os seus quadros, os queele mesmo executa ou que os faz executar, sob sua direção, porseus alunos: Léda, Saint Jean, Bachus (...). Talvez Leonardo tenharenegado e ultrapassado, pela força da arte, a infelicidade de suavida amorosa nessas guras que ele cria e onde uma fusão bem-sucedida do ser masculino e feminino gura a realização dos seusdesejos de criança, no passado, fascinado pela mãe” (Freud, 1903,p. 217- 219).

    Sigmund Freud acreditou poder interpretar uma memóriade infância de Leonardo da Vinci a parr dessa inconsciência,

    senão inconsciente no fantasma incestuoso: “o fantasma écomposto da dupla memória de ter sido amamentado e beijadopela mãe” (Freud, 1903, p.97). Não conseguindo delimitaros corpos respecvos de Anne e de Marie, Leonardo os teriaconfundido, “as duas mães de sua infância deveriam se fundir, parao arsta, em uma única gura” (Freud, 1903, p. 13). “Eu estavano interior desse corpo e saí. Ela é a pessoa que conheço melhorno mundo”, declara o fotógrafo Charlie Engman. Fotografando

    sua própria mãe nua, ele renova a representação da mãe por umadocumentação do envelhecimento. Saímos desse corpo que se

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    tornou velho, procurando, sobretudo, fazer do corpo de sua mãeuma “paisagem” (Mercier, 2015, p. 65).

    A obra é separável do corpo de nossa mãe a ponto de

    desprezarmos ao invés de admirarmos nossos pais? Eve Ensler diz,no seu livro Dans le corps du monde, ter “autorizado meu corpoa se ocupar de coisas recalcadas desde sempre” (Ensler, 2014, p.100). Confrontar-se a realidades corporais do câncer, do estupro,do incesto assim como de sua vagina, tema de seus Monólogosda vagina, lugar da mulher, conforme Ensler, diante de umacompreensão dos traumasmos corporais por uma consciênciaaprofundada do interior de seu próprio corpo. Em contato com

    o vivo do corpo pelas regras de Marie Cardinal, com o câncer deútero de Eve Ensler ou com o incesto de Amonera Winckler, o corpovivo das mulheres pode ser escrito desde o interior, invadindo otexto consciente.

    Hoje, com as imagens in utero, com uma impressão 3D denosso corpo-feto1, podemos nos (re)ver no corpo de nossa mãe. AGPA, Gestação para Outrem, seria somente uma mercanlizaçãode úteros vendidos ao maior lance, conforme aqueles e aquelas

    que defendem as mulheres e a liação à mãe biológica (Agacinski,2009) e que ressaltam a memória inconsciente que têm as criançasgeradas a parr das quais constroem um vivido no corpo vivo. Como“fato carnal” (Gross, 2014, p. 21), a gravidez e o parto de uma criançapela gestante por conta dos pais intencionais poderiam contar, comopropõe a PMA (Procriação Medicamente Assisda) Irène Thery e AnneMarie Leroyer (2014), com a ajuda de um engajamento antecipado.Deveria haver uma connuidade biológica entre a geradora e os pais

    simbólicos para naturalizar essa liação? Sair do corpo de nossa mãebiológica e ser criado(a) e educado(a) por sua família nuclear é umagarana e de quê? Se o corpo vivo que somos no corpo de nossa mãerecebeu inuências uterinas, permanecer ligado com aquela que nosportou é essencial para compreender essa ligação entre nosso corpovivo e nosso corpo vivido atual.

    O direito deve nos garanr esta dupla liação: do corpo vivo,no qual vivemos durante nove meses; e o corpo vivido atual, que nos

    1 hp://www.theverge.com/2012/8/8/3227461/3d-prinng-fetus-japan-fasotec-hiroo-clinic

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    tornamos com os pais e com as pessoas que nos ecologizaram emnosso meio. No caso acima relatado - resultado da fecundação deum óvulo de uma doadora tailandesa pelo homem australiano, que

    recorreu a uma mãe portadora, a ausência de contrato e de obrigaçãorecíproca, apesar da doação equivalente a 1.000 euros, em agosto de2014, no contexto de uma troca nanceira não autorizada na Austrália,movou os pais australianos a recorrerem à jusça para conservar acriança sadia e, assim, rejeitaram o gêmeo trissômico, Gammy, quea mãe portadora conserva! O corpo da criança torna-se, destarte, ocorpo de sua mãe para a criança, que, nalmente, ela educará.

    A estadia maternal de nosso corpo em formação em seu

    corpo é uma temporalidade e um espaço que deveriam ser consi-derados e reconhecidos na constuição de nossa carta de iden-dade e que não se resume à carta genéca de nossos determinan-tes e potenciais. Essa nova carta de idendade maternal subjevada gravidez reconhece toda singularidade da experiência que vecom minha mãe portadora. Negar o direito pós-parto dado à mãeportadora e à criança que ela carrega, alegando o movo de elanão ser a mãe biológica, é reduzir, com efeito, a temporada ute-

    rina a uma locação de propriedade da qual não teríamos o con-trato. In utero, encontramos um abrigo natural, assim, a ausênciade uma liação genéca não interdita as trocas biológicas entrea mãe portadora e a criança: nosso corpo vivo começa antes donosso corpo vivido e a imersão uterina faz parte do direito ao co-nhecimento de nossas origens, tanto genécas quanto ontogené-cas. Nossa data de nascimento, como corpo nominado, deveriaser aquela de nossa concepção, como corpo vivo. No nascimento,

    nosso corpo vivo já tem nove meses!Mas esse ideal metodológico de penetrar, senão de

    retornar ao corpo que produziu nosso próprio corpo, é aquele deuma transparência necessária: seria suciente conhecer todas asinformações que incorporamos desde nossa formação in utero parareconstuir o que chamamos de nosso “mundo corporal” (Andrieu2010). Desse modo, essa gênese é, ao mesmo tempo, a história denossos modos de percepção e a grade através da qual nosso corpo

    está em contato direto com os outros.

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    Podemos, porém, reconstuir a percepção que nosso corpovivo teve do mundo quando estávamos no corpo de nossa mãe? Nãosomos conscientes, mas os traços das experiências in utero (e no curso

    dos primeiros meses) são remanescentes do que seria nossa memóriacorporal. Nossa tendência a neuroses, conforme Sandor Ferenczi(1909, p.46), “à imitação e contágio físico”, libera nossos interessesem direção a fantasmas inconscientes cuja obra seria uma objetivaçãoposterior. Saberíamos o que procuramos antes de tê-lo encontrado? Euma vez realizado e escrito, o texto não nos retornaria, revelando umaparte esquecida e recalcada de nós mesmos?

      Como mostraram Alexandre e Margarete Mitscherlich, a

    propósito da infanlização do eu, a incapacidade de fazer o luto daorigem maternal conduziu a uma projeção numa obediência cegaao Führer nazista. Censurar suas pulsões ao dirigir seus desejos emdireção a objetos permidos deveria conduzir a uma repressão e auma culpabilidade do genocídio. Se o luto é impossível, o é ao preçode uma “desrealização” que “serve para justificar-se a seus própriosolhos” (Mitscherlich, 1972, p. 63). O equilíbrio da identificação aopai do mesmo sexo é desvalorizado para “encorajar os jovens a se

    identificar a esse homem, concebido como o Pai ou O Grande Irmão”(Mitscherlich, 1972, p. 222). Culto extático, amor fanático e ódio dosinimigos são técnicas psicológicas de manipulação de adolescentesmantidos em uma relação simbiótica de um ideal imaginário. Essasperturbações de identificação, encorajadas por seus pais, os mantêmtodos ligados à terra, à pátria, à nação e ao Reich na negação dosoutros, como bodes expiatórios do amor fusional. O conformismoàs normas do grupo reforça uma agressividade destruva, uma

    resignação deprimida ou uma superadaptação: o adolescente “nãoconsegue então fazer a experiência libidinal da coragem de duvidar,de ter uma opinião diferente, de ser independente” (Mitscherlich,1972, 261). Ser autônomo e ter a capacidade de ser só, no sendo deWinnico, repousam sobre uma separação assumida com o corpo denossos pais.

    Escrever depois, e não no corpo de sua mãe e sem ser mãe(Joly, 2014), é então fazer o luto da perda e, conforme Mélanie

    Klein, o luto do “seio da mãe e de tudo o que o seio e o leite

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    representam para o pensamento infanl” (Klein, 193, p.77). Aoaceitar a temporalidade da perda, escrevo, desde meu nascimento,fora do corpo de minha mãe. Desde então, o corpo da mãe está

    também em meu próprio corpo, na posição do lho mais velhoe não somente mais amado, que deve conquistar sua autonomiapor meio de sua obra. Mas é também escrever depois e a parr docorpo da mãe, pleno de minhas memórias sensoriais de sua pele,interditada quando de minha prematuridade. Em face ao risco deaição, “o desejo ardente do retorno da mãe persiste” (Bowlby,1980, p. 23), sublinha John Bowlby. Escrever não seria uma “sultraição” no relato de liação que gostaríamos de estabelecer?

    (Audoin-Rouzeau, 2013, p.140).Nós devemos suportar e ultrapassar a ausência insuportável

    da mãe para escrever, a distância, com o corpo dos outros semacreditar que estaríamos, por imersão, neles. Pierre Fédida nosadverte: “Sustentar a coisa pela realidade corporal primária, ouseja, corpo do texto” (Fédida, 1978, p.39). Ao escrever, pensamos aparr do que seria o texto da mãe como coisa ideal e plena, em “suatextura corporal na qual nosso corpo permanece amnesicamente

    presente” (Fédida, 1978, p. 40). Os traços mnésicos de nossocontato maternal nos dão a impressão de que somos “o mesmocorpo e suas impressões”, “a verdadeira realidade da coisa”.Roland Barthes é muito lúcido sobre essa pesquisa do corpo. Paraele, o corpo não significaria nada mais que aquele da mãe, comoindica em La chambre claire: “meu corpo não encontra jamais seugrau zero, ninguém o dá, talvez somente minha mãe?” (Barthes,1980, p.27). Assim, diante da ausência da mãe, a escrita “é o traço

    do silêncio” (Fédida, 1978, p.57).Serge Doubrovsky realizou um passo suplementar ao analisar

    o lugar da madeleine, descrita pelo narrador em Em busca do tempo perdido, como sendo aquele mesmo da mãe, sua incorporação: “amadeleine é então um fantasma, não no lugar da mãe em geral, masmuito precisamente o lugar do ‘alimento maternal’ que faltou” (Dou-brovsky, 1974, p. 37). A mãe se deixa masgar facilmente, senão peloseu leite, ao menos pelo seu corpo do qual nós saímos, sem jamais

    retornar diferentemente, a não ser pela escrita ou pelo fantasma.

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    aborígenes do Cap Bedford, reportado por Emile Durkheim em seulivro de 1912 Les formes élémentaires de la vie religieuse, indicacomo as crianças penetram no corpo da mãe através do umbigo

    ou da boca como um courlis (ave conhecida como maçarico debico) para uma menina e uma serpente para um menino. O útero,como mostramos em La peur de l’orgasme [O medo do orgasmo],é assimilado a um animal que, sendo introduzido no corpo damãe, torna-se uma matriz fecunda. O prazer primivo da vidaintrauterina, em 1908, conforme o psicanalista Isidor Sadger, é um“erosmo cutâneo, mucoso e muscular que procuramos quandoda penetração e da contração através das quais ‘o corpo inteiro

    sente cócegas’, por uma sensação voluptuosa de maciez, calor eumidade” (Rank, 1924, p. 44). O recalque extremo nos impediriade reencontrar “a memória de sua estadia anterior” (Rank, 1924,p.39), como uma criança.

    George Groddeck, no Livre du ça  (Livro do isso, 1923),surpreende-se que não tenhamos memória consciente dostrês primeiros anos de vida. Sua memória “connua a viver noinconsciente e permanece tão vivaz que tudo o que nós fazemos

    desdobra-se desse tesouro de reminiscências inconscientes”(Groddecck, 1923, p. 21). A mãe não se lembra mais tampouco:“talvez as mães apenas njam, a menos que nelas igualmente oessencial não alcance o consciente” (Groddeck 1923, p. 22). Assim,a mãe possui um saber a nosso respeito, a despeito de nós e delamesma: sabe de todas as nossas primeiras técnicas corporaiscomo a primeira vez que andamos, o reconhecimento de seurosto ou o impacto de seu gesto sobre nossa pele. Não é preciso,

    portanto, ter ciúme de nossa mãe: “o ciúme de não ser eu mesmouma mulher, de não se tornar mãe” (Groddeck, 1923, p. 23). Maisdo que a separação dos sexos e a diferença dos gêneros, GeorgGroddeck descreve nossa estranheza ontológica com o corpo denossa mãe. Metodologicamente permanecemos, pois, fora denós mesmos, já que saímos dela sem conseguirmos compreendera percepção que tem de nós. O que chamamos consciência denosso vivido corporal nada diz do ponto de vista da expressão do

    que nosso corpo vivo conheceu desses primeiros anos no quaisaprendemos de nossa mãe. Ao invés de emergir esse saber vivo

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    que contém nosso corpo, “nós procuramos dissimular tudo isso”(Groddeck, 1922, p.22), como o adulto o faz com seu infante.

    Ao permanecermos “somente na supercie”, recusamos

    a vida mesma de nossas dores mais profundas e nossas alegriasmais intensas dessas primeiras experiências que orientam nossasensibilidade para sempre. No entanto, nesses momentos deemersão, “temos a mesma impressão de angúsa da época de nossainfância, pequenos detalhes em nossa maneira de andar, de dormir, defalar, que nos acompanham ao longo de toda nossa vida” (Groddeck,1923, p.22). Queremos reconhecer esse vivo infanl em nós a mde dialogar com o corpo de nossa mãe, que teria registrado tudo

    isso a ponto de sempre nos retornar? Ou preferimos crer que nossapercepção de nosso vivido corporal seria suciente para dizer o quenós somos tão profundamente? Nossa cegueira ontológica juscarianossa falta de discernimento consciente pela supercie percepva?Não seria preciso consenr ao saber vivo condo nos olhos de nossamãe para tornar nosso corpo mais vivo que vivido? “Sob o disfarce eem meio a máscaras, permanecemos o que somos e deixamos o bailesemelhantes ao que éramos na chegada” (Groddeck, 1923, p.23).

    Mas a questão que angusa é aquela da origem, sua formaçãomesmo: “como a criança penetrou no corpo da mãe” (Rank, 1924,p.40), questão que invertemos aqui: como a mãe penetrou nossocorpo de criança a ponto de nele conservar um traço tão imaginário?Essas teorias infans do nascimento relacionam a criança diretamentepor sua boca ao excremento, pelo seu reto, em função da necessidadede equilíbrio, pois o corpo se tornou muito volumoso. Podemosprocurar essa sensação de estar condo em seu contentor através

    da dependência e do invólucro: “é assim que se fazendo vincular, omasoquista procura restabelecer, pelo menos em parte, a situaçãovoluptuosa de imobilidade intrauterina”, conforme Sadger citado porRank. A penetração no oricio vaginal – Rank retoma aqui a análise deFerenczi – é somente “um retorno parcial no corpo maternal” (Rank,1924, p.47), tendo o objevo de tornar-se completo ao formar umcorpo inteiro com o amado(a), ao invés de “voltar a ser infanl” pelarecusa da castração.

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    Assim, a jovem poderia, na falta do órgão biológicoadequado, com o vibrador (Preciado, 2002), “renunciar aesperança de um retorno avo em direção à mãe” (Rank, 924,

    p.51). Rank, falocêntrico e freudiano conservador da ordem dossexos, considera o preenchimento do corpo de sua mãe pela jovemsomente pela gravidez desta e pelo parto que lhe faria “reencontraro bem-aventurado estado primivo” (Rank, 1924, p.51). A inversãoaqui é de ter estado condo e tornar-se contentor como se assensações pudessem ser comparadas, confundindo-se, assim, a“relação em direção à mãe” com sua transformação corporal emmãe. Seria a formação de um feto, no útero, assim maternizado,

    que restabeleceria completamente “a situação primiva entre amãe e a criança” (Rank, 1924, p.51).

    Se o sexo masculino permanece ainda em um restabele-cimento parcial, o sexo feminino, tornando-se mãe, por sua vez,reencontraria a osmose imersiva ao imergir em seu útero um novofeto. Essa interpretação darwiniana da seleção uterina é certa-mente uma ilusão fecunda, mas que reduziria a perda do corpode sua mãe pela transformação do corpo de sua lha. Seria a mes-

    ma sensação? A procriação, conforme Rank, seria “uma tentavade deslocar a fonte da volúpia” (Rank, 1924, p.53). Como observaGeorges Devereux, ao evocar suas próprias experiências de pene-tração máxima, quando a glande toca o colo do útero, a parte maisprofunda não é insensível, sendo necessário combater esse “mitoda supremacia do clitóris” que “remonta de uma mentalidade fa-locráca precisamente daqueles que pretendem combatê-la” (De-vereux, 1983, p. 32). “A vulva úmida, distribuidora de seus líqui-

    dos, como uma fonte” (Gee, 1999, p.9), torna-se essa “origem domundo” da qual Gustave Coubert, em 1866, mostraria a entradasem face da mulher.

    Conforme Hélène Deutsch, porém, o fantasma de umamaternidade sem homem nasceu para a mulher jovem do “mitoda imaculada concepção” (Deutsch, 1933, p.169). Permanecervirgem e grávida inscreve a recusa da sexualidade heterossexual,que será reforçada pela imbricação dos dois corpos quando do

    aleitamento. A mãe, já dizia Freud, “deixa-se mamar pela criança”

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    A mãe em mim

    A mãe em mim seria um retorno real ao corpo maternal,como aquele de Édipo, que, após furar os olhos com dois alnetes,segura o vesdo de sua mãe desnuda e se vê “mergulhado emuma obscuridade análoga aquela que ele havia conhecido quandoestava no interior do corpo de sua mãe” (Rank, 1924, p.52). Oscegos de nascença teriam o privilégio de se manterem no lugarmaternal? A psicologia do desenvolvimento dos bebês mostracomo o bebê no útero teria percepções audivas, olfavas –como demonstrou Françoise Dolto (1984, p.69). O odor da mãe éreconhecido no nascimento pelo bebê, pois ele o registrou no útero

     – assim como percepções sonoras e táteis. Seria uma memória?Interroga-se Rank: o que permaneceria dessa “estadia no interiorobscuro do corpo maternal”? (Rank, 1924, p. 57). A ideia de umretorno ao corpo materno revelaria, antes, a esquizofrenia, aoinvés de uma possibilidade real. Nessa matriz original, a criançaencontra-se “toda inteira e a mãe inteira”, analisa Luce Irigaray(1985, p.20).

    In utero, a noite é sonora como um “vivido sônico”onde “somos mergulhados em um meio acúsco que se escuta”(Tomas, 1981, p.27). Escutar a voz de sua mãe desde o interior

    de seu corpo não a torna mais audível, mas, antes, reconhecívelpelas reações psicosiológicas de sua audição. O banho uterinofavorece a disnção pela criança entre a voz da mãe e os barulhosdo mundo exterior. A criança perceberia, como pensa AlfredTomas, o aspecto “maternante” dessas vibrações internas dasparedes de sua caverna uterina, notadamente os “acentos da vozda mãe que fala a seu feto” (Tomas, 1981, p.147). No corpo deminha mãe, eu escutaria sua voz, que se dirige a mim. Mas eu sou

    um eu sucientemente autônomo dela, através de uma espécie dedesdobramento do corpo em terceira pessoa que se dirige a seu

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    corpo em primeira pessoa? Ser um corpo nascente no e através docorpo de minha mãe conserva em nós a memória corporal desse“campo de ressonância primeira”? (Tomas, 1981, p.151). O que

    ainda ressona em nós desse barulho do fundo da vida uterina?A medida e a avaliação2 das capacidades funcionais, tanto

    sensoriais como motrizes, efetuam-se desde a quinta semana dodesenvolvimento com o início da diferenciação dos receptoresolfavos (Delassus, 2001, p.54). O exame das sensorialidadesprovou que “os sistemas sensoriais estão em condições de funcionarbem antes de terem angido sua maturidade estrutural, quesomente é alcançada após o nascimento, por vezes mesmo, anos

    após” (Lecanuet, Granier-Deferre, Schaal, 1992, p.44). A inervaçãotál ocupa o contorno bucal desde a séma semana, depois, emtorno da décima primeira semana, ela ange o rosto, a palma dasmãos e a planta dos pés. O tronco e uma parte dos membros sãosensíveis, por volta da décima quinta semana; e o corpo inteiro, navigésima semana. Os primeiros gomos gustavos se desenvolvementre a nona e a décima segunda semana gestacional. Assim,com uma maturidade morfológica em torno da décima segunda

    ou décima terceira semana, o feto pode experimentar o líquidoamnióco. O desenvolvimento do sistema audivo pode entrarem funcionamento por volta da vigésima semana, e o conjuntodas estruturas audivas será operacional em torno da vigésimaoitava semana (Granier-Deferre, Busnel, 1981).

    Desde o m do primeiro trimestre da gravidez, o fetopoderia elaborar um vivido do corpo próprio ao captar asqualidades de seu meio próximo e com a possibilidade somastésica

    de se senr: “o feto tem muito cedo um estado ‘pleno do tato’:sensível ao que lhe toca, fricciona, o entorna ou envolve; sensívelao que lhe penetra no nível das fossas nasais ou da boca, sensívelna globalidade de seu corpo em relação às posições submissas ouavas e, presumivelmente, em função do estado dos órgãos e dasfunções internas” (Delassus, 2001, 59). O tocar fetal é comparávelao tocar adulto: no ventre da mãe, o interior e o exterior são

    2 Voltamos aqui às nossas análises em Le monde corporel. Essai sur la

    constuon interacve du soi , Lausanne, Ed L’age d’homme, Préface Alain Berthoz,2010.

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    indiferentes e não parecem ser tocados por nada mais que nãoseja por eles mesmos: mesma temperatura, mesmo meio, mesmasubstância que seu eu.

    A imersão precede o tocar e uma evolução tál do vividocorporal efetua-se quando da passagem da experimentação dolíquido amnióco no encontro da parede uterina ou da placentaaté a sucção do dedo, na boca, ainda no útero. A experiênciaaquáca neonatal ocorre a 37 graus e com um peso relavo eum envolvimento que irão favorecer a aprendizagem pós-nataldo bebê nadador (Le Camus, 1991;1994). A boca, que absorveo líquido amnióco, e o nariz, que o rejeita, estabelecem um

    connuo vai e vem de líquido na cavidade primiva (Soulé, 1997,p.27-28).

    Mélanie Klein conrma que “ter feito parte do corpo maternal,durante a gestação, contribui, sem dúvida, para o senmento inato dacriança da existência, exterior a ele, de algo que é capaz de preenchertodas as suas necessidades e seus desejos” (Klein, 957, p.15). “Acriança, ao projetar a mãe, no exterior, inverte a lógica do nascimento:o bom seio faz, a parr de então, parte de mim; a criança, que se

    encontraria inicialmente no interior da mãe, coloca manifestamente amãe no interior dela mesma” (Klein, 1957, p.15). Uma vez estando nomundo, talvez exploremos ainda “certos fatores ainda inexplorados nacriança in utero” (Klein, 1957, p.15). Essa inversão do amor em invejaintroduz no seio da mãe, a despeito de ser em seu seio, tudo o quepoderia deteriorá-la sem destruí-la. Convém buscar em outro lugar,uma vez que encontramos, em nós, um órgão que “parece o mamilo eque produz líquidos” (Klein; Rivière, 1937, p. 28). O resto de sua mãe,

    seu corpo, será necessário destacar-se, acreditando poder ali retornaratravés das relações com objetos sempre parciais que encontramosno campo de nossas pesquisas e nas nossas relações de amor e deódio. Mas a inveja dos homens em relação às mulheres se alimentarádo caráter desejável do “interior do corpo feminino e das funções edos processos misteriosos que elaboram” (Klein, Rivière, 1937, p. 49).O bebê pode dirigir suas tendências sádicas “não somente contrao corpo da mãe, mas também ao interior de seu próprio corpo: ele

    deseja cavá-lo, devorando seu conteúdo” (...) (Klein, 1934, p.13).

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    marca de suas origens (Anzieu, 1974, p. 150). A passagem do eu-pele comum com a mãe ao eu-pele pessoal inscreve-se na relaçãogura-fundo entre oralidade e epiderme: os oricios (boca, ânus,

    trato urinário, vagina, nariz, pavilhão auricular, órbita, umbigo)tornam-se sensuais na dimensão global da pele.

    Essa confusão entre a mãe e si mesmo, Jean-Paul Sartreteria vivido na casa de sua infância, na cama parlhada noúnico quarto. A mãe permanece essa moça que “pega sua baciana sala de banho” e “volta inteiramente vesda: como eu terianascido dela? Ela me conta seus sofrimentos e eu a escuto comcompaixão. Mais tarde, eu a esposarei para protegê-la” (Sartre,

    1964, p. 20-21). Parlhar o mesmo leito como dois amantes,“como fazíamos minha mãe e eu (...). Irmão, em todo caso, eunha sido incestuoso” (Sartre, 1964, p. 47).

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    Somos assim tão livres?

    Somos assim tão livres do corpo de nossa mãe? Pois nãoé preciso –  adverte-nos a lósofa Luce Irigaray – convidar “oshomens a não fazerem de nós ‘seu corpo’, uma caução de ‘seucorpo’?” (Irigaray, 1985, p.29). Como devolver a vida “à nossa mãeem nós”? (Irigaray, 1985, p.28). O que seria um mundo fundandosobre o “desaparecimento da mãe”? (Barreno, 1979, p.195). A

    escravização das mulheres em mãe parcipa da naturalização docorpo no qual seria necessário desconstruir a produção biológicapor estar somente nas relações de gênero: contracepção, direitoao aborto, PMA e GPA, útero arcial (Atlan, 2005), Godotechnie(Preciado, 2000). Lá onde Michelet esmou, há cento e cinquentaanos, que “a mulher não vive sem o homem (Michelet, 1860,p.76), pois ela é a matriz”. Endossamos nosso corpo ou aquele deoutro (a)? (Porge, 1986, p.80).

    Ao corpo de minha mãe, gostaria de retornar ao me colocardiante dos outros corpos para que eu os perceba através do seu.Essa obsessão roubaria a cena sem que minha percepção pudessese destacar. Mesmo por suas partes, o corpo de minha mãe torna-se obsessivo até que eu não reconheça toda a diferença dos outroscorpos. Ferenczi precisa essa versão onanista: alguns homens“substuem a realidade de sua mulher ao fantasma de uma outramulher, e, por assim dizer, eles se masturbam em uma vagina”(Ferenczi, 1912, p.86). Seu corpo é sempre vivo no meu ao avarsua preferência na escolha das informações sensoriais que metocam. Por quem eu sou nalmente afetado se a infecção precedetoda afeição? Fazer o luto não é suciente, sua reminiscênciaconnua além do desaparecimento do corpo da mãe. O queseria original em minha produção não seria a reprodução dessasimagens perdidas de vista e dessas sensações revividas peloseúvios de novos corpos? Afastando-se, não haveria o risco de sevoltar a uma melancolia da origem? J.G. Ballard precisa-lhe muito

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    Violentada e prostuída por sua mãe, ela mesma prostuta,desde a idade de 4 anos, Amorena Winkler cona, após o contoPurulence (2009), na seita pedóla, proxoneta e apocalípca Les

    Enfants de Dieu, no livro Fille de chair   (2014), como “mamãe éminha referência em matéria de feminilidade, de corporalidadee de carne ... É assim que Mamãe forja minha relação à vida docorpo. Eu me vejo através dela” (Winkler, 2014, 13). Conquistarseu próprio corpo em uma tal confusão entre a carne e o sexo,o desaparecimento de toda a inmidade e a comunidade sexualé uma heterotopia corporal a parr da qual compreendemosa importância de tornar inacessível o corpo de nossa mãe, do

    qual, no entanto, saímos. Na seita, “não somente o incesto nãoé interditado, mas encorajado pelo guru mesmo” (Winkler, 2014,p. 134). Ao renunciá-lo, nosso corpo consegue afastar-se da mãemesmo se a reminiscência soa ainda em nós por longo tempo.

    Prematuro no inverno de 1959, naquele 24 de dezembro,longe de meu pai, conscrito na Algéria, e tendo saído do ventre deminha mãe no frio de Agen – longe do seio maternal, não estandomais em seu seio (Nancy, 1999, p.46) – acreditei dever escrever,

    tendo tornado-me universitário, essa história de prematurosquando Alexandre Minkowski me cona, justo antes de sua morte,em sua viagem épica a Nancy, seus arquivos sobre a obra pioneirade sua equipe em Baudelocque para salvar o que teria sido nossavida logo ao nascer. Apesar dessa reconstuição das condições dosprematuros no início dos anos sessenta, eu deveria reconheceressa permanência no limite da libertação maternal (RapoportD., ed., 1986). Não conseguindo mais voltar, o que é impossível,

    estar no corpo de sua mãe, fantasma das origens, é diferente deescrever depois e após o corpo de sua mãe, no lugar do lho ouda lha. Assim, Baudelaire, em sua relação de masoquismo moralcom sua mãe (Delons, 2011), escreve sem retornar a ela.

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    A verdade de meu corpo?

    Em meu corpo, haveria a verdade do que sou. Minhamemória corporal seria mais autênca do que as lembrançasque emergem pelo esforço da consciência. Eu vejo, em meussonhos, essas imagens que recompõem essa memória do corpo.Minhas notas, ao despertar, são como pedaços de um quebra-cabeça cujo desenho eu perdi. A filiação epistemológica de nossointeresse pelo corpo provém, sem dúvida, dessa impossibilidadede retorno. Em minha segunda análise, um sonho me indicouisto: eu estava numa trincheira da qual eu subia por meio de umaescada de madeira. A cada plataforma, eu via as letras D.O.N’TT.O.U.C.H e, do alto, sinto um olhar me dominar. Ao chegar acima,eu o reconheci como sendo aquele de minha mãe. Ela está lá e meolha orgulhosa, braços cruzados! Tabu do incesto, interdição detocar o corpo da mãe no momento mesmo da escrita do meu livroÊ tre Touché: sur l’haptophobie contemporaine (Andrieu, 2004). Atransgressão não é aquela de Édipo, que fará amor com sua mãe,sem saber, antes. Tornando-se consciente, cega-se com as agulhasreradas do vesdo de sua mãe, assim nua, para furar os olhos:“de sua mãe, ele tem medo quando ela a ele se revela como tal”(Irigaray, 1981, 18).

    É necessário, como o texto, publicação póstuma em1966, Ma mère, de Georges Bataille, parlhar o delírio de “nossademência na miséria de um acoplamento”? (Bataille, 1966, p79).Violentada pelo seu pai, a mãe do narrador é colocada “nessa loucasensualidade onde deslizamos”. Adorando sua mãe, o narrador nãoconsegue apaixonar-se: “eu adorei minha mãe, mas não a amei”(Bataille, 1966, p.80). Para se conhecer, seria necessário ser maisautênco ao renunciar a supercie da aparência para aprofundar-

    se: residiria em meu corpo esse traço visual de minha mãe nua eensolarada entre juncos nos fundos da casa, situada na La Basde

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    em meu corpo? Essa narrava constuída pela memória é o queverdadeiramente se passou? Não tenho outro ponto de vistasobre mim mesmo senão o que emerge à or da pele. Escrever

    sobre seu corpo, mantendo um diário do corpo, como o faz DanielPennac, caracteriza uma tomada de nota da realidade vivida.Essas memórias vivas que nos retornam ao corpo são realistas ousimples recomposições de nossa memória? Organizada em tornode traços sensoriais, minha sensibilidade acredita poder encontrarparâmetros para decidir, entre os corpos, aqueles que seriammelhores para minha curiosidade e para nossa parlha. Inscrito nomais profundo, não é suciente se situar a meio caminho do corpo

    da mãe e de seu próprio corpo, “como as duas extremidades de umconnuum”, mas concebê-la, como precisa Anne Fausto Sterling apropósito do sexo e do gênero, “como diferentes pontos em umespaço muldimensional” (Fausto-Sterling, 1993, p. 85). Mais queuma arqueologia das camadas, esse espaço é topológico.

    Francis Mévier, em seu livro Dans ton corps, inventa oconto dessa penetração no corpo de sua mulher: “eu estou em teuânus (...) minha pele é tão umectada quanto suas mucosas? Nós

    formamos apenas um na grande umidicação de tecidos que sefriccionam (...). Como eu poderia considerar teu corpo como umaescolha?” (Mévier, 2014, p.16-18). Esse mito da penetração docorpo da mulher para encontrar, enm, o avesso da pele alimentao amor: assim James Joyce escreve a sua futura mulher Nora, em5 de setembro de 1909: “Meu corpo penetrará em breve o teu, ôse somente minha alma pudesse fazer o mesmo! Ô se eu pudesseme aninhar em teu ventre como uma criança nascida de tua carne

    e de teu sangue, ser alimentado de teu sangue, dormir no calorobscuro e secreto de teu corpo!” (Joyce, 1909, p.98).

    Quando escrevi meu livro em 2004, eu gostaria de tercolocado na capa o que eu acreditava ser um quadro representandoo corpo de minha mãe, que se encontrava no quarto de meus pais,acima do leito e da cômoda chinesa: uma mulher nua apoiada emum piano com cabelos negros que pareciam ser aqueles de minhamãe jovem. Eu via minha mãe. Eu lhe escrevi, após o divórcio de

    meus pais, e minha mãe disse possuir uma cópia desse quadro:

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    real e imaginário, a suas pulsões, a funções, a representações,inicialmente, sensório-motrizes” (Anzieu, 1981, p.11). DidieuAnzieu, ele mesmo, conta como sua escritura imaginária junta-se

    à travessia da “ameaça castração-evisceração”.É preciso, então, disnguir as técnicas exercidas pelos

    outros sobre nosso próprio corpo, que é um ponto de vistaexterior a nós mesmos, em terceira pessoa, daquelas que nóspodemos exercer sobre nós mesmos, por nós mesmos, comoprimeira pessoa nos relatos do corpo vivo que iremos expor. Masnossa incompetência para objevar o corpo vivo, numa descriçãosubjeva, é um primeiro meio metodológico para o sujeito, ele

    mesmo, da qual ele se dá mais ou menos conta, quando, nasnarravas, procura suas palavras e não consegue qualicar oque sente, pois não tem certeza se essa experiência, tão viva,corresponde bem à intensidade de suas sensações ou à suasensibilidade assim exacerbada.

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    e para relavizar nossa experse em um conito de interessede nossa parte ou da parte envolvida. Face ao que deveria seruma objevidade puricada, a objevidade desvelada de sua

    subjevidade teria mais legimidade, pois estaria engajada nahistória das relações do (a) pesquisador (a) com seu objeto depesquisa. Assim, o objeto de pesquisa não é mais um objeto àparte e separado, mas uma parte do sujeito. O apagamento damáscara pela revelação de sua idendade de pesquisador colocaa questão de saber se eu posso trabalhar sobre certas prácas senão as praquei. Penetrando certos meios como não-pracante,aquela que me acolheu em seu domínio inquietou-se a ponto

    de me fazer assinar um contrato de não-divulgação das fontesobdas, interditando-me de transcrever meu trabalho! O queteria acontecido se eu vesse me apresentado como cliente, sobuma falsa idendade, como o faz Günther Wallra (1985)? Énecessário nos escondermos ou declararmos que fazemos partedo terreno que observamos para ser legímo?

    Falar do que não somos não é também um meio de recusara essencialização de si mesmo, arriscando-nos a essencializar o

    outro que observamos? Se você é da família, você sabe do que fala.A produção do discurso cienco nos torna à prova d’água paraas comunidades que atravessamos, reservando seu julgamentoaos iguais. Mas o corpo do pesquisador entra em perigo se aimpregnação no terreno é muito imersiva a ponto de mudar suapostura de pesquisa em uma posição vital nova, pois meu corpopode se tornar meu próprio terreno. Para Rachele Borghi, “o corpo éum laboratório de experimentação. No pós-pornô, o corpo tem um

    papel central e se torna um espaço privilegiado de experimentação(...) O efeito desestabilizante das performances pós-pornô estádiretamente ligado ao uso de um corpo não normavo. Esse corpoé considerado como uma supercie experimental, um laboratório,um espaço de des-genitalização, ou seja, de deslocamento dosexo, graças aos godemichés e às próteses” (Borghi, 2013, p.32).O corpo torna-se uma técnica de conscienzação de um em siinédito e potencial que vai se atualizar pela práca.

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    É necessário declarar sua identidade, seu sexo, seu gênero(Bourcier, 2011), sua sexualidade, seu patrimônio, sua doença,dizer quem somos como se o soubéssemos definitivamente. Os

    outros sabem ou nos fazem crer que eles sabem quem somos.Sartre o descreve bem em sua análise sobre o olhar do outrem,sem o que menríamos ao outro que frequentamos e com quemparlhamos uma comunidade do terreno. Produzir saberessituados a parr de seu corpo implicaria dizer sua sexualidade, seugênero, sua classe social, sua origem geográca, seus conitos deinteresse, como para se apresentar puricando-se de todo retornoda designação social. A imersão pelo corpo engajaria mais que

    seu corpo através de nossos modos de percepção, de julgamentoe de ação traídos em nossas posturas e em nossos gestos. Se aautobiograa conduz a um coming-out   metodológico, ao seidencar, essa idiossincrasia coloca a questão de como, com omeu corpo, eu produzo um saber. A evacuação de seu corpo dessaprodução não interdita, conforme Francine Barthe-Deloisy, o olhargeográco sobre os basdores de seu corpo.

    Deveríamos renunciar a nossa idendade para evitar a

    subjevidade de nossos trabalhos? Georges Devereux nos advertecontra essa tendência à regularização de si, através da diminuição,ao colocar a questão da “constuição de uma idendadeintegrada que, segundo ele: “compreende-se conhecendo suaprópria idendade, compreende conhecendo-se a idendade domundo externo a si e se é compreendido tendo-se uma idendadeconhecida” (Devereux, 1964, p.42-43). A ilusão de estar presentenos faz esquecer a realidade de nossa integração: “o fato que o

    corpo parece constuir um objeto coerente e perfeitamentecircunscrito nos faz esquecer, por vezes, de que esse fato não ésuciente para considerá-lo de imediato como bem integrado”(Devereux, 1964. p.64). A fragmentação de nossa percepção, oque denominamos “o corpo dispersado” (Andrieu, 1993), interditaa compreensão global do corpo. Georges Devereux se refere, aqui,aos trabalhos de Bruno Snell, o qual observou “que os textoshoméricos parecem não conter uma palavra signicando o corpo

    vivo todo inteiro” (Devereux, 1964, p.51). “Reintroduzir na situaçãoexperimental o observador, tal qual ele é realmente, não como

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    fonte de desprezíveis perturbações, mas como fonte importante emesmo indispensável” (Devereux, 1967, p.60), obteria ele, assim,de todos, uma prova de autencidade? Os efeitos sui-generis da

    observação sobre o observador e sobre o observado situam todaação de pesquisa em um contexto não somente de interação,mas também de encarnação. Mais neutralidade ou afastamento,objevamente, nessa situação de saber, produziria uma grandeliberdade de ação na pesquisa “em função da compreensão que setem” (Devereux, 1967, p.57). Seria necessário aprofundar-se paraangir uma verdade em nosso corpo e para construir, a parr dela,nossa produção de saber.

    Nós pensamos em nos abstrair de nosso corpo para legimarnossas pesquisas, retendo-nos, apenas, à quintessência espiritualpela produção de obras imateriais e universais. As ideias viriam demeu espírito ou do meu corpo? A neutralidade axiológica de umcorpo envolvido em seu saber, o corpo do ciensta (Weber, 1918;Quidu, 2011; 2014), poderia resisr ao desejo colocado, em ato,nas relações com os outros com quem estudamos ou com quemparlhamos uma pesquisa? Hélène Rousch (1986) precisa como a

    noção de membrana é úl para situar os limites, as fronteiras, osimpasses e as clivagens, a parr do corpo, em parcular, aqueledas mulheres. Convém reconhecer nossa fragilidade no interiormesmo da produção do nosso saber (Corcu, 2003).

    A críca do imaginário masculino seria uma desconstruçãonecessária para dizer do corpo situado e do gênero: “a geograafeminista anglofônica iniciou uma reexão sobre o corpo em ato dogeógrafo para colocar em evidência o fato de que a neutralização

    do corpo, no empirismo posivista, em geograa, era, com efeito,a armadilha de uma ciência masculina visando a esconder asimplicações identárias de suas “maneiras de fazer com o espaço” eas elaborações teóricas e conceituais de si mesmo. Alguns ideólogosgostariam de nos atribuir o que eles acreditam a nosso respeito,descontextualizando os textos a m de revelar o que seria, paraeles, nossa verdadeira personalidade. Assim, eu seria um “ideólogomoderno do corpo mutante, híbrido e avatar (...)”. “Essa não é

    a única enormidade sustentada por Bernard Andrieu, el a seu

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    sincresmo pós-moderno” (...). Andrieu, cada vez mais delirante (...),nosso epistemólogo erotomaníaco (...) e (...) a fascinação mórbidade Andrieu pelo trans-humano ou pós-humano (...). As gens

    elucubrações da ecologia corporal de Bernard Andrieu, que se diz,aliás, “epistemólogo do corpo”3  (...) [ou ainda], Bernard Andrieu:“pequeno VRP [espécie de representante comercial] do corpomulifunção”! (Wazari; Meleuse, 2012).

    Confundir, assim, o que nós descrevemos da situação doscorpos com o que seria nosso próprio corpo, nossa sexualidade,nosso gênero ou nosso olhar, parcipa dessa redução ideológicaque já denunciamos na obra Le corps du chercheur (Andrieu,

    2012). Sou eu quando escrevo que devo ser tomado como oresponsável, mesmo quando exponho ideias de outros? Comodisnguir o que vem de mim do que seria a memória dos outros?O que eu retenho dos outros, através da minha percepção de seuscorpos, de seus textos ou de suas ações, não é o que (me) revelaquem sou? Não podendo dizer tudo o que meu corpo guarda, euretenho informações inconscientes das quais algumas constuemnosso julgamento.

    Mas integrar o que seria o nosso próprio corpo naelaboração teórica garanria nossa situação ou serviria tãosomente de processo de legimação? O uso de si mesmo ultrapassaa simples idendade de seu corpo na realização da obra, textoou ação performante de nosso corpo até sair de nós mesmos.Essa alteração de nosso percebido atual sustenta o retorno dosfantasmas nessa imagem sobrevivente (Didi-Huberman, 2002) noprisma de nossas ações. Essa presença fantasmagórica do núcleo

    (Abraham & Torok, 1975), em todas as camadas e supercies nasquais apareço, é uma projeção inconsciente. Ao nos deslocarmosna supercie do corpo dos outros, sem conseguirmos compreendersua profundidade, connuaríamos a nos referir à profundidadeuterina. Assim, sem nos aprofundarmos no corpo do outro,confundiríamos a profundidade uterina como sendo aquelapressuposta dos outros.

    3 Op. cit ., nota 549, p. 336.

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    Podemos, então, nos esconder atrás dos livros, dos atos edas produções para liberarmos uma mensagem cuja causa seriavergonhosa de confessar? Permanecer nessa lógica confessional do

    pecado original (a qual, segundo Michel Foucault, parcipa de umatécnica de controle), reforçaria o tabu do incesto como uma ligaçãointerdita. Deveríamos nos condenciar somente no m de nossa vida,em uma autobiograa úlma, sobre nossas paixões secretas, comoDaniel Cordier acaba de fazê-lo em seu livro Les feux de Saint-Elme. Am de não desacreditar nossas produções ciencas, a libido scienaedeveria dominar todas as nossas outras paixões infans que nosinfanlizariam.

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    Até onde se unir ?

    Esta impressão de ligação é fornecida pela empaa paracompreender o outro corpo a parr do meu. Eu sinto o outrocomo se ele fosse uma parte de mim mesmo e eu uma parte deseu corpo. Essa é a ilusão organicista de ser um membro do corpode outro. Assim, “escrever permite trabalhar sobre o recalque”(De Azambuja, 2010, p.22). Essa crença pode ser tão forte que,como no amor ou no ódio, o senmento de nossa idendadepode ser alterado. Conseguiríamos disnguir a parte dos outrosem nós como o joio do trigo? Desbridar-se (Andrieu, 2008 b) pelapuricação nacionalista não garante o retorno ao Mesmo, ao queteríamos sido sem os outros. Admir que os retornos à terra, aoÉden, à Arcádia, à mãe são, daqui em diante, impossíveis torna

     justamente realista uma relação com os outros. Amar ou odiarum outro corpo somente é possível se pensamos poder nelerealizar essa parte desconhecida: ao passar assim do incognoscíveluterino ao desconhecido do outro, a ligação pode se projetarsem nostalgia, e a imagem do corpo da mãe pode ser quebradana queda do nosso espelho. Assim, recobrir-se da pele de suamãe, de seu sangue, de seu gênero ou de sua classe para ali serefugiar – se indica claramente sua ligação – priva-nos de todaa saída de nós mesmo e impede de jamais alcançar o corpo dooutro. O recobrimento de nossa pele por aquela de um(a) outro(a), diferentemente do aprofundamento em seu corpo, protege-nos ao evitar a alteração desse imaginário.

    A ligação interdiscursiva entre geograas femininas degênero (Nast; Kobayashi, 1996) e as emocionais e psicanalistasdo espaço inter-relacional abre assim a metodologia de pesquisasobre o corpo como terreno: “o terreno torna-se objeto de

    uma atenção epistemológica. Enquanto práca corporal, adimensão espacial foi trabalhada até tornar-se a pedra angular

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    de conversões epistemológicas conduzidas via o deslocamentono campo cienco da problemáca das relações de dominação(polícas); bem como a condição de renovação ‘qualitava’ da

    ciência geográca em direção a seu ‘giro interpretavo’ o qualse volta para o/a pesquisador (a) em uma démarche reexiva”(Volvey, 2014, p.94). O corpo, terreno e barro, torna-se o lugar, aparr do qual, eu construo o objeto do ponto de vista subjevoda percepção situada. Conseguir compreender-se como membrode um terreno do qual eu parcipo dene meu corpo como partede um organismo que nós formamos. Assim, “conduz-se o corpoaté os limites criados pela ligação” (Dussy; Fourmaux, 2011, p.11).

    O que pode se tornar uma relação de um(a) doutorando(a)com seu(sua) orientador(a) se é o desejo sexual que prima aodesejo de saber? É o amor dos corpos que pode se realizar atravésdesse trabalho, razão mesma dessa direção de tese? Ou serianecessário atender à regra da absnência e sublimar nosso amordo saber no único saber desse amor? É necessário, demanda-nosRuwen Ogien (2014) Philosopher ou faire l’amour?   [Filosofar oufazer amor?], em sua recusa da alternava moralista e dualista.

    Marianne Blidon (2012, p.539) nos lembra como a liberdade sexualno terreno da pesquisa é mesmo favorecida pela situação, ao secolocar entre parêntesis nossas vidas exteriores ao campo. A juízaconcluiu pelo não lugar, esmando que Hervé Le Bras, orientadorda tese de Sandrine Bertaux - que o acusou de assédio - nãoconnha ameaças, constrangimento ou o exercício de pressõesgraves para obter favores sexuais” (Rotman, 2004).

    Ao imergir seus estudantes em ambientes de swing em

    praias naturistas, Daniel Wezer-Lang, em sua enquete sobre La planète échangiste, teria pracado assédio sexual, como o acusal’ANEF ( Associaon Naonal des Études Féministes) e l’AVFT( Associaon Européenne contre les Violences faites aux Femmesau Travail ) que assinalam que vários estudantes apresentaramqueixas de prácas de assédio moral e sexual de sua parte e queele inspirava medo. O Livro La planète échangiste, do sociólogoDaniel Welzer-Lang, apresenta-se como uma coleção de palavras

    usadas antes, durante e depois dos encontros sexuais tão bem

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    sucedido que o objeto sociológico escondido por trás “desseslugares públicos da sexualidade”, diretamente, está para seconstruir (Welzer-Lang, 2005, p. 501). A práca do swing seria um

    dos terrenos da transformação da dominação masculina, mesmose a enquete revelar também a manutenção de representações ede prácas de aventura amorosa. A manutenção de uma postura denoviço, “uma ordem teoricamente temporária (Welzer-Lang, 2005,p. 524), situa-se entre ‘o dentro e o fora’, já iniciado (a) (s) maisainda inexperientes”. A posição de “indivíduos-fronteiras” de umamargem em relação ao meio do swing não garante a objevidade,mas assegura um “interconhecimento” necessário para trabalhar.

    “Aprender a jogar sobre um terreno que não é o nosso, o meu,mas o seu, tentando não abolir as fronteiras entre eu e o outro –quem desejaria aqui essa vida machista ou de mulher coisicada?-; mas considerá-las como alteridade. A questão do jogo remete àpostura metodológica. O que estou fazendo aqui? Por que estouaqui? O que tenho o direito de fazer? Quais são meus limites emespecial quando a sexualidade, o desejo, os corpos são o centroda problemazação do terreno?” (Welzer-Lang, 2005, p. 536). A

    ambiguidade do terreno e do livro se encontra na emergênciado objeto onde ser um homem e uma mulher coloca cada um ecada uma da equipe de pesquisa em uma críca do sexismo e doandrocentrismo. Uma visibilidade da equipe Couples Contre leSida- Casais contra a Aids - no meio naturista de Cap d’Agde colocao problema analisado por Michel Bozon, ou seja: aquele dos limitesda observação parcipante por uma avidade que é inacessívelà observação, pois nesse domínio há apenas observação indiretae mediada (Bozon, 1995). Se hoje se nota a ausência de debatemetodológico entre os raros pesquisadores (as) franceses, DidierLe Gall (1997) propõe substuir voyeur por scopophile para essesobjetos ínmos de pesquisa.

    A construção de um terreno com uma realizadora devídeos, aqui denominada Béatrice, para formar o Couple-chevalde Troie  [Casal-cavalo de Tróia] e, notadamente, as notas emanexos (Welzer-Lang, 2005, 554-555), mostra bem a diferença de

    gênero do que é vivido em público, segundo a hierarquia, o sexo ea postura adotada por homens e mulheres da equipe de pesquisa.

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    A suspeita pesa, como lembra Alain Giami (1999), na cumplicidadeque haveria entre objeto e sujeito de pesquisa, revelando umafalta de legimidade: o casal pesquisador/pesquisadora é parceiro

    sobre o terreno e torna-se suporte de projeção, o resto concerneà disposição pessoal, ausente (ou ocultada?) no livro; mesmo se oterreno concorda com uma veracidade e uma autencidade do quese faz nas prácas e atos corporais. O que vemos da “realidade”,se é que ela existe? Podemos comparar o que é dito com o que sefaz?

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    O corpo torna-se seu próprio narrador 

    Todo corpo tem um ponto de vista para a situação que ocupaem um espaço de interação precisa. Tal é o sendo do testemunhoapresentado pelo corpo em relação à situação que ele pode emseguida narrar: “o invesgador apreende a realidade com seucorpo e suas emoções” (Laé; Murard, 1958, p. 08). Mas, senr eperceber não é conar a seu corpo vivo o cuidado de informar seucorpo vivido para que faça a transcrição do que ele compreendede seu ponto de vista? É objetivo estar em uma “dependência docorpo? Os sociólogos tem um corpo?” (Laé ; Murard, 1995, p. 09).Se é o corpo, ele mesmo, que produz um saber, a questão é “comoo corpo produz o saber?” (Laé; Murard, 1995, p. 09). A narravaa parr do corpo vivido, “narrava de prácas ou narrava deacontecimentos », deve colocar a emoção no centro dessa interfaceentre corpo vivo e corpo vivido. Fabrice Fernandez, Samuel Lézé eHélène Marche em Les nouvelles conduites émoonnelles commeenjeu de sciences sociales interrogam, justamente a propósito dasaúde, como a emoção estrutura a percepção.

    Assim, o corpo torna-se sua própria narração, frequentemen-te aquela da patologia” (Gordon Rae, 2001, p. 134). Se o corpo torna-se sua própria narração, a decodicação consciente que fazemos até

    aqui permanece uma gramáca interpretava sem correspondênciaexata entre a signicação viva e o sendo vivido. Em meu corpo, o vivoanima a existência sem que eu seja consciente. A consciência que te-nho do vivo no vivido não corresponde jamais, por isso a pesquisa daimersão (droga, sexo, êxtase, orgasmo, álcool...) para angi-lo ou pelomenos sen-lo um pouco mais. A experiência consciente “é situada,ela é o que se faz nesse momento. A experiência não é mais uma pro-priedade (...), não é um fenômeno (...), como uma aparição no seio da

    experiência” (Bitbol, 2014, p. 10). A apreensão do uxo do vivo ao vi-vido é diferente metodologicamente e no conteúdo com o movimento

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    os prematuros, pois assim nasci? “Eu me coloquei na condição deexplicitar meus próprios fantasmas. Aproveitar essa relação deenquete é nalmente um primeiro passo para compreender em

    que consiste o trabalho pornográco” (Trachman, 2013, p. 16).Nosso corpo nos protegeria de ser levado pelo terreno,

    como J. Favret-Saada em seu corpo a corpo com a feiçaria (Favret-Saada; Contreras, 1981), a ponto de ser afetado e esgmazadopor sua própria comunidade cienca como tendo se tornadoum outro (Favret-Saada 1990). Seria necessário se proteger pormeio dos nossos preservavos metodológicos desse contágioempáco ou de outra contaminação viral para disnguir o joio do

    trigo? Renunciar a si mesmo não é recomeçar sem o outro? Aopermanecer em seu paradigma a observação resta colonial pelaprojeção de si no outro.

    Nossa própria avidade sica (Sanders-Bustle, Oliver, 2001),senão de saúde, inuencia a qualidade percepva da situação. Essasnarravas biográcas colocam o corpo na mesma situação dos livrosde doentes. Jean Luc Nancy diz como ele está na origem e no m:“eu sou a doença e a medicina, eu sou a célula cancerosa e o órgão

    transplantado ...” (Nancy, 2000, p. 42). O livro faz corpo ao reconstuira carne, tecendo a ligação entre a narrava de si e a dépropréité, isto é,a desconstrução do corpo próprio da comunidade terapêuca. Mesmoquando seu corpo se despe, Jean Dominique Bauby descreve comoo paciente, ele mesmo, “é fechado no interior dele mesmo com oespírito intacto e os bamentos de sua pálpebra esquerda como meiode comunicação” (Bauby, 1979, p. 10). Essa imersão em seu corpositua a narrava do interior em direção ao exterior: escrever a parr do

    interior de seu corpo vivido, menos em uma fenomenologia que emuma metodologia mais imersiva que atravessa as etapas e os graus dareconstrução de si (Detambel, 2011), de uma aprendizagem do corpoapós o acidente (Simon; Cassirer, 2010) e que mostra como o sujeitopode sair de seu corpo para encarná-lo novamente (Cahanin-Caillaud,2009). Colocar-se em “minha pele” declara Guillaume de Fonclareisola-me em « uma incomunicabilidade de sensações que tornam-se em breve uma incapacidade para exprimir minhas emoções” (De

    Fonclare, 2010, p. 13).

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    Escrever seu corpo é, inicialmente, reencontrar em si mesmonossos saberes corporais, essas aprendizagens pelo corpo (Faure,2000) das quais meu corpo é a síntese viva. A enquete sobre outros

    corpos nos quesona sobre nós mesmos. O corpo a corpo é recíprocoem uma relação de dom/contra dom. Nós podemos aparentar seroutro corpo por relações de conveniência que nos fazem parlhar,cremos, uma mesma experiência. Essa parcipação direta ou indiretado antropólogo como autor é um meio de parlhar uma presença comos outros corpos como a briga de galo em Bali vivida por Cliord Geertz(1993). Trata-se de uma intercorporeidade que parlharia a mesmasensação em ambos os corpos? Ao penetrar o terreno dos outros

    corpos, eu devo estar atento para não causar dano àqueles e àquelasque me acolhem. A diculdade é compreender que aquilo no qual ooutro acredita é o que eu observo do que sou. Essa diferença entre orespeito do outro é a cumplicidade para manter em meu corpo umaresistência manifesta e para não se tornar inteiramente o corpo dooutro. Parcipar com outro corpo de um acontecimento fundadorcriado de forma conveniente que pode nos fazer perder o senmentodo que provém do nosso corpo e o que chega ao outro corpo.

    Como permanecer a uma boa distância sem bascular no corpodo outro? A questão se coloca quando queremos sair do corpo do outroou fazer sair de nosso corpo no momento no qual queremos armarque não nos tornamos inteiramente outro, pois não nos tornaremos

     jamais um navo, um indígena. Tornar-se outro corpo é uma cçãoque mantemos por uma externalização virtual como no avatar ounas sensações comuns parlhadas nos momentos de osmose sicacomo o medo, o orgasmo ou a performance. A diferença entre o (a)

    pesquisador (a) e o (a) militante implica preservar a sua inmidadequando estudamos os engajamentos corporais e as paixões. Mas seriainteiramente possível separá-los?

    • Corpo do ciensta: Neutralidade axiológica

    • Corpos empácos: Antropologia das paixões

    • Corpo parlhado: Idencação, Contratransfer e Possessão

    • Corpo militante: Reivindicação identária

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    Ao não enfocar bastante o corpo, tombaríamos sob aacusação nietzschiana de abstração, de ser um desses contendoresdo corpo que escrevem sem referência a seus afetos ou ao estado

    de seu corpo. Mas, muita idiossincrasia, como a autobiograaque leva Michel Onfray – em sua contra história da losoa, comexceão dele mesmo em Cosmos – precisar como a via sexual, osmodos de existência, o nível econômico, o grau de engajamentoou as relações com os outros explicariam a produção e o sendoda obra produzida. Assim, Simone de Beauvoir seria “uma lésbicainautênca” ou Sigmund Freud teria do relações duvidosas comsua lha! Explicar a obra pela vida dos corpos seria uma solução

    para evitar uma análise do texto ele mesmo.No corpo do pesquisador estariam ligados a escritura

    sobre o corpo e a escrita de meu corpo em uma formaçãoidiossincrásica, conforme a fórmula de Nietzsche, ao invés de umaconssão testamentária (Andrieu, 2011). Mas, essa inuênciado corpo vivo do escritor, na consciência que ele pode ter dadescrição de seu corpo vivido não reduziria a distância entreambos. Se escrevo comigo, é o meu corpo vivo que se escreve em

    mim ou, é apenas o que a consciência de meu corpo vivido recolhedessa reminiscência? O corpo vivo me precede. Antes de mim, háo corpo vivo no qual e sem dúvida pelo qual, senão para o qual, eusou pensante.

    Um dos meios metodológicos conhecidos trata de quererdescrever o corpo vivo a parr somente de uma fenomenologiado corpo vivido. Ao parr da consciência, a linguagem encontra,no discurso e no texto escrito dos modos de expressão mais ou

    menos diretas do que ressente, o corpo vivido de seu corpo vivo.A palavra, mesmo se ela parece ajustada, incluída a metáfora, é aencarnação da sensação, o senmento e a imagem que emerge àconsciência desde a profundidade do corpo vivo.

    Um outro meio metodológico mantém o atraso ontológicoda consciência do corpo vivido sobre seu corpo vivo. A consciênciado corpo vivido tem acesso à informação produzida por seu corpovivo somente 450ms após o processamento no sistema nervoso.O escritor ou o arsta ressente a potência e a intensidade do

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    que advém de seu corpo (cólera, orgasmo, alucinação, dor,imaginação), tentando traduzi-la em um modo de expressão maisou menos direta na obra.

    Quais experiências poderíamos viver para ao menos reencontrar oprazer perdido e descobrir em nós essa parte emersiva que se produziria semestarmos consciente? O texto em terceira pessoa está sempre em atrasoou, pelo menos, com um décit de subjevação em relação ao movimentovivido pelo corpo em primeira pessoa. Esse vivo se anima de minhassensações internas sem que minha vontade consciente consiga contê-lasno vivido do relato. A linguagem conseguirá exprimir esses “espectros quese agitam no interior de nosso corpo” (Robbe Grillet, 1985, 41). Em seu

    diálogo com Roland Barthes, que armava: “eu não penso, por exemplo,que meu corpo pulsional passa em meu texto” (Barthes, 1978, p.278), AlainRobbe-Grillet não consegue convencê-lo que sua voz não seria assim tãoimaginária. Barthes concluiu que “o corpo é o objeto mais imaginário detodos os objetos imaginários”. Roland Barthes, em seu prefácio, em 1979,em Tricks. 33 récits de Renaud Camus, sublinha Tessa diculdade paraescrever sobre o prazer: “as prácas sexuais são banais, pobres, desnadasà repeção. Essa pobreza é desproporcional à maravilha do prazer que

    procuram. Ora, como essa maravilha não pode ser dita (sendo da ordemdo prazer), nada mais resta à linguagem senão representá-la, ou melhorainda a numerar, de forma menos custosa, uma série de operações que, detoda maneira, escapam-lhe” (Camus, 1979, p.15).

    Mas, o vivo que atravessa a linguagem pode liberar seu texto?O texto é uma forma de nossa inapropriação, o meio de retorno que nosindica para além de nós mesmos e que nos designa como autor. Quemé o autor de meus livros? Meu corpo? Eu, através de meu corpo? Meu

    corpo através de minha mão? Sou mesmo eu o autor de meus livrosou o autor assinala em mim uma idendade diferente, atualizando emmim o que ainda não sei? Nossa crença na propriedade do nosso corpoconstui, no Ocidente pelo menos, um direito de indisponibilidade docorpo sem nosso consenmento explicito e formal. A hibridação dotexto e de seu autor, se ela forma o livro, não atribui à pessoa o lugardo autor. O livro serve de espelho ao autor que se ignora e ali não sereconhece.

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    Escrever seu corpo

    Escrever-se sobre seu corpo é um meio, segundo BapsteBrossard, de “afetar voluntariamente seu corpo”, o que constuiria“uma forma paroxísca de autocontrole, pois aquele que se feretransgride a norma para melhor respeitá-la” (Brossard, 2014,p.341). Apesar do gesto que fere, a atenção a si mesmo é umsigno dirigido ao outro. Sem a decifração, o hieróglifo dérmiconão poderia ser compreendido. Essa escrita não intencional àpele viva é também uma práca de escaricação dirigida ao outrocomo a si mesmo, conforme Catherine Rioult (2013). A marca é otestemunho de minha história e o signo dirigido ao outro para queele me esgmaze ou me reconheça como seu par.

    Essas técnicas de escritura de si sobre seu corpo podem ser

    compreendidas como artes de vida: Michel Foucault precisa o quantoessas artes, às quais ele recusa o termo de biotécnica para designá-las como sendo aquelas da biopoéca, reserva o termo bio para abiopolíca que “se trata de uma normalização” (Foucault, 1981, p. 37)são “prácas de procedimentos reedos, elaborados, sistemazadosos quais ensinamos aos indivíduos de maneira que eles possam, pelagestão de sua própria vida, ter o controle sob a transformação de si porsi mesmo, alcançando um certo modo de ser” (Foucault, 1981, p. 37).

    Assim, o autocontrole seria somente uma práca de controledo corpo vivo (zên, a qualidade do ser vivo) pela consciência de seucorpo vivido (bios). O que se tornaria em 1983 uma “pragmáca de si”(Foucault, 1983, p. 07). O desao é passar da relação subjevidade/verdade para “um ato de dizer a verdade” pela qual “o indivíduose constui ele mesmo e é constuído pelos outros como sujeito”(Foucault, 1984, p. 04). Escrever seu corpo ou falar de seu corpo parasi e para os outros é uma forma de parrêsia como modalidade de dizer

    a verdade? É o sujeito que se manifesta ou o corpo vivo que surge

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    Manter o diário de seu corpo

    Rousseau conrma esse papel da imaginação corporal nessadiculdade de escrever-se. Rousseau precisa nas Conssões o quanto,submisso aos primeiros traços de seu ser sensível mais imaginavo que

    real, “eu pouco possuí, mas não deixei de aproveitar muito, a minhamaneira, ou seja, pela imaginação” (Rousseau, 1767, Pare 1, Livre 1).Ao conservar apenas a ideia de seu desejo imaginário e não ousandodeclarar seu gosto pela submissão, Rousseau desejaria: “ajoelhar-sediante de uma amante imperiosa, obedecer as suas ordens, pedi-lheperdão”; o que “seria para mim um doce prazer”. Esse “amor dos ob-

     jetos imaginários” força Rousseau a “alimentar-se de cções” ao invésde experiências corporais cuja existência seria sempre decepcionante.

    Pois, “na embriaguez do desejo”, esse estado somente “dá uma ante-cipação do gosto do gozo” (Rousseau, 1767, Paris 1, Livre III), perma-necendo incapaz de formular uma proposição lasciva a essas moças emulheres que acendem o sangue de seu cérebro!

     Essa vivacidade de senr o contraste frequente em Rous-seau com a lendão de pensar, mas é menos a sensação que a es-tesia: “o senmento, mais rápido que um relâmpago, vem preen-cher minha alma; mas ao invés de me esclarecer ele me queima

    e me cega. Eu sinto tudo e não vejo nada” (Rousseau, 1767, Paris1, Livre III). A imersão na sensibilidade é tão viva que interditasua escritura, sua transcrição em palavras. “No meio de toda essaemoção, nada vejo nidamente, eu não saberia escrever uma sópalavra, é necessário que eu espere” (Rousseau, 1767, Paris 1, Li-vre III). Ao balbuciar palavras sem ideia e sem signicação, mesmona pronunciação do nome de Madame de Warens, minha bocarevelaria o segredo do meu coração” (Rousseau, 1767, Paris 1, Li-

    vre IV).

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    “A carne não é a sensação, mas ela parcipa de sua re-velação” (Deleuze; Guaari, 1991, p. 169), precisam os autores;pois o afeto invade o vivido da carne que nos transborda no êx-

    tase no momento no qual o percepto poderia ser elaborado ape-nas no relato, na obra, na arte imediatamente. Pois, se a vibra-ção da sensação simples é “mais nervosa que cerebral” (Deleuze;Guaari, 1991, p.159), o abraço no qual o corpo a corpo é umaressonância energéca, a rerada reexiva, a divisão ou a disten-são permiria ao percepto construir sobre ela. Ao destacar o per-cepto, nós encontraríamos aqui esse corpo em primeira pessoaque exprime o êxtase sem conceito, posto que é “um incorporal”

    (Deleuze; Guattari, 1991, p.26). Gostaríamos de descrever essaindependência do percepto tal qual ele atravessa o corpo e que,“excedendo todo vivido” (Deleuze; Guaari, 1991, p.155) na imer-são sensorial, sexual e sensual “os perceptos não são mais percep-ções de um estado do que eles experimentam (...) os afetos trans-bordam a força do que se passa neles” (Deleuze; Guaari, 1991, p.154). A sensação pode preencher-se “de si mesma e preencher-sedo que ela contempla: ela “enjoyent » e «self-enjoyment”, sendo

    um tópico ou antes um injet” (Deleuze; Guaari, 1991, p. 200).A faculdade de senr, como puro senr interno, não é para serprocurado na reação do corpo como “uma vibração contraída, tor-nada qualidade, variedade” (Deleuze; Guaari, 1991, p.199). Asensação vibra em nosso corpo em transe, no orgasmo, no uxodos processos sempre em devir, jamais estável em uma consciên-cia de si.

    Manter o diário de seu corpo, mesmo doente (Milewski;Rinck, 2014, p. 23) e envelhecendo, inverte a experse psicomo-triz em nós ao nos fazer escutar a palavra do sujeito4 que se tornouagente de sua terapia psicológica: ao escrever sobre si mesmo, odoente não se cura de suas doenças somácas, mas restabeleceuma signicação a sua existência ao religar as diculdades da mo-tricidade de seu corpo vivo com a percepção que tem das vivên-cias conscientes. A crônica do corpo torna-se uma gura contem-porânea do relato de si. Mas, o corpo-crônico faz bascular o ponto

    4 Mon corps a ses secrets: des jeunes sourds, non voyants, handicapés moteursécrivent, Paris, Ed Descléee de Brouwer, 1980.

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    de vista do vivo e do vivido da pessoa por ela mesma: “o doentenão conserva somente o que a instuição médica produz: ele pro-duz, ele mesmo, arquivos pessoais de sua saúde (...), assim manter

    os arquivos de seu corpo é também uma maneira de lutar contraa doença e contra o poder médico que se desenvolve com ela”(Arères, 2006, p. 145).

    De Montaigne à Cixou, passando por Simone de Beauvoir,a leitura de seu próprio corpo é uma entrada para a escritura bio-gráca: “eu me deixo atravessar, impregnar, afetar (...), inltrar, in-vadir, mediar minha carne (...). Eu não “começo” por “escrever”:eu não escrevo. A vida se faz texto a parr de meu corpo. Eu já sou

    um texto” (Cixous, 1986, p. 63). Seria necessário celebrar assimuma « plascidade innita do vivo » (Boyer-Weinmann, 2013, p.31). A inmidade e o vivido do envelhecimento existe hoj