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REESCREVENDO A HISTÓRIA, REPENSANDO O ENSINO: HISTÓRIA LOCAL E ENSINO DE HISTÓRIA NA CIDADE DE XINGUARA/PA- OUTROS SUJEITOS, SABERES E PRÁTICAS LUCILVANA FERREIRA BARROS 1 ROBERG JANUÁRIO DOS SANTOS 2 Introdução O projeto Novas Perspectivas para o ensino de História local e regional em Xinguara: diálogos entre a Universidade e a educação básica, projeto desenvolvido no curso de História da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, IETU-Xinguara em diálogo com a educação básica no município, financiado mediante bolsas de estudos para discentes a partir do Programa de Apoio a Projetos de Intervenção Metodológica (PAPIM-UNIFESSPA/2016) tem como objetivo desenvolver uma proposta de intervenção metodológica para o ensino básico (ensino fundamental II) de trabalho com a história local/regional, de modo que além de sugerir o trabalho ou o repensar acerca da história local/regional, possa-se ir além de um modelo de ensino circunscrito as generalizações e distanciamentos provocados apenas pela utilização de livros didáticos e regras escolares, pautando-se como via de entrada para os conteúdos, a partir da análise de documentos históricos provenientes do lugar e estudos do meio voltados para a formação de práticas interdisciplinares. Nesse sentido busca-se capacitar professores de História da educação básica da rede municipal de ensino de Xinguara para trabalharem com o ensino da história local junto às turmas de 6º ao 9º ano do ensino fundamental II, propiciando a inserção do trabalho com documentos históricos e estudo do meio na prática docente da educação básica, considerando tal procedimento não só como reforço de estudo, mas entrada por meio de situação problema e interpretação do mundo mais próximo, bem como aproximando a sociedade xinguarense da Universidade, criando espaços de diálogos e troca de experiências que buscam enriquecer a formação discente e qualificação docente no âmbito da educação básica local. A proposta do projeto, em consonância 1 Professora Mestre do curso de História da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará/UNIFESSPA. Texto resultante das atividades realizadas no projeto Novas Perspectivas para o ensino de História local e regional em Xinguara: diálogos entre a Universidade e a educação básica, vinculado ao Programa de Apoio de Intervenção Metodológica PAPIM/Unifesspa. 2 Professor Mestre do curso de História da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará/UNIFESSPA.

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  • REESCREVENDO A HISTÓRIA, REPENSANDO O ENSINO: HISTÓRIA LOCAL E

    ENSINO DE HISTÓRIA NA CIDADE DE XINGUARA/PA- OUTROS SUJEITOS,

    SABERES E PRÁTICAS

    LUCILVANA FERREIRA BARROS1

    ROBERG JANUÁRIO DOS SANTOS2

    Introdução

    O projeto Novas Perspectivas para o ensino de História local e regional em Xinguara:

    diálogos entre a Universidade e a educação básica, projeto desenvolvido no curso de História da

    Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, IETU-Xinguara em diálogo com a educação

    básica no município, financiado mediante bolsas de estudos para discentes a partir do Programa

    de Apoio a Projetos de Intervenção Metodológica (PAPIM-UNIFESSPA/2016) tem como

    objetivo desenvolver uma proposta de intervenção metodológica para o ensino básico (ensino

    fundamental II) de trabalho com a história local/regional, de modo que além de sugerir o trabalho

    ou o repensar acerca da história local/regional, possa-se ir além de um modelo de ensino

    circunscrito as generalizações e distanciamentos provocados apenas pela utilização de livros

    didáticos e regras escolares, pautando-se como via de entrada para os conteúdos, a partir da análise

    de documentos históricos provenientes do lugar e estudos do meio voltados para a formação de

    práticas interdisciplinares.

    Nesse sentido busca-se capacitar professores de História da educação básica da rede

    municipal de ensino de Xinguara para trabalharem com o ensino da história local junto às turmas

    de 6º ao 9º ano do ensino fundamental II, propiciando a inserção do trabalho com documentos

    históricos e estudo do meio na prática docente da educação básica, considerando tal procedimento

    não só como reforço de estudo, mas entrada por meio de situação problema e interpretação do

    mundo mais próximo, bem como aproximando a sociedade xinguarense da Universidade, criando

    espaços de diálogos e troca de experiências que buscam enriquecer a formação discente e

    qualificação docente no âmbito da educação básica local. A proposta do projeto, em consonância

    1 Professora Mestre do curso de História da Universidade Federal do Sul e Sudeste do

    Pará/UNIFESSPA. Texto resultante das atividades realizadas no projeto Novas Perspectivas para

    o ensino de História local e regional em Xinguara: diálogos entre a Universidade e a educação

    básica, vinculado ao Programa de Apoio de Intervenção Metodológica – PAPIM/Unifesspa. 2 Professor Mestre do curso de História da Universidade Federal do Sul e Sudeste do

    Pará/UNIFESSPA.

  • 2

    com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, bem como com os Parâmetros

    Curriculares Nacionais, e a partir do diálogo com Barros (2009); Samuel (1990); Fernandes

    (1995); Bittencourt (2004); Fonseca (2012); Fagundes (2006); Martins (2004); Castro (2005);

    Pereira (2014); Silva (2006); SCHMINK & WOOD, 2012, entre outros teóricos tem buscado

    através de instrumentalização teórica, pesquisas documentais/mapeamento de fontes, realização

    de diagnósticos; realização de oficinas temáticas, cursos de capacitação docente, entre outras

    atividades, desenvolver esta proposta na perspectiva da releitura da História local repensando-a

    na prática do ensino de História no município, estreitando os diálogos entre a Universidade e a

    educação básica.

    Conflitos, Memória e Migração no Sul e Sudeste do Pará: historicizando a região

    Para melhor dá a ler o espaço estudado, se faz necessário a compreensão da historicidade

    da região a qual encontra-se a cidade de Xinguara, notadamente a junção regional do Sul e

    Sudeste paraense, oriunda inicialmente a partir de dois polos, a saber: Marabá e Conceição do

    Araguaia. Marabá, às margens dos rios Itacaiúnas e Tocantins, ganhou sua formação ainda no

    século XIX, mediante a sua expressão econômica tornando-se um tipo de entreposto comercial,

    principalmente mediante a extração e comercialização do caucho. Na condição de burgo

    agrícola, Marabá concentrava a intermediação da exploração das florestas de castanhais e da

    goma elástica também advinda das florestas do Xingu. As elites do lugar, capitaneadas pelas

    famílias ricas, donas dos meios de produção e comercialização, exerciam a representação

    hierárquica e política, oportunidade em que se formava um contingente populacional

    considerável com a eminente chegada de migrantes de várias regiões do Brasil, entres estes

    lugares, cita-se Goiás e Maranhão. Ao longo dos anos as elites ligadas ao extrativismo vegetal

    foram perdendo espaço e com o crescimento urbano da cidade outras elites compõem os

    quadros de poder local, como pecuaristas e mineradores, mesclados com outros setores sociais

    de uma cidade de porte médio que observou um avanço demográfico fora do comum mediante

    a construção de hidrelétrica, estradas e projetos, como o Carajás (mineração).

    Às margens do Rio Araguaia surgiu outra cidade antiga da região, notadamente

    Conceição do Araguaia, palco da chegada, ainda no século XIX, dos primeiros habitantes

    brancos da região, estes sendo sertanejos advindos do que hoje é o Nordeste na busca por pastos

  • 3

    para a criação de gado. Outros grupos familiares chegaram à Conceição do Araguaia em função

    de fugirem de conflitos por terra na região do Norte Goiano, assim passando a ocupar a região.

    Todavia, a cidade só seria fundada em 1888 por freis dominicanos, como Gil Villa Nova e

    Ângelo Dargainaratz, que na busca da catequização de indígenas, chegaram a região e iniciaram

    a instalação de um povoado. Com uma formação agrícola, a cidade passou a viver do

    extrativismo e do pastoreio, espaço ainda de considerada presença indígena dos Kaiapós e

    Carajás.

    Interessa evidenciar que a ideia de espaço vazio e a penetração do capital na região

    promoveu um intenso fluxo migratório fazendo com que a região se torne complexa em pouco

    tempo após a década de 1960. A busca da terra e do emprego, promessas dos governos militares

    pós 1964, atraíram um contingente considerável de migrantes para a Amazônia Oriental,

    quando pessoas do Goiás, Maranhão Piauí, Pernambuco, Ceará, Bahia, Minas Gerais, Paraná,

    Mato Grosso, entre outros, atravessaram os rios Araguaia e Tocantins, gestando uma situação

    de conflitos por terras e exploração dos recursos naturais da região.

    Inicialmente relembra-se a condição de Xinguara enquanto cidade recente e formada no

    impacto dos grandes fluxos migratórios para a Amazônia Oriental, em grande medida os planos

    de desenvolvimento do Estado brasileiro para a Amazônia, incluindo o Sul e Sudeste paraense, se

    intensificaram a partir das décadas de 1960 e 1970, por meio da abertura de rodovias, grandes

    projetos hidráulicos/hidrelétricos, minerador e agropecuários. Assim, o Estado desempenhou

    papel decisivo no processo de colonização da região. O Governo Federal visava integrar à

    Amazônia brasileira ao restante do território nacional. Logo diversas propagandas circularam em

    torno da Amazônia dentre os períodos de 1964 a 1985, Slogans como: “homens sem terra” para

    “terra sem homens”, servindo como atrativos para migrantes que lutavam por uma porção de terra.

    Com a implantação de eixos rodoviários, como a rodovia Belém-Brasília e a PA-150, ao

    lado dos incentivos fiscais e apoios de créditos estabelecidos pela SUDAM (Superintendência de

    Desenvolvimento da Amazônia), para projetos agropecuários e a descoberta da mina de ouro de

    Serra Pelada, foi considerável o crescente fluxo de migrantes para as regiões Sul e Sudeste

    paraense. A abertura de grandes estradas deu início a um processo de corrida às terras marginais

    e devolutas. A partir deste contexto migratório, diversas famílias procedentes de Goiás, Mato

    Grosso, Maranhão, Piauí, Ceará, Minas Gerais, Bahia, entre outros estados do país, se deslocaram

  • 4

    rumo ao Sudeste do Pará, em busca de uma vida melhor, assentando-se em terrenos laterais das

    rodovias e em outros espaços da região.

    Os conflitos agrários na Amazônia brasileira tiveram sua ascensão a partir da década de

    1970 do século XX, e ocorreram, entre outros motivos, em razão da expropriação e expulsão dos

    posseiros por grandes empresas privadas. Esse processo, de acordo com Martins (2004) foi

    denominado de superposição da frente pioneira sobre a frente de expansão. Mas o que são esses

    dois processos? E o que caracterizam essas frentes? Conhecidos como Frente de expansão, os

    posseiros, em sua grande maioria compostos por migrantes de longas datas que ocuparam terras

    devolutas e viviam em suas terras, sem nenhum tipo de documento que os legitimasse como

    proprietários das mesmas. Já no que se refere à Frente pioneira, tratou-se de um movimento

    essencialmente empresarial e capitalista de ocupação do território, representando a marcha das

    grandes fazendas, o banco a casa de comércio, a ferrovia, o cartório, o Estado, etc.

    A formação das cidades no Sul do Pará, como Xinguara, ocorreram devido a combinações de

    processos econômicos que representam a frente de expansão, pois a extração da madeira, do ouro

    e a exploração da terra denotam os principais atrativos para o Sul do Pará, região do Araguaia

    paraense. Estas economias criaram as condições de emergência de uma série de cidades, bem

    como de uma diversidade de conflitos. Conforme Pereira (2014), as décadas de 1970 e 1980 foram

    marcadas no Sul do Pará por intensos conflitos de terras, o que inclui Xinguara. Conforme Silva

    (2015), a propaganda em torno da Amazônia enquanto espaço vazio contribuiu para os referidos

    conflitos, pois aos olhos do agronegócio, se a terra se encontra “vazia” gera-se a ideia de

    disponibilidade para o “avanço” da “produção”. Importa dizer, ainda conforme Silva (2015), que

    os territórios os quais se pretendem criar os estados dos Tapajós e Carajás registram um percentual

    entre 60% e 80% de terras devolutas, ou seja, terras públicas sem destinação pelo Poder Público,

    dado que permite Silva (2015) evidenciar que a criação destes dois Estados aceleraria o processo

    de apropriação destes fundos territoriais. Ou seja, a estadualização destas terras, em grande

    medida, será uma forma de oficialização de propriedade para vários grupos que compõem as elites

    agrárias da região, fazendo avançar a frente do agronegócio sobre comunidades tradicionais que

    habitam parte destas terras, como índios, quilombolas e camponeses.

    Xinguara surge deste movimento em finais da década de 1970, quando chegavam os

    primeiros migrantes, formando um pequeno povoado no qual recebeu o nome de “Entroncamento

    do Xingu”, em virtude da sua localização no encontro das rodovias PA-150 e PA-279. A ocupação

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    do território, onde está localizado o município de Xinguara, ocorreu devido à abertura da rodovia

    PA-279, com a finalidade de ligar o município de São Félix do Xingu à rodovia PA-150. O marco

    inicial da estrada foi fixado no entroncamento. Levas de imigrantes de diversas regiões vieram ao

    município movido pelas notícias de terras baratas e fáceis, trabalho farto, muita madeira e ouro,

    dando origem a um povoado em 1976 que recebeu por nome a junção de dois rios: Xingu e

    Araguaia. De acordo com Shimink e Wood (2012), “Xinguara posicionou-se estrategicamente

    entre as já consolidadas cidadezinhas de Conceição do Araguaia e Marabá. Sua localização fez do

    povoado destino preferencial de milhares de migrantes que inundavam o sul do Pará nos anos 70”.

    O Sul e Sudeste paraense formam uma região marcada por intensos conflitos, memórias

    traumáticas e agressão ao meio ambiente, uma vez que o choque entre grupos, como índios,

    camponeses e latifundiários por questões de terra passou a ser frequente produzindo eventos

    traumáticos para a região, como o massacre de camponeses em Eldorado do Carajás, no ano de

    1996. A extração da madeira ainda é um forte problema na região, sendo a floresta amazônica

    extensamente devastada. Soma-se à extração da madeira o fato da construção de hidroelétricas e

    a presença dos garimpos que além de derrubarem a floresta ainda danificam o solo.

    Ensino de História e História Local em Xinguara/PA: desnaturalizando olhares

    Desenvolver um projeto de pesquisa que busque repensar a história local traz em sua

    natureza a necessidade de repensar não apenas as memórias e histórias estruturantes da identidade

    local, mas as próprias formas de vivências elaboradas pelos habitantes deste espaço. Falar sobre

    o Sul do Pará e a cidade de Xinguara e em especial nos obriga a analisar a historicidade das

    camadas de discursos e memórias elaboradas sobre esta região. Em nossas pesquisas realizadas

    entre os anos de 2016 e 2017 temos identificado muitas representações construídas tanto pelas

    estruturas de poder local (nos documentos e discursos oficiais, sites, blogs, publicações, livros,

    jornais, revistas, bibliografias e arquivos do município sobre a História local, etc), quanto pelos

    próprios habitantes do município.

    Em pesquisa de campo desenvolvido no ano de 2016 no município, em que buscávamos

    mapear as representações sobre a História local elaboradas pelos estudantes da educação básica,

    apreendemos uma série de informações que nos impulsionou a aprofundar as pesquisas sobre a

    cidade em questão. Assim, para o desenvolvimento do projeto, a nossa equipe optou por realizar

    um trabalho de reconhecimento do público que iríamos trabalhar, bem como perscrutar as

  • 6

    possibilidades temáticas ligadas ao local e regional, este reconhecimento foi realizando mediante

    a aplicação de um diagnóstico junto ao ensino fundamental II do município. Os diagnósticos

    versaram sobre questões acerca da naturalidade dos pais, dos alunos, da renda familiar, do acesso

    à rede mundial de computadores, da disciplina de História, da história local e regional e ainda um

    espaço destinado a criatividade dos estudantes em representarem sua cidade por meio de

    representação gráfica (desenhos).

    Das respostas apresentadas pelos alunos muitas nos chamaram atenção, não apenas como

    professores, mas como historiadores que buscam refletir sobre a região. Ao perguntarmos se estes

    estudantes se sentem parte da História da cidade e região, percebemos que muitos não

    responderam à questão; segundo, nota-se, pelas respostas, que a maioria dos estudantes

    responderam que não se sentem parte da história destes espaços, o que nos conduz a pensar que

    tal resposta muitas vezes foi impulsionada pelo desconhecimento da história da cidade e região,

    pois a dimensão histórica apreendida pelos estudantes ainda guarda resquícios de um modelo de

    conhecimento que:

    “priorizava conteúdos relacionados à chamada “História da Civilização Brasileira” e

    até mesmo à dita “História Universal” em detrimento da História Local. Isto estava de

    acordo com uma visão político-ideológica proveniente do século XIX e que bem serviu

    ao poder oficial, com o objetivo de se forjar a ideia de uma Brasil homogêneo, coeso,

    sem conflitos e contradições sociais” (FERNANDES, 1995, p.45).

    Assim, ao perguntarmos sobre a história do município em que vivem, muitos estudantes

    reafirmaram o desconhecimento sobre a historicidade deste lugar, como podemos observar no gráfico

    a seguir:

  • 7

    Consulta aos estudantes do município acerca dos conhecimentos prévios sobre a História de

    Xinguara/PA- ano 2016.

    A equipe do projeto também perguntou antecipadamente, através dos diagnósticos, sobre

    o conhecimento dos estudantes acerca da história de sua região ou a região que circunda a cidade

    de Xinguara (Sul e Sudeste do Pará). O desconhecimento da história regional ainda foi maior do

    que o desconhecimento sobre a história da cidade, o que implica pensar que é preciso rever a

    disciplina de Estudos Amazônicos, que em tese deveria contemplar o estudo da história da região.

    Vejamos o gráfico:

    Consulta aos estudantes do município acerca dos conhecimentos prévios sobre a História do Sul do Pará- ano 2016.

  • 8

    Estes dados serviram para o mapeamento da situação inicial das turmas e contribuíram

    para o planejamento das atividades a serem desenvolvidas. Uma das etapas do diagnóstico,

    aplicado junto aos estudantes, foi também requisitar destes a elaboração de uma representação

    gráfica (desenho) acerca da sua cidade. Esta atividade demonstrou como determinados eventos e

    temas fazem parte do imaginário e da percepção identitária dos estudantes, dando a ler suas formas

    de apego espacial e maneiras de se reconhecer na sociedade em que se encontram inseridos. Como

    podemos observar em algumas representações a seguir:

    Estudante 1- Registro gráfico elaborado por estudante do 9º A

    Neste desenho o estudante representa a migração para sua cidade, ocasião em que

    possivelmente sua família chegou à região e a Xinguara em momentos de grandes fluxos

    migratórios para estes espaços, seja na época da busca pela terra, dos garimpos, da extração

    madeira ou da instalação das grandes fazendas de gado, entre as décadas de 1970 e 1990 ou ainda

    entre as décadas de 1990 aos dias atuais, oportunidade em que continuou a chegada de pessoas

    para trabalhar em fazendas e nas atividades extrativistas, principalmente em garimpos espaçados

    nas regiões que circundam Xinguara, como Araguaia e Xingu. Deve-se ainda perceber, por uma

    leitura da imagem, que o estudante 1 possivelmente representa a história da sua família, de modo

    a enfatizar que chegados a região em ônibus estabeleceram residência e foram trabalhar no campo,

    possivelmente em fazendas ou em garimpos, como podemos observar na imagem (parte inferior

    do desenho).

  • 9

    A representação dos garimpos também aparece como uma imagem bastante presente nas

    narrativas dos estudantes, como podemos observar na imagem abaixo:

    Estudante 2- Registro gráfico elaborado por estudante do 8º ano “A”

    O imaginário do ouro que circula na região, notadamente aquele em que o minério, em

    muitos casos, vale muito mais que pessoas, pois dimensiona várias pedras preciosas dando-lhe a

    representação de grandiosidade em relação ao tamanho da pessoa que aparece ao lado de um

    instrumento de trabalho, como a pá. A imagem também nos proporciona o estudo da relação entre

    passado e presente, pois a representação da atividade revela certa percepção da extração do

    minério tanto efetuada no passado com técnicas rudimentares, como a pá, quanto praticada no

    presente, por meio do uso de equipamentos, como o trilho e carrinhos para o transporte do minério.

    O ouro e a extração de madeira foram os dois grandes projetos que inicialmente foram os

    responsáveis pela ocupação da região do Araguaia paraense. O estudante 2 representou as duas

    atividades conectadas, o que implica presumirmos que o estudante 2, pela idade em média que

    possui, entre 13 e 15 anos, ouviu as narrativas de parentes ou amigos e conhecidos sobre os dois

    processos econômicos na região. É frequente as pessoas com um pouco mais de idade fazerem

    menção aos tempos do ouro e da madeira em Xinguara, gestando na memória dos mais novos a

    elaboração de lembranças de tempos passados marcados pelo auge de atividades extrativistas. A

    construção positiva deste tipo de atividade extrativista, a ponto de a mesma ser representada

    graficamente como ilustração da cidade, necessita ser problematizada no campo da história, pois

  • 10

    a lógica extrativista na região é uma lógica predatória, não respeitando a natureza e seus recursos,

    bem como merece atenção a condição dos trabalhadores vinculados a estes tipos de atividades

    econômicas, pois a região do Sul do Pará é um espaço marcado pela violação dos direitos

    trabalhistas e humanos.

    Contudo, a partir das pesquisas realizadas nos acervos documentais e nos diagnósticos

    apresentados, e uma vez realizada a leitura e análise das fontes, identificamos a temática da

    Migração dentre as demais apresentadas, como uma das mais frequentes nas fontes, e, portanto,

    de suma importância a ser analisada no ensino e na pesquisa histórica. Pois, a partir das pesquisas

    realizadas nas fontes pudemos observar como ocorreu o processo de constituição da região Sul e

    Sudeste do Pará, e Xinguara como parte deste processo, se constituindo a partir das mais diversas

    ondas migratórias, advindas das mais diversas regiões do Brasil. Muitos destes migrantes,

    identificados nas fontes históricas pesquisadas (documentos paroquiais, certidões de batismos e

    casamentos, bem como das entrevistas realizadas com moradores locais) constituem estas

    estatísticas de migrantes integrantes da população xinguarense, e seus filhos constituem as salas

    de aulas do município, inclusive as salas de aulas parceiras deste projeto.

    Assim, ao refletir acerca da História Regional e Local no ensino de História neste

    município, a partir do diálogo sobre Migração para o Sul e Sudeste do Pará, pode-se demonstrar para

    os alunos que eles e seus familiares fazem parte da História do município e região, e que os mesmos

    são parte importante no processo de elaboração destes espaços. Comumente quando pesquisamos

    sobre a história de Xinguara e região, as principais narrativas que aparecem sobre o lugar versam

    acerca da participação de um conjunto de "homens pioneiros" advindos principalmente dos Estados

    de Goiás, São Paulo e Minas Gerais, em geral grupos que teriam migrado para esta região com o

    intuito de abrirem fazendas e se estabelecem no lugar, estes grupos são destacados nas narrativas

    locais, atribuindo-lhes os principais papeis nas narrativas oficiais. Entretanto, a partir das pesquisas

    nas fontes locais, identificamos a ampla participação popular no processo de construção da região,

    migrantes, principalmente de estados nordestinos advindos do Maranhão, Bahia, Ceará, Piauí, entre

    outros. Estes migrantes durante várias décadas foram silenciados nas histórias locais ou foram

    sendo marginalizados na formação da região, como observou a historiadora Idelma Santiago da

    Silva (2006, p.54) em relação aos:

    “[...] migrantes maranhenses ainda hoje continuam sendo uma frente de migração negra

    para o sudeste do Pará. Portanto, uma população de trabalhadores(as) que

  • 11

    protagonizaram a história local, mas que tem sofrido um processo de invisibilidade ou

    tem sido vista através de estereótipos”.

    Não se obscura a grande presença de goianos na cidade, mas outros grupos de outros

    lugares também constituíram a cidade e região. Estas populações estavam presentes em vários

    momentos e espaços construtores do município, apesar de não possuírem destaques nas narrativas

    oficiais, como foi possível observar na pesquisa, por parte da equipe do projeto, nos documentos

    paroquiais da Igreja de São José Carpinteiro, em Xinguara, oportunidade em que os registros de

    casamento, no quesito batismo dos noivos (homens) revela a presença de pessoas de vários

    Estados do país em Xinguara, vejamos o gráfico:

    Registros de casamentos com efeito civil (1979 – 2012). Paróquia de São José Carpinteiro em Xinguara

    Outra temática bastante presente nas fontes pesquisadas foi a questão da terra, um tema

    caro para a região, pois os conflitos agrários na Amazônia brasileira tiveram sua ascensão a partir

    da década de 1970 do século XX, e surgiram, como mencionado anteriormente, de entrechoques,

    em muitos casos, tanto de agentes da frente de expansão, quanto outros agentes da frente pioneira

    que ocupavam terras e se confrontavam pelo domínio das mesmas. Em várias situações, os

    trabalhadores passaram a ser expulsos das terras que ocuparam, terras estas devolutas, ocupados

    pelos chamados posseiros: “(...) pequenos produtores agrícolas que compõem unidades de

  • 12

    trabalho familiar, detentores de benfeitorias, roçados e animais de tração [...] abriram áreas

    próprias de cultivo em terra devolutas e disponíveis, à margem das grandes explorações

    agropecuárias. (ALMEIDA Apud PEREIRA, 2013, p.30). As ocorrências de conflitos de terra na

    região do Sul e Sudeste do Pará ainda são uma realidade, demonstrando estes acontecimentos ser

    não apenas um profícuo campo de estudos e pesquisas, mas uma importante área para

    preocupações ligadas aos direitos humanos, frente aos dados:

    PEREIRA, Airton dos Reis. Ocupações e conflitos de Terra no sul do Pará. 2014.

    É preciso considerar que a situação do campo na cidade de Xinguara e região foi

    possibilitada pelo perfil do trabalhador que migrou para esta região, pois conforme documentos

    pesquisados na Igreja de São José Carpinteiro em Xinguara, boa parte dos homens chegados à

    cidade tiveram como profissão ser lavrador, ou seja, condição que colocava um considerável

    contingente de trabalhadores nas mãos dos fazendeiros da região. Os documentos referentes aos

    casamentos nos mostram uma forte presença de lavradores na cidade, especialmente nas décadas

    de 1980 e 1990. Vejamos o gráfico:

    NÚMERO DE MORTES DECORRENTES DOS CONFLITOS DE TERRA NO

    BRASIL, NO PARÁ E NO SUL DO PARÁ (1980 – 1993)

    Períodos Brasil Pará Sul do Pará

    1980 – 1984 499 100 66

    1985 – 1989 641 361 157

    1990 – 1993 215 67 16

    Total: 1.355 528 239

  • 13

    Registros de casamentos com efeito civil (1979 – 2012). Igreja de São José Carpinteiro em

    Xinguara

    Ao pesquisarmos nas fontes do poder Legislativo do município, especificamente naquilo

    que se reporta aos requerimentos feitos à mesa diretora, identificou-se o discurso de um

    parlamentar da cidade requerendo a mesa diretora da Câmara que interceda junto as autoridades

    competentes acerca de ameaças feitas a membros do sindicato dos trabalhadores rurais de

    Xinguara, relatando ainda ameaças feitas por pistoleiros. Uma situação não muito distante das

  • 14

    representações feitas pelos estudantes ao retratarem a imagem da morte nos diagnósticos como

    algo natural ao cotidiano da história do município, como podemos observar na imagem abaixo:

    Estudante 3- Registro gráfico elaborado por estudante do 9º B.

    A partir das várias representações elaboradas pelos estudantes pudemos mapear as

    percepções destes sobre a história do município, pois o comando apresentado no diagnóstico os

    interpelava sobre como estes imaginavam a história de Xinguara, demonstrando que os estudantes

    detêm um conhecimento histórico sobre o município, e este destaca-se a partir de um mosaico de

    imagens e representações mistas, imagens estas a serem problematizadas como detentoras de

    camadas de discursos constituintes de identidades sobre a cidade e a região, como podemos

    observar nas representações sobre a identidade do município atrelando-a a festividade típica do

    lugar: a Festa Agropecuária de Xinguara - FAX, portanto, a cultura do latifúndio no município,

    demonstrando assim o quanto o evento é parte dos seus referenciais sobre o local. Para melhor

    dimensionarmos, observemos o brasão da cidade de Xinguara e o desenho elaborado pelo

    estudante nº 4:

    A sua maneira, é possível perceber a intenção do estudante em recriar, guardadas as

    proporções, o brasão da cidade. Um brasão marcado pelos processos econômicos da produção de grãos

    (trigo), uma castanheira e a agropecuária. A agropecuária dá o tom de certa produção da identidade

    local em Xinguara, é notório a circulação da ideia de Xinguara a “capital do boi gordo”, o que provoca

    Brasão da cidade de Xinguara. Disponível

    em: http://www.xinguara.pa.gov.br/ Acesso

    em: 13/08/2017.

    Estudante 4- Registro gráfico elaborado por estudante do 9º A.

    http://www.xinguara.pa.gov.br/

  • 15

    certo apego a tal ideia, por parte das pessoas do lugar, inclusive os estudantes. Outro estudante

    reverbera esta questão quando a expressou em seu desenho:

    O fato de o estudante nº 5 resumir o seu desenho em um “boi gordo” exemplifica que a

    produção da memória e da identidade é uma invenção humana, conforme interesses e contextos

    históricos. É recorrente que as cidades construam pórticos em suas entradas principais representando

    sua projeção identitária, neste ponto Xinguara também possui não um pórtico, mas sua placa de

    entrada, seus dizeres identitários que tentam dizer aos que passam e aos ficam a sua identidade local,

    como podemos observar na placa de entrada da cidade, localizada às margens da BR 155:

    Estudante 5- Registro gráfico elaborado por estudante do 9º A.

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    Placa de entrada da cidade, BR 155, Xinguara/PA.

    A reprodução da ideia de “Boi Gordo” acaba ofertando uma ideia de fatura e robustez, todavia,

    muitas vezes as pessoas do lugar não refletem que apesar de estarem em uma “capital do Boi Gordo”,

    estas mesmas pessoas vivem em condições difíceis, que muitas vezes não possuem condições sequer

    de comprarem o essencial para a alimentação diária. Por outro lado, “a capital do boi gordo” custa

    caro ao meio ambiente da região, pois conforme estudo recente do sociólogo Francisco Durães, em

    seu livro A Pata do Boi e os impactos ambientais na região do Araguaia Paraense (2016), o slogan “

    o progresso na pata do boi” é uma falácia do ponto de vista ambiental, pois as fazendas de criação de

    gado na cidade e região foram montadas a custo da derrubada de muitos km de mata nativa, destruição

    do solo e das nascentes dos rios. A grande riqueza do gado não é distribuída na região, pois grande

    parte dos fazendeiros são de outros estados e concentram a arrecadação da produção.

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    A partir das considerações apresentadas demonstramos o quão importante é o trabalho

    com a história local no ensino e na pesquisa histórica, pois enquanto abordagem da História

    contribui para que os estudantes compreendam seu lugar na história, pois é somente

    dimensionando o local e regional é que os alunos conseguem perceber até que ponto os projetos

    de saber e poder os silencia das narrativas da história estudada. O trabalho mediante diagnósticos,

    oficinas, atividades, etc., apontam por um lado que há certo desconhecimento da história local e

    regional; por outro lado, aqueles estudantes que fazem menção a história local/regional assim o

    fazem se remetendo, em boa parte, a temas que acabam por corroborar com imagens que

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    expressam domínios, mando, violência e/ou imagens harmônicas e sem dimensão de conflitos,

    distorções e diferenças sociais, o que é no mínimo estranho para uma região formada a partir de

    inúmeros conflitos e desrespeito aos direitos humanos. É com base nestas expressões da história

    local, que nosso projeto tem buscado desnaturalizar lugares e imagens canônicas do local, pois

    possibilita professores e estudantes questionarem os saberes locais exaltadores dos grandes

    homens e projetos capitalistas, bem como questionarem suas próprias percepções do local, vista

    como história dos pioneiros dominantes ou de modo harmônica, o que na realidade revelam

    formas de exclusão e alienação. Portanto, como aponta Selva Guimarães (2012), o estudo do local

    tem permitido aos estudantes a construção de suas identidades, pois os modos de pertencer e se

    reconhecer estão sendo repensados.

    REFERÊNCIAS

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    Moritz Schwarcz (org.), História da vida privada no Brasil. Volume 4. Companhia das Letras,

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