nicholson, l. interpretando o gênero. estudos feministas

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  • ArtIgos

    LINDA NICHOLSON

    Interpretando o gneroi

    Resumo: Neste amigo a autora desconstrOi significados dominantes de do's conceits centrals da critics feminista:grfirrero e mulher. Multo do feminism posterior los anos 1960 ancorou-se na distingdo entre sexo e g6nero. Emboraessa discuss() o tenha ffdo alguma uttlidade (como a de permffir que as feministas desallassem a bed de urndeterminism biolOgIco), eta tambem permItiu que as femlnistas preseNassem urn tlpo de pensamento dualistasobre a identldade da mulher e queanalisassem a diferenca entre mulheres como algo que pudesse serseparaciodaquilo que todas as mulheres comparffiham. A out= argument que o marcotebrIcobincirlo possibilltou a muitasfeministasenfaltar profundasdiferengas entre as experldncias culturais dos homens e das mulheres. Porm, corn 0pensamento blnOrio ndio completamente esteitico nem permite uma perleita articulacao entre everinclasmasculinas e femininas e corpos mascullnos e feminInos, empregd-lo em nossas andises pode resultar em seriosproblemas. 0 marco bindriolambrn nab consegue captor o nlvei de desvio das normas do gnero que etdste emmultas de nOs, reforoando Canto estereOttpos cullurals em relocao ao sIgnifIcado das ever/floc/as masculinas efiamhhas barnocrnocrirrabpdficanerienostpurclocismzreirsdasyquacteatrnosdzicnosdsgtneraPolavras-ohove: duarismo do gnero, fundamentalism biolegico, excerlncia, mulher, politica feminista.

    Publicado ctigholmente como"Interpreting Gender em LindaNicholson, The Play of Reason:From the Modern to thePostmodern (p. 53-76). Copyright

    1999 Cornell University, Repro-duzido ao portugus corn per-missao da editors, CornellUniversity Press.

    Level varlos anos trabalhandoeste facto, que conseqUentementetern uma longa e complexagenealogia. Por isso nit* possocomecar a agradecer a todos osque loran ou ouviram um ou ouhoancestral do presente artigo e quecontribuiram multo ou pouco corno nascimento da presente versa*.Mutta gente vol achar boa partedeste texto familiar. Alguns poucosagradecimentos, por6m, saonecessarios Agradego ao Centerfor Research on Women do Duke/

    "Genero" a uma palavra estranha no ferninismo. 2 Em-bora para muitas de nos ela tenha urn significado claro ebem conhecido, na verdade ela a usada de duas maneirasdiferentes, e ate certo ponto contraditOrlas. De urn lado, o"genero" foi desenvoMdo e e sempre usado em oposicdo a

    para descrever o que a socialmente construido, emoposicdo ao que a biologicamente dado. Aqui, "genero" 6tipicamente pensado como referencia a personalidade ecomportamento, ndo ao corpo; "genero" e -sexo" sao portantocompreendidos como distintos. De outro lado, "genero" ternsldo cada vez mats usado como referenda a qualquerconstruct:10 social que tenha a ver corn a distinco masculino/feminino, incluindo as construcOes que separam corposlerninlnos" de corpos "masculinos". Esse ultimo use apareceuquando muitos perceberam que a sociedade forma rid soa personalidade e o comportamento, mas tambern asmaneiras como o corpo aparece. Masse o prOprio corpo sempre vista atravOs de uma Interpretagdo social, entdo o

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    em Chapel Hill, por me fomeceruma bolsa Humanist inResidence da FundagdoRockefeller para 1991 e 1992.Essa bolsa, somada a licencada Universidade do Estado deNova lorque em Albany, deu-meurn ano para pensar em multasdas idlas deste artigo. Queroagradecer tambOm a SteveSeidman pela leltura de todasas primeiras versOes e pelainteivengdo no desenvoMmentodeste artigo em vdrios pontoscrucials.

    3. SCOTT, 1988, p. 2.

    "sexo" ndo pode ser independente do "genera"; antes, sexonesse sentido deve ser algo que possa ser subsumido pelogenera. Joan Scott fomece uma eloqUente descrigdo dessesegundo sentido de "genero", no qual fica clara a formacomo ele abrange o "sexo":

    (Omer 6 a organIzagdo social da diferengasexual. Mas isso nal sIgnifica que o gnero reflita ouproduza diferengas fislcas fixas e naturals entre mulherese homens; mats propriamente, o gnero 6 oconhecimento que estabelece significados paradiferengas corporals. (...) Neio podemos ver as diferengassexuais a ndo ser como uma fungo de nossoconhecimento sobre o corpo, e esse conheclmentorid a puro, ndo pode ser isolado de sua ImplIcagdonum amplo espectro de contextos dIscursivos.3

    Defendo que apesar de esse segundo sentido degnero ter predominado no dlscurso feminIsta, a herangado primeiro sobrevNe: o "sexo" perrnanece na teoria feministacomo aquilo que fica de fora da cultura e da histdria, semprea enquadrar a diferenga masculino/feminino. Para sabercomo Isso acontece, precisamos elaborar macscompletamente as origens do termo "genera",

    "Genera" tern suns raizes na jungdo de duas idelasimportantes do pensamento ocidental modemo: a da basematerial da identidade e a da construgdo social do carditerhumano. Na Opoca do surgimento da segunda fase dofeminism, final dos anos 60, urn legado da primeira 'dela foia nogdo, domlnante na malaria das socledadesindustrializadas, de que a distingdo masculino/feminino, namalaria de seus aspectos essencials, era causada peloslatos da biologia", e expressada por eles. Essa nogdo serefletia no fato de que a palavra macs comumente usadapara descrever essa distingdo, "sexo", tinha fortes associagdesbiolOgicas. As feministas do hid dessa segunda fase viramcorretamente essa nogdo coma base conceitual do "sedsmo"em geral. Por causa dessa assungdo implicita no sentido defincar na biologia as raizes das diferengas entre mulheres ehomens, o concerto de "sexo" colaborou corn a ideia daimutabilidade dessas diferengas e corn a desesperanga decertastentcrtivas de mudanga. As feministas do final dos anos60 se valeram da !dela da constitulgdo social do caraterhumano para minar o poder desse concerto. Nos poises delingua inglesa, esse poder foi enfraquecido pela ampliagdodo significado do termo "genero". Em meados dos 60, otermo "genera" ainda era usado principalmente comoreferencia a formas fernininas e masculinas dentro da

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    4. RUBIN, 1975, p. 159.

    relacdo ao papel da sociedade na distingdo entre fentime-nos codificados em termos de "masculine e "feminine. Asfeministas da segunda fase estenderam o significado dotermo para corn ele se referir tambem a muitas das diferen-gas entre muiheres e homens expostas na personalidade eno comportamento.

    Mas o mais interessante que o "genera", naquelaepoca, ntio era vista pela maioria como substituto para"sexo", mas coma melo de minar as pretens6es deabrangencia do "sexo". A maioria das feministas do final dosanos 60 e inicio dos 70 aceitaram a premissa da existenciade fenOmenos blolOgicos reais a diferenciar muiheres dehomens, usadas de maneira similar em todas as sociedadespara gerar uma distinct* entre masculino e feminino. A novaidela foi simplesmente a de que muitas das diferencasassociadas a muiheres e homens nit* eram desse tipo, nemefeitos dessa premissa. Assim, o concerto de "genera" foiintroduzido para suplementar ode "sexo", ndo para substitui-lo. Mais do que isso, ndo s a "genera" ndo era vista cornsubstituto de "sexo" como tambern "sexo" parecia essencial

    elaboragdo do prOprio concerto de "genera". Urn exempladisso pode ser encontrado numa das mais influentesdiscussOes sobre "gene*" da literatura do inicio da segundafase. Em seu importante artigo, "The Traffic in Women", GayleRubin lancou a expresstio sistema sexo/genero", definindo-o como "o conjunto de acordos sabre os quais a sociedadetransforma a sexualidade biolOgica em produtos da atividadehumans, e nos quais essas necessidades sexuaistransformadas stio satisfeltas". 4 Aqui o biolOgico foi assumldocomo a base sabre a qual os significados culturais stioconstituidos. Assim, no momenta mesmo em que a influenciado biolOgico estb sendo minada, esta sends.) tamberninvocada.

    A proposta de Rubin nesse ensaio ntio idiossincrOtica.Reflete urn aspecto importante do pensamento do seculo20 sabre "socializacdo", incluindo a aplicact* feminista detal pensamento para a distinct* masculino/feminino. Muitosdos que aceitam a idela de que o carOter soclalmenteformado, rejeitando portanto a ideia de que ele emana dabiologia, n necessariamente rejeltam a 'dela de que abiologic o lugar da formactio do carater. Em outraspalavras, ainda veem o eu fisiolOgico como urn "dada" noqual as caracteristicas especificas sit* "sobrepostas", urn"dada" que fornece o lugar a partir do qual se estabelece odirecionamento das influencias socials. A aceitacdo feministadessas proposlcOes significava que o "sexo" ainda mantinhaurn Dam! Imoortante: ode Drovedor do luaar onde o "aenero"

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    Tal COncep9a0 do relacionamento entre biologia esociallzacdo torna possivel o que pole ser descrito comouma especie de nogdo "porta-casacos" da identidade: ocorpo a visto como urn tipo de cabide de p6 no qual sdoJogados diferentes artefatos culturals, especificamente osrelativos a personalidade e comportamento. Tal modelopermitla as feministas teorizar sobre o relacionamento entrebiologia e personalidade aproveitando certas vantagensdo determinismo biolOgico, ao mesmo tempo em quedispensava certas desvantagens. Quando se pensa o corpocomo urn " cabide" no qual sdo "jogados" certos aspectosde personalidade e comportamento, pode-se pensar norelacionamento entre os dados do "cabide" e aquilo quenele 6 jogado como algo ma's fraco do que determinIsta,porern mais forte do que acidental. N se 6 Obrigad0 ajogar sobretudos e cachecas num porta-casacos; pole-se,pa exemplo, jogar sueteres e ate diferentes tipos de objetos,basta mudar suficientemente a natureza material do cabide.Mas se sempre vemos urn porta-casacos cheio desobretudos e cachecOls, ndo exigimos muita explicagdo,afinal trata-se de urn porta-casacos.

    Rotulo essa nocao do relacionamento entre corpo,personalidade e comportamento de "fundacionalismobiolOgico", a fim de indicar suas diferengas e semeihancasem relagdo ao determinismo biolOgico. Em comum corn odeterminismo biolOgico, meu rOtulo postuia uma relacdo maisdo que acidental entre a biologia e certos aspectos depersonalidade e comportamento. Mas em contraste corn odeterminismo biolOgico, o fundacionalismo biolOgico permiteque os dados da biologia coexistam corn os aspectos depersonalidade e comportamento. Tal compreensdo dorelacionamento entre biologia, comportamento epersonalidade, portanto, possibilitou as feministas sustentara nogdo, freqUentemente associada ao determinismobiolOgico, de que as constantes da natureza sdoresponsveis por certas constantes socials, e isso sem ter queaceitar uma desvantagem que se torna crucial naperspectiva feminista, a de que tais constantes sociais naopodem ser transformadas.

    Outra vantagem significativa dessa nogdo dorelacionamento entre biologia, personalidade ecomportamento a que eta permite as feministas assumir tantoas diferencas entre as muiheres quanto o que etas tern emcomum. Quando se pensa o corpo como urn porta-casacoscomum onde diferentes sociedades 'modem diferentesnormas de personalidade e comportamento, pode-se

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  • LINDA NICHOLSON

    algumas dessas normas serem diferentes. E, mais uma vez,embora nao seja surpreendente a tendancia a encontrarsobretudos e cachecOis num porta-casacos, tais pegaspodem ter diferentes tamanhos e formas.

    Estendi-me urn pouco na elaboragdo dofundacionalismo biolOgico por ver nessa posigdo, e na nogdoda identidade em geral como urn "porta-casacos",obstaculos a verdadeira compreensdo de diferengas entremulheres, diferengas entre homens e diferengas em relagdoa quern pode ser considerado homem ou mulher. Atravsda crenga comum de que a "Identidade sexual" representao ponto comum entre varlas culturas, freqUentementegeneralizamos o que especifico da cultura modernaocidental ou de certos grupos dentro dela. Mais do que isso,tern sido dificil identificar essa generalizagdo equivocadacomo tal, por causa da allanga de Codas as formas defundacionalismo biolOgico corn o construcionismo social. Asfeministas ha muito yam percebendo como argumentosreiativos a explicagdes biolOgicas para personalidade ecomportamento generalizam equivocadamente aspectosespecificos da personalidade e do comportamento paraCodas as sociedades humanas. Mas o fundacionalismobiolOgico ndo equivale ao determinismo biolOgico porque,ao contrario deste, inclui algum element() de construcionismosocial. Mesmo a posigdo feminista mais antiga , que construiuo "sexo" como independente do "gnero", ao usar o termo"gnero" permite a entrada de algum elemento social naconstrugdo do carater. Qualquer posigdo que reconheceurn cunho social em pelo menos urn pouco do que associado b distingdo feminino/masculino tende a teorizarsobre uma certa quantidade de diferengas entre mulheres.Embora uma posigdo fundacionalista biolOgica, ao contrarioda determinista biolOgica, de tato permita o reconhecimentode diferengas entre mulheres, ela o faz de forma limitada eproblematica.

    Basicamente, tal posigdo nos leva a pensar asdiferengas entre mulheres numa coexistancia, mais do quenuma intersegdo, corn as diferengas de raga, classe etc. Aassungdo de que Ludo o que ha em comum entre asmulheres devido ao sexo gera Ludo o que ha em comumentre elas em termos de gnero explica a tendancia a sepensar o genera como representativo do que as mulherestam em comum, e aspectos de raga e classe comoindicativos do que elas tern de diferente. Em outras palavras,acabamos pensando que Codas as mulheres das"sociedades patriaroals" termlnaremos agindo como casacose cachecdis, embora possamos diferir em tamanhos e,

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    5. SPELMAN, 1988, p. 128.

    Spelman descreve como andlise aditiva de Identidade, ouanallse do tipo "colar de contas", na qual todas as mulherescompartilham o genera (uma conta do color), mas diferemem relacao as outras "cantos" que sao adicionadas ao color.Mas, como Spelman percebe, tats analises tipicamentedescrevem a "conta" genera em termos dos manifestactesprMlegladas; tendem tambern a pintar as diferencas quemarcam mulheres desprivilegladas apenas em termosnegativos. Spelman descreve alguns desses problemas dosanalises dos relacaes entre sexismo e racismo.

    Em sumo, de acordo corn andlises aditivas desexismo e racismo, todas as mulheres sex) oprimidaspelo sexismo; algumas stlo, dem disso, oprimidas peloracismo. Uma anallse como essa distorce as expeller-dosde opressOo dos mulheres negras por negligenclarimportantes diferencas entre os contextos nos quaffsmulheres negras e mulheres broncos tern sunsexperienclas corn o sexismo. A andise aditIva sugereainda que a Identldade racial de uma muiher pode sersubtraida de sua identidade simultanearnente sexual eraclaI.5

    Em outras palavras, uma abordagem dualistsobscurece a possibilidade de aquilo que descrevemos comoo que ha de comum entre as mulheres estar entrelagadocom o que ha de diferente entre etas. Quern somos,enquanto mulheres, nao difere s6 em relacc3o a qualidadesacidentals; difere tambem num nivel mais profundo. NO haaspectos comuns emanando da biologia.

    Em resumo, o feminismo precisa abandonar ofundacionalismo biolOgico junto com o determinismbiolOgico. Defendo que a populagdo humana difere, dentrode si mesma, nao sa em termos dos expectativas socialssabre como pensamos, sentimos e agimos; ha tamberndiferengas nos modos como entendemos o corpo.ConseqUentemente, precisamos entender as varlacaessocials na distincao masculino/feminino como relacionadasa diferencas que vao "ate o fundo" aquelas diferencasligadas nao so aos fenamenos limitados que muitasassociamos ao "gnere (isto , a estereatipos culturais depersonalidade e comportamento), mas tambern a formasculturalmente varladas de se entender o corpo. Essacompreensao nao faz corn que o corpo desapareca dateoria ferninIsta. Com ela o corpo se torna, 1st sim, umavarlavel, mais do que uma constante, nao mais capaz defundamentar nocaes relativas a distincao masculino/femininoatraves de grandes varreduras da histaria humana, mas

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    6. Ernboraocresck iarde umametafisica materialista possa tercontibuido corn o crescimentodaquele fortesenso deIndMducismo que multos autoresassociaram aos conceitosmoderns e ocidentals de eu,seria urn errover esseIndMdualismo meramente comoresultado do crescimentodaquela metafisica. Algunsautores, como Charles TAYLOR(1989, p. 127-142), apontarampara o senso emergente de"Introversdo- como urn aspectodesse Individualism presentenos textos de Santo Agostinho. Ede acordo corn Colin MORRIS(1972), essa gulnada rumo auma linguagem da Introversdorepresenta um fendmeno JO bemdisseminado no sdiculo 12. Elepercebe o declinlo dessatendencia em meocios do seculo12, seguido por uma retomadagradual que culminou naRenascenca Italian do final dosOculo 15. AlOm disso, mesmono period apex o surgimento dametafisica materialista, outrastransformagOes socials ald)m docrescimento dessa metafislcacontrlbuiramparaodesenvoMmento desse senso deIndlvidualismo,de formasdiferentes ern diferentes grupossocials.

    na forma como a distingao masculino/feminino permaneceatuante em qualquer sociedade.

    Nao estou refutando a Idea de que todas assocledades possuem alguma forma de distingao masculino/feminino. Todas as evidencias disponivels parecem indicarque etas possuem. Tambern ndo refuto a possibilidade deque todas as sociedades de alguma forma relacionem essadistingao com o corpo. 0 que acontece que diferencas nosentido e na importOncia atribuidos ao corpo de fato existern.Esses tipos de diferencas, por sua vez, afetam o sentido dadistinct-to masculino/feminino. A consegliencia que nuncatemos urn Unico conjunto de criterios constitutivos da"Identidade sexual" a partir do qual se possa inferir algumacoisa sobre as alegrias e as press Oes inerentes ao "sermulher. Pensar o contrario nos leva ao erro.

    Contexto hIstOrIcoA tendencia a pensar em Identidade sexual como algo

    dado, basica e comum entre as culturas multo poderosa.Enfraquecer o dominio dessa tendencia sobre nos mesmasexige uma nocao sobre seu contexto histOrico. Na medldaem que podemos ver a identidade sexual como enraizadahistoricamente, como produto de urn sistema de crengasespecifico de socledades modernas ocidentais, podemostambern apreciar a dIversIdade profunda das formas pelasquais a distingao masculino/feminino pOde e pode serentendida.

    Deixe-me iniciar essa tarefa voltando na histOrlaeuropela ate o iniclo da era moderna. Foi entre o seculo XVIIe o XIX que se desenvolveu, particularmente entre os "homensde clencia", a tendencia a pensar as pessoas como materlaem movimento seres fisicos que podem se distinguir unsdos outros, acima de tudo, pela referencia as coordenadasespaclais e temporals que ocupam. A Idela traduziu-se natendencia a pensar o humano em termos coda vez mais"coisificados", tanto a semelhanca dos objetos que noscercam por sermos compostos da mesma substancia quanta a diferenca em relacao aos mesmos objetos, e unsem relagdo aos outros por ocuparmos coda urn umacoordenada espacial e temporal diferenta

    Isso nao quer dizer apenas que a linguagem de espagoe tempo tenha se tornado cada vez mais central como meiode fornecer identidades. A crescente dominacao de umametafisica materialists tambern significou uma tendenciacoda vez mais forte a compreensdo da "natureza defenOmenos especificos em termos de configuragOesespecificos da matOrla que os corporificava. A Importancla

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    7. Para a referncIa a FlImer, verSCHOCHET. 1975, p. 151, 137.Quarto a Locke, ver LOCKE, 1965,p. 364.

    dessa tendOncia para as nogees de identidade que entdocomegaram a surgir se verificou dray& de uma crescentecompreensdo da natureza dos seres humanos em termosdas configuragOes especificas da materia que tambrn lhedava corpo. Assim, os aspectos ffsicos ou materials do corpocada vez mais assumlram o papel de testemunhas danatureza do eu que esse corpo abrigava.

    Ha que se detalhar melhor o modo como tal proposigdodeve ser entendida no contexto do pensamento dos seculosXVII e XVIII. No fim do saculo XX, pensar o corpo assumindocada vez mais o papel de testemunha da natureza do eu aceltar cada vez mais a crenga no determinismo biolOgico.Deve porrn ser ressaltado que ao longo dos sOculos XVII eXVIII uma crescente percepgdo do eu como "natural" oumaterial" conjugou duas nfases que so nos sOculosseguintes puderam ser vistas como antitOticas: a anfasenuma consciOncla ampllada do corpo como fonte deconhecimento sobre o eu e a Onfase no sentido de urn euque Loma forma de acordo corn as influnclas que recebedo mundo exterior. Essas duas enfases esti presentes nostextos de muitos escritores dos saculos XVIi e XVIII, mas ntioforam vistas, como freqUentemente o serlam mais tarde,como necessariamente antiteticas. Uma conscianciaampliada do eu corporificado pode ser ilustrada pelos tiposde questOes que os teOricos daqueles dois sikulos achavamcada vez mais reievantes. Assim, por exemplo, enquantourn patriarcalista do Inicio do seculo XVII como Sir Robert FilmerOde usar a Biblia para justificar a subordinagdo dasmuiheres aos homens, o teOrico das leis naturals John Lockemais tarde apontaria diferengas entre corpos masculinos efemininos ern busca de urn objetivo semelhante.' Mas"natureza", para teOricos das leis naturals como Locke, ndosignificava apenas o corpo em oposigdo a outros tipos defenOmenos. Podia tambern se refer a infludnclas extemasgeradas pela visa ou pela educagdo. Asslm, embora Lockepudesse apontar diferengas nos corpos de muiheres ehomens para compor seu argumento, ele podia tambern,em seus textos sobre educagdo, visualizar as mentes demeninas e meninos como maletivels ern relagdo a influnclasedemas especfficas as quail se sujeitavam. Em resumo, o"materialism" nesse ponto da histOria misturava as sementesdo que mais tarde viriam a ser duas tradigOes mull diferentes,e mesmo opostas. Por urn lado, a part do materlalismo dossOculos XVII e XVIII surglu uma tradigdo que considerava ascaracterfsticas fisicas do individuo como fonte deconhecimento sobre o individuo. Por outro lado osmaterialistas dos sOculos XVII a XVIII falaram sobre processos

  • LINDA NICHOLSON

    JORDANOVA, 1989, p. 25-26.

    !dem, p. 27.

    10. Para discussOes sobre esseargumento, ver JORDAN, 1968, p.217-218; WEST, 1988, p. 100;OUTLAW, 1990, p. 63; e BANTON EHARWOOD, 1975, p. 13.

    que depols seriam descritos como "socializagdo" comoaquilo que formaria a Idenfidade em oposlcdo ao corpo.Em melo aos discursos do fim do seculo XVII e aos do seculoXVIII, porem, esses modos de pensar o eu eramfreqUentemente conjugados dentro de uma perspectivanaturalista mais geral. Ludmilla Jordanova argumenta deforma semelhante:

    Ficara bem claro no fim do sikulo XVIII que ascolsas Was e o ambiente que as cercava estavamcontinuamente Interagindo, e transformando uns aosoutros no processo. (...) Acredltava-se que os usos ecostumes do cotidiano, como dietas, exerciclos eocupagdies, e tambeim forgas socials mais gerais, comoas formas de govemo, tinham profundos efeltos sobretodos os aspectos das vidas das pessoas. (...) 0fundamento para isso era uma estrutura conceltualnaturalista para a compreensao de aspectos fIslolOgicos,mentals e socials dos seres humanos de maneiracoordenada. Essa estrutura suportava naquela Opocao relacionamento entre natureza, cultura e gnero.8

    Como Jordanova percebe, essa tencidncia a ver ocorporal e o cultural inter-relacionados estO expresso no usede "conceitos-ponte" do seculo XVIII, como temperamento,h6bito, constitulgdo e sensibilidade.9

    0 fato de que nos sculos XVII e XVIII o foco coda vezmais fechado na materialidade do eu ndo se traduziusimplesmente no que muitos hoje entendem por determinismobiolOgico ndo nega o argumento de que o corpo surgiacada vez mais como fonte de conhecimento sobre o eu, emcontraste corn nocOes teolOgicas anteriores. Urn meio peloqual esse foco no corpo comecou a mudar as formas decompreender a identidade foi o emprego cada vez maisfrecpente, particularmente no seculo M/111, do corpo comorecurso para atestar a natureza diferenciada dos humanos.Urn contexto no qual isso chama a atengdo o daemergOncia da iddia de "raga". Como muitos comentaristasja mostraram, o termo "raga" foi empregado primeiro comomein de categorizar os seres humanos no fim do seculo XVII,e foi s6 no seculo XVIII, corn publicacees como o influenteNatural System, de Carolus Linnaeus (1735), e Generis Human!Varietate Native Liter ("Da variedade natural dahumanidade"), de Friedrich Blumenbach (1776), quedistingOes raciais entre os seres humanos comegaram aaparecer de forma autorit6ria. 1 Esse surgimento ndo significaque diferengas fislcas entre, por exemplo, africanos eeuropeus rid() eram percebldas por europeus antes do seculo

  • INTERPRETANDO 0 GENERO

    11. JORDAN, 1968, p. 3-98.

    XVIII. Elas eram certamente percebidas, sendo Inclusive utill-zadas como justificafiva para a escraviddo. Mas como mos-tra Winthrop Jordan, diferencas fisicas eram apenas umaparte das diferencas percebidas e usadas por europeuspara justificar a escravicitio." 0 fato de que africanos, sobuma perspective europOla, dedicavam-se a preticas socialsestranhas, e eram "pageos" (isto , nOo cristdos), tambOrnfornecia justlficativa, na mente europOla, para a pretica datransformageo de africanos em escravos. Em resumo,perceber uma diferenca fisica, ou mesmo atribuir a ela umasIgnificaceo moral e politica, ndo o mesmo que use-lapara "explIcar" divisOes besicas na populace humanscomo fez o conceit de "raga", cads vez macs, a part dofinal do seculo XVIII.

    0 corpo sexuado0 exemplo da "raga" lustre coma a crescente

    prevalncia de uma metafisica materialista ndo significou aconstruct* de novas distincOes socials ex nihllo, tanto quantasignificou a elaboragdo e a "explicacdo" das distIncOespreviamente existentes, agora par novas melos. Assim, nocaso do "sexo", o crescimento da metafisica materialista ndocriou uma distinct* masculino/feminino. Tal distinct*obviamente odstia na Europa ocidental antes da emergnciadaquela metafisica. Mats do que isso, uma atencdo adiferencas fisicas teve seu papel no sentido dessa distinct*.0 crescimento da metafisica materialista, porOrn, tambernprovocou mudancas mudangas na importencia dascaracteristicas fisicas e em seu papel. Basicamente, essametafisica transformou o sentido das caracteristicas fisicas,que de sinal ou marca da distinct* masculino/femininopassaram a ser sue cause, aquilo que the de origem. Alrndlsso, na epoca em que essa metafisica cads vez macsdominava, outras mudancas socials tambern aconteciam como uma separacdo motor entre as esferas pirblica eprivada. Essas mudancas significavam que ascaracteristicas fisicas passavam a ser vistas Deo se comocause da distinct* masculino/feminino, mss como algo quetornava essa distinct* altamente bineria.

    Thomas Laqueur, em seu escudo da literature mclicasobre o corpo, dos gregos ao seculo XVIII, identifica umamudanca significative nessa literature no seculo XVIII.Especificamente, ele identifica uma nage* que, emboraclaramente varievel em muitos aspectos, dos gregos aoseculo XVIII, constante num aspecto importante: ela operacorn o que Laqueur descreve como uma noceo"unissexuada" do corpo. Essa nocen contrasts corn a noceo

  • LINDA NICHOLSON

    "bissexuada" que comecou a surgir durante o seculo XVIII.Enquanto na nocao anterior o corpo feminino eraconsiderado uma versdo inferior do corpo masculino, "numeixo vertical de infinitas gradacOes", na nova nocao o corpofeminino tomou-se uma "criatura totalmente diferente, numeixo horizontal cuja sectio central era totalmente vazia"."

    0 fato de na nocao mais antiga as diferencas fisicasentre os sexos serem consideradas diferengas de grau, maisdo que de tipo, manifesto-se de vehlas formas. Enquantovemos, por exemplo, os Orgdos sexuais femininos comodiferentes dos Orgetos masculinos, naquela epoca eles eramvistos como menos desenvoMdos do que os masculinos.Assim, na nocao antiga, a vagina e o cob do Otero naoeram algo distinto do penis, mas constitubm, juntos, umaversdo de penis menos desenvoMda. Do mesmo modo, amenstruageb nao caracterizava uma especificidade davida das mulheres, mas era vista simplesmente como maisurn exemplo da tendencia dos corpos humanos aosangramento, sendo o orificio por onde o sangue passapercebido como nao mutto significativo. Assim, pensava-seque se uma mulher vomitava sangue iria parar demenstruar.' 3 0 sangramento era visto como urn mein que oscorpos encontravam para se livrar do excesso de nutrientes.Por serem considerados seres mais Trios do que as mulheres,os homens eram considerados menos propensos a ter taisexcessos e portanto menos propensos a ter necessidade desangrar. 14 Do mesmo modo, Laqueur chama a atengebpara o argumento de Galen de que as mulheres deviamproduzir semen, j6 que do contrrio nao haveria razdo paraelas possuirem testiculos, e elas certamente os possubm.15Em resumo, os Orgdos, processos e fluidos que tomamoscomo diferenciadores entre corpos masculinos e femininoseram considerados conversiveis dentro de uma "economiacorporal generica de fluidos e OrgOos".16

    Essa "economia corporal generica de fluidos e &gam"comegou a ceder diante da nocao "bissexuada". Laqueurdescreve alguns aspectos do processo: "Orgdos que antescompartilhavam urn nome ovarios e testiculos eramagora lingOisticamente distintos. Orgebs que nao eram antesdiferenciados por urn nome especifico a vagina, porexemplo recebiam urn. Estruturas antes consideradascomuns a homens e mulheres o esqueleto e o sistemanervoso eram diferenciadas, no sentido de corresponderaos aspectos culturais do masculino e do feminino."

    0 fato de ate uma eshutura como o esqueleto ser agoravista como diferente em mulheres e homens 6 ilustrado notrabalho de Londa Scheibinger. Como Scheibinger percebe,

    LAQUEUR, 1990, p. 148.

    Idem, p. 36-37.

    Idem, p. 35-36.

    Idem, p. 40. A referencia deLaqueur 6 Galen, Peri spermatos(On the Seed), ed. Thomas Kuhn,p. 622.

    LAQUEUR, 1990, p. 35.

    Idem, p. 149-150.

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    SCHIEBINGER, 1987, p. 42.

    Idem.

    20. FOUCAULT, 1980, p. vii.

    em 1796 o anatomista alerndio Samuel Thomas vonSoemmerring produziu o que passou a ser uma dos primeirasilustragOes do esqueleto feminino. A data, ela destaca, especialmente marcante, porque muitos anatomistas javinham desenhando a anatomia humana desde o seculoXVI." Essa ilustragao, porem, era representativa de urnmovimento motor, do final do seculo XVIII, em que `descobrir,descrever e definir diferengas sexuais err coda osso, masculo,nervo e vela do corpo humano tornou-se uma prioridade depesquisa na clencia anat6mica".19

    Outra manifestageio dessa nova nogetio "bissexuada"foi a destegitimagdo do conceito de "hermafrodttismo". Comomostra Michel Foucault, no seculo XVIII o hermafrodita dosseculos anteriores se tornou "pseudo-hermafrodita", cujaIdentidade sexual Nerdadeira" exigia apenas uma diagnosesuficientemente especializada.

    Teorias biolOgicas da sexualidade, concepgOesjuridicas do individuo e formas de controle administrativoem nagOes moderns levaram aos poucos a rejeigOoda dela de uma mistura de dots sexos num Unica corpo,e conseqUentemente b limitagOo da livre escolha deindividuos indeterminados. A partir dal, todo mundodeveria ter urn tinico sexo. Todo mundo deveda ter suaidentidade sexual primbria, profunda, determlnada edeterminante; quanta aos elementos do outro sexo quedeveriam aparecer, estes poderiam ser apenasacidentals, superficials, ou ate mesmo simplesmenteIlusarlos. Do panto de vista medico, isso sicinificou que,quando confrontado corn urn hermafrodita, o medicon estarla macs preocupado corn reconhecer apresenca de dois sexos, justapostos ou mIsturados, nemcorn saber qual dos dois prevalecla sobre o outro; antes,corn decifrar o verdadelro sexo escondido sobaparenclas ambiguas.2

    Mas pars dem da tender-11a a ver as diferengas fisicasque separam mulheres de homens em termos cada vezmacs lainarios, aparecla tambrn a nova tendncia a vertats diferengas fisicas como causa da prapria distingdomasculino/feminino. Como mostra Laqueur, ndo se trata dedizer que na visa) antiga ndo houvesse uma distingdo, ouque a biologia ndo tivesse qualquer papel em relagdo aela. A distingdo, porrn, era vista menos como algo "causado"pela biologia, do que como expressdo lOgica de uma certaordem cosmolOgica governada pela diferenga, pelahierarquia e pela inter-relagdo. Dentro dessa visdo de mundo,diferengas biolOgicas entre mulheres e homens eram

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    21. LAQUEUR, 1990, p. 151-152.

    percebldas mais como 'Marcos" da distincao masculino/feminino do que como sua base ou sua 'causa. Laqueuraponta para a posictio arlstotOlIca como Ilustrativa dessanocdio mais antiga.

    Aristateles nao precisou de fatos da diferencasexual para apolar sua proposicao de que a mulher eraurn ser Inferior ao homem; ela era conseqUencia daverdade aprioristica segundo a qual a causa material inferior a causa eficiente. E clam que homens e muihereseram identificados no cotidiano por suns caracteristicascorporals, mas a assergao de que na geracao o homemera a causa eficiente e a mulher a causa material nemera, por principlo, fisicamente demonsitavel; era em simesma uma reafirmagao do que significava sermasculino ou feminino. A natureza especifica dos ovarlosou do (item era, assim, apenas Incidental na definicaoda diferenca sexual. No seculo XVIII isso j6 net era macsvalid. 0 venire, antes uma especie de falo negativo,tornou-se o Citero urn Orgdo cujas fibras, nervos esistema vascular fornecia uma explicagdo e umajustificativa natural para o status social das mulheres.2'

    Em outras palavras, quando a Biblia ou AristOteles eraa fonte da autoridade sobre como o relacionamento entremulheres e homens deveria ser compreendido, qualquerdiferenca alegada entre muiheres e homens era justificadaprImordialmente ahoy& da referencia a esses textos. 0 corpondio era muito Importante como fonte. Quando porm ostextos de AristOteles e da Mkt perderam sua autoridade, anatureza se tornou o meio de fundamentacdo de todadistinct:10 percebida entre muiheres e homens. Na medidaem que o corpo passou a ser percebldo como representanteda natureza, ele assumiu o papel de Not' da natureza, ouseja, na medida em que havia uma necessidade percebidade que a distinceio masculino/feminino fosse constituida emtermos altamente bindirios, o corpo tinha que lalar essadistil-IV:10 de forma bindiria. A conseq0 6ncla disso fol umanocdo "bissexuada" de corpo.

    Em sumo, durante do sOculo XVIII, aconteceu asubstituictio de uma compreensdo da mulher como versdioInferior ao homem num elxo de Infinitas gradacOes por umana qual a relacdio entre mulheres e homens era percebidaem termos mais bineirios, e na qual o corpo era pensadocomo fonte desse binarismo. A conseqUncia nossa IdOiade "Identidade sexual" urn eu mascullno ou femininoprecisamente diferenciado e profundamente enraizado numcorpo diferenclado.

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    22. Qualquer eiaboragOo dessaoposig6o edge uma dIscussoexhensa o suficlente para urn Mo.0 foto de urn materialismo plenonao ter sido endossodo bem noInbb do periodo Ilea mats do queObvlo no dualismo de urn dosmalores defensores dessematerialismo, Rene Descartes.Mas ate mesmo a posIcao deDescartes fol considerada radicaldemais pelos 'PlatOnlcos deCambridge'. Para essas figuras,no materialismo cornpieto naohavia espogo para Deus. Parauma discussdo, corn born nivelde Informageso, dessas tensOesrellgicsas em torno da adogOo domatedalismo durante o periodomodern, ver BROOKE, 1991. Noflm do seculo XIX, outrosargumentos nao rellglosossurglram contra o argument daunlit:fade dos mobs clentificos nocompreens6o e na expNcogOo docomportment human:, e dqs letssocials. Esse moVmento aporeceuno Alemanho e e representadonos textos de Wilhelm Dilthey.

    "Sexo" e "Gionero"Esse conceito de identidade sexual era dominante na

    maioria dos !Daises industrializados b Opoca do surgimentoda segunda fase do feminismo. Mas tambm havia idelasde que as feministas poderiam se valer para comecar adesafi-lo. Anteriormente discuti a importancia crescente dametafisica materialista nas sociedades ocidentais do inicioda era modema. 0 que nao mencionel foi que o crescimentodessa metafisica nunca fol incontestado; multos movimentosculturais e intelectuals, ao longo de toda modernidadeocidental, lutaram para provar a distinct-10 da existenciahumana em relacao ao resto do mundo fisico. 22 Algunsdesses movimentos, particularmente aqueles baseados nareligiao, insistiram num fundamento religioso, mais do quefisiolOgico, para a distingao masculino/feminino. Mais do queisso, ate de dentro de uma metafisica materialista surgiram,antes do crescimento da segunda fase do feminismo,perspectivas que desafiaram completamente osentendimentos fisiolOgicos da "identidade sexual". Antes eumostrel como muitos materialistas dos seculos XVII econjugaram duos idelas que depots passaram a ser vistasfreqUentemente como antiteticas: a !dela da base fisiolOgicada "natureza" humana e a idela da construcao social docarater humano. No seculo XIX, urn tearico que combinouambas as idelas mantendo urn intenso materialismoenquanto elaborava tambern, e corn alto sofisticacaotearica, a 'dela da constituicao social do carater humano foi Karl Marx. Junto corn outros pensadores dos seculos XIX e)0( Marx contribulu corn urn modo de pensar o caraterhumano que reconhece a grande Importncia dasociedade na constituicao do carater. As feministas dasegunda fase puderam se valer desse modo de pensar paracomecar a desaflar urn entendimento puramente flsiolOgicoda "identidade sexual". Mas, como propus antes, apesar deo desaflo a esse entencitnento de identidade sexual ter sidomuito presente nos textos da segunda fase, ele tambern foiincompleto. 0 que ele ainda manteve foi a 'dela de que haalguns "dodos" fisiolOgicos que sdo usados de formasemelhante em todas as culturas para distinguir mulheresde homens, e responsavels, pelo menos parcialmente, porcertos aspectos comuns nas normas de personalidade ecomportamento que afetam mulheres e homens em muitassociedades. Essa posigao, que rotulei de "fundacionalismoblolOgIco", possibilitou a muitas feministas a rejeiger" o dodeterminismo biolOgico explicito, embora ainda mantendourn de seus pressupostos o da existencia dos aspectoscomuns a varias culturas.

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    23. Fol depots de ler a discussdomulto Inspirada que ChandraTalpade Mohanty faz dakioductio de Robin Morgan paraSisterhood Is Powerful que meocorreu ver no ensab de Morganurn born exemplo defundaclonallsmo bbbgico. VerMOHANTY, 1992, p. 74-92.Considero o objetivo do anOlise

    0 que estou chamando de "fundacionalismobiolOgice, mais do que uma posigdo Unica, pode serentendido como representante de urn leque de posigOes,unidas de urn lado por urn determinism biolagico estrito, deoutro por urn construcionismo social total. Uma vantagemde se ver o lundacionalismo biolOgico" como representantede urn leque de posigOes a que assim ele se op6e atend6ncia comum de se considerar as posigOes do"construcionismo social" iguals em relagOo ao papel que abiologia nelas representa. As feministas da segunda fasefreqUentemente assumiram que basta reconhecer qualquerdistancia em relagdo ao determinism biolagico para seevitar todos os problemas associados a essa posigdo. Aquestdo, por6m, 6 bem mais reiativa: as posigOes dasegunda fase mostraram-se a distanclas malores ou menoresdo determinism biolOgico, mas tamb6m mostraram urnmaior ou menor nUrnero de problemas associados a essaposigOo, de acordo corn a distancla tomada faloespecificamente da tendencia a produzir generalizagOesequivocadas a partir de projegOes do contexto cultural daprOpria tearica.

    A possibilidade de ser "mais ou menos" construcionistasocial 6 conseqUencia do argumento de que qualquerfenOmeno pode ser considerado como contribuindo "maisou menos" para urn determlnado resultado. Normalmentefalamos de determinism biolagico quando urn fenOmenoespecifico a considerado inteiramente como conseqijnciade fatores biolOgicos. Assim, ser um construcionista social 6meramente argumentar que a sociedade teve algumaparticipagOo num determinado resultado. E facii, por6m, verque dentro dessa perspective pode existir urn leque deposigOes sobre a importancia de tal participagdo. Notrabalho de muitas tearicas da segunda fase, oconstrucionismo social aparece quase como posigdoemblematica. Embora permits a pressuposigdo de certasdiferengas entre mulheres, seu papel nesse sentido a minima,ja que tais diferengas sOo restritas as margens da histOriahumana ou a supostas qualidades "secundarlas" dafemininidade aquelas que ndo afetam a definigdo basicado ser mulher. Para mostrar como o construcionismo socialpode funcionar dessa forma emblematica, quero me voltaraos textos de duas pensadoras exponentes explicitas dessacorrente embora elas usem o corpo para criargeneralizagOes sobre mulheres de forma ndo mutt diferentedo que prev o determinism biolagico.

    A primeira 6 Robin Morgan. 23 Em sua introduco a

  • INTERPRETANDO 0 GeNERO

    MORGAN, 1984, p. 4.

    'dem, p. 6-8.

    nacionalidade etc; entretanto, ela tambOrn acredita naexist6ncia de cellos aspectos comuns entre as mulheres.Como flca claro em seu texto, lois aspectos comuns ndo sdopara ela determinados pela biologla, mas "resuitados deuma condlcdo comum que, apesar de varlacdes de grau,6 a experitmcia de todos os seres humanos que nascemmulheres". 24 Embora ela nunca defina explicItamente essacondicdo comum, ela chega perto disso na seguintepassagem:

    Para multas tegricas feministas, o controlepatrlarcal dos corpos das mulheres como melo dereproducOo o cerne do dllema. (...) A tragedla dentroda tragkila que por sermos consideradasprImordlalmente seres reprodutivos, mais do que sereshumanos plenos, somos vistas num contexto sexual dedeflnlcdo masculina, corn a conseqUente epidemlade estupro, assdlo sexual, prostitulgdo forgada e traficosexual de mulheres, corn casamento arranjado,estruiuras familiares Instituclonallzadas e a negageto daexpressdo sexual pre:1pda bs mulheres.25

    Trechos como esse sugerem que ha algo dos corposdas mulheres, especificamente suas capacidadesreprodutIvas, que embora ndo necessariamente provoqueou determine urn resultado social especifico, toma possivel(ou estabelece a translcdo para) urn certo conjunto dereagdes masculinas atrav6s das culturas que sdo comuns obastante para levar a urn certo aspecto comum naexperlncia das mulheres como vitimas de tats reagdes. Denovo, esse aspecto comum dos corpos das mulheres ndetermina esse conjunto de reacoes no sentldo de em quetodos os contextos culturais esse aspecto comum gerariauma reacao desse tipo; no entanto, esse aspecto comumde fato leva a esse tipo de reacao em multos contextos. Adiferenga entre esse tipo de posicdo e o determinismobiolOgico 6 mull() tnue. Como jai apontel, o determinismobiolOgico a comumente pensado como aplicado so acontextos em que urn fendmeno ndo a afetqdo por qualquervariagdo no contexto cultural. Por estar permitindo quedigumas varlacees no contexto cultural possam afetar areacao, ela nao esta sendo aqui uma determinista biolOgicaestrita. Mas quando ela acredita que esse aspecto comumdos corpos das mulheres leve a uma reacao comum numlargo espectro de contextos culturais, ha na verdade apenasuma pequena diferenca entre sua posigdo e o determinismobiolOgico estrito. Quando vemos que, dentro de uma teoria,

    wem

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    28. klem, p. 100.

    influencia, podemos ver tambern que se pode ser "mais oumenos" uma construcionista social.

    Uma outra escritora que explicitamente rejeita odeterminismo biolOgico, mas cuja posigao tambern acabafuncionalmente prOxima a ele Janice Raymond. Em APassion for Friends, Raymond explicitamente rejeita a nogaode que a biologia a causa da especificidade das mulheres:"As mulheres nao tern uma vantagem biolOgica em relagdoas qualidades mais humans da existencia humana, nemsua incomparabilidade deriva de quaiquer diferengabiolOgica em relagao ao homem; antes, simplesmente, domesmo modo como qualquer contexto cultural distingue urngrupo de outro, a 'atteridade' prapria as mulheres vem dacultura das mulheres".26

    Essa posigao esta presente tambern no livro anteriorde Raymond, The Transsexual Empire. 27 0 que muitointeressante sobre esse livro, porem, que boa parte de seuargumento, assim como o de Morgan, est6 apolada nopressuposto de uma relagao aitamente constante entrebiologla e carater, embora, repito, nao se trate de umaconstancia caracteristica do determinismo biolOgico maisrotineiro. Em seu trabalho, Raymond extremamente critic()em relagao a transexualidade em geral, que ela rotulaespecificamente de "homem-para-mulher-construide,referindo-se de modo ainda mais especial aqueles "homens-para-mulheres-construidae, que se auto-denominam"feministas lesbicas". Embora muitas das criticas deRaymond venham da posigdo convincente de que amedicina modema fornece uma base muito problematicpara se transcender o genero, outras partes de sua criticasurgem de certos pressupostos sobre uma relagao invarlavelentre biologia e carater. Especificamente, Raymond duvidada veracidade das alegagOes, por parte de qualquerhomem biolOgico, da existencia de "uma mulher denim dele:"0 homem andrOgino e a feminists lesbica transexualmenteconstruida enganam as mulheres praticamente da mesmaforma, porque ievam as mulheres a acreditar que saoverdadeiramente como nos nao so em termos decomportamento, mas tambem em espirito e emconvicgae. ,, Para Raymond, Codas as mulheres diferem emcertos aspectos importantes de todos os homens. Essadiferenga ocorre n porque a blologia de coda grupodetermine diretamente urn certo carater, mas, acredita ela,porque a posse de urn tipo especifico de genitalia (isto ,aquela rotuiada de "feminine) gera determinados tipos dereagdo diferentes dos tlpos de reacao gerados pals posseda genitalia "masculine. 0 que ha de comum entre asreadOes oeradas Dela oosse do aeniteilia "feminine. e o

    RAYMOND, 1986, p. 21.

    RAYMOND, 1979.

  • INTERPRETANDO 0 GENERO

    29. !dem, p. 114.

    que as difere das outras reagOes, sao suficientes para garantirque ningurn nascido corn genitalia masculina podereivindicar semelhanga suficiente corn os nascidos corngenitalia feminina para garantir o ratulo de "feminine. Assim,prop:* Raymond,

    Sabemos que somos mulheres que nascemoscorn cromossomos e anatomla femininos, e que,tenhamos ou nao sido socializadas para sermosconsideradas "mulheres normals", o patriarcado nostratou e nos trata como mulheres. Os transexuais ndotiveram a mesma histOrla. Nenhum homem pode terhistdria de ter nascido e se colocodo nessa cuttura comomulher. Ele pode ter histOrla de ter desejado ser mulhere de ter ag/do como mulher, mas essa experlOncla degnero prOprla a urn transexual, neio a uma mulher.29

    Raymond considera suas proposigees nesse trechovalidas para aquelas/es que vivem nas sociedadespatriarcals, mas assume uma homogeneidade de reagOesentre essas sociedades suficiente para fazer corn que abiologia se tome, ern qualquer caso dentro de coda umadelas, urn "determinante" de carater. Mas, comoinvariavelmente a biologia produz certas reagOes comunscorn urn efetto especifico no carerter, ela se toma, corn efelto,uma causa do carater. Assim como Morgan, Raymond rid()propoe que a biologia gere conseqUnclas especificas,qualquer que seJa a cultura. Para ambas, poram, avariabilidade ao longo de urn amplo espectro desociedades, e dentro de cada uma delas, torna-se too sutilque a prapria cultura comega a desaparecer como variavel.A invocagdo da cultura de fato permite, claro, a essastearicas postular a existncla de dIferengas, paralelamenteaos aspectos comuns, o que deixa aberta a possibilidadede uma sociedade distante, na qual a biologia rid possater esses efeltos. Mas em nenhum caso essa invocagaointerfere no poder dos dados biolOgicos de gerar aspectoscomuns importantes entre mulheres num grande periodda histaria humana.

    Na discussao precedente, concentrel-me nos textosde Morgan e Raymond a titulo de ilustragao. 0 tipo defundacionalismo biolOgico exemplificado nesses textos ndo exclusivo dessas duas autoras, mas representa a tenciOnciaprincipal da teorla da segunda face, particularmente nofeminismo radical. Essa tendncia entre feministas radicalsndo de surpreender. Desde o inicio dos anos 70 elasocupam a vanguarda das que insistem nas semelhangasentre mulheres e ern suas diferengas em relagdo aos homens.itArle Ah le+ifinew +nie "resrtesel...A

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    Uma te6rIca feminists radi-cal que endossou explicttamen-te o determinism biolOgIco nofim dos anos 70 fol Mary Daly.Numa entrevista de 1979, na re-vista feminists off our backs, Dalyrespondeu 6 pergunta sobre seos problemas dos homens ternralz na biologic dizendo estarinclinada a pensar que sim. VerDALY, 1979, p. 23. Quern mechamou atengdo para essaenfrevista fol Carol Ann DOUGLAS(1990). Para outros exemplosdessa tendencla dentroda teat'feminists radical nos anos 70,ver a discussOo multo produflvade Alison JAGGAR (1983, p. 93-98) sobre biologla e feminismradical.

    YOUNG, 1985.

    32. GIWGAN, 1984, CHODOROW,1978.

    de algum modo. Durante os 70, muitas feministas radicalsexplicitamente endossaram o determinism biolOgico. w Estese tornou, por6m, coda vez menos palatavel entre asfeministas por uma s6rie de razaes. NO0 so por suadesagradavel associagao corn o anti-feminIsmo, mastambOrn por aparentemente impossibliltar diferengas entremulheres e na aus6ncia da guerra biolOgica feminista aparentemente negar qualquer esperanga de mudanga.A tarefa passou a ser a criagdo de uma teoria que permitissediferengas entre mulheres, que tornasse pelo menosteoricamente possivel a id6la de urn futuro sem sexism eque ainda Justificasse reMndicagOes transculturals relativasas mulheres. Algumas versaes de urn Intenso fundaclonalismobiolOgico se tomaram enter a saida para muitas feministasradicals.

    Os textos feministas radicals so uma rica fonte deexemplos de fundaclonalismo biolOgico intenso. No entanto,ate mesmo as teorias que prestam mais atengdo b histOria ea diversidade cutturais do que o fazem as teorias de muitasfeministas radicals geralmente apOiam seus argumentoscriticos em alguma forma de fundacionalismo blob:591c.Defendi aqui que desde o hick) dos anos 70 as feministasradicals estao na vanguarda das que querem enfatizar osaspectos comuns entre mulheres e suas diferengas emrelagao aos homens. Mas a partir dos anos 70 e (nick) dos80, boa parte do feminism da segunda Ease comegou atomar essa direcao, mudando do que Young chamou deuma postura "humanists" para uma mais "ginoc6ntriccr.31Aatengdo muito grande dada naquela Opoca a Ilvros comoin a Differente Voice, de Carol Gilligan, e The Reproduction ofMothering, de Nancy Chodorow, pode ser explicada pelomodo como eles foram irtels, o primeiro para esmiugar asdiferengas entre mulheres e homens, o segundo para explIca-las." Embora ambos os trabalhos exempilfiquem de formacontundente a perspectiva da "diferengcr, nenhum dos doisse encabm na categoria do "feminism radical". Em ambosos livros, por6m, e em outros textos do period que tamb6menfatizam a diferenga, como os de feministas francesas comoLuce Irigaray, ha uma sobreposigao interessante cornperspectivas incorporadas por analises feministas bemradicals. Especificamente, nesses trabalhos 6 proposta umaIntensa correlagao entre pessoas corn certos caracteristicasbiolOgIcas e pessoas corn certos tragos de carater. Paraconfirmar, num trabalho como The Reproduction ofMothering, de Chodorow, essa proposigao a felta numa ricae complexa andlise sobre cultura sobre como a posse decertos tipos de genitlla coloca a pessoa numa dine:mica

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    33. Ao acusar o trabalho deChodorow de nao prestar adevida aten9c5o a questOesestruturais socials, Judith Lorber(1981) explicltamente levantouquestees sabre yids de classe emThe Reproducllon of Mothering.Seus argumentos macs gerals,porem, tambem se aplicam araga. Elizabeth SPELMAN (1988,p. 80-113) se concenha nos merospelos quaffs o trabalho deChodorowabordainsuficlentemente rata e classe;Adrienne RICH (1980) percebe alacuna da andilise de Chodorowa respeito do lesbianism. AudreLORDE (1981) levantou questOesde racism em relacdo a Gyn/Ecology de Mary Daly. SPELMAN(1988, p. 123-125) tamb6matenta para os melos pelos quaffsa andise de Daly tende a separarseodsmo e racism, tendo estecomo secundrio em relacaodiquele. 0 separatism dasfeministas lsbicas radicals foicriticado por ignorar questt5es deraga (ver The Combahee RiverCollective, 1981). Os vieses deraga e classe no trabaiho deGilligan foram apontados porJohn Broughton (1983, p. 634). Eutambm desenvottroessa questenrnorkem PCIN 1 ORM

    psico-social especifica, mas se dentro de certos tipos de cir-cunstancias, e so se essas genitalias possuem certos tiposde significados. No entanto, eu ainda descreverla urntrabaiho como The Reproduction of Mothering comofundaclonalista biolOgico, porque sua complexa esoflsticaclaandllse sobre desenvoMmento infantil, como supostamenteaplicevel para urn grande leque de cultures, tern base nopressuposto de que a posse de certos tipos de genitalia ternrealmente, atraves dessas cultures, urn signIfIcado comumo suficlente para tornar possfvel a postulagao de urn conjuntode relatos sobre desenvolvimento infantil taofundamentalmente homogneos. Pressupor que aconstrued cultural do corpo funciona como uma varlavelque nao muda atraves de diferentes trechos da histerlahuman, e que se combine corn outros elementos culturaisrelativamente estaticos pare crier certos aspectos comunsna formagdo da personalidade atraves dessa histeria,denota uma versa muito significative do fundacionalismobiolOgico.

    Urn problema que se manifesta nas teorias anterlores,citadas por tantos comentaristas, que "um feminismo dadiference tende a serfeminismo da uniformidade". Dizerque as mulheres sdo diferentes dos homens desse oudaquele jeite dizer que as mulheres sao "desse ou daquelejeite. Mas Inevitavelmente as caracterizagaes da "natureza"ou da "essencla" das mulheres ainda que essa "natureza"ou essa "essencia" seja descrlta como socialmente construida tendem a refletir a perspective daqueles que as fazem. Ecomo aqueles que tern poder pare faze-las nas sociedadesde origem europela contemporaneas geralmente sdobrancos, heterossexuals e profissionals de classe media, taiscaracterizagaes tendem a refletir a predisposledo dessesgrupos. Assim, nao de surpreender que a guinadaginocentrica dos anos 70 logo se transformou nos protestosde mulheres negras, lesbicas e das classes trabalhadoras,que nao viam suas experienclas refletidas nas histeriascontadas. Assim, Chodorow logo fol criticada por terelaborado uma andise basicamente heterossexual,enquanto Gilligan e feministas radicals como Mary Daly foramacusadas de falar primordialmente de uma perspectivebranca, ocidental e de classe

    Argumento, entdo, que quando a teoria femlnista fazgeneralizagaes atraves de grandes varreduras da histeria, oque se pressupoe, e precise ser assumido, sdo perspectivescomuns ao longo dessa histeria sobre o sentido e aimportancia dos corpos femininos e masculinos. Muitosescritores mostraram como nesses tipos de teorlas o conteCido

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    especifico das propostas tende a refletir a cultura do tearlcoque faz a generalizagdo. Mas hb algo que tambrn tornado de emprestimo ao context cultural do tearico e tornaa generalizacdo possfvel, que urn entendimento particulardo sentido dos corpos e de seu relacionamento corn acultura: o de que os corpos seio sempre construidos de modusespecificos, e conseqUentemente de forma a par em aciduma histarla particular de desenvolvimento de carater e dereacdo social. 0 lance metodolOgico aqui rid diferentedo empregado pelo determinism biolOgico: o pressupostode que a natureza algo dada e comum a Codas as culturas sempre usado para dar credibilidade a generalidade daproposicdo especitica. Em resumo, ndo se trata apenas dedizer que certas idlas especificas sobre mulheres e homens

    "as mulheres sdo cuidadosas em suas relagdes, capazesde alimentar, proteger e cuidar, enquanto os homens sdoagressivos e combativos" estdo sendo generalizadasequivocadamente; quero dizer que tambrn estdo sendogeneralizados equivocadamente, e possibilitandogeneralizacdes adicionals sobre o carater, certospressupostos sobre o corpo e sobre sua relacdo com o cart ter

    "existem aspectos cornuns nos dados diferenciadores docorpo que geram aspectos comuns nas classificagdes dohuman atravs de diferentes culturas e nas reacdes dosoutros diante daqueles que assim sdo classificados". Osproblemas associados ao "feminism da diferenga" sdorefletidos no fundacionalismo biolOgico, e tambrnpossibilitados par ele.

    Uma replica pode ser feita aqui: meu argumento podeestar negligenciando o fat de que em multos contextoshistOricos, talvez na malaria, as pessoas tam interpretado 0corpo de formas relativamente semelhantes, e essainterpretacdo comum tem possibilitado a existencia, emdiferentes culturas, de alguns aspectos comuns nasexperinclas das mulheres ou no tratamento dada a elas. Everdade, pode ser que realmente algurnas tendOnclasacadmicas feministas tenham pressupostoequivocadamente a generalizabilidade de alguns tracosde carater especificos encontrados na vida da classe mediacontemporanea ocidental coma a tenclencia a protecdoe ao cuidado ser molar entre as mulheres do que entre oshomens. Nero complicado assumlr, porrn, parasociedades contempordneas ocidentais e para a maioriadas outras, que a posse de urn ou dais tipos possiveis decorpos de fato leva a rotulagdo de mulheres para algumaspessoas e de homens para outras, e que essa rotulagaocarrega a/gumas caracterfsticas comuns, cum alguns efeitoscomuns.

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    34. Sobre os modos como povosindigenas americans solapamnogOes de gOnero, ver WILLIAMS,1986, e WHITEHEAD, 1981. Parauma discusser produtiva dofenOmeno dos marldosfemlnInos,ver AMADIUME, 1987. IgorKOPYIOFF (1990) fornece umadIscusstto altamente provocatrvasobre a relagdo entre osfenOmenos dos marldosfemilnose questOes macs gerais relativas

    natureza da Identidade.

    Essa replica 6 poderosa, mas, Insist eu, esse poderderiva de urn erro sutil quanto b interpretacdo do modo comoo gnero opera transculturaimente. Quase todas assocledades conhecidas na academia ocidental de fatoparecem ter algum tipo de distinct* masculino/feminino.Mais do que isso, a maloria parece relacionar essa distincaoa aigum tipo de distinct* corporal entre mulheres e homens.A partir dessas observacaes, 6 de fato tentador adotar asproposicaes acima; entretanto, eu sustentaria que esse gesto

    equivocado. E digo isso porque "algum tipo de distinct*masculino/feminino" e "algum tipo de distinct* corporal"incluem urn grande leque de possivels diferencas sutis nosentido da distinct* masculino/feminino e no sentido daforma como a distinct* corporal atua sobre ela. Por seremsutis, essas diferencas nao stio necessarlamente o tipo decoisa que feministas contemportmeas ocidentaisperceberdo logo de cara ao examinar culturas europ6laspr6-modemas ou culturas nao dominadas pela influanciada Europa moderna. Diferencas sutis em tomb dessasquestaes, porem, podem ter importantes conseq(Anclas nosentido mais profundo do que a ser homem ou mulher. Porexemplo, algumas socledades Indigenas americanas queentendiam identidade em termos de forcas espirituais, deforma macs intensa do que socledades ocidentais modernasde base europ6ia, tambewn permitiam a algumas pessoascorn genitalia masculina entender-se e ser entendidas comomelo-homens/melo-mulheres, de urn modo impensavel emsociedades ocidentais modemas de origem europ61a. Nestas,o corpo a sempre interpretado como um significante ft*importante da identidade que algu6rn corn genitaliafeminina nunca a imaginado como alguOrn que possaalgum dia ocupar legitimamente o papel de "marido",enquanto ern muitas sociedades africanas essa limitacaonao existe. Em resumo, embora muitas dessas sociedadesde fato possuam algum tipo de distinct* masculino/femininoe tamb6m relacionem essa distinct*, de forma mais oumenos significativa, ao corpo, diferengas sutis na forma comoo praprlo corpo a pensado podem ter algumas implicaceesfundamentals para o sentido do que a ser homem ou mulhere representar, conseqUentemente, diferencas importantesno grau e no modo como o sexismo opera. Em resumo, essassutis diferencas nos modos como o corpo 6 lido podem estarrelacionadas a diferengas no sentido do que a ser homemou mulher diferencas que "vdo ate o fundo".34

    Esse argumento a valid nao apenas no que concerna relacao entre sociedades ocidentais modemas de baseeurop6la e algumas outras sociedades "exaticas". Mesmo

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    dentro das primeiras podemos detector importantes tens6ese conflitos no sentido do corpo e na forma como o corpo serelaciona corn identidades masculina e feminina. Emboraessas sejam cettamente sociedades que ao longo dos Ultimosvarios seculos operaram corn uma distingao masculino/feminino extremamente binaria e basearam essa distincaonuma biologia binarla a ela atribuida, elas tambem, emgraus varlavels, articularam nocoes do eu que negamdiferencas entre mulheres e homens, e essa negacao nao apenas uma consecOncia do feminismo. Em parte, anegacao se manifesto na proporcao em que a maxima"mulheres e homens sijo basicamente iguais" torna-se partedo sistema hegerneinico de crencas das sociedades nasquais muitos de nas operamos, estando sempre disponivelcomo base para o ataque das feministas as diferengas. Defato, o prOprio feminismo s6 foi possivel, pelo menos em parte,como conseqUencla de uma tendencia cultural geral dealgumas sociedades de base europela a desassociar decerta forma a biologia do carater. Urn dos pontos fracas deurn feminismo baseado na diferenca a que ele nao podeexplicar o fenOmeno de tais sociedades terem produzidofeministas pessoas que, devido a prapria genitalia, e porforgo do praprio argumento, deveriam ter-se tornadocompletamente femininas, mas cuja verdadeira habilidadepolitica e/ou presenca em instituicOes anteriormentedominadas por homens como a academia deve indicaruma certa dose de socializacdo masculina. Mais do queisso, parece inadequado conceituar essa dose meramentecomo urn adicional a certos aspectos "basicos" que temosem comum. Em resumo, por causa de uma certadesassociacao previa entre biologic e socializacao que, numnivel bem basic, muitas de nOs somos quem somos.

    Em resumo, um feminismo da diferenca, e ofundacionalismo biolOgico no qual ele se apOia, contern,nas sociedades modernas de base europeia, elementos deverdade e de falsidade. Por serem sociedades que, emgrande medida, percebem as genitalias feminina emasculina como bindrias e tambem associam carater aessas genitalias, as pessoas nascidas corn genitalia"masculina" estao propensas a serem diferentes, em muitosaspectos importantes, das pessoas nascidas com genitalia"feminina". Urn feminismo da diferenca, e o fundacionalismobiolOgico no qual ele se ap6ia sao, porem, igualmente falsosnao sa por causa do fracasso de ambos em reconhecer ahistoricidade de seus prOprios insights, mas tambem, o queeste' ligado a isso, porque nenhum dos dois prev, ate mesmodentro das sociedades contemporaneas de base europela,

  • INTERPRETANDO 0 GtNERO

    RAYMOND, 1979, p. 28-29.

    ldem, p. ;a111-xxv.

    37. Essa fraqueza geral dos ar-gumentos que empregam oconceit de lalsa conscitincla"foi sugerlda por Marcia Lind.

    o quanto o sistema de crengas que seus insights refletemest6 cornprometido por quebras e fissuras. Desse modo, urnfeminismo da diferenga ndo pode fomecer urn Insight paraaqueles entre nas cuja pslque manifestago dessasquebras e fissures. Vela por exemplo o caso dos que nascemcorn genitalia masculina mas se consideram muiheres.Raymond, em The Transsexual Empire, sugere que -homens-para-mulheres-construidas" sdo movidas pelo desejo de seapropriar, pelo menos simbolicamente, do poder dereprodugdo das mulheres. 35 Ela sugere tambem que"muiheres-para-homens-construidos" sift movidas pelodesejo de se apropriar do poder geral dado aos homens, ouseja, etas tem a "identldade masculine levada ao extremo.36Assumindo, so para fins de discussdo, que tais argumentossdo vOlidos, eles ainda deixam de responder aquelasquestOes sobre por que aigumas muiheres tem uma"identidade masculine tao forte, ou por que sO algunshomens e ndo outros desejam se apropriar simbolicamentedo poder de reprodugOo das muiheres ou fazer Isso dessemodo. Qualquer apelo a "false consciencle, como que numretomo ao marxismo, apenas leva a falta de resposta a umnivel mais profundo porque, de novo, nada se diz sobre oporque de so alguns e nCio outros sucumbirem a "falsaconsciencle." Assim, ate mesmo quando a prOpria culturaassocia o genera a biologia, uma andise feminista quesegue esses pressupostos fica incapaz de explicar aquelesque se desviam da norma.

    Por ser o feminismo da diferenga ao mesmo tempofalso e verdadeiro dentro das sociedades nas quaffsoperamos, o processo de endossd-lo ou rejetta-lo tern algunselementos estranhos. E como quando olhamos para aquelasfiguras em Iivros de psicologia, que num momenta lembrama cabega de urn coelho e j6 no momento seguinte lembrama cabega de urn pato. Dentro de coda "visde, aparecemalguns tragos antes escondidos, e a interpretagdomomentOnea parece ser a Unica possivel. Muito do poderde livros coma The Reproduction of Mothering, de Chodorow,e In a Different Voice, de Gilligan, esta no fato de eles teremgerado maneiras radicalmente novas de ver as relagOessocials. 0 problema, porem, foi que essas novas maneirasde configurar a realidade, embora realmente poderosas,tambern deixaram muita coisa escapar. Como uma lenteque ilumina sO alguns aspectos do que vemos, atraves domodo como deixam os outros na sombra, essas visOesdeixaram de lado os muitos contextos nos quais nos, comomuiheres e homens, desviamo-nos das generalizagOesproduzidas por essas analises, seja porque os contextos

  • LINDA NICHOLSON

    culturals de nossa infencia nao foram abrangidos por essasgeneralizaedes, seja porque a dindmica psiquica especificade cada uma de nen na infancia solapou qualquerintemalizaedo pura e simples dessas generalizaedes. Assim,tornou-se impassive! para as muiheres reconhecer os modospelos quaffs as generalizaedes produzidas pelas analisescapturaram pobremente suas/nossas praprias noes:5es demasculinidade e femininidade, e tambrn o modo comosuas/nossas praprias psiqus poderiam ter incorporado tacosmasculinos (mesmo quando isso aconteceu). Quaiquerreconhecimento desse Ultimo desvio parecla tornarparticularmente suspeita a participagdo de qualquerfeminista na comunidade feminists.

    Esse ultimo argument (lumina o que freqUentementeesquecido nos debates sobre a verdade de tatsgeneralizaedes: por ser possivel acumular provas tanto desua veracidade quanto de sua falsIdade, o endosso ou arejeiedo nao conseq(Ancia de uma avallaedodesapalxonada da "prove. Antes, nossa necessidadediscrepante, tanto individual quanto coletiva, que empurraaquelas de nas que somos mulheres para nos vermos matsou menos b semelhanea de outras muiheres e a difereneados homens. Num nivel coletivo, a necessidade de algumasde verem umas multo parecidas corn as outras e diferentesdos homens tornou multas coisas possiveis num certomomento da histOria. E o mais importante, tornou possiveis arevelaedo do sexismo, em toda sua profundidade e em suadisseminaedo, e a construed de comunidades de mulheresorganizadas em tomo da erradicaedo do sexismo. Essaatitudetambern continha alguns grandes pontos fracas, maso mars notavel a tendncla a erradicar as difereneas entreas muiheres. A questdo que o feminismo enfrenta hoje sepodemos ou nao gerar novas noedes de gemero queretenham o que fol positivo num "feminismo da diferenea" eeliminem o que foi negativo.

    Como entao Interpretar NO mulher?Nas sociedades contempordneas de base europeia

    ha uma forte tendencia ao pensamento do tipo "ou/ou" emrelaedo as generalidades: ou ha aspectos comuns que nosligam a todas, ou somos todas simplesmente Indlviduos. Umagrande parte do apelo de teorias que ddo base ao"feminismo da diferenea" reside no grande arsenal que etasproduziram contra a tendencia comum na sociedade demenosprezar a Importncia do genera, de negar anecessidade do feminismo por sermos "todas simplesmenteindividuos". 0 "feminismo da diferenea" revelou muitos

  • INTERPRETANDO 0 GENERO

    38.E claro que a reMndlcagdodas especIfIcidades semprerelativa. Como tal, nenhumaretvindlcageto de especificidadepode ser Intspretada em %mosabsolutos, mas apenas comouma recomendago para umaatitude mals decldida nessadlregOo.

    padrdes sociais de genero importantes, padrdes que permi-'Dram bs mulheres entender as circunstanclas em que vivi-am, em termos mats socials do que idlossincraticos.

    Meu argumento contra o "feminismo da diferenca" ndoprop:* que devamos parar de procurar esses padrdes.Sugiro que os entendamos em termos diferentes, macscomplexos, do que tendemos a fazer, particularmente quesejamos mals atentas a historicidade dos padrdes querevelamos. Enquanto procuramos o que socialmentecompartilhado, precisamos ao mesmo tempo procurar oslugares onde esses padrdes falham. Meu argumento,portanto, sugere a substituigdo de propostas sobre mulherescomo tats, ou ate sobre mulheres nas "socledadespatriarcals", por propostas sobre mulheres em contextosespecificos."

    A idea de podermos fazer proposicdes relativas amulheres referindo-nos a grandes periodos da histaria folfocilitada pela Oki de que hb algo em comum b categorla"mulher em todos esses periodos: que Codas compartilham,num determinado nivel basic, alguns aspectos biolOgicos.Assim, aquilo que chamel , de lundaclonalismo biolOgico"confere conteCido b proposicdo de que existem criterioscomuns para a definlcdo do que significa ser mulher. Parafins politicos, tats criterlos sdo considerados capazes de noshabilitar a distinguir o inimigo do allado e a fornecer a basepara o programa politico do feminismo. Havera rnuita gentevendo meu ataque ao fundacionalismo biolgico comoataque ao praprio feminismo. Se n 'do possuimos algunscriterlos comuns danclo significado a palavra "mulher, comovamos gerar uma politica em tomo dessa palavra? A politicafeminista n exige que a palavra "mulher tenha urn sentidodefinido?

    Para me opor a essa 'dela de que a politica feministaexige que a palavra "mulher tenha urn sentido definido,tomo de emprestimo algumas Idelas sobre linguagem deLudwig Wittgenstein. Argumentando contra a filosofia dalinguagem que defends o papel do significado na fixacdodo sentido, Wittgenstein chamava a atengdo para a palavralogo". Ele argumentava ser impossivel imaginar qualqueraspecto que seja comum a tudo quando se trata de logo".

    Se voce examind-los (os procedimentos quechamamos "logos") voce rid vol ver alguma colsacomum a togas, mas semelhangas, relagOes e todauma serie de correspondencias. (...) Vela, por exemplo,os logos de tabuleiros, corn suas intarneras e diversasrelagOes possiveis. Agora passe para os logos de cartas;aqui voce encontra multas correspondibnclas corn o

  • LINDA NICHOLSON

    WITTGENSTEIN, 1953, p. 31-32.

    A metafora da tapegarla folusada pela prlmelra vez numartigo que assInel corn NancyFraser (FRASER e NICHOLSON,1999).

    primelro grupo, mas multos aspectos comuns se per-dem, e outros aparecem. Quando vamos aos jogoscorn bola, multo do que comum permanece, masmutt tambern se perde. (...) E o resultado desses exa-men : vemos uma complicada rede de similarldadesse sobrepondo e se cruzando; 6s vezes similarldadesglobals, as vezes no detalhe.39

    Assim, o sentido de logo revelado nao atravOs dadefinigdo de uma caracteristica especifica ou de urnconjunto delas, mas atravOs da elaboracao de umacomplexa rede de caracteristicas, corn diferentes elementosdessa rede presentes em diferentes casos. Wittgenstein usoua expressao "relagees familiares" para descrever essa redeporque membros de uma familia podem se parecer unscorn os outros sem necessariamente ter urn aspectoespecifico em comum. Outra metafora que sugere a mesmaidOia 6 a de uma tapegaria que adquire unidade atravOsda sopreposicao de fios coloridos, mas na qual nenhumacor ern particular pode ser encontrada.4

    Quero sugerir que pensemos no sentido de "muiher"do mesmo jeito que Wittgenstein sugeriu pensarmos o sentidode logo", como palavra cujo sentido nao a encontradoatrav6s da elucidacao de uma caracteristica especifica,mas atrav6s da elaboragao de uma complexa rede decaracteristicas. Essa sugestao certamente leva em conta ofato de que deve haver algumas caracteristicas como aposse de uma vagina e uma Idade minima que exercemurn papel dominante dentro dessa rede por longos periodosde tempo. Considers tamb6m o foto de que a palavra podeser usada ern contextos nos quals essas caracteristicas naoesti presentes por exemplo, nos 'daises de lingua inglesaantes da adocao do conceito de 'Vagina" ou em socledadesde lingua inglesa contemporaneas para se referir aquelesque nit* possuem vagina, mas que se sentem muiher (isto e,a transexuais antes da operagao). Mais do que isso, se nossareferencia incluir nao sa o termo inggs 'Woman", mas tamb6mtodas as palavras que o traduzem, esse modo de pensar osentido de "muiher" se toms ainda mobs &II.

    E ele a irtil principalmente por causa de sus posturanao arrogante diante do sentido. Como mencionei, essemodo de pensar o sentido de "woman" e de seuscorrespondentes nao ingleses nao refuta a idla de queatravOs de grandes periodos da histaria havers padraes.Abandonar a 1c161a de que pode-se definir claramenteopens urn sentido para "muiher" nao significa que ela ni)tern sentido. Em vez disso, esse modo de pensar o sentido

  • INTERPRETANDO 0 GENERO

    encontrados dentro da histaria e podem ser documentadoscomo tail. NO podemos pressupor que o sentido dominanteem socledades ocidentais industrializadas deva serverdadeiro em qualquer lugar ou troves de periodoshistOricos de limites indefinidos. Assim, essa postura nao refutaa [dela de que o corpo "bissexuade teve seu Importantepapel na estruturacao da distincdo masculino/feminino, eportant no sentido de "mulher, ao longo de uma parte dahistOria human. Entretanto ela exige que sejamos clarossobre qual fol exatamente essa parte, e ate mesmo dentrodela, sobre os contextos nos quaffs essa distincao nao se

    Mais do que lsso, por assumir que o sentido de"mulher se alterou ao longo do tempo, essa postura assumetambern que aquelas/es que atualmente defendem formasnao tradiclonais de compreencg-lo, como os transexuais porexemplo, nao podem ser delxados de lado sob a simplesalegagdo de que suas interpretagOes contradizem ospadroes usuais. Raymond defende que ninguem nascidosem vagina pode dizer que teve experienclas comparavelsas dos que nasceram corn uma. Como pode ela saberdisso? Como pode ela saber, por exemplo, que os pais dealgumas pessoas nao estavam operando corn uma cisaoentre biologia e carater maior do que a que vale para muitosnas sociedades industrializadas contemporaneas, dandode tato a suas criancaS corn genitalia masculina experienclascomparOvels as daquelas corn genitalia feminina? A histOria6 felta por alguns que tam experienclas realmente diferentesdaquelas que predominaram no passado.

    Assim, sugiro pensarmos o sentido de "mulher comocapaz de ilustrar o mapa de semelhancas e diferencas quese cruzam. Nesse mapa o corpo nao desaparece; ele setoma uma variavel historicamente especifica cujo sentido eimportancia sao reconhecIdos como potencialmentediferentes em contextos histOricos varlavels. Essa sugestao,desde que se assuma que o sentido 6 encontrado, naopressuposto, assume tambern que a procura em si nao 6urn projeto politico ou de pesquisa que uma intelectual seracapaz de executar sozinha em seu gabinete. Ele implica, naverdade, uma compreensao desse projeto como esforconecessariamente coletivo a ser felt por muitas, e emconstante dialog.

    Alem do ma's, como devem indicar tanto a referenciaque fiz aos transexuals quanto minha discussao anterior sobreaspectos comuns entre mulheres e diferencas em relagOoaos homens, 6 urn erro pensar nessa procura como tarefa"objetiva" assumida por intelectuais motivadas apenas por

  • LINDA NICHOLSON

    sentimos como aspectas comuns e diferencas veto depender, pelo menos em parte, de nossas diferentes necessida-des psiquicas e metas politicos. Articular o sentido de umapalavra no contexto em que ha ambigCridade, e no qualdiferentes consecOncias surgem de diferentes articulagdes,6 urn ato politico. Assim, a articulagdo do sentido de muitosconcertos em nossa linguagem, como "mete", "educagdo","ci6ncla" e "democracia", embora vista como ato meramen-te descritivo, 6 na verdade estipuladora. Corn uma palavraemocionaimente too carregada quanto "mulher, da qualtantas coisas dependem se considerarmos o modo comoseu sentido a articulado, qualquer proposta de articulacdode sentido deve ser vista como intervencdo politica.

    Mas sea elaboragdo do sentido de -mulher represen-ts uma tarefa continua e uma luta politica continua, isso naocompromete o projeto de uma politica feminista? Se aquelasque se intitulam feministas nao podem nem decidir sobrequem sdo as "mulheres", como fazer exiganclas politicos emnome dos mulheres? Sera que o feminismo nao carece dopressuposto de unidade de sentido que, conforme estousustentando, nao podemos ter?

    Para responder a essas questdes, permitam-me sugerirurn modo de entender a politica feminists ligeiramentediferente do costumeiro. Normalmente, quando pensamosem "politica de coalizdo", pensamos em grupos corninteresses claramente definidos se unindo em caratertemporario em tome de beneficios m6tuos. A parflr dessanogdo, politica dd coalizdo a algo do qual as feministastomam parte junto corn "outros". Mas podemos pensar empolitica de coalizdo como algo nao meramente extern() apolitica feminists, mss tamb6m intern. Essa abordagemsignificaria pensarmos em politica feminista como a unit*daquelas que querem trabalhar em torno dos necessidadesdos "mulheres", nao sendo tal concerto necessariamenteentendido num sentido especlfico ou consensual. A politicade "coalizeto" de urn movImento como esse seria formuladado mesmo jelto que as 'politicos de coalizao" em geral sdoformuladas, ou seja, como uma politica composta por listasde reivindicagdes relatives as diferentes necessidades dosgrupos que constituem a coalizdo, ou composta porrelvindicagdes articuladas num determinado nivel abstratopara incluir a diversIdade, ou ainda composta porreivindicacdes especificas em tomb das quaffs gruposdiferentes tempororiamente se unem. De fato, tais estrat6glassdo aquelas que as feministas vm adotando coda vezmais nos Oltimos 25 anos. Femlnistas broncos comegaram afevles, rn.r.resele AIL he..

  • INTERPRETANDO 0 GENERO

    do ficou claro que muitas mulheres n brancas passa-ram a considerar o acesso ao acompanhamento pr.&natal ou a abolicdo da esterilizacao involuntaria como te-mas pelo menos tao relevantes para suas vidas, se naomacs, do que o acesso ao aborto. Em outras palavras, apolitica feminists dos illtIMOS 25 anos ja vem exibindoestrat6glas de coolie* Intern. Por que nossa teoria sobrea "mulher nao pode refletir essa politica?

    Esse tipo de politica nao edge que a palavra "mulherpossua urn sentido especifico. Mais do que isso: sera quenem mesmo quando a politica feminista propae falarmosem nome de uma Onica forma de se compreender "mulhereta pode reconhecer explicitamente esse entendimento&do como politico e provisario, como aberto a qualquerdesaflo que os outros pudessem lancar? Em outraspalavras, sera que nao podemos ter clareza de quequalquer proposIgOo que fazemos em nome das"mulheres" ou do "Interesse das mulheres" estipuladora, enao descritiva, baseada tanto numa compreensao doque queremos que as mulheres sejam, quando emqualquer exame coletivo sobre como aquelas que seconsideram muiheres se v6em? Reconhecer o caraterpolitico de tais propostas significa, 6 claro, abandonar aesperanca de que seja facil determinar a autoria dadefinigao que se quer adotar para "mulheres" ou para"Interesses das mulheres". Mas essa determinacao nuncafoi facil. Falando em nome das "mulheres", as feministasfreqUentemente ignoraram reivindicagOes das mulheresde direlta enquanto assumiam Ideals relativos aos"interesses das mulheres" vindos da esquerda masculina.Se as feministas brancas nos Estados Unidos sentem cadavez mais a necessidade de considerar seriamente asreivindicagOes das mulheres nao brancas, e nao as dasbrancas conservadoras, isso acontece nao porque asprImeiras possuam vaginas e as ltimas nao, mas porquemultos de seus ideals estao bem mais prOximos dos idealsde muitas nao brancas do que dos ideals dasconservadoras. Talvez seja hora de assumirmosexplicitamente que nossas propostas sobre as "muiheres"nao sato baseadas numa realidade dada qualquer, masque elas surgem de nossos lugares na hIstaria e na cultura;sao atos politicos que refletem os contextos dos quaffs nosemergimos e os futuros que gostariamos de ver.

  • LINDA NICHOLSON

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    TRADucAoLuiz Felipe Guirnardes Soares

    REVISAO TECNICAClaudia de Lima Costa

  • LINDA NICHOLSON

    Interpreting GenderAbstract: In this article the author deconstructs dominant understandings of two concepts central to feminist analysisIlse gender and woman. Much of post-1960s feminist scholarship has relied on the distinction between "set and"gender. Although this distinction has served many useful purposes (particulary that of allowing feminists to challengebiological determinism), it has also enabled feminists to preserve a type of dualistic thinking about women's identity.It has allowed feminists to think of differences among women as separable from that which women share. The authorargues that this polar framework has enabled feminists to stress the deep differences between women's and men'sculture-generated experiences But, because the polar framework of contemporary society is neither completelystable or hegemonic nor links perfectly male and female experiences with male and female Identified bodies,employing it as an unquestioned element of one's analysis also leads to problems. This framework falls to capture thegender deviance of many of us, reinforces cultural stereotypes of the meaning of female and male experience, andacts politically to suppress modes of being that challenge gender dualisms.Keywords: gender dualism, biological foundationalism, experience, woman, feminist politics.

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