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DADOS DE COPYRIGHT

Sobre a obra:

A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com oobjetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem comoo simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.

É expressamente proibida e totalmente repudíavel a venda, aluguel, ou quaisquer usocomercial do presente conteúdo

Sobre nós:

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando pordinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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ALGUNS CAPÍTULOS DESTE LIVRO SE PASSAM EM LOCAIS GEOGRAFICAMENTEDETERMINADOS. OS NÚMEROS DO MAPA CORRESPONDEM À NUMERAÇÃO DESSESCAPÍTULOS

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MOBY DICKOU A BALEIA

Em sinal de minhaadmiração por seu gênio,este livro é dedicadoa NATHANIEL HAWTHORNE.

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ETIMOLOGIA(Fornecida pelo finado funcionário tuberculoso de um ginásio)

O lívido funcionário de casaco tão surrado quanto seu coração, corpo e cérebro;vejo-o agora. Estava sempre espanando o pó de seus velhos dicionários egramáticas, com um lenço estranho, grotescamente enfeitado com as alegresbandeiras de todas as nações conhecidas do mundo. Gostava de espanar suasantigas gramáticas; de certo modo, isso o fazia lembrar tranqüilamente de suamortalidade.

“Ao tentar educar os outros, ensinar-lhes o nome por que se designa em nossoidioma um peixe-baleia, omitindo por ignorância a letra H de whale, que por sisó dá significação à palavra, comunica-se algo que não é verdadeiro.” HACKLUYT

“WHALE (BALEIA). Sueco e dinamarquês hvalt. Este animal recebe esse nome por serredondo e roliço; pois em dinamarquês hvalt significa “arqueado” ou“abobadado.” DICIONÁRIO WEBSTER “WHALE. Provém de forma mais direta do holandêse do alemão Wallen; aqui Walw-ian: girar, rolar.” DICIONÁRIO RICHARDSON

.דה Hebraico.Χητος Grego.

CETUS Latim.WHOEL Anglo-saxão.HVALT Dinamarquês.

WAL Holandês.HWAL Sueco.

WHALE Islandês.WHALE Inglês.

BALEINE Francês.BALLENA Espanhol.

PEKEE-NUEE-NUEE Fidjiano.PEKEE-NUEE-NUEE Erromangoano.

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EXCERTOS(Fornecidos por um sub-sub-bibliotecário)

Ver-se-á que este laborioso investigador e escrevinhador, um pobre coitado sub-sub, parece ter percorrido as intermináveis Vaticanas e bancas da terra, colhendotodas as alusões esparsas sobre as baleias que encontrou em todos os tipos delivros, sagrados ou profanos. Por essa razão, não se deve entender, ou ao menosnem sempre se deve entender que as afirmações confusas, embora autênticas,feitas sobre as baleias nestes excertos sejam um verdadeiro evangelho dacetologia. Pelo contrário. No que diz respeito aos autores antigos de um modogeral, assim como aos poetas que aqui aparecem, estes excertos são apenasvaliosos ou divertidos enquanto oferecem uma visão panorâmica do que foi dito,pensado, imaginado e cantado, de modo promíscuo, por muitas nações egerações, inclusive a nossa, sobre o Leviatã.

Portanto, passai bem, pobre-diabo sub-sub, sobre quem teço comentários.Pertenceis a essa tribo pálida e perdida, que nenhum vinho da terra poderáesquentar; e ante quem até o branco xerez seria rosado demais; mas junto aquem às vezes é bom se sentar e se sentir coitado também; e ficar alegre com aslágrimas e dizer-lhes simplesmente, com os olhos cheios e os copos vazios, comuma tristeza não de todo desagradável: Desisti, sub-subs! Pois, quanto mais vosesforceis para agradar ao mundo, mais ficareis sem agradecimentos! Se para vóseu pudesse abrir o caminho para Hampton Court e para as Tulherias! Mas engolivossas lágrimas e correi para o topo do mastro com vossos corações; pois para avossa chegada vossos amigos que já se foram estão esvaziando os sete céus etransformando em fugitivos Gabriel, Miguel e Rafael, por tanto tempo mimados.Aqui só podereis tocar corações estilhaçados, mas lá, lá tocareis os cristaisinquebráveis!

“E Deus criou as grandes baleias.” GÊNESIS “Após si deixa uma vereda luminosa;parece o abismo tornado em brancura de cãs.” JÓ “Ora, Jeová providenciou umgrande peixe para engolir Jonas.” JONAS “Ali andam os navios; e o Leviatã queformaste para nele folgar.” SALMOS “Naquele dia o Senhor castigará com a sua duraespada, grande e forte, o Leviatã, a serpente fugitiva, e o Leviatã, a serpentetortuosa; e matará o dragão que está no mar.” ISAÍAS “E qualquer outra coisa quechegar ao caos da boca deste monstro, seja besta, barca ou pedra, iráimediatamente abaixo, por meio de seu enorme e asqueroso gole, e morrerá noabismo sem fundo de sua barriga.” HOLLAND, ESCRITOS MORAIS DE PLUTARCO “O oceano

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Índico gera a maior parte dos peixes e os mais volumosos que existem: entre eleshá as Baleias e os Redemoinhos, chamados Balaenae, que chegam a ter umaextensão de quatro acres ou jeiras de terra.” HOLLAND, PLÍNIO “Mal estávamos doisdias no mar, quando, ao nascer do sol, apareceram várias Baleias e outrosmonstros do mar. Entre as primeiras havia uma de tamanho monstruoso… Veioem nossa direção, com a boca aberta, levantando ondas de todos os lados eagitando o mar diante de si, formando espuma.” TOOKE, LUCIANO, A VERDADEIRA

HISTÓRIA “Visitou também este país para capturar baleias-cavalo, que tinham pordentes ossos valiosos, dos quais levou alguns ao rei… As melhores baleias eramcapturadas em seu próprio país, das quais umas mediam quarenta e oito jardasde comprimento, outras cinqüenta. Disse que era um dos seis que haviammatado sessenta em dois dias.” RELATO ORAL DE OTHER, OU OCTHER, ANOTADO PELO REI

ALFREDO, A.D. 890 “E, enquanto todas as outras coisas, besta ou embarcação, entramnaquele abismo horroroso da boca do monstro (da baleia) e são engolidas,perdendo-se na mesma hora, o caboz marinho se retira com grande segurança edorme ali.” MONTAIGNE, APOLOGIA DE RAIMOND SEBOND “Fujamos, fujamos! Que o diabome leve se não se trata do Leviatã descrito pelo nobre profeta Moisés na vida dopaciente Jó.” RABELAIS “O fígado daquela baleia enchia duas carroças.” STOWE, ANAIS

“O grande Leviatã que fazia o mar borbulhar como uma panela fervendo.” LORD

BACON, VERSÃO DOS SALMOS “Em relação a esse monstruoso volume da baleia ou orca,nada certo chegou a nós. Engordam excessivamente, tanto que uma quantidadeincrível de óleo pode ser extraída de uma baleia.” LORD BACON, HISTÓRIA DA VIDA E DA

MORTE “O remédio mais soberano na terra para uma lesão interna é oespermacete.” REI HENRIQUE “Muito semelhante a uma baleia.” HAMLET E comonenhuma destreza poderia ajudá-lo na arte da percolação / Volta-se para ocausador da ferida, que, com dardo certeiro, / Seu peito escavou, provocandoimplacável comoção / Como a baleia ferida que através do oceano foge à praia.” ARAINHA DAS FADAS “Imensos como baleias, os movimentos daqueles corpos enormesem perfeita calmaria podem agitar o oceano até que borbulhe.” SIR WILLIAM

DAVENANT, PREFÁCIO PARA GONDIBERT “O que é o espermacete, os homens podem nãosaber, visto que o erudito Hofmannus em sua obra de trinta anos dizfrancamente: Nescio quid sit.” SIR T. BROWNE, DO ESPERMACETE E DA BALEIA (VIDE SEU V.E.)

“Como o Talus de Spencer com seu moderno mangual, / Ameaça ruína com suacauda magistral. / Traz os dardos fixados na lateral, / E nas costas mostra ummatagal.” WALLER, A BATALHA DAS ILHAS SUMMER “Por meio de um artifício é criado essegrande Leviatã, chamado Nação ou Estado (em latim, Civitas), que não é outracoisa a não ser um homem artificial.” SENTENÇA DE ABERTURA DO LEVIATÃ DE HOBBES “Otolo Mansoul engoliu sem mastigar, como se fosse uma sardinha na boca de uma

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baleia.” O CAMINHO DO PEREGRINO “Aquela fera marinha, / O Leviatã, de todas as obrascriadas por Deus é a maior das criaturas vivas / Que nada nas correntes dooceano.” PARAÍSO PERDIDO “Aquele Leviatã, a maior das criaturas vivas, nasprofundezas, / Estirado como um promontório, dorme ou nada, / E parece a terraem movimento; e com suas guelras / Inala, e sua respiração exala um oceano.”IBID. “As poderosas baleias que nadam em um oceano de águas e têm um oceanode óleo nadando dentro delas.” FULLER, O ESTADO PROFANO E SAGRADO “Perto de algumpromontório jaz / O imenso Leviatã cuidando de suas presas, / Sem lhes daroportunidade as engole, / E elas se perdem nas mandíbulas abertas.” DRYDEN, ANNUS

MIRABILIS “Enquanto a baleia flutua à popa do navio, eles cortam sua cabeça e arebocam com um bote para tão perto da praia quanto possível; mas ela ficaencalhada em doze ou treze pés de água.” THOMAS EDGE, DEZ VIAGENS A SPITZBERGEN, EM

PURCHAS “No caminho viram muitas baleias divertindo-se no oceano, enquantopulverizavam a água com seus respiradouros e ventas que a natureza colocou emseus ombros.” VIAGENS DE SIR T. HERBERT PARA ÁSIA E ÁFRICA, HARRIS COLL. “Avistaram ali umbando tão imenso de baleias, que foram forçados a prosseguir com muita cautela,por medo de que o navio fosse abalroado por alguma delas.” SCHOUTEN, SEXTA

CIRCUNAVEGAÇÃO “Partimos do Elba, vento NE, no navio chamado Jonas na Baleia.(…) Dizem alguns que a baleia não pode abrir a boca, mas isso é uma fábula. (…)Sobem com freqüência aos mastros para ver se avistam a baleia, pois o primeiro adescobrir recebe um ducado pelo esforço. (…) Contaram-me de uma baleiaaprisionada perto de Hitland, que tinha mais de uma barrica de arenques nabarriga. (…) Um de nossos arpoadores contou-me haver apanhado uma baleia emSpitzbergen que era toda branca.” UMA VIAGEM À GROENLÂNDIA, A.D. 1671, HARRIS COLL.

“Várias baleias vieram a esta costa (Fife). Em 1652, uma baleia medindo oitentapés de comprimento, que (assim me informaram) além de uma grandequantidade de óleo, proporcionou 500 pesos de ossos. As mandíbulas servem deportão para o jardim de Pitfirren.” SIBBALD, FIFE AND KINROSS “Concordei em tentardominar e matar este Cachalote, pois jamais soube que algum dessa espécietivesse sido morto por algum homem, tal a sua ferocidade e rapidez.” CARTA DAS

BERMUDAS DE RICHARD STRAFFORD. PHIL. TRANS. A.D. 1668. “As baleias no mar / À voz deDeus obedecem.” N. E. PRIMER “Vimos também uma abundância de baleiasenormes, havendo em maior quantidade nestes Mares do Sul, se assim possodizer, na proporção de cem para uma; do que as há ao norte de nós.” A VIAGEM AO

REDOR DO MUNDO DO CAPITÂO COWLEY, A.D. 1729. “e o hálito da baleia é freqüentementeacompanhado de um cheiro tão insuportável que causa uma perturbação nocérebro.” ULLOA, A AMÉRICA DO SUL “A cinqüenta sílfides de destaque / E de saias, oimportante dever foi confiado. / Soubemos ter o muro de sete dobras sucumbido

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ao ataque, / Apesar de com aros forrado e em ossos da baleia armado.” [POPE,] AMECHA ROUBADA “Se compararmos a magnitude dos animais da terra com os quevivem nas profundezas, veremos que parecerão desprezíveis na comparação. Abaleia é sem dúvida o maior animal da criação.” GOLDSMITH, HISTÓRIA NATURAL “Seescreveres uma fábula para os peixinhos, faz com que falem como grandesbaleias.” GOLDSMITH A JOHNSON “À tarde vimos o que parecia ser um rochedo, masdescobrimos ser uma baleia morta, que alguns asiáticos haviam matado eestavam rebocando para a praia. Eles pareciam se esforçar para se esconder atrásda baleia, para não serem vistos por nós.” COOK, VIAGENS “As maiores baleias elesraramente ousam atacar. Eles têm tanto medo de algumas delas, que receiamdizer seus nomes e quando vão ao mar levam estrume, calcário, junípero e outrascoisas do mesmo tipo em seus botes para assustá-las e impedir que seaproximem.” UNO VON TROIL, CARTAS SOBRE A VIAGEM DE BANKS E SOLANDER À ISLÂNDIA EM 1772

“O cachalote encontrado pelos nativos de Nantucket é um animal feroz e agitado,que exige uma enorme coragem e audácia dos pescadores.” MEMORIAL SOBRE A

BALEIA, DE THOMAS JEFFERSON PARA O MINISTRO FRANCÉS EM 1778 “E pergunto-vos, senhor,que se lhe pode comparar nesse mundo?” EDMUND BURKE, REFERÊNCIA NO PARLAMENTO À

PESCA DE BALEIAS EM NANTUCKET “A Espanha: uma grande baleia ancorada nas praiasda Europa.” EDMUND BURKE (EM ALGUMA PARTE) “Um décimo dos rendimentos regularesdo rei, que se dizem baseados no fato de ele guardar e proteger os mares dospiratas e ladrões, é o direito aos peixes reais, que são a baleia e o esturjão. Estes,quando atirados à praia ou apanhados perto da costa, são propriedade do rei.”BLACKSTONE “Em breve para o jogo da morte se dirige a tripulação: / Rodmondlevanta sobre a cabeça com exatidão, / Atento ao seu objetivo, o arpão de aço.”FALCONER, O NAUFRÁGIO “Luziam o telhado, o pináculo e o campanário / E no céuvoava um foguete, / Para suspender seu fogo efêmero / Em toda a abóbadaceleste. / / Assim, comparando o fogo com a água, / O oceano nas alturas /Levantado pela baleia, / Para expressar sua estranha alegria.” COWPER, SOBRE A VISITA

DA RAINHA A LONDRES “De quarenta a sessenta litros de sangue são lançados docoração de uma vez, com enorme velocidade.” RELATO DE JOHN HUNTER SOBRE A

DISSECCAÇÃO DE UMA BALEIA (PEQUENA) “A aorta da baleia é de diâmetro maior do que ocano principal do sistema hidráulico da Torre de Londres, e a água que passa porali tem menos ímpeto e velocidade do que o sangue que jorra de seu coração.”PALEY, TEOLOGIA “A baleia é um animal mamífero sem patas traseiras.” BARÃO CUVIER

“A 40 graus de latitude sul avistamos os cachalotes, mas não pegamos nenhumantes do primeiro de maio, quando o mar estava coberto deles.” COLNETT, VIAGEM

COM O PROPÓSITO DE FOMENTAR A PESCA DOS CACHALOTES “No livre elemento sob mimnadavam, / Deslizavam e mergulhavam, brincando, caçando, brigando / Peixes de

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todas as cores, formas e tipos; / Que a língua não pode pintar e os marinheiros /Nunca tinham visto; desde o terrível Leviatã / Até os milhões de insetos quepovoam as ondas: / Reunidos em imensos cardumes, como ilhas flutuantes, /Levados por misteriosos instintos através da erma / E isolada região, embora detodos os lados / Os atacassem inimigos vorazes, / Baleias, tubarões e monstrosarmados na cabeça ou na boca, / Com espadas, serrotes, chifres em espirais oupresas curvas.” MONTGOMERY, O MUNDO ANTES DO DILÚVIO “Io! Peã! Io! Cantai. / Ao rei dopovo písceo. / Cachalote mais poderoso / Não há em todo o vasto Atlântico; /Nenhum peixe mais portentoso, / Circula ao redor do mar Ártico.” CHARLES LAMB, O

TRIUNFO DA BALEIA “No ano de 1690, algumas pessoas estavam numa colinaobservando baleias a correr e a brincar, quando alguém, apontando para o mar,disse: ali é o pasto verde onde os netos de nossos filhos irão se alimentar.” OBED

MACY, HISTÓRIA DE NANTUCKET “Construí uma casa para Susan e para mim, e fiz umportão com a forma de um arco gótico, usando os ossos da mandíbula da baleia.”HAWTHORNE, CONTOS NARRADOS DUAS VEZES “Ela veio encomendar um monumento paraseu primeiro amor, morto por uma baleia, no oceano Pacífico, há não menos dequarenta anos.” IBIDEM “Não, senhor, é uma baleia franca, respondeu Tom. Eu a vicuspir, lançou para o ar um lindo par de arco-íris, desses que qualquer cristãogostaria de ver. Uma verdadeira barrica de óleo era ela!” COOPER, O PILOTO

“Trouxeram os jornais e lemos na Berlin Gazette que as baleias tinham sidoencenadas ali.” ECKERMANN, CONVERSAS COM GOETHE “Meu Deus! Sr. Chace, o que estáacontecendo?” Respondi, “acabamos de ser destroçados por uma baleia.”NARRATIVA DO NAUFRÁGIO DA BALEEIRA ESSEX DE NANTUCKET, QUE FOI ATACADA E POR FIM

DESTRUÍDA POR UM ENORME CACHALOTE NO OCEANO PACÍFICO. POR OWEN CHACE DE NANTUCKET,

PRIMEIRO PILOTO DO REFERIDO NAVIO. NOVA YORK, 1821 “Certa noite pôs-se na enxárcia ummarinheiro, / O vento soprava ameno; / Ora claro, ora apagado, o luar estavapálido, / E o fósforo brilhava na esteira da baleia, / Enquanto ela se afastavaoceano afora.” ELIZABETH OAKES SMITH “A quantidade de corda retirada dos botesencarregados de capturar aquela única baleia era de 10.440 jardas ou quase seismilhas inglesas. (…) Às vezes a baleia agita sua enorme cauda no ar, que,semelhante a um açoite, ressoa a uma distância de três ou quatro milhas.”SCORESBY “Enlouquecido pela agonia sofrida nos renovados ataques, o furiosocachalote fica rolando; levanta sua enorme cabeça e com a mandíbulaescancarada abocanha tudo à sua volta; atira a cabeça contra os botes, que sãoempurrados para a frente com enorme rapidez e às vezes são totalmentedestruídos. (…) É motivo de grande espanto que as considerações sobre os hábitosde um animal tão interessante e tão importante do ponto de vista comercial(como o cachalote) tenham sido tão negligenciadas, ou que tenham exercido tãopouca curiosidade nos inúmeros e, muitos deles, competentes observadores, que

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nos últimos anos têm tido as mais abundantes e mais adequadas oportunidadesde testemunhar os seus costumes.” THOMAS BEALE, HISTÓRIA DO CACHALOTE, 1839 “OCachalot (cachalote) não só está mais bem armado do que a Baleia Franca (Baleiada Groenlândia ou verdadeira), por ter uma arma formidável em cadaextremidade do corpo, como também demonstra freqüentemente a disposição deempregar tais armas de modo ofensivo, a um tempo tão astuto, arrojado emaldoso, que pode ser julgado o ataque mais perigoso de todas as espéciesconhecidas de baleias.” FREDERICK DEBELL BENNETT, VIAGEM DE CAÇA ÀS BALEIAS AO REDOR DO

MUNDO, 1840 13 de Outubro. “Lá ela sopra”, gritaram do mastro. “Onde?”,perguntou o capitão. “A três pontos da proa, a sotavento, senhor.” “Segura o leme.Firme!” “Firme, senhor.” “Gajeiro! Ainda avistas a baleia?” “Sim, sim, senhor! Umbaleal! Lá ela sopra! Lá ela irrompe!” “Grite! Grite todas as vezes!” “Sim, sim,senhor! Lá ela sopra! lá – lá – lá ela sopra – sopra – so-p-ra!” “A que distância?”“Duas milhas e meia.” “Trovão e relâmpagos! Tão perto! Chama todos osmarinheiros.” J. ROSS BROWNE, GRAVURAS DE UMA VIAGEM BALEEIRA, 1846 “A baleeira Globe,a bordo da qual se passaram os horríveis acontecimentos que vamos narrar,pertencia à ilha de Nantucket.” NARRATIVA DO GLOBE FEITA PELOS SOBREVIVENTES LAY E

HUSSEY. A.D. 1828. “Sendo uma vez perseguido por uma baleia que tinha ferido, eleevitou o ataque por algum tempo com uma lança; mas o monstro furioso afinalprecipitou-se sobre o bote, e ele e os companheiros só escaparam porque sejogaram na água quando perceberam que o ataque era inevitável.” TYERMAN E

BENNETT, DIÀRIO DAS MISSÕES. “Nantucket”, disse o Sr. Webster, “é uma região muitosurpreendente, especial e de interesse nacional. A população é de oito ou novemil pessoas vivendo no mar, contribuindo anualmente, de forma significativa,para a riqueza nacional, por meio da indústria mais corajosa e perseverante detodas.” REGISTRO DO DISCURSO DE DANIEL WEBSTER NO SENADO DOS ESTADOS UNIDOS SOBRE A

PETIÇÃO PARA QUE SE FIZESSE UM QUEBRA-MAR EM NANTUCKET. 1828. “A baleia caiu em cimadele e provavelmente o matou no mesmo instante.” “A BALEIA E SEUS CAPTURADORES, OU

AS AVENTURAS DOS BALEEIROS E A BIOGRAFIA DA BALEIA, NO CRUZEIRO DE VOLTA DO COMODORO

PREBLE.” PELO REV. HENRY T. CHEEVER. “Se fizeres qualquer barulho”, disse Samuel, “temando para o inferno.” VIDA DE SAMUEL COMSTOCK (O REVOLTOSO), POR SEU IRMÃO, WILLIAM

COMSTOCK. OUTRA VERSÃO DA NARRATIVA DA BALEEIRA GLOBE “As viagens dos holandeses eingleses no oceano Boreal com o objetivo de descobrir uma passagem para aÍndia, embora fracassassem no seu intuito principal, iniciaram as perseguições àsbaleias.” MCCULLOCH, DICIONÁRIO COMERCIAL “Essas coisas são recíprocas; a bola voltapara ir de novo para a frente; ao iniciar as perseguições às baleias, os baleeirosparecem ter encontrado indiretamente novas oportunidades para a mesmapassagem mística a noroeste.” DE “ALGO” INÉDITO “É impossível encontrar umabaleia sem ficar impressionado com sua aparição tão próxima. Com as velas

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colhidas e os vigias no topo dos mastros, olhando, ansiosos, toda a extensão à suavolta, a embarcação tem uma aparência completamente diferente dos barcos emviagens comuns.” CORRENTES E PESCA DA BALEIA. EX. EX. DOS EUA “Pedestres nos arredoresde Londres ou em outros lugares talvez se lembrem de ter visto enormes ossoscurvados enterrados na terra, em forma de arcos sobre os portões, ou sobre asentradas de alcovas, e talvez alguém lhes tivesse dito que eram costelas debaleias.” CONTOS DE UM VIAJANTE BALEEIRO NO OCEANO ÁRTICO “Só quando os botesvoltaram da caça às baleias foi que os brancos viram seu navio na posse sangrentados selvagens que embarcaram com a tripulação.” NOTÍCIA DE JORNAL SOBRE A TOMADA

E A RETOMADA DA BALEEIRA HOBOMACK “Sabe-se que das tripulações que compõem osnavios baleeiros (norte-americanos) muito poucos voltam a bordo dos mesmosnavios em que partiram.” CRUZEIRO EM UMA BALEEIRA “De repente uma massapoderosa emergiu das águas e se lançou perpendicularmente no ar. Era umabaleia.” MIRIAM COFFIN OU O PESCADOR DE BALEIAS “A Baleia é arpoada, certo; mas penseem como você lidaria com um poderoso potro indomável que estivesse comapenas uma simples corda amarrada na raiz de seu rabo.” UM CAPÍTULO SOBRE A PESCA

DE BALEIAS EM RIBS AND TRUCKS “Em certa ocasião vi dois desses monstros (baleias),provavelmente um macho e uma fêmea, nadando devagar, um após o outro, amenos de uma pedrada de distância da praia” (Terra do Fogo), “sobre a qual umafaia estendia suas ramagens.” DARWIN, VIAGEM DE UM NATURALISTA “‘Todos à popa!’exclamou o piloto, quando, ao virar a cabeça, viu as mandíbulas escancaradas deum enorme cachalote próximo à ponta do bote, ameaçando-o de imediatadestruição: ‘Todos à popa, por suas vidas!’” WHARTON, O MATADOR DE BALEIAS “Semprealegres, rapazes, não percam a veia, / Enquanto o bravo arpoador a baleiagolpeia!” CANÇÃO DE NANTUCKET “Oh, preciosa baleia, com vento ou temporal, /Sempre no oceano seu lar / Será um gigante de força descomunal, / E a Soberanado infinito mar.” CANÇÃO DA BALEIA

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1 MIRAGENS

Trate-me por Ishmael. Há alguns anos – não importa quantos aocerto –, tendo pouco ou nenhum dinheiro no bolso, e nada em especial que meinteressasse em terra firme, pensei em navegar um pouco e visitar o mundo daságuas. É o meu jeito de afastar a melancolia e regular a circulação. Sempre quecomeço a ficar rabugento; sempre que há um novembro úmido e chuvoso emminha alma; sempre que, sem querer, me vejo parado diante de agênciasfunerárias, ou acompanhando todos os funerais que encontro; e, em especial,quando minha tristeza é tão profunda que se faz necessário um princípio moralmuito forte que me impeça de sair à rua e rigorosamente arrancar os chapéus detodas as pessoas – então percebo que é hora de ir o mais rápido possível para omar. Esse é o meu substituto para a arma e para as balas. Com garbo filosófico,Catão corre à sua espada; eu embarco discreto num navio. Não há nada desurpreendente nisso. Sem saber, quase todos os homens nutrem, cada um a seumodo, uma vez ou outra, praticamente o mesmo sentimento que tenho pelooceano.

Eis a cidade insular dos manhattoes, rodeada pelo cais como o são as ilhasindígenas por recifes de corais – o comércio a cerca com sua ressaca. À direita e àesquerda, as ruas levam ao mar. No seu extremo sul fica Battery, onde o ilustrequebra-mar é lavado por ondas e refrescado por brisas, que poucas horas antessopravam no mar alto. Veja o grupo de pessoas que ali contempla a água.

Perambule pela cidade numa tarde etérea de sábado. Vá de Corlears Hook paraCoenties Slip e de lá para o norte, via Whitehall. O que se vê? Plantados comosentinelas silenciosas por toda a cidade, milhares e milhares de pobres mortaisperdidos em fantasias oceânicas. Alguns encostados nos pilares; outros sentadosde um lado do cais; ou olhando sobre a amurada de navios chineses; ou, aindamais elevados, no cordame, como que tentando conseguir dar uma olhada aindamelhor no mar. Mas estes são todos homens de terra; que nos dias da semanaestão enclausurados em ripas e estuques – cravados em balcões, pregados emassentos, fincados em escrivaninhas. O que é isso, então? Acabaram-se as verdespradarias? O que eles fazem ali?

Mas veja! Aí vem mais gente, caminhando em direção à água e aparentementechegando para um mergulho. Estranho! Nada parece contentá-los, salvo o limitemais extremo da terra; flanar sob a sombra protetora dos armazéns não é osuficiente. Não. Eles têm de chegar o mais perto possível da água sem cair dentro

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dela. E ali permanecem – milhares deles – a perder a conta. Todos de terra firme,vêm de becos e vielas, de ruas e avenidas – de norte, leste, sul e oeste. Mas aquiestão todos unidos. Diga-me, é a excelência magnética das agulhas das bússolasde todos esses navios que os atrai para ali?

E tem mais. Digamos, você está no campo, numa região montanhosa de lagos.Praticamente qualquer trilha que você escolha, nove em cada dez o levarão a umvale, perto do poço de um rio. Existe uma mágica nisso. Se o mais distraído doshomens estiver mergulhado em seus sonhos mais profundos – coloque essehomem de pé, ponha-o para andar, e não tenha dúvida de que ele o levará até aágua, se houver água em toda essa região. Se você mesmo estiver com sede noimenso deserto norte-americano, faça a experiência, caso encontre em suacaravana um professor de metafísica. Pois, como todos sabem, a meditação e aágua estão casadas para todo o sempre.

Mas eis um artista. Ele deseja pintar a paisagem romântica mais sedutora, maisumbrosa, mais tranqüila e encantadora de todo o vale do Saco. Qual é o elementoprincipal que ele emprega? Lá estão suas árvores, todas com o tronco oco, comose abrigassem um eremita e seu crucifixo; e aqui dorme seu prado, e ali dormeseu gado; e lá, daquela casinha, sobe uma fumaça sonolenta. No fundo do bosquedistante corre um caminho sinuoso, chegando a picos sobrepostos de montanhasimersas no azul de suas encostas. Mas, por mais arrebatadora que seja a cena, e opinheiro se desfaça em suspiros como as folhas sobre a cabeça de tal camponês,tudo isso seria vão, caso os olhos do camponês não estivessem fixados na mágicacorrenteza diante dele. Visite as pradarias em junho, quando, por dezenas edezenas de milhas, você caminha por entre lírios até os joelhos – qual é o únicoencanto que falta? – Água – não há uma gota de água por ali! Se Niágara fosseuma catarata de areia, você viajaria milhares de milhas para vê-la? Por que opobre poeta do Tennessee, ao receber dois punhados de moedas, hesitou entrecomprar um casaco, do qual, infelizmente, precisava, e investir seu dinheiro emuma prosaica viagem para a praia de Rockaway? Por que quase todo rapaz forte esaudável e provido de espírito forte e saudável, numa ocasião ou noutra, ficalouco para ir ao mar? Por que em sua primeira viagem como passageiro vocêsentiu aquela vibração mística, quando lhe disseram que você e o navio estavamfora do alcance dos olhos da terra? Por que os antigos Persas consideravam o marsagrado? Por que os Gregos lhe atribuíram uma divindade separada e fizeramdele o próprio irmão de Jove? Tudo isso certamente tem um significado. E aindamais profundo é o significado da história de Narciso, que, por não conseguirchegar à imagem provocativa e difusa que viu na fonte, nela mergulhou e seafogou. Mas nós vemos essa mesma imagem em todos os rios e oceanos domundo. É a imagem do insondável fantasma da vida; e esta é a chave de tudo.

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Ora, quando digo que tenho o hábito de ir ao mar sempre que começo a sentiruma névoa nos olhos e me preocupar demais com os meus pulmões, não éminha pretensão dar a entender que alguma vez eu tenha ido como passageiro.Para ir como passageiro é preciso ter uma carteira, e uma carteira é somente umtrapo se não tiver alguma coisa dentro dela. Além disso, os passageiros enjoam –tornam-se briguentos –, não dormem à noite – não se divertem muito, em geral;não, eu nunca vou como passageiro; tampouco, embora faça o tipo demarinheiro, embarco como Comodoro, Capitão ou Cozinheiro. Deixo a glória e adistinção de tais postos para os que gostam disso. Abomino todas as tarefas, testese tribulações honrosas e respeitáveis de qualquer tipo. Tomar conta de mimmesmo, sem me ocupar de navios, barcas, brigues, escunas e outras embarcaçõesé tudo o que sei fazer. Quanto ao emprego de cozinheiro – embora deva admitirque há muita glória nisso, pois o cozinheiro é uma espécie de oficial a bordo –, averdade é que nunca até hoje gostei de assar aves; – ainda que, uma vez assada,judiciosamente amanteigada, e salgada e apimentada segundo a jurisprudência,não exista ninguém que fale sobre uma galinha assada com mais respeito, paranão dizer com mais reverência, do que eu. Deve-se à idolatria estúpida dosantigos Egípcios por íbis assados e hipopótamos grelhados a existência dasmúmias dessas criaturas em seus fornos gigantescos, as pirâmides.

Não, quando vou ao mar, vou como marinheiro raso, logo à frente do mastro,no prumo do castelo de proa ou no topo do mastaréu de joanete. É verdade querecebo ordens, fazem-me saltar de verga em verga, como um gafanhoto numprado em maio. E, a princípio, esse tipo de coisa é bastante desagradável. Fere osentimento de honra, sobretudo quando você descende de uma família antiga, hámuito estabelecida no país, como os Van Rensselaers, Randolphs, ouHardicanutes. E mais ainda, se pouco antes de botar a mão no barril de alcatrãovocê a teve em pleno domínio como professor no campo, fazendo com que osalunos maiores se curvassem de medo diante de você. A mudança de professorpara marinheiro é brutal, posso garantir, e exige forte decocção de Sêneca e dosestóicos para agüentá-la com sorrisos. Mas até isso passa com o tempo.

E daí se um caco velho, um capitão decrépito me der a ordem de pegar umavassoura e varrer os conveses? Qual é o valor dessa infâmia, quero dizer, se pesadana balança do Novo Testamento? Você acredita que o arcanjo Gabriel terá menosconsideração por mim só porque obedeci com presteza e respeito a um velhomiserável? Quem não é escravo? Responda essa. Pois bem, por mais que velhoscapitães me dêem ordens, por mais que me dêem bordoadas e murros, tenho asatisfação de saber que está tudo certo, que todos os homens, de um jeito ou deoutro, serviram do mesmo modo – isto é, tanto da perspectiva física quantometafísica; e, assim, a bordoada universal dá a volta, e todos deveriam trocar

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tapinhas nas costas e dar-se por satisfeitos.Como disse, sempre vou ao mar como marinheiro, pois fazem questão de me

pagar pelo pepino, ao passo que não pagam, que eu saiba, um centavo sequer aospassageiros. Pelo contrário, são os passageiros que têm de pagar. E existe toda adiferença do mundo entre pagar e ser pago. O ato de pagar talvez seja o castigomais desagradável que os dois ladrões do jardim nos legaram. Mas ser pago – oque se pode comparar a isso? A atividade urbana pela qual um homem recebedinheiro é mesmo maravilhosa, considerando-se que acreditamos que o dinheiroesteja na raiz de todos os males terrenos, e que em hipótese alguma um homemendinheirado possa entrar no reino dos céus. Ah!, com que alegria nosentregamos à perdição!

Por fim, sempre vou ao mar como marinheiro por causa do exercício saudávele do ar puro do castelo de proa. Pois neste mundo os ventos de proa são maisfreqüentes do que os ventos de popa (isto é, se você não violar a máxima dePitágoras), e assim, na maior parte das vezes, o Comodoro no tombadilhosuperior recebe dos marinheiros do castelo um ar de segunda mão. Ele pensa querespira primeiro, mas não é assim. De um modo muito parecido, a plebe está àfrente de seus líderes em muitas outras coisas, enquanto os líderes nemsuspeitam disso. Mas por que motivo eu, depois de ter sentido o cheiro do martantas vezes como marinheiro mercante, decidiria naquela ocasião partir numaviagem de pesca de baleias, isso o policial invisível das Parcas, que sempre mevigia, que me atormenta em segredo e que me influencia de um modoincalculável – ele pode responder a isso melhor do que qualquer um. Semdúvida, minha participação nessa viagem baleeira fazia parte do programa maiorda Providência, que fora traçado muito tempo antes. Apareceu como uma espéciede breve interlúdio e solo em meio a apresentações mais longas. Creio que essaparte da programação diria algo mais ou menos assim:

GRANDE DISPUTA ELEITORAL PELA

PRESIDÊNCIA DOS ESTADOS UNIDOSViagem baleeira de um certo IshmaelBATALHA SANGRENTA NO AFEGANISTÃO

Embora eu não saiba dizer exatamente o porquê de os diretores de cena, asParcas, terem me dado esse papel mesquinho numa viagem baleeira, enquantooutros foram escolhidos para papéis magníficos em tragédias elevadas, papéiscurtos e fáceis em comédias elegantes e papéis divertidos em farsas – muitoembora não saiba exatamente o porquê disso; ainda assim, agora que rememorotodas as circunstâncias, creio entender um pouco as causas e os motivos que,

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sendo astutamente apresentados a mim sob vários disfarces, me induziram afazer o papel que fiz, afora a lisonjeira ilusão de se tratar de uma escolharesultante de meu imparcial livre-arbítrio e juízo perspicaz.

Principal dentre esses motivos foi a extraordinária idéia da grande baleia em simesma. Um monstro tão portentoso e misterioso despertava toda a minhacuriosidade. Depois, os mares remotos e selvagens onde se movia a sua massainsular, os perigos indescritíveis e inomináveis da baleia; isso tudo, com todas asmaravilhas dos milhares de paisagens e sons da Patagônia, ajudou a influenciarmeu desejo. Para outros homens, talvez, coisas assim não servissem de estímulo;mas, para mim, sou atormentado por um desejo permanente de coisas distantes.Adoro viajar por mares proibidos e desembarcar em costas selvagens. Sem ignoraro que é bom, sou rápido em perceber o horror, e poderia ficar bem com ele – seme deixassem –, uma vez que é bom manter relações amigáveis com osmoradores do lugar onde se vive.

Assim, por todas essas coisas, a viagem baleeira foi bem-vinda; as grandescomportas do mundo das maravilhas se abriram e, na presunção arrebatadoraque me impeliu a meu propósito, de duas em duas ali flutuavam, para dentro deminha alma, procissões intermináveis de baleias, e, no meio de todas elas, umgrande fantasma encapuzado, parecendo uma montanha de neve suspensa no ar.

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2 O SACO DE VIAGEM

Coloquei uma ou duas camisas no meu velho saco deviagem, prendi-o embaixo do braço e parti rumo ao cabo Horn e ao Pacífico.Deixando a boa cidade da velha Manhatto, logo cheguei a New Bedford. Foi emdezembro, numa noite de sábado. Fiquei muito decepcionado ao saber que opequeno paquete para Nantucket já havia partido e que não encontraria outromeio de transporte até a segunda-feira seguinte.

Visto que a maioria dos jovens candidatos às dores e aos castigos da pesca debaleias sempre se detém em New Bedford, para daí embarcar em suas viagens,devo relatar que eu, por mim, não tive essa intenção. Estava decidido a navegarsomente numa embarcação de Nantucket, porque havia algo de belo e impetuosoem tudo que se relacionava àquela famosa ilha, que me agradava sobremaneira.Além disso, apesar de New Bedford estar cada vez mais monopolizando ocomércio baleeiro, deixando a velha e pobre Nantucket para trás, a verdade é queNantucket foi seu modelo grandioso – a Tiro dessa Cartago –; o lugar ondeencalhou a primeira baleia norte-americana morta. De onde, a não ser deNantucket, sairiam de canoa os baleeiros nativos, os peles-vermelhas, para pelaprimeira vez caçar o Leviatã? De onde, a não ser de Nantucket também, zarpariaa primeira chalupa aventureira, em parte carregada com paralelepípedosimportados – assim reza a história –, para serem atirados nas baleias, com ointuito de descobrir se estas estavam tão próximas que se poderia arriscar umarpão do gurupés?

Ora, como eu tinha ainda que passar uma noite, um dia e mais outra noite emNew Bedford antes de embarcar para o meu porto de destino, comecei a mepreocupar com um lugar para comer e dormir nesse meio tempo. Era uma noiteduvidosa, não, uma noite muito escura e lúgubre, de frio cortante e melancólica.Não conhecia ninguém naquele lugar. Depois de ansiosa procura, encontreiapenas umas moedas de prata no meu bolso, – Bem, aonde quer que você vá,Ishmael, disse a mim mesmo, parado no meio de uma rua triste, com o saco deviagem no ombro, comparando a escuridão do norte com as trevas do sul, – ondequer que, em seu juízo, você decida se alojar por esta noite, meu caro Ishmael,não se esqueça de perguntar pelo preço, e não seja muito exigente.

Com passos hesitantes, andei pelas ruas, passei diante da placa ArpõesCruzados – estalagem que me pareceu cara e agitada demais. Mais adiante, dafulgurante janela vermelha da estalagem Peixe-Espada saíam uns feixes de luz tão

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ardentes, que pareciam ter derretido a neve e o gelo acumulados diante da casa,pois em todas as outras partes havia uma camada espessa de gelo de dezpolegadas que cobria a calçada numa dura pavimentação de asfalto – cujassaliências eram dolorosas para mim, porque a sola de minha bota, de tantosserviços duros e impiedosos, estava num estado lastimável. Cara e agitada demais,pensei de novo, parando um instante para observar a luz ofuscante na rua e ouviro tilintar dos copos de dentro. Continue, Ishmael, disse afinal; não ouviu? Saia dafrente dessa porta, suas botas remendadas estão atrapalhando o caminho. E assimfui embora. Por instinto, segui as ruas que conduziam ao mar, pois, sem dúvidaalguma, lá estariam as estalagens mais baratas e talvez mais acolhedoras.

Que ruas sinistras! Dos dois lados, quadras de escuridão, não de casas, e aqui eali uma vela, como a que se movesse numa sepultura. Àquela hora da noite doúltimo dia da semana, aquele quarteirão da cidade parecia tudo, menos deserto.Dentro em pouco vi uma luz enfumaçada, vinda de um prédio baixo e largo, cujaporta se encontrava hospitaleiramente aberta. Tinha um aspecto descuidado,como se fosse para o uso público; assim, ao entrar, a primeira coisa que fiz foitropeçar numa caixa de cinzas na varanda. Ah!, pensei, Ah!, enquanto aspartículas voadoras quase me sufocavam, seriam estas as cinzas daquela cidadedestruída, Gomorra? Mas “Arpões Cruzados” e “Peixe-Espada”? – Esta deve ser,então, a placa de “A Armadilha”. Mas logo me recompus e, ouvindo uma voz altavinda de dentro, empurrei e abri uma segunda porta interna.

Parecia o grande Parlamento Negro reunido em Tofet. Cem rostos negrosviraram-se para olhar; mais adiante, um Anjo Negro do Juízo Final socava umlivro no púlpito. Era uma igreja de negros; e o texto do pregador versava sobre aescuridão das trevas, e sobre os choros e os lamentos e os dentes que ali rangiam.Ah! Ishmael, murmurei ao sair, que péssimo espetáculo sob a placa de “AArmadilha”!

Prosseguindo, cheguei afinal a uma luz externa, perto do cais, e ouvi umrangido sem esperança no ar; olhando para cima, vi uma tabuleta que balançavaem cima da porta com uma pintura branca, que representava vagamente um jatocomprido e reto de espuma enevoada, este subscrito com as seguintes palavras –Estalagem do Jato: – Peter Coffin [caixão].

Caixão? – Baleia? – Essa associação é tão agourenta, pensei. Mas dizem que éum nome comum em Nantucket, e acredito que este Peter aqui tenha vindo delá. Como a luz era fraca, e o lugar, pela hora, parecia bastante tranqüilo, e aprópria casinha de madeira estragada parecia ter sido carregada para lá dasruínas de um bairro incendiado, e como a placa oscilante rangia com uma certapobreza, achei que aqui era o lugar certo para uma acomodação barata e omelhor chá de ervilhas.

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Era um lugar esquisito – uma velha casa, terminada em empena, com um ladoparalisado, por assim dizer, tristemente curvada para a frente. Ficava numaesquina aguda e desolada, onde aquele tempestuoso vento Euroaquitão fazia umuivo pior do que em torno da embarcação sacolejada do pobre Paulo. Nãoobstante, o Euroaquitão é um zéfiro muito agradável para os que estão dentro decasa, com os pés perto da lareira, preparando-se para deitar. “Ao julgar aquelevento tempestuoso chamado Euroaquitão”, diz um velho escritor – de cujas obraseu tenho o único exemplar que sobreviveu –, “faz uma diferença enorme seolhares de uma janela de vidro, com o gelo do lado de fora, ou se o observares dajanela sem caixilho, com o gelo de ambos os lados e da qual a Morte veloz é oúnico vidraceiro.” Quando essa passagem me ocorreu, pensei – falaste bem,Antigo. Sim, estes olhos são as janelas e este meu corpo é a casa. Que pena quenão fecharam as fendas e as rachaduras com um pouco de linho aqui e ali. Masagora é tarde demais para fazer qualquer melhoria. O universo está terminado; aúltima pedra foi colocada, e os restos levados embora há um milhão de anos.Pobre Lázaro, batendo os dentes contra o meio-fio que tem como travesseiro,sacudindo os farrapos com seus tremores, você poderia tampar o ouvido comtrapos e colocar uma espiga de milho na boca e, ainda assim, não conseguiriaproteger-se do tempestuoso Euroaquitão. Euroaquitão!, diz o velho rico, em seuroupão de seda vermelho (depois teve um mais vermelho) – Ora! Que bela noitegelada; como Órion cintila; que aurora boreal! Que falem de seus climas deverões orientais com estufas sempiternas; quero ter o privilégio de fazer meupróprio verão com meu próprio carvão.

Mas o que pensa Lázaro? Pode aquecer as suas mãos azuis com a magníficaaurora boreal? Lázaro não teria preferido estar em Sumatra em vez de aqui? Nãoteria preferido se esticar na linha do Equador? Sim, deuses! Descer ao próprioinferno para se proteger desse gelo?

Ora, é mais maravilhoso que Lázaro se tenha atracado na calçada diante daporta de Dives do que se uma montanha de gelo tivesse sido ancorada em umadas Molucas. O próprio Dives vive como um Czar num palácio de gelo feito delamentos congelados e, como presidente de uma sociedade de moderação, apenasbebe as lágrimas tépidas dos órfãos.

Mas basta de pranto; nós vamos a uma pesca baleeira e ainda há muito pelafrente. Vamos tirar o gelo de nossos pés gelados e ver que tipo de lugar é essaEstalagem do Jato.

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3 A ESTALAGEMDO JATO

Entrando pelo frontão da Estalagem do Jato, chegava-se a umvestíbulo espaçoso, baixo e estranho, com lambris antiquados,

que lembrava a amurada de uma velha embarcação condenada. De um ladopendia um enorme quadro a óleo, tão inteiramente manchado de fumaça e tãoapagado, que, pelas luzes cruzadas e desiguais em que era visto, só depois deuma análise minuciosa e uma série de visitas sistemáticas, além de umacuidadosa pesquisa com os vizinhos, se poderia chegar a alguma compreensão desua proposta. Havia um volume tão grande de tons e sombras inexplicáveis que, aprincípio, quase se podia achar que um jovem artista ambicioso, da época dasbruxas da Nova Inglaterra, tinha tentado desenhar o caos sob feitiço. Mas à forçade muita e séria contemplação, meditação exaustiva, e, especialmente, abrindo ajanelinha no fundo da recepção, chegava-se enfim à conclusão de que, ainda queexagerada, tal idéia não era de todo injustificada.

Mas o que mais intrigava e confundia era a massa alongada, difusa e negra deuma coisa que pairava no centro do quadro, por sobre três linhas azuis,indistintas e perpendiculares, que flutuava numa espuma indefinível. Um quadroverdadeiramente molhado, enlameado e alagado, capaz de perturbar um homemdoente dos nervos. Contudo, havia nele uma espécie de sublimidade indefinida,incompleta, inimaginável, que congelava sua atenção, até que involuntariamentevocê jurasse a si mesmo desvendar o significado daquela pintura extraordinária.Vez por outra uma idéia brilhante, mas, ai, ilusória, o atingia. – É o Mar Negro,durante uma tormenta, à meia-noite. – É o combate sobrenatural dos quatroelementos da natureza. – Uma charneca arruinada. – É uma cena do invernohiperbóreo. – É o degelo do rio do Tempo. Mas todas essas fantasias convergiampara algo portentoso no centro do quadro. Se aquilo fosse revelado, todo o restoseria simples. Mas pare; não há uma vaga semelhança com um peixe gigantesco?Com o próprio Leviatã?

De fato, segundo minha tese definitiva, baseada em parte nas opiniõesconjuntas de várias pessoas idosas com quem conversei sobre o assunto, opropósito do artista parecia ser o seguinte: o quadro representa um navio no caboHorn em meio a um grande furacão; vêem-se apenas os três mastros destruídosde uma embarcação semi-afundada; e uma baleia exasperada, pretendendo saltarpor cima do barco, aparece sob o grandioso ato de empalar-se sobre os trêsmastros.

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A parede oposta da recepção estava inteiramente coberta por uma selvagemexposição de clavas e espadas monstruosas. Algumas eram pesadamentedecoradas com dentes resplandecentes que lembravam serras de marfim; outrastraziam tufos de cabelo humano; e uma delas tinha forma de foice, com um caboenorme arqueado, como o desenho produzido na grama recém-cortada por umceifador de braços compridos. Você estremeceria ao vê-la e ficaria pensando quecanibal selvagem e monstruoso poderia ter usado na colheita da morte uminstrumento tão cortante e tão horripilante. Misturados a essas havia umas lançase arpões velhos e enferrujados, todos quebrados e deformados. Algumas dessasarmas eram famosas. Com esta lança outrora comprida, agora drasticamenteencurtada, Nathan Swain matou há cinqüenta anos quinze baleias entre oamanhecer e o anoitecer. E aquele arpão – agora tão parecido com um saca-rolha– fora atirado nos mares javaneses e carregado por uma baleia, que muitos anosdepois foi morta na região do cabo Branco. O ferro original penetrou-a junto àcauda e, como uma agulha agitada que se instala no corpo de um homem, viajoupor mais de doze metros, quando foi finalmente encontrado dentro da corcova.

Atravessando a recepção tenebrosa e continuando por uma passagem baixa emforma de arco – construído a partir do que outrora deve ter sido uma grandechaminé central com lareiras em volta –, você chegará ao salão. Este é um lugarainda mais tenebroso, com um teto de vigas tão pesadas e baixas, e um assoalhode tábuas tão velhas e deformadas, que se tem quase a impressão de estarandando na cabine de uma velha embarcação, especialmente numa noiteassombrada como aquela, em que esta velha arca ancorada num canto balançavatão furiosamente. De um lado havia uma mesa comprida e baixa, parecida comuma prateleira coberta por caixas de vidro quebrado, cheias de curiosidadesempoeiradas, vindas dos recantos mais remotos deste vasto mundo. Projetando-sedo ângulo mais afastado do salão há um cubículo escuro – o bar –, uma imitaçãomalfeita de uma cabeça de baleia. Seja como for, ali fica um enorme ossoarqueado de mandíbula de baleia, tão grande que uma carroça quase poderiapassar por debaixo dele. Dentro ficavam prateleiras em mau estado, sobre asquais pousavam garrafas, frascos e outros recipientes velhos; e dentro daquelamandíbula de destruição instantânea, como outro Jonas maldito (nome pelo qualo chamavam), apressava-se um velhinho enrugado, que, por um alto preço,vendia o delírio e a morte aos marinheiros.

Abomináveis são os copos nos quais ele derrama seu veneno. Emboraverdadeiros cilindros por fora – por dentro, os copos vis, feitos de um verdeostensivo, afunilavam enganosos em direção a um fundo falso. Linhas paralelaseram porcamente picadas à volta desses copos gatunos. Encha até esta marca esua conta será de um centavo; até esta, mais um centavo; e assim por diante, até

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encher o copo – ou seja, até o cabo Horn, que você traga por um xelim.Ao entrar no lugar encontrei uns jovens marinheiros reunidos em volta de uma

mesa, examinando sob uma luz fraca diferentes tipos de artesanato em osso debaleia. Procurei o estalajadeiro, e ao dizer-lhe que queria ser acomodado em umquarto recebi como resposta que sua casa estava cheia, nenhuma camadesocupada. “Mas… alto lá!”, acrescentou, batendo na testa, “‘cê tem algumacoisa contra dividir o cobertor com um arpoador, hein? Imagino que ‘cê ‘tá indoatrás de baleia, então é melhor ir se acostumando com essas coisas.”

Eu lhe disse que jamais gostei de dormir com alguém na mesma cama; masque se tivesse que fazê-lo, dependeria do tipo de pessoa que o tal arpoador era, ese ele (o estalajadeiro) não tivesse mesmo outro lugar para mim, e se o talarpoador não fosse de todo desagradável, então, em vez de andar mais em umacidade estranha numa noite tão lúgubre, eu ficaria com meio cobertor de umhomem decente.

“Logo imaginei. Pois bem; sente-se. Jantar? Quer jantar? O jantar logo ficapronto.”

Sentei-me num velho banco de madeira, entalhado como um banco deBattery. Numa ponta, um marinheiro fazia mais adornos com seu canivete,trabalhando debruçado e com afinco no espaço entre suas pernas. Tentava fazerum navio a toda vela, mas não me parecia que estivesse progredindo muito.

Por fim, uns quatro ou cinco de nós fomos chamados para a refeição numasala vizinha. Estava frio como na Islândia – não havia nenhum fogo –; disse oestalajadeiro que não tinha dinheiro para isso. Nada além de duas velas de sebomelancólicas, com gotas de graxa. Resignadamente abotoamos nossas jaquetas elevamos aos lábios as xícaras de chá quente com os nossos dedos quasecongelados. Mas a comida era substanciosa – não apenas carne e batatas comotambém bolinhos; valha-me Deus! Bolinhos no jantar! Um jovem rapaz, de capoteverde, atacou esses bolinhos do modo mais horrível.

“Meu jovem”, disse o estalajadeiro, “com certeza ‘cê vai ter um pesadelo dematar.”

“Senhor”, sussurrei, “esse não é o arpoador, é?”“Ah, não!”, disse ele, parecendo divertir-se diabolicamente. “O arpoador é um

cara de pele escura. Não, ele nunca come bolinho – só come bife, e ainda gostamalpassado.”

“Que diabos!”, disse eu. “Onde está esse arpoador? Está aqui?”“Vai chegar logo”, foi a sua resposta.Não pude evitar, e comecei a suspeitar desse arpoador de “pele escura”. De

qualquer modo, tinha decidido que, se tivéssemos que dormir juntos, ele teria

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que se despir e entrar na cama antes de mim.Acabado o jantar, o grupo voltou ao bar, e eu, não tendo nada melhor a fazer,

resolvi passar o resto da noite como espectador.Dali a pouco, ouviu-se um barulho de uma rixa na rua. Levantando-se, o

estalajadeiro exclamou:“É a tripulação do Orca. Vi hoje de manhã um comunicado dizendo que estava

chegando; uma viagem de quatro anos, com o navio cheio. Hurra! Vamos saber asúltimas notícias de Fiji.”

Na recepção ouviu-se um tropel de botas, a porta se abriu com violência e umbando turbulento de marinheiros atirou-se para dentro. Enfiados em seus casacosgrosseiros de sentinelas, com as cabeças protegidas por cachecóis de lã,remendados e esfarrapados, e as barbas duras com pedaços de gelo, elespareciam uma invasão de ursos de Labrador. Tinham acabado de desembarcar donavio, e esta era a primeira casa onde entravam. Por isso, não é de se admirar quefossem direto para a boca da baleia – o bar – onde o enrugado e mirrado velhoJonas, que lá oficiava, rapidamente lhes serviu copos cheios a todos. Umreclamou de um resfriado, ao que Jonas lhe preparou uma poção cor de piche degim e melado, que jurou ser um remédio infalível para todos os resfriados ecatarros, fossem eles crônicos ou apanhados, quer na costa de Labrador, quer abarlavento de uma geleira.

O álcool lhes subiu rapidamente à cabeça e, como acontece com os maisnotórios beberrões recém-chegados do mar, eles começaram uma algazarra semtamanho.

Observei, contudo, que um deles se mantinha um tanto arredio e, embora nãoquisesse estragar a festividade de seus companheiros com sua expressão sóbria,abstinha-se de fazer tanto barulho quanto os outros. Este homem despertou meuinteresse de imediato; e já que os deuses do mar ordenaram que ele fosse embreve meu companheiro de bordo (se bem que apenas dividindo um quarto, noque concerne a esta narrativa) vou me aventurar a fazer uma breve descriçãodele. Tinha mais de um metro e oitenta de altura, com ombros nobres, e o peitocomo o de uma ensecadeira. Raras vezes vi tanta força muscular num homem.Seu rosto profundamente melancólico e queimado fazia um contrastedeslumbrante com seus dentes brancos, enquanto nas sombras profundas de seusolhos flutuavam reminiscências que pareciam não lhe trazer muita alegria. Suavoz denunciava imediatamente que vinha do sul, e seu porte elegante me fezpensar que ele devia ser um dos montanheses altos que vêm da serra de Allegany,na Virgínia. Quando a festança de seus companheiros alcançou o auge, o homemfugiu despercebido, e só tornei a vê-lo como companheiro de bordo no mar. Masdentro em pouco seus companheiros sentiram sua falta e, sendo ele, como

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parecia, por algum motivo, bastante popular entre eles, começaram uma gritariade “Bulkington! Bulkington! Onde está Bulkington?”, precipitando-se para fora dacasa, a procurá-lo.

Agora eram cerca de nove horas e, como o salão parecia estarsobrenaturalmente quieto após essas orgias, eu me congratulei por um pequenoplano que me ocorrera um pouco antes da entrada dos homens do mar.

Homem nenhum prefere dormir a dois numa cama. A bem da verdade, agente prefere não dormir nem mesmo com um irmão. Não sei bem a razão, masas pessoas gostam de privacidade para dormir. E quando se trata de dormir comum estranho, numa estalagem estranha, numa cidade estranha, sendo esseestranho um arpoador, então as objeções se multiplicam. Também não havianenhum motivo terrestre para que eu, um marinheiro, mais do que qualqueroutro, dormisse a dois numa cama; pois os marinheiros não dormem juntos emalto-mar, como tampouco os Reis solteiros dormem a dois em terra. É claro quetodos dormem juntos num mesmo compartimento, mas você tem sua própriarede, cobre-se com seu próprio cobertor, e dorme em sua própria pele.

Quanto mais eu pensava sobre este arpoador, mais eu abominava a idéia dedormir com ele. Era justo presumir que, em se tratando de um arpoador, seulinho ou lã não seria dos mais limpos e certamente não seria dos melhores.Comecei a ficar todo crispado. Além disso, estava ficando tarde e um arpoadorque prestasse deveria estar em casa, indo para a cama. Imagine se ele caísse emcima de mim à meia-noite. Como eu saberia de que buraco imundo ele estariachegando?

“Senhor! Mudei de idéia sobre o arpoador. Não vou dormir com ele. Vouexperimentar este banco aqui.”

“Como quiser. Sinto não poder oferecer uma toalha pra você usar de colchão,e esta maldita tábua é muito ruim” – disse, mexendo nos nós e nas fendas. “Masespere aí, entalhador de ossos; tem uma plaina de carpinteiro no bar – espere umpouco, vou deixá-la bem confortável para você.” Dizendo isto, trouxe a plaina;tirou o pó do banco com seu velho lenço de seda e começou a aplainarvigorosamente minha cama, sorrindo como um macaco. As aparas voavam para aesquerda e para a direita; até que, por fim, o ferro se chocou contra um nóindestrutível. O estalajadeiro estava quase torcendo o pulso, e pedi-lhe queparasse, pelo amor de Deus – a cama estava bastante confortável para mim, e eunão sabia como todo o aplainamento do mundo poderia fazer de uma placa depinho um edredom. Juntou então as aparas com mais um sorriso, jogou-as nofogão do centro do salão e foi cuidar de seus afazeres, deixando-me numameditação profunda.

Tomei ali as medidas do banco e descobri que era curto demais para mim;

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mas isso poderia ser remediado com uma cadeira. Mas também era estreitodemais, e o outro banco do salão era cerca de dez centímetros mais alto do que oaplainado – por isso não havia como emparelhá-los. Coloquei então o primeirobanco ao comprido no único espaço vazio junto à parede, deixando um pequenointervalo para que minhas costas se acomodassem. Mas logo percebi que haviauma corrente de ar frio que vinha do peitoril da janela e que esse plano não dariacerto, ainda mais que uma outra corrente, vinda da frágil porta, se encontravacom a da janela, e as duas juntas formavam uma série de pequenos redemoinhosna imediata vizinhança do local onde eu havia pensado passar a noite.

O diabo que carregue o arpoador, pensei, mas não, eu não poderia tomar-lhe adianteira – trancar a porta por dentro e pular em sua cama, sem ser acordadosequer pelas batidas mais violentas? Não me pareceu uma má idéia; mas,pensando melhor, descartei-a. Pois quem podia me garantir que na manhãseguinte, assim que eu pulasse fora do quarto, o arpoador não estaria de pé narecepção, pronto para me arrebentar!

Todavia, olhando à minha volta, não vendo nenhuma possibilidade de passaruma noite tolerável senão na cama de outra pessoa, comecei a achar que, afinalde contas, eu poderia estar cultivando preconceitos absurdos contra esse arpoadordesconhecido. Pensei comigo, vou esperar um pouco; ele deve estar chegandologo. Vou dar uma boa olhada nele, e talvez nos tornemos bons companheiros decama – nunca se sabe.

Mas embora os outros hóspedes continuassem chegando sozinhos, de dois emdois, ou de três em três, e indo se deitar, ainda não havia sinal do meu arpoador.

“Senhor!”, perguntei, “que tipo de sujeito é esse – ele sempre chega assim tãotarde?” Já era quase meia-noite.

O estalajadeiro riu de novo, seu riso magro, e parecia divertir-seextraordinariamente com algo que estava além da minha compreensão. “Não!”,disse, “esse aí acorda co’as galinha’ – deita cedo e levanta cedo – eh, é opassarinho que encontra a minhoca primeiro. Mas hoje ele saiu a negócio,entendeu, e não sei por que diabos ‘tá demorando, a não ser, talvez, que nãotenha conseguido vender sua cabeça.”

“Vender a cabeça? – Que história de louco é essa que o senhor está mecontando?”, meu sangue começava a esquentar. “O senhor quer dizer,estalajadeiro, que esse arpoador está mesmo envolvido, nesta abençoada noite desábado, ou melhor, nesta manhã de domingo, com a tarefa de vender a suacabeça na cidade?”

“Isso mesmo”, disse o estalajadeiro, “e eu disse pra ele que não dava, que omercado está lotado.”

“De quê?”, exclamei.

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“De cabeças, é claro. Já não tem cabeça demais no mundo?”“Vou lhe dizer uma coisa, senhor”, eu falei, com calma, “é melhor o senhor

parar de tentar me enrolar com esta história – não sou mais criança.”“Pode ser!”, e pegou um pedaço de lenha, que fez de palito, “mas acho que a

coisa vai ficar preta se o arpoador ouvir você difamando a cabeça dele.”“Vou arrebentar com ela”, disse eu, deixando-me levar pela raiva dessa

mixórdia incompreensível do estalajadeiro.“Já quebrou”, disse ele.“Quebrou”, disse eu, “quebrada, o senhor quer dizer?”“Claro, é por isso que ele não consegue a venda, eu acho.”“Senhor”, disse eu, aproximando-me tão frio quanto o monte Hecla numa

tempestade de neve –, “senhor, pare de palitar os dentes. O senhor e euprecisamos nos entender, e isso também sem demora. Eu venho à sua casa e lhepeço uma cama; o senhor diz que pode me dar apenas metade; que a outrametade pertence a um certo arpoador. E sobre este arpoador, que ainda não vi, osenhor insiste em contar as histórias mais fantásticas e exasperantes, tendendo aprovocar em mim um sentimento constrangedor em relação ao homem que osenhor designou como meu companheiro de cama – uma relação que éextremamente íntima e confidencial. Peço-lhe agora que fale logo e conte quem éesse arpoador, e se estarei seguro em todos os sentidos passando a noite com ele.Em primeiro lugar, gostaria de pedir-lhe a bondade de desmentir essa história devender a sua cabeça, que se for verdadeira é uma prova que esse arpoador éabsolutamente louco, e eu não tenho vontade nenhuma de dormir com umlouco; e você, senhor, você, quero dizer, estalajadeiro, o senhor, ao tentar meinduzir a isso conscientemente, torna-se passível de processo criminal.”

“Bom”, disse o estalajadeiro, enchendo o peito com uma lufada de ar, “esse éum sermão bastante comprido para um cara que dá umas aplainadas de vez emquando. Mas vai com calma, vai com calma, que esse arpoador de quem estoufalando chegou agora dos mares do sul; lá, ele comprou um monte de cabeçasembalsamadas da Nova Zelândia (muito curioso, sabe) e vendeu todas menosuma, e é essa que ele ia tentar vender hoje, porque amanhã é domingo, e não iaficar bem vender cabeça de gente na rua quando as pessoas vão pra igreja. Elequeria ir no domingo passado, mas eu parei ele saindo pela porta com as quatrocabeças presas numa corda, parecendo uma réstia de cebolas.”

Este relato esclareceu o mistério antes incompreensível, e mostrou que oestalajadeiro, afinal de contas, não estava querendo zombar de mim – mas, aomesmo tempo, o que eu devia achar de um arpoador que passava o sábado ànoite na rua, chegando ao domingo sagrado envolvido num negócio tão canibal

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quanto vender cabeças de idólatras mortos?“Pode acreditar em mim, senhor, esse arpoador é um homem perigoso.”“Paga em dia”, foi a resposta. “Mas venha, ‘tá ficando muito tarde, você já

devia ter lançado âncora – é uma cama boa. Sal e eu dormimos naquela cama nanoite em que juntamos os trapos. Tem bastante lugar pra dois se chutarem nessacama; é uma cama enorme. Ora, antes de abandonar essa cama, Sal colocava onosso Sam e o pequeno Johnny no pé dela. Mas uma noite eu estava sonhando eme esparramando, e sei lá como o Sam caiu no chão e quase quebrou o braço.Depois disso, Sal disse que não dava mais. Vem, vou mostrar rapidinho.” Dizendoisso, acendeu uma vela, aproximou-a de mim e ofereceu-se para mostrar ocaminho. Mas eu estava indeciso, quando ao ver o relógio no canto ele exclamou:“Vixe, já é domingo – hoje o arpoador não vem mais; deve ter descido vela emoutro porto – vem, vamos, ‘cê não vem?”.

Considerei a questão por um momento, e então fomos escada acima e eu fuiconduzido a um quarto pequeno, frio como um marisco, mobiliado, de fato, comuma cama prodigiosa, tão grande que caberiam bem quatro arpoadoresdormindo lado a lado.

“Pronto!”, disse o estalajadeiro, colocando a vela numa arca de viagem velha eavariada, que servia ao mesmo tempo de lavatório e mesa de centro, “pronto,agora fica aí à vontade, e boa noite.” Ao me virar, depois de olhar a cama, eletinha desaparecido.

Dobrei a colcha e me debrucei sobre a cama. Embora não fosse das maiselegantes, resistiu ao exame razoavelmente bem. Olhei, então, ao redor doquarto; e, além do colchão e da mesa de centro, não via nenhuma mobília quepertencesse ao local, a não ser por uma estante rústica, as quatro paredes e umaparador decorado com a representação de um homem ferindo uma baleia.Dentre as coisas que não pertenciam necessariamente ao quarto, havia uma redeenrolada em corda, jogada a um canto; e também uma grande sacola demarinheiro, guardando as roupas do arpoador, sem dúvida em lugar de umamala. Da mesma forma, havia um pacote com anzóis esquisitos de ossos depeixe, na prateleira acima da lareira, e um arpão grande na cabeceira da cama.

Mas o que é isso em cima da arca? Peguei, segurei perto da luz, senti, cheirei,tentei de todos os modos chegar a uma conclusão satisfatória a respeito daquilo.Não consigo compará-lo com outra coisa senão com um capacho, ornamentadonas bordas com penduricalhos mais ou menos como os espinhos rajados de umouriço num mocassim indígena. Havia um buraco ou um corte no meio docapacho, como os ponchos Sul-americanos. Mas seria possível que um arpoadorsóbrio usasse um capacho e desfilasse pelas ruas de uma cidade Cristã nessestrajes? Vesti-o para experimentar; ele pesava como chumbo, sendo estranhamente

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grosso e áspero, e achei que também estava um pouco úmido, como se omisterioso arpoador o tivesse usado num dia de chuva. Fui vestido assim até umcaco de espelho preso à parede – nunca vi nada como aquilo em minha vida.Tirei-o com tal pressa que fiquei com um torcicolo.

Sentei-me do lado da cama e comecei a pensar sobre esse arpoador que vendiacabeças, e sobre seu capacho. Depois de pensar por algum tempo na cama,levantei-me, tirei minha jaqueta e fiquei de pé no meio do quarto, pensando.Tirei então meu casaco e fiquei pensando mais um pouco em mangas de camisa.Mas comecei a sentir frio, porque estava quase pelado, e lembrei-me do que oestalajadeiro dissera, que o arpoador não voltaria mais naquela noite e, como eratão tarde, sem mais cerimônia tirei as calças e as botas e, soprando a vela, joguei-me na cama, confiando-me aos cuidados do céu.

Não sei se aquele colchão estava cheio de sabugos ou de cacos de cerâmica,mas o fato é que fiquei me revirando por muito tempo, sem conseguir dormir.Por fim, deslizei numa soneca leve, e estava quase pronto para partir rumo à terrado Cochilo, quando ouvi o som de passos pesados no corredor e vi uma luz fracae trêmula por debaixo da porta do quarto.

Deus me ajude, pensei, deve ser o arpoador, o infernal vendedor de cabeças.Mas fiquei deitado, absolutamente imóvel, e decidido a não dizer uma palavra atéque ele falasse comigo. Com uma vela numa das mãos e a tal cabeça da NovaZelândia na outra, o estranho entrou no quarto e, sem olhar para a cama, colocousua vela bem longe de mim, num dos cantos do chão, e começou a desamarrar oscordões atados da grande sacola, a que me referi antes por estar no quarto. Euestava ansioso por ver seu rosto, mas ele o manteve virado por um tempo,enquanto desatava a sacola. Terminado o serviço, virou-se – e valha-me Deus! Quevisão! Que rosto! Era de um amarelo escuro, purpúreo, aqui e ali estampado comgrandes quadrados enegrecidos. Sim, era exatamente o que eu havia pensado,tratava-se de um péssimo companheiro de cama; entrou numa briga, cortou-sehorrivelmente, e veio para cá direto do cirurgião. Mas naquele momento, poracaso, ele virou o rosto na direção da luz, e eu pude ver com clareza que osquadrados negros em seu rosto não podiam ser esparadrapos de modo algum.Eram manchas de um tipo ou de outro. Não entendi de imediato do que setratava, mas logo me ocorreu uma vaga idéia da verdade. Lembrei-me de umahistória de um homem branco – um baleeiro também – que, ao ser preso porcanibais, tinha sido tatuado por eles. Concluí que este arpoador, no decurso desuas longas viagens, devia ter encontrado uma aventura parecida. Mas o que issoimporta, pensei, afinal de contas! É apenas sua aparência; um homem pode serhonesto sob qualquer tipo de pele. Mas o que pensar daquela cor estranha, digo,daquela parte independente que fica em volta dos quadrados tatuados. Claro que

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podia ser apenas uma boa camada de bronzeado tropical; mas nunca ouvi falarde um bronzeado de sol que transformasse um homem branco num homemamarelo purpúreo. Mas eu nunca havia estado nos mares do sul; talvez o sol de látivesse efeitos extraordinários sobre a pele. Ora, enquanto essas idéias passavampor mim feito relâmpagos, o arpoador continuava sem nem me notar. Mas,depois de abrir a sacola com muita dificuldade, começou a revirá-la e tirou dedentro uma machadinha e uma carteira de pele de foca, ainda com os pêlos.Colocou esses objetos na arca no centro do quarto e pegou a cabeça da NovaZelândia – uma coisa realmente pavorosa – e guardou-a na sacola. Tirou então ochapéu – um chapéu de castor novo –, e eu quase gritei de.tanta surpresa. Nãotinha cabelo na cabeça, nada que valha a pena comentar; nada senão um tufoamarrado no topo. Sua cabeça calva avermelhada parecia uma caveiraembolorada. Não estivesse o estranho ali entre mim e a porta, eu teria saído porela mais depressa do que costumava comer.

Mesmo assim, pensei em escapar pela janela, mas estávamos no segundoandar. Não sou covarde, mas não sabia o que pensar desse tratante avermelhado,vendedor ambulante de cabeças. A ignorância é mãe do medo, e, vendo-mecompletamente confuso a respeito do estranho, confesso que tive tanto medodele como se fosse o próprio diabo que tivesse entrado no meu quarto a horasmortas. Na verdade, tive tanto medo do homem que não tive coragem de dirigir-me a ele e perguntar-lhe sobre o que parecia inexplicável em sua figura.

Enquanto isso, ele continuava ocupado em tirar a roupa e por fim descobriu opeito e os braços. Juro pela minha vida que é verdade que ali se viam os mesmosquadrados de seu rosto; suas costas, também, estavam cobertas pelos mesmosquadrados escuros; parecia que ele tinha estado numa Guerra dos Trinta Anos eescapado numa camisa de esparadrapos. E mais, as suas pernas também erammarcadas, dando a impressão de que um bando de sapos verde-escuros corriapelos troncos de jovens palmeiras. Estava agora bem claro que ele devia seralgum selvagem abominável, que tinha embarcado nos Mares do Sul numabaleeira e desembarcado nesta terra Cristã. Tremi só de pensar. Também era umvendedor de cabeças – talvez das cabeças de seus irmãos. Talvez gostasse daminha – valha-me Deus! Olha só essa machadinha!

Mas não havia tempo para temores, porque o selvagem logo começou a fazeralgo que me deixou completamente fascinado e me convenceu de que ele deviaser mesmo pagão. Encaminhando-se para o seu casaco pesado, ou sobretudo, oucapote, que tinha pendurado numa cadeira, mexeu nos bolsos e tirou umacuriosa imagem pequena, deformada, corcunda e exatamente da mesma cor deum bebê de três dias nascido no Congo. Recordando a cabeça embalsamada,achei de início que esse bonequinho negro fosse mesmo um bebê de verdade,

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conservado de maneira semelhante. Mas, ao ver que não era flexível e quebrilhava como ébano polido, concluí que deveria ser apenas um ídolo demadeira, o que afinal verifiquei ser exato. O selvagem foi então em direção àlareira vazia, tirou o aparador forrado de papel e colocou a pequena imagemcorcunda, como se fosse um pino de boliche, entre os suportes da lareira. Ointerior e os tijolos da chaminé estavam cobertos de fuligem, por isso achei que alareira era um lugar muito apropriado para um santuário ou capela para esseídolo do Congo.

Fixei os olhos com muita atenção na imagem meio oculta, sentindo-meintranqüilo nesse ínterim – mas querendo ver o que se seguiria. Primeiro elepegou um punhado de aparas do bolso de seu capote, que colocou com todo ocuidado diante do ídolo; depois, colocando um pedacinho de biscoito em cima eaproximando a chama da vela, transformou as aparas numa pira sacrificial.Então, depois de muito ir e vir com os dedos sobre o fogo (o que pareceu tê-loschamuscado bastante), conseguiu tirar o biscoito dali; e assoprando-o um pouco,para tirar o calor e as cinzas, ofereceu-o delicadamente ao negrinho. Mas odiabinho parecia não gostar desse tipo de oferenda e não moveu os lábios. Todosesses procederes estranhos eram acompanhados por ruídos guturais ainda maisestranhos, feitos pelo devoto, que parecia entoar uma ladainha ou algum salmopagão, durante o qual seu rosto se contraía do modo mais artificial. Por fim,quando o fogo se extinguiu, ele pegou o ídolo sem cerimônia nenhuma ecolocou-o de volta no bolso do capote com tão pouco cuidado que mais pareciaum caçador guardando uma galinhola morta.

Todos esses procedimentos extravagantes aumentaram meu desconforto, e,vendo que ele mostrava naquele momento sinais evidentes de pôr termo àsoperações e ir para a cama onde eu estava, achei que estava na hora, era agora oununca, antes que ele apagasse a luz, de quebrar o encanto que me enfeitiçara portanto tempo.

Mas o tempo que gastei para pensar sobre o que dizer foi fatal. Pegando seumachado na mesa, ele lhe examinou a cabeça por um momento e segurando-ocontra a luz, com sua boca no cabo, deu uma baforada, soltando grandes nuvensde fumaça de tabaco. No momento seguinte a luz se extinguiu e este canibalselvagem, machadinha entre dentes, pulou na cama comigo. Gritei, não pudeevitar, e ele, soltando um súbito grunhido de espanto, começou a me tatear.

Balbuciando não sei o quê, rolei para a parede, afastando-me dele, e supliquei-lhe, fosse ele o quê ou quem fosse, que ficasse calmo e me deixasse levantar eacender a vela de novo. Mas por suas respostas guturais percebi que ele malcompreendia o significado de minhas palavras.

“Qui diavo é vuncê?”, perguntou por fim, “Doga! Vuncê num falá’, vô’ matá’”,

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dizendo isto, começou a brandir a machadinha perto de mim no escuro.“Peter Coffin, pelo amor de Deus, senhor!”, gritei. “Senhor! Cuidado! Coffin!

Meu anjo da guarda! Socorro!”“Fali! Diz’u qui é vuncê, doga, ô ti mato!”, rosnou de novo o canibal, enquanto

os movimentos horríveis da machadinha espalhavam as cinzas quentes do fumosobre mim, a ponto de eu pensar que minha roupa de cama tinha pegado fogo.Mas, graças a Deus, naquele momento o estalajadeiro entrou no quarto com umavela na mão e, pulando da cama, fui em sua direção.

“Não tenha medo”, disse, rindo de novo. “O Queequeg não tocaria num só fiodo seu cabelo.”

“Pare de rir”, gritei. “Por que não me disse que o arpoador dos infernos era umcanibal?”

“Pensei que soubesse; – não lhe contei que vendia cabeças pela cidade? Masdeita na cama e dorme de novo. Queequeg, olha aqui – você sabe eu –, eu sabevocê – esse homem dorme aqui – sabe?”

“Mim sabe bem”, grunhiu Queequeg, dando uma baforada em seu cachimbo,sentando na cama.

“Vuncê entra aí”, acrescentou, fazendo um gesto para mim com a machadinhae jogando as roupas para um lado. Não fez isso de um modo apenas educado,mas verdadeiramente amável e generoso. Fiquei olhando para ele por unsinstantes. Com todas aquelas tatuagens, ele era um canibal com uma aparêncialimpa e decente. Por que eu tinha feito tanta história, perguntei a mim mesmo –o sujeito é um ser humano assim como eu: tem tanto motivo para me temerquanto eu tinha para ter medo dele. Melhor dormir com um canibal sóbrio doque com um Cristão bêbado.

“Senhor”, disse eu, “diga-lhe que guarde a machadinha, ou cachimbo, ou sejalá o que for; diga-lhe que pare de fumar, e dormirei com ele. Não gosto que umhomem fume na cama do meu lado. É perigoso. Além disso, não me sintoseguro.”

Dito isto a Queequeg, ele obedeceu e de novo fez um gesto educado para queeu me deitasse – e virou-se para um lado como se dissesse – não vou sequer tocarnuma perna sua.

“Boa noite, senhor”, eu disse. “Pode ir.”Deitei-me e nunca dormi tão bem em toda a minha vida.

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4 A COLCHA

Ao acordar na manhã seguinte, ao romper do dia, deparei-me como braço de Queequeg largado sobre mim da forma mais carinhosa e afetuosa.Você teria pensado que eu era a esposa dele. A colcha era de retalhos, cheia depequenos quadrados e triângulos diferentes coloridos; e este braço dele inteirotatuado como um interminável labirinto de Creta, sem que nenhuma das partestivesse a mesma tonalidade – talvez devido ao fato de ele deixar o braço, semmétodo, ora ao sol, ora à sombra, com as mangas irregularmente arregaçadas –,este mesmo braço dele, quero dizer, parecia um pedaço daquela mesma colchade retalhos. De fato, como o braço repousasse sobre a colcha quando acordei,mal consegui distinguir uma coisa da outra, tão bem as cores se fundiam; e eraapenas pela pressão e pelo peso que eu poderia dizer que Queequeg estava meabraçando.

Minhas sensações eram estranhas. Deixe-me tentar explicá-las. Quando eu eracriança, lembro-me bem de um certo caso similar ter-me ocorrido; se foirealidade ou se foi sonho, jamais consegui estabelecer inteiramente. O caso foi oseguinte. Eu estava fazendo alguma travessura – acho que estava tentando subirpela chaminé, como tinha visto um pequeno limpador fazer poucos dias antes; eminha madrasta, que, por um motivo ou outro, sempre me dava umaschicotadas, ou me mandava para a cama sem jantar –, minha mãe puxou-mepelas pernas e mandou-me para cama, embora fossem apenas duas horas da tardedo dia 21 de junho, o dia mais longo do ano em nosso hemisfério. Senti-mehorrivelmente infeliz. Mas não podia fazer nada, por isso subi as escadas, fui parao meu quartinho no terceiro andar, despi-me o mais devagar que pude, paramatar tempo e, com um suspiro amargo, meti-me entre os lençóis.

Estava ali deitado, calculando com tristeza que ainda faltavam dezesseis horaspara eu poder contar com a ressurreição. Dezesseis horas na cama! Só de pensarsentia dores nas costas. E havia tanta luz! O sol brilhava na janela, e ouvia-se otropear das carroças nas ruas, o barulho de vozes alegres por toda a casa. Sentia-me cada vez pior – por fim me levantei, me vesti e, calçando meias, desci asescadas de mansinho e fui procurar minha madrasta; jogando-me aos seus pés,roguei-lhe que me desse uma boa chinelada por meu mau comportamento; tudomenos me condenar a ficar deitado na cama por um tempo tão imensamentelongo. Mas ela era a melhor e mais conscienciosa das madrastas e fui obrigado avoltar ao meu quarto. Durante muitas horas fiquei ali deitado, bem acordado.

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Nunca em minha vida me senti tão infeliz, nem mesmo mais tarde, com asdesgraças que se seguiram. Por fim, devo ter cochilado, quando tive um pesadelocomplicado; acordei devagarinho – meio sonolento ainda –, abri os olhos, e oquarto que antes estivera iluminado pelo sol naquele momento estava na maiscompleta escuridão. Naquele instante senti uma comoção percorrendo meucorpo; nada se via, e nada se ouvia; mas uma mão sobrenatural parecia ter tocadoa minha. Meu braço estava sobre a colcha, e a forma ou fantasma sem nome, semexplicação e em silêncio, a quem aquela mão pertencia, parecia estar perto daminha cabeceira. Durante algum tempo, que me pareceu infinito, eu fiqueideitado ali, paralisado de medo, sem coragem de tirar a minha mão; mas achavaque, se conseguisse mexer um pouquinho, aquele feitiço horrível se quebraria.Não sei como essa impressão por fim me deixou, mas, ao acordar na manhãseguinte, lembrei-me de tudo, com estremecimentos, e nos dias, semanas e mesesque se seguiram me perdi em tentativas para decifrar o mistério. Ainda hoje eleme intriga.

Ora, deixando de lado o medo horroroso, aquilo que senti ao contato comaquela mão sobrenatural sobre a minha é, em sua singularidade, muitosemelhante ao que senti quando acordei e vi o braço pagão de Queequeg porcima de mim. Mas pouco a pouco fui recordando todos os acontecimentos danoite passada e por fim a comicidade da situação prevaleceu. Tentei tirar seubraço – desfazer seu abraço de noivo – mas, como ele estava dormindo, ele meabraçava com força, como se nada além da morte pudesse nos separar. Tenteiacordá-lo – “Queequeg!” – mas sua única resposta foi um ronco. Virei-me de lado,e era como se houvesse uma coleira de cavalo em meu pescoço; de repente sentium leve arranhão. Tirei a colcha e vi que a machadinha dormia ao lado doselvagem, como se fosse um bebê com cabeça de machado. Que situação maisembaraçosa, pensei; deitado na cama, em uma casa estranha, em pleno dia, comum canibal e uma machadinha! “Queequeg! – Pelo amor de Deus, Queequeg,acorde!” Por fim, à força de me agitar e de protestar contra os inconvenientes deser abraçado por outro homem de modo matrimonial, consegui obter umresmungo; e dentro em pouco ele tirou seu braço, sacudiu-se como um cachorroTerra Nova que saísse da água, sentou-se na cama, ereto como uma estaca, olhoupara mim e esfregou os olhos como se não lembrasse bem como eu haviachegado lá, ainda que começasse a despertar em sua mente uma vaga idéia sobreminha presença. Enquanto isso, eu estava deitado em silêncio, olhando para elesem mais nenhum receio, ocupado a observar uma criatura tão curiosa. Quando,por fim, se fez luz em seu cérebro sobre quem era seu companheiro de cama, e,de certo modo, ele se resignou com o fato, saltou da cama para o chão e, usandosinais e ruídos, fez-me entender que se a idéia me agradasse ele se vestiria

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primeiro e deixaria o quarto para eu me vestir depois. Dadas as circunstâncias,achei a proposta de Queequeg muito civilizada; digam o que quiserem, mas averdade é que os selvagens têm um senso inato de delicadeza; é maravilhosocomo são polidos nas coisas essenciais. Faço este elogio especial a Queequegporque ele me tratou com tanta amabilidade e consideração, ao passo que eu fuidescortês; fiquei olhando para ele da cama, observando todos os movimentos quefazia durante sua toilette matinal; naquela hora, minha curiosidade foi mais fortedo que minha boa educação. De resto, não é todos os dias que se encontra umhomem como Queequeg, e seus modos eram dignos de atenção especial.

Começou a vestir-se pela cabeça, colocando seu chapéu de castor que, diga-sede passagem, era bem grande, depois – ainda sem calças – caçou pelo quarto suasbotas. O porquê, por Deus, eu não sei, mas seu próximo movimento foi se enfiar– botas na mão, chapéu na cabeça – embaixo da cama, quando, depois dediversos suspiros e gemidos, me convenci de que estava vestindo as botas;embora, que eu saiba, não haja lei alguma determinando que um homem devacalçar suas botas fora do alcance da vista de outros. Mas, veja bem, Queequeg erauma criatura num estado de transição – nem lagarta, nem borboleta. Eracivilizado o bastante para exibir propositadamente seu exotismo do modo maisestranho. Sua educação ainda não terminara. Ainda não havia se formado. Se nãofosse um tanto civilizado, muito provavelmente não teria se preocupado com asbotas; mas, se não fosse ainda um selvagem, nunca teria sonhado em ir paradebaixo da cama para vesti-las. Por fim, apareceu com o chapéu amassado eamarrotado bem em cima dos olhos e começou a claudicar pelo quarto, fazendoranger as botas como se, não estando acostumado a usá-las, seu par feito de courode vaca, úmido e cheio de vincos – provavelmente não havia sido feito sobencomenda –, apertasse e atormentasse os primeiros passos que dava no frio damanhã.

Observando, então, que não havia cortinas na janela e que, sendo a rua muitoestreita, a casa da frente ocupava toda a vista do quarto; e notando que Queequegfazia um papel indecoroso, andando de um lado para o outro vestindo apenas seuchapéu e suas botas; pedi-lhe, da melhor maneira, que acelerasse sua toilette eque vestisse sua calça o mais depressa possível. Ele obedeceu e começou a selavar. Naquela hora da manhã qualquer Cristão teria lavado o rosto; masQueequeg, para meu assombro, ficou satisfeito em restringir suas abluções apeito, braços e mãos. Depois vestiu o colete, pegou um pedaço de sabão em cimada mesa de centro que servia de lavatório, mergulhou-o na água e começou aensaboar o rosto. Fiquei observando para ver onde guardava sua navalha, quando,vejam só, ele pegou o arpão da cabeceira da cama, retirou o longo cabo demadeira, desembainhou a ponta, afiou-a um pouco na bota e, dirigindo-se ao

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pedaço de espelho na parede, começou a raspar, ou melhor, a arpoarvigorosamente o rosto. Pensei comigo, Queequeg, isso é o que se chama de fazerdesfeita a uma lâmina Rogers. Mais tarde, porém, isso deixou de me surpreender,quando fiquei sabendo que a ponta do arpão é feita de uma fina têmpera de açoe que seu fio é conservado aguçado e liso.

O resto de sua toilette logo terminou, e ele saiu orgulhoso do quarto, vestindosua grande jaqueta de comandante e usando seu arpão como um bastão demarechal.

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5 CAFÉ-DA-MANHÃ

Segui depressa seu exemplo e, ao entrar no bar, aproximei-me com alegria do estalajadeiro sorridente. Não lhe guardava rancor, apesar deele ter se divertido e não pouco à minha custa no caso de meu companheiro decama.

No entanto, uma boa risada é algo poderoso, algo bom e raro; o que maisexiste é de se lastimar. Por isso, quando um homem dá motivos para que osoutros se riam, é melhor que não hesite, que permita agirem consigo desse modoe aja, por sua vez, com alegria. Se esse mesmo homem tiver algo de muitoengraçado nele, é certo que vale mais do que se pensa.

O bar estava cheio de hóspedes que tinham chegado na noite anterior, e queeu ainda não havia observado atentamente. Eram quase todos baleeiros;imediatos, segundos-oficiais, terceiros-oficiais, carpinteiros navais, toneleirosnavais, ferreiros navais, arpoadores e guardas; um grupo musculoso e bronzeadocom barbas bastas; um bando hirsuto e desgrenhado, todos usando jaquetas demarinheiro no lugar de roupões matinais.

Você perceberia com facilidade há quanto tempo cada um delesdesembarcara. O rosto saudável desse jovem trazia a cor de uma pêra tostada aosol e poderia estar cheirando quase que a almíscar; não devia fazer sequer trêsdias do desembarque de sua viagem para a Índia. O homem ao lado dele era unspoucos tons mais claro; você diria que havia nele um toque de pau-cetim. Na pelede um terceiro havia vestígios de um colorido tropical, mas um pouco desbotado;sem dúvida havia trabalhado semanas inteiras em terra. Mas quem podia mostrarum rosto como o de Queequeg – que, com suas barras de várias tonalidades,parecia a vertente ocidental dos Andes, exibindo em um mesmo plano climas dosmais antagônicos, zona por zona?

“Ô, comida!”, gritou o estalajadeiro, escancarando uma porta e convidando-nosa tomar café.

Dizem que os homens que viram o mundo, graças a tanto ficam muito àvontade, muito controlados quando em companhia. Mas não é sempre assim:Ledyard, o famoso viajante da Nova Inglaterra, e Mungo Park, o Escocês; de todosos homens, na sala de visitas esses possuíam a mais baixa autoconfiança. Mastalvez o fato de atravessar a Sibéria num trenó puxado por cachorros, como fezLedyard, ou fazer uma longa caminhada solitária, com o estômago vazio, nocoração negro da África, que foi o maior dos feitos do pobre Mungo – esse tipo de

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viagem, digo, pode não ser a melhor maneira de adquirir um grande traquejosocial. Mas, na maioria dos casos, é algo que se obtém em qualquer lugar.

Estas reflexões surgiram porque, depois de estarmos todos sentados à mesa, ede eu ter me preparado para escutar algumas histórias interessantes sobre a pescade baleias; para a minha não pequena surpresa, quase todos permaneceram emprofundo silêncio. E não apenas isso, pois também pareciam acanhados. Sim,aqui havia um bando de lobos-do-mar; muitos deles, sem o menor acanhamento,abordavam grandes baleias em alto-mar – inteiramente estranhas a eles – eduelavam de morte com elas sem pestanejar; mas aqui sentados a esta mesacoletiva de café-da-manhã – todos com a mesma vocação, todos com gostossemelhantes – trocavam olhares tão envergonhados como se nunca tivessemsaído de perto das ovelhas nas Green Mountains. Que espetáculo curioso; essesursos tímidos, esses retraídos guerreiros baleeiros!

Mas quanto a Queequeg – que, por acaso, também estava sentado entre eles, àcabeceira –, este estava frio como uma estalactite. Claro que não posso falarmuito a favor das suas maneiras. Seu maior admirador não teria conseguidojustificar o fato de ele ter trazido e usado seu arpão no café-da-manhã semcerimônia; cruzando a mesa, sem atentar para o iminente perigo às cabeças, ecom ele espetando os bifes. Mas isso ele o fazia com muita calma, e todos sabemque, no gosto geral, os gestos feitos com calma são considerados sinais deelegância.

Não falemos aqui de todas as peculiaridades de Queequeg; de como recusou ocafé e os pãezinhos para se interessar exclusivamente pelos bifes malpassados.Basta acrescentar que, terminado o café, ele se retirou com os outros para o salão,acendeu o cachimbo-machadinha, ficando sentado lá tranqüilamente, fazendo adigestão e fumando, sem tirar seu chapéu inseparável, enquanto eu saí para daruma volta.

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6 A RUA

Se eu tinha ficado estupefato na primeira vez em que vi um indivíduotão exótico quanto Queequeg circulando no meio de uma sociedade educada deuma cidade civilizada, essa estupefação logo se desvaneceu quando, em plenodia, dei uma volta pelas ruas de New Bedford.

Em todos os portos importantes, as ruas junto às docas oferecem à vista tiposdos mais bizarros jamais descritos, chegados de terras distantes. Mesmo naBroadway e na Chestnut Street, os marujos Mediterrâneos às vezes esbarram nasdamas assustadas; a Regent Street não é desconhecida de Lascares e Malaios; e emBombaim, no jardim de Apolo, verdadeiros Ianques muitas vezes assustaram osnativos. Mas New Bedford supera Water Street e Wapping. Nestes últimos antrosmencionados vêem-se apenas marinheiros, mas em New Bedford encontram-severdadeiros canibais papeando nas esquinas; realmente selvagens; muitos dosquais ainda levam carne sem batismo sobre os ossos. É uma visão muito estranha.

Mas, além dos nativos das ilhas Fiji, de Tonga, de Erromango, de Pannan e deBrigh, e, além dos espécimes selvagens das tripulações de baleeiros que vagueiamdespreocupados pelas ruas, você vai ver outras cenas ainda mais curiosas, comcerteza mais engraçadas. Toda semana chegam a esta cidade grupos de rapazesainda inexperientes de New Hampshire e Vermont, todos sedentos de lucros eglórias na pescaria. Na maioria são rapagões robustos, que já desmatarambosques, e agora querem deixar o machado para empunhar a lança da baleia.Muitos desses rapazes estão verdes como as Green Mountains. Em algumas coisas,você diria que têm apenas algumas horas de idade. Veja só! Aquele garoto virandoa esquina. Está usando um chapéu de castor e fraque, com um cinto demarinheiro e uma faca embainhada. E lá vem outro usando um chapéuimpermeável e capa de bombazina.

Nenhum janota da cidade se compara com um janota do campo – quero dizer,o janota verdadeiramente caipira –, um sujeito que nos dias de canícula faz acolheita de seus dois acres usando luvas de pelica para não bronzear as mãos.Ora, quando um desses janotas do campo resolve ter uma reputação ilustre e seengaja numa grande pesca da baleia, você precisa ver que coisas engraçadas elefaz chegando ao porto. Ao encomendar sua roupa de marinheiro, manda colocarbotões de bronze nos coletes; presilhas nas calças de lona. Ai, pobre capiau! Comque violência essas presilhas irão se arrebentar no primeiro vendaval, quandofordes impelidos, junto com as presilhas, os botões e tudo o mais, goela abaixo da

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procela.Mas não pense que esta famosa cidade tem apenas arpoadores, canibais e

caipiras para mostrar aos visitantes. De jeito nenhum. Ainda assim, New Bedfordé um lugar esquisito. Se não fôssemos nós, os baleeiros, esta extensão de terraainda hoje seria um lugar em condições tão lamentáveis quanto a costa deLabrador. Algumas regiões limítrofes assustam por sua penúria. A própria cidadetalvez seja o lugar mais caro para se viver de toda a Nova Inglaterra. É a terra doazeite, é verdade; mas não como Canaã; também é a terra do milho e do vinho.Mas o leite não corre pelas ruas, assim como tampouco as ruas são pavimentadascom ovos frescos na primavera. Mas apesar disso em nenhum lugar dos EstadosUnidos se encontram casas mais luxuosas, parques e jardins mais opulentos, doque em New Bedford. De onde vieram? Como foram erigidos aqui, outrora restomacilento de uma região?

Veja os arpões emblemáticos de ferro naquelas mansões altaneiras, e suapergunta será respondida. É isso mesmo; todas essas lindas casas e jardins floridosvieram dos oceanos Atlântico, Pacífico e Índico. Foram arpoadas e carregadas paralá desde o fundo do mar. Poderia Herr Alexandre fazer proeza igual?

Dizem que os pais em New Bedford oferecem baleias como dotes para as suasfilhas e presenteiam as sobrinhas com muitas marsopas. É preciso ir a NewBedford para assistir a um casamento ilustre; pois dizem que há reservatórios deóleo em todas as casas, e que todas as noites queimam sem economizar velas deespermacete.

Durante o verão a cidade é muito agradável; repleta de belos plátanos – longasavenidas verdes e douradas. Em agosto, lá no alto, as maravilhosas e majestosascastanheiras, como candelabros, oferecem ao transeunte seus cones afilados eeretos de flores congregadas. Tão onipotente é a arte que em vários bairros deNew Bedford sobrepôs terraços de flores em estéreis refugos de rochas,descartadas no último dia da criação.

E as mulheres de New Bedford, essas florescem como suas próprias rosasvermelhas. Mas as rosas só florescem no verão, enquanto o carmim de suas facesé perene como a luz do sol no sétimo céu. Em nenhum outro lugar encontrarásflores assim, exceto em Salem, onde dizem que as moças exalam certo almíscarque os marinheiros apaixonados sentem a milhas do litoral, como se estivessemse aproximando das perfumadas Molucas e não das areias puritanas.

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7 A CAPELA

Nesta mesma New Bedford há uma Capela dos Baleeiros, e sãopoucos os pescadores soturnos que, estando de partida para o oceano Índico ouPacífico, deixam de fazer uma visita ao local num domingo. O certo é que não foimeu caso.

Ao voltar de meu primeiro passeio matinal, outra vez saí num arroubo comesta missão especial. O céu tinha mudado do aberto, frio ensolarado, para umnublado com neve e chuva. Embrulhado em minha capa feita da chamada pelede urso, abri caminho contra o furioso temporal. Entrando, encontrei umapequena congregação de marinheiros e de esposas e viúvas de marinheiros.Reinava um silêncio abafado, quebrado de quando em quando pelo uivo dotemporal. Cada devoto silencioso parecia estar sentado propositalmente distantedo outro, como se cada aflição calada fosse isolada e incomunicável. O capelãoainda não tinha chegado; e ali aquelas ilhas silentes de homens e mulherespermaneciam sentadas, com os olhos presos às lápides de mármore, as bordaspretas, elaboradas na parede dos dois lados do púlpito. Três delas traziam, maisou menos assim, as seguintes inscrições, que não vou fingir citar:

CONSAGRADA À MEMÓRIA DE

JOHN TALBOT,

QUE SE PERDEU NO MAR, COM A IDADE DE 18 ANOS,

PRÓXIMO À ILHA DA DESOLAÇÃO, NO LITORAL

DA PATAGÔNIA, EM 1º DE NOVEMBRO DE 1836.

ESTA LÁPIDE FOI ERIGIDA EM

SUA MEMÓRIA POR SUA IRMÃ.

CONSAGRADO À MEMÓRIA DE

ROBERT LONG, WILLIS ELLERY, NATHAN COLEMAN,

WALTER CANNY, SETH MACY E SAMUEL GLEIG,

QUE FORMAVAM A TRIPULAÇÃO DO

NAVIO ELIZA, QUE SE PERDEU ARRASTADO

POR UMA BALEIA, NO LITORAL DO PACÍFICO,

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EM 31 DE DEZEMBRO DE 1839.

ESTE MÁRMORE FOI COLOCADO

PELOS COMPANHEIROS DE BORDO SOBREVIVENTES.

CONSAGRADA À MEMÓRIA DO

FINADO CAPITÃO EZEKIEL HARDY,

MORTO À PROA DE SEU NAVIO POR UM CACHALOTE NA

COSTA DO JAPÃO, EM 3 DE AGOSTO DE 1833.

ESTA LÁPIDE FOI ERIGIDA EM SUA MEMÓRIA POR SUA VIÚVA.

Tirando a neve de meu chapéu e capa congelados, sentei-me perto da porta evirando-me para o lado fiquei surpreso de ver Queequeg perto de mim.Impressionado pela solenidade da cena, havia uma expressão de incrédulacuriosidade em seu rosto. O selvagem parecia ser a única pessoa ali a notar minhaentrada; porque era o único que não sabia ler e, por isso, não estava lendoaquelas frias inscrições na parede. Se entre os presentes havia algum parente dosmarinheiros cujos nomes tinham sido gravados, eu não sabia; mas são tantos osacidentes sem registro na pescaria, e tão claramente algumas das mulheres queali estavam cobriam seus rostos com os vestígios de alguma afliçãoinquebrantável, que tive a certeza de que diante de mim estavam reunidoscorações incuráveis, para os quais a contemplação das lápides vazias fazia sangrarde novo as velhas feridas.

Oh, vós, cujos mortos jazem enterrados sob a grama verde; que em meio aflores podeis dizer – aqui, aqui jaz o meu amado; vós não sabeis a desolação quehabita estes nossos peitos. Que vazio amargo esse dos mármores enegrecidos quenão cobrem cinza alguma! Que desespero esse das inscrições irremovíveis! Quevácuo mortífero, que indesejada infidelidade daquelas linhas que parecem minartoda a Fé e recusam a ressurreição a seres que no deslugar pereceram sem tertúmulo. Aquelas lápides poderiam estar tanto na caverna de Elefanta como aqui.

Em que recenseamento de seres vivos estão incluídos os mortos dahumanidade; por que há um provérbio que afirma que os mortos não falam,embora saibam mais segredos que Goodwin Sands; como se explica que, aonome daquele que partiu ontem para outro mundo, nós associemos uma palavratão significativa e inverídica, e no entanto não a associemos a ele, que parte paraas Índias mais remotas; por que as companhias de seguro pagam pela morte deimortais; em que paralisação eterna e imóvel, e transe mortífero e desesperado,jaz o antigo Adão, morto há sessenta séculos; como é possível que ainda não

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encontremos consolo pela perda daqueles que afirmamos estar na mais completabem-aventurança; por que todos os vivos se esforçam tanto para não mencionaros mortos; por que motivo um simples ruído num túmulo assusta uma cidadeinteira? Todas essas coisas têm seu significado.

Mas a Fé, como um chacal, se alimenta por entre os túmulos, e mesmo dessasdúvidas mortais recolhe sua esperança mais vital.

É desnecessário descrever os sentimentos com que olhei para aquelas lápidesde mármore, na véspera de uma viagem a Nantucket, lendo na penumbradaquele dia escuro e triste o destino dos baleeiros que haviam partido antes demim. É, Ishmael, podes ter o mesmo destino. Mas, não sei como, senti-me denovo alegre. Estímulos agradáveis para embarcar, boas chances de promoção,parece que sim – um navio naufragado fará de mim um imortal por carta demercê. Pois é, existe a morte neste negócio baleeiro – um modo caótico, rápido esem palavrório de empacotar o homem para a Eternidade. Mas e daí? Parece-meque estamos profundamente equivocados a respeito dessa história de Vida eMorte. Parece-me que, olhando para as coisas espirituais, somos como ostrasobservando o sol através da água e achando que a água espessa é o ar mais sutil.Parece-me que meu corpo é a parte mais insignificante do meu ser. A bem dizer,levem meu corpo, levem-no, não sou eu. E então, três vivas para Nantucket; quevenha um navio naufragado e um corpo naufragado, pois naufragar minha alma,o próprio Jove não pode.

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8 O PÚLPITO

Não fazia muito tempo que eu estava sentado quando um homemde uma venerável solidez entrou; assim que a porta, impelida pelo vento, se abriupara admiti-lo, o rápido olhar lançado sobre ele por toda a congregação foi osuficiente para atestar que aquele portentoso senhor era o capelão. Sim, era ofamoso padre Mapple, assim chamado pelos baleeiros, que muito o admiravam.Tinha sido marinheiro e arpoador na juventude, mas já havia muitos anos que sededicava ao ministério. Na época a que me refiro, o padre Mapple estava noinverno rigoroso de uma velhice sadia; o tipo de velhice que parece mesclar-se aodesabrochar de uma segunda juventude, pois entre todos os sulcos de suas rugasbrilhavam certos tons suaves de uma nova floração – o verdor da primaveradespontando mesmo sob a neve de fevereiro. Ninguém que tivesse ouvido suahistória poderia deixar de olhar para o padre Mapple com o maior interesse,porque havia certas peculiaridades clericais enxertadas em seu caráter,imputáveis àquela aventureira vida marítima que ele antes levara. Quandoentrou, vi que ele não trazia guarda-chuva e que por certo não tinha vindo emsua carruagem, porque a neve escorria de seu chapéu alcatroado e seu grandecasaco de piloto parecia forçá-lo para o chão com o peso da água que tinhaabsorvido. Mas tirou o chapéu, o casaco e as galochas, pendurando-os num cantopróximo; depois, vestido com decoro, tranqüilamente se aproximou do púlpito.

Como a maioria dos púlpitos antiquados, este era muito alto, e como parachegar lá teria sido preciso uma escada muito grande, com um ângulo muitoaberto no chão, o que diminuiria ainda mais a área diminuta da capela, oarquiteto, como que por sugestão do padre Mapple, terminou o púlpito semcolocar uma escada comum, substituindo-a por uma escada lateral perpendicular,como as que são usadas para subir a bordo de um navio vindo de um barco. Aesposa de um capitão baleeiro havia doado um par de cordas vermelhas, tingidasda cor do mogno, e o conjunto todo, considerando-se o tipo de capela, não era demau gosto. Parando por uns instantes ao pé da escada, segurando com as duasmãos os nós ornamentais das cordas, o padre Mapple olhou para cima e, comuma destreza de marinheiro, mas ainda reverente, subiu as escadas como seestivesse subindo ao mastro de sua embarcação.

As partes perpendiculares dessa escada lateral, como ocorre em escadassuspensas, eram de uma corda recoberta por tecido, apenas os degraus eram demadeira, de tal modo que em cada degrau havia um nó. À primeira vista, não

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deixei de notar que esses nós, embora úteis num navio, pareciam desnecessáriosali. Mas eu não sabia que o padre Mapple, depois de atingir as alturas, iria se virardevagar e, debruçando-se sobre o púlpito, puxar a escada degrau por degrau, atéque desaparecesse toda no interior do púlpito, deixando-o isolado em suapequena Quebec.

Refleti por algum tempo sem compreender o motivo desse gesto. PadreMapple gozava da reputação de homem sincero e santo, e eu não poderia suporque fosse capaz de cortejar a notoriedade com simples truques cênicos. Não,pensei, deve haver uma razão muito séria para isso; além disso, deve simbolizaralgo despercebido. Seria possível, então, que com um ato de isolamento físico elequisesse representar seu retiro espiritual, distante de todos os laços e ligaçõesexteriores com o mundo? Sim, pois repleto da carne e do vinho do mundo, parao fiel servidor de Deus esse púlpito – entendo – se tornava uma fortaleza fechada– a imponente Ehrenbreitstein, com uma fonte de água perene dentro das suasmuralhas.

Mas a escada lateral não era a única característica estranha do lugar, ligada àantiga vida de marinheiro do capelão. Entre os cenotáfios de mármore de cadaum dos lados do púlpito havia uma parede ao fundo, enfeitada com um grandequadro, que representava um navio enfrentando uma tempestade terrível nasimediações de um litoral de rochas negras com ondas alvas. Mais no alto, acimada tormenta e das nuvens carregadas, flutuava uma pequena ilha de luz, da qualirradiava o rosto de um anjo; e este rosto iluminado lançava um jato de luz sobreo convés balançante do navio, parecido com a placa de prata hoje posta naprancha do Vitória, em que Nelson caiu. “Ah!, nobre navio!”, o anjo parecia dizer,“avante, avante, ó, nobre navio, sustenta o duro elmo! Bem vês que o sol abrecaminho; as nuvens se dissipam – e o azul mais sereno começa a despontar.”

E nem mesmo ao púlpito faltava traço do mesmo gosto marítimo que faziaparte da escada e do quadro. A frente, como um painel, lembrava uma falsa proa,e a Santa Bíblia repousava sobre um pedaço de madeira talhada, cujas formasimitavam o bico arrabecado de um navio.

O que poderia ser mais significativo? – uma vez que o púlpito é sempre a partemais avançada da terra; todo o resto vem depois; o púlpito lidera o mundo. É delá que se vê surgir a ira de Deus, e a proa deve suportar o primeiro tranco. É de láque se invoca o Deus dos ventos bons ou ruins, na esperança de ventos favoráveis.Sim, o mundo é um navio numa travessia sem regresso; e o púlpito é sua proa.

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9 O SERMÃO

O padre Mapple levantou-se e, com a voz tranqüila de umamodesta autoridade, ordenou às pessoas espalhadas que se agregassem. “Pranchade estibordo, ali! Correr a bombordo! – E da prancha de bombordo, a estibordo! Àmeia-nau! À meia-nau!”

Ouviu-se entre os bancos um leve rumor de botas pesadas de marinheiros, eum ainda mais leve arrastar de sapatos femininos, e tudo retornou ao silêncio, etodos os olhares se fixaram no pregador.

Ele fez uma pequena pausa; depois se ajoelhou no púlpito, cruzou as suasgrandes mãos morenas sobre o peito, levantou os olhos fechados e fez umaoração com tão profunda devoção que parecia estar ajoelhado e rezando nofundo do mar.

Assim terminando, com tom de voz solene e prolongado, como o dobrecontínuo do sino de um navio navegando no meio de um nevoeiro – com omesmo tom ele começou a entoar o seguinte hino, passando nas últimas estrofesà explosão de uma retumbante exultação e alegria:

As costelas e os terrores na baleiaCobriram-me de uma escuridão lúgubre,Enquanto as ondas iluminadas pelo SenhorArrastavam-me para o fundo do abismo.

Eu vi a boca aberta do inferno,Com as suas dores e pesares infinitos;Só quem sentiu pode saber –Oh! Afundei-me no desespero!

Na minha angústia chamei pelo Senhor,Que mal podia crer que fosse meu,Ele prestou ouvido às minhas queixas,E a baleia me pôs em liberdade.

Acudiu sem demora em meu socorroComo se transportado por um golfinho radiante;Brilhou na água como um raio

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O rosto do meu Libertador terrível e divino.

No meu canto sempre vou recordarEsta hora terrível e magnífica;A glória é do meu Senhor,Sua é a força, e é Sua a misericórdia.

Quase todos cantaram juntos este hino, que se elevou acima do estrondosotemporal. Uma pausa se seguiu; o pregador começou a folhear lentamente aBíblia e por fim, pousando sua mão sobre a página certa, disse: “Bem-amadoscompanheiros de bordo, vamos nos prender ao nó do último versículo doprimeiro capítulo de Jonas – ‘Deparou, pois, o Senhor um grande peixe, para quetragasse a Jonas’.

“Companheiros de bordo, este livro que só tem quatro capítulos – quatromeadas – é uma das menores tramas da poderosa corda das Escrituras. E, noentanto, que profundidades da alma a linha-d’água de Jonas sonda! Quão prenheé a lição que nos ensina o profeta! Como é nobre o cântico do interior do ventreda baleia! Como ondula, tão tempestuosamente solene! Sentimos a inundaçãolançar-se sobre nós; com ele tocamos algas do fundo das águas; as plantasmarinhas e todo o limo do mar nos cercam! Mas qual é a lição que o livro deJonas nos ensina? Companheiros de bordo, é uma lição de dois fios; uma liçãopara todos nós, pecadores, e uma lição para mim, como piloto do Deus vivo.Falando aos pecadores, é uma lição para todos nós, porque é uma história dopecado, da insensibilidade, dos temores subitamente despertos, das puniçõesimediatas, do arrependimento, das orações e, finalmente, da libertação e dojúbilo de Jonas. Como sucede com todos os pecadores, o pecado desse filho deAmitai foi sua desobediência obstinada do mandamento de Deus – não importaqual ou como foi transmitido o mandamento – que Jonas achou difícil decumprir. De resto, todas as coisas que Deus ordena são difíceis de cumprir –lembrem-se disso – e por isso é mais freqüente ouvi-Lo comandar do que tentarnos persuadir. E para obedecermos a Deus temos que desobedecer a nós mesmos;é nesta desobediência de nós mesmos que consiste a dificuldade de obedecer aDeus.

“Com este pecado da desobediência em si, Jonas ainda escarnece de Deus,tentando Dele fugir. Ele acha que um navio feito por homens pode levá-lo aregiões onde Deus não reina, mas apenas os Capitães deste mundo. Erra pelo caisde Jope, procurando um navio que vá para Társis. Talvez haja aí um significadoaté agora despercebido. Tudo indica que Társis não pode ter sido outra cidadesenão a moderna Cádiz. Esta é a opinião dos homens cultos. E onde fica Cádiz,

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companheiros de bordo? Cádiz fica na Espanha. Era o lugar mais distante de Jopeque Jonas podia alcançar naqueles tempos antigos, quando o Atlântico era umoceano quase desconhecido. Porque Jope, a moderna Jafa, companheiros debordo, fica na costa da Síria, no extremo oriente do Mediterrâneo; e Társis, ouCádiz, mais de duas mil milhas a oeste de lá, logo depois do estreito de Gibraltar.Bem vedes que Jonas, companheiros de bordo, procurava fugir de Deus pelomundo. Que homem miserável! Oh! Que vergonhoso e digno de todo o desprezo!Com o chapéu amarrotado e olhos culpados, fugindo de seu Deus; andando aesmo entre as embarcações, como um vil ladrão, tentando atravessar os mares.Sua aparência é tão desarrumada e tão reprovável que, se naquela épocaexistissem policiais, Jonas teria sido preso como suspeito antes de chegar aoconvés. É evidente que é um fugitivo! Sem bagagem, nem uma caixa de chapéu,mala ou sacola de viagem – sem amigos para acompanhá-lo até o cais para dizeradeus. Por fim, depois de muita busca furtiva, encontra um navio para Társisrecebendo os últimos itens de seu carregamento; e, quando sobe a bordo parafalar com o Capitão no camarote, todos os marinheiros param de içar asmercadorias para prestar atenção ao olhar maligno do forasteiro. Jonas percebe,mas em vão procura conforto e confiança; em vão esboça um sorriso infeliz. Umaintuição muito forte assegura aos marinheiros que o homem não pode serinocente. Em tom jocoso, mas falando sério, um sussurra ao outro – ‘Jack, eleroubou uma viúva’; ou ‘Joe, marca esse cara; ele é bígamo’; ou, ‘Harry, meu filho,acho que ele é o adúltero que fugiu da prisão de Gomorra, ou talvez um dosassassinos desaparecidos de Sodoma’. Um outro corre para ler o cartaz que estápregado num pilar do cais onde o navio está ancorado, oferecendo quinhentasmoedas de ouro pela prisão de um parricida, e descrevendo a pessoa. Ele lê, olhade Jonas e volta para o cartaz, enquanto todos os seus companheiros de bordoentão se juntam em volta de Jonas, prontos para agarrá-lo. Assustado, Jonas treme,e, por mais que finja ter coragem, só consegue parecer ainda mais covarde. Nãoquer se confessar suspeito; mas mesmo isso já é coisa muito suspeita. Faz omelhor que pode; e, quando os marinheiros percebem que aquele não é ohomem procurado, deixam-no passar, e ele vai para o camarote.

“‘Quem está aí?’, grita o Capitão, atarefado na escrivaninha, arrumando ospapéis para a Alfândega. – ‘Quem está aí?’ Oh! Como uma pergunta tão simplespode perturbar tanto Jonas! Por um instante ele quase foge outra vez. Mas logo sereanima. ‘Procuro uma passagem neste navio para Társis; quando tenciona partir,senhor?’ Até então o atarefado Capitão ainda não tinha olhado para Jonas,embora o tivesse bem diante de si; mas, quando ouve aquela voz cavernosa,lança-lhe um olhar perscrutador. ‘Zarpamos com a próxima maré’, respondeulentamente, sem tirar os olhos de Jonas. ‘Tão tarde, senhor?’ – ‘Cedo o bastante

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para um homem honesto ir como passageiro.’ Ah, Jonas, outra punhalada! Masele procura rapidamente despistar o Capitão. ‘Vou zarpar com o senhor’, – diz ele–, ‘A passagem, quanto custa? – Pago já!’ Pois está escrito, companheiros debordo, como se fosse algo a não ser esquecido nessa história, ‘que ele pagou, pois,sua passagem’ antes de a embarcação partir. E, naquele contexto, isso é muitosignificativo.

“Ora, o Capitão de Jonas, companheiros de bordo, era um daqueles homenscujo discernimento detecta um crime onde houver, mas cuja cobiça o leva adenunciar apenas os que não têm dinheiro. Neste mundo, companheiros debordo, o Pecado que pagar sua passagem pode viajar tranqüilamente, e sempassaporte; ao passo que a Virtude, se for pobre, é detida em todas as fronteiras.Por isso, o Capitão de Jonas se prepara para avaliar o peso da bolsa de Jonas, antesde julgá-lo abertamente. Cobra-lhe o triplo de uma passagem comum; e Jonasconcorda. O Capitão sabe, então, que Jonas é um fugitivo; mas ao mesmo temporesolve ajudar uma fuga que deixa atrás de si moedas de ouro. Mas, quando Jonaslhe apresenta a bolsa, suspeitas prudentes assolam o Capitão. Faz soar cadamoeda, para ver se não há nenhuma falsa. Não é um falsário, murmura,inscrevendo Jonas no livro de bordo. ‘Mostre-me minha cabine, senhor’, diz Jonas,‘estou cansado da viagem; preciso dormir.’ ‘Bem se vê’, diz o Capitão, ‘o quarto éali.’ Jonas entra, quer trancar a porta, mas não tem nenhuma chave na fechadura.Ao ouvi-lo mexer ali, o Capitão ri baixinho para si mesmo e murmura algo sobrea porta dos condenados nunca poder ser trancada pelo lado de dentro. Vestido eempoeirado como está, Jonas se joga no leito e percebe que o teto da pequenacabine quase bate em sua testa. O ar é estagnado, e Jonas está ofegante. Então,naquele cubículo exíguo, abaixo do nível do mar, Jonas tem o pressentimento dosufoco de quando a baleia o aprisionará em suas entranhas mais estreitas.

“Uma lâmpada presa pelo eixo na parede balança um pouco no quarto deJonas; e o navio, adernando para o cais com o peso do último carregamento, alâmpada, chama e tudo o mais, embora com mínimos movimentos, aindamantêm uma obliqüidade permanente em relação ao quarto; embora, naverdade, mantendo-se reta, a lâmpada só evidencie a inconstância dos planosentre os quais está suspensa. A lâmpada intimida e assusta Jonas; o fugitivo, bem-sucedido até aquele momento, deitado em seu leito, não encontra repouso paraos seus olhos atormentados. Mas aquela contradição da lâmpada o amedrontacada vez mais. O chão, o teto e a parede estão errados. ‘Oh! É assim que minhaconsciência balança, pendurada sobre mim!’ – ele geme – ‘Bem acima de mim,ela queima verticalmente; mas as cabinas de minha alma estão todas tortas!’

“Assim como alguém que depois de uma noite bêbada de festa se apressa em irpara cama, ainda cambaleante, mas com a consciência aflita, como as

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arremetidas de um cavalo de corrida romano, quanto mais lhe fere o aço dasesporas; assim como alguém que nesse estado miserável ainda vira e revira emsua angústia vertiginosa, pedindo a Deus para que o aniquile até que passe acrise; e enfim, em meio a esse torneio de tormentos que sente, ele é acometidode uma letargia profunda, a mesma que acomete um homem que se esvai emsangue, porque a consciência é a ferida, e não existe nada que a estanque; assim,depois de penoso debater-se no leito, o prodígio de tamanha desgraça arrastaJonas para afogá-lo nas profundezas do sono.

“E agora a hora da maré chegou; o navio para Társis solta os seus cordames; edo cais deserto, sem um adeus, ele desliza, inteiro inclinado, para o mar. Aquele,meus amigos, é o primeiro navio de contrabandistas registrados que se conhece!O contrabando era Jonas. Mas o mar se revolta; ele não suportará o fardoperverso. Rebenta um temporal horrível, e o navio está prestes a afundar. Masagora que o contramestre chama a todos para esvaziá-lo; que caixas, pacotes efrascos são jogados sobre a amurada; que o vento uiva, os homens gritam, e todasas tábuas trovejam com os passos dos marinheiros sobre a cabeça de Jonas; comtoda essa turba enfurecida, Jonas dorme seu sono abominável. Não vê o céu negroe o mar em fúria, a madeira estalar não sente, e pouco escuta ou percebe oavanço distante da poderosa baleia, que desde já, de boca aberta, singra os maresem sua busca. Sim, companheiros de bordo, Jonas tinha descido para o costadodo navio – para um leito na cabine, como contei, e dormia profundamente. Mas omestre assustado vai a ele e grita em seu ouvido inerte, ‘O que significa isso, ó,dorminhoco! Levanta-te!’. Arrancado de sua letargia por esse grito horrível, Jonaspõe-se de pé, e cambaleando até o convés agarra-se a um brandal para observar omar. Mas naquele momento, como se fosse uma pantera saltando pela amurada,rebenta sobre ele o vagalhão. Ondas e mais ondas se atiram sobre o navio e, nãoencontrando escoamento ao rugirem de popa a proa, quase afogam osmarinheiros ainda a bordo. E, quando a lua branca mostra seu rosto amedrontadopor entre os sulcos profundos da escuridão acima, Jonas vê aterrorizado o gurupésse erguendo, apontando alto, para em seguida precipitar-se novamente emdireção às profundezas atormentadas.

“Terrores e mais terrores dilaceram sua alma. Por todos os seus atosamedrontados, o fugitivo de Deus é agora mais do que reconhecido. Osmarinheiros observam-no; suspeitam dele cada vez mais, e por fim, para teremuma prova da verdade, submetendo toda a questão aos Céus, tiram a sorte parasaber por causa de quem esta tormenta tão poderosa foi lançada sobre eles. Asorte cai sobre Jonas; enfurecidos, começam então a assaltá-lo com perguntas.‘Qual é tua ocupação? De onde vens? De qual país? De que povo?’ Mas observem,meus companheiros de bordo, o comportamento do pobre Jonas. Os marinheiros

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ansiosos apenas lhe perguntam quem é ele e de onde vem; no entanto, eles nãorecebem apenas uma resposta a tais perguntas, mas também a uma pergunta quenão tinham feito; a resposta não solicitada é forçada pela mão pesada de Deus,que cai sobre ele.

“‘Sou um hebreu’, grita – e logo depois – ‘Temo a Deus, Senhor do Céu,criador do mar e da terra.’ Temes a Deus, ó, Jonas? Bem podias ter temido a Deusantes! Sem demora, faz uma confissão plena; apesar de os marinheiros estaremcada vez mais estarrecidos, mesmo assim se apiedam. Pois quando Jonas, aindasem suplicar a misericórdia de Deus, conhecendo muito bem a obscuridade desua deserção – pois bem, quando o desgraçado Jonas lhes pede que o agarrem e oatirem ao mar, porque sabe que por sua causa a tempestade caíra sobre eles; osmarinheiros, com pena, se afastam dele e buscam um outro meio de salvar onavio. Mas tudo em vão; o vendaval revoltante uiva ainda mais alto; então, comuma mão erguida para invocar Deus, com a outra os marinheiros, não semrelutância, seguram Jonas.

“Vejam agora Jonas, erguido como uma âncora, ser jogado ao mar; quandoinstantaneamente uma calmaria untuosa vem do leste, e o mar fica imóvel,enquanto Jonas afunda levando consigo o vendaval, deixando a água serena atrásde si. Ele desce no coração rodopiante dessa comoção desgovernada e malpercebe que cai em direção à boca escancarada que o aguarda; e a baleia cerra osdentes de marfim, como inúmeros ferrolhos brancos, sobre sua prisão. EntãoJonas orou ao Senhor de dentro da barriga do peixe. Mas observem sua oração eaprendam uma lição importante. Por mais que tenha pecado, Jonas não lamentanem se lastima pedindo sua libertação. Ele sente que seu terrível castigo é justo.Deixa que Deus decida sobre sua libertação, contentando-se com isto, que apesarde toda a dor e angústia ele ainda eleva o pensamento a Seu templo sagrado. Eisaqui, companheiros de bordo, o genuíno e fiel arrependimento; sem clamor deperdão, mas grato pelo castigo. E como a conduta de Jonas agradou a Deus, vê-sepor sua libertação do mar e da baleia. Companheiros de bordo, não ponho Jonasdiante de vocês para que lhe copiem o pecado, mas sim como modelo dearrependimento. Não pequem; mas, se o fizerem, arrependam-se como Jonas.”

Enquanto proferia essas palavras, os uivos da clamorosa tempestade quedesabava do lado de fora pareciam acrescentar mais força ao pregador, que,descrevendo a tempestade no mar de Jonas, parecia ele próprio atirado àtempestade. Seu peito arfava como se num maremoto; seus braços agitadospareciam a fúria dos elementos; e os trovões que saíam de sua fronte escura e aluz saltando de seus olhos faziam com que todos os seus simples ouvintesolhassem para ele com um temor súbito, que lhes era estranho.

Eis que então seu olhar se aliviou, enquanto ele silenciosamente virava as

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páginas do Livro outra vez; e, por fim, de pé, imóvel, de olhos fechados, por ummomento, pareceu comungar com Deus e consigo.

Mas novamente se inclinou para a frente dirigindo-se às pessoas, baixou acabeça, e com um aspecto da mais funda porém digna humildade proferiu estaspalavras:

“Companheiros de bordo, Deus colocou apenas uma das mãos sobre vós; masas duas pesam sobre mim. Ensinei-vos, com a luz enfumaçada que pode meuentendimento, a lição que Jonas ensina a todo pecador; portanto a vós, e aindamais a mim, pois sou um pecador maior do que vós. Com que alegria eu desceriado alto deste mastro e me sentaria aí nas escotilhas onde vós estais sentados,ficaria escutando como vós ficais, enquanto um de vós recita para mim a terrívellição que Jonas me ensina, como um piloto do Deus vivo. Como sendo ungidopiloto-profeta, ou orador das coisas verdadeiras, e escolhido do Senhor para fazersoar essas verdades indesejáveis nos ouvidos da vil Nínive, Jonas, temendo ahostilidade que suscitaria, fugiu de sua missão e tentou escapar a seu dever e aseu Deus embarcando em Jope. Mas Deus está em toda parte; a Társis ele jamaischegou. Como vimos, Deus veio até ele na baleia e o engoliu, tragando-o nosgolfos da perdição, e arrastou-o por quedas rápidas ‘até o coração do mar’, ondeos redemoinhos das profundezas o sugaram milhares de braças para baixo, e ‘asalgas se enrolaram em sua cabeça’, e todo o mundo marinho de infortúniostranscorreu sobre ele. Mas mesmo então, além de qualquer sonda – ‘nas víscerasdo inferno’ –, quando a baleia encalhou nos ossos do fundo do oceano, mesmoentão, Deus escutou o arrependimento do profeta engolido quando ele gritou.Então Deus falou com o peixe; e da frieza tiritante e do negrume do mar a baleiasubiu na direção do agradável e caloroso sol, e de todas as delícias do ar e daterra, e ‘vomitou Jonas na terra firme’; quando a palavra do Senhor veio pelasegunda vez; e Jonas, alquebrado e abatido – seus ouvidos, como duas conchas domar ainda ressoando o inumerável murmúrio do oceano –, Jonas cumpriu asordens do Todo-Poderoso. E qual era a ordem, companheiros de bordo? Pregar aVerdade diante da Falsidade! Isso mesmo!

“Esta, companheiros de bordo, esta é aquela outra lição; e ai do piloto do Deusvivo que a desdenha. Ai de quem o mundo distrai do dever do Evangelho! Ai dequem tenta verter azeite sobre as águas, quando Deus as fermenta emtempestade! Ai de quem tenta agradar em vez de consternar! Ai daquele paraquem um nome bom significa mais do que a bondade! Ai de quem, nestemundo, não receia a desonra! Ai de quem não for verdadeiro, mesmo que afalsidade seja a salvação! Sim, ai de quem, como diz o grande Piloto Paulo, pregaaos outros ao mesmo tempo em que também está perdido!”

Por uns instantes recolheu-se a uma reflexão; depois levantou o rosto

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novamente, mostrando uma profunda alegria nos olhos, e proclamou com muitoentusiasmo: “Mas, oh! Companheiros! A estibordo de todo infortúnio é certo queexiste uma alegria; e o ápice dessa alegria é tanto mais alto quanto mais profundoé o infortúnio. Não são mais altos os topes de mastro do que profundas asquilhas? A alegria – uma alegria elevada, elevadíssima, do coração – é paraaqueles que opõem sua inexorável personalidade aos deuses e aos comodorosorgulhosos deste mundo. A alegria é para aquele cujos braços fortes o sustentamquando a nau deste mundo traiçoeiro e ignóbil lhe afunda sob os pés. A alegria épara aquele que não cede à mentira e que mata, queima e destrói o pecado,mesmo que tenha que procurá-lo sob as togas dos Senadores e Juízes. A alegria –a alegria suprema – é para aquele que não conhece outra lei ou senhor a não serseu Deus, nem outra pátria que o céu. A alegria é para aquele a quem nem asondas do mar nem as turbulências da multidão conseguem desviar da Quilha dosTempos. E a alegria e a delícia eterna são para aquele que ao deitar-se pode dizercom seu último alento – Ó, Pai! – que conheço especialmente por Tua verga –mortal ou imortal, aqui eu morro. Esforcei-me para ser Teu, mais do que domundo ou de mim próprio. Contudo, isso não é nada: deixo a eternidade só paraTi; pois o que é o homem, para viver tanto quanto seu Deus?”

Não disse mais nada, mas, fazendo lentamente uma bênção, cobriu seu rostocom as mãos e assim ficou, de joelhos, até que todos partiram, deixando-osozinho no local.

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10 UM AMIGODO PEITO

Ao voltar da Capela à Estalagem do Jato, lá encontrei Queequegtodo sozinho; tinha saído da Capela um pouco antes da bênção.

Estava sentado num banco diante do fogo, com os pés na lareira; com uma dasmãos segurava, perto do rosto, seu pequeno ídolo negro; olhava atento para orosto do ídolo e com um canivete delicadamente lhe diminuía o nariz, enquantocantarolava para si mesmo em seu modo pagão.

Mas, sendo então interrompido, colocou a imagem de lado; e logo, dirigindo-se à mesa, pegou um livro grande e, colocando-o no colo, começou a contar aspáginas com uma regularidade deliberada; a cada cinqüenta páginas – parece-me– parava um pouco, olhava despreocupadamente à sua volta e soltava um longo egorgolejante assobio de espanto. Depois recomeçava com as próximas cinqüenta;parecia começar sempre no número um, como se não soubesse contar mais doque cinqüenta, e era apenas com um tal número de cinqüentas encontradosjuntos que seu espanto diante da multidão de páginas surgia.

Com muito interesse, sentei-me a observá-lo. Embora fosse um selvagem, comhorrendas marcas no rosto – na minha opinião, pelo menos –, suas feiçõestinham contudo algo que não era de modo algum desagradável. Você não podeesconder a alma. Através de todas as suas tatuagens sobrenaturais, pensei ter vistotraços de um coração simples e honesto; e em seus olhos grandes e profundos, deum negro vívido e audaz, lampejava uma coragem capaz de desafiar mildemônios. E além de tudo isso o Pagão tinha uma certa altivez de postura, quenem mesmo sua incivilidade conseguia atrapalhar. Parecia um homem quenunca tinha se curvado diante de alguém, nem tido credores. Se isso se devia aofato de estar sua cabeça raspada, deixando a testa mais livre e brilhante,aparentemente maior do que de outro modo seria, não arriscarei dizer; mas certoera que sua cabeça era frenologicamente excelente. Pode parecer ridículo, masme lembrava a cabeça do General Washington, como vista nos bustos maisconhecidos. Tinha a mesma longa e gradual depressão acima das sobrancelhas,que também se projetavam como dois longos promontórios densamente cobertospela mata. Queequeg era uma versão canibal de George Washington.

Enquanto eu o examinava assim minuciosamente, como que fingindo nesseínterim estar olhando a tempestade da janela, ele não prestou atenção à minhapresença e tampouco se incomodou em me lançar um simples olhar; mas pareciainteiramente ocupado em contar as páginas daquele livro maravilhoso.

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Considerando a sociabilidade com que dormíramos juntos na noite anterior e, emespecial, considerando o braço afetuoso que encontrei jogado em cima de mimenquanto acordava pela manhã, julguei sua indiferença muito estranha. Mas osselvagens são criaturas estranhas; às vezes você não sabe como lidar com eles. Aprincípio são intimidantes; sua simplicidade calma e contida parece umasabedoria socrática. Também tinha notado que Queequeg nunca, ou quase nunca,se juntava aos outros marinheiros da estalagem. Não tomava nenhuma iniciativa;parecia não desejar aumentar o círculo das suas relações. Tudo isso me pareciamuito estranho; mas, pensando melhor, havia algo de sublime nisso. Era umhomem que estava a mais de vinte mil milhas de sua terra, a caminho do caboHorn – que era o único caminho para se chegar lá –, jogado no meio de pessoasque para ele eram tão estranhas quanto se estivesse no planeta Júpiter; e, aindaassim, ele parecia bem à vontade; preservando ao máximo sua serenidade;satisfeito com sua própria companhia; sempre igual a si mesmo. É certo que issoera um toque de boa filosofia; embora ele sem dúvida jamais tivesse ouvido falarde algo parecido. Mas, talvez, para sermos verdadeiros filósofos, a nós, mortais,fosse necessário viver e lutar sem termos consciência disso. Tão logo um homemse apresente como filósofo, concluo que, como a velha dispéptica, ele deve ter“estragado o aparelho digestivo”.

Durante um tempo fiquei sentado ali naquele aposento solitário; o fogo baixo,num estágio intermediário após sua primeira intensidade ter aquecido o ar,apenas brilhando para ser olhado; as sombras e os fantasmas noturnos sejuntando nos vãos das janelas, observando-nos, silenciosa e solitária dupla; atempestade bramindo lá fora em ondas solenes; comecei a ter consciência desentimentos estranhos. Senti algo derretendo em mim. Meu coração despedaçadoe minhas mãos enlouquecidas já não se rebelavam contra o mundo lupino. Esteselvagem conciliador o redimira. Lá estava ele sentado, sua indiferença era deuma natureza que não conhecia nem a hipocrisia civilizada, nem a fraude maisbranda. Era um selvagem; um espetáculo dentre os espetáculos; contudo,comecei a me sentir misteriosamente atraído por ele. E aquelas mesmas coisasque teriam repelido a maioria dos outros eram os próprios ímãs que assim meatraíam. Vou experimentar um amigo pagão, pensei, já que a bondade Cristã serevelou mera cortesia vazia. Arrastei meu banco para perto dele e fiz sinais egestos amistosos, enquanto me esforçava para falar com ele. No começo ele malnotou meus movimentos, mas dentro em pouco, quando me referi à suahospitalidade da noite anterior, ele me perguntou se seríamos novamentecompanheiros de cama. Disse-lhe que sim; pareceu-me satisfeito, talvez até umpouco lisonjeado.

Nós então folheamos o livro juntos, e fui diligente em lhe explicar o propósito

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da impressão e o significado das poucas ilustrações que ali encontramos. Assim,logo cativei seu interesse; e em seguida passamos a tagarelar o mais quepodíamos sobre outros lugares que podiam ser visitados nesta cidade famosa. Depronto propus que fumássemos; e, pegando sua bolsa para tabaco e suamachadinha, calmamente me ofereceu uma baforada. E ficamos então sentados,alternando baforadas daquele cachimbo esquisito, que passávamos um para ooutro.

Se ainda restasse um vestígio de indiferença ou frieza no coração do Pagão emrelação a mim, esta agradável e cordial cachimbada derreteu o gelo, e nostornamos amigos íntimos. Ele parecia ter se afeiçoado a mim tão natural eespontaneamente quanto eu a ele; e, quando acabamos de fumar, encostou suatesta na minha, puxou-me pela cintura e disse que a partir daquele momentoestávamos casados; o que significava no dizer de seu país que éramos amigos dopeito; morreria por mim de boa vontade, se preciso fosse. Num conterrâneo, estesúbito ardor de amizade teria parecido um pouco prematuro, algo bastantesuspeito; mas a este simples selvagem as tais velhas regras não se aplicavam.

Após o jantar, e após novas conversas e fumadas, fomos juntos para o nossoquarto. Deu-me de presente sua cabeça embalsamada; pegou sua enorme bolsade tabaco e, tateando por debaixo do tabaco, pegou uns trinta dólares emmoedas; espalhou-as sobre a mesa e, dividindo-as mecanicamente em duasporções iguais, empurrou uma delas em minha direção e disse que eram minhas.Eu ia protestar; mas ele me deixou sem palavras quando as derramou nos bolsosde minha calça. Deixei-as ficar. Ele então começou suas orações noturnas, pegouseu ídolo e removeu o aparador. Devido a certos sinais e sons, pensei que eledevia estar ansioso para que eu me juntasse a ele; mas, sabendo bem o queaconteceria em seguida, deliberei por um momento se, caso ele me convidasse,deveria ou não aceitar.

Eu era um bom Cristão; nascido e logo trazido ao seio da infalível IgrejaPresbiteriana. Como então poderia me unir a esse idólatra selvagem na adoraçãode seu pedaço de madeira? Mas o que é a adoração?, pensei. Você então supõe,Ishmael, que o magnânimo Deus do céu e da terra – e até dos pagãos – podesentir ciúmes de um pedaço insignificante de madeira preta? Impossível! Mas oque é a adoração? – fazer o desejo de Deus – isso é adorar. E qual é o desejo deDeus? – fazer ao semelhante o que desejo que façam a mim – esse é o desejo deDeus. Ora, Queequeg é meu semelhante. E o que gostaria que Queequeg fizessepor mim? Ora, unir-se a mim em meu rito Presbiteriano de adoração. Portanto,eu devo unir-me a ele, logo, devo tornar-me um idólatra. Assim, acendi as aparas;ajudei a pôr o idolozinho inocente de pé; ofereci-lhe biscoito queimado comQueequeg; fiz uns dois ou três salamaleques diante dele; beijei seu nariz;

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terminadas essas cerimônias, nos despimos e fomos para a cama, em paz com asnossas consciências e em paz com o mundo todo. Mas não adormecemos semantes papear um pouco.

Não sei por quê; mas não há lugar mais propício para confidências entreamigos do que uma cama. Marido e mulher, dizem, ali abrem até o fundo daalma um para o outro; e alguns casais idosos muitas vezes ficam deitadosconversando sobre os velhos tempos até o amanhecer. E assim, na lua-de-mel denosso coração, eu e Queequeg ficamos deitados – um casal aconchegante eamoroso.

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11 CAMISOLA

Ficamos assim deitados na cama, conversando e cochilando depouco em pouco, e de vez em quando Queequeg jogava suas pernas morenas etatuadas com carinho sobre as minhas, tirando-as em seguida; havia totalliberdade entre a gente, éramos tranqüilos e confidentes; por fim, comoconseqüência das nossas confabulações, perdemos o pouco sono que nos restava esentimos vontade de nos levantar de novo, embora a alvorada ainda estivessemuito distante no futuro.

Sim, ficamos bem despertos; tanto que a posição recostada começou a setornar cansativa, e pouco a pouco fomos nos sentando; as cobertas bemaconchegantes em torno de nós, encostados na cabeceira da cama, nossos quatrojoelhos erguidos um bem ao lado do outro, e nossos dois narizes sobre eles, comose nossas patelas fossem panelas. Sentíamo-nos muito bem e protegidos, aindamais porque estava tão frio lá fora; na verdade até fora das cobertas também, jáque não havia lareira no quarto. Ainda mais, digo, porque para se desfrutar defato do calor do corpo é preciso que uma pequena parte sua ainda esteja fria, poisnão há qualidade neste mundo que não o seja por contraste. Nada existe em simesmo. Quando você se gaba de se sentir bem confortável e fica assim por umlongo tempo, então já não se pode mais dizer que você continua confortável domesmo modo. Porém, se, como no caso de Queequeg e eu na cama, se a ponta deseu nariz ou o topo de sua cabeça está um pouquinho frio, então na percepçãogeral você sente o mais delicioso e inequívoco calor. Por essa razão, um quarto dedormir nunca deveria ter lareira, o que é um dos desconfortos luxuosos do rico.Porque o apogeu desta espécie de delícia é não ter nada além do cobertor entrevocê e seu corpo abrigado e o frio do ar externo. Então ali você se deita como aúnica centelha de calor no coração de um cristal ártico.

Ficamos nessa posição encolhida por algum tempo, quando de repente acheique devia abrir os olhos; porque quando estou debaixo dos lençóis, seja de dia oude noite, dormindo ou acordado, costumo sempre ficar de olhos fechados paramelhor me concentrar no conforto de estar na cama. Porque homem nenhumpode sentir plenamente sua própria identidade se não estiver de olhos fechados;como se a escuridão fosse mesmo o elemento apropriado das nossas essências,ainda que a luz seja mais propícia ao barro de nossa natureza. Ao abrir os olhos,então, deixando as aprazíveis trevas de minha criação pela brutal escuridãoimposta por uma meia-noite mal iluminada, experimentei uma repulsa

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desagradável. Também não fiz nenhuma objeção quando Queequeg sugeriu queacendêssemos a luz, visto estarmos tão bem acordados; além disso, ele estavacom um desejo muito forte de dar umas poucas e calmas baforadas em seucachimbo. Veja como, embora eu tivesse sentido repugnância por ele fumar nacama na noite anterior, nossos rígidos preconceitos se tornam elásticos quando oamor vem dobrá-los. Pois agora não havia nada que me agradasse mais do queQueequeg fumando ao meu lado, até na cama, porque ele o fazia pleno de umaserena alegria doméstica. Não me sentia mais indevidamente preocupado com aapólice de seguro do proprietário. Sentia apenas alegria com o confortocondensado e confidencial de dividir um cachimbo e um cobertor com umamigo de verdade. Com os nossos casacos felpudos sobre os ombros, passávamoso cachimbo um para o outro até que se formou sobre nós uma nuvem de fumaçaazul, iluminada pela chama do candeeiro recém-aceso.

Se foi esse baldaquino de fumaça que levou o selvagem para lugares distantes,não sei, mas ele agora falava de sua ilha natal; e, ansioso por ouvir sua história,pedi-lhe que continuasse contando. Ele concordou de boa vontade. Ainda que naocasião eu entendesse algumas poucas palavras, relatos posteriores, quando eu jáestava familiarizado com sua fraseologia estropiada, me habilitaram a apresentara história inteira, como no mero esqueleto que ofereço.

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12 BIOGRÁFICO

Queequeg era nativo de Kokovoko, uma ilha distante ao Oestee Sul. Não está em nenhum mapa; os verdadeiros lugares nunca estão.

Quando era apenas um jovem selvagem correndo por suas florestas nativasnuma tanga de capim, seguido por cabras que o mordiscavam como se ele fosseum broto verde, já naquela época, na alma ambiciosa de Queequeg espreitava oforte desejo de ver algo mais da Cristandade do que apenas alguns exemplares debaleeiros. Seu pai era um Grande Chefe, um Rei; seu tio, um Grande Sacerdote; epelo lado materno podia ostentar tias que eram esposas de guerreiros invencíveis.Havia excelente sangue em suas veias – sangue real; embora infelizmente viciado,receio, dada a propensão ao canibalismo que alimentou em sua juventudedesprovida de tutores.

Um navio de Sag Harbor visitou a baía de seu pai e Queequeg pediu umapassagem a bordo para as terras Cristãs. Mas o navio, estando com a tripulaçãocompleta, recusou seu pedido; nem toda a influência do Rei, seu pai, conseguiupersuadi-los. Mas Queequeg fez um juramento. Sozinho em sua canoa, remou atéum estreito distante, por onde sabia que o navio teria de passar quando saísse dailha. De um lado havia um recife de coral; do outro, uma língua estreita de terra,coberta por espessos manguezais que cresciam na água. Escondendo a canoa,ainda dentro dela, no mangue, com a proa apontada para o mar, sentou-se napopa, os remos nas mãos; quando o navio passou, ele partiu como um raio;emparelhou com ele; com um chute para trás, a canoa virou e afundou; subiupelas correntes; e, atirando-se de bruços no convés, agarrou uma cavilha dearganéu e jurou que não a largaria nem que o cortassem em pedaços.

Em vão o capitão ameaçou atirá-lo ao mar; ergueu um facão sobre os seuspulsos descobertos; Queequeg era filho de Rei, e Queequeg não se mexeu.Intrigado por sua impetuosidade desesperada e seu desejo feroz de visitar aCristandade, o capitão cedeu por fim e disse-lhe que podia ficar à vontade. Maseste admirável jovem selvagem – este Príncipe de Gales marítimo, nunca foi àcabine do Capitão. Puseram-no embaixo com os marinheiros e fizeram dele umbaleeiro. Mas como o Czar Pedro, que quis trabalhar nos estaleiros de cidadesestrangeiras, Queequeg não desdenhou tal ignomínia, desde que adquirisse opoder de ilustrar seus patrícios desavisados. Pois no fundo – assim me disse –impelia-o um desejo profundo de aprender com os Cristãos as artes por meio dasquais pudesse fazer seu povo ainda mais feliz do que já era; e, mais do que isso,

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ainda melhor do que já era. Mas, ai!, o convívio com os baleeiros depressa oconvenceu de que também os Cristãos podiam ser tanto infelizes quanto cruéis;infinitas vezes mais do que os pagãos de seu pai. Chegou finalmente em SagHarbor; e vendo o que os marinheiros ali faziam; e seguindo para Nantucket; evendo como gastavam os seus soldos naquele lugar, o pobre Queequeg desistiu. Éum mundo perverso em todos os seus meridianos, pensou; vou morrer pagão.

E assim, idólatra convicto, ele viveu entre os Cristãos, vestiu as suas roupas etentou falar suas galimatias. Por isso tinha modos estranhos, embora havia muitoestivesse longe de sua terra.

Perguntei-lhe por gestos se não pretendia voltar e ser coroado; visto que seupai já deveria ter morrido, pela idade e fragilidade, segundo os últimos relatos.Disse que não, ainda não; e acrescentou que receava que a Cristandade, oumelhor, os Cristãos, o tinha tornado inadequado para subir ao trono puro eimaculado dos trinta Reis pagãos antes dele. Mas que, em breve, voltaria, disse –assim que se sentisse rebatizado. Contudo, por algum tempo, ainda querianavegar e deixar suas sementes por todos os quatro oceanos. Tinham feito delearpoador, e aquele ferro farpado ocupava agora o lugar de um cetro.

Perguntei-lhe qual era seu propósito imediato, em relação aos movimentosfuturos. Respondeu que queria ir ao mar de novo, seguindo sua antiga vocação.Em vista disso, declarei que a caça da baleia também era meu desígnio, e contei-lhe sobre minha intenção de partir para Nantucket, por ser o porto maispromissor para um baleeiro aventureiro embarcar. Ele decidiu na mesma horame acompanhar até aquela ilha, embarcar no mesmo navio, fazer a mesmavigília, no mesmo barco, na mesma enrascada que eu, em suma, partilhar deminha sorte; com as minhas duas mãos nas suas, mergulhá-las na gororoba deambos os mundos. Concordei alegre com tudo; porque, além da afeição quesentia por Queequeg, ele era um arpoador experiente e, como tal, de grande valiapara alguém que, como eu, era totalmente ignorante dos mistérios da caça debaleias, embora conhecesse bem o mar, como conhecem os marinheirosmercantes.

Terminando sua história com uma última tragada, Queequeg me abraçou,apoiou sua fronte na minha e, apagando o candeeiro, viramos cada um para seulado e logo estávamos dormindo.

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13 CARRINHO DE MÃO

Na manhã seguinte, uma segunda-feira, depois devender a cabeça embalsamada como manequim a um barbeiro, acertei minhaconta e a do meu companheiro; usando, no entanto, o dinheiro dele. Oestalajadeiro sorridente, assim como os outros hóspedes, parecia se divertir àsbaldas com a súbita amizade que havia brotado entre mim e Queequeg – aindamais porque as lorotas de Peter Coffin tanto me haviam alarmado em relação àmesma pessoa com quem agora eu andava.

Pedimos um carrinho de mão emprestado e embarcando ali nossas coisas, ouseja, meu pobre saco de viagem e o saco de lona de Queequeg, fomos direto àMusgo, uma pequena escuna de Nantucket que servia de paquete e já estava nocais. Conforme passávamos, as pessoas ficavam olhando; não tanto por causa deQueequeg – visto que estavam acostumadas a canibais como ele nas ruas –, maspor vê-lo comigo em termos tão amistosos. Mas não lhes demos atenção,continuávamos a empurrar nosso carrinho, ora um, ora outro, e Queequeg de vezem quando parando para arrumar o arpão na bainha. Perguntei-lhe por queandava em terra firme com um trambolho daqueles e se não havia arpões emtodos os navios baleeiros. A isto, essencialmente, respondeu-me que, emboraminha suposição fosse bem correta, ele tinha uma afeição especial por seupróprio arpão, que era de boa qualidade, tinha sido testado em vários combatesmortais e era muito íntimo dos corações de baleia. Em suma, como muitosceifadores que vão às campinas das fazendas com as suas próprias foices –embora não tenham a obrigação de fornecê-las –, Queequeg, por seus própriosmotivos, preferia levar seu arpão.

Tomando o carrinho das minhas mãos, contou-me uma história engraçadasobre a primeira vez que viu um carrinho de mão. Foi em Sag Harbor. Osarmadores do navio, ao que parece, lhe emprestaram um carrinho para levar seupesado baú para a estalagem. Para não parecer ignorante – embora desconhecessecompletamente o modo de usar o carrinho – Queequeg colocou seu baú nele;amarrou-o com força; e então jogou o carrinho nas costas e caminhou pelo cais.“Ora!”, disse eu, “Queequeg, você devia saber que não era assim. Não ficaramrindo de você?”

Em cima dessa, ele me contou uma outra história. Parece que as pessoas desua ilha de Kokovoko, durante as festas de casamento, colocam a águaperfumada do coco verde em grandes cabaças de metal como uma poncheira; e

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essa poncheira compõe o ornamento central na esteira trançada onde acontece obanquete. Certa vez um enorme navio mercante chegou a Kokovoko, e seucomandante – segundo se dizia, um cavalheiro muito formal e escrupuloso, aomenos para um capitão do mar – foi convidado para a festa de casamento dairmã de Queequeg, uma bela princesinha que acabara de completar dez anos.Bem, quando todos os convidados estavam reunidos na cabana de bambu danoiva, o capitão entrou e, sendo-lhe indicado o lugar de honra, sentou-se emfrente à poncheira, entre o Grande Sacerdote e a Sua Majestade, o Rei, pai deQueequeg. Feita a oração – porque aqueles povos também rezam como nós –,embora Queequeg tenha me dito que, ao contrário de nós, que baixamos os olhospara o prato nessa hora, eles fazem como os patos e olham para cima para ogrande Doador de todos os banquetes – ora, depois da Oração, o GrandeSacerdote faz a abertura do banquete com a imemorial cerimônia da ilha; ouseja, ele mergulha seus dedos consagrados na poncheira antes que a bebidaabençoada circule. Vendo-se ao lado do Sacerdote, observando a cerimônia epensando consigo mesmo – sendo Capitão de um navio – que teria precedênciasobre um simples Rei de ilha, especialmente estando na casa desse Rei –, oCapitão pôs-se a lavar tranqüilamente suas mãos na poncheira; – pensando,imagino, que fosse um enorme lavabo. “Ora!”, disse Queequeg, “vuncê qui acha?– Nosso povo num riu?”

Por fim, pagas as passagens, e bem acomodadas nossas bugigangas, estávamosa bordo da escuna. Içando as velas, descemos o rio Acushnet. De um lado, via-seNew Bedford com as suas ruas em socalcos, suas árvores cobertas de gelo quebrilhava com a pureza do ar frio. Enormes colinas, montanhas de tonéis e maistonéis empilhavam-se no cais, e navios baleeiros que corriam o mundodescansavam ali, lado a lado, afinal ancorados em silêncio e segurança; enquantode outros chegava o barulho de carpinteiros e ferreiros, que se misturava ao somdas fornalhas e forjas a derreter o piche, tudo indicando que novas travessiasiriam começar; mal uma longa viagem perigosa termina, já uma segundacomeça; e, mal finda a segunda, começa a terceira, e assim por diante, para todoo sempre. Eis o infindável – sim, o intolerável esforço mundano.

Abrindo caminho em mar aberto, a brisa tonificante se fez fresca; a pequenaMusgo lançava espuma da proa, como um potro jovem resfolegando. Como medeliciei com aquele ar Tártaro: – como eu desprezava a terra e seus pedágios! –aquela estrada comum toda marcada de saltos e cascos servis; e voltei-me paraadmirar o mar magnânimo, que não permite registros.

Na mesma fonte de espuma, Queequeg parecia beber e cambalear comigo.Suas narinas escuras dilataram-se, e ele mostrou seus dentes enfileirados epontudos. Avançávamos cada vez mais; e, chegando a mar aberto, a Musgo pagou

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seu tributo à borrasca; erguendo e afundando sua proa como uma escrava diantedo Sultão. Inclinando-se para um lado, voávamos todos na mesma direção; todo ocordame retinia como se de arame; os dois grandes mastros se curvavam comobambus num tornado em terra. Estávamos tão absorvidos por esta cenarodopiante, tão firmes junto ao gurupés que subia e descia, que não percebemosos olhares irônicos dos passageiros, um grupo de gente obtusa, que se admiravaao ver duas pessoas tão amigas; como se um homem branco fosse mais digno doque um negro pintado de branco. Mas ainda havia ali um bando de caipiras, unsbroncos que, pelo ar de matutos, deviam ter acabado de sair do meio do mato.Queequeg surpreendeu um desses jovens, que lhe fazia gracejos pelas costas.Achei que a hora do xucro tinha chegado. Soltando seu arpão, o vigorososelvagem pegou-o nos braços e com uma agilidade e força prodigiosa jogou-opara cima; o rapaz tocou de leve na popa e caiu de bruços, quase sufocado,enquanto Queequeg, de costas para ele, acendeu seu cachimbo e me ofereceuuma tragada.

“Capetão! Capetão!”, gritou o xucro, correndo na direção do comandante.“Capetão, Capetão, o diabo ‘tá aqui.”

“Ei, o senhor aí”, gritou o capitão, um sujeito magro, avançando na direção deQueequeg, “que que é isso? Não sabe que podia ter matado o sujeito?”

“Qui fala ele?”, perguntou Queequeg, virando-se lentamente para mim.“Ele disse que você quase matô’ aquele homem ali”, eu disse, apontando para

o labrego que ainda tremia.“Matô’!”, exclamou Queequeg, contorcendo o rosto, com uma expressão

sobrenatural de desprezo, “Ah! ele peixe muito pequeno; Queequeg não matapeixe pequeno; Queequeg mata baleia grande!”

“Escute aqui!”, gritou o Capitão, “eu é que vô’ ti matá’, seu canibal, se vocêfizer mais alguma brincadeira; por isso tome cuidado!”

Mas sucedeu que bem naquele momento foi o Capitão quem teve que tomarcuidado. A força prodigiosa do vento sobre a vela grande tinha rompido a escotade barlavento, e a enorme retranca voava de um lado para o outro, literalmentevarrendo a parte posterior do convés. O pobre-diabo, a quem Queequeg tratara demodo tão rude, foi atirado ao mar; o pânico tomou conta de todos; e parecialoucura tentar agarrar a retranca. Voava da direita para a esquerda, e voltava,como o batimento de um relógio, e a todo instante parecia estar prestes a seestilhaçar. Nada foi feito, e nada mesmo parecia possível; quem estava no convéscorreu para a proa e ficou olhando para a retranca como se fosse a mandíbula deuma baleia exasperada. No meio dessa consternação, Queequeg se pôs de joelhos,rastejou por sob a retranca, conseguiu pegar uma corda, prendeu uma ponta naamurada, arremessou a outra ponta como um laço, agarrou a retranca que

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passava por cima de sua cabeça, deu um puxão, a verga ficou presa e tudo o maisestava salvo. A escuna foi posta contra o vento e, enquanto os homens sepreparavam para arriar o escaler da popa, Queequeg, nu da cintura para cima,saltou do costado, com um pulo comprido, fazendo uma curva. Por três ou maisminutos foi visto nadando como um cachorro, jogando seus braços compridospara a frente, deixando à mostra seus ombros bronzeados no meio da espumagelada. Eu via meu grande e glorioso amigo, mas não via ninguém a ser salvo. Olabrego tinha afundado. Erguendo-se perpendicularmente sobre a água,Queequeg deu uma rápida olhadela à sua volta e, parecendo achar o queprocurava, mergulhou e sumiu. Dentro em pouco ele reapareceu, nadando comum braço e com o outro arrastando uma forma inanimada. O bote os recolheuprontamente. O pobre xucro conseguiu se restabelecer. Todos os homensconsideraram Queequeg um sujeito responsável; o capitão pediu-lhe perdão. Apartir daquele momento me agarrei a Queequeg como uma craca; sim, até que opobre Queequeg fez seu último mergulho profundo.

Já se viu alguma vez tamanha inconsciência? Ele não parecia pensar nem porum instante ser merecedor de uma medalha de todas as Sociedades Magnânimase Humanitárias. Pediu apenas um pouco de água – água fresca – para tirar o sal;feito isso, vestiu roupas secas, acendeu seu cachimbo, recostou-se na amurada eficou olhando os que o rodeavam, parecendo dizer consigo mesmo – “Este é ummundo de sócios, de um só fundo de capitais presente em todos os meridianos.Nós, canibais, temos que ajudar esses Cristãos”.

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14 NANTUCKET

Não aconteceu mais nada digno de nota durante a viagem;depois de uma boa travessia, chegamos a salvo a Nantucket.

Nantucket! Pegue seu mapa e dê uma olhada. Veja que fim de mundo elaocupa; como se encontra afastada do continente, mais isolada do que o farol deEddystone. Repare – um simples outeiro, com um cotovelo de areia; inteira depraia, sem nada ao fundo. Lá existe mais areia do que se usaria no lugar do mata-borrão durante vinte anos. As pessoas brincam dizendo que é necessário plantarervas daninhas, porque nem elas crescem naturalmente ali; que importam cardosdo Canadá; que são obrigadas a atravessar os mares para comprar uma rolha paraconsertar o vazamento de um tonel de óleo; que levam pedaços de madeira emNantucket como partes da cruz verdadeira em Roma; que as pessoas plantamcogumelos venenosos na frente das suas casas para ter um pouco de sombra noverão; que uma folha de grama é um oásis, e três folhas em um dia de passeio,uma pradaria; que usam sapatos para areia movediça, parecidos com os sapatospara a neve dos lapões; que o mar os rodeia, cerca, enclausura e fecha de talmodo que às vezes pequenos moluscos são encontrados presos em cadeiras emesas, como são encontrados nos cascos das tartarugas marinhas. Mas estasextravagâncias apenas vêm demonstrar que Nantucket não é Illinois.

Escute agora a história admirável, que a tradição conta, de como a ilha foicolonizada pelos peles-vermelhas. Eis a lenda. Outrora uma águia atacou a costada Nova Inglaterra e levou uma criança índia em suas garras. Em meio alamentos, os pais viram seu filho sumir no horizonte sobre o vasto mar. Eresolveram seguir na mesma direção. Partindo em suas canoas, depois de perigosatravessia descobriram a ilha, e lá encontraram uma caixinha de marfim vazia – oesqueleto do indiozinho.

Não é de se admirar, portanto, que os nativos de Nantucket, nascidos numapraia, procurem no mar seu ganha-pão! Primeiro apanharam caranguejos emexilhões na areia; com mais coragem, pescaram cavalas com redes; com maisexperiência, saíram em botes e capturaram bacalhaus; por fim, lançando umafrota de grandes navios ao mar, exploraram a região aquática do mundo;cingiram-no com um cinturão de incessante circunavegação; perscrutaram oEstreito de Bering; e em todas as estações e todos os oceanos declararam guerraeterna à mais formidável massa animal que sobreviveu ao dilúvio; a maismonstruosa e mais montanhosa! Aquele Himalaia em forma de Mastodonte

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marinho, investido de uma portentosa força inconsciente, cujo terror é maistemido do que seus ataques mais audazes e malignos!

E assim esses Nantucketenses despidos, esses ermitões marinhos, saindo deseus formigueiros em direção ao mar, tomaram e conquistaram a região de águasdo mundo como outros tantos Alexandres; partilharam entre si o oceanoAtlântico, Pacífico e Índico, como as três potências piratas fizeram com a Polônia.Que os Estados Unidos juntem o México ao Texas e coloquem Cuba sobre oCanadá; que enxames de ingleses se multipliquem por toda a Índia e coloquemsua bandeira reluzindo ao sol; dois terços deste globo terrestre são doNantucketense. Pois dele é o oceano; ele o possui, como Imperadores possuemimpérios; outros homens do mar têm apenas o direito de passagem. Naviosmercantes são apenas pontes; navios de guerra, apenas fortes flutuantes; mesmopiratas e corsários, embora usem o mar como os ladrões usam as estradas, essesapenas saqueiam outros navios, outros fragmentos de terra como eles próprios,sem buscar arrancar seu meio de vida da própria profundeza sem fim. Só oNantucketense mora e descansa no mar; só ele, na linguagem da Bíblia, desce aomar em navios, arando de lá para cá como se fosse uma plantação especial. Lá ésua casa; lá está seu negócio, que o dilúvio de Noé não poderia interromper,mesmo afogando milhões na China. Ele vive no mar, como os galos da campinanas campinas; esconde-se nas ondas e nelas sobe como os caçadores de camurçanos Alpes. Fica anos sem ver terra; quando por fim regressa, sente nela um cheiroestranho, mais estranho do que sentiria um homem na Lua. Como a gaivotamarinha que ao pôr-do-sol fecha as asas e embala seu sono entre as ondas; assim,ao cair da noite, o Nantucketense dobra as velas em mar alto e se deita paradescansar, enquanto sob o travesseiro correm manadas de morsas e baleias.

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15 CALDEIRADA

Era bem tarde da noite quando a pequena Musgo ancoroutranqüilamente, e Queequeg e eu desembarcamos; assim, não pudemos fazeroutra coisa a não ser comer e dormir. O proprietário da Estalagem do Jato nostinha recomendado seu primo Hosea Hussey do Caldeirões, que disse ser um dosmelhores hotéis em Nantucket; também nos assegurou que o Primo Hosea, comoo chamava, era famoso por suas caldeiradas. Em suma, dera claramente aentender que não havia melhor opção do que tentar a caldeiradazinha caseira doCaldeirões. Mas as indicações que nos deu, sobre manter um armazém amarelo aestibordo até avistar uma igreja branca, a qual deveríamos manter a bombordo,depois virar três pontos para estibordo numa esquina, e perguntar à primeirapessoa que encontrássemos onde ficava o tal lugar; essa explicação enviesadaprovocou uma certa confusão, especialmente no princípio, quando Queequeginsistiu que o armazém amarelo – nosso primeiro ponto de partida – devia ficar abombordo, ao passo que eu tinha entendido Peter Coffin dizer que ficava aestibordo. Por fim, à força de procurar um pouco no escuro, de acordar de vezem quando um habitante amistoso para perguntar o caminho, chegamos a umponto que não poderia estar errado.

Dois enormes caldeirões de madeira, pintados de preto, pendiam suspensospelos aros nos curvatões de um velho mastaréu de gávea colocado em frente àvelha entrada. Os chifres dos curvatões tinham sido serrados de um lado, fazendocom que o mastro se parecesse, e não pouco, com uma forca. Talvez eu estivessemuito impressionado naquela ocasião, mas não conseguia deixar de olhar para aforca com uma certa apreensão. Senti uma espécie de torcicolo quando olheipara os chifres que sobraram; sim, dois deles, um para Queequeg e um paramim. Mau presságio, pensei. Um Caixão como estalajadeiro no primeiro porto aque cheguei; lápides funerárias me olhando na capela dos baleeiros; e, aqui, umaforca! E também um par prodigioso de caldeirões pretos! Seriam os dois últimosalusões oblíquas a Tofet?

Fui tirado dessas reflexões quando vi uma mulher sardenta, de cabelo loiro evestido amarelo, que, de pé na entrada da estalagem, sob a lamparina vermelhaque balançava e que parecia um olho machucado, passava uma descomposturanum homem que vestia uma blusa de lã roxa.

“Vai caindo fora”, ela disse ao homem, “ou te varro daqui!”“Venha, Queequeg”, eu disse, “tudo bem. Essa é a senhora Hussey.”

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E era mesmo; o senhor Hosea Hussey estava longe, mas tinha deixado asenhora Hussey a cuidar dos negócios, para o que não lhe faltava competência.Depois de lhe dizer que queríamos uma refeição e uma cama, a senhora Hussey,deixando a descompostura ao estranho para depois, nos conduziu a uma pequenasala e, sentando-nos a uma mesa na qual havia restos de uma refeição recém-concluída, virou-se para nós e perguntou – “Molusco ou bacalhau?”.

“Como é o bacalhau, senhora?”, perguntei, muito delicado.“Molusco ou bacalhau?”, ela repetiu.“Molusco no jantar? Molusco frio; é isso que a senhora quer dizer?”, eu disse;

“não acha que é uma recepção muito fria e maluca para uma noite de inverno,senhora Hussey?”

Mas ansiosa por retomar a discussão com o homem de camisa roxa, queesperava na porta, e tendo ouvido apenas a palavra “molusco”, a senhora Husseycorreu para a porta aberta que dava para a cozinha e, depois de gritar “moluscopara dois”, desapareceu.

“Queequeg”, eu disse, “você acha que um molusco só dá para nós doisjantarmos?”

Mas o vapor quente e saboroso vindo da cozinha serviu para arrefecer as nossasapreensões. Quando a caldeirada fumegante entrou, o mistério foi deliciosamenteexplicado. Ah, queridos amigos! Escutem isso. Eram pequenos moluscossuculentos, pouco maiores do que uma avelã, misturados com biscoitos do maramassados, e carne de porco salgada, cortada em pedacinhos; isso eraenriquecido com manteiga e temperado generosamente com sal e pimenta.Tendo o nosso apetite aumentado com a viagem gelada, e tendo Queequeg vistoseu prato favorito diante de si, sem demora devoramos a caldeirada, que erarealmente excelente; depois, reclinando-me por uns instantes e lembrando-me decomo a senhora Hussey tinha anunciado o molusco, pensei em fazer umaexperiência. Aproximando-me da porta da cozinha, disse a palavra “bacalhau”com grande ênfase, e voltei para o meu lugar. Dentro em pouco surgiu um vaporsaboroso, com um aroma diferente, e em boa hora nos serviram uma caldeiradade bacalhau.

Voltamos ao trabalho; enquanto mergulhávamos as nossas colheres nos pratos,comecei a pensar se aquilo não teria algum efeito sobre a cabeça. Como é mesmoo ditado ofensivo sobre pessoas com cabeça de bagre? “Olhe, Queequeg, não éuma enguia viva no seu prato? Onde está o seu arpão?”

O mais piscoso dentre todos os lugares piscosos era o Caldeirões, que bemmerecia o nome que tinha; porque em seus caldeirões sempre ferviamcaldeiradas. Caldeiradas para o café-da-manhã, caldeiradas para o almoço ecaldeiradas para o jantar, até que você começasse a procurar por espinhas de

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peixe espetadas em suas roupas. O caminho na frente da casa era pavimentadocom conchas de moluscos. A senhora Hussey usava um colar polido de vértebrade bacalhau; e Hosea Hussey encadernava seus livros de contabilidade com pelede tubarão de primeira qualidade. Também o leite tinha um gosto de peixe queeu não conseguia explicar, até que, numa manhã, passeando pela praia por entreos barcos de pescadores, eu vi a vaca malhada de Hosea se alimentando dos restosde peixe e andando na areia com as patas enfiadas nas cabeças decapitadas debacalhaus, que, garanto, pareciam chinelos.

Terminado o jantar, a senhora Hussey nos deu um candeeiro e instruções sobreo caminho mais curto para a cama; mas, quando Queequeg ia subindo as escadasna minha frente, a dona estendeu o braço e pediu o arpão; ela não permitiaarpões nos quartos. “Por que não?”, perguntei. “Todo baleeiro de verdade dormecom seu arpão – por que não?” “Porque é perigoso”, ela disse. “Desde que ojovem Stiggs voltou de sua maldita viagem de quatro anos e meio só com trêsbarris de óleo e foi encontrado morto no quarto dos fundos do primeiro andar,com o arpão do lado; desde então nunca mais deixei nenhum hóspede levararmas perigosas para o quarto de noite. Sendo assim, seu Queequeg” (ela tinhaaprendido o nome dele), “eu vou pegar este ferro aqui, e deixar ele guardado atéde manhã. Mas, senhores, vão querer caldeirada de molusco ou de bacalhau parao café-da-manhã?”

“Os dois”, eu disse; “e também um pouco de arenque defumado, para variar.”

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16 O NAVIO

Na cama, discutimos nossos planos para o dia seguinte. Mas, paraminha surpresa e grande apreensão, Queequeg me fez entender que estiveraconsultando Yojo – assim chamava seu pequeno deus negro –, e Yojo lhe haviadito duas ou três vezes, e insistido muito de todos os modos possíveis, que, aoinvés de irmos juntos até a frota de baleeiros no porto e escolhermos juntos nossaembarcação; que, em vez disso, Yojo recomendava que a escolha do navio fossesó minha, visto que Yojo continuaria a nos proteger; e, para nos ajudar, já haviaoptado por um navio que eu, Ishmael, encontraria infalivelmente, como setivesse aparecido por acaso; e naquele navio eu deveria embarcar de pronto, sempor ora me preocupar com Queequeg.

Esqueci de dizer que, em muitas coisas, Queequeg tinha muita confiança naexcelência do julgamento e na surpreendente capacidade de adivinhação de Yojo;tratava Yojo com muita estima; como um deus muito bom, que talvez desejasse obem de todos, mas cujos desígnios benevolentes nem sempre se realizavam.

Agora, esse plano de Queequeg, ou melhor, de Yojo, sobre a escolha de nossaembarcação; ele não me agradou em nada. Eu tinha contado com a sagacidadede Queequeg para escolher o baleeiro mais adequado para transportar a nós e aosnossos destinos com segurança. Mas, como todos os meus protestos não tiveramnenhum efeito sobre Queequeg, fui obrigado a ceder; assim, me preparei paracuidar desse pequeno assunto com energia e vigor, com o intuito de resolvê-lorapidamente. Saí na manhã seguinte bem cedinho, deixando Queequeg e Yojofechados em nosso quarto – pois parecia que, para Queequeg e Yojo, era umaespécie de Quaresma ou de Ramadã, um dia de abstinência, humilhação eoração; como era, nunca fiquei sabendo, porque embora tenha me esforçadomuito nunca consegui entender suas liturgias e seus XXXIX Artigos – deixei,portanto, Queequeg jejuando com seu cachimbo, e Yojo se esquentando no fogosacrifical de aparas, e dirigi-me ao porto. Depois de dar muitas voltas e fazermuitas perguntas, fiquei sabendo que havia três navios prontos para uma viagemde três anos – o Mulher do Demônio, o Petisco e o Pequod. Não sei a origem donome Mulher do Demônio; Petisco é óbvio; mas, quanto a Pequod, você develembrar que era o nome da famosa tribo de índios de Massachusetts, atualmentetão extinta quanto os antigos Medos. Dei uma espiada no Mulher do Demônio; delá fui para o Petisco; por fim, subi a bordo do Pequod, olhei à minha volta poruns instantes e decidi que esse era o navio que queria para nós.

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Uma pessoa pode ter visto muitos navios singulares durante sua vida; – de proaquadrada; montanhosos juncos Japoneses; galeotas semelhantes a caixas demanteiga, e sei lá mais o quê; mas acredite no que digo, ninguém nunca viu umapreciosidade tão antiga quanto o velho Pequod. Era um navio antigo, antespequeno do que qualquer coisa; tinha o aspecto antiquado de um animal degarras. Longamente amadurecido e marcado por tufões e calmarias dos quatrooceanos, seu velho casco era escurecido como o de um granadeiro francês quetivesse lutado do mesmo modo no Egito e na Sibéria. Sua venerável proa pareciabarbada. Seus mastros – feitos em algum lugar da costa do Japão, onde os mastrosoriginais se perderam num temporal – erguiam-se tão aprumados quanto asespinhas dos três velhos reis de Colônia. Seu antigo convés era gasto e enrugado,como as lajes da catedral de Canterbury, veneradas pelos peregrinos, onde Becketsangrou até morrer. Mas a essas antiguidades foram acrescentados traços novos emaravilhosos, relativos às proezas realizadas por mais de meio século. O velhoCapitão Peleg, durante muitos anos seu capitão, antes de comandar uma outraembarcação, e agora aposentado, era um dos principais proprietários do Pequod –esse velho Peleg, enquanto foi comandante, reforçou sua singularidade originalrevestindo o navio com materiais e dispositivos tão peculiares que só podiam sercomparados ao broquel entalhado do Thorkill-Hake. Estava enfeitado como umimperador bárbaro da Etiópia, com pesados berloques de marfim polido em voltade seu pescoço. Era um troféu. Uma embarcação canibal, que se enfeitava com osossos dos inimigos. Em toda a volta, sua amurada aberta e sem painéis eraadornada como uma única e contínua mandíbula, com os longos dentespontiagudos de um cachalote, colocados ali como pinos, para segurar seus velhosmúsculos e tendões de cânhamo. Tais músculos não corriam por entre merasroldanas de madeira nativa, mas viajavam velozmente por entre peças do marfimmarinho. Escarnecendo da clássica roda de torniquete em seu admirável timão,exibia uma cana de leme em seu lugar; mas a cana de leme era lavrada numa sópeça, curiosamente entalhada na maxila longa e estreita de seu inimigo natural.O timoneiro que manobrasse aquela cana numa tempestade sentir-se-ia como oTártaro, quando este freia seu corcel arisco segurando-o pelos dentes. Um navionobre, mas de certa forma melancólico! Todas as coisas nobres têm esse toque.

Ora, quando procurei no tombadilho por um oficial, para me oferecer comocandidato à viagem, de início não vi ninguém; mas não pude deixar de perceberum tipo curioso de tenda, ou melhor, wigwam, armada atrás do mastro grande.Parecia uma dessas construções temporárias que se encontram nos portos. Tinhaa forma de um cone, com cerca de três metros de altura; feita com enormespranchas flexíveis de ossos pretos, retirados do meio e da parte superior domaxilar da baleia franca. Com as largas pontas fixadas no convés, as pranchas se

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juntavam formando um círculo, uma apoiada sobre a outra, unindo-se no cumeque formava um tufo, do qual saíam fibras soltas e peludas que balançavamcomo o topete da cabeça de um velho sachem dos Pottowottamie. Uma aberturatriangular voltada para a proa do navio dava uma visão completa da proa paraquem estivesse dentro da tenda.

Um pouco escondida naquela edificação estranha, encontrei, por fim, umapessoa que pelo aspecto parecia ter autoridade; e que, sendo meio-dia, com otrabalho suspenso a bordo, aproveitava o descanso das agruras do comando.Estava sentado numa velha cadeira de carvalho com curiosas incrustações; oassento era feito de uma trama sólida do mesmo material elástico usado para aconstrução do wigwam.

Não havia nada de muito singular, talvez, no aspecto do homem idoso que vi;era moreno e bronzeado, como a maior parte dos velhos marinheiros, e vestia-secom a pesada roupa azul de piloto, cortada em estilo Quacre; ao redor dos olhospercebia-se uma rede muito fina, quase microscópica, de pequenas rugas, quedevem ter surgido durante suas viagens com tempestades contínuas, tendo orosto sempre voltado ao vento; por essa razão, os músculos em volta dos olhos secontraíam. Essas rugas em volta dos olhos são muito eficazes para lançar olharesmal-humorados.

“É o capitão do Pequod?”, perguntei, dirigindo-me à porta da barraca.“Supondo que eu seja o capitão do Pequod, o que é que desejas?”, perguntou.“Desejo embarcar.”“Desejas embarcar? Vejo que não és de Nantucket – já estiveste a bordo de

uma baleeira?”“Não, senhor. Nunca.”“Não sabes nada sobre pescar baleias, ousaria dizer – hein?”“Nada, senhor; mas posso aprender depressa. Já fiz várias viagens na marinha

mercante e acredito que –”“Que se dane a marinha mercante. Não me venha com esse calão. Vês esta

perna? – Arrancá-la-ei do teu corpo, se falares em marinha mercante outra vez. Sófaltava essa, marinha mercante! Imagino que te orgulhes por ter servido emnavios mercantes. Mas por que, homem, desejas ir à pesca de baleias, hein? – Nãoparece um pouco suspeito, hein? – Não és pirata, não? – Não roubaste o teuúltimo capitão, não? Não pensas em matar os oficiais quando chegares ao mar?”

Protestei minha inocência. Sabia que, sob sua máscara de insinuações meiohumorísticas, o velho marinheiro, como todo Quacre solitário de Nantucket,estava cheio dos preconceitos insulares e tampouco confiava em forasteiros, a nãoser nos que vinham de Cape Cod ou de Vineyard.

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“Mas o que te leva à pesca de baleias? Quero saber antes que embarques.”“Bem, senhor, quero ver como é a pesca de baleias. Eu quero ver o mundo.”“Queres ver como é a pesca de baleias, não é? Já deste uma olhada no capitão

Ahab?”“Quem é o capitão Ahab, senhor?”“Ai, ai, ai, já esperava por isso. O capitão Ahab é o capitão deste navio.”“Então me enganei. Pensei estar falando com o capitão.”“Estás falando com o Capitão Peleg – eis com quem estás falando, meu jovem

rapaz. Cabe a mim e ao Capitão Bildad preparar o Pequod para a viagem,abastecê-lo com tudo o que for necessário, incluindo a tripulação. Somos aomesmo tempo proprietários e agentes. Mas, como ia dizendo, se quiseres sabercomo é a pesca de baleias, como dizes querer, posso ajudar-te antes que tecomprometas irrevogavelmente. Dá uma olhada no capitão Ahab, meu jovemrapaz, e verás que ele tem apenas uma perna.”

“O que quer dizer com isso, senhor? Que perdeu uma perna por causa de umabaleia?”

“Perdeu por causa de uma baleia! Meu jovem rapaz, aproxima-te: ela foidevorada, mastigada e esmigalhada pelo cetáceo mais monstruoso que jamaisdespedaçou um barco! – ai, ai, ai!”

Fiquei um pouco alarmado com sua firmeza, talvez um pouco emocionadopela tristeza sincera que havia em sua exclamação final, mas repliquei damaneira mais calma que pude, “O que o senhor diz é a verdade; mas como eupoderia adivinhar que essa baleia em particular é tão feroz, ainda que eu pudesseter imaginado isso simplesmente pela ocorrência do acidente?”.

“Nota bem, meu jovem rapaz, os teus pulmões são macios, percebes? Tu nãofalas grosso. É mesmo certo que estiveste no mar antes, tens certeza?”

“Senhor”, eu disse, “pensei que tivesse lhe contado sobre quatro viagens emnavios mercantes…”

“Pára com isso! Lembra-te do que eu disse sobre a marinha mercante – não meirrites –, não tolero isso. Mas vamos nos entender. Dei-te uma idéia do que é apesca da baleia; continuas interessado?”

“Sim, senhor.”“Muito bem. És capaz de lançar um arpão goela abaixo de uma baleia viva, e

depois saltar atrás dele? Responde depressa!”“Sim, senhor, se fosse absolutamente indispensável fazê-lo; quero dizer, se não

houvesse outra alternativa; se fosse o caso.”“Muito bem. Então, tu não apenas queres ir à pesca de baleias, para ter uma

experiência da pesca de baleias, como também queres ir ver o mundo? Não foi o

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que disseste? Achei que sim. Pois bem, aproxima-te então, olha por cima da proa,volta aqui e conta-me o que vês lá.”

Por uns instantes fiquei parado, perplexo com uma ordem tão estranha, semsaber se achava graça ou se levava a sério. Mas, reunindo todos os seus pés-de-galinha num só olhar mal-humorado, o Capitão Peleg fez com que eu obedecesse.

Dirigindo-me então à proa e dando uma olhada ao redor, percebi que o navio,balançando com a maré em volta da âncora, apontava obliquamente para o maraberto. A perspectiva era ilimitada, mas excessivamente monótona e hostil; sem amais mínima variação que eu pudesse perceber.

“Bem, que tens a dizer?”, perguntou Peleg, quando voltei. “O que viste?”“Pouca coisa”, respondi. “Nada além de água; um horizonte considerável, e

parece-me que aí vem uma tempestade.”“Pois bem, o que entendes por conhecer o mundo? Queres dar a volta até o

cabo Horn para ver mais mundo ainda, hein? Não vês o mundo de onde estás?”Fiquei um pouco desconcertado, mas precisava ir à pesca de baleias; queria ir;

e o Pequod era um bom navio – considerei-o o melhor – e tudo isso repeti paraPeleg. Vendo-me tão determinado, ele expressou seu desejo de me embarcar.

“E podes assinar os papéis imediatamente”, acrescentou. “Vem comigo.”Dizendo isto, levou-me à cabine embaixo do convés.

Sentado sobre o painel de popa estava uma pessoa que me pareceusurpreendente e pouco comum. Era o capitão Bildad, que, junto com o capitãoPeleg, era um dos principais acionistas da embarcação; as ações restantes, comoocorre em geral nos portos, estavam distribuídas por uma multidão depensionistas; viúvas, órfãos e oficiais da justiça; cada um possuíaaproximadamente o valor de um pedaço de madeira, ou um metro de umatábua, ou ainda um ou dois pregos do navio. O povo de Nantucket investe seudinheiro em navios baleeiros do mesmo modo que você investe o seu em açõesgarantidas pelo Estado, que rendem bons juros.

Ora, Bildad, assim como Peleg e muitos outros moradores de Nantucket, eraum Quacre, uma vez que a ilha havia sido originalmente colonizada por essaseita; e até hoje seus habitantes guardam em grande medida as peculiaridadesdos Quacres, modificadas às vezes por influência de elementos exteriores eheterogêneos. Alguns desses Quacres são os mais sanguinários de todos osmarinheiros e caçadores de baleias. São Quacres guerreiros; são Quacresvingadores.

Entre eles há alguns que usam nomes das Escrituras – um hábito bastantecomum na ilha – e que durante a infância assimilaram os tratamentos dramáticosde “tu” e “vós”, do idioma Quacre; além disso, por suas aventuras corajosas,

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intrépidas e audaciosas de vidas subseqüentes, mil traços de caráter juntam-se deforma singular a essas características insuperáveis, traços dignos de um rei dosmares Escandinavo, ou de um poeta da Roma pagã. Quando essas coisas se unemnum homem de força excepcional, com um cérebro globular e um coraçãoequilibrado; que, graças à imobilidade e isolamento de muitas vigílias noturnasem águas remotas, sob constelações jamais vistas no hemisfério norte, foi levadoa pensar de forma independente e autônoma; e que recebeu as impressões suavesou selvagens da natureza de seu próprio seio virgem e confiante, e aprendeu, pormeio delas principalmente, mas com o auxílio de certas vantagens acidentais, alíngua elevada, corajosa e altiva – então esse homem se torna único em toda apopulação de um país – uma poderosa e admirável criatura, talhada para asnobres tragédias. Não deve ser menosprezado, sob o ponto de vista dramático, sepor nascimento ou por outras circunstâncias ele parece dominado por umamorbidez involuntária em sua natureza profunda. Porque todos os grandeshomens trágicos são criados com uma certa morbidez. Mas tenha certeza disso,ó, ambição juvenil, toda grandeza mortal é apenas doença. Mas por ora não nosocupemos de tal homem, mas de um outro; um homem que, apesar de estranho,é apenas o resultado de uma característica Quacre modificada por circunstânciasindividuais.

Tal como o Capitão Peleg, o Capitão Bildad era um próspero baleeiroaposentado. Ao contrário do Capitão Peleg – que não se importava nada com ascoisas ditas sérias, e que se sentia mesmo inclinado a fazer pouco delas –, oCapitão Bildad não apenas tinha sido educado de acordo com os preceitos maisseveros da seita Quacre de Nantucket, como também toda sua vida subseqüenteno mar, e a visão de muitas adoráveis criaturas inteiramente nuas nas ilhas, porvolta do cabo Horn – tudo aquilo em nada alterou seu caráter Quacre e em nadamodificou uma só peça de seu vestuário. Apesar dessa rigidez, faltava consistênciaao senso comum do valoroso Capitão Bildad. Embora se recusasse, por escrúpulosconscientes, a usar armas contra invasores de terra, ele próprio invadiradesbragadamente o Atlântico e o Pacífico; e, embora fosse inimigo jurado doderramamento de sangue, ele próprio, em seu casaco reto, vertera tonéis desangue de Leviatã. Como fazia o devoto Bildad, nas tardes contemplativas de seusdias, para reconciliar esses fatos em suas reminiscências, não sei; mas não pareciase preocupar muito, e provavelmente há muito tempo chegara à sábia e sensataconclusão de que a religião de um homem é uma coisa, e o mundo prático, umaoutra bem diferente. Este mundo paga juros. Foi promovido de grumete, com asroupas curtas de tecido grosseiro, a arpoador, com um grande colete de barrigade sável; depois se tornou chefe do bote, imediato, comandante e finalmentearmador; como disse antes, Bildad concluiu sua carreira de aventuras se

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aposentando da vida ativa com a boa idade de sessenta anos e dedicou o resto dosseus dias a usufruir de uma renda bem merecida.

Mas, lamento dizê-lo, Bildad tinha a fama de ser um avarento incorrigível e deter sido, no tempo em que ia ao mar, um chefe implacável e severo. Contaram-me em Nantucket, apesar de se tratar de uma história curiosa, que quando eleera comandante do baleeiro Categut, ao descer em terra, quase toda a tripulaçãoia para o hospital, de tanta exaustão e cansaço. Para um devoto, especialmenteum Quacre, era sem dúvida um homem severo, para não dizer pior. Mas nãocostumava xingar seus homens, diziam; no entanto, de algum jeito obrigava-os afazer uma quantidade excessivamente cruel de trabalho. Quando Bildad eraimediato, ter seu olhar cinzento dirigido a você fazia com que você se sentissecompletamente nervoso, até que você acabasse pegando alguma coisa – ummartelo ou um passador – e começasse a trabalhar como um louco no que fosse,não importando o quê. Ociosidade e inatividade sucumbiam diante dele. Suapessoa era a própria encarnação do espírito utilitário. Em seu corpo alto e magronão havia nada supérfluo, nem excesso de barba, e seu queixo tinha umapenugem macia e econômica, como a penugem gasta de seu chapéu de abaslargas.

Assim era a pessoa que vi no painel de popa, quando segui o Capitão Peleg atéa cabine. O espaço entre as duas cobertas era pequeno; o velho Bildad estava lásentado, ereto e sem se encostar, como sempre, para economizar o fraque. Seugrande chapéu estava ao lado; as pernas, rigidamente cruzadas; sua vestimenta delã grossa, abotoada até o pescoço; com os óculos no nariz, parecia absorto naleitura de um livro imenso.

“Bildad”, gritou o capitão Peleg, “de novo, Bildad, hein? Tu tens estudado essasEscrituras nos últimos trinta anos, é certo. Até onde chegaste, Bildad?”

Como se estivesse acostumado àquelas palavras profanas de seu companheirode bordo, Bildad, sem prestar atenção à sua irreverência, levantou os olhos e aome ver dirigiu um olhar inquisitivo a Peleg.

“Ele diz ser um dos nossos, Bildad”, disse Peleg, “quer embarcar.”“Queres?” perguntou Bildad, com uma voz cavernosa, voltando-se para mim.“Eu queres”, respondi sem perceber, dada a intensidade de sua expressão

Quacre.“O que pensas dele, Bildad?”, perguntou Peleg.“Serve!”, respondeu Bildad, me observando ainda, e depois afundou em seu

livro com um resmungo bem audível.Tomei-o pelo Quacre mais estranho que já vira, especialmente em contraste

com Peleg, seu amigo e companheiro de bordo, que parecia tão arrogante e

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ruidoso. Mas não disse nada, limitei-me a observar. Então Peleg abriu uma arca,retirou de dentro os contratos do navio, colocou uma caneta e tinta diante de si, esentou-se à mesinha. Comecei a achar que estava na hora de decidir em quecondições iria me comprometer a viajar. Já sabia que no negócio de baleias não serecebem salários; mas toda a tripulação, inclusive o comandante, recebe umacota dos lucros, e essas cotas são proporcionais ao grau de importância da funçãodesempenhada no navio. Também sabia que, sendo um novato na pesca debaleias, minha cota não seria muito grande; mas considerando que estavaacostumado com o mar, que sabia governar um navio e amarrar uma corda, etudo o mais, eu não tinha dúvida, depois de tudo que tinha escutado, de quedeveriam me oferecer pelo menos uma cota de 275 avos – ou seja, a 275ª partedos lucros líquidos da viagem, fosse qual fosse seu total. E, embora a cota de 275avos fosse uma cota pequena, era melhor que nada; e, se tivéssemos sorte naviagem, quase poderia pagar pela roupa que eu teria que usar, sem falar naalimentação e alojamento por três anos, pelos quais eu não teria que pagar nada.

Alguém poderia pensar que era um jeito ruim de acumular uma fortunamagnífica – e era mesmo um jeito muito ruim. Mas não sou daqueles quebuscam fortunas magníficas e fico bastante satisfeito se o mundo me aloja e mealimenta, enquanto me resigno a esta terrível placa, “Nuvem Trovejante”. Demodo geral, achei que a 275ª parte seria justo, mas não teria ficado surpreso seme oferecessem a 200ª pelo fato de eu ter ombros largos.

Não obstante, uma coisa me fazia desconfiar de que não receberia uma partegenerosa dos lucros, e era o seguinte: em terra, eu tinha ouvido falar sobre oCapitão Peleg e seu amigo Bildad, que eram os principais donos do Pequod, e queos outros proprietários, dispersos ou insignificantes, deixavam quase toda aadministração dos negócios do navio com os dois. E eu sabia que o velho avarentoBildad teria que dizer algo sobre os marinheiros que seriam embarcados, aindamais que o encontrei a bordo do Pequod, bem à vontade na cabine, lendo a Bíbliacomo se estivesse em sua casa. Enquanto Peleg tentava em vão consertar um bicode pena com seu canivete, o velho Bildad, para minha grande surpresa,considerando-se que era uma das partes interessadas nesses procedimentos, nãodeu atenção a nós, mas continuou a resmungar e ler seu livro, “Não ajunteis paravós tesouros na terra, onde a traça…”

“Bem, capitão Bildad”, interrompeu Peleg, “que pensas, que cota devemosoferecer a esse jovem?”

“Tu sabes melhor do que eu”, foi sua resposta sepulcral, “achas que uma cotade 777 seria excessiva? – “onde a traça e a ferrugem os consome; mas ajuntaitesouros no céu…”

Mas que tesouro, pensei. Um tesouro de 777 avos! Bem, velho Bildad, você está

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determinando que eu não tenha muitos tesouros aqui embaixo, onde a traça e aferrugem nos consomem. Era um tesouro extremamente modesto; e, embora amagnitude do número devesse iludir um homem da terra, basta refletir umpouco para se perceber que o número 777 é grande; no entanto, se tiver um avono final, observa-se que 777 avos é muito menos do que 777 dobrões de ouro; foidesse modo que pensei na ocasião.

“Ora, que diabos, Bildad”, gritou Peleg, “não queres enganar esse jovem rapaz!Ele deve receber mais que isso.”

“Setecentos e setenta e sete avos”, repetiu Bildad, sem levantar os olhos; econtinuou a murmurar, “pois, onde está o teu tesouro, aí está, também, o teucoração.”

“Vou lhe dar trezentos avos”, disse Peleg, “estás ouvindo, Bildad? Um tesourode trezentos avos, repito.”

Bildad abaixou seu livro, virou-se para ele e disse, “Capitão Peleg, tens umcoração generoso; mas deves considerar os teus deveres para com os outrosproprietários deste navio – viúvas e órfãos, em sua maioria – e, serecompensarmos em excesso o trabalho desse jovem rapaz, estaremos tirando opão dessas viúvas e órfãos. Setecentos e setenta e sete avos, capitão Peleg.”

“Bildad!” rugiu Peleg, levantando-se e andando pela cabine. “Que os diabos tecarreguem, Capitão Bildad, se eu tivesse seguido os teus conselhos teria agora aconsciência tão pesada que afundaria o maior navio que já navegou por todo ocabo Horn.”

“Capitão Peleg”, disse Bildad com firmeza, “não sei se a tua consciência podeagüentar dez polegadas ou dez braças de água; mas como insiste em serimpenitente, Capitão Peleg, receio que tua consciência termine por afundar-te atéo quinto dos infernos, Capitão Peleg.”

“Quinto dos infernos! Quinto dos infernos! Tu estás me insultando, homem;passando dos limites, me insultando. É uma verdadeira ofensa dizer a uma pessoaque ela vai para o inferno. Raios e trovões! Bildad, repete isso, e eu – e eu – é, eusou capaz de engolir uma cabra viva, chifre e tudo. Para fora da cabine, hipócrita,filho-da-mãe – sai daí!”

Enquanto clamava estas coisas lançou-se contra Bildad, mas este, com umadestreza maravilhosa, conseguiu evitá-lo.

Alarmado por esta terrível explosão entre os dois principais responsáveis eproprietários do navio e sentindo-me tentado a desistir de embarcar num naviocujos armadores comandavam de modo tão problemático, afastei-me da portapara dar passagem a Bildad, que eu tinha certeza queria desaparecer diante dafúria que despertara em Peleg. Mas, para minha surpresa, sentou-se calmamente

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outra vez no painel de popa e não parecia ter a menor intenção de se retirar.Parecia estar acostumado à impenitência e aos modos de Peleg. Quanto a Peleg,depois de soltar a raiva que sentia, parecia tê-la esgotado, e também se sentoucomo um cordeirinho, embora ainda se crispasse um pouco de nervosismo.“Uau!”, assobiou por fim – “creio que a tempestade se foi com o vento. Bildad,eras bom em afiar lanças, podes consertar esta minha pena? Meu canivete estácego. Aqui está. Obrigado, Bildad. Pois bem, meu jovem rapaz, o teu nome éIshmael, não foi o que disseste? Muito bem, vais conosco, Ishmael, com uma cotade trezentos avos.”

“Capitão Peleg”, eu disse, “eu tenho um amigo que também quer embarcar –posso trazê-lo amanhã?”

“Com certeza”, respondeu Peleg, “traze-o, e veremos.”“Que cota ele vai querer?”, resmungou Bildad, levantando os olhos do livro no

qual havia se enterrado.“Oh! Não te preocupes com isso, Bildad”, disse Peleg. “Ele já esteve na pesca de

baleias?”, perguntou, virando-se para mim.“Matou tantas baleias que nem sei contar, capitão Peleg.”“Traze-o aqui, então.”Depois de assinar os papéis, fui embora, convencido de que fizera um bom

trabalho naquela manhã, e que o Pequod era o próprio barco que Yojo tinhadestinado para levar a Queequeg e a mim a dar a volta ao Cabo.

Mas eu não tinha ido muito longe quando comecei a pensar que ainda não virao Capitão com quem viajaria; embora não raro aconteça que um baleeiro sejapreparado e receba sua tripulação a bordo antes que o capitão apareça paracomandar; isto porque algumas viagens são tão longas, e os intervalos em terratão breves que o capitão, se tiver família ou algum interesse desse tipo paraocupá-lo, não se preocupará com o navio no porto, deixando-o com osproprietários até que esteja pronto para ir ao mar. Contudo, é sempre bomconhecê-lo antes de se entregar irrevogavelmente em suas mãos. Voltei e meaproximei do capitão Peleg, perguntando-lhe onde poderia encontrar o capitãoAhab.

“E o que queres com o capitão Ahab? Já está tudo certo; irás embarcar.”“Sim, mas gostaria de vê-lo.”“Não creio que poderás vê-lo no momento. Não sei o que há com ele, mas se

mantém fechado dentro de casa; uma espécie de doença, embora não aparente.Na verdade, não está doente, mas também não está muito bem. De qualquermodo, meu jovem rapaz, ele não quer receber a mim, portanto não creio que váreceber a ti. É um homem estranho, o capitão Ahab – é o que dizem –, mas é

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uma boa pessoa. Ora, hás de gostar dele, não tenhas medo. É um homem grande,não é religioso, parece um deus, o Capitão Ahab; não fala muito; mas quando falaé melhor ouvi-lo. Presta atenção, Ahab é uma pessoa fora do comum; Ahab esteveem universidades e também entre os canibais; está acostumado às maravilhasmais profundas do que o próprio mar; fixou sua lança em adversários maisestranhos e poderosos do que baleias. Sua lança! A mais certeira e afiada de todasas lanças de nossa ilha! Oh! Ele não é o capitão Bildad; não! E não é o capitãoPeleg; ele é Ahab, meu rapaz, o Ahab da antiguidade, que, bem o sabes, era umrei coroado!”

“E um ser desprezível. Não foi aquele rei malvado que, quando foi assassinado,os cães vieram lamber seu sangue?”

“Aproxima-te de mim – mais perto, mais perto”, disse Peleg com umaexpressão nos olhos que me assustou. “Vê bem, meu jovem; nunca fales sobreisso a bordo do Pequod. Nunca fales sobre isso em nenhum lugar. O Capitão Ahabnão escolheu o próprio nome. Foi um capricho tolo de sua mãe, uma viúva loucae estúpida, que morreu quando ele tinha apenas doze meses. Mas Tistig, umavelha indígena de Gay Head, disse que o nome tinha sido profético. Talvez outrosnéscios digam o mesmo. Quero prevenir-te. É uma mentira. Conheço bem ocapitão Ahab; há muitos anos viajei com ele como imediato; sei como ele é – umhomem bom –, não é um homem religioso e bom como Bildad, mas é umhomem que pragueja e é bom – um pouco como eu –, só que vale mais do queeu. Sim, sei que nunca foi muito alegre; e sei que no caminho para casa estavaum pouco desequilibrado; mas foram as dores agudas do coto que sangrava queprovocaram isto, como se pode ver. Sei também que desde que perdeu a perna naúltima viagem, por causa da maldita baleia, ele ficou temperamental – às vezesdesesperado, outras vezes colérico; mas isso vai passar. E de uma vez por todasvou dizer-te e assegurar-te que é melhor viajar com um bom capitão que étemperamental do que com um mau capitão que é alegre. Portanto adeus, meurapaz – e não penses mal do Capitão porque ele tem um nome abominável. Alémdisso, meu rapaz, ele tem esposa – casou-se não faz três viagens –, uma jovemmeiga e resignada. Pensa nisso; com essa moça meiga o velho capitão tem umacriança: podes pensar que há alguma maldade irremediável em Ahab? Não, meurapaz; por muito que tenha sido agredido e que tenha sofrido, Ahab conserva seulado humano!”

Enquanto me afastava, estava mergulhado em reflexões; aquilo que acabava deme ser incidentalmente revelado sobre o Capitão Ahab me encheu de umaespécie de pena vaga e incontida. Naquela ocasião, senti compaixão e tristeza porele, mas não por outra razão senão a perda cruel de sua perna. Mas também sentium estranho temor; um temor que não sei descrever, que não era exatamente

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temor; não sei o que era. Mas senti; e esse sentimento não me afastava doCapitão, embora me tornasse impaciente em relação a algo que parecia ummistério, tão pouco eu o conhecia. No entanto, minhas reflexões acabaram portomar um outro rumo, de modo que o misterioso Ahab saiu de meu pensamento.

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17 O RAMADÃ

Como o Ramadã, ou Jejum e Penitência, de Queequeg iriacontinuar durante o dia, resolvi não incomodá-lo até o cair da noite; porque sintomuito respeito pelas obrigações religiosas das pessoas, por mais ridículas quesejam, e não subestimaria nem mesmo uma congregação de formigas adorandoum cogumelo; e nem aquelas outras criaturas em certas regiões de nossa Terraque, com um grau de servilismo sem precedentes em outros planetas, se curvamem reverência diante do busto de um proprietário de terras defunto apenas emconsideração às incontáveis posses que ainda trazem rendimentos em seu nome.

É a minha opinião que nós, bons Cristãos Presbiterianos, devemos sercaridosos nesses assuntos, sem que nos consideremos tão superiores a outrosmortais, pagãos ou sabe-se lá o quê, por conta de suas idéias um tantodesconjuntadas sobre o assunto. Lá estava Queequeg, naquele momento, com asidéias mais absurdas a respeito de Yojo e de seu Ramadã; – mas o que importava?Queequeg achava que sabia o que estava fazendo, imagino; parecia satisfeito; eque assim seja. Toda a nossa argumentação de nada adiantaria; que assim seja,repito: e que o Céu tenha misericórdia de todos nós – Presbiterianos ou Pagãos –,porque estamos todos com a cabeça terrivelmente quebrada, precisando deconserto.

Ao entardecer, quando achei que as suas práticas e rituais deveriam teracabado, subi ao seu quarto e bati à porta; mas ninguém respondeu. Tentei abri-la, mas estava trancada por dentro. “Queequeg”, disse baixinho, pelo buraco dafechadura: – silêncio absoluto. “Queequeg, puxa! Por que você não fala? Sou eu –Ishmael.” Mas tudo permaneceu em silêncio como antes. Comecei a ficarpreocupado. Tinha lhe dado bastante tempo; achei que podia ter tido um ataqueapoplético. Olhei pelo buraco da fechadura; mas, com a porta dando para umestranho canto do quarto, a perspectiva do buraco da fechadura era das piores.Tudo o que vi foi uma parte do pé da cama e um pedaço da parede, nada mais.Fiquei surpreso ao ver encostado à parede o cabo do arpão de Queequeg, que aestalajadeira tinha confiscado na véspera, antes de subirmos ao quarto. Queestranho, pensei; de qualquer modo, já que o arpão está lá, e como ele quasenunca sai sem o arpão, ele deve estar lá dentro do quarto, sem dúvida.

“Queequeg! – Queequeg!” – tudo quieto. Deve ter acontecido algo. Apoplexia!Tentei empurrar a porta, mas ela teimava em não abrir. Corri escada abaixo econtei minha suspeita à primeira pessoa que encontrei, a empregada. “Puxa

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vida!”, ela gritou, “achei que algo deveria ter acontecido. Fui fazer a cama depoisdo café-da-manhã, e a porta estava trancada; não se ouvia nem uma mosca ládentro; e está quieto desde então. Mas eu pensei que talvez vocês dois tivessemsaído e trancado a porta por causa da bagagem. Puxa vida! Senhora! Patroa! –Assassinato! Senhora Hussey! Apoplexia!” – e com esses gritos saiu correndo emdireção à cozinha, e eu atrás dela.

A senhora Hussey logo apareceu com um pote de mostarda em uma das mãose um vidro com vinagre na outra, pois estivera ocupada arrumando os galheteirose dando uma bronca em seu negrinho.

“O depósito de lenha!”, gritei. “Onde é? Corra, pelo amor de Deus, e peguealguma coisa para abrir a porta – o machado! – o machado! – ele teve um ataque;pode acreditar!” – e dizendo isso ia subindo a escada de mãos vazias, como umlouco, quando a senhora Hussey se interpôs com o pote de mostarda e o vidrocom temperos, bem como com todo o vinagre de sua pessoa.

“O que há com você, meu jovem?”“Pegue o machado! Pelo amor de Deus, chame um médico, alguém, enquanto

eu forço a porta!”“Escute aqui”, disse a estalajadeira, pondo de lado o vidro de vinagre para ter a

mão livre; “escute aqui; você está falando em forçar uma das minhas portas?” – ecom isso puxou o meu braço. “Qual é o seu problema? Qual é o seu problema,marujo?”

De uma forma tão calma e rápida quanto possível, fiz com que ela entendesseo caso. Encostando, sem se dar conta, o pote de mostarda no nariz, ela ruminoupor um instante; depois exclamou – “Não! De fato não o vi mais depois que ocoloquei ali”. Correndo em direção a um pequeno armário embaixo das escadas,deu uma olhada e retornando me disse que o arpão de Queequeg não estava lá.“Ele se matou”, ela gritou. “Tal como o infeliz Stiggs – lá se vai outra colcha –Deus tenha piedade de sua mãe! – será a ruína de minha propriedade. O pobrerapaz tem uma irmã? Onde está a menina? – venha cá, Betty, vá até o pintorSnarles e diga-lhe que faça uma placa com os dizeres – ‘não aceitamos suicidas, eé proibido fumar na sala’; – pode-se matar dois coelhos com uma só cajadada.Matar? Que Deus tenha misericórdia de seu espírito! Que barulho é esse? Você aí,meu jovem, pare com isso!”

E, correndo atrás de mim, segurou-me enquanto eu tentava forçar a porta.“Não vou permitir; não vou deixar que estrague minha propriedade. Chame o

serralheiro, que fica a mais de um quilômetro daqui. Mas pare com isso!”, ecolocou a mão no bolso, “aqui tem uma chave, que pode servir, vamos ver!”Dizendo isso, virou a chave na fechadura; mas, ai! O ferrolho complementar deQueequeg corria por trás da porta.

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“Tenho que arrombá-la”, eu disse, e fui para a entrada para tomar impulso,quando a estalajadeira me pegou, dizendo que eu não deveria quebrar suapropriedade; mas eu me soltei dela e com uma súbita e violenta corrida mejoguei contra o alvo.

Com um barulho notável a porta se abriu, e a maçaneta batendo contra aparede lançou o reboco para o alto; e lá, graças a Deus! Lá estava sentadoQueequeg, calmo e composto; bem no meio do quarto; de cócoras; com Yojo emcima da cabeça. Não olhou para nenhum lado, sentado como uma imagemesculpida quase sem sinal de vida.

“Queequeg”, disse, dirigindo-me a ele, “Queequeg, o que há com você?”“Ele não ficô’ aí de cócoras o dia inte’ro, né?”, perguntou a estalajadeira.Por mais que nos esforçássemos, não conseguíamos arrancar uma palavra dele;

quase cheguei a empurrá-lo para ver se mudava de posição, tão intolerável aquilome parecia; especialmente porque era muito provável que tivesse mesmo ficadonaquela posição por oito ou dez horas, sem fazer nenhuma refeição.

“Senhora Hussey”, disse, “de qualquer modo ele está vivo; portanto, peço-lheque saia e me deixe tratar sozinho dessa estranha situação.”

Fechando a porta atrás da estalajadeira, tentei persuadir Queequeg a sentar-senuma cadeira, mas em vão. Ali permaneceu; e – a despeito de todos os meusagrados e estratagemas corteses – ele não se mexeu um milímetro, não disse umasimples palavra, nem olhou para mim, e nem se deu conta de minha presença.

Será possível que isso faça parte de seu Ramadã?, pensei; será que jejuam decócoras em sua ilha natal? Deve ser isso; sim, é parte de seu credo, imagino;bom, que assim seja; sem dúvida, mais cedo ou mais tarde ele vai se levantar. Issonão pode durar para sempre, graças a Deus, e seu Ramadã só acontece uma vezao ano; e não acredito que seja muito pontual.

Desci para jantar. Depois de ouvir sentado por muito tempo longas histórias deuns marinheiros recém-chegados de uma viagem “pudinzinho de coco”, como achamavam (isto é, uma viagem rápida de pesca de baleias em escuna ou brigue,cuja rota se limita ao norte da Linha, apenas no oceano Atlântico); depois deescutar esses pudinzeiros até quase onze horas da noite, subi para me deitar,certo de que Queequeg já deveria estar terminando seu Ramadã a essa hora. Masnão; lá estava ele, onde eu o havia deixado; não tinha se mexido um milímetro.Comecei a ficar irritado com ele; parecia-me insensato e irracional sentar-se decócoras em um quarto frio com um pedaço de madeira na cabeça um dia inteiroe mais metade da noite.

“Pelo amor de Deus, Queequeg, levante-se e mexa-se; levante-se e vá jantar.Você vai morrer de fome; você vai se matar, Queequeg.” Mas ele não respondeu

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nada.Assim, desesperançado, decidi ir para a cama e dormir; sem dúvida, em breve,

ele faria o mesmo. Mas antes de me deitar peguei meu casaco de urso e jogueisobre ele, porque prometia ser uma noite muito fria; e ele estava apenas com seucasaco simples. Por algum tempo, por mais que me esforçasse, não conseguianem cochilar. Eu tinha apagado a vela; mas a simples idéia de Queequeg – apoucos metros de mim – agachado naquela posição incômoda, sozinho no escuroe no frio; aquilo me deixava bastante aflito. Pense bem; dormir a noite toda nomesmo quarto com um pagão acordado e acocorado, cumprindo os deveres deseu inexplicável Ramadã!

Mas acabei por adormecer e só acordei ao raiar do dia; ao olhar da cama, viQueequeg de cócoras, como se estivesse pregado ao chão. Assim que o primeiroraio de sol entrou pela janela, ele se levantou, com as juntas rangendo, mas comuma aparência alegre; cambaleou na minha direção; pressionou seu rosto contrao meu; e disse que seu Ramadã havia terminado.

Ora, como eu disse antes, não faço objeção à religião de pessoa alguma, sejaela qual for, contanto que a pessoa não mate e nem insulte qualquer outra pessoaque não professe o mesmo credo. Mas quando a religião de um homem se tornadestempero; quando é um verdadeiro tormento; e faz com que esta nossa Terra setorne uma estalagem desagradável para a gente se instalar; nesse caso, então,acredito que está na hora de chamar a pessoa à razão e discutir o assunto.

Foi o que fiz naquela ocasião com Queequeg. “Queequeg”, eu disse, “venhapara a cama, e me escute.” Então prossegui, começando com a gênese e aevolução das religiões primitivas, chegando às diferentes religiões do presente, edurante esse tempo me esforcei para mostrar a Queequeg que todas asQuaresmas, Ramadãs e genuflexões prolongadas em quartos frios eram umatolice; que faziam mal para a saúde; que eram inúteis para a alma; em suma, quese opunham às leis da Higiene e do senso comum. Disse-lhe também que, sendoele em outras ocasiões um selvagem tão sensível e tão sagaz, me afligia muito vê-lo agindo de modo tão insensato em relação ao seu ridículo Ramadã. Além disso,argumentei, jejuar arruína o corpo; e também faz ruir o espírito; e todos ospensamentos originados durante um jejum devem ser necessariamente um tantoesfomeados. Essa é a razão pela qual a maioria dos religiosos que sofrem deproblemas digestivos nutre idéias tão melancólicas sobre seus aléns. Em umapalavra, Queequeg, eu disse, um pouco digressivo, o inferno é uma idéia nascidade um doce de maçã que não desceu bem; e que desde então se perpetuouatravés das indigestões alimentadas pelos Ramadãs.

Perguntei então a Queequeg se já sofrera de indigestão, exprimindo a idéiacom toda a simplicidade para que ele pudesse compreender. Ele disse que não;

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exceto numa ocasião memorável. Foi depois do grande banquete oferecido peloRei, seu pai, quando venceu uma grande batalha na qual cinqüenta inimigosforam mortos antes das duas horas da tarde e foram todos cozidos e devorados ànoite.

“Basta, Queequeg”, eu disse, estremecendo, “já chega!”; pois eu sabia o que elequeria dizer sem ter que dizê-lo. Conhecera um marinheiro que tinha visitado ailha, e ele tinha me dito que era o costume, depois de vencer uma batalha, fazerno quintal ou jardim do vencedor churrasco de todos os mortos; em seguida,estes eram colocados um a um em grandes tachos de madeira, enfeitados comfruta-pão e coco, como um pilau, com salsa na boca, e enviados com oscumprimentos do vencedor a todos os seus amigos, como se fossem vários perusde Natal.

Pensando bem, não creio que minhas observações sobre religião tenhamproduzido muito efeito sobre Queequeg. Em primeiro lugar, porque ele pareciaembotado ao me ouvir falar sobre assunto tão importante de um ponto de vistadiferente do seu; e, em segundo lugar, ele não entendia um terço do que eufalava, por mais simples que fossem minhas idéias; por último, sem dúvidanenhuma, ele achava que sabia mais sobre a verdadeira religião do que eu. Olhoupara mim com uma espécie de condescendência e compaixão, como se achasseuma pena que um jovem tão sensato estivesse tão irremediavelmente perdidopara a devoção evangélica pagã.

Por fim nos levantamos e nos vestimos; Queequeg tomou um café reforçado ecomeu tantas caldeiradas que a estalajadeira perdeu o lucro que tinha conseguidocom o Ramadã. Depois saímos para embarcar no Pequod, sem pressa, palitandoos dentes com as espinhas do linguado.

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18 SUA MARCA

Enquanto caminhávamos pelo cais em direção ao navio,Queequeg com seu arpão, o Capitão Peleg nos chamou em voz alta de formaríspida de seu wigwam e disse que não fazia idéia de que meu amigo era umcanibal, e ele não admitia canibais a bordo de sua embarcação, a menos queapresentassem previamente os seus documentos.

“O que o senhor quer dizer com isso, capitão Peleg?”, perguntei, saltando paraa amurada, deixando meu companheiro no cais.

“Quero dizer que ele tem que mostrar seus documentos”, ele respondeu.“Sim”, disse o Capitão Bildad com a voz abafada, atrás de Peleg, pondo a

cabeça para fora do wigwam. “Ele deve mostrar que se converteu. Filho dastrevas”, acrescentou virando-se para Queequeg, “estás em comunhão com algumaigreja Cristã?”

“Ora, ele é um membro da primeira Igreja Congregacional”, eu disse. Éverdade que muitos dos selvagens tatuados que viajavam nos navios de Nantucketacabavam por ser convertidos nas igrejas.

“A primeira Igreja Congregacional”, gritou Bildad, “Quê! Aquela cujo culto é nacasa do diácono Deuteronômio Coleman?”, e dizendo isto tirou os óculos,esfregou-os com seu grande lenço amarelo estampado, colocou-os novamentecom cuidado, saiu do wigwam e encostou-se na amurada para examinar melhorQueequeg.

“Há quanto tempo ele freqüenta a igreja?”, perguntou, virando-se para mim;“não creio que faça muito tempo, meu jovem rapaz.”

“Não”, disse Peleg, “e tampouco foi batizado, ou teriam lavado algumasdaquelas marcas diabólicas do seu rosto.”

“Diga-me, agora”, gritou Bildad, “esse Filisteu é um membro regular do cultodo diácono Deuteronômio? Nunca o vi lá, e passo por ali todo santo dia.”

“Não sei nada sobre o diácono Deuteronômio, nem sobre seu culto”, eu disse,“tudo o que sei é que Queequeg é um membro nato da Primeira IgrejaCongregacional. Sendo ele próprio, Queequeg, um diácono.”

“Meu jovem rapaz”, disse Bildad implacável, “tu estás te divertindo à minhacusta – explica-te, jovem Hitita. A que igreja te referes? Responde.”

Vendo-me pressionado, respondi: “Refiro-me, senhor, à mesma e antiga IgrejaCatólica à qual o senhor e eu, o Capitão Peleg e Queequeg, e todos nós, filhos de

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todas as mães e almas viventes, pertencemos; a grande e duradoura PrimeiraCongregação deste mundo devoto; nós todos pertencemos a ela; apenas alguns denós crêem em algumas extravagâncias que em nada afetam o grande credo; nele,todos juntamos as mãos”.

“Unimos, queres dizer, unimos as mãos”, gritou Peleg, aproximando-se. “Meujovem, é melhor que embarques como missionário, em vez de marinheiro; nuncaouvi um sermão melhor. O Diácono Deuteronômio – ora, o Padre Mapple nãoteria feito melhor, e isto não é pouca coisa. Vem a bordo, vem a bordo; não tepreocupes com documentos. Repito, diz ao Quohog – como é mesmo o nomedele? –, diz que suba aqui. Pela grande âncora, que arpão! Parece ser dos bons; eele maneja direitinho. Repito, Quohog, ou seja lá qual for o teu nome, já estivesteà frente de um bote baleeiro? Alguma vez já atingiste um peixe?”

Sem dizer palavra, a seu modo selvagem, Queequeg pulou na amurada, de láfoi para a proa de um bote baleeiro que estava pendurado de lado; flexionou seujoelho esquerdo, apoiou seu arpão, e gritou algo assim:

“Capetão, vuncê vê’ ‘quela gotin’a de alcatrão ali? Vuncê vê’? Ora, imagini quié o oio da baleia, tá?”, mirou com cuidado e atirou o ferro bem em cima dochapéu de Bildad, através do convés do navio, e atingiu a mancha de alcatrão quebrilhava ao longe.

“Ora”, disse Queequeg, calmamente puxando a corda, “imagini qui é o olho dabaleia; ora, a baleia morreu.”

“Rápido, Bildad”, disse Peleg, a seu companheiro, que tinha ido para a entradada cabine, horrorizado pela proximidade com o arpão. “Rápido, Bildad, pega osdocumentos do navio. Nós temos um Hedgehog aí, um porco-espinho, oumelhor, um Quohog, em um dos nossos botes. Veja bem, Quohog, nós lhedaremos uma cota de noventa avos, e isto é mais do que jamais se pagou a umarpoador de Nantucket.”

Então descemos à cabine, e para minha grande alegria Queequeg foi logoincorporado à tripulação do navio ao qual eu pertencia.

Quando todas as formalidades preliminares terminaram e Peleg estava prontopara a assinatura, ele se virou para mim e disse, “Acho que Quohog não sabeescrever, não é? Que os diabos te levem, Quohog! Sabes assinar teu nome ou fazertua marca?”.

Queequeg, que já tinha tomado parte duas ou três vezes em cerimôniasparecidas, não ficou nada embaraçado; e, pegando a caneta que lhe era oferecida,pôs no papel, no lugar certo, uma cópia exata de um estranho desenho redondotatuado em seu braço; que, por causa do erro insistente do Capitão Peleg emrelação ao seu nome, ficou assim:

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Quohog.

Sua ∞ marca

Enquanto isso, o capitão Bildad estava sentado imóvel, observando Queequeg, epor fim se levantou solenemente e, remexendo nos enormes bolsos de seu casacogrosseiro, tirou um maço de papéis, escolheu um chamado “A Chegada doÚltimo Dia; ou Sem Tempo a Perder”, colocou-o nas mãos de Queequeg, depoisjuntou as duas mãos de Queequeg e o livro com as suas, olhou fixamente nosseus olhos e disse, “Filho das trevas, devo fazer meu dever contigo; sou um dosproprietários deste navio e me preocupo com todas as almas da tripulação; se teagarras aos modos Pagãos, que receio ser o caso, peço-te que não sejas parasempre escravo de Belial. Rejeita o ídolo Baal e o terrível dragão; afasta a cóleraiminente; muito cuidado, repito; oh! Valha-me Deus! Desvia-te do caldeirão doinferno!”.

Havia algo de mar salgado na linguagem de Bildad, misturado com frases daEscritura e outras de cunho doméstico.

“Basta, basta, Bildad, pára de estragar nosso arpoador”, gritou Peleg.“Arpoadores piedosos nunca são bons viajantes: a religião tira-lhes o tubarão; umarpoador que não tem um pouco de tubarão em si não vale nada. Havia o NatSwaine, que era o mais valente chefe de bote que já se viu em toda Nantucket eVineyard; juntou-se ao culto e nunca mais foi tão bom. Ficou tão receoso por suaalma pecadora que fugia das baleias, por medo de que algo lhe pudesseacontecer, que fosse queimado no inferno.”

“Peleg! Peleg!”, disse Bildad, levantando os olhos e as mãos, “tu mesmo – assimcomo eu – já viste tempos perigosos; sabes, Peleg, o que é temer a morte; comopodes então falar como um herege? Renegas o teu próprio coração, Peleg. Dize-me, quando o temporal levou três mastros deste Pequod aqui no Japão, namesma viagem em que foste imediato do capitão Ahab, não pensaste na Morte eno Juízo Final?”

“Escutai-o, escutai-o”, gritou Peleg, andando pela cabine, com as mãos enfiadasnos bolsos, – “escutai-o, todos vós. Pensai nisso! Quando a todo o momentopensávamos que o navio iria afundar! Morte e Juízo Final! O quê? Com os trêsmastros fazendo barulho contra o flanco do navio e as ondas quebrando noconvés desde a popa até a proa. Pensar na Morte e no Juízo Final naquela ocasião?Não! Não havia tempo para pensar na Morte. Na Vida, pensávamos o capitão e eu;em como salvar vidas – como levantar os mastros –, como chegar ao porto maispróximo; era nisso que eu pensava.”

Bildad não disse mais nada, mas abotoou seu casaco, subiu para o convés, e

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nós o seguimos. Ficou parado ali, olhando calmamente para um grupo queremendava um mastaréu da gávea. De vez em quando se inclinava para recolherum pedaço de lona ou pegar um fio, que de outro modo teria sido jogado fora.

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19 O PROFETA

“Marinheiros! Vos engajastes naquele navio?”Queequeg e eu havíamos acabado de deixar o Pequod e afastávamo-nos

lentamente do mar, cada um ocupado com os seus pensamentos, quando aquelaspalavras foram proferidas por um estranho, que parou diante de nós, e apontouseu grande dedo indicador na direção do navio. Estava vestido com um casacosurrado e calças remendadas; um pedaço de um lenço negro envolvia seupescoço. Uma máscara pustulenta de bexigas espalhara-se por todas as direçõesde seu rosto, do qual restava algo como uma complicada rede de córregos, cujaságuas já haviam secado.

“Vos engajastes como marinheiros naquele navio?”, repetiu.“Você quer dizer o Pequod, eu imagino”, disse eu, tentando ganhar tempo

para dar mais uma olhada nele.“Sim, o Pequod – aquele navio ali”, ele disse, retraindo o braço, e então

lançando-o rapidamente para a frente de novo, com a baioneta fixa de seu dedoapontada para o navio.

“Sim”, eu disse, “acabamos de assinar contrato.”“Alguma coisa nele sobre vossas almas?”“Sobre o quê?”“Bem, talvez vós nem tenhais almas”, ele respondeu depressa. “Não importa,

conheço muitos tipos que não têm – estão numa situação melhor. A alma é umaespécie de quinta roda em uma carroça.”

“Que conversa besta é essa, companheiro?”, perguntei.“Mas ele tem o suficiente para compensar todas as deficiências de outros

camaradas”, disse o estranho, abruptamente, colocando uma ênfase nervosa napalavra ele.

“Queequeg”, eu disse, “vamos embora; esse sujeito escapou de algum lugar;está falando sobre uma coisa e uma pessoa que não conhecemos.”

“Parai!”, gritou o estranho. “Disseste a verdade – não viste o Velho Trovão, nãoé?”

“Quem é o Velho Trovão?”, perguntei fascinado pelo seu jeito insensato eveemente.

“O Capitão Ahab.”“O quê? O capitão do nosso navio, o Pequod?”

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“Sim, de todos nós, marinheiros velhos de guerra, é ele que atende por essenome. Vós não o vistes, não é?”

“Não. Disseram que está doente, mas que está melhorando e que em breveficará direito de novo.”

“Em breve ficará direito de novo!”, riu-se o estranho com uma gargalhada deescárnio. “Vede bem; quando o Capitão Ahab estiver direito, este meu braçoesquerdo também ficará; não antes!”

“O que você sabe a respeito dele?”“O que vos contaram a respeito dele? Dizei!”“Não contaram muita coisa sobre ele; sei apenas que ele é um bom pescador

de baleias e um bom capitão para sua tripulação.”“Isso é verdade, isso é verdade – sim, as duas afirmações são verdadeiras. Mas

quando ele dá uma ordem é preciso obedecer imediatamente. Marchar e rosnar;rosnar e ir – é assim com o Capitão Ahab. Mas não contaram nada sobre o queaconteceu com ele perto do cabo Horn, há muito tempo, quando ele ficoudeitado como um morto por três dias e três noites; não contaram nada sobre ocombate mortal com o espanhol diante do altar em Santa? – não ouvistes nada arespeito disso? E nada sobre a cabaça de prata na qual ele cuspiu? E nada sobrecomo perdeu sua perna na última viagem, para que se cumprisse uma profecia?Não ouvistes nada sobre esses assuntos e alguns outros, não é? Não, acho que não;como poderíeis? Quem é que sabe? Acho que ninguém sabe em Nantucket. Masem todo caso ouvistes falar da perna e de como a perdeu; sim, isso vós escutastes.Ah, sim, isso todos sabem – ou seja, sabem que ele só tem uma perna; e que umcachalote levou a outra.”

“Meu amigo”, eu disse, “aonde você quer chegar com esse blábláblá, eu nãosei e nem quero saber; porque me parece que você não bate muito bem. Mas seestiver falando do Capitão Ahab, daquele navio ali, o Pequod, permita que eu lhediga que sei tudo sobre a perda da perna.”

“Tudo sobre a perna, é? Tens certeza? Tudo?”“Absoluta.”Com o dedo apontado e os olhos erguidos na direção do Pequod, o estranho

com cara de mendigo ficou parado por uns instantes, como se estivessemergulhado numa conturbada meditação; depois se mexeu um pouco, virou-se edisse: – “Vos engajastes como marinheiros, não é? Com os nomes no papel? Bem,o que está assinado, assinado está; e o que será, será; talvez não aconteça nada.De qualquer modo, já está combinado e determinado; imagino que algunsmarinheiros tenham que ir com ele; de uns e de outros, que Deus tenha piedade!Um bom dia, companheiros de bordo, bom dia; que os inefáveis céus vos

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abençoem; lamento ter-vos incomodado.”“Escute aqui, amigo”, eu disse, “se você tem algo importante a nos dizer,

desembuche; mas, se estiver querendo engambelar a gente, está perdendo o seutempo; é tudo o que tenho a dizer.”

“Muito bem, gosto de ouvir um camarada falando desse jeito; você é o homemcerto para ele – como outros iguais a ti. Bom dia, companheiros, bom dia! Ah,quando chegarem lá, digam que decidi não ser um deles.”

“Ah, meu caro amigo, não pode nos enganar dessa maneira – não pode nosenganar. Nada mais fácil para um homem do que fingir que guarda consigo umenorme segredo.”

“Bom dia, companheiros, bom dia.”“De fato, bom dia”, eu disse. “Venha, Queequeg, vamos deixar esse louco. Mas

espere aí, não quer dizer como se chama?”“Elijah.”Elijah! Pensei, e afastamo-nos fazendo comentários, cada um a seu modo,

sobre o velho marinheiro maltrapilho; e concordamos que devia ser apenas umcara-de-pau querendo se fazer de bicho-papão. Mas não tínhamos nos afastadonem cem jardas quando, ao virar uma esquina e olhar para trás, vi Elijah a certadistância. De certo modo, fiquei impressionado ao vê-lo, mas não disse nada aQueequeg, e prossegui com meu camarada, ansioso por ver se o estranho viraria amesma esquina que nós. Ele virou; então me pareceu que estava nos seguindo,mas não tinha idéia de qual seria sua intenção. Aquelas circunstâncias,combinadas com seu jeito ambíguo, meio revelador, meio escondido de falar,despertou em mim todos os tipos de apreensões e questionamentos em relação aoPequod; ao capitão Ahab; à perna que tinha perdido; ao ataque que sofrera nocabo Horn; à cabaça de prata; ao que o capitão Peleg tinha dito sobre ele quandoeu saí do navio no dia anterior; à profecia da indígena Tistig; à viagem que íamosempreender; e centenas de outras coisas obscuras.

Para saber, afinal, se o maltrapilho Elijah estava mesmo nos seguindo,atravessei a rua com Queequeg; do outro lado, andamos em sentido contrário.Mas Elijah prosseguiu como se não tivesse percebido. Foi um alívio para mim; emais uma vez, e definitivamente, do fundo de meu coração, repeti para mimmesmo, que cara-de-pau.

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20 TUDO EM ATIVIDADE

Passaram-se um ou dois dias e havia grande atividadea bordo do Pequod. Não só eram remendadas as velas antigas como chegavamnovas velas, junto com peças de lona e rolos de cordame; em suma, tudo indicavaque os preparativos do navio estavam chegando ao fim. O Capitão Peleg quasenunca vinha a bordo, mas sentava-se no wigwam, de onde observava osmarinheiros; Bildad fazia as compras e cuidava das provisões nos armazéns; e oshomens, ocupados com o porão e os apetrechos, varavam a noite trabalhando.

No dia seguinte à assinatura do contrato por Queequeg, comunicaram emtodas as estalagens onde os homens da tripulação se encontravam hospedadosque as suas arcas deveriam estar a bordo antes do anoitecer, porque o naviopoderia sair a qualquer momento. Queequeg e eu levamos nossa bagagem, masestávamos resolvidos a dormir em terra até o fim. Mas parece que nesses casossempre avisam com muita antecedência, e o navio demorou ainda alguns diasantes de partir. Não era de admirar: havia muita coisa a ser feita, e mais ainda aser pensada antes que o Pequod pudesse ser considerado pronto para partir.

Todo mundo sabe que uma multidão de objetos – camas, panelas, facas egarfos, pás e pinças, guardanapos, quebra-nozes, e não sei o que mais – éindispensável numa casa. O mesmo sucede com a pesca de baleias, que necessitado equivalente à manutenção de uma casa durante três anos no mar, longe demercearias, verdureiros, doutores, padeiros e banqueiros. Embora isto também seaplique aos navios mercantes, não é de forma alguma na mesma proporção quepara os baleeiros. Além de a viagem de pesca de baleias ser muito longa, e apesardos numerosos objetos específicos para a pesca e da impossibilidade de substituí-los nos portos distantes, é preciso lembrar que, dentre todos os navios, osbaleeiros são os mais expostos a acidentes de todo tipo, especialmente àdestruição e perda dos objetos dos quais depende o êxito da viagem. Por isso énecessário levar botes de reserva, vergas de reserva, linhas e arpões de reserva,quase tudo de reserva, exceto um Capitão e um navio de reserva.

Ao tempo de nossa chegada na ilha, a carga mais pesada do Pequod já tinhasido embarcada, como a carne, o pão, a água, o combustível, os arcos de ferro eas aduelas. Mas, como disse antes, durante algum tempo diferentes coisas, tantograndes quanto pequenas, foram levadas a bordo.

Dentre as pessoas que mais levaram e carregaram coisas estava a irmã doCapitão Bildad, uma velha senhora enxuta, que tinha um espírito determinado e

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infatigável, além de um bom coração, e que estava decidida, no que dependessedela, a não deixar faltar nada no Pequod depois que partisse para o mar. Primeiroela veio a bordo com um pote de picles para a despensa; depois veio com umfeixe de penas, que colocou sobre a mesa do imediato; uma terceira vez apareceucom uma peça de flanela para o caso de alguma dor nas costas. Nenhuma mulherjamais recebeu um nome mais acertado do que Charity [Caridade] – Tia Charity,como todos a chamavam. Como uma irmã de caridade, a caridosa Tia Charity sealvoroçava, pronta para dar uma mão e empenhar todo o seu coração em algoque pudesse trazer segurança, conforto e consolo aos que embarcassem no naviode seu querido irmão Bildad, e no qual ela investira os seus poucos dólareseconomizados.

Foi surpreendente ver essa Quacre de bom coração subir a bordo, como fez noúltimo dia, com uma longa concha de óleo numa mão e um arpão ainda maislongo na outra. Não ficou atrás nem de Bildad e nem do capitão Peleg. Bildadcarregava uma lista longa de objetos que eram necessários a cada chegada eriscava seus nomes à medida que iam sendo embarcados. De vez em quando,Peleg saía depressa de seu covil de ossos de baleia, e gritava com os homens dasescotilhas, gritava com os homens do topo do mastro, e voltava gritando para owigwam.

Durante esses dias de preparativos, Queequeg e eu visitamos o navio diversasvezes, e em todas as vezes perguntei sobre o Capitão Ahab, como estava e quandovoltaria ao navio. Respondiam a essas perguntas dizendo que ele estavamelhorando, que qualquer dia viria a bordo; enquanto isso, os dois Capitães,Peleg e Bildad, podiam ajudar com o que fosse necessário à preparação do naviopara a viagem. Se tivesse sido honesto comigo mesmo, teria percebido que nofundo do coração eu não estava gostando da idéia de me comprometer com umaviagem tão longa sem nunca ter visto o homem que era o tirano absoluto donavio antes de partir. Quando um homem suspeita de que há algo de errado,acontece de ele, às vezes, no caso de já se encontrar envolvido, lutarinsensivelmente para esconder essas suspeitas até de si próprio. Foi o queaconteceu comigo. Não disse nada, tentei não pensar em nada.

Afinal, comunicaram que o navio partiria no dia seguinte, sem hora marcada.Portanto, nesse dia, Queequeg e eu nos levantamos mais cedo.

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21 EMBARCANDO

Eram quase seis horas de uma madrugada nublada, cinzentae imperfeita, quando nos aproximamos do cais.

“Há alguns marinheiros correndo ali, se vejo bem”, eu disse para Queequeg,“não podem ser sombras; acho que o Pequod deve sair ao nascer do sol; venha!”

“Esperai!”, gritou uma voz, cujo dono se aproximou de nós pelas costas,colocou a mão nos nossos ombros, e então, abrindo espaço entre nós, inclinou-seum pouco para frente, no lusco-fusco incerto, para melhor observar-nos,Queequeg e eu. Era Elijah.

“Ides embarcar?”“Tire as mãos daí!”, eu disse.“Óia”, disse Queequeg, sacudindo-se, “vai embora!”“Não ides embarcar, então?”“Vamos, sim”, eu disse, “mas o que você tem a ver com isso? Sabia que o

considero um tanto impertinente, seu Elijah?”“Não, não, não; não sabia”, disse Elijah lentamente, olhando admirado para

mim e para Queequeg, com os mais estranhos trejeitos.“Elijah”, eu disse, “faça o favor de sair da frente! Vamos para o oceano Índico e

Pacífico, e acharíamos melhor não nos atrasarmos.”“Vão mesmo? Voltam antes do café-da-manhã?”“Ele é louco, Queequeg”, eu disse. “Venha!”“Olá!”, gritou Elijah, parado, saudando-nos quando demos alguns passos.“Não se incomode com ele”, eu disse, “Queequeg, venha!”Mas ele se aproximou de novo, e, dando um tapa no meu ombro, disse – “Não

viste há pouco algo que pareciam ser homens andando na direção daquelenavio?”.

Impressionado por essa pergunta tão prosaica, respondi dizendo “Sim, achoque vi quatro ou cinco homens; mas não tenho certeza, porque estava muitoescuro”.

“Muito escuro, muito escuro”, disse Elijah. “Tenham um bom dia.”Mais uma vez nos afastamos; e mais uma vez ele vinha sorrateiro atrás de nós;

e de novo dando um tapa no meu ombro, disse “Tente encontrá-los agora, ‘tá?”.“Encontrar quem?”“Tenham um bom dia! Tenham um bom dia!”, respondeu, pondo-se em

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marcha. “Ah! eu queria preveni-los contra – mas não importa, não importa –, étudo a mesma coisa, tudo em família; – que gelo logo de manhã, hein? Adeus.Não os verei tão cedo; a não ser que seja no dia do Juízo Final.” Com essaspalavras sem sentido, finalmente ele partiu, deixando-me não poucoimpressionado com seu descaramento frenético.

Por fim, subindo a bordo do Pequod encontramos tudo num silêncioprofundo, não havia alma que se mexesse. A entrada da cabine estava trancadapor dentro; as escotilhas estavam fechadas com rolos de cordame. Indo para ocastelo de proa, encontramos a peça corrediça do escotilhão aberta. Ao ver umaluz, descemos, mas encontramos apenas um velho armador, envolto numgrosseiro casaco de lã puída. Estava estendido entre duas arcas, o rosto parabaixo, escondido entre os braços dobrados. O sono mais profundo pesava sobreele.

“Aqueles marinheiros que vimos, Queequeg, para onde será que foram?”,perguntei, olhando com suspeita para o marinheiro que dormia. Mas parecia queQueequeg não tinha visto nenhum dos marinheiros no cais; eu teria achado quefoi uma ilusão de óptica se não fosse pela pergunta de outro modo inexplicávelde Elijah. Mas parei de me preocupar com aquilo; e, olhando de novo para oadormecido, disse brincando a Queequeg que talvez fosse melhor levantarmosaquele corpo e dizer-lhe que ficasse sentado. Ele apalpou a nádega do marinheiroque dormia, como para ver se era suficientemente macia; e, sem dizer mais nada,sentou-se em cima dela.

“Santo Deus! Queequeg, não sente aí”, eu disse.“Ah! muito bom cade’ra”, disse Queequeg, “assim no meu país; num machuca

cara ele.”“Cara!”, eu disse, “você acha que isso é a cara dele? Que bondade a sua; mas

ele está com dificuldade para respirar, está arfando; saia daí, Queequeg, você épesado, está esmagando o coitado. Saia, Queequeg! Veja, logo mais ele vaiempurrá-lo. Admira-me que não tenha acordado.”

Queequeg se colocou atrás da cabeça do marinheiro adormecido e acendeuseu cachimbo tomahawk. Sentei-me a seus pés. Passávamos o cachimbo por cimado marinheiro adormecido. Enquanto isso, respondendo em sua língua sôfrega àsminhas perguntas, Queequeg me deu a entender que em seu país, por causa dafalta de sofás e cadeiras de todos os tipos, o rei, os chefes e as pessoas importantestinham o costume de engordar alguns cidadãos subalternos para lhes servirem deassento; e para mobiliar uma casa com conforto bastava comprar oito ou dezsujeitos preguiçosos e instalá-los nos pilares e alcovas. Além do mais, era muitoconveniente nas excursões; muito melhor do que cadeiras de jardim dobráveisque se transformam em bengalas; no momento oportuno, o chefe chamava o

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assistente, pedindo-lhe que se tornasse um assento embaixo de uma árvorefrondosa, não raro em lugares pantanosos e úmidos.

Enquanto contava essas coisas, cada vez que Queequeg recebia o cachimbotomahawk de mim, ele brandia o fornilho na cabeça do adormecido.

“Por que está fazendo isto, Queequeg?”“Muito fáciu matá’; muito fáciu!”Estava contando reminiscências selvagens sobre seu cachimbo tomahawk, que

parecia ter dois usos, a saber, estourar a cabeça dos inimigos e acalmar o espírito,quando nossa atenção foi despertada pelo armador adormecido. A fumaça queenchia o pequeno cômodo começou a afetá-lo. Respirava como se tivesse algo alhe cobrir o rosto; então pareceu sentir um incômodo no nariz; depois virou delado uma ou duas vezes; sentou-se e esfregou os olhos.

“Olá!”, soltou por fim, “quem são vocês, fumantes?”“Homens de bordo”, respondi, “quando partimos?”“Ah! vocês também vão? Partimos hoje. O capitão embarcou ontem à noite.”“Que capitão? – Ahab?“Quem mais havia de ser?”Ia lhe perguntar mais sobre Ahab, quando ouvimos um barulho no convés.“Ora! Starbuck já está na ativa”, disse o armador. “É um imediato muito ativo;

um bom homem e muito piedoso; mas vamos nos mexer. Tenho que ir.” Dizendoisso, saiu para o convés e nós o seguimos.

O sol já tinha nascido. Em pouco tempo a tripulação subiu a bordo, de doisem dois ou de três em três; os armadores estavam atarefados; os imediatostrabalhavam ativamente; e muitos dos trabalhadores estavam ocupados trazendoa bordo as muitas últimas coisas. Durante esse tempo, o Capitão Ahabpermaneceu invisível no santuário de sua cabine.

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22 FELIZ NATAL

Por fim, perto do meio-dia, na debandada final dos armadores,e após o Pequod ter sido afastado do cais pelos rebocadores, e depois que aatenciosa Charity veio a bordo num bote cheio de presentes – uma touca dedormir para Stubb, o segundo imediato, seu cunhado, e uma Bíblia sobressalentepara o comissário – os dois Capitães, Peleg e Bildad, saíram da cabine e, virando-se para o imediato, disseram:

“Bem, senhor Starbuck, tem certeza de que está tudo em ordem? O CapitãoAhab está pronto – acabo de falar com ele –, não precisa de mais nada da terra,não é? Bem, chame os homens, então. Reúna-os aqui na popa – malditos sejam!”

“Não é necessário blasfemar, ainda que grande seja a pressa, Peleg”, disseBildad, “mas agora vai, amigo Starbuck, e cumpre nossas ordens.”

Como assim? Na hora da partida, o Capitão Peleg e o Capitão Bildad davamordens como se juntos comandassem no mar assim como comandavam no porto.Do Capitão Ahab, nenhum sinal; mas diziam que estava na cabine. Mas parecia –essa era a idéia – que sua presença não era necessária para fazer flutuar o navio elevá-lo para o alto-mar. Na verdade, isso não era mesmo tarefa sua, mas do piloto;e como não estava totalmente recuperado – é o que diziam –, o Capitão Ahabficou recolhido. Tudo isso parecia bastante natural; especialmente porque, namarinha mercante, vários capitães não aparecem no convés por um bom tempodepois de içada a âncora, permanecendo em suas cabines para a despedida festivados amigos de terra, antes que estes deixem o navio definitivamente nas mãos dopiloto.

Mas não havia tempo para pensar nisso, porque o Capitão Peleg estava a toda.Parecia que cabia a ele falar e dar a maior parte das ordens, e não a Bildad.

“Para a popa, seus filhos-da-mãe”, gritou para os marinheiros que sedemoravam ao redor do mastro principal. “Senhor Starbuck, manda-os para apopa.”

“Desmontai a tenda!” – foi a ordem seguinte. Como havia percebido antes, atenda de osso de baleia só ficava armada no porto; e durante trinta anos a bordodo Pequod a ordem de desmontar a tenda era conhecida por ser a última antes delevantar a âncora.

“Homens, ao cabrestante! Sangue e trovão! – saltai”, foi o próximo comando, ea tripulação correu para as alavancas.

Ora, quando um navio vai zarpar, o piloto ocupa, em geral, a parte dianteira

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do navio. E Bildad, que assim como Peleg era, entre outras coisas, um dos pilotosoficiais do porto – suspeitava-se de que ele próprio se fez piloto para economizara taxa que todos os seus navios teriam que pagar no porto de Nantucket, poisnunca tinha pilotado qualquer outra embarcação –, bem, Bildad estava naquelemomento participando ativamente, observando a âncora da proa, às vezescantarolando uns salmos melancólicos para animar os homens no molinete, quebramiam uma espécie de estribilho sobre as garotas de Booble Alley, comverdadeira boa vontade. No entanto, nem três dias antes, Bildad tinha lhes ditoque não permitia que cantassem músicas profanas a bordo do Pequod,especialmente quando estivessem zarpando; e sua irmã Charity havia colocadojunto ao beliche de cada homem do mar um exemplar de uma seleta de Watts.

Enquanto isso, o Capitão Peleg, supervisionando o outro lado do navio,praguejava e blasfemava de modo assustador. Quase pensei que iria afundar onavio antes que a âncora subisse; sem querer, pausei meu espeque e disse aQueequeg que fizesse o mesmo, pensando no perigo que corríamos ao fazer umaviagem que tinha como piloto tal demônio. Tentava me confortar com a idéia deque o piedoso Bildad pudesse nos salvar, apesar de sua cota de 777 avos; quandosenti um violento pontapé no traseiro e, ao me virar, fiquei horrorizado com aaparição do Capitão Peleg, que naquele exato instante afastava sua perna deminhas imediações. Foi o meu primeiro pontapé.

“É assim que se trabalha na marinha mercante?”, berrou. “Força, idiota; forçaaté quebrar a espinha! Por que não fazeis força, todos vós? – Faz força, Quohog!Força, tu, de suíças vermelhas, força, barrete escocês; força, tu de calças verdes.Força, todos vós, nem que vos caiam os olhos!” Enquanto assim falava, movia-seao redor do molinete, utilizando sua perna com bastante liberdade, enquantoBildad, imperturbável, continuava a cantarolar os salmos. Pensei eu, o CapitãoPeleg deve ter bebido algo hoje.

Por fim a âncora foi levantada, as velas içadas, e partimos. Foi um Natal curtoe frio; quando o breve dia do inverno setentrional se fundiu à noite,encontrávamo-nos em pleno oceano glacial, cujos borrifos nos cobriam de gelo,como se vestíssemos uma armadura lustrosa. A longa fila de dentes na amuradabrilhava com o luar; e, como as presas brancas de marfim de um elefanteenorme, compridos pingentes de gelo pendiam da proa.

O esguio Bildad, como piloto, chefiou a primeira vigília, e, de vez em quando,enquanto a velha embarcação mergulhava nos mares verdes lançando gelo portoda parte, e o vento uivava, e as cordas vibravam, escutávamos suas notasconstantes: –

“Bela campina além da inundação,

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Ali vestida em verde vicejante.Assim aos Judeus pareceu Canaã,Enquanto o Jordão lhes corria diante.”

Nunca essas belas palavras me pareceram mais belas do que naquela ocasião.Estavam cheias de esperança e deleite. Apesar da noite gélida de inverno noturbulento Atlântico, apesar de estar com os pés úmidos e o casaco ainda mais,parecia haver muitos portos aprazíveis à espera; e prados e clareiras tãoeternamente viçosos, que a grama desabrochando na primavera, jamais trilhada,jamais maculada, assim permanecia até meados do verão.

Por fim chegamos a uma distância tal que não mais precisávamos dos doispilotos. O bravo barco a vela que nos seguia começou a emparelhar-se com onavio.

Era curioso e não desagradável observar como Peleg e Bildad estavamcomovidos naquele momento, o Capitão Bildad em especial. Estava relutante napartida; muito relutante na partida de um navio destinado a uma viagem tãolonga e tão perigosa – para além dos dois Cabos turbulentos; um navio em que seencontravam investidos milhares de seus dólares, ganhos com muita dificuldade;um navio no qual um velho companheiro de bordo ia como capitão; um homemquase tão velho quanto ele, partindo mais uma vez ao encontro dos terrores damandíbula impiedosa; relutante em dizer adeus a uma coisa tão carregada deinteresses seus –, o pobre velho Bildad adiava o momento; andou pelo convéscom passos ansiosos; correu para a cabine para se despedir de mais alguém;voltou ao convés e olhou a barlavento; olhou para imensas e intermináveis águas,que tinham como único limite os invisíveis Continentes Orientais; olhou para aterra; olhou para cima; olhou para a direita e para a esquerda; olhou para todaparte e parte nenhuma; por fim, enrolou mecanicamente um cabo em seu eixo,apertou agitado a mão forte de Peleg e, erguendo uma lanterna, por algunsinstantes fixou heroicamente o olhar no outro como se dissesse, “Apesar de tudo,meu amigo Peleg, eu consigo suportar, sim, consigo”.

Quanto a Peleg, parecia mais um filósofo; mas, com toda sua filosofia, haviauma lágrima brilhando em seu olho quando a lanterna se aproximou. Eletambém correu bastante da cabine ao convés – ora uma palavra lá embaixo, orauma palavra com Starbuck, o imediato.

Mas, por fim, virou-se para o seu companheiro, com ar definitivo, – “CapitãoBildad! – vem, companheiro, temos que ir. Põe a verga para trás! Ó, de bordo!Aproxima-te para atracar, agora! Cuidado, cuidado! – Vamos Bildad, meu amigo –despede-te. Boa sorte, Starbuck – boa sorte, senhor Stubb – boa sorte, senhorFlask – adeus, e boa sorte a todos – daqui a três anos estarei esperando por vós

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com uma refeição quente na velha Nantucket. Viva! Vamos!”“Que Deus vos abençoe e vos tenha em Sua Santa guarda, homens”,

murmurou o velho Bildad, quase sem nenhuma coerência. “Espero que tenhaisbom tempo para que o Capitão Ahab possa estar convosco em breve – um solagradável é tudo o que ele precisa, e tereis bastante sol nessa viagem tropical.Cuidado com a pesca, marujos. Vós, arpoadores, não destruais os botes semnecessidade; uma boa tábua de cedro branco aumentou três por cento em umano. Também não vos esqueçais das orações. Senhor Starbuck, lembra o tanoeirode economizar as aduelas sobressalentes. Ah! As agulhas para as velas estão noarmário verde! Não pesqueis baleias nos dias do Senhor; mas não desperdiceisuma boa oportunidade, pois seria rejeitar as dádivas celestes. Cuidado com otonel de melado, senhor Stubb; achei que estava vazando um pouco. Se chegaresàs ilhas, senhor Flask, cuidado com a fornicação. Adeus, adeus! Não deixe oqueijo muito tempo no porão, que se estraga, senhor Starbuck. Cuidado com amanteiga – custou vinte centavos cada libra, e cautela com…”

“Vamos, vamos, Capitão Bildad; basta de falação – vamos embora!”, e com istoo Capitão Peleg o levou ao costado, e os dois desceram ao bote.

O navio e o bote tomaram rumos diferentes; a brisa noturna fria e úmidasoprou entre eles; uma gaivota estridente sobrevoou; os dois cascos balançaram;demos três vivas tristes e cegamente mergulhamos, como o destino, no Atlânticodeserto.

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23 A COSTAA SOTAVENTO

Alguns capítulos atrás, falei de um certo Bulkington, um marujoalto, recém-desembarcado, que encontrei na estalagem em New

Bedford.Naquela noite glacial de inverno, quando o Pequod empenhou sua proa

vingativa contra as ondas frias e maliciosas, quem encontrei ao leme, senãoBulkington! Foi com uma admiração respeitosa e com receio que observei aquelehomem, que no meio do inverno, recém-chegado de uma perigosa viagem dequatro anos, conseguia partir de novo, sem descanso, para mais uma aventuratempestuosa. A terra devia lhe queimar sob os pés. As coisas mais maravilhosassão sempre as indizíveis; as memórias mais profundas não concedem epitáfios;este capítulo de seis polegadas é o túmulo sem lápide de Bulkington. Quero dizerapenas que a ele acontecia o mesmo que ao navio atingido pela tempestade, quese arrasta miseravelmente ao longo da costa a sotavento. O porto teria lhe dadosocorro; o porto é piedoso; no porto encontra-se segurança, consolo, um lar, umaceia, cobertores quentes, amigos, tudo que é bom para o gênero humano. Mas,em meio à tempestade, o porto e a terra representam o maior perigo para essemesmo navio; deve evitar toda hospitalidade; um toque, ainda que fosse umtoque leve na quilha, o partiria em dois. Com todo seu poder, ele estende as velastodas para se afastar da costa; ao fazê-lo, luta contra os mesmos ventos queprocuram levá-lo para terra; procura a ausência de terra do mar revolto; para sesalvar atira-se desesperadamente ao perigo; seu único amigo é seu pior inimigo!

Entendeu agora, Bulkington? Parece que você vislumbra a verdade intolerávelaos mortais: que todo pensamento profundo e sério é apenas um esforçointrépido da alma para manter a independência de seu mar aberto; enquanto osventos mais fortes do céu e da terra conspiram para arrastá-la para a costatraiçoeira e servil.

Mas como na ausência de terra reside a suprema verdade, sem praias,indefinida como Deus – assim, é melhor sucumbir no infinito tempestuoso doque ser vergonhosamente levado a sotavento, mesmo que isso represente asalvação! Porque, oh! quem gostaria de rastejar como um verme na terra? Terrordo terrível! Será vã toda esta agonia? Coragem, ó, Bulkington, coragem! Sêinflexível, semideus! Dos borrifos da tua morte no mar – sempre acima, ergue-sea tua apoteose.

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24 O DEFENSOR

Como Queequeg e eu, agora, estamos bastante envolvidos coma atividade da pesca de baleias; e como essa atividade é considerada umaatividade pouco poética e pouco honrada pelos homens de terra; por isso, estouansioso de convencer-te, homem da terra, da injustiça que é feita a nós, caçadoresde baleias.

Em primeiro lugar, pode parecer supérfluo apontar o fato de que, para a maiorparte das pessoas, a atividade da pesca de baleias não é considerada do mesmonível que as chamadas profissões liberais. Se um estranho, numa sociedade mistametropolitana, fosse apresentado como arpoador, por exemplo, seus méritos nãoseriam valorizados pela opinião geral; e se, emulando os oficiais da marinha, eleusasse as iniciais P.D.C. (Pescador de Cachalotes) em seu cartão de visita, talprocedimento seria considerado presunçoso e ridículo.

Sem dúvida, um dos motivos principais pelos quais o mundo nos nega ahonra, a nós baleeiros, é este: acreditam que, na melhor das hipóteses, nossaprofissão se assemelha à dos açougueiros; e que quando estamos ocupados emtrabalhar estamos cercados por todo tipo de sujeira. Somos açougueiros, éverdade. Mas açougueiros também, e dos mais ensangüentados, são todos osChefes Militares que o mundo se compraz em respeitar. Quanto à alegadaimundície de nossa atividade, serás iniciado em certos fatos até agora muitopouco conhecidos e que, em seu conjunto, colocarão triunfalmente o naviobaleeiro entre as coisas mais asseadas dessa terra. Mas mesmo admitindo que talacusação seja verdadeira; pode-se comparar o convés desordenado e escorregadiode um baleeiro com a podridão execrável dos campos de batalha dos quaisvoltam tantos soldados que recebem os aplausos das damas? E, se é a idéia doperigo que valoriza tanto a profissão do soldado, asseguro-te que muitos dosveteranos que marcharam voluntariamente na direção de uma bateria teriam serecolhido diante da aparição da enorme cauda de um cachalote movimentando oar por cima de suas cabeças. Pois o que são os terrores compreensíveis do homemcomparados com a combinação de terrores e maravilhas de Deus?

Mas embora o mundo nutra desprezo por nós, caçadores de baleia, nem porisso deixa de nos prestar, sem o saber, a mais profunda homenagem; sim, umaadoração exuberante! Porque quase todas as velas, as lamparinas e as tochas quequeimam por este mundo, diante de tantos santuários, queimam por glóriasnossas!

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Mas vê esse assunto com outros olhos, pesa em todos os tipos de balanças;atenta ao que nós, baleeiros, somos e àquilo que fomos.

Por que os holandeses do tempo de De Witt tinham almirantes nas suasesquadras de baleeiros? Por que Luís XVI da França equipou, com seu própriodinheiro, navios baleeiros em Dunquerque e convidou cortesmente a ir paraaquela cidade umas vinte ou quarenta famílias da nossa ilha de Nantucket? Porque a Grã-Bretanha, entre os anos de 1750 e 1788, pagou a seus baleeirosgenerosas quantias acima de um milhão de libras esterlinas? E finalmente, comoé possível que nós, pescadores de baleia, sejamos em maior número nos EstadosUnidos do que em qualquer outra parte do mundo; tenhamos uma frota de maisde setecentos navios; uma tripulação de dezoito mil homens; um consumo anualde quatro milhões de dólares; cada navio valendo no momento da partida vintemilhões de dólares; e importemos anualmente em nossos portos uma bela fériade sete milhões de dólares? Como tudo isso seria possível, se não houvesse algode poderoso na pesca da baleia?

Mas isso não é nem a metade; observa mais uma vez.Afirmo sem medo que o filósofo cosmopolita não pode, por mais que se

esforce, demonstrar uma influência pacificadora que, nos últimos sessenta anos,tenha operado mais efetivamente sobre o vasto mundo, tomado como um todoúnico, do que a sublime e grandiosa atividade da pesca de baleias. De uma formaou de outra, esse negócio produziu acontecimentos tão notáveis em si próprios etão continuamente importantes em seus resultados sucessivos, que a pesca debaleias pode ser comparada àquela mãe Egípcia que deu à luz filhas que jáestavam grávidas. Seria uma tarefa inglória e interminável enumerar todas essascoisas. Um punhado de fatos já basta. Durante muitos anos, o baleeiro foi opioneiro descobridor das mais remotas e menos conhecidas partes da terra.Explorou oceanos e arquipélagos que não estavam nos mapas, onde Cook eVancouver jamais tinham navegado. Se os vasos de guerra norte-americanos eEuropeus agora navegam em paz nos portos outrora selvagens, deixa quedisparem suas saudações à honra e glória dos baleeiros, que originalmenteabriram o caminho e estabeleceram as primeiras relações com os nativos. Devemser aclamados como o são os heróis das Expedições de Exploração, teus Cooks eKrusensterns; mas posso afirmar que dezenas de Capitães anônimos quezarparam de Nantucket foram tão ou mais importantes do que teu Cook ou teuKrusenstern. Pois, sem ajuda e de mãos vazias, nas águas pagãs povoadas portubarões, e nas praias de ilhas desconhecidas, protegidas por dardos, eles lutaramcontra as maravilhas e os terrores incultos que Cook, com todos os seus fuzileirose mosqueteiros, não teriam ousado enfrentar. As viagens aos Mares do Sul, de quetanto se vangloriam, para os nossos heróis de Nantucket eram somente rotina.

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Freqüentemente, algumas aventuras às quais Vancouver dedica três capítuloseram consideradas pelos baleeiros indignas de ser mencionadas no simples diáriode bordo. Ah, o mundo! Oh, o mundo!

Enquanto a pesca de baleias não chegou ao cabo Horn, não havia nenhumcomércio a não ser o colonial, quase nenhuma outra relação a não ser a colonial,entre a Europa e a extensa linha de opulentas províncias Espanholas da costa doPacífico. Foi o baleeiro o primeiro a romper com a política invejosa da coroaEspanhola em relação a essas colônias; e, se o espaço permitisse, poderiademonstrar como esses baleeiros tornaram possíveis não só a libertação de Peru,Chile e Bolívia do jugo da velha Espanha, como também o estabelecimento dademocracia eterna naquelas regiões.

Aquela grande América do outro lado do globo, a Austrália, foi entregue aomundo esclarecido pelo baleeiro. Após ter sido descoberta por acaso por umHolandês, por muito tempo os navios passaram longe dessas praias, consideradaspestíferas e bárbaras; mas o navio baleeiro foi até lá. O navio baleeiro é umaverdadeira mãe daquela, atualmente, poderosa colônia. Além disso, na infânciados primeiros assentamentos Australianos, os emigrantes foram salvos inúmerasvezes da inanição graças ao biscoito benevolente do navio baleeiro, que por sorteali lançava sua âncora. As incontáveis ilhas da Polinésia confessam a mesmaverdade e prestam homenagem comercial ao navio baleeiro, que abriu caminhopara o missionário e para o mercador, e que em muitos casos levou osmissionários primitivos a seus destinos iniciais. Se aquela terra duplamentefechada que é o Japão um dia se tornar hospitaleira, o mérito terá sido do naviobaleeiro; pois lá ele esteve desde o princípio.

Mas se, frente a tudo isto, tu ainda disseres que à pesca de baleias não seassocia nada esteticamente nobre, então estou pronto para justar contigocinqüenta vezes, e a cada vez desmontá-lo de seu cavalo com o elmo partido.

A baleia não tem nenhum escritor famoso e a pesca de baleias nenhumcronista famoso, dirás tu.

A baleia não tem nenhum escritor famoso e a pesca de baleias nenhumcronista famoso? Quem escreveu o primeiro relato sobre o nosso Leviatã? Quem,senão o poderoso Jó? E quem compôs a primeira narrativa de uma viagem depesca de baleias? Quem, senão o próprio príncipe Alfred, o Grande, que com suapena real anotou as palavras de Other, o caçador de baleias norueguês daquelestempos? E quem pronunciou nosso esplêndido panegírico no Parlamento? Quem,senão Edmund Burke?

É verdade, mas então os baleeiros são uns pobres-diabos, que não têm sangueazul correndo nas veias.

Não têm sangue azul correndo nas veias? Têm algo melhor que sangue real ali.

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A avó de Benjamin Franklin era Mary Morrel; mais tarde, por casamento, tornou-se Mary Folger, uma das antigas colonizadoras de Nantucket, ancestral de umaextensa linhagem de Folgers e arpoadores – todos amigos e parentes do nobreBenjamin – que atualmente atiram seu ferro farpado por todo o mundo.

Muito bem; mas todos sabem que a pesca de baleias não é respeitável.A pesca de baleias não é respeitável? A pesca de baleias é imperial! Pela antiga

lei estatutária britânica, a baleia é declarada como sendo um “peixe real”.Oh, isso é meramente nominal! A baleia nunca foi descrita de modo

imponente ou grandioso.A baleia nunca foi descrita de modo imponente ou grandioso? Num dos

imponentes triunfos concedidos a um general Romano ao regressar à capital domundo, os ossos de uma baleia, trazidos do litoral da Síria, foram o objeto maisconspícuo que se exibiu na procissão de címbalos.{a}

Admito, porque mencionas; mas dize o que quiseres, não há verdadeiradignidade na pesca de baleias.

Não há dignidade na pesca de baleias? A dignidade de nossa profissão está nopróprio céu. A Baleia é uma constelação austral! E basta! Tira o chapéu napresença do czar e tira o chapéu na presença de Queequeg! Basta! Conheço umhomem que durante a vida caçou 350 baleias. Considero esse homem maisrespeitável do que o grande capitão da Antiguidade que se vangloria de terderrubado o mesmo número de cidades fortificadas.

Quanto a mim, se acaso existe alguma qualidade ignorada dentro de mim; sealguma vez eu merecer um bom nome neste mundo tão silencioso do qual possa,não sem razão, sentir orgulho; se eu tiver feito algo que, em geral, foi melhor quetivesse feito do que deixado por fazer; se, quando eu morrer, meustestamenteiros, ou melhor, meus credores, encontrarem alguns manuscritospreciosos na minha escrivaninha, desde já atribuo antecipadamente toda a honrae glória à pesca de baleias; pois um navio baleeiro foi minha Universidade deYale, minha Harvard.

{a} Veja os capítulos subseqüentes para algo mais sobre este assunto. [N. A.]

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25 PÓS-ESCRITO

Em favor da dignidade da pesca de baleias, eu não diria nadaalém de fatos comprovados. Mas se, depois de apresentar seus fatos, umadvogado suprime totalmente as suposições razoáveis, que poderiam beneficiareloqüentemente sua causa – não seria censurável a conduta de tal advogado?

Todos sabem que na coroação de reis e rainhas, mesmo os modernos, seutilizam certos procedimentos curiosos para fazer com que se acostumem às suasfunções. Há um saleiro de Estado, por assim dizer, e pode haver um galheteiro deEstado. Como usam o sal exatamente – quem sabe? Mas tenho certeza de que acabeça do rei é solenemente ungida em sua coroação, tal como se fosse um pé dealface. Será que a untam para que funcione bem por dentro, como fazem com asmáquinas? Muito poderia ser pensado sobre a dignidade essencial desseprocedimento régio, porque na vida comum consideramos desprezível eordinário um sujeito que passa óleo no cabelo e fica cheirando a óleo. Naverdade, um homem maduro que usa óleo no cabelo, a não ser que seja pormotivos de saúde, provavelmente tem algo de débil em si. Como regra geral, nãovale grande coisa.

Mas a única coisa a ser considerada aqui é a seguinte: que tipo de óleo é usadonas coroações? Certamente não é azeite de oliva, nem óleo de Macaçar, nem óleode castor, nem óleo de urso, nem óleo de trem, nem óleo de fígado de bacalhau.Então o que pode realmente ser, senão óleo de cachalote, sem manufatura, emestado puro, o mais doce de todos os óleos?

Pensai nisso, leais Britânicos! Nós, baleeiros, fornecemos material para acoroação dos vossos reis e rainhas!

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26 CAVALEIROSE ESCUDEIROS

O primeiro imediato do Pequod era Starbuck, natural deNantucket e Quacre de origem. Era um homem alto e sério e,

embora tivesse nascido numa costa glacial, parecia adaptar-se bem às latitudesquentes, sendo sua carne dura como um biscoito duas vezes assado. Levado paraas Índias, seu sangue cheio de energia não se estragaria como ale engarrafada.Deve ter nascido em plena época de seca e escassez de comida, ou num daquelesdias de jejum pelos quais sua região era conhecida. Vira apenas cerca de trintaverões áridos; esses verões tinham dissecado tudo o que havia de supérfluo emseu corpo. Mas sua magreza, por assim dizer, não parecia indício de ansiedades einquietações desgastantes, nem sinal de qualquer ruína física. Era simplesmenteuma condensação do homem. Não havia nada de doentio nele; muito pelocontrário.

A pele aderente ao corpo lhe caía bem; e envolvido nela com justeza, eembalsamado com saúde e força interiores, como um egípcio ressuscitado, esseStarbuck parecia preparado para durar por muitos anos, e sempre, como agora;pois, com neve Polar ou sol tórrido, como um cronômetro, sua vitalidade interiortinha a garantia de se dar bem em todos os climas. Olhando em seus olhos, talvezvocê encontrasse as imagens remanescentes dos milhares de perigos que eleenfrentara com calma durante sua vida. Um homem sério e inabalável, cuja vidaera, em sua maior parte, uma pantomima de ação, e não um capítulo de palavrasdóceis. Malgrado toda a sobriedade e coragem, havia nele certas qualidades queàs vezes afetavam e em alguns casos pareciam contrabalançar todo o resto.Consciencioso ao extremo para um homem do mar e dotado de uma reverêncianatural e profunda, a feroz solidão marinha de sua vida o predispusera àsuperstição; mas a um tipo de superstição que em certos indivíduos parece surgir,de algum modo, mais da inteligência do que da ignorância. Augúrios externos epressentimentos internos lhe eram algo próprio. Se por vezes essas coisasvergavam o bloco de ferro de sua alma, muito mais a distante recordaçãodoméstica de sua jovem esposa no Cabo e do filho tendia a afastá-lo da rudezaoriginal de sua natureza, e a abri-lo ainda mais a essas influências latentes que,em certos homens de coração honesto, temperam a manifestação de umaaudácia temerária, em outros tantas vezes evidente nas mais perigosas situaçõesda pesca. “Não quero no meu bote”, dizia Starbuck, “homem que não tenha

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medo de baleia.” Com isso parecia querer dizer não apenas que a coragem maisútil e confiável é a que surge de uma avaliação justa do perigo iminente, mastambém que um homem totalmente destemido é um sujeito muito maisperigoso do que um homem covarde.

“Sim, sim”, disse Stubb, o segundo imediato, “Starbuck é um dos homensmais prudentes que se encontra nesse tipo de pesca.” Mas logo veremos o que apalavra “prudente” significa, quando usada por um homem como Stubb, ou porqualquer outro caçador de baleias.

Starbuck não era nenhum cruzado em busca de perigos; para ele a coragemnão era um sentimento; apenas uma coisa simplesmente útil e sempre disponívelem todas as ocasiões mortalmente práticas da vida. Além disso, talvez pensasseque na atividade da pesca de baleias a coragem fosse um dos grandesequipamentos indispensáveis do navio, tal como a carne e o pão, e que nãodeveria ser desperdiçada. Por isso não lhe agradava descer aos botes para pescardepois do pôr-do-sol; nem persistir em lutar contra um peixe que persistisse emlutar contra ele. Porque – pensava Starbuck – estou neste oceano cheio de riscospara ganhar a vida matando baleias e não para ser morto por uma delas; ecentenas de homens haviam morrido dessa forma, Starbuck sabia muito bem.Qual tinha sido o destino de seu próprio pai? Onde, no abismo sem fundo,poderia encontrar os membros arrancados de seu irmão?

Com memórias como essas e, além disso, propenso a certas superstições, comodisse antes; a coragem deste Starbuck, sempre pronta a se manifestar, deve tersido extrema. Mas não seria natural que um homem assim talhado, comlembranças e experiências tão terríveis – repito, não seria natural que esses fatosdeixassem de gerar nele um elemento latente, que em circunstâncias favoráveispoderia se libertar de seu confinamento e consumir toda a sua coragem. Por maiscorajoso que fosse, sua coragem era de um tipo visível principalmente emhomens intrépidos, que, apesar de permanecerem firmes em seus conflitos comos mares, ou ventos, ou baleias, ou quaisquer dos horrores irracionais comuns domundo, não suportam outros terrores mais terríveis, uma vez que maisespirituais, como as ameaças do semblante carregado de um homem enraivecidoe poderoso.

Mas viesse a narrativa seguinte a revelar, em qualquer instância, o completoaviltamento da fortaleza do pobre Starbuck, eu mal teria coragem de escrevê-la;pois a coisa mais dolorosa, para não dizer repugnante, é expor a queda do valorde uma alma. Os homens podem parecer detestáveis em suas sociedadescomerciais ou países; velhacos, parvos e assassinos podem existir entre eles;homens podem ter rostos maus e mesquinhos; mas o homem, no ideal, é tãonobre e tão esplêndido, é criatura tão grandiosa e reluzente, que diante de

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qualquer ignomínia que venha a maculá-lo todos os seus semelhantes acorrerãopara cobri-lo com seus mantos mais valiosos. A imaculada virilidade que sentimosdentro de nós, profundamente em nós, que permanece intacta, mesmo quandotoda a personalidade exterior parece nos haver abandonado; ela sangra com osofrimento mais agudo perante o espetáculo da ruína de um homem de valor.Nem a própria piedade pode, diante da visão de tamanha vergonha, sufocarcompletamente seus protestos contra as estrelas coniventes. Mas essa augustadignidade de que falo não é a dignidade dos reis e dos mantos, mas a dignidadeabundante que não se cobre com os trajes de gala. Tu hás de encontrá-la no braçoluzidio que maneja a picareta ou bate um prego; aquela dignidade democráticaque sobre todos e sem termo se irradia de Deus; Dele! O grande Deus absoluto!Centro e circunferência de toda democracia! Sua onipresença, nossa igualdadedivina!

Se, portanto, aos mais vis marujos, e aos desertores e náufragos, eu atribuirqualidades nobres, ainda que obscuras; envolvê-los com encantos trágicos; se atéo mais triste, talvez o mais degradante deles todos, erguer-se aos mais altospíncaros; se eu tocar o braço desse trabalhador com uma luz etérea; se euestender um arco-íris sobre seu desastroso pôr-do-sol; então protege-me contratodas as críticas mortais, Tu, justo Espírito da Igualdade, que estendeu o mantoreal da humanidade sobre toda a minha espécie! Protege-me, grande Deusdemocrático! Tu, que não recusaste ao criminoso condenado Bunyan a pálidapérola poética; Tu, que cobriste com folhas de ouro fino o braço despedaçado eempobrecido do velho Cervantes; Tu, que levantaste Andrew Jackson dos seixos, ocolocaste num cavalo de batalha e o fizeste elevar-se mais alto do que um trono!Tu, que, em todas as passagens solenes pela terra, sempre elegeste os Teuscampeões seletos entre o povo majestático; protege-me, ó, Deus!

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27 CAVALEIROSE ESCUDEIROS II

Stubb era o segundo imediato. Era natural de Cape Cod; logo,segundo o costume local, era chamado de “homem de Cape

Cod”. Confiava na sorte; não era nem covarde, nem corajoso; enfrentava com arde indiferença os perigos à medida que apareciam; e enquanto estava no meio deuma crise durante a caça trabalhava com calma e recolhimento, como umempregado contratado para trabalhar por um ano. Bem-humorado, dócil edescuidado, ele chefiava seu bote baleeiro como se aqueles encontros mortaisfossem apenas jantares, e sua tripulação, hóspedes convidados. Era tão exigenteem relação à organização de sua parte do bote quanto um cocheiro velho comsua boléia. Quando se aproximava da baleia, no momento culminante da luta,manejava sua lança implacável com frieza e indiferença, como um caldeireiroassobiando enquanto trabalha com seu martelo. Entoava velhas cantigasenquanto investia contra o monstro exasperado. O costume de longa data, paraStubb, tinha transformado as mandíbulas da morte em confortável poltrona. Oque pensava da morte, ninguém sabe. É mesmo duvidoso que pensasse na morte;mas, se lhe ocorresse tal idéia depois de um agradável jantar, consideraria, comoum bom marinheiro, que se tratava de um chamado do vigia para subir ao topodo mastro e ocupar-se com algo cuja natureza descobriria ao cumprir a ordem, enão antes.

O que talvez fizesse de Stubb homem tão calmo e destemido, um homem quese dispunha a carregar o fardo da vida com tanta alegria, num mundo cheio demascates ameaçadores, dobrados até o chão pelo peso de seus fardos; o que oajudava a manter aquele bom humor quase ímpio; essa coisa era, sem dúvida,seu cachimbo. Porque, tal como o nariz, seu pequeno cachimbo preto era um dostraços característicos de seu rosto. Seria quase esperado que saísse de seu belichesem o nariz, mas não sem o cachimbo. Tinha uma fileira de cachimbos cheios defumo, numa prateleira de fácil acesso; quando ia se deitar fumava todos,acendendo um após o outro até o fim do capítulo; depois os enchia de novo paraficarem prontos mais uma vez. Porque quando se vestia, antes de colocar aspernas nas calças, Stubb colocava o cachimbo na boca.

Creio que esse fumar incessante devia ser uma das causas de sua disposiçãoparticular; todos sabem que a atmosfera terrestre, seja em terra firme ou no mar,é terrivelmente contaminada pelas misérias anônimas dos inúmeros mortais queaqui morreram exalando-a; e, tal como durante a epidemia de cólera algumas

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pessoas usavam um lenço com cânfora na boca, da mesma forma o fumo dotabaco de Stubb deve ter agido como uma espécie de agente desinfetante contraadversidades mortais.

O terceiro imediato era Flask, nativo de Tisbury, em Martha’s Vineyard. Umjovem baixinho, robusto e corado, que gostava muito de lutar contra baleias, paraquem os grandes Leviatãs pareciam de alguma forma uma afronta pessoal ehereditária; por isso, para ele, era uma questão de honra destruí-los sempre queos encontrasse. Tão infenso era ele a qualquer reverência pelas muitas maravilhasdaqueles corpos majestosos e hábitos místicos, tão cego a tudo que pudesselembrar algum tipo de apreensão diante de algum perigo ao encontrá-los, que,em sua pobre opinião, a maravilhosa baleia não passava de uma espécie de ratogigante, ou, quando muito, um roedor aquático, que com um pouco de perícia,astúcia e tempo, logo era morto e cozido. Este seu destemor ignorante einconsciente fazia com que se tornasse um pouco brincalhão em relação àsbaleias; perseguia esses peixes só para se divertir; e uma viagem de três anos emvolta do cabo Horn era apenas uma piada bem contada com essa duração. Assimcomo os pregos de um carpinteiro são divididos em cravos e tachas, ahumanidade pode ser dividida de modo similar. O pequeno Flask era um cravo,feito para segurar bem e durar muito. Chamavam-no de King-Post a bordo doPequod; porque se parecia com o pedacinho de madeira quadrado assimchamado pelos baleeiros do Ártico; e que, graças a numerosos pedaços demadeira nele inseridos, serve para proteger o navio das batidas contra o gelonaqueles mares cheios de blocos de gelo.

Ora, esses três imediatos – Starbuck, Stubb e Flask – eram homensimportantes. Eram eles que comandavam três dos botes do Pequod. Na grandeordem da batalha em que o Capitão Ahab ordenaria que suas forças descessem àsbaleias, esses três líderes eram como capitães de companhia. Ou, estandoarmados com as suas afiadas lanças baleeiras, formavam um trio seleto delanceiros, do mesmo modo que os arpoadores eram os atiradores de dardos.

E já que nessa pesca famosa todos os marinheiros ou líderes, como antigoscavaleiros góticos, sempre vão acompanhados de um timoneiro ou arpoador, queem certas circunstâncias lhes dão uma lança nova, quando a outra ficou torcidaou dobrada devido ao ataque; além disso, como geralmente existe entre os doisuma grande intimidade e amizade; é, portanto, oportuno que agoraapresentemos os arpoadores do Pequod e digamos quem eram seus líderes.

Em primeiro lugar, havia Queequeg, a quem Starbuck, o primeiro imediato,tinha escolhido para ser o seu escudeiro. Mas Queequeg já é nosso conhecido.

O próximo era Tashtego, um índio puro-sangue de Gay Head, o promontóriomais ocidental de Martha’s Vineyard, onde ainda se encontram os últimos

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remanescentes de uma aldeia de peles-vermelhas, que durante muitos anosforneceu à ilha vizinha de Nantucket seus melhores arpoadores. Na pesca sãogeralmente conhecidos pelo nome de Gay-Headers. Os cabelos compridos enegros, a maçã do rosto saliente, e os olhos negros redondos de Tashtego – paraum índio, Orientais no tamanho, mas Antárticos na expressão –, tudo isto oproclamava herdeiro de um sangue puro de orgulhosos caçadores guerreiros,que, na aventura em busca do grande alce da Nova Inglaterra, percorreram, arcoem punho, as florestas aborígines do continente. Não mais farejando a trilha dosanimais ferozes da floresta, Tashtego agora caçava no rastro das grandes baleiasdo mar; o arpão infalível da progenitura substituía adequadamente a flechainfalível dos antepassados. Observando-se os músculos bronzeados de seusmembros flexíveis, quase se acreditava nas superstições dos primeiros Puritanos,que pensavam que esses índios selvagens eram filhos do Príncipe das Potências doAr. Tashtego era o escudeiro de Stubb, o segundo imediato.

O terceiro arpoador era Daggoo, um selvagem negro e gigantesco, cor decarvão, com um andar leonino – parecia Assuero. Das suas orelhas pendiam duasargolas de ouro, tão grandes que os marinheiros as chamavam de arganéus, ediziam que iriam prender nelas as adriças da vela da mezena. Na juventude,Daggoo embarcara voluntariamente num navio baleeiro, ancorado numa enseadasolitária de sua costa nativa. E nunca tendo estado em nenhum lugar a não ser naÁfrica, em Nantucket e nos portos pagãos mais freqüentados pelos baleeiros; etendo levado por muitos anos a vida ousada da pesca em navios de proprietáriosde escrúpulo incomum na escolha dos homens que embarcavam; Daggooconservava intactas suas virtudes bárbaras e, ereto como uma girafa,movimentava-se pelo convés com toda a pompa de seus quase dois metros dealtura. Sentia-se uma humildade física ao olhar para ele; e um homem branco empé diante dele parecia uma bandeira branca que viesse pedir trégua a umafortaleza. Uma coisa curiosa era que esse negro imperioso, Assuero Daggoo, fosseo Escudeiro do pequenino Flask, que ao seu lado parecia um peão de xadrez.Quanto ao resto da tripulação do Pequod, seja dito que até o dia de hoje nem ametade dos milhares de homens trabalhando diante do mastro na pesca debaleias norte-americanas nasceu na América do Norte, embora quase todos osoficiais sejam norte-americanos. O que acontece com a pesca de baleias dosEstados Unidos também acontece no Exército e Marinha mercante e militar dosEstados Unidos, e nos grupos de engenheiros empregados na construção dasEstradas de ferro e Canais norte-americanos. Digo o mesmo porque, em todosesses casos, o norte-americano nativo fornece liberalmente o cérebro, e o resto domundo generosamente fornece os músculos. Um grande número desses homensdo mar em busca de baleias vem dos Açores, onde os navios de Nantucket

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atracam para aumentar sua tripulação com os valentes habitantes dessas praiasrochosas. Do mesmo modo, os baleeiros da Groenlândia, partindo de Hull ou deLondres, detêm-se nas ilhas Shetland para complementar sua tripulação. Nocaminho de volta, desembarcam-nos outra vez em sua terra natal. Não se sabe oporquê, mas os Ilhéus são os melhores baleeiros. Quase todos os tripulantes doPequod eram Ilhéus, Isolados, como eu os chamava, porque não tomavamconhecimento do continente dos homens, mas cada um dos Isolados vivia em umcontinente próprio. Assim, federação formada sobre uma mesma quilha, quecuriosa combinação de Isolados eles compunham! Uma verdadeira delegação deAnacharsis Clootz de todas as ilhas do mar e de todos os cantos da terra,acompanhando o velho Ahab no Pequod, para testemunhar os agravos do mundodiante do tribunal do qual poucos regressam. O pobre negrinho Pip – nuncavoltou! Pobre menino do Alabama! No soturno castelo de proa do Pequod, você overá em breve, tocando seu pandeiro, como um prelúdio para a vida eterna,quando, enviado para o grande tombadilho superior, foi-lhe oferecido tocar seupandeiro com os anjos; chamado aqui de covarde, lá saudado como herói!

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28 AHAB

Por vários dias depois da partida de Nantucket, não se viu o CapitãoAhab acima das escotilhas. Os imediatos se revezavam regularmente a cadaquarto, e por nada se percebia o que pudesse desmentir que fossem eles oscomandantes do navio; somente às vezes saíam da cabine com ordens tãoinesperadas e peremptórias que, no final das contas, ficava evidente quecomandavam por delegação de outrem. Sim, seu supremo senhor e ditador estavaa bordo, embora até aquele momento não tivesse sido visto por olhos que nãofossem chamados a penetrar no sacro refúgio da cabine.

Todas as vezes que eu subia ao convés depois dos meus turnos de vigíliaembaixo, olhava instintivamente para a popa para ver se havia algum rosto novo;pois minha vaga inquietude inicial em relação ao capitão desconhecido setornava, no isolamento do mar, quase uma agitação. E isso, às vezes, eraestranhamente agravado pelas incoerências diabólicas do miserável Elijah que mevoltavam involuntariamente, com uma energia sutil que nunca antes haviaconcebido. Mas conseguia resistir com dificuldade a esses presságios, emborapudesse até rir das extravagâncias solenes daquele esquisito profeta das docas,quando estava com uma disposição diferente. Mas, fosse o que fosse, apreensãoou inquietação – por assim dizer – o que eu sentia, quando olhava à minha voltano navio, parecia-me absurdo alimentar tais emoções. Pois embora os arpoadores,junto com grande parte da tripulação, fossem o grupo mais selvagem, pagão eheterogêneo de todas as tripulações dos pacíficos navios mercantes que minhasexperiências anteriores me fizeram conhecer, eu atribuía esse humor – e comjustiça – à selvagem singularidade da natureza daquela primitiva vocaçãoescandinava com a qual eu havia, tão de peito aberto, embarcado. Mas o aspectodos três principais oficiais do navio, dos imediatos, contribuía especialmente paraapaziguar essas apreensões sombrias e para incutir confiança e alegria em todasas instâncias da viagem. Três oficiais e homens do mar melhores e maiscompetentes, cada um a seu modo, não se encontravam facilmente e eram todosnorte-americanos; um de Nantucket, um de Martha’s Vineyard e outro de CapeCod. Ora, como era Natal quando o navio zarpou do porto, por algum temposuportamos um frio polar, embora estivéssemos fugindo em direção ao sul edeixássemos, a cada grau e minuto de latitude que avançávamos, aquele invernoimpiedoso e aquela temperatura intolerável para trás. Foi numa dessas manhãs detransição, menos ameaçadora, mas ainda cinzenta e escura, com um vento

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favorável e o navio cortando a água como que com saltos vingativos e rapidezmelancólica, que eu subi ao convés para o turno da vigília matinal, e, ao levantaros olhos para as grades da popa, senti calafrios agourentos percorrendo meucorpo. A realidade tinha superado a apreensão; o Capitão Ahab estava em seutombadilho.

Não se percebia nele nenhum sinal de enfermidade física comum, e nem deconvalescença. Tinha o aspecto de um homem retirado da fogueira, depois de ofogo devastar todos os membros, sem os haver consumido, nem eliminado umasó partícula de sua compacta e velha força. Toda a sua figura alta e portentosaparecia feita de um bronze sólido, moldada em uma forma impecável, como oPerseu, de Cellini. Palmilhando seu rosto desde entre os cabelos grisalhos, eseguindo por uma das faces queimadas e pelo pescoço, até desaparecer em suasroupas, via-se uma fina marca em forma de risco, extremamente branca. Acicatriz perpendicular parecia aquela que às vezes se observa no tronco alto eereto de uma grande árvore, quando um raio cai do alto violentamente semderrubar um único galho, mas tiralhe a casca e faz uma ranhura de cima a baixoantes de chegar ao solo, deixando a árvore verde com vida, porém marcada. Seaquela marca era de nascença ou se era a cicatriz de uma ferida grave, não sesabe ao certo. Por algum acordo tácito, pouca ou nenhuma alusão se fez aoassunto durante a viagem, especialmente entre os oficiais. Mas certa vez, o chefede Tashtego, um velho tripulante índio de Gay Head, afirmou auspiciosamenteque Ahab não tinha aquela cicatriz quando completara quarenta anos, e que issolhe sucedera não em conseqüência de uma briga entre mortais, mas numa lutacontra os elementos do mar. Mas essa alusão precipitada foi desmentida pelasinsinuações de um grisalho nativo de Man, um velho que parecia recém-saído dotúmulo e que nunca tinha visto o Capitão Ahab antes de sair de Nantucket. Nãoobstante, as antigas tradições do mar e as credulidades imemoráveis investiamesse velho de Man com poderes sobrenaturais de discernimento. De modo quenenhum marinheiro branco ousou contradizê-lo quando afirmou que, se algumavez o Capitão Ahab fosse normalmente sepultado – o que era muito poucoprovável, murmurou –, quem quer que prestasse esse último serviço ao defuntoveria aquele sinal de nascença da ponta da cabeça à sola dos pés.

O aspecto tenebroso de Ahab me afetou tão profundamente, com aquelamarca branca que o riscava, que por alguns instantes mal percebi que grandeparte daquela tenebrosidade se devia à bárbara perna branca sobre a qual seapoiava. Tinham me dito anteriormente que essa perna de marfim havia sidofeita no mar, de osso polido da mandíbula de um cachalote. “Sim, ele foidesmastreado perto do Japão”, disse certa vez o velho índio de Gay Head, “mas,como um navio desmastreado, colocou outro mastro sem esperar pelo regresso à

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pátria. Ele tem uma coleção delas.”Impressionou-me a postura singular que mantinha. No chão, de cada lado do

tombadilho do Pequod, perto dos brandais da mezena, havia um buraco feito poruma verruma, de mais ou menos meia polegada. Sua perna de osso se firmavanaquele buraco; com um braço levantado segurando um brandal, o Capitão Ahabmantinha-se ereto, olhando para a frente, para além da proa do navio, que arfavasem cessar. Havia uma infinidade de firmeza inabalável, uma vontadedeterminada e indomável na dedicação fixa, intrépida e atrevida daquele olhar.Não disse uma palavra; nem seus oficiais lhe disseram coisa alguma; embora,pela miudeza de seus gestos e expressões, demonstrassem a consciênciaperturbada, se não dolorosa, de se encontrar sob o incômodo olhar do senhor. Enão apenas isso, mas o soturno Ahab estava diante deles com uma crucificaçãoem seu rosto; com toda a dignidade despótica, régia e inominável, de um enormeinfortúnio.

Não muito depois de sua primeira visita ao ar livre, ele se retirou para acabine. Mas depois daquela manhã a tripulação o avistava todos os dias; ora depé, apoiado em seu buraco, ora sentado num banco de marfim que era seu; oraandando pesadamente pelo convés. À medida que o céu desanuviou, de fato,também ele deixou de se comportar como um recluso; como se nada o tivessemantido isolado desde que o navio zarpara a não ser o frio gelado do mar. E,pouco a pouco, sucedeu que ele estava quase sempre ao ar livre; mas, porenquanto, por tudo o que nos disse ou que o vimos fazer no convés ensolarado,ele parecia tão desnecessário naquele lugar como um outro mastro. Mas aqui oPequod fazia apenas uma travessia; não um cruzeiro regular; quase todos ospreparativos para a pesca de baleias que necessitavam de supervisão eram feitospelos oficiais; por isso havia pouco ou nada que ocupasse ou estimulasse Ahab nomomento e, assim, afugentasse, pelo menos nesse intervalo, as nuvens que,camada sobre camada, se acumulavam sobre seu semblante, uma vez que asnuvens sempre escolhem os picos mais altos para se acumular.

Todavia, dentro em pouco a persuasão calorosa de um tempo agradável deférias a que fomos chegando pareceu atraí-lo, como que por encanto, para longede seus humores. Da mesma forma que as duas dançarinas de faces rosadas, Abrile Maio, voltam para os bosques invernais e misantrópicos; e mesmo um carvalhovelho, áspero, sem folhas e fulminado por um raio pode gerar alguns brotosverdes para dar as boas-vindas às alegres visitantes; assim também Ahab, afinal,respondeu à sedução daquela atmosfera feminil. Por mais de uma vez deixoudespontar uma leve florescência no olhar que, em qualquer outro homem, logoteria desabrochado num sorriso.

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29 ENTRA AHAB;DEPOIS, STUBB

Passaram-se alguns dias, o gelo e os icebergs tinham ficadopara trás, e o Pequod agora atravessava a radiosa primavera

de Quito, que no mar reina quase perpetuamente no limiar do eterno Agosto doTrópico. Os dias tépidos, frescos, límpidos, sonoros, perfumados, exuberantes esupérfluos eram como taças de cristais de sherbet da Pérsia, cobertas por flocosde neve de água de rosas. As majestosas noites estreladas pareciam mulheresaltivas, vestidas de veludo e jóias, cultivando em casa com seu orgulho solitário amemória de seus nobres conquistadores ausentes, os sóis de elmos de ouro! Paradormir, era duro escolher entre os dias encantadores e as noites tão sedutoras.Mas toda a magia dessa estação sem declínio não trazia apenas novos feitiços epotencialidades ao universo exterior. Interiormente eles se voltavam à alma,sobretudo quando as horas tranqüilas e suaves do entardecer se aproximavam;nesse momento, a memória fazia surgir seus cristais, tal como o gelo cristalino, asmuitas formas do crepúsculo silencioso. E todos esses estímulos sutis tramavamcada vez mais sobre a urdidura de Ahab.

A velhice é sempre insone; como se o homem, quanto mais atento à vida,menos tivesse relação com algo que se parece com a morte. Entre oscomandantes marítimos, os velhos de barbas grisalhas são os que saem com maisfreqüência de seus beliches para visitar o convés à noite. O mesmo se passavacom Ahab; a única diferença é que nos últimos tempos parecia estar tanto tempoao ar livre que, para falar a verdade, mais parecia visitar sua cabine do que oconvés. “Parece que estou descendo para a minha sepultura” – dizia a si mesmo –“pois, para um capitão velho como eu, descer por esse escotilhão estreito é comoir ao túmulo.”

Assim, quase todas as vinte e quatro horas, quando os turnos das vigíliasnoturnas já estavam estabelecidos, e o pequeno grupo do convés velava o sono dogrupo de baixo; e quando, se era necessário arrastar uma corda sobre o castelo deproa, os marinheiros não a lançavam rudemente ao chão, como durante o dia,mas pousavam-na com delicadeza, com medo de perturbar seus companheiros debordo que dormiam; quando essa espécie de tranqüila quietude começava aprevalecer, em geral, o silencioso timoneiro observava o escotilhão da cabine; e ovelho não demorava a surgir, apoiando-se no corrimão de ferro, para auxiliá-loem sua condição de coxo. Não era totalmente destituído de sentimentos dehumanidade; pois nessas ocasiões, em geral, se abstinha de patrulhar o

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tombadilho; já que, para seus oficiais cansados, que buscavam repousar seispolegadas abaixo de seu salto de marfim, o golpe seco e o estalido de seu passoósseo teria tal reverberação que seus sonhos se transformariam em dentes afiadosde tubarões. Mas, certa vez, seu gênio foi mais além das habituais considerações;e com aquele passo pesado e compacto pôs-se a medir o navio, das grades dapopa até o mastro principal. Stubb, o segundo imediato, subiu ao convés, e comum atrevimento hesitante e condenável disse que se o capitão Ahab queria andarpelo convés ninguém poderia impedi-lo; mas que deveria haver um jeito deabafar o ruído; sugeriu, de modo confuso e hesitante, algo como uma bola deestopa para envolver o salto de marfim. Ah! Stubb, ainda não conhecias Ahab.

“Por acaso sou uma bala de canhão, Stubb”, disse Ahab, “para que tu meponhas uma bucha? Mas segue o teu caminho, tinha me esquecido. Para baixo,para tua sepultura noturna; onde dormem os da tua laia no meio de mortalhas,para irem se acostumando ao aterro definitivo. – Desce, cão, para o teu canil!”

Estupefato pela última exclamação imprevista daquele velho subitamentedesdenhoso, Stubb ficou sem palavras por um instante; depois dissenervosamente, “Não estou acostumado a que me falem desse modo, senhor; nãome agrada nada, senhor”.

“Basta!”, gritou Ahab, cerrando os dentes e começando a se afastar, como sequisesse evitar uma tentação violenta.

“Não, senhor; ainda não”, disse Stubb, encorajado, “não vou aceitarpassivamente que me chamem de cachorro, senhor.”

“Então te chamo dez vezes de burro, mula, asno, e desaparece daqui ou omundo ficará livre da tua presença!”

Dizendo isto, Ahab avançou sobre ele com uma expressão tão aterrorizadoraque Stubb recuou involuntariamente.

“Nunca fui tratado assim antes sem que eu desse um belo soco comoresposta”, murmurou Stubb, quando se deu conta de que estava descendo oescotilhão da cabine. “É muito esquisito. Pára, Stubb; na verdade, não sei se devovoltar e dar-lhe uma surra, ou – o que é isso? – Ajoelhar-me e rezar por ele? Sim,esse é o pensamento que me ocorre; mas seria a primeira vez que eu iria rezar. Éesquisito, muito esquisito; e ele também é esquisito; sim, de popa a proa, ele é ovelho mais esquisito de todos com os quais Stubb tinha viajado. Como saltou paracima de mim! – Seus olhos como dois morteiros! Está louco? De qualquer modo,tem alguma coisa na cabeça, isso é certo como existir alguma coisa errada noconvés quando estala. Também não fica na cama mais do que três horas por dia,e mesmo assim não dorme. Não me disse Dough-boy, o camareiro de bordo, quede manhã sempre encontra as roupas da rede do velho amarrotadas e emdesordem, os lençóis no chão, a colcha quase toda amarrada com nós, e o

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travesseiro terrivelmente quente, como se um tijolo tivesse sido cozido ali! Umvelho de cabeça quente! Acho que ele tem aquilo que em terra chamam deconsciência; dizem que é uma espécie de espasmo dolorido – pior que isso, nemuma dor de dente. Pois bem, não sei o que é, mas Deus que me livre disso. Ele écheio de charadas; gostaria que me explicassem o que vai fazer no porão todas asnoites, se é verdade o que o Dough-boy diz; gostaria de saber para quê isso?Quem marca encontros com ele no porão? Ora, não é esquisito? Mas nunca sesabe, é o velho jogo. – Agora uma soneca. Raios me partam, valeria a pena nascerneste mundo nem que fosse apenas para dormir. A propósito, essa é praticamentea primeira coisa que os bebês fazem, e isso também é um pouco esquisito. Raiosme partam, mas tudo é esquisito, quando se pensa a respeito. Mas isso é contra osmeus princípios. Não pensar, meu décimo primeiro mandamento, e dormirquando puder, o décimo segundo. – Vamos de novo. Como assim? Ele não mechamou de cachorro? Que inferno! Ele me chamou dez vezes de burro, eacrescentou um monte de idiotas em cima disso! Ele poderia ter me dado umpontapé e acabado com tudo. Talvez ele tenha me dado um pontapé, e eu nãopercebi por estar tão perplexo com sua expressão. Cintilava como um ossodescolorido. O que há comigo? Não consigo ficar em pé direito. Meter-me emconfusão com aquele velho me virou do avesso. Pelo amor de Deus, devo tersonhado, mas – Como? Como? Como? –, mas o único jeito é parar com isso; devolta para a rede; amanhã verei como esse maldito malabarismo se apresenta àluz do dia.”

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30 O CACHIMBO

Depois que Stubb saiu, Ahab ficou debruçado sobre aamurada por algum tempo; depois, como havia se tornado costume, chamou ummarinheiro da vigília e mandou-o buscar lá embaixo seu banco de marfim etambém seu cachimbo. Acendendo o cachimbo à luz da lâmpada da bitácula ecolocando o banco a barlavento no convés, sentou-se a fumar.

No tempo dos antigos Nórdicos, os tronos dos reis Dinamarqueses, amantes domar, reza a tradição, eram feitos com a presa do narval. Como podia uma pessoaolhar para Ahab sentado em um tripé de ossos, sem pensar na realeza quesimbolizava? Pois um Khan do tombadilho, um rei do mar e um grande senhordos Leviatãs era Ahab.

Alguns momentos se passaram, durante os quais uma fumaça densa eraexalada por sua boca, com baforadas rápidas e constantes, que cobriam seu rosto.“Por que razão”, disse em solilóquio por fim, tirando o cachimbo da boca, “fumarjá não me acalma? Ah, meu cachimbo! Será difícil para mim se os teus encantosse perderam! Estive me esforçando inconscientemente, sem prazer – sim,fumando o tempo todo contra o vento sem o saber; contra o vento e comtragadas tão nervosas como se, como uma baleia moribunda, meus jatos finaisfossem os mais fortes e dolorosos. O que é que tenho em comum com estecachimbo? Esta coisa é feita para a serenidade, para enviar uma suave fumaçabranca para suaves cabelos brancos, e não para cachos despedaçados da cor doferro, como os meus. Não fumarei mais…”

Jogou o cachimbo ainda aceso no mar. O fogo sibilou nas ondas; no mesmoinstante o navio passou pela bolha na qual o cachimbo tinha afundado. Com ochapéu caído de lado, cambaleando, Ahab caminhou pelo tombadilho.

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31 CONTO DE FADAS{a}

No dia seguinte, Stubb aproximou-se de Flask.“Eu nunca tive um sonho tão estranho, King-Post. Você sabe a perna de

marfim do velho, bem, eu sonhei que ele tinha me dado um pontapé; e quandotentei devolver, juro, pequeno, chutei minha própria perna. E então, olha isso!Ahab virou uma pirâmide, e eu, um louco furioso, que a chutava sem parar. Maso que é mais curioso, Flask – sabe como os sonhos são curiosos –, apesar de todaa raiva que sentia, parecia que eu achava que, afinal de contas, o pontapé deAhab não tinha sido muito ofensivo. ‘Bem’, pensei, ‘qual é o problema? Não éuma perna de verdade, é apenas uma perna falsa.’ E há uma diferença muitogrande entre um chute de coisa viva e um chute de coisa morta. Por isso umgolpe com os punhos, Flask, é cinqüenta vezes mais difícil de suportar do queum golpe com uma bengala. É o membro vivo – ele torna o insulto vivo,pequeno. O tempo todo ficava pensando, sabe, que enquanto eu estava ralando osdedos idiotas do meu pé naquela pirâmide maldita – era tudo tão terrivelmentecontraditório –, o tempo todo eu pensava, eu dizia para mim mesmo, ‘essa pernaé apenas uma bengala – uma bengala de osso de baleia. Sim’, penso então, ‘foiuma paulada de brincadeira – na verdade, me deu um pontapé de baleia – o quenão é humilhante. Além disso’, pensei, ‘olhe bem, aquela parte do pé – como épequena; se fosse um fazendeiro de pés grandes que me desse um pontapé, issosim seria um insulto dos infernos. Mas esse insulto se reduzia a pouca coisa. Masagora vem a parte mais engraçada do sonho, Flask. Enquanto eu batia napirâmide, um tritão velho corcunda, com cabelo de texugo, me agarra pelosombros e me faz dar meia-volta. ‘O que você ‘tá fazendo?’, ele diz. ‘Meu Deus!Mas como me assustei. Que cara mais feia! Mas, sei lá como, logo superei o medo.‘O que estou fazendo?’, digo, por fim. ‘O que tem com isso, eu gostaria de saber,senhor Corcunda? Quer levar um chute?’ Juro por Deus, Flask, eu não tinhaacabado de dizer isso e ele virou seu traseiro, se inclinou e puxou um punhado dealgas marinhas que usava para se cobrir – e o que você acha que eu vi? –, ora,raios, homem, de seu traseiro saíam como que marlins, com as pontas para fora.Pensando melhor, eu digo: ‘Acho que não vou te dar um chute, meu velho’.‘Sábio Stubb’, ele diz, ‘sábio Stubb’, e fica repetindo baixinho, mascando aspróprias gengivas, como uma bruxa de chaminé. Vendo que ele não ia parar dedizer ‘sábio Stubb, sábio Stubb’, achei melhor chutar a pirâmide de novo. Malhavia levantado o pé quando ele urrou, ‘Pare de chutar!’. ‘Ô!’, digo eu, ‘qual é o

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problema agora, meu velho?’ ‘Olha aqui’, ele diz, ‘vamos discutir o insulto. OCapitão Ahab chutou você, não é?’ ‘Sim, chutou sim’, eu digo – ‘bem aqui.’‘Muito bem’, ele diz – ‘ele usou sua perna de marfim, não é?’ ‘Sim, usou sim.’‘Pois bem’, ele diz, ‘sábio Stubb, do que você está se queixando? O chute não foidado de boa vontade? Não com uma reles perna de pau comum, foi? Não, vocêlevou um chute de um grande homem, com uma bela perna de marfim, Stubb. Éuma honra; eu considero uma honra. Escute aqui, sábio Stubb. Na velhaInglaterra, os nobres consideram uma honra muito grande ser esbofeteado poruma rainha, e tornam-se cavaleiros da Ordem da Jarreteira por isso. Você pode seorgulhar, Stubb, porque foi chutado pelo velho Ahab, e com isso se tornou umhomem sábio. Lembre-se do que eu digo: leve um chute dele; considere o chuteuma honra; nunca devolva o chute, pois de nada adianta, sábio Stubb. Não vê apirâmide?’ Ao dizer isso ele desapareceu de repente, de um modo esquisito,como se estivesse nadando no ar. Eu soltei um ronco, me virei, e eis que estava naminha rede! Ora, o que você acha desse sonho, Flask?”

“Não sei, parece um pouco bobo pra mim.”“Pode ser, pode ser. Mas fez de mim um homem sábio, Flask. ‘Cê ‘tá vendo

Ahab parado ali, olhando de lado sobre a popa? A melhor coisa que você podefazer, Flask, é deixar o velho sozinho; nunca responda, não importa o que elediga. Ô! O que é que ele está gritando? Escuta!”

“Vocês do topo do mastro, aí! Observem com atenção, todos! Temos baleias nasimediações. Se avistarem uma baleia branca, gritem até arrebentar os pulmões!”

“O que você acha disso agora, Flask? Não tem alguma coisa estranha aí? Umabaleia branca – Ouviu isso, homem? Veja bem – Tem algo de especial no vento.Prepare-se, Flask. Ahab tem algo de sanguinário em mente. Mas bico calado, elevem vindo pra cá.”

{a} No original, Queen Mab, como na fala de Mercutio em Romeu e Julieta. [N. T.]

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32 CETOLOGIA

Já fomos corajosamente lançados nas profundezas do mar; embreve estaremos perdidos em sua imensidão sem praias nem portos. Antes queisso aconteça; antes que o casco com algas do Pequod balance ao lado do cascocoberto de cracas do Leviatã; desde o princípio, será conveniente tratar de umassunto quase indispensável para um entendimento satisfatório das maisparticulares revelações e alusões leviatânicas de todos os tipos que se seguirão.

Trata-se de uma exposição sistemática da baleia em todos os seus genera, queeu gostaria de apresentar aqui. Não é uma tarefa fácil. A classificação doscomponentes de um caos é o que se tentará fazer. Veja o que escreveram asautoridades mais competentes e mais atualizadas.

“Nenhum ramo da Zoologia é tão complexo quanto a Cetologia”, diz o capitãoScoresby, no ano da graça de 1820.

“Não é minha intenção, mesmo que fosse possível, iniciar uma pesquisa sobreo verdadeiro método de classificar os cetacea em grupos e famílias. […] Umaconfusão extrema reina entre os historiadores desse animal” (o cachalote), diz oCirurgião Beale, no ano da graça de 1839.

“Impossibilidade de dar prosseguimento à nossa pesquisa nas águasinsondáveis.” “Um véu impenetrável cobre nosso conhecimento sobre oscetáceos.” “Um campo coberto de espinhos.” “Todas essas indicações incompletasservem apenas para torturar-nos, a nós, naturalistas.”

Nesses termos falam da baleia o grande Cuvier, e John Hunter, e Lesson,expoentes da zoologia e da anatomia. Ainda que de real conhecimento existapouco, muitos são os livros; e o mesmo sucede, em menor escala, com aCetologia, ou a ciência das baleias. São muitos os homens, pequenos ou grandes,velhos ou jovens, da terra ou do mar, que escreveram pouco ou extensamentesobre a baleia. Vejamos alguns: – os Autores da Bíblia; Aristóteles; Plínio;Aldrovandi; Sir Thomas Browne; Gesner; Ray; Lineu; Rondeletius; Willoughby;Green; Artedi; Sibbald; Brisson; Marten; Lacépède; Bonneterre; Desmarest; BarãoCuvier; John Hunter; Owen; Scoresby; Beale; Bennett; J. Ross Browne; o autor deMiriam Coffin; Olmsted; e o reverendo Henry T. Cheever. Mas com qual propósitofinal em geral escreveram, os trechos citados acima demonstram com clareza.

Dos nomes dessa lista de escritores, somente os que vêm depois de Owenviram baleias vivas; e apenas um deles foi arpoador e baleeiro profissional. Refiro-me ao Capitão Scoresby. Sobre o caso específico da baleia franca ou da baleia da

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Groenlândia, ele é a melhor autoridade existente. Mas Scoresby nada sabia e nadacomenta sobre o grande cachalote, comparado com o qual a baleia daGroenlândia não é digna de nota. E seja dito que a baleia da Groenlândia é umausurpadora do trono dos mares. Não é de modo nenhum a maior das baleias. Masdevido à prioridade de seus direitos, e à ignorância profunda que até setenta anosatrás cercava o então fabuloso e desconhecido cachalote, ignorância que persisteaté os nossos dias, salvo em alguns ambientes acadêmicos e determinados portos;essa usurpação se completou em todos os aspectos. As referências em quase todasas alusões leviatânicas feitas pelos poetas do passado mostram que a baleia daGroenlândia, sem nenhuma rival, era a soberana dos oceanos. Mas chegoufinalmente a hora de uma nova proclamação. Estamos em Charing Cross: escutai,gente! – A baleia da Groenlândia foi deposta – Reina agora o grande cachalote!

Há apenas dois livros que se propõem apresentar o cachalote vivo ao leitor eque têm um êxito relativo nessa tentativa. São os livros de Beale e de Bennett;ambos em seu tempo foram cirurgiões de navios baleeiros ingleses nos Mares doSul, ambos homens precisos e confiáveis. A matéria original sobre o cachaloteque se encontra nesses volumes é necessariamente escassa; mas, tão longe quantovão, de excelente qualidade, ainda que restrita sobretudo à descrição científica.Até agora, no entanto, o cachalote, científico ou poético, ainda não vive inteiroem literatura alguma. Mais do que qualquer outra baleia perseguida, sua vidaainda está por ser contada.

Ora, as várias espécies de baleias necessitam de um tipo de classificaçãocompreensível e acessível às pessoas, mesmo se for apenas um rápido esboço aser completado posteriormente por pesquisas subseqüentes. Como não seapresenta ninguém melhor qualificado para realizá-lo, ofereço meus modestospréstimos. Não prometo nada completo; porque todas as coisas humanas que sesuponham completas são, por esse motivo, imperfeitas. Não farei uma descriçãoanatômica minuciosa das várias espécies ou – pelo menos aqui – uma descriçãoexaustiva. Meu objetivo aqui se limita ao esboço de uma sistematização daCetologia. Sou o arquiteto, não o construtor.

Mas é uma tarefa que tem peso; não serviria para um simples classificador decartas dos Correios. Procurá-las tateando no fundo do mar; colocar as mãos entreas fundações indizíveis, nas costelas, na própria pélvis do mundo; isso é umacoisa temerosa. Quem sou eu para esboçar ganchos e prender o nariz desseLeviatã? Os terríveis insultos em Jó deveriam me amedrontar. “Fará ele [o Leviatã]um pacto contigo? Atenção, vã é a esperança de vê-lo!” Mas nadei pelasbibliotecas e naveguei pelos oceanos; lidei com as baleias com as minhas própriasmãos; falo sério; e vou tentar. Há preliminares a serem definidas.

Primeiro: a incerta e controvertida condição dessa ciência da Cetologia é em

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seu próprio vestíbulo atestada pelo fato de que em alguns meios ainda édiscutível se a baleia é ou não um peixe. Em seu Sistema da Natureza, do ano dagraça de 1766, Lineu declara, “Aqui distingo as baleias dos peixes”. Mas, que eusaiba, até o ano de 1850, os tubarões e o sável, as sabogas e o arenque, contra oédito explícito de Lineu, ainda dividiam a posse dos mesmos mares do Leviatã.

As razões alegadas por Lineu para banir das águas as baleias são as seguintes:“Em virtude de seu coração quente e bilocular, dos pulmões, das suas pálpebrasmóveis, dos ouvidos ocos, penem intrantem feminam mammis lactantem”,{a} efinalmente, “ex lege naturæ jure meritoque”.{b} Mostrei tudo isso aos meusamigos Simeon Macey e Charley Coffin, de Nantucket, ambos companheirosmeus em certa viagem, e ambos concordaram que os fatos apresentados eraminsuficientes. Charley sugeriu mesmo, com irreverência, que eram uma fraude.

Saiba-se que, renunciando a toda discussão, eu compartilho o bom e velhoponto de vista de que a baleia é um peixe e invoco o sagrado Jonas para sustentarminha opinião. Esta premissa fundamental estabelecida, o passo seguinte é saberem que aspecto interno a baleia é diferente dos demais peixes. É Lineu, acima,quem oferece a você essas explicações. Resumidamente, são os seguintes: ospulmões e o sangue quente; ao passo que todos os outros peixes não têm pulmõese trazem sangue frio.

Depois: como definiremos a baleia por suas características externas, de formaa classificá-la distintamente e para sempre? Para ser breve, então, a baleia é umpeixe que solta um jato de água e tem uma cauda horizontal. Ei-la! Emboratímida, eis a definição que resulta de longa reflexão. Uma morsa solta jatos deágua como uma baleia, mas a morsa não é um peixe, porque é anfíbia. Mas oúltimo termo da definição é mais convincente se associado ao primeiro. Quasetodo mundo deve ter percebido que todos os peixes conhecidos têm uma caudaque não é chata, mas vertical, ou seja, de cima a baixo. Mas as caudas dos peixesque soltam jatos de água, ainda que tenham uma forma parecida, estãoinvariavelmente na posição horizontal.

Com a definição de baleia feita acima, não quero excluir da irmandadeleviatânica nenhuma criatura do mar até agora identificada com a baleia pelosmais bem informados nativos de Nantucket; por outro lado, também não queroincluir nenhum peixe até agora considerado estranho.{c} Portanto, todos os peixespequenos, com cauda horizontal e que soltam jatos d’água, devem ser incluídosneste plano fundamental da Cetologia. Em seguida, vêm as grandes divisões doexército de baleias.

Primeiro: De acordo com o tamanho, divido as baleias em três LIVROS

fundamentais (subdivididos em CAPÍTULOS), que devem compreender todas, tantoas pequenas quanto as grandes.

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I. A BALEIA IN-FÓLIO; II. A BALEIA IN-OCTAVO; III. A BALEIA IN-DUODECIMO.

Como tipo do IN-FÓLIO apresento o Cachalote; do IN-OCTAVO, a Orca; do IN-DUODE-

CIMO, a Marsopa.

IN-FÓLIOS. Nestes incluo os seguintes capítulos: – I. O Cachalote; II. A Baleia Franca;III. A Baleia de barbatana dorsal; IV. A Baleia Corcunda; V. A Baleia dorso-de-navalha; VI. A Baleia Barriga-de-enxofre.

LIVRO I. (In-fólio), CAPÍTULO I. (Cachalote). – Esta baleia entre os antigos Inglesesera vagamente conhecida como baleia Trumpa, baleia Physeter, baleia AnvilHeaded; é o atual Cachalot dos Franceses, o Pottfisch dos Alemães e oMacrocephalus dos Palavras Longas. Sem dúvida nenhuma, é o maior habitantedo globo; a baleia mais formidável de se encontrar; a de aspecto mais majestoso;e, por fim, é de longe a mais valiosa para o comércio; é a única criatura da qualaquela valiosa substância, o espermacete, é extraída. Em muitos outros lugaresirei discorrer mais longamente sobre todas as suas particularidades. Éprincipalmente de seu nome que vou tratar agora [Sperm Whale]. Considerado doponto de vista da Filologia, é um absurdo. Há alguns séculos, quando o cachaloteera quase totalmente desconhecido em sua própria individualidade e quando seuóleo era acidentalmente obtido dos peixes que ficavam encalhados, parece quenaquele tempo se achava que o espermacete era tirado de uma criatura idênticaàquela conhecida na Inglaterra como baleia da Groenlândia ou baleia franca.Pensava-se mesmo que o espermacete era o fluido fecundante da baleia daGroenlândia, que está expresso literalmente na palavra. Naquele tempo também,o espermacete era muito raro, não sendo usado para iluminação, mas apenascomo ungüento ou medicamento. Só se podia obtê-lo de farmacêuticos, comohoje você compra uma onça de ruibarbo. Julgo que, com o passar do tempo,quando a verdadeira origem do espermacete se tornou conhecida, oscomerciantes mantiveram seu nome original; sem dúvida, para aumentar seuvalor, associando-o à idéia tão estranhamente significativa de raridade. Foi assimque o nome deve ter sido dado à baleia da qual o espermacete realmenteprovinha.

LIVRO I. (In-fólio), CAPÍTULO II. (Baleia Franca). – Sob determinado aspecto este é oLeviatã mais venerável de todos, sendo o primeiro a ser regularmente pescadopelo homem. Fornece o produto mais conhecido como “barba-de-baleia” ou“barbatana”; e o óleo especialmente conhecido como “óleo de baleia”, umproduto inferior no comércio. Entre os pescadores, é designadaindiscriminadamente das seguintes formas: a Baleia; a Baleia da Groenlândia; a

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Baleia Negra; a Grande Baleia; a Baleia Verdadeira; a Baleia Franca. Há muitospontos obscuros em relação à identidade dessa espécie tão diferentementebatizada. Qual é então a baleia que eu incluo como a segunda espécie dos meusfólios? É a Grande Mysticetus dos naturalistas Ingleses; a Baleia da Groenlândiados baleeiros Ingleses; a Baleia Ordinaire dos baleeiros Franceses, ou a GronlandsWalfisk dos Suecos? É a baleia que há mais de dois séculos é pescada peloHolandês e pelo Inglês nos mares Árticos; é a baleia que há muito os pescadoresnorte-americanos perseguiram no oceano Índico, nas Encostas do Brasil, na Costanoroeste, e em várias outras partes do mundo, chamadas por eles de Regiões dePesca da Baleia Verdadeira.

Alguns pretendem ver uma diferença entre a baleia da Groenlândia do Inglês ea baleia franca dos norte-americanos. Mas concordam exatamente quanto àscaracterísticas principais; também nunca apresentaram um único fatodeterminante que justificasse uma distinção tão radical. Deve-se às subdivisõesintermináveis baseadas em diferenças inconclusivas que algumas áreas daHistória Natural se tornem tão repulsivamente complexas. A baleia franca serátratada minuciosamente mais adiante, com o objetivo de esclarecer a natureza docachalote.

LIVRO I. (In-fólio), CAPÍTULO III. (Baleia de barbatana dorsal). – Sob este títulocoloco um monstro que, com diferentes nomes, Dorso-de-barbatana, Jato alto eJoão comprido, foi visto em quase todos os oceanos; é comumente a baleia cujojato, a distância, foi tantas vezes descrito por passageiros que atravessavam oAtlântico, na rota dos vapores de Nova York. Pelo comprimento que alcança, epor suas barbas, a baleia de barbatana dorsal se assemelha à baleia franca, mastem uma medida de cintura menor e uma cor mais clara, próxima do azeitonado.Seus grandes lábios apresentam o aspecto de cabo, formados pelas dobrasentrelaçadas e oblíquas de enormes rugas. O principal traço que a distingue, abarbatana, que dá origem ao seu nome, é freqüentemente um objeto notável.Essa barbatana possui uns três ou quatro pés de comprimento e cresceverticalmente na parte posterior das costas, com um formato angular e umaponta muito aguda. Mesmo quando nem a menor parte dessa criatura é visível, abarbatana pode, às vezes, ser distintamente vista projetando-se à superfície.Quando o mar está moderadamente calmo, ligeiramente marcado porondulações, e essa barbatana gnomônica se ergue e lança sombras na superfícieenrugada, pode-se imaginar que o círculo de água ao seu redor lembra umrelógio de sol, com o ponteiro e as marcas de horas gravadas nele. Nesse relógiode sol de Ahaz, a sombra freqüentemente se retrai. A baleia de barbatana dorsalnão é gregária. Parece que odeia baleias, como certos homens odeiam homens.Muito tímida; sempre sozinha; surgindo inesperadamente na superfície das águas

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mais remotas e sombrias; erguendo seu jato vertical, alto e único como umacomprida lança misantrópica em terras áridas; dotada de poderes tãomaravilhosos e de tanta velocidade no nado, que é como se desafiasse toda aatual perseguição do homem; esse Leviatã parece ser, banido e inconquistável, oCaim de sua raça, trazendo o estigma desse estilete nas costas. Por ter a barba naboca, a baleia de barbatana dorsal é às vezes incluída juntamente com a baleiafranca numa espécie em teoria chamada de baleias de Barba, ou seja, baleias combarbatanas na boca. Dessas chamadas baleias de Barba parece haver diversasvariedades, mas que são pouco conhecidas. Baleias de focinho largo e baleias debico; baleias de cabeça de lança; baleias de bando; baleias de queixada e baleiasnarigudas são alguns nomes que os pescadores lhes dão.

Em relação a esta expressão “baleias de Barba”, é importante mencionar que,muito embora tal nomenclatura possa servir para facilitar as referências a umcerto tipo de baleias, é contudo inútil tentar uma classificação coerente do Leviatãbaseando-se em sua barba, ou corcova, ou barbatana, ou dentes; ainda que essaspartes ou características sejam aparentemente mais propícias para fornecer a basede um sistema regular para a Cetologia do que quaisquer outras particularidadesfísicas que cada tipo de baleia apresente. E agora? A barba, a corcova, a barbatanadorsal e os dentes; essas são coisas cujas particularidades estãoindiscriminadamente dispersas por todos os tipos de baleias, sem qualquerrelação com o que pode ser a natureza de sua estrutura em outras e maisessenciais particularidades. Desse modo, tanto o cachalote quanto a baleiacorcunda têm uma corcova; mas a semelhança cessa aí. A mesma baleiacorcunda e a baleia da Groenlândia têm barbas, mas a semelhança também cessaaí. O mesmo ocorre com as outras partes acima mencionadas. Em vários tipos debaleias essas partes formam combinações muito irregulares; ou, no caso de se dardestaque a qualquer uma dessas baleias, o que existe é um isolamento irregular,como se, por fim, se desafiasse todo o método geral criado a partir dessa base.Nesta rocha, todos os naturalistas de baleias encalharam.

Mas pode-se pensar que nas partes internas da baleia, em sua anatomia – ali,ao fim e ao cabo, será possível encontrar uma classificação acertada. Engano: oque há de mais notável na anatomia da baleia da Groenlândia do que sua barba?Já vimos que por sua barba é impossível classificar corretamente a baleia daGroenlândia. E se você descer às entranhas dos diferentes Leviatãs, não encontraráali a qüinquagésima parte das diferenças externas já enumeradas. O que resta,então? Nada além de considerar as baleias em seu conjunto, em todo seu enormevolume, e, com ousadia, classificá-las a partir dessa base. E esse é o sistemabibliográfico adotado aqui; e é o único que pode dar certo, pois é o únicopraticável. Continuemos.

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LIVRO I. (In-fólio), CAPÍTULO IV. (Baleia corcunda). – Esta baleia é vista comfreqüência na costa setentrional dos Estados Unidos, onde é capturada e rebocadapara o porto. Tem no dorso um grande pacote, como um mascate. Pode-sechamá-la de baleia Elefante ou Castelo. De qualquer maneira, seu nome maisconhecido não a diferencia das outras, porque o cachalote também tem umacorcova, embora menor. Seu óleo não tem muito valor. Tem nadadeiras. É a maisbrincalhona e feliz de todas as baleias, formando mais da alegre espuma eespalhando mais água do que qualquer outra.

LIVRO I. (In-fólio), CAPÍTULO V. (Baleia dorso-de-navalha). – Pouco se sabe a respeitodesta baleia além de seu nome. Eu a vi a distância ao largo do cabo Horn.Recolhida por natureza, evita tanto os pescadores quanto os filósofos. Embora nãoseja covarde, nunca mostra nada de seu corpo além do dorso, quando se erguenuma escarpa afiada. Deixe que se vá. Não sei muito mais sobre ela, nemninguém sabe além disso.

LIVRO I. (In-fólio), CAPÍTULO VI. (Baleia barriga-de-enxofre). – Outra baleia esquiva,com uma barriga cor de enxofre, sem dúvida adquirida ao roçar-se nas telhas doTártaro, quando dos mergulhos mais profundos. Raras vezes é vista; pelo menosnunca a vi exceto nos mais ermos Mares do Sul, e sempre tão ao longe, que malpodia divisar seu semblante. Nunca é caçada, porque fugiria com todas asreservas de cordas. Sobre ela, contam-se maravilhas. Adeus, barriga-de-enxofre!Nada mais posso contar que seja verdadeiro sobre ti, e nem tampouco o poderia ohomem mais velho de Nantucket.

Assim termina o LIVRO I. (In-fólio) e começa o LIVRO II. (In-octavo)

IN-OCTAVOS.{d} Abrange as baleias de dimensões medianas, entre as quais se podemenumerar atualmente as seguintes: – I. A Orca; II. O Peixe preto; III. O Narval; IV. AAssassina; V. A Flageladora.

LIVRO II. (In-octavo), CAPÍTULO I. (Orca). – Embora este peixe, cuja alta e sonorarespiração, ou melhor, sopro, deu origem a um provérbio dos homens da terraseja um habitante tão conhecido das profundezas, ele não é geralmenteclassificado entre as baleias. Mas por ter todas as características importantes doLeviatã, a maior parte dos naturalistas o reconhece como tal. Tem um tamanhomoderado, in-octavo, variando de quinze a vinte e cinco pés de comprimento, edimensões correspondentes em volta da cintura. Sempre nada em bandos; nuncaé objeto de caça sistemática, embora tenha uma quantidade considerável de óleo,bom para a iluminação. Para alguns pescadores, sua presença é consideradapremonitória da aproximação de cachalotes maiores.

LIVRO II. (In-octavo), CAPÍTULO II. (Peixe preto). – Dou os nomes comuns que os

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pescadores usam para todos esses peixes, porque em geral são os melhores.Quando um desses nomes parecer vago ou inexpressivo, mencionarei o fato esugerirei um outro. É o que vou fazer agora com o assim chamado Peixe preto, jáque em regra predomina a cor preta entre quase todas as baleias. Por isso, se lheaprouver, trate-o por Baleia hiena. Sua voracidade é bem conhecida e, pelo fatode os ângulos internos de seus lábios serem curvados para cima, sempre porta umsorriso Mefistofélico. Essa baleia costuma medir entre dezesseis e dezoito pés decomprimento. É encontrada em quase todas as latitudes. Quando está nadando,tem um jeito peculiar de mostrar sua barbatana dorsal em forma de gancho, quese parece com um nariz romano. Quando não estão ocupados com uma atividademais lucrativa, os pescadores de cachalotes capturam às vezes a Baleia hiena,para abastecer-se com o óleo barato de uso doméstico – do mesmo modo quedonas-de-casa parcimoniosas, quando estão sós, utilizam sebo comum em lugarde cera aromatizada. Embora sua camada de gordura seja muito fina, algumasdessas baleias chegam a fornecer trinta galões de óleo.

LIVRO II. (In-octavo), CAPÍTULO III. (Narval), ou seja, Baleia de narina. – Outro casode uma baleia com um nome estranho. Imagino que foi assim chamada porconfundirem seu chifre peculiar com um nariz comprido. A criatura tem mais oumenos dezesseis pés de comprimento, e seu chifre mede cerca de cinco pés,embora alguns tenham mais de dez, podendo chegar até quinze pés. A rigor, essechifre não passa de uma presa prolongada, que se projeta do maxilar, numa linhaum pouco abaixo da horizontal. Mas só se encontra no lado esquerdo, o queproduz um efeito desagradável, conferindo ao portador um aspecto semelhanteao de um canhoto desajeitado. Qual é o propósito exato desse chifre ou lança demarfim é difícil de dizer. Não parece ser usado como a lâmina do peixe-espada edo marlim; mas alguns marinheiros me contaram que o Narval usa o chifre comoancinho para procurar comida no fundo do mar. Charles Coffin disse que erausado como quebra-gelo; porque o Narval, ao subir para a superfície do marPolar, encontrando-o congelado, investe com o chifre e quebra-lhe o gelo. Masnão se pode provar se essas conjeturas estão corretas. Minha opinião é de queembora esse chifre de um lado possa realmente ser usado pelo Narval – nãoimporta como –, com certeza seria muito conveniente usá-lo como apoio para aleitura de panfletos. Já ouvi chamarem o Narval de baleia-de-presa, baleia-de-chifre e baleia-unicórnio. Com certeza é um exemplo curioso de Unicornismo quese encontra em quase todo reino de natureza animada. Em alguns antigos autoresenclausurados encontrei que o chifre desse unicórnio do mar era antigamenteconsiderado o grande antídoto para veneno e, por isso, seus preparadosalcançavam preços altíssimos. Também era destilado em um sal volátil para assenhoras que desmaiavam, do mesmo modo que dos chifres de um veado se faz

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o amoníaco. Originalmente era em si um objeto de grande curiosidade. Leio emletra gótica que Sir Martin Frobisher, ao voltar de sua viagem, recebeu da rainhaBess um aceno com a mão ornada de jóias de uma das janelas do palácio deGreenwich, quando seu navio audaz descia o Tâmisa; “quando Sir Frobishervoltou daquela viagem”, reza o antigo, “ajoelhado ofereceu à Sua Alteza umprodigiosamente longo chifre do Narval, que durante muito tempo ficoudependurado no castelo de Windsor”. Um autor Irlandês assevera que o conde deLeicester, de joelhos, presenteou do mesmo modo Sua Alteza com um outrochifre, este pertencente a um monstro terrestre de natureza unicórnia.

O narval tem uma aparência muito pitoresca, parecida com a do leopardo, decor branca leitosa, pontilhada de manchas pretas redondas e alongadas. Seu óleoé muito superior, límpido e bom; porém, é escasso, e raramente eles sãopescados. São mais comumente encontrados nos mares circumpolares.

LIVRO II. (In-octavo), CAPÍTULO IV. (Assassina). – Sobre esta baleia, pouco ospescadores de Nantucket sabem com exatidão, e nada, em absoluto, os ditosnaturalistas. Pelo que observei a distância, posso dizer que é mais ou menos dagrandeza de uma orca. É muito selvagem – uma espécie de peixe de Fiji. Às vezes,ela ataca as grandes baleias do in-fólio pela boca e se agarra a elas como umasanguessuga, até que o poderoso animal morra. As Assassinas nunca são caçadas.Não sei que tipos de óleo têm. Pode-se fazer objeção ao nome dado a essa baleia,em razão de sua obscuridade. Porque somos todos assassinos, na terra e no mar;incluindo Bonapartes e Tubarões.

LIVRO II. (In-octavo), CAPÍTULO V. (Flageladora). – Esta dama é famosa por suacauda, que usa como férula para fustigar seus inimigos. Sobe no dorso da baleiado in-fólio e, enquanto esta nada, abre caminho dando-lhe chicotadas; da mesmaforma que agem certos mestres-escolas para progredir. Sabe-se menos ainda sobrea Flageladora do que sobre a Assassina. Ambas são fora-da-lei, mesmo nos maressem lei.

Assim termina o LIVRO II. (In-octavo) e começa o LIVRO III. (In-duodecimo).

IN-DUODECIMOS. – Abrange as baleias menores. I. A Marsopa Hurra. II. A MarsopaArgelina. III. A Marsopa Boca-de-Farinha.

Para aqueles que ainda não estudaram o assunto, pode parecer estranho quepeixes que não medem mais do que quatro ou cinco pés sejam colocados juntoscom as BALEIAS, uma palavra que, no senso comum, sempre dá uma idéia degrandeza. Mas as criaturas descritas abaixo como In-duodecimos sem dúvidanenhuma são baleias, pelos termos da minha definição de baleia, – ou seja, umpeixe que solta um jato de água e que tem uma cauda horizontal.

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LIVRO III. (In-duodecimo), CAPÍTULO I. (Marsopa Hurra). – Esta é a marsopa comumencontrada em quase todas as partes do globo. O nome fui eu quem lhe dei,porque há mais de um tipo de marsopa, e algo deve ser feito para distingui-las.Dei-lhe este nome porque sempre nadam em cardumes alegres, que no maraberto ficam se jogando para o céu como os chapéus das multidões do 4 de Julho.Sua aparição é geralmente saudada com alegria pelo marujo. Muito bem-humoradas, vêm invariavelmente das ondas alegres de barlavento. Elas são osjovens que vivem ao sabor do vento. São consideradas um bom agouro. Se vocênão conseguir dar três vivas ao ver esses peixes tão animados, que os céus oajudem: o espírito piedoso da santa alegria não está em você. Uma marsopa hurrarechonchuda, bem alimentada, lhe renderá um bom galão de óleo. Mas o fluidodelicado e excelente extraído de sua mandíbula é extremamente valioso. Ésolicitado por joalheiros e relojoeiros. Os marinheiros o usam nas pedras deamolar. A carne da marsopa é boa comida, você sabe. Pode ser que nunca lhetenha ocorrido que uma marsopa lança jatos de água. Na verdade, seu jato é tãopequeno que mal se vê. Mas na próxima oportunidade observe bem umamarsopa; você verá que se trata de um cachalote em miniatura.

LIVRO III. (In-duodecimo), CAPÍTULO II. (Marsopa Argelina). – Uma pirata. Muitoselvagem. Creio que só pode ser encontrada no Pacífico. É um pouco maior doque a Marsopa hurra, mas quase que saída da mesma forma. Provoque-a, e ela setransforma num tubarão. Desci várias vezes ao mar para caçá-la, mas ainda nuncaa vi capturada.

LIVRO III. (In-duodecimo), CAPÍTULO III. (Marsopa Boca-de-Farinha). – O maior tipode marsopa e só é encontrada no Pacífico, até onde se sabe. O único nome eminglês pelo qual foi designada até agora é o que lhe deram os pescadores – Right-Whale Porpoise, pois se encontra geralmente nas imediações daquele in-fólio. Seuformato difere um pouco da marsopa hurra, tendo uma circunferência menosredonda e volumosa; de fato, tem um aspecto bastante alinhado e elegante. Nãotem barbatanas no dorso (ao contrário da maior parte das marsopas), tem umacauda muito bonita e sentimentais olhos das Índias da cor da avelã. Mas sua boca-de-farinha estraga tudo. Embora o dorso seja inteiramente negro até asbarbatanas laterais, ela possui uma linha divisória, nítida como a marca no cascodo navio, chamada de “cintura brilhante”, que a risca de popa a proa, com duascores diferentes, preto em cima e branco em baixo. O branco compreende parteda cabeça e toda a boca, o que faz com que ela pareça ter acabado de fugir deuma visita ilícita a um saco de farinha. Uma aparência malvada e farinácea! Seuóleo é muito parecido com o da marsopa comum.

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Além do in-duodecimo esse sistema não pode ir, visto que a marsopa é a menordas baleias. Acima, estão todos os Leviatãs importantes. Mas há uma ralé debaleias incertas, fugitivas e semiprodigiosas que, na qualidade de baleeiro norte-americano, conheço de renome, mas não pessoalmente. Vou enumerá-las com osnomes pelos quais são conhecidas nas conversas de marinheiros; porque talvezesta lista tenha valor para futuros investigadores, que completarão o que comecei.Se alguma das seguintes baleias for capturada e examinada, poderá serincorporada facilmente a este sistema, conforme seu tamanho de in-fólio, in-octavo ou in-duodecimo: – baleia de nariz de garrafa; baleia junco; baleia cabeçade pudim; baleia do cabo; baleia guia; baleia canhão; baleia magricela, baleia decobre; baleia elefante; baleia iceberg; baleia molusca, baleia azul; etc. Extraídasde autoridades da Islândia, Holanda e Inglaterra, podem-se citar outras listasduvidosas de baleias, batizadas com todo tipo de nomes estranhos. Mas eu osomito como obsoletos; e mal consigo afastar a suspeita de que sejam apenas sons,repletos de Leviatanismo, mas sem significado.

Por fim: declarei no início que este sistema não ficaria aqui, de imediato,completo. Você pode ver com clareza que cumpri com minha palavra. Mas deixoagora meu Sistema cetológico incompleto, como aconteceu com a grandeCatedral de Colônia, com a grua ainda visível no topo da torre inconclusa. Pois aspequenas construções podem ser completadas por seus primeiros arquitetos; asgrandes, as verdadeiras sempre deixam o último toque para a posteridade. Deusme livre de um dia completar algo. Este livro todo é apenas um esboço – não!Apenas o esboço de um esboço. Oh, Tempo, Energia, Dinheiro e Paciência!

{a} “O pênis penetrante, a fêmea de mamas lactantes.” [N. T.]{b} “Da lei da natureza com justiça e mérito.” [N. T.]{c} Sei que até o presente momento os peixes chamados Manatins e Dugongos (peixe-porco e peixe-porca dos

Coffins de Nantucket) são incluídos por muitos naturalistas entre as baleias. Mas porque esses peixes-porcos são intrometidos e desprezíveis, geralmente se escondem na desembocadura dos rios, alimentam-se de feno molhado e, principalmente, não soltam jatos de água, eu lhes nego credenciais para que sejamconsiderados baleias; ou seja, já lhes apresentei os passaportes para que deixem o Reino da Cetologia. [N.A.]

{d} É muito simples entender por que esse livro sobre as baleias não é denominado de in-quarto. Porque asbaleias dessa ordem, embora sejam menores do que as da ordem anterior, guardam uma semelhançaproporcional na envergadura em relação às anteriores, mas o formato do volume do in-quarto em suaforma reduzida não mantém o formato do volume do in-fólio, ao passo que o in-octavo conserva. [N. A.]

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33 O SPECKSYNDER

No que diz respeito aos oficiais do navio baleeiro, estelugar me parece tão bom quanto qualquer outro para expor certas peculiaridadesdomésticas da vida de bordo relativas à classe dos oficiais arpoadores, uma classenaturalmente desconhecida em qualquer outra marinha senão a baleeira.

A grande importância atrelada ao trabalho dos arpoadores é demonstrada pelofato de que, originalmente na antiga Pesca Holandesa de mais de dois séculosatrás, o comando de um navio baleeiro não era exclusivamente concentrado napessoa que hoje chamamos de capitão, mas dividido entre este e um oficialchamado de Specksynder. Literalmente, a palavra significa Cortador de Gordura;no entanto, seu uso a tornou um equivalente de Arpoador-chefe. Naquelestempos, a autoridade do capitão era restrita à navegação e à administração geraldo navio; ao passo que, na área da pesca de baleias e nas coisas que lhe diziamrespeito, o Specksynder, ou Arpoador-chefe, reinava supremo. Na Pesca Britânicana Groenlândia, sob o título corrompido de Specksioneer, este velho oficialHolandês ainda se mantém, mas sua antiga respeitabilidade está tristementeabreviada. Atualmente, não passa de um Arpoador decano; e como tal é apenasum dos subalternos mais inferiores do capitão. Não obstante, como o êxito daviagem depende em grande parte da boa conduta dos arpoadores, e visto que naPesca Norte-Americana ele não apenas é um oficial importante num bote, masem certas circunstâncias (como nas vigílias noturnas das zonas baleeiras) ocomando do navio também é seu; por isso, a grande máxima política do marexige que ele viva isolado dos que ficam diante do mastro e que, de algum modo,seja considerado por eles profissionalmente superior; embora sempre socialmentevisto como um igual.

Ora, a grande distinção entre o oficial e o marinheiro é a seguinte – o primeirose aloja na popa, o último na proa. Portanto, nos navios baleeiros, assim como nosnavios mercantes, os oficiais têm seu alojamento junto ao do capitão; e por isso,na maior parte dos navios baleeiros norte-americanos, os arpoadores tambémestão alojados na popa do navio. Isso quer dizer que fazem suas refeições nacabine do capitão e dormem num lugar que tem comunicação indireta com ela.

Apesar da longa duração de uma viagem baleeira ao sul (de longe a maiscomprida das viagens que o homem já fez), dos perigos específicos e dacomunidade de interesses que prevalece na tripulação, cujos membros, doprimeiro ao último, para seus ganhos dependem não de salários fixos, mas de sua

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sorte comum, somada à sua vigilância, coragem e ao árduo trabalho conjunto;apesar de todas essas coisas tenderem a gerar uma disciplina menos rigorosa doque entre os marinheiros mercantes; ainda assim, não importa que em algumascircunstâncias esses baleeiros vivam primitivamente unidos à maneira de umaantiga família da Mesopotâmia; por tudo isso, as formalidades exteriores dotombadilho são poucas vezes afrouxadas e de forma alguma abolidas. De fato,muitos são os navios de Nantucket em que você encontrará o comandanteinspecionando seu tombadilho com uma grandeza portentosa jamais superadaem navio militar algum; ou ainda, exigindo demonstrações de reverência tal,como se envergasse a púrpura imperial, e não a mais modesta farda de piloto.

E ainda que dentre todos os homens o soturno capitão do Pequod fosse omenos afeito a esse tipo de superficialidade; e ainda que a única homenagemexigida fosse a obediência irrestrita e imediata; e ainda que não exigisse quemarinheiro algum tirasse os sapatos antes de subir ao tombadilho; e emborahouvesse ocasiões em que, devido a circunstâncias específicas ligadas a eventosque serão relatados mais adiante, se dirigisse aos marinheiros de forma estranha,às vezes afável, às vezes in terrorem; a verdade era que o Capitão Ahab nãonegligenciava de modo algum os usos e costumes dominantes do mar.

Tampouco se deixará de perceber que, talvez, por trás desses usos e costumes,tais como eram, ele às vezes se ocultasse; incidentalmente valendo-se deles paraoutros fins mais pessoais do que aqueles aos quais deviam legitimamente servir.Este tipo de sultanato de seu cérebro, que em outras circunstâncias teriapermanecido não-manifesto; por aquelas mesmas formalidades tornou-se umaditadura irresistível. Por maior que seja a superioridade intelectual de umhomem, não lhe é possível assumir o domínio prático e útil de outros homenssem a ajuda de algum tipo de artifício e manobra externa, em si mesmosmesquinhos e indignos. É isso que afasta para sempre os verdadeiros príncipes doImpério de Deus dos palanques do mundo; e os faz recusar as mais altashonrarias que esse ar confere a homens que se tornaram famosos mais por causade sua infinita inferioridade – postos ao lado do oculto punhado de homensescolhidos pelo Divino Inerte – do que devido às indubitáveis qualidadessuperiores ao nível médio das massas. Tão grande virtude se esconde nessaspequenas coisas, quando uma excessiva superstição política as envolve, que, emcertas instâncias régias, mesmo à imbecilidade do idiota se confere autoridade.Mas quando, como no caso do Czar Nicolau, a coroa circular do impériogeográfico cinge um cérebro imperial; então, os rebanhos plebeus se curvamhumilhados perante a tremenda centralização. E o trágico dramaturgo quequisesse representar a indomabilidade mortal com a mais plena nitidez e puraretidão não deveria jamais esquecer esse fato ao qual fiz alusão, incidentalmente

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tão importante para sua arte.Mas Ahab, meu Capitão de Nantucket, ainda se move diante de mim com toda

sua austeridade e cólera; e, nesse episódio de Reis e Imperadores, não devoocultar que tenho de me satisfazer com um velho e pobre pescador de baleiascomo ele; por isso, toda a pompa e circunstância majestática me são negadas. Ó,Ahab! Aquilo que é grandioso em ti deve ser arrancado aos céus, pescado nasprofundezas e representado no ar incorpóreo!

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34 A MESA DA CABINE

É meio-dia, e Dough-boy, o camareiro, colocando seurosto branco como um filão de pão para fora do escotilhão da cabine, anuncia oalmoço a seu amo e senhor, que, sentado num bote a sotavento, acaba deobservar o sol; e agora calcula a latitude em silêncio, na tabuleta lisa em forma demedalhão, reservada para este fim, sobre a parte superior de sua perna demarfim. De sua total falta de atenção ao aviso, você poderia depreender que osoturno Ahab não escutara seu subalterno. Mas, apoiando-se nos brandais damezena, lança-se para o convés e, anunciando com uma voz indiferente, “Oalmoço, senhor Starbuck”, desaparece na cabine.

Quando se cala o último eco dos passos de seu sultão, e Starbuck, o primeiroEmir, tem todos os motivos para supor que ele já esteja sentado, então este sai desua tranqüilidade, dá umas voltas pelo convés e, depois de olhar para dentro dabitácula, anuncia com uma voz brincalhona, “O almoço, senhor Stubb”, e desceem direção à cabine. O segundo Emir se espreguiça perto do cordame, e assim,sacudindo de leve um dos cabos para ver se tudo corre bem por ali, tambémassume o velho fardo, e, com um breve “O almoço, senhor Flask”, segue seuspredecessores.

Mas o terceiro Emir, vendo-se sozinho no tombadilho, sente-se como queliberto de alguma restrição curiosa; depois de lançar todos os tipos de olharespara todas as direções, e chutando para o alto os sapatos, entrega-se a umaselvagem mas silenciosa dança de convés, o hornpipe, bem em cima da cabeçado Grão-turco; depois, jogando seu boné no cesto da mezena com um gesto hábil,desce divertindo-se, pelo menos enquanto permanece visível ao convés, nacontramão das demais procissões, por ter música na retaguarda. Mas antes deentrar pela porta da cabine abaixo ele pára, põe a bordo uma nova expressão, eentão, independente e pequenino, o cômico Flask se apresenta diante do ReiAhab interpretando Abjectus, ou o Escravo.

Não é a menos estranha entre as situações geradas pela extrema artificialidadedos costumes do mar que, enquanto no ar livre do convés, alguns oficiais, sobprovocação, se comportem de modo atrevido e desafiador para com seucomandante; mas, numa proporção de dez para um, veja como esses mesmosoficiais descem no instante seguinte para suas refeições costumeiras naquelamesma cabine do capitão e, com um ar verdadeiramente inofensivo, para nãodizer depreciativo e humilde, se dirigem àquele sentado à cabeceira; isso é

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incrível, às vezes muito engraçado. Por que essa diferença? Um problema? Talveznão. Ter sido Baltasar, Rei da Babilônia, e tê-lo sido não com arrogância, mas comcortesia, nisso há certamente um toque de grandeza mundana. Mas aquele quecom espírito nobre e inteligente preside sua mesa de jantar particular comconvidados – o jamais desafiado poder e domínio da influência individual dessehomem sobre os tempos, bem como sua dignidade real, superam Baltasar, poisBaltasar não foi o maior. Quem ofereceu um jantar aos amigos uma só vez jáprovou o que é ser César. É um feitiço do czarismo social que não encontraresistência. Ora, se a essa consideração você somar a supremacia oficial de umcomandante de navio, então, por inferência, estará entendida a causa dasingularidade da vida no mar que acabo de mencionar.

À mesa de marfim marchetado, Ahab presidia como um silencioso e jubadoleão-marinho na praia branca e coralina, cercado por filhotes guerreiros, porémrespeitosos. A seu tempo, cada oficial esperava ser servido. Eram comocriancinhas diante de Ahab; e em Ahab não havia o menor vestígio de arrogância.Com um só pensamento, seus olhos atentos se fixavam na faca do velho,enquanto este cortava o prato principal à sua frente. Não creio que por nada nestemundo eles teriam profanado aquele momento com qualquer observação, nemmesmo com um assunto tão banal quanto o tempo. Nunca! E quando,estendendo a faca e o garfo que prendiam um pedaço de carne, Ahab trazia parasi o prato de Starbuck, o oficial recebia a carne como se estivesse recebendo umaesmola; e cortava-a com delicadeza; e ficava sobressaltado se por acaso a facaroçasse o prato; e mastigava sem fazer ruído; e engolia, não sem circunspeção.Pois, como no banquete de coroação em Frankfurt, quando o Imperador Alemãoalmoça com os sete Eleitores Imperiais, as refeições na cabine eram refeiçõessolenes, feitas em um terrível silêncio; não que o velho Ahab proibisse a conversa;apenas se mantinha calado. Que alívio sentia Stubb, sufocado, quando um ratofazia um movimento no porão embaixo. E o pobre e pequenino Flask, ele era ofilho mais novo, o caçula desse aborrecido grupo familiar. Seus eram os ossos dacarne de vaca salgada, dele teriam sido os pés da galinha. Para Flask, tomar aliberdade de se servir equivaleria a um flagrante de furto. Tivesse se servido àmesa, nunca mais poderia andar de cabeça erguida neste mundo honrado; noentanto, por estranho que pareça, Ahab jamais explicitara tal proibição. E, seFlask se servisse, é possível que Ahab nem se desse conta. Por fim, Flask aventou apossibilidade de se servir da manteiga. Se foi porque pensou que os donos donavio não permitiam, visando a conservar sua pele clara e luminosa; ou se porquejulgou que numa viagem tão longa, em águas tão distantes de mercados, amanteiga era um prêmio, e portanto um subalterno como ele não a merecia; sejalá o que fosse, Flask, ai! – era um homem desamanteigado.

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Outra coisa. Flask era o último a descer para o almoço, e Flask era o primeiro asubir. Imagine! Não era à toa que o almoço de Flask era mal servido de tempo.Starbuck e Stubb vinham à sua frente; e também tinham o privilégio de acabardepois. Mesmo que Stubb, que estava apenas um pouco acima de Flask,manifestasse pouco apetite e desse sinal de estar terminando a refeição, entãoFlask teria que correr, não conseguiria mais do que três bocados nesse dia; poisera contra o costume sagrado que Stubb precedesse Flask no convés. Foi por issoque Flask admitiu certa vez em particular que, desde que ele tinha ascendido àcondição de oficial, nunca mais soube o que era sentir outra coisa além de umpouco de fome. Pois tudo o que comia não lhe matava a fome, como se amantivesse imortal dentro de si. A paz e a satisfação, pensava Flask, desertarampara sempre do meu estômago. Sou um oficial; mas como desejaria agarrar umpedaço de carne velha no castelo de proa, como fazia quando era um simplesmarinheiro. São os frutos de ser promovido; é a vaidade da glória; é a insensatezda vida! Além disso, se algum simples marinheiro do Pequod tivesse algumrancor contra Flask em sua condição de oficial, tudo o que esse marinheiroprecisava fazer, para uma vingança completa, era ir à popa na hora da refeição eobservar Flask pela clarabóia da cabine, sentado em silêncio, como um tolo,diante do terrível Ahab.

Ora, Ahab e seus três oficiais formavam o que se pode chamar de a primeiramesa da cabine do Pequod. Depois de sua saída, que ocorria na ordem inversa desua chegada, a toalha de lona era retirada, ou melhor, retornava a uma certaordem apressada por obra do pálido camareiro de bordo. E então os trêsarpoadores eram convidados a se refestelar, como legatários dos restos.Transformavam a cabine eminente e poderosa num tipo de refeitório temporáriodos empregados.

Num estranho contraste com o quase intolerável constrangimento edominação invisível e inominável da mesa do capitão, reinava um bem-estar euma liberdade despreocupada, uma democracia quase frenética, entre essessujeitos inferiores, os arpoadores. Enquanto seus chefes, os oficiais, pareciam termedo do ruído das articulações de seus próprios maxilares, os arpoadoresmastigavam os alimentos com tamanha satisfação que se podia escutá-la.Alimentavam-se como lordes; enchiam suas barrigas como os navios indianos seenchem de especiarias. O apetite de Queequeg e Tashtego era tão prodigioso que,para preencher a lacuna da refeição precedente, muitas vezes o pálido Dough-boytinha que trazer uma grande posta de carne salgada, que parecia estirpada do boivivo. E se não fosse lépido, se não fosse num pé e voltasse no outro, Tashtegotinha um modo grosseiro de fazê-lo se apressar, atirando em suas costas um garfocomo se atirasse um arpão. E, certa vez, Daggoo, num ataque de gracejo,

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refrescou a memória de Dough-boy erguendo-o no ar e colocando sua cabeçanuma tábua de cortar carne vazia, enquanto Tashtego, faca na mão, fazia oscírculos preliminares para escalpelá-lo. Era um sujeito naturalmente muitonervoso e trêmulo, esse camareiro com cara de pão; descendente de um padeirofalido e de uma enfermeira de hospital. E com o espetáculo permanente doterrível e sombrio Ahab, e as periódicas visitas tumultuadas desses três selvagens,a vida de Dough-boy era um contínuo tremor de lábios. Em geral, depois deservir aos arpoadores tudo o que lhe pediam, ele fugia de suas garras para apequena despensa adjacente e ficava olhando através do buraco da porta, até quetudo houvesse terminado.

Era um espetáculo ver Queequeg sentado de frente para Tashtego, opondo seusdentes afilados aos do índio: Daggoo sentava-se no chão, na transversal, porque,se usasse um banco, sua cabeça, suporte de plumas, teria encostado às carlinasmais baixas; a cada movimento de seus membros colossais a estrutura da cabineestremecia, como quando um elefante africano é transportado num navio. E comtudo isso esse negro enorme ainda era extremamente moderado, para não dizerdelicado. Não parecia possível que com tão pouca comida ele pudesse manter avitalidade que se difundia por seu corpo tão amplo, imponente, varonil. Mas, semdúvida, esse nobre selvagem comia muito e bebia profundamente do abundanteelemento aéreo; e por suas narinas dilatadas inalava a sublime vida dos mundos.Não é com carne de vaca ou com pão que os gigantes se alimentam. MasQueequeg, esse tinha uma maneira bárbara de fazer ruído com os lábiosenquanto comia – um ruído tão horrível que o estremecido Dough-boy olhavapara seus próprios braços delgados para ver se tinham marcas de dentes. Equando ouvia Tashtego chamá-lo para que aparecesse, que queria morder seusossos, o ingênuo Camareiro tremia tanto que quase quebrava a louçadependurada na despensa. Nem as pedras que os arpoadores carregavam nosbolsos, para amolar lanças e outras armas; e com as quais, durante a refeição,afiavam ostensivamente as facas; nem o ruído irritante das pedras serviam paraacalmar o pobre Dough-boy. Como poderia esquecer que em seus tempos de Ilha,Queequeg, por exemplo, devia ter sido culpado por alguma imprudência festiva eassassina. Pobre Dough-boy! Dura é a vida de um copeiro branco que tem deservir canibais. Não deveria trazer um guardanapo no braço, mas um escudo.Contudo, em boa hora, para sua grande alegria, os três guerreiros de águassalgadas se levantariam e sairiam; e, às suas orelhas crédulas e imaginativas, osossos marciais tiniam a cada passo, como cimitarras mouriscas nas bainhas.

Não obstante, embora esses bárbaros almoçassem na cabine e nominalmentelá vivessem; ainda assim, sendo seus hábitos pouco sedentários, raramente iampara lá, exceto em horas de refeição, e um pouco antes de dormir, quando

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passavam por ali para chegar a seus aposentos particulares.Neste único ponto Ahab não era diferente dos outros capitães baleeiros norte-

americanos, que, em conjunto, tendem a achar que a cabine do navio lhespertence por direito; e que apenas por cortesia a entrada de uma pessoa nesselugar é permitida. Por isso, na verdade, os oficiais e os arpoadores do Pequodviviam muito mais tempo fora do que dentro da cabine. Porque, quandoentravam, era como uma porta da rua em uma casa; viravam-se para dentro poruns instantes, apenas para voltar para fora em seguida; vivendopermanentemente ao ar livre. Também não perdiam muito com isso; na cabinenão havia companhia; socialmente, Ahab era inacessível. Embora estivessenominalmente incluído no censo da Cristandade, mantinha-se alheio a ele. Viviano mundo, como vivem os últimos ursos pardos do Missouri. Quando a primaverae o verão terminavam, aquele Logan selvagem das florestas, enterrando-se notronco de uma árvore oca, ali passava o inverno, lambendo as próprias patas; domesmo modo, em sua velhice inclemente e tempestuosa, a alma de Ahab seocultava no tronco cavoucado de seu corpo, e ali se alimentava das patastaciturnas de sua melancolia!

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35 O TOPO DO MASTRO

Fazia um tempo dos mais agradáveis quando, deacordo com o rodízio previsto pelos outros marinheiros, chegou a minha vez desubir ao topo do mastro.

Na maior parte dos navios baleeiros norte-americanos, os topos dos mastros sãoguarnecidos quase ao mesmo tempo em que o navio deixa o porto; mesmo queprecise velejar quinze mil milhas, ou mais, antes de alcançar a verdadeira regiãoda pesca. E se, depois de uma viagem de três, quatro ou cinco anos, o navioestiver se aproximando do porto de origem sem nenhum lugar vazio – digo, nemmesmo para um vidrinho de remédio –, seus topos continuarão guarnecidos até ofim; e, enquanto suas velas e mastros não estiverem navegando por entre ospináculos do porto, não se perde a esperança de capturar mais uma baleia.

Ora, visto que esse negócio de ficar em topos de mastro, em mar ou terrafirme, é um ofício muito interessante, vamos nos delongar um pouco sobre esteassunto. Creio que os primeiros gajeiros dos topos dos mastros foram os velhosEgípcios, porque em todas as minhas pesquisas não encontrei ninguém antesdeles. Pois, embora seus antepassados, os construtores de Babel, sem dúvida, comsua torre, tivessem a ambição de erguer o mais alto mastro da Ásia, e também daÁfrica; antes de terminada a obra, o grande mastro foi atirado pela borda, nagrande tempestade da ira de Deus; por isso, não podemos dar precedência aosconstrutores de Babel em relação aos Egípcios. E que os Egípcios fossem umanação de gajeiros do topo dos mastros, eis uma afirmação baseada na crençageral dos arqueólogos, de que as primeiras pirâmides foram construídas com finsastronômicos: uma teoria singularmente sustentada por sua forma específica deescada, nas quatro paredes dessas construções; desse modo, com oprodigiosamente longo esticar de suas pernas, aqueles antigos astrônomosestavam acostumados a subir ao cume, para sinalizar novas estrelas; tal como osgajeiros dos navios modernos sinalizam um navio, ou uma baleia à vista. EmSanto Estilita, o famoso eremita Cristão de outrora, que construiu um obelisco depedra no deserto e passou a última parte de sua vida no cimo, suspendendo oalimento do chão com uma corda; nele temos o exemplo notável de umdestemido gajeiro de topo de mastro; que não saía de seu lugar por causa denevoeiros ou geadas, chuva, granizo ou neve; mas que, tudo enfrentando comcoragem até o fim, literalmente morreu em seu posto. Dos atuais gajeiros de topode mastro modernos temos apenas um conjunto sem vida: homens feitos

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simplesmente de pedra, de ferro ou de bronze; que, embora sejam capazes deenfrentar uma difícil tormenta, são totalmente incompetentes na tarefa desinalizar diante da descoberta de algo incomum. Lá está Napoleão; que, no topoda coluna de Vendôme, permanece de braços cruzados, a uns 150 pés do chão;sem se preocupar, aqui, com quem governa o convés logo abaixo, seja LouisPhilippe, Louis Blanc ou Louis, o Diabo. O grandioso Washington tambémpermanece em pé no alto do topo do mastro em Baltimore, e como um dospilares de Hércules sua coluna assinala o ponto de grandeza humana para alémdo qual irão poucos mortais. Também o admirável Nelson, em cima de umcabrestante de metal, permanece em pé no topo de um mastro em TrafalgarSquare; mesmo quando obscurecido pela fumaça de Londres, há sinais de umherói escondido ali; porque onde há fumaça há fogo. Mas nem o grandiosoWashington, nem Napoleão, nem Nelson jamais responderão a uma saudaçãovinda de baixo, por mais furiosamente que sejam invocados para ajudar comconselhos os conturbados conveses que observam; no entanto, pode-se supor queseus espíritos penetrem na bruma espessa do futuro e que saibam discernir osbancos de areia e os recifes que devem ser evitados.

Pode parecer injustificável comparar os gajeiros da terra com os do mar; mas alegitimidade desse fato é demonstrada por Obed Macy, o único historiador deNantucket. O ilustre Obed nos conta que, nos primórdios da pesca de baleias,antes que os navios fossem enviados com regularidade em busca da caça, oshabitantes da ilha erguiam altos mastros ao longo da costa, para o topo dos quaisos gajeiros subiam por meio de cunhos cravados, mais ou menos como asgalinhas sobem nos poleiros. Há alguns anos, o mesmo método era adotado pelosbaleeiros da baía da Nova Zelândia, que, ao avistar a caça, informavam atripulação nos botes, perto da praia. Mas esse costume ficou obsoleto; voltemo-nos, então, ao topo de mastro propriamente dito, o de um navio baleeiro no mar.Os três topos de mastro permanecem guarnecidos do nascer do sol até o pôr-do-sol; os marujos fazem turnos regulares (como no leme), revezando-se a cada duashoras. No tempo sereno dos trópicos, o topo do mastro é muito agradável; oumelhor, para um sonhador que gosta de meditar é maravilhoso. Você fica ali,cem pés acima do convés silencioso, dando grandes passos no abismo, como se osmastros fossem gigantescas pernas de pau, enquanto, lá embaixo, enormesmonstros marinhos nadam por entre suas pernas, como outrora os naviosvelejavam por entre as botas do famoso Colosso da antiga Rodes. Você fica ali,perdido nos espaços infinitos do mar, sem nada que se agite além das ondas. Onavio, em transe, balança indolente; o vento sopra sonolento; tudo se resolve emlangor. Na maior parte do tempo, nessa vida baleeira dos trópicos, uma sublimefalta de acontecimentos toma conta de você; você não recebe notícias; não lê

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jornais; edições especiais com relatos surpreendentes sobre banalidades não oiludem com agitações desnecessárias; você não sente as insatisfações domésticas;a desvalorização de títulos; as quedas da bolsa; não precisa se preocupar com oque vai comer no jantar – pois todas as suas refeições, durante três anos ou mais,estão devidamente acondicionadas em tonéis, e seu cardápio é imutável.

Num desses baleeiros do sul, durante uma longa viagem de três ou quatroanos, como é comum, a soma das várias horas que você passa no topo do mastroequivale a muitos meses inteiros. É lamentável que um lugar onde se passe umaparte considerável da vida natural deva ser tão desprovido de algo que seaproxime de uma habitação aconchegante, ou adaptado para produzir umasensação de permanência confortável, como sucede com uma cama, uma rede,um caixão, uma guarita, um púlpito, uma boléia, ou qualquer outra dessascriações pequenas e confortáveis nas quais os homens se isolamtemporariamente. O ponto de apoio mais comum é o joanete, sobre o qual se ficade pé sobre duas barras estreitas paralelas (quase que exclusivas dos naviosbaleeiros) chamadas de curvatões. Nesse lugar, sacudido pelo mar, o novato sente-se tão bem acolhido quanto se estivesse sobre os chifres de um touro. É claro que,com um tempo frio, você pode levar a casa consigo, sob a forma de uma capa devigia; mas, falando sério, a mais grossa das capas de vigia é tão parecida comuma casa quanto o corpo nu; pois, do mesmo modo que a alma se encontragrudada do lado de dentro de seu tabernáculo carnal, e não pode se mover comliberdade dentro dele, nem sair dele, sem correr grande risco de sucumbir (comoum peregrino ignorante atravessando os Alpes, no inverno com neve); da mesmaforma, uma capa de vigia não se parece com uma casa, pois é apenas um simplesinvólucro, ou uma pele adicional que o envolve. Não se pode colocar prateleiras egavetas no corpo, e tampouco fazer um armário conveniente de uma capa devigia.

Em relação a isso tudo, é de se lamentar muito que os topos de mastro dosnavios baleeiros do sul não disponham dessas invejáveis pequenas tendas oupúlpitos, chamadas “ninhos de corvo”, nas quais os gajeiros dos baleeiros daGroenlândia se protegem do tempo inclemente dos mares glaciais. Na narrativadoméstica do Capitão Sleet, intitulada Uma Viagem entre os Icebergs, em buscada Baleia da Groenlândia, e incidentalmente para o redescobrimento das ColôniasIslandesas Perdidas na Velha Groenlândia; nesse admirável livro, um relatocircunstancial encantador, todos os gajeiros dos topos de mastro dispõem de um“ninho de corvo” no Geleira, que era o nome do bom navio do Capitão Sleet. Eleo chamava “ninho de corvo de Sleet”, em sua própria homenagem; sendo ele seuinventor original e dono da patente, livre de toda a ridícula falsa modéstia, esustentando que, se damos nossos nomes aos nossos filhos (nós, pais, somos

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inventores originais e donos de patente), também deveríamos dar nossos nomes aqualquer instrumento que geremos. Em sua forma, o ninho de corvo de Sleet émais ou menos como uma grande pipa ou cano; é aberto em cima, no entanto,onde é provido de uma tela lateral móvel para proteger a cabeça do vento emcaso de tempestade. Fixado no topo do mastro, entra-se lá por um alçapão nofundo. Na parte de trás, ou parte próxima da popa do navio, há um assentoconfortável com uma espécie de gaveta para guarda-chuvas, capas e agasalhos. Nafrente há uma armação de couro, para guardar o porta-voz, cachimbo, telescópioe outros utensílios náuticos. Quando o Capitão Sleet em pessoa ficava no topo domastro em seu ninho de corvo, ele nos conta que sempre levava consigo um rifle(que também ficava na armação de couro), junto com uma lata de pólvora echumbo, com o propósito de abater narvais perdidos, ou unicórnios marinhoserrantes que infestavam aquelas águas; porque você não pode atirar neles direitodo convés devido à resistência da água; já atirar neles lá de cima é uma coisamuito diferente. Ora, era claramente uma profissão de fé para o Capitão Sleetdescrever em detalhes, como o fez, todas as utilidades de seu ninho de corvo;mas embora ele se estendesse sobre muitas delas, e embora ofereça um relatobastante científico de suas experiências nesse ninho de corvo, com uma pequenabússola que lá guardava, com o intento de contrabalançar os erros resultantes dachamada “atração local” de todos os ímãs da bitácula; um erro que se podeatribuir à vizinhança horizontal do ferro no convés do navio, e, no caso doGeleira, talvez ao fato de haver tantos ferreiros falidos em sua tripulação; digoque, embora o Capitão seja muito discreto e científico a esse respeito, apesar detodo seu conhecimento sobre “desvios da bitácula”, “observações azimutais com abússola” e “enganos aproximativos”, ele sabia muito bem, o Capitão Sleet, quenão estava tão imerso nas profundas meditações magnéticas a ponto de não sesentir, vez ou outra, atraído por aquela garrafinha cheia, tão bem instalada numdos lados do seu ninho de corvo e sempre à mão. Ainda que no conjunto euadmire e aprecie muito esse Capitão corajoso, honesto e instruído, eu levo a malo fato de ele ignorar a garrafinha, vendo que amiga fiel e compreensiva ela teriasido, enquanto com luvas nas mãos e gorro na cabeça ele estivesse estudandomatemática lá no alto, no ninho do passarinho, no poleiro perto do mastro.

Mas se nós, pescadores de baleias do sul, não nos encontramos lá no alto tãobem instalados quanto o Capitão Sleet e seus groenlandeses; ainda essadesvantagem é contrabalançada pela serenidade contrastante daquelas águassedutoras, nas quais a maior parte dos pescadores do sul navega. Eu, porexemplo, tinha o hábito de subir o cordame sossegado, parando no topo paraconversar com Queequeg, ou alguém que estivesse de folga por lá; depois subiamais um pouquinho e, passando uma perna sobre a vela mestra, dava uma

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olhada nas pastagens aquáticas para, finalmente, chegar a meu destino final.Mas aqui quero aliviar minha consciência e admitir com sinceridade que eu

não era um vigia muito bom. Com o problema do universo revolvendo em minhacabeça, como poderia eu – estando totalmente sozinho numa altitude tãopropícia a pensamentos –, como poderia eu cumprir, senão levianamente, aobrigação de observar todas as ordens do navio baleeiro, “Mantenha os olhos bemabertos e sinalize tudo o que avistar”.

Deixai-me solenemente preveni-los aqui, proprietários de navios de Nantucket!Ao alistar vigilantes em suas pescarias, estai atentos a qualquer rapaz de rostomagro e olhos côncavos, propenso a meditações impróprias, e que se propõe deembarcar com o Fédon em lugar dos ensinamentos náuticos de Bowditch nacabeça. Cuidado com esse tipo, eu digo: as baleias devem ser avistadas antes deserem mortas; e esse jovem platônico de olhos fundos arrastará vosso barco dezvezes ao redor do mundo e não vos tornará um quartilho de espermacete maisricos. Essas advertências não são desnecessárias. Pois nos dias de hoje a pesca dabaleia oferece refúgio para muitos jovens românticos, melancólicos e distraídos,desgostosos das maçantes responsabilidades da terra, que saem em busca deemoção na gordura e no alcatrão. Childe Harold não raro se empoleira no topo domastro de algum navio baleeiro desafortunado e declama com melancolia: –

“Desliza, oceano profundo e azul, desliza!Em vão dez mil caçadores de gordura te vasculham.”

É freqüente que esses capitães chamem a atenção desses jovens e avoadosfilósofos, censurando-os por não se mostrarem devidamente “interessados” naviagem; como que sugerindo que estão de tal modo perdidos e desenganadospara toda ambição honrada que, do fundo do coração, prefeririam qualquer coisaa avistar as baleias. Mas tudo é inútil; esses jovens platônicos sabem que sua visãoé imperfeita; eles são míopes; de que adianta, então, forçar o nervo óptico?Deixaram seus binóculos de ópera em casa.

“Mas, seu vadio”, disse um arpoador a um desses rapazes, “já estamos viajandohá três anos e tu ainda não avistaste nenhuma baleia. As baleias são tão rarasquanto os dentes da galinha quando estás aqui em cima.” Talvez fossem mesmo;ou talvez houvesse um bando delas no horizonte distante, mas esse jovemdistraído é de tal modo embalado pela cadência de ondas e pensamentosimiscuídos que, na letargia opiácea de um vago e apático devaneio, perde, porfim, sua identidade; toma o místico oceano a seus pés pela imagem visível daalma infinita, azul e profunda, que penetra humanidade e natureza; e tudo o queé belo, estranho, imprevisto e deslizante, toda barbatana de forma indiscernível

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que se erga, parece-lhe a materialização dos pensamentos ilusórios que povoam aalma, movendo-se continuamente por ela. Nesse enlevo, teu espírito segue ascorrentes rumo ao lugar de onde veio; torna-se difuso pelo tempo e pelo espaço;como as cinzas Panteísticas de Cranmer espalhadas, formando por fim uma partedas praias do globo terrestre.

Não há vida em ti, agora, exceto a vida concedida pelo gentil navio quebalança; por ele, tomada ao mar; pelo mar, às inescrutáveis marés de Deus. Masenquanto esse sono, esse sonho está em ti, mexe um pouco teu pé ou tua mão,solta-te completamente; e tua identidade retornará com terror. Estás suspensosobre vórtices Cartesianos. E talvez, ao meio-dia, quando o tempo é mais belo,com um grito meio sufocado, caias através desse ar transparente no mar estival,para jamais voltar à superfície. Prestai muita atenção, vós, Panteístas!

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36 O TOMBADILHO

[Entra Ahab; depois, todos]Não havia passado muito tempo desde o caso do cachimbo quando, certa manhã,logo depois do café, como de costume, Ahab subiu ao convés, pelo passadiço dacabine. Ali, a maior parte dos capitães do mar caminha a essa hora, como oscavalheiros rurais que, depois dessa mesma refeição, dão algumas voltas em seusjardins.

Logo se ouviu seu inconfundível andar de marfim, à medida que dava voltasde um lado para o outro sobre as tábuas, já tão familiarizadas com seu passo, queestavam entalhadas, como pedras geológicas, com as marcas peculiares de suacaminhada. Tivesse você observado atentamente seu semblante entalhado eenrugado, nele igualmente veria pegadas ainda mais estranhas – as pegadas deseu único pensamento, insone, sempre em marcha.

Mas, naquela ocasião, aquelas marcas pareciam mais profundas, como se seuspassos nervosos, naquela manhã, deixassem sulcos ainda mais profundos. Eestava Ahab tão imerso em seus pensamentos que, a cada volta regular que fazia,ora ao redor do mastro principal, ora ao redor da bitácula, quase que se podia veraquele pensamento dando nele a volta enquanto ele voltava, e nele caminhandoenquanto ele caminhava; dominando-o tão completamente que parecia, de fato,ser o molde interior de todo movimento exterior.

“‘Tá vendo, Flask?”, segredou Stubb; “o filhote dentro dele está rompendo acasca. Já vai sair.”

As horas passavam; Ahab estava ora encerrado em sua cabine; ora andando noconvés, demonstrando em seu semblante o mesmo propósito de profundofanatismo.

Aproximava-se o fim do dia. De repente ele parou na amurada e, colocando aperna de marfim no buraco da verruma, com uma mão segurando um brandal,ordenou a Starbuck que reunisse todos na popa.

“Senhor!”, disse o piloto, admirado com uma ordem que pouco ou nunca eradada a bordo, exceto em algum caso extraordinário.

“Mande todos para a popa”, repetiu Ahab. “Vocês aí, no topo do mastro!Desçam!”

Quando toda a tripulação do navio estava reunida, fitando-o com curiosidade eum pouco de apreensão, uma vez que ele não diferia de um horizonte abarlavento quando a tempestade avança, Ahab, depois de rapidamente olhar

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sobre a amurada e lançar um olhar sobre a tripulação, saiu de seu posto deobservação; e como se não houvesse nem uma alma viva perto dele recomeçou adar pesadas voltas no convés. De cabeça baixa, com o chapéu de lado, continuoua andar, sem se preocupar com os sussurros de admiração dos homens; até queStubb murmurou com cautela para Flask que Ahab devia tê-los reunido para quetestemunhassem algum grande feito de pedestre. Mas não demorou muito.Parando veemente, bradou:

“Que fazeis quando avistais uma baleia, marinheiros?”“Sinalizamos!”, foi a resposta impulsiva de uma dezena de vozes unidas.“Muito bem!”, bradou Ahab, com um tom desmedido de aprovação na voz,

observando a calorosa animação que sua pergunta inesperada causou noshomens.

“Que fazeis depois, marinheiros?”“Descemos e vamos atrás dela!”“E que cantiga entoais, marinheiros?”“Baleia morta ou barco afundado!”A cada resposta o rosto do velho revelava aprovação e, mais e mais, uma feroz

e estranha satisfação; enquanto os marujos começavam a se olhar comcuriosidade, como se estivessem maravilhados pelo jeito com que haviam seanimado diante de perguntas aparentemente tão sem sentido.

Mas voltaram à ansiedade quando Ahab, dando meia-volta em seu eixo, comuma mão segurando um ovém no alto, quase que compulsivamente o apertando,se dirigiu a eles dizendo:

“Todos vós, gajeiros, já me ouvistes dar ordens a respeito de uma baleiabranca. Prestai atenção! Vedes este dobrão de ouro da Espanha?” – exibindo umagrande moeda que brilhava ao sol – “é uma moeda de dezesseis dólares,marinheiros. Vedes? Sr. Starbuck, passa-me aquela marreta.”

Enquanto o oficial pegava o martelo, Ahab, sem falar, esfregava lentamente amoeda de ouro contra as mangas do casaco, como se quisesse avivar-lhe o brilho,e, sem usar nenhuma palavra, cantarolava baixinho, produzindo um som tãoestranhamente abafado e sem sentido, que parecia o barulho mecânico da rodada vitalidade que tinha dentro de si.

Ao receber a marreta de Starbuck, adiantou-se na direção do mastro principal,com o martelo erguido numa mão, exibindo a moeda de ouro na outra, eexclamou em alto e bom som: “Aquele de vós que sinalizar para mim uma baleiade cabeça branca e mandíbula deformada, aquele de vós que sinalizar para mimuma baleia de cabeça branca e uma fronte enrugada, com três furos a estibordoda cauda – prestai atenção, aquele de vós que sinalizar para mim essa baleia

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branca receberá esta moeda de ouro”.“Hurra! Hurra!”, gritaram os marinheiros, enquanto agitavam os chapéus para

saudar o ato de pregar o ouro no mastro.“É uma baleia branca, vos digo”, repetiu Ahab, deixando cair a marreta; “uma

baleia branca. Abri bem os olhos, marinheiros; observai com cuidado toda a águacom espuma; se virdes apenas uma bolha, avisai.”

Enquanto isso Tashtego, Daggoo e Queequeg olhavam para ele com uminteresse e uma surpresa maior que a dos outros, e quando a fronte enrugada e amandíbula deformada foram mencionadas tiveram um sobressalto, como se cadaum deles tivesse sido acometido de uma recordação específica.

“Capitão Ahab”, disse Tashtego, “essa baleia branca deve ser a mesma quealguns chamam de Moby Dick.”

“Moby Dick?”, gritou Ahab. “Então conheces a baleia branca, Tash?”“Ele abana a cauda de um jeito curioso antes de mergulhar, senhor?”, disse o

nativo de Gay Head deliberadamente.“E tem também um sopro curioso”, disse Daggoo, “muito denso, mesmo para

um cachalote, e bastante rápido, Capitão Ahab?”“E ‘tá com um, dois, três – XII!, muitos ferro’ preso’ no corpo, tam’ém,

Capitão”, gritou Queequeg desordenadamente, “tudo tor – tur – torcido, comoaquilo – aquilo –”, faltava-lhe a palavra certa, e ele torcia a mão, fazendo voltascomo se estivesse tirando a rolha de uma garrafa, “como aquilo – aquilo –”

“Um saca-rolha!”, bradou Ahab, “isso, Queequeg, os arpões estão todos tortos eretorcidos na baleia; isso, Daggoo, seu sopro é muito grande, como umamontoado de trigo, e branco como uma pilha de lã depois da grande tosquiaanual de Nantucket; isso, Tashtego, e ela abana a cauda como uma bujarronarompida numa tormenta. Com mil demônios, marinheiros, foi Moby Dick quevistes – Moby Dick – Moby Dick!”

“Capitão Ahab”, disse Starbuck, que junto com Stubb e Flask observava seusuperior com uma curiosidade crescente, mas foi tomado por um pensamentoque de certo modo explicava a perplexidade. “Capitão Ahab, já ouvi falar deMoby Dick – mas não foi Moby Dick que te arrancou a perna?”

“Quem te disse isso?”, gritou Ahab, e depois vacilou, “isso, Starbuck; isso,meus corajosos que me cercam; foi Moby Dick que me desmastreou; Moby Dickme colocou sobre esse coto morto sobre o qual me apóio. Isso, isso”, disse comum soluço terrível, alto, animalesco, como o de um alce ferido; “isso, isso! Foiessa maldita baleia branca que me reduziu a uma carcaça; que fez de mim ummarinheiro aleijado e sem jeito para todo o sempre!” Depois, lançando os braçospara o alto, com desmedidas imprecações, gritou: “Isso, isso! E vou persegui-la na

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Boa Esperança, no Horn, no maelstrom da Noruega e nas chamas do infernoantes de desistir. Foi para isso que embarcastes, marinheiros! Para perseguir essabaleia branca nos dois lados da terra, e por todos os lados do globo, até que elasolte um jato de sangue preto e bóie com as barbatanas para cima. Que dizeis,marinheiros, estareis unidos nessa empreitada? Creio que sois corajosos”.

“Isso, isso!”, gritaram os arpoadores e homens do mar, correndo para perto dovelho agitado: “uma visão afiada para a Baleia Branca; uma lança afiada paraMoby Dick!”

“Deus vos abençoe”, ele pareceu dizer entre o soluço e o grito. “Deus vosabençoe, marinheiros. Camareiro! Vá buscar o grogue em grande quantidade. Maspor que essa cara comprida, senhor Starbuck; não queres caçar a baleia branca?Não tens coragem para lutar contra Moby Dick?”

“Tenho coragem para lutar contra sua mandíbula deformada, e tambémcontra as mandíbulas da Morte, Capitão Ahab, se surgirem verdadeiramente emnosso caminho; mas eu vim para pescar baleias, e não para vingar meucomandante. Quantos barris vai render a tua vingança, caso a consigas, CapitãoAhab? Não alcançarás um preço muito alto em nosso mercado de Nantucket.”

“Mercado de Nantucket! Que droga! Chega mais perto, Starbuck; tu necessitasde uma palavra um pouco mais profunda. Se a medida é o dinheiro, marinheiro,e os contadores tivessem calculado o globo inteiro, cercando-o de guinéus, umpara cada três quartos de polegada, deixa-me contar que minha vingança pagaráuma grande recompensa aqui!”

“Ele está batendo no peito”, sussurrou Stubb, “por que será? Parece-me que soaimenso, mas vazio.”

“Vingança sobre uma besta que não fala!”, gritou Starbuck, “que te atacousimplesmente por um instinto cego! Loucura! Sentir ódio de uma criatura muda,Capitão Ahab, me parece uma blasfêmia.”

“Escute aqui mais uma vez – uma palavra um pouco mais profunda. Todos osobjetos visíveis, homem, não passam de máscaras de papelão. Mas em todos oseventos – na ação viva, na façanha incontestável – revela-se alguma coisadesconhecida, mas racional, por detrás dessa máscara irracional. Se um homemquer atacar, que ataque através da máscara! Como pode um prisioneiro escapar anão ser atravessando o muro à força? Para mim, a baleia branca é o muro, que foiempurrado para perto de mim. Às vezes penso que não existe nada além. Masbasta. Ela é meu dever; ela é meu fardo; eu a vejo em sua força descomunal,fortalecida por uma malícia inescrutável. Essa coisa inescrutável é o que maisodeio; seja a baleia branca o agente, seja a baleia branca o principal,descarregarei meu ódio sobre ela. Não me fales de blasfêmias, homem; eu lutariacontra o sol, se ele me insultasse. Porque, se o sol pode fazer uma coisa, eu posso

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fazer outra, visto que sempre há uma espécie de jogo lícito, e há o zelo reinandosobre todas as criações. Mas esse jogo lícito não me domina, homem. Quem estáacima de mim? A verdade não tem limites. Deixa de olhar para mim! Maisintolerável que o olhar do demônio é o de um idiota! Ora, ora, enrubesceste eempalideceste; minha fúria se fundiu com tua cólera. Mas presta atenção,Starbuck, aquilo que se diz quando enfurecido, logo se desdiz. Há homens cujaspalavras iradas constituem um pequeno insulto. Não quis te encolerizar. Deixaestar. Vê! Olha ali em baixo, todos aqueles rostos Turcos, bronzeados, commanchas – quadros vivos, a respirar, pintados pelo sol. Os leopardos Pagãos –criaturas sem pensamento e sem culto, que vivem, que procuram e que não dãorazões pela vida tórrida que levam! A tripulação, homem, a tripulação! Não estãotodos com Ahab, na questão dessa baleia? Olha Stubb! Ele ri! Vê o Chileno ali!Bufa quando pensa no caso. Ficar de pé em meio ao furacão, tua muda criaturaagitada não consegue, Starbuck! E do que se trata, afinal? Pensa bem. Apenas deajudar a abater uma barbatana; nenhuma proeza extraordinária para Starbuck! Eque mais? Nesta pequena caçada, a melhor lança de Nantucket, certamente elanão vai recuar, quando todos os marinheiros já estão com as pedras de amolar àmão. Ah! Estás constrangido; entendo! A onda te levanta! Fala, apenas fala! – Sim,sim! Teu silêncio fala por ti. [À parte] Alguma coisa escapou de minhas narinasdilatadas, e o pulmão dele a inalou. Agora Starbuck me pertence; já não poderesistir a mim sem uma rebelião.”

“Que Deus me proteja! Que Deus nos proteja a todos!”, murmurou Starbuck,com humildade.

Mas, em sua alegria diante da anuência tácita e enfeitiçada do piloto, Ahab nãoescutou a súplica cheia de agouro; nem os risos abafados do porão; nem asvibrações proféticas do vento no cordame; nem o ruído surdo das velas batendonos mastros, quando por um momento os ânimos esmoreceram. Mas, outra vez,os olhos de Starbuck se iluminaram com a obstinação da vida; o riso subterrâneoemudeceu; o vento continuou a soprar; as velas enfunaram-se; o navio arfava eprosseguia como antes. Ah, advertências e pressentimentos! Por que nãopermaneceis, quando chegais? No entanto, ó, sombras, sois mais presságios doque advertências! E, mesmo assim, menos presságios exteriores do queconfirmações de coisas precedentes que se passam dentro de nós. Porque, compoucas coisas externas a nos compelir, são as necessidades íntimas de nosso serque continuam a nos guiar.

“A medida! A medida!”, gritou Ahab.Recebendo a vasilha de estanho a transbordar, e voltando-se para os

arpoadores, ordenou-lhes que mostrassem suas armas. Enfileirando-os em frente,perto do cabrestante, com os arpões empunhados, enquanto os três pilotos

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ficavam na lateral com suas lanças, e o resto da tripulação formava um círculoem volta do grupo; ele permaneceu por um momento a observar cada tripulante.Mas aqueles olhos selvagens encontravam os olhos dele como os olhos injetadosdos lobos encontram os de seu líder, antes de ele se precipitar no encalço dobisão; mas, não! apenas para que caiam na armadilha do Índio.

“Bebei e passai!”, gritou, entregando a vasilha cheia para o marinheiro maispróximo. “Só a tripulação bebe agora. Passai, passai! Pequenos tragos – grandesgoles, marinheiros. Isso é quente como o casco do demônio. Isso, isso, está dandoa volta muito bem. Cria espirais em vós; aparece nos olhos como uma serpente.Muito bem, está quase seco. Veio de um jeito, sai de outro. Dai-me – está vazia!Marinheiros, parecei-vos com o tempo; uma vida tão plena é tragada edesaparece. Camareiro, torna a encher!

“Atentai agora, meus corajosos homens. Fiz a chamada em torno destecabrestante; vós, pilotos, colocai-vos ao meu lado com vossas lanças; vós,arpoadores, ficai aí com vossos ferros; vós, fortes marujos, formai um círculo emtorno de mim, para que eu possa de algum modo reavivar um nobre costume demeus antepassados pescadores. Ó, marinheiros, vereis que – olá, rapaz, jávoltaste? Dinheiro falso não voltaria mais depressa. Dá cá. Ora, essa vasilha deestanho estaria cheia de novo, se não fosses tu, diabo de São Vito – fora, calafrio!

“Adiante, oficiais! Cruzai as lanças bem diante de mim. Muito bem! Deixai queeu veja o eixo.” Dizendo isto, estendeu seu braço, pegou as três lanças radiantes,niveladas em seu ponto de cruzamento; enquanto fazia isso, deu-lhes de repenteum safanão nervoso; enquanto isso, seu olhar decidido passava de Starbuck paraStubb; de Stubb para Flask. Parecia que, por uma vontade interior inominável,ele pretendia descarregar neles a emoção causticante acumulada no vaso deLeyden de sua vida magnética. Os três pilotos tremiam diante de sua expressãoforte, firme e mística. Stubb e Flask desviaram seus olhares; os olhos honestos deStarbuck voltaram-se para o chão.

“Inútil!”, gritou Ahab; “mas talvez seja melhor assim. Pois, tivessem os trêsrecebido o choque em sua plenitude, talvez esta minha força elétrica, ela própriativesse terminado. Talvez, também, tivesse terminado convosco. Talvez nãopreciseis dela. Abaixai as lanças! Agora, vós, pilotos, nomeio-vos copeiros daquelesmeus três irmãos pagãos – aqueles três nobres cavalheiros muito honrados, meuscorajosos arpoadores. Desprezais a tarefa? Quando o grande Papa lava os pés dosmendigos, usando a tiara como jarro? Ó, amáveis cardeais! Vossa própriacondescendência vos levará a fazê-lo. Não sou eu quem vos ordena; sois vós quemo quereis. Cortai os laços e sacai as varas, arpoadores!”

Obedecendo silenciosamente ao comando, os três arpoadores estavam diantedele com a parte de ferro dos seus arpões, de cerca de três pés de comprimento, à

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mostra, e a ponta para cima.“Não me apunhaleis com essa faca afiada! Virai-a para baixo, virai-a! Não sabeis

segurar uma taça? Virai a embocadura! Isso, isso; agora, vós, copeiros, adiantai-vos. Os ferros! Pegai-os; segurai-os para que eu os encha!” Sem demora, indo deum oficial ao outro, ele encheu a embocadura dos arpões com o conteúdoardente da vasilha.

“Muito bem, de três em três. Encomendai os cálices assassinos! Servi-vos deles,vós, que vos tornastes membros desta aliança indissolúvel. Ah, Starbuck! A coisaestá feita! Ali o sol ratificante espera para se esconder. Bebei, arpoadores! Bebei ejurai, homens que tomais lugar à proa da baleeira vingadora – Morte a MobyDick! Que Deus nos cace, se não caçarmos Moby Dick até a morte!” Os longos eafiados cálices de metal foram erguidos; e, proferindo gritos e maldições contra abaleia branca, o álcool lhes desceu pela garganta ao mesmo tempo com umsibilo. Starbuck empalideceu, e virou-se, e sentiu um calafrio. Pela última vez, avasilha cheia fez a volta pela tripulação frenética; então, com um aceno da mãolivre, todos se dispersaram; e Ahab recolheu-se em sua cabine.

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37 O PÔR-DO-SOL

[ A cabine; junto às janelas da popa; Ahab, sentado sozinho; e olhando parafora.]

Deixo uma esteira inquieta e branca; águas pálidas; facesmais pálidas, por onde navego. Os vagalhões invejosos crescem pelos flancos paracobrir minha trilha; e que assim seja; mas primeiro eu passo.

Lá longe, na borda da taça sempre cheia, as ondas quentes enrubescem comoo vinho. O rosto dourado afunda no azul. O sol mergulhador – mergulhalentamente desde o meio-dia – desce; meu espírito começa a escalada! Fatiga-secom sua colina interminável. Será, então, demasiado pesada a coroa que uso?Essa Coroa de Ferro da Lombardia. Contudo, cintila com suas várias gemas; eu,que a uso, não sei o alcance de seus lampejos; mas sinto obscuramente que o queuso é fascinante e desconcerta. É de ferro – eu sei –, não é de ouro. Está rachada,também – eu sinto; a borda pontiaguda me atormenta tanto que meu cérebroparece se bater contra o sólido metal; sim, crânio de aço, o meu; do tipo que nãoprecisa de elmo na mais sangrenta batalha de cérebros!

Um calor árido sobre a minha fronte? Oh! Foi-se o tempo em que a alvoradanobremente me animava, e o poente me acalmava. Não mais. Esta luzencantadora não me ilumina; todo o encanto significa angústia para mim, porquenada posso apreciar. Dotado da percepção mais aguda, falta-me a humildecapacidade de apreciar; amaldiçoado, da maneira mais sutil e maligna!Amaldiçoado em pleno Paraíso! Boa noite – Boa noite! [ Acenando com a mão,afasta-se da janela.]

Não foi uma tarefa tão complicada. Esperava encontrar alguns teimosos, pelomenos; mas minha correia dentada se encaixa em todas as suas variadas polias; eelas giram. Ou, se quiserdes, como outros tantos montes de pólvora, eles todosestão diante de mim; e sou o fósforo. Como é duro! Que, para incendiar os outros,o fósforo se consuma. O que ousei, desejei; e o que desejei, fiz! Pensam que soulouco – Starbuck pensa; mas sou demoníaco, sou a própria loucura enlouquecida!A loucura varrida, que só se acalma para entender a si mesma! Dizia a profeciaque eu seria destroçado; e – é isso! Perdi esta perna. Agora profetizo – mutilareimeu mutilador. E, assim, profeta e executor serão um só. É mais do que vós,grandes deuses, jamais fostes. Faço pouco e rio de vós, jogadores de críquete,pugilistas, surdos Burkes e cegos Bendigoes! Não farei como as crianças quandofalam com os valentões, – Vá procurar alguém do seu tamanho; não me

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espanque! Não, vós me derrubastes, e estou em pé outra vez; mas vós fugistes, vósvos escondestes. Saí de trás de vossos sacos de algodão! Não tenho uma armacomprida para vos alcançar! Vinde, Ahab vos saúda; vinde para ver se podeis medesviar! Desviar-me? Não, não me podeis desviar, a não ser que vos desvieis antes!Eis aqui o homem. Desviar-me? O caminho de minha resolução é feito comtrilhos de ferro, onde minha alma está encarrilhada. Sobre desfiladeirosinsondáveis, através dos interiores áridos das montanhas, sob o leito das torrentes,avanço infalivelmente! Nada é obstáculo, nada me detém nessa estrada de ferro!

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38 O CREPÚSCULO

[Junto ao mastro principal; Starbuck apoiando-se nele.]Minha alma foi mais do que desafiada; foi subjugada; e por

um louco! Oh, tormento insuportável, ter a sanidade de depor as armas em talcampo! Mas ele penetrou até o fundo e me despojou de toda a razão! Creiocompreender seu objetivo ímpio, mas sinto também que devo ajudá-lo. Queira ounão, algo inexprimível uniu-me a ele; reboca-me com um cabo que comnenhuma faca consigo cortar. Velho horroroso! Quem está acima dele, ele brada asi mesmo; – sim, seria um democrata em relação a seus superiores; mas vejacomo domina todos os que estão abaixo! Oh! Vejo claramente meu triste papel –obedecer, revoltado; e pior ainda, odiar com um toque de compaixão! Porque emseus olhos vejo uma desgraça sombria, que me destruiria, caso a sentisse. Masainda há esperança. Mar e dia me são guias. Aquela baleia odiada tem toda acircunferência do mundo das águas para nadar, como o peixinho dourado tem oseu aquário. Seu propósito ofensivo aos céus, Deus ainda pode extirpá-lo. Estaidéia elevaria meu coração, se não estivesse pesado como chumbo. Mas todo omeu relógio está parado; meu coração, pêndulo que tudo regula, não tenho oestímulo para dar-lhe novo impulso.

[Ouve-se um barulho de festa no castelo de proa.]Ai, meu Deus! Navegar com uma tripulação pagã, que dá tão poucas mostras

de ter tido uma mãe! Paridos em um lugar qualquer deste mar de tubarões. ABaleia Branca é sua rainha demoníaca. Ouçam! As orgias infernais! A festa está àfrente! Observem o silêncio absoluto à popa! Creio ser um retrato da vida. Àfrente, no mar radiante, a proa avança alegre, divertindo-se, pronta para ocombate, mas apenas para arrastar o sombrio Ahab atrás dela, onde ficaruminando, em sua cabine na popa, construída sobre o rastro de água morta e,além disso, assombrada por barulhos ferozes. O infindável uivo me dá calafrios!Silêncio! Vocês, foliões, não se esqueçam da vigília! Ai, vida! É numa hora dessas,quando a alma abatida se torna mais perspicaz – que somos obrigados a aceitar ascoisas desordenadas e descomedidas – Ai, vida! É agora que sinto seu horrorlatente! Mas não sou eu! Esse horror está fora de mim! Com os sentimentoshumanos que estão em mim, vou tentar lutar contra vocês, sombrios,fantasmagóricos acontecimentos futuros! Ó! Fiquem ao meu lado, me dêemamparo, me protejam, influências abençoadas!

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39 PRIMEIRA VIGÍLIA NOTURNA

GÁVEA DO TRAQUETE

[ Stubb, sozinho, consertando uma braçadeira.]Ha! ha! ha! ha! hein! Limpei minha garganta! – estivepensando desde então, e este “ha, ha” é a conclusão. Por

quê? Porque uma risada é a resposta mais sábia e mais fácil para tudo o que éestranho; e, venha o que vier, um consolo sempre resta – um consolo infalível, deque tudo é predestinado. Não ouvi toda sua conversa com Starbuck; mas, parameus olhos de pobre-diabo, Starbuck parecia sentir-se mais ou menos como mesenti naquela outra noite. Com certeza o velho Grão-Mogol também seencarregou dele. Eu saquei, eu sabia; se tivesse o dom, teria adivinhado – poisquando bati o olho em seu rosto, eu vi. Bem, Stubb, sábio Stubb – é meu título –,bem, Stubb, e então, Stubb? Eis aí a carniça. Não sei de tudo que está por vir,mas, seja o que for, vou fazer dando risada. Como sempre há algo de cômico nascoisas mais horríveis! Sinto-me alegre. Tra-lalá-lalá! O que estaria fazendo agoraminha perinha gostosa lá em casa? Chorando as mágoas? – ou dando uma festapara os arpoadores recém-chegados, creio, alegre como a bandeirola de umafragata, assim como eu também – tra-lalá-lalá! Oh –

Vamos beber esta noite, cheios de graça,Para que os amores, alegres, espumantes,Como as bolhas que bordejam nesta taça,Estourem leves pela boca dos amantes.

Que estrofe mais arrojada – quem está chamando? Senhor Starbuck? Sim, sim,senhor – [à parte] ele é meu superior, mas também tem seu superior, se não meengano. – Sim, sim, senhor, já termino este serviço – já vou.

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40 MEIA-NOITE,CASTELO DE PROA

ARPOADORES E MARINHEIROS

[Ergue-se o traquete e surgem os homens da vigília em pé,reclinados, encostados e deitados em várias posições, todos cantando em coro.]

Saudações e adeus, senhoras espanholas!Saudações e adeus, senhoras de Espanha!Comanda o nosso capitão –

1º MARINHEIRO DE NANTUCKET

Ora, rapazes, não sejam sentimentais; faz mal à digestão! Tomem um tônico,sigam-me! [ Canta, e todos o acompanham.]

O nosso capitão está no convés,Com o seu binóculo na mão,Contemplando as baleias garbosasQue sopram em toda a região.

Os barris nos botes, rapazes,Perto das braçadeiras é o seu lugar,Algumas dessas belas baleiasIremos juntos pegar!

Sempre alegres, rapazes! Que não vos falte veia!Quando os bons arpoadores golpearem a baleia!

VOZ DO PILOTO NO TOMBADILHO

Oito badaladas, aí! Na proa!

2º MARINHEIRO DE NANTUCKET

Chega de coro! Oito badaladas, aí! Ouviste, sineiro? Bate o sino oito vezes, tu aí,Pip! Neguinho! E me deixa chamar o vigia. Tenho uma boca boa para isso – umaboca de barril. Assim (enfia a cabeça pela escotilha) P-A-R-A-O-C-O-N-V-É-S, ó, de bordo!Oito badaladas aí embaixo! Para cima!

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MARINHEIRO HOLANDÊS

Grande soneca esta noite, parce’ro; noite boa pra isso. Percebi no vinho do velhoGrão-Mogol; dá fraqueza em uns, levanta outros. A gente canta; eles dormem –sim, deitados aí, parecem uma fileira de barricas no chão. Pra cima deles, denovo! Isso, pega essa bomba de cobre e chama esses caras. Diz pra eles que chegade sonhar com as namoradas. Diz pra eles que é a ressurreição; que devem dar oúltimo beijo e vir ao julgamento. É o jeito – é o jeito; não estragaste tua gargantacomendo manteiga de Amsterdã.

MARINHEIRO FRANCÊS

Ei! rapazes! Vamos dançar um pouco, antes de ancorarmos na baía de Blanket.Que tal? Lá vem o outro vigia. Todos de pé! Pip! Pequeno Pip! Dá hurras com esseteu pandeiro!

PIP

[Mal-humorado e sonolento.]Não sei onde ele ‘tá.

MARINHEIRO FRANCÊS

Bate nessa tua barriga, então, e sacode essas orelhas. Vamos dançar, rapazes;repito, a palavra é alegria; hurra! Que diabos, não quereis dançar? Formai a filaindiana, galopai para a escotilha! Animai-vos! Pernas! Pernas!

MARINHEIRO ISLANDÊS

Não gosto do teu chão, parce’ro; é muito riscado pro meu gosto. Estouacostumado com pistas de gelo. Desculpe jogar um balde d’água nesse assunto.

MARINHEIRO MALTÊS

Eu também; onde estão as moças? Só um bobo tomaria sua mão esquerda peladireita e diria a si mesmo – e aí? Um par! Preciso de um par!

MARINHEIRO SICILIANO

Sim; moças, e um pouco de grama! – Só assim posso pular com vocês; é isso aí,feito um gafanhoto!

MARINHEIRO DE LONG ISLAND

Pois é, gente rabugenta; há muitos mais além de nós. Olha – grão só se plantaquando precisa. Todas as pernas logo, logo irão para a colheita. Ah! A música!Vamos!

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MARINHEIRO AÇORIANO

[Subindo e jogando um pandeiro para fora da escotilha.]Cá está, Pip, e aí vai o suporte do cabrestante; sobe nele! Agora, rapazes!

[A metade deles dança ao som do pandeiro; alguns descem; alguns estão deitadosou dormindo entre os rolos do cordame. Blasfêmias por toda parte.]

MARINHEIRO AÇORIANO

[Dançando.]Vamos lá, Pip! Bate aí, menino do sino! Tange, bate, toca, menino! Faz sair faísca,arrebenta nesse requebrado!

PIP

O requebrado, você disse? – Então aí vai, segura! É assim que eu mando bala.

MARINHEIRO CHINÊS

Então sacode essa mão, não pára; faz um pagode de ti.

MARINHEIRO FRANCÊS

Que loucura! Levanta esse teu aro, Pip, que eu vou passar por dentro dele! Ferracom essa vela! É festa d’a gente se acabar!

TASHTEGO

[Fumando calmamente.]

O homem branco é assim; a isso ele dá o nome de diversão – Hum! Voueconomizar suor.

VELHO MARINHEIRO DA ILHA DE MAN

Gostaria de saber se esses jovens alegres sabem por que estão dançando. Voudançar em cima de suas sepulturas, se vou – Essa é a ameaça mais cruel de suasdamas da noite, que enfrentam o vento das esquinas em suas cabeças. Ô, Cristo!Pensar nessas frotas jovens e na cabeça dessas tripulações jovens! Bem, bem;talvez o mundo todo seja um grande baile, como dizem os sábios; e então érazoável que dele se faça um salão de baile. Dancem, rapazes, vocês são jovens;eu fui um dia.

3º MARINHEIRO DE NANTUCKET

Divide aí, oh! – Uhff! Isso é pior do que caçar baleias numa calmaria – dá um

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trago, Tash.[Param de dançar e formam grupos. Enquanto isso o céu escurece – o ventoaumenta.]

MARINHEIRO INDIANO

Por Brahma! Rapazes, logo teremos que baixar as velas. O filho do céu, o forteGanges fez-se vento! Mostra teu rosto de trevas, Shiva!

MARINHEIRO MALTÊS

[Deitando e agitando o boné.]São as ondas – são os xales da neve que começam a dançar agora. Em breveagitarão suas borlas. Se todas as ondas fossem mulheres, eu me afogaria edançaria eternamente com elas! Não existe nada mais doce sobre a terra – nem océu se compara! – do que a aparição rápida de bustos cálidos e selvagens no baile,enquanto os braços levantados ocultam as uvas maduras que se insinuam.

MARINHEIRO SICILIANO

[Deitado.]Não fale isso! Escute aqui, rapaz – Suaves entrelaçamentos dos membros – Umligeiro balanço – Recatos – Palpitações! Lábios! Coração! Quadris! Tudo seroçando: incessantes toques! E nunca provar, pois de outro modo chega asaciedade. Hein, Pagão? [Cutuca.]

MARINHEIRO TAITIANO

[Deitado sobre uma esteira.]Saúdo a nudez sagrada de nossas dançarinas! – a Hiva-Hiva! Ah! Taiti, de valesbaixos e altas palmeiras! Ainda descanso em tua esteira, mas o teu solo macio sefoi! Vi o momento em que eras tecida, esteira minha! Eras verde no dia em que tetrouxe para cá; agora, usada e desbotada te encontras. Ai de mim! – Nem eu enem tu conseguimos nos acostumar às mudanças! Como será se formostransplantados ali para o céu? Será que escuto as águas ruidosas do Pirohiti, suaspontas de lança, quando saltam dos rochedos e inundam os vilarejos? – A rajadade vento! A rajada de vento! Levanta, e coragem! [ Fica de pé.]

MARINHEIRO PORTUGUÊS

Como o mar rola agitado de encontro ao costado. Preparem-se para a rizadura,gajos valentes! Os ventos estão a cruzar espadas, logo mais teremos rebuliço.

MARINHEIRO DINAMARQUÊS

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Range, range, velho navio! Enquanto ranges é sinal de que te agüentas! O oficialte conduz obstinadamente. Tem menos medo do que o forte da ilha em Kattegat,lá colocado para lutar contra o Báltico e suas armas tempestuosas, cobertas de sal!

4º MARINHEIRO DE NANTUCKET

Ele recebeu ordens, lembrai-vos. Escutei o velho Ahab dizer-lhe que atacasse umatempestade como se estoura um jato de água com uma pistola – jogando o naviopara dentro dela!

MARINHEIRO INGLÊS

Caramba! Mas aquele velho é um grande sujeito! E nós, rapazes, vamos pegar abaleia dele!

TODOS

Vamos! Vamos!

VELHO MARINHEIRO DA ILHA DE MAN

Como tremem os três pinheiros! De todas as árvores, os pinheiros são os que têmmais dificuldade para viver em solo estranho, e aqui não há solo algum além dobarro amaldiçoado da tripulação. Firme, timoneiro, firme! Esse é o tipo de tempoem que corações corajosos estouram na terra, e cascos virados se rompem nomar. Nosso capitão tem seu sinal de nascença; olhem lá longe, rapazes, há umoutro no céu – sinistro, vejam, e todo o resto é puro negrume.

DAGGOO

E o que é que tem? Quem tem medo de negrume, tem medo de mim! Eu fuitalhado nele!

MARINHEIRO ESPANHOL

[Àparte.] Ele quer intimidar, ah! – o velho ressentimento me deixa irritado. [Avançando.] Sim, arpoador, tua raça é inegavelmente o lado escuro dahumanidade – diabolicamente escuro nesse sentido. Sem ofensas.

DAGGOO

[Inflexível.]Nenhuma.

MARINHEIRO DE SANT’IAGO

O espanhol está louco ou bêbado. Mas isso não pode ser, a menos que, no caso

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dele, a aguardente do velho Grão-Mogol tenha efeito prolongado.

5º MARINHEIRO DE NANTUCKET

O que é isso que acabo de ver – um raio? É, sim.

MARINHEIRO ESPANHOL

Não! Era Daggoo mostrando os dentes.

DAGGOO

[Pulando.]Engole isso, nanico! Pele branca, fígado branco!

MARINHEIRO ESPANHOL

[Indo a seu encontro.]Vou te esfaquear com muito gosto! Esqueleto grande, espírito pequeno!

TODOS

Briga! Briga! Briga!

TASHTEGO

[Soltando uma tragada.]Briga embaixo, e briga em cima – Deuses e homens –, todos briguentos! Humpf!

MARINHEIRO DE BELFAST

Uma briga! Viva a briga! Bendita Virgem, uma briga! Caiam nela!

MARINHEIRO INGLÊS

Jogo limpo! Tirem a faca do espanhol! Um círculo, um círculo!

VELHO MARINHEIRO DA ILHA DE MAN

Já está formado. Lá! O círculo no horizonte. Naquele círculo Caim matou Abel.Belo trabalho, bom trabalho! Não? Por que então, Deus, fizeste a arena?

VOZ DO PILOTO DO TOMBADILHO

Mãos a postos nas adriças! As velas de joanete! Todos perto das gáveas!

TODOS

A tempestade! A tempestade! Corram, camaradas! [ Eles se dispersam.]

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PIP

[Escondido embaixo do molinete.]Camaradas? Que Deus ajude esses meus camaradas! Cric, crac! Lá se vai abujarrona! Blim, blem! Meu Deus! Abaixa mais, Pip, lá vem a verga! É pior do queestar na ventania de um bosque no último dia do ano! Quem procurariacastanhas numa hora dessas? Mas lá se vão todos, xingando, e eu não. Boas novas!Eles estão a caminho do céu. Segura firme. Pô, que tempestade! Mas aquelescaras ali ainda são piores – eles são a tempestade branca deles. Tempestadebranca? Baleia branca, XII! Acabei de ouvir uma conversa deles, e a baleia branca– XII! Mas só falaram uma vez! Nesta noite – faz meu coração bater feito meupandeiro – aquela serpente velha fez com que jurassem caçá-la! Ô grande Deusbranco, aí em cima em algum lugar na escuridão, tem piedade desse pretinhoaqui embaixo; protege-o contra todos os homens que não têm coragem de sentirmedo!

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41 MOBY DICK

Eu, Ishmael, era um dos homens daquela tripulação; meus gritosse juntaram aos dos outros; meu juramento uniu-se ao deles; e ainda mais altogritei e ainda mais bati e finquei os cravos de meu juramento, pelo pavor quesentia em minha alma. Um sentimento de solidariedade violenta e mística meassaltava; o ódio inextinguível de Ahab parecia meu. Com ouvidos atentos escuteia história do monstro assassino contra o qual eu e todos os outros havíamosdedicado nossas juras de violência e vingança.

Por algum tempo, embora apenas em raras ocasiões, a reclusa edesacompanhada Baleia Branca havia assombrado aqueles mares braviosfreqüentados pelos pescadores de Cachalotes. Mas nem todos sabiam de suaexistência; comparativamente, apenas alguns poucos a tinham visto; ao passo queo número daqueles que de fato lutaram contra ela era muito pequeno. Pois,devido ao grande número de navios baleeiros; à forma desordenada com que seespalhavam pelo globo das águas, muitos deles audaciosos a ponto de conduzirsua busca por ermas latitudes, de modo que pouco ou quase nunca, durante oespaço de um ano ou mais, encontravam um ou outro navio que trouxessenotícias; à extraordinária distância percorrida em cada viagem; à irregularidadeda época das saídas da pátria; todas essas e outras circunstâncias, diretas ouindiretas, por muito tempo obstruíam a difusão, entre as frotas baleeiras de todoo mundo, de notícias específicas sobre Moby Dick. Sabemos que muitos naviosrelataram ter encontrado, num ou noutro momento, ou neste e naquelemeridiano, um Cachalote de magnitude e perversidade incomuns, e que essabaleia, depois de causar muitos danos a seus agressores, escapara completamentedos mesmos; imagino que, para alguns, não era despropósito crer que aquelabaleia não fosse outra senão Moby Dick. Contudo, como a pesca do Cachalotetem sido marcada ultimamente por vários e freqüentes exemplos de grandeferocidade, astúcia e malícia dos monstros atacados; talvez por isso aqueles quepor acaso lutaram contra Moby Dick sem o saber, em sua maioria, tenham secontentado em atribuir os horrores que ele suscitava mais à pesca do Cachaloteem geral do que a uma baleia em particular. Era essencialmente dessa forma que,até então, quase todos chamavam à lembrança o desastroso encontro de Ahabcom a baleia.

E quanto àqueles que, tendo notícia prévia da Baleia Branca, acidentalmente aavistavam; de início quase todos, muito audaciosos e sem medo, desciam os botes

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para persegui-la, como fariam com qualquer outra baleia daquela espécie. Mas,com o passar do tempo, muitos foram os desastres decorrentes desses ataques –jamais restritos a pulsos e tornozelos torcidos, braços e pernas quebradas, ou aamputações vorazes – mas fatais até o último grau de fatalidade; e essascalamidades, repulsivas e repetidas, somavam e amontoavam terrores sobre MobyDick; essas coisas tinham ido longe a ponto de abalar a fortaleza de muitoscaçadores corajosos, aos quais a história da Baleia Branca havia porventurachegado.

Não faltavam rumores violentos de todos os tipos, que exagerassem etornassem mais tenebrosas as verdadeiras histórias daqueles encontros mortais.Pois não eram meros rumores fabulosos, que crescem naturalmente do conjuntode todos os eventos surpreendentes e terríveis – como a árvore abatida, que dávida a seus fungos; na vida marítima, muito mais do que em terra firme,abundam rumores violentos, havendo ou não realidade adequada para sustentá-los. E, tal como o mar suplanta a terra nesse assunto, também a pesca de baleiassuplanta qualquer outro tipo de vida marítima, na maravilha e no terror dosrumores que ali, vez ou outra, circulam. Pois não são os baleeiros que, em seuconjunto, estão sujeitos à ignorância e à superstição hereditária dos marinheiros;a questão é que, de todos os marinheiros, são eles os trazidos para o contato maisdireto com tudo que existe de mais surpreendente e terrível no oceano;enfrentam cara a cara não apenas sua maior maravilha, como – mãos sobremandíbulas – lutam contra ela. Sozinho, em águas tão remotas que, mesmo sevocê navegasse mil milhas e passasse por mil praias, não veria sequer a chaminéde uma lareira ou qualquer coisa hospitaleira sob aquele lado do sol; em taislatitudes e longitudes, e seguindo sua vocação, como segue, o baleeiro está presoa influências que tendem a tornar sua fantasia prenhe dos mais extraordináriosrebentos.

Portanto, não é de se admirar que, sempre crescendo em volume com osimples transitar pelas mais selvagens regiões marítimas, os rumores exageradossobre a Baleia Branca, enfim, incorporassem toda sorte de palpite mórbido esugestão mal formada em sua procedência; os quais acabaram por envolver MobyDick em novos terrores destituídos de qualquer evidência visível. Tanto que, emmuitos casos, tal era o pânico por ele suscitado que poucos dos que conheciam aBaleia Branca por esses rumores, poucos desses caçadores estavam interessadosem enfrentar os perigos de sua mandíbula.

Mas ainda havia outras e mais fatais influências em ação. Nem mesmo nos diasde hoje o prestígio original do Cachalote, que inspirando medo se destaca dasoutras espécies de Leviatã, esmoreceu na imaginação dos baleeiros. Existemaqueles que, embora tenham coragem e esperteza para enfrentar uma baleia da

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Groenlândia ou uma baleia franca, preferem – por inexperiência profissional,incompetência, ou timidez – recusar uma luta contra o Cachalote; de qualquermodo, há um grande número de baleeiros, especialmente entre as naçõesbaleeiras que não usam a bandeira norte-americana, que nunca tiveram umencontro hostil com o Cachalote, mas cujo único conhecimento sobre o Leviatãse restringe ao monstro ignóbil primitivamente caçado ao norte; sentados emseus compartimentos, esses homens escutam as histórias fantásticas das viagensbaleeiras ao sul com o interesse e o assombro de crianças sentadas ao fogo dalareira. A preeminente monstruosidade do grande Cachalote não é compreendidacom maior paixão do que a bordo dessas proas que o enfrentam.

E, como se a realidade atestada jogasse agora sua sombra sobre as lendas dostempos passados; encontramos em alguns livros de naturalistas – Olassen ePovelsen – declarações de que o Cachalote não apenas causa medo em todas asoutras criaturas do mar, como também é incrivelmente feroz, a ponto de estarsempre sedento de sangue humano. Nem mesmo numa época tão tardia quanto ade Cuvier essa impressão e outras similares se desvaneceram. Porque em suaHistória Natural, o próprio Barão afirma que, ao avistar um Cachalote, todos ospeixes (inclusive os tubarões) “ficam tomados do mais vivo terror” e “muitasvezes, na fuga desembestada, se jogam contra os rochedos com tal violência queacabam mortos instantaneamente”. E, embora a experiência da pescaria possacorrigir descrições como esta; ainda assim, com todo o seu horror, chegando àsede por sangue descrita por Povelsen, a superstição é renovada, por algumasvicissitudes da profissão, na memória dos pescadores.

Assombrados pelos rumores e presságios relacionados a ela, não são poucos ospescadores que lembram, em referência a Moby Dick, os primórdios da pesca doCachalote, quando era muitas vezes difícil convencer os baleeiros maisexperientes a embarcar nos perigos dessa nova e ousada guerra; esses homensprotestavam, diziam que, muito embora outros Leviatãs pudessem ser abatidossem maiores problemas, perseguir e apontar as lanças para uma criatura do portedo Cachalote não seria tarefa para um homem mortal. Tentar semelhante feitotornaria o caminho da eternidade inevitavelmente mais curto. Há documentosnotáveis a esse respeito que podem ser consultados.

Mesmo assim, havia quem, mesmo confrontado com essas coisas, estivessepronto a dar combate a Moby Dick; e ainda outros que, tendo a seu respeitonotícias vagas e distantes, ignorantes de detalhes específicos de alguma catástrofee desprovidos de superstições, eram fortes o suficiente para não fugir de umabatalha quando esta lhes fosse oferecida.

Uma das fantasias mais extravagantes que surgiram, como as que por fimacabaram associadas à Baleia Branca na mente dos inclinados à superstição, era a

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idéia sobrenatural de que Moby Dick tivesse o dom da ubiqüidade, que tivesse defato sido encontrado em latitudes opostas ao mesmo tempo.

E crédulas como devem ter sido tais mentes, essa idéia não deixava de tercerto matiz de probabilidade supersticiosa. Pois assim como os segredos dascorrentes nos mares até agora não foram revelados, mesmo aos mais eruditospesquisadores; da mesma forma os caminhos obscuros do Cachalote quandosubmerso permanecem, em grande parte, desconhecidos de seus perseguidores;e, de tempos em tempos, dão origem às mais curiosas e contraditóriasespeculações, especialmente no que se refere aos modos místicos pelos quais,depois de sondar as profundezas do mar, ele se transporta com enormevelocidade para os pontos mais distantes.

É fato bem conhecido dos navios baleeiros norte-americanos e Ingleses,também registrado com autoridade há anos por Scoresby, que algumas baleiascapturadas no extremo setentrional do Pacífico traziam em seu dorso farpas dearpões que lhes foram cravados nos mares da Groenlândia. Nem se pode deixarde dizer que, em alguns casos, se declarou que o espaço de tempo entre os doisataques não teria excedido alguns poucos dias. Disso decorria, por inferência, acrença de alguns baleeiros em que a passagem noroeste, há tanto tempo umproblema para o homem, nunca tivesse sido um problema para a baleia. E tantoque aqui, na experiência real conhecida pelo homem vivente, os prodígiosrelatados nos tempos antigos sobre o monte da Estrela no interior de Portugal(perto de cujo topo se dizia haver um lago no qual os destroços de naviosnaufragados flutuavam na superfície); ou a história ainda mais fantástica sobre afonte de Aretusa, perto de Siracusa (cujas águas viriam da Terra Santa por meiode uma passagem subterrânea); esses relatos fabulosos são quase plenamenteigualados pelas realidades dos baleeiros.

Forçados, pois, à familiaridade com tais prodígios; e sabendo que, depois derepetidos e intrépidos ataques, a Baleia Branca havia escapado com vida; nãocausa surpresa alguma que alguns baleeiros fossem além em suas superstições;declarando Moby Dick não apenas ubíquo como imortal (já que a imortalidade ésomente a ubiqüidade no tempo); que, a despeito de florestas de lanças cravadasem seus flancos, ele poderia sair nadando incólume; ou que, se realmentefizessem com que ele esguichasse sangue espesso, tal visão não seria mais do queuma terrível decepção, pois centenas de léguas mais adiante, em vagalhõeslimpos de sangue, seu jato imaculado poderia mais uma vez ser visto.

Mas, mesmo afastadas as conjeturas sobrenaturais, havia o suficiente na formaterrena e em seu caráter incontestável de monstro para abalar a imaginação comforça inusitada. Pois não era tanto sua extraordinária compleição que o distinguiados outros Cachalotes, mas – como foi dito em outro lugar – uma peculiar fronte

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enrugada, branca como a neve, e uma corcova alta e branca, em forma depirâmide. Essas eram suas características proeminentes; os sinais pelos quais,mesmo em mares ilimitados e ignorados pelos mapas, ele revelava suaidentidade, a distância, para os que a conheciam.

O resto de seu corpo estava tão rajado, manchado e marmorizado com essemesmo tom de mortalha que, afinal, ele ganhou o nome próprio de BaleiaBranca; um nome, aliás, plenamente justificado por seu aspecto fulgurante,quando visto deslizando pelo mar azul escuro, ao meio-dia, deixando um rastrolácteo de espuma cremosa no qual cintilavam faíscas douradas.

Não era sua grandeza insólita, nem sua coloração notável, nem mesmo suamandíbula inferior deformada que tanto conferiam a ele um terror natural, massua perversidade inteligente e sem par que, segundo relatos, ele sempre revelavaem seus ataques. Mas, acima de tudo, eram suas retiradas traiçoeiras que talvezamedrontassem mais do que qualquer outra coisa. Pois, quando nadava à frentede seus perseguidores exultantes, com todos os sinais de estar em alerta, elemuitas vezes se virava subitamente e, atacando-os, tanto lhes despedaçava osbotes, como os levava em desespero de volta ao navio.

Várias fatalidades já haviam acometido sua caça. Muito embora desastresparecidos, ainda que pouco falados em terra, não fossem de modo algumestranhos à pescaria; na maior parte dos casos, de tal forma se apresentava apremeditação infernal de ferocidade da Baleia Branca que cada mutilação oumorte causada não era de todo pensada como ataque de um agente irracional.

Imagine, então, a que ponto de enfurecimento, exaltado e inflamado, opensamento de seus mais desesperados caçadores foi impelido enquanto, porentre os pedaços de botes triturados e os membros de companheiros dilacerados,eles nadavam para longe dos coágulos brancos da ira demoníaca da baleia sobum sol sereno e exasperador, que continuava a lhes sorrir como se iluminasse umnascimento ou um casamento.

Seus três botes afundando à sua volta, e os remos e os homens a girar emredemoinhos; um capitão, arrancando uma faca de cordas da proa arrebentada,arremessou-se contra a baleia, como um duelista do Arkansas contra seuadversário, tentando atingir às cegas, com uma lâmina de seis polegadas, a vidaprofunda da baleia. Esse capitão era Ahab. E foi então que, subitamente, passandopor baixo dele com a foice de sua mandíbula inferior, Moby Dick cortou a pernade Ahab, como faria uma ceifadeira com a grama no campo. Nenhum Turco deturbante, nenhum Veneziano ou Malaio mercenário o teria atingido com tantamalícia. Havia poucos motivos para duvidar de que, desde aquele encontro quasefatal, Ahab nutrisse uma violenta sede de vingança contra a baleia, ainda maisterrível porque, em sua morbidez frenética, atribuíra a ela não apenas todos os

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seus infortúnios físicos, como também seus sofrimentos intelectuais e espirituais.A Baleia Branca nadava diante dele como a encarnação monomaníaca de todos osagentes malignos que alguns homens sentem corroendo-lhes o íntimo, até quelhes reste apenas viver com a metade do coração e do pulmão. Aquelaperversidade inatingível que ali esteve desde o princípio; a cujo domínio mesmoos cristãos modernos atribuem a metade dos mundos; que os antigos Ofitas doOriente reverenciavam com suas imagens demoníacas; – Ahab não desesperava eas adorava como eles; mas, transferindo em delírio tais idéias ao abominadocachalote branco, lançava-se, mesmo mutilado, contra ele. Tudo o que maisenlouquece e atormenta; tudo o que alvoroça a quietude das coisas; toda averdade com certa malícia; tudo o que destrói o vigor e endurece o cérebro; tudoo que há de sutilmente demoníaco na vida e no pensamento; em suma, toda amaldade, para Ahab, se tornava visível, personificada e passível de ser enfrentadaem Moby Dick. Amontoou sobre a corcova branca da baleia toda a cólera e araiva sentidas por sua raça inteira, desde a queda de Adão; e então, como se seupeito fosse um morteiro, ali fez explodir a granada de seu coração ardente.

É pouco provável que sua monomania tenha surgido no exato momento damutilação de seu corpo. Naquele momento, atirando-se contra o monstro, faca namão, ele apenas liberou uma hostilidade corporal, passional e repentina; e,quando recebeu o golpe que o dilacerou, provavelmente sentiu apenas a dorfísica da laceração, nada mais. Mas quando, depois desse choque, foi obrigado avoltar para casa e, durante longos meses, dias e semanas, Ahab e a angústiaestiveram juntos, deitados numa rede, dobrando em pleno inverno aqueleassustador e tormentoso cabo da Patagônia; nesse momento, seu corpo dilaceradoe sua alma ferida sangraram juntos; e, assim fundidos, enlouqueceram-no. Foi sóentão, na viagem de volta para casa, depois do encontro, que a monomaniadefinitiva o arrebatou, o que parece certo devido ao fato de que, de tempo emtempo ao longo do trajeto, ele se mostrou completamente ensandecido; muitoembora alijado de uma perna, uma força vital ainda se escondia em seu peitoEgípcio, e de tal modo intensificada em seus delírios que seus pilotos foramforçados a amarrá-lo ali mesmo, seguindo viagem enquanto ele vociferava em suarede. Numa camisa-de-força, ele se balançava com a loucura dos vendavais. Equando passavam por latitudes mais benignas, e o navio de velas desfraldadasnavegava por lugares tranqüilos, e os delírios do velho pareciam ter ficadoaparentemente para trás no cabo Horn, e ele saía de seu covil escuro para a luz eo ar abençoados; mesmo então, quando ele trazia o rosto composto e firme,embora pálido, e transmitia mais uma vez ordens calmas e coerentes; e seusoficiais agradeciam a Deus por aquela loucura maligna ter acabado; mesmoentão, Ahab, em seu íntimo, continuava a delirar. A loucura humana é quase

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sempre felina e muito astuta. Quando pensamos ter acabado, pode ser que apenastenha se transformado em algo mais sutil. A loucura de Ahab não havia cessado,apenas se condensado; como o Hudson constante, quando aquele nobre nortistacorre estreito, mas insondável através das gargantas das Terras Altas. Mas, em suamonomania de correnteza estreita, nem uma gota da ampla loucura de Ahabhavia se perdido; do mesmo modo, em sua ampla loucura, nem uma gota de seugrande intelecto natural havia perecido. Aquilo que outrora fora agente vivo setornava instrumento vivo. Se um tropo tão exaltado é capaz de se sustentar, suademência própria atacou sua sensatez geral e a venceu, e a trouxe consigo evoltou sua artilharia concentrada inteira contra o alvo de sua própria loucura; detal modo que, longe de ter perdido a energia, Ahab tinha agora, para aquelafinalidade, uma potência mil vezes mais forte do que jamais teve para um fimsensato, quando em juízo perfeito.

Isto já é muito; ainda assim, o lado mais amplo, mais profundo e maissombrio de Ahab permanece desconhecido. Mas é inútil vulgarizarprofundidades, e toda verdade é profunda. Descendo muito além do coraçãodesse Hotel de Cluny cravado aqui onde estamos agora – embora seja grandioso emaravilhoso, deixemo-lo; – parti, almas nobres e tristes, na direção daquelasenormes salas Romanas, as Termas; onde muito abaixo das torres fantásticas dasuperfície terrena do homem, sua raiz de grandeza, toda a sua essênciaapavorante se encontra em posição de confronto; uma antiguidade sepultada sobantiguidades, entronizada nos torsos! Num trono quebrado, os grandes deusescaçoam do rei cativo; mas, como uma Cariátide, ele fica pacientemente sentado,sustentando em sua fronte congelada os entablamentos acumulados dos séculos.Descei, almas altivas e tristes! Interrogai aquele rei orgulhoso e triste! Umasemelhança familiar! Sim, ele vos gerou, jovens realezas exiladas; e apenas pormeio de vosso monarca impiedoso vos será revelado o antigo segredo de Estado.

Ora, em seu coração, Ahab tinha alguns vislumbres, tais como: todos os meusmeios são razoáveis; minha motivação e meu objetivo, loucos. No entanto, sempoder para anular, mudar ou evitar o fato; ele sabia que aos olhos da humanidadeele disfarçara durante muito tempo; e, de certo modo, ainda disfarçava. Mas suadissimulação sujeitava-se apenas à sua perceptibilidade, não à sua determinação.Ainda assim, foi tão bem-sucedido em seu disfarce que, quando por fim suaperna de mármore pisou em terra, nenhum habitante de Nantucket pensou outracoisa, senão que ele estivesse apenas naturalmente triste, e isso, de pronto, devidoao acidente terrível que havia sofrido.

O relato de seu indiscutível delírio no mar também foi amplamente justificadopor uma causa semelhante. E, da mesma forma, as mudanças de seu humor quesempre desde então, até o dia da partida do Pequod para a presente viagem,

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apareciam estampadas em seu rosto. Também não é improvável que, longe dedesqualificar sua aptidão para outra viagem baleeira, considerados os sinais tãosombrios, as pessoas astutas daquela ilha prudente se sentiam inclinadas a darguarida à idéia de que, por essas mesmas razões, ele estivesse mais capacitado epreparado para uma perseguição tão repleta de fúria e selvageria quanto asangrenta caça às baleias. Atormentado por dentro e ferido por fora, com as duraspresas de uma idéia incurável nele cravadas; alguém como ele, poderiam dizer,parecia ser o homem certo para erguer sua lança e arremessar seu ferro contra amais terrível de todas as bestas. Ou, se por qualquer razão, o considerassemfisicamente incapaz de combater, ainda assim seria muito competente para, comberros, animar e incitar os outros ao ataque. Mas, seja como for, certo é que, como desvairado segredo de seu ódio inabalável isolado e trancado em sua alma,Ahab tinha propositadamente embarcado nessa viagem com o único e exclusivoobjetivo de perseguir a Baleia Branca. Tivessem alguns de seus antigos camaradasde terra imaginado metade do que ele ocultava dentro de si, com que prontidãosuas almas honradas e horrorizadas teriam arrancado o navio desse homem tãodemoníaco! Eles queriam uma viagem lucrativa, com o lucro contado em dólaresda Casa da Moeda. Ahab estava determinado a conseguir uma vingançaaudaciosa, implacável e sobrenatural.

Assim, pois, estava esse velho homem, grisalho e sem Deus, perseguindo commaldições a baleia de Jó ao redor do mundo, comandando uma tripulaçãocomposta basicamente de mestiços renegados, náufragos e canibais – tambémdebilitados moralmente pela incompetência da mera virtude ou honradezperdida de Starbuck, pela invulnerável jovialidade, indiferente e despreocupadade Stubb, e pela mediocridade que prevalecia em Flask. Tal tripulação, com taisoficiais, parecia ser especialmente selecionada e reunida por uma fatalidadediabólica para ajudá-lo em sua vingança monomaníaca. Por quais motivos elesreagiram tão vigorosamente à ira do velho – que feitiço diabólico tomou conta deseus espíritos, a ponto de às vezes acreditarem ser sua a raiva de Ahab; e a BaleiaBranca, inimiga inatingível, tão sua quanto dele; como é possível – o que a BaleiaBranca representava para eles, ou como em sua compreensão inconsciente, dealgum modo obscuro e insuspeito, ela parecia ter sido o grande demônioimperceptível dos mares da vida, – para explicar isso tudo, seria necessário irmais fundo do que Ishmael consegue. O mineiro subterrâneo que trabalha emtodos nós, como pode alguém dizer para onde seu cabo conduz somente peloruído abafado, nunca estático, de sua picareta? Quem não sente o arrastarirresistível do braço? Que esquife rebocado por um navio de setenta e quatrocanhões pode ficar parado? Quanto a mim, cedi ao abandono das circunstâncias edo lugar; e, ainda que estivesse apressado para enfrentar a baleia, não podia ver

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naquela criatura coisa alguma além da maldade mais fatal.

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42 A BRANCURADA BALEIA

O que a baleia branca era para Ahab, foi sugerido; o que era,por vezes, para mim, resta ainda dizer.

À parte as considerações mais óbvias a respeito de Moby Dick, queocasionalmente despertavam apreensões na alma de qualquer um, havia umoutro pensamento, ou melhor, um horror impreciso e inominável a seu respeitoque, às vezes, superava todo o resto por sua intensidade; e tão místico e alheio àexpressão, como era, que chego a desesperar de tentar colocá-lo em formacompreensível. Era a brancura da baleia que, acima de tudo, me pasmava. Mascomo posso ter a esperança de me explicar aqui? E, contudo, de modo difuso ealeatório, explicar-me é preciso, ou todos esses capítulos podem reduzir-se a nada.

Ainda que em muitos objetos naturais a brancura realce com refinamento suabeleza, como se lhe transmitisse alguma virtude própria, como nos mármores,camélias e pérolas; e ainda que várias nações tenham reconhecido de algummodo uma proeminência real desse matiz sobre os demais; mesmo os antigos epoderosos reis de Pegu colocando o título de “Senhor dos Elefantes Brancos”acima de todas as outras atribuições magniloqüentes de domínio; e os modernosreis de Sião desfraldando o mesmo quadrúpede branco como a neve em seuestandarte real; e a flâmula de Hanover mostrando uma única figura, a de umamontaria branca como a neve; e o poderoso Império Austríaco, herdeiro Cesáreoda Roma soberana, tendo como cor imperial o mesmo matiz; e ainda que essaproeminência se aplique à própria raça humana, concedendo ao homem brancoo domínio ideal sobre toda tribo escura; e ainda que, além disso tudo, a brancuratenha até significado alegria, pois entre os romanos uma pedra branca marcavaum dia de júbilo; e ainda que em outras mortais simpatias e simbologias estemesmo matiz seja o emblema de coisas nobres e tocantes – a inocência dasnoivas, a benignidade da velhice; ainda que entre os peles-verme-lhas da Américapresentear com um cinturão branco de conchas, o wampum, fosse a maisprofunda penhora da honra; e ainda que em muitos climas o branco represente amajestade da Justiça no arminho do Juiz e contribua para o fausto diário de reis erainhas transportados por corcéis brancos como o leite; e ainda que nos mistériosmais elevados das religiões mais augustas tenha se tornado o símbolo doimaculado e do poder divino; entre os Persas adoradores do fogo, a chama brancabifurcada sendo a mais sagrada do altar; e nas mitologias gregas, o Poderoso Joveencarnando um touro branco como a neve; e ainda que para o nobre Iroquês o

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sacrifício do Cachorro Branco sagrado no meio do inverno fosse de longe o ritualmais sagrado de sua teologia, sendo essa criatura imaculada e fiel considerada aoferenda mais pura que podiam enviar ao Grande Espírito, junto aos votos anuaisde sua própria fidelidade; e ainda que diretamente da palavra Latina para brancotodos os padres Cristãos derivem o nome de uma parte de sua veste sagrada, aalva ou túnica, usada embaixo da batina; e ainda que nas pompas sacras da féRomana, o branco seja especialmente usado para a comemoração da Paixão doSenhor; e ainda que na visão de São João o manto branco seja dado aosredimidos, e os vinte e quatro anciãos estejam vestidos de branco diante dogrande trono branco, e o Santíssimo, que ali se senta branco como a lã; mesmo adespeito dessa reunião de associações a tudo que é encantador, respeitável esublime, insinua-se algo furtivo na idéia mais íntima desse matiz, que incute maisde pânico na alma do que o vermelho que amedronta o sangue.

Essa qualidade furtiva é que faz com que a idéia de brancura, quandodivorciada de associações benévolas, e em par com um objeto terrível, agrave oterror ao seu limite mais extremo. Veja o urso polar, e o tubarão branco dostrópicos; que outra coisa senão sua brancura lisa ou encarquilhada faz com quesejam os horrores transcendentes que são? É essa brancura horripilante quetransmite uma suavidade abominável, mais repugnante do que terrível, àsatisfação muda e maligna de seu aspecto. De modo que nem o tigre, de garrasferozes em seu manto heráldico, consegue abalar tanto a coragem quanto o urso,ou o tubarão, de branca mortalha.{a}

Pense no albatroz, de onde vêm aquelas nuvens de alumbramento espiritual ede pálido pavor, em meio às quais esse fantasma branco plana em todas asimaginações? Não foi Coleridge quem primeiro lançou o feitiço; mas a grandiosa,laureada e nunca lisonjeira Natureza divina.{b}

A história mais famosa em nossos anais do Oeste e nas tradições indígenas é ado Corcel Branco das Pradarias; um magnífico cavalo branco como o leite, deolhos grandes e cabeça pequena, peito amplo, e com a dignidade de milmonarcas em seu porte altivo e desdenhoso. Foi o Xerxes eleito de todos osenormes bandos de cavalos selvagens, cujas pastagens, naquele tempo, tinhampor único limite as montanhas Rochosas e os Alleghanies. Com sua liderançaflamejante comandava-os para o oeste como a estrela eleita que todas as noitestraz consigo legiões de luzes. A cascata reluzente de sua crina e o cometa recurvode sua cauda investiam-no com adornos mais resplandecentes do que poderiamlhe oferecer os melhores artesãos de ouro e prata. Uma aparição imperial earcangélica naquele mundo do ocidente não decadente, que aos olhos dos velhosarmadores e caçadores fazia reviver a glória dos tempos primevos, quando Adãocaminhava majestoso como um deus, enfunado e destemido como esse cavalo

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poderoso. Quer marchasse entre os seus ajudantes e marechais à frente dasinúmeras coortes que serpenteavam interminavelmente pelas planícies, como umOhio; quer pastasse com seus súditos, dando voltas por toda parte até ohorizonte, o Corcel Branco, a galope, os passava em revista, com suas narinasquentes se avermelhando através de sua brancura leitosa e fresca; sob qualqueraspecto que se apresentasse, para os Índios mais corajosos era sempre objeto derespeito e trêmula reverência. Também não se pode questionar, a julgar pelosregistros lendários sobre esse nobre animal, que era especialmente sua brancuraespiritual que assim o revestia de divindade; e que essa divindade, emborainspirasse adoração, ao mesmo tempo reforçava um certo terror inominável.

Mas há outros exemplos nos quais a brancura perde toda essa glória estranha eacessória que envolve o Corcel Branco e o Albatroz.

O que há no Albino de tão repugnante e muitas vezes terrível, que ele é porvezes odiado por seus próprios amigos e parentes! É a brancura que o cobre, algoque se expressa pelo nome que carrega. O Albino é tão bem feito quantoqualquer outro homem – não tem uma deformidade substantiva –, e, no entanto,seu aspecto de brancura absoluta torna-o mais estranhamente medonho do que omais horrível dos abortos. Por que será?

Tampouco em outros aspectos a Natureza, por seus meios menos palpáveis,mas não por isso menos maliciosos, deixou de juntar às suas forças esse régioatributo do terrível. Por seu aspecto nevado, o fantasma de luvas dos Mares do Sulfoi denominado Branca Tormenta. Tampouco, em certos casos históricos, a arteda maldade humana deixou de lado a ação de um auxiliar tão poderoso. Comoreforçou o efeito daquela passagem de Froissart, quando, mascarados com osímbolo alvo de sua facção, os desesperados Chapéus Brancos de Ghentassassinaram seu bailio na praça do mercado!

Nem tampouco, em algumas coisas, a experiência hereditária comum a toda ahumanidade deixou de testemunhar o aspecto sobrenatural desse matiz. Não sepode duvidar de que a característica visível no aspecto de um defunto que maisassusta o observador é a palidez marmórea que ali jaz; como se de fato aquelapalidez fosse tanto o emblema da consternação no outro mundo, como daatribulação mortal neste daqui. E da palidez dos defuntos emprestamos o matizexpressivo das mortalhas com as quais os envolvemos. Nem mesmo em nossassuperstições deixamos de jogar o mesmo manto nevado sobre os nossosfantasmas; todos os espectros surgem em meio a uma neblina branca como leite– Sim, enquanto estes terrores nos assaltam, acrescentemos que mesmo o rei dosterrores, quando personificado pelo evangelista, cavalga um cavalo branco.

Portanto, ainda que ele, sob outras paixões, simbolize qualquer coisa grandiosaou graciosa por meio do branco, nenhum homem pode negar que, em seu

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significado ideal mais profundo, essa cor invoca na alma uma aparição peculiar.Mas ainda que sobre este ponto não haja dissenso, como o homem o explica?

Pareceria impossível analisá-lo. Será que podemos, então, citando alguns casosnos quais essa questão da brancura – que embora provisoriamente despida, totalou parcialmente, de todas as associações diretas que nos levem aoreconhecimento do terror, ainda exerce sobre nós o mesmo feitiço, contudomodificado; – podemos, dessarte, ter a esperança de lançar alguma luz sobre umapista casual que nos conduza à causa oculta que buscamos?

Tentemos. Mas, num assunto como esse, sutileza demanda sutileza, e sem usara imaginação nenhum homem consegue acompanhar um outro por estes salões.E embora, sem dúvida, pelo menos algumas das impressões imaginativas prestesa ser apresentadas possam ter sido sentidas por grande parte dos homens, talvezpoucos deles tivessem plena consciência então, e, por isso, talvez não sejam maiscapazes de lembrá-las agora.

Por que, para o homem de imaginação sem brida que conhece apenasvagamente as características desse dia, a simples menção do Domingo Branco criaem sua fantasia uma longa procissão silenciosa e sombria de peregrinoscaminhando lentamente, deprimidos e cobertos de neve recém-caída? Ou para osbroncos, brutos protestantes do centro dos Estados Unidos, por que a referênciaocasional a um frade ou a uma freira vestidos de branco invoca uma estátua semolhos na alma?

Ou o que é que, além das tradições de guerreiros e reis atirados ao calabouço(que não explicam isso inteiramente), torna a Torre Branca de Londres tão maisfértil na imaginação do norte-americano de província, do que outras estruturashistóricas, vizinhas – a torre Byward, ou mesmo a Bloody? E as torres ainda maissublimes, as Montanhas Brancas de New Hampshire, de onde, em certasdisposições de humor, vem aquela alucinação gigantesca na alma à simplesmenção de seu nome, enquanto a idéia da Serra Azul da Virgínia é repleta desonhos meigos, orvalhados e difusos? Ou por que, a despeito de todas as latitudese longitudes, o nome do Mar Branco exerce uma impressão tão fantasmagóricasobre a imaginação, enquanto o Mar Amarelo nos embala com pensamentosmortais de tardes longas, brilhantes e amenas sobre as ondas, seguidas dos maisagradáveis e indolentes poentes? Ou então, para escolher um exemplo totalmenteirreal, endereçado à fantasia, por que, ao ler os antigos contos de fadas da EuropaCentral, o “homem pálido e alto” das florestas de Hartz, cujo palor imutáveldesliza silenciosamente pelo verde dos arvoredos – por que esse fantasma é maisterrível do que todos os demônios barulhentos de Blocksburg?

Tampouco é, unicamente, a recordação de seus terremotos, destruidores decatedrais; nem o estampido de seus mares frenéticos; nem a secura de seus áridos

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céus que nunca chovem; nem a visão de seu vasto campo de torres inclinadas,cúpulas alquebradas e cruzes derrubadas (como as vergas inclinadas das frotasancoradas); nem suas avenidas suburbanas onde as paredes das casas seempilham umas sobre as outras, como um baralho em desordem – não são essascoisas isoladamente que fazem de Lima, cidade sem lágrimas, a mais estranha etriste que tu poderias ver. Pois que Lima vestiu o véu branco; e existe um horrorsupremo na brancura de sua desgraça. Antiga como Pizarro, essa brancuramantém suas ruínas sempre novas; não admite o verdor alegre da ruínacompleta; espalha por toda sua fortificação destruída a palidez rígida de umaapoplexia que corrige suas próprias distorções.

Bem sei que, na opinião da maioria, não se admite que o fenômeno dabrancura seja o agente principal a realçar o terror dos objetos já em si terríveis;nem para as mentes sem imaginação há algo de terrível naquelas aparências, cujohorror, para um outro tipo de mente, consiste quase que exclusivamente nessefenômeno, ainda mais quando se apresenta sob uma forma que se aproxime dosilêncio ou da universalidade. O que quero dizer com essas duas afirmações talvezpossa ser elucidado pelos seguintes exemplos.

Primeiro: O marujo, quando se aproxima da costa de terras desconhecidas, seà noite escuta o rugir das ondas, fica vigilante, e sente um palpitar que lhe aguçaas faculdades; mas, em circunstâncias muito similares, espere vê-lo ser chamadoa sair da rede para contemplar seu navio velejando no mar noturno de umabrancura leitosa – como se, vindos dos promontórios das cercanias, bandos deursos brancos de pêlos alisados nadassem à sua volta, e então ele sente um medomudo e supersticioso; a mortalha espectral das águas embranquecidas lhe é tãoterrível quanto um verdadeiro fantasma; em vão o comando lhe assegura queainda estão longe das águas rasas; coração e leme ambos baixam; e ele nãodescansa até que esteja outra vez sobre águas azuis. Mas que marujo diria:“Senhor, não foi tanto o medo de bater nos rochedos submersos que me deixouagitado, mas o medo daquela brancura hedionda”?

Segundo: Para o Índio nativo do Peru, a contínua visão dos Andes e seusbaixeiros de neve não transmite pavor, exceto, talvez, pelo simples imaginar daeterna desolação congelada que reina em altitudes tão vastas, e a idéia natural doterror que seria perder-se em solidões tão inóspitas. O mesmo sucede com ohomem das florestas do Oeste, que com uma relativa indiferença contempla umapradaria sem limites coberta pela neve, nem sombra de árvore ou galho quequebre o transe imóvel da brancura. Já não é assim com o marinheiro diante docenário dos mares Antárticos; no qual, às vezes, por um ardil infernal deprestidigitação das potências do ar e do gelo, tremendo e a ponto de naufragar,em lugar de avistar um arco-íris que pudesse lhe trazer conforto e esperança em

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sua desgraça, vê o que parece um cemitério imenso que range à sua frente comseus monumentos de gelo inclinados e cruzes estilhaçadas.

Mas, dizes tu, julgo que este capítulo alvaiadado sobre a brancura é apenasuma bandeira branca desfraldada por um espírito covarde; tu te rendeste àmelancolia, Ishmael.

Diga-me, então, por que esse potro jovem e forte, criado num vale pacífico deVermont, longe dos animais predadores – por que é que se atrás dele se agitar, nodia mais ensolarado, uma veste feita de búfalo, de tal modo que ele nem a possaver, mas apenas sentir seu cheiro animal almiscarado –, por que ele irá sesobressaltar, resfolegar e começar a patear a terra com os olhos esbugalhadosnum frenesi assustado? Não há nele recordação de ataques de criaturas selvagensde sua terra verde setentrional, de modo que o estranho almíscar que sente nãopode suscitar lembranças de coisa alguma associada à experiência de perigosanteriores. O que sabe esse potro da Nova Inglaterra sobre os bisões negros dodistante Oregon?

Não! Mas aqui se vê, mesmo num animal que não fala, o instinto doconhecimento do demonismo no mundo. Ainda que a milhares de milhas doOregon, quando sente aquele almíscar selvagem, as manadas de bisões quechifram e atacam se tornam tão presentes como o são para o abandonado potroselvagem das pradarias, que naquele instante pode estar sendo pisoteado napoeira.

Assim, então, as ondulações sufocadas do mar leitoso; o ruído triste do gelodos festões das montanhas; os deslocamentos melancólicos da neve amontoadana pradaria; para Ishmael, tudo isso é equivalente ao agitar a veste de búfalo parao potro assustadiço!

Embora ninguém saiba onde ficam essas coisas inomináveis cujos sinaismísticos oferecem essas indicações, tanto para mim quanto para o potro, algurestais coisas devem existir. Embora em muitos de seus aspectos o mundo visívelpareça ser feito de amor, as esferas invisíveis foram feitas de medo.

Mas ainda não resolvemos a magia dessa brancura, e nem sabemos por quetem um apelo tão poderoso na alma; e ainda mais estranha e muito maisprodigiosa – por que, como vimos, é ela simultaneamente o símbolo maissignificativo das coisas espirituais, o próprio véu da Divindade Cristã; e, contudo,o agente intensificador nas coisas que mais aterrorizam a humanidade.

Será que, por sua indefinição, ela obscurece os vácuos e as imensidõesimpiedosas do universo, e dessa forma nos apunhala pelas costas com a idéia daaniquilação quando contemplamos as profundezas brancas da Via Láctea? Ou seráque o branco, em sua essência, não é uma cor, mas a ausência visível de cor, e, aomesmo tempo, a fusão de todas as cores; será que são essas as razões pelas quais

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existe um espaço em branco, repleto de significado, na ampla paisagem dasneves – um ateísmo sem cor e de todas as cores do qual nos esquivamos? Equando consideramos a outra teoria dos filósofos naturais, segundo a qual todasas outras cores terrenas – todos os adornos imponentes ou atraentes –, os tonssuaves do céu e da floresta no crepúsculo; sim, e o veludo dourado dasborboletas, e a borboleta dos lábios das moças; tudo isso não passa de ilusõessutis, que não são em verdade inerentes às substâncias, mas apenas formasexteriores; de tal modo que toda a Natureza deificada se pinta como a prostituta,cuja sedução cobre apenas a câmara mortuária dentro de si; e se formos maisalém, e imaginarmos que o místico cosmético que produz cada um de seusmatizes, o grande princípio da luz, permanecesse sempre branco ou sem cor emsi, e se agindo sem mediação sobre a matéria tocasse todos os objetos, mesmo astulipas e as rosas, com sua própria tinta ausente – pensando nisso tudo, ouniverso paralisado quedaria leproso diante de nós; e como os viajantesobstinados na Lapônia, que se recusam a usar lentes coloridas ou corantes nosolhos, assim também o condenado infiel se vê cego diante da monumentalmortalha branca que envolve toda a perspectiva à sua volta. E de todas essascoisas a baleia albina é o símbolo. Surpreende-te ainda a ferocidade da caçada?

{a} Com referência ao Urso polar, é possível ser argumentado por aquele que de bom grado queira ir aindamais fundo nesse assunto que não é a brancura, tomada em separado, que agrava a intolerável hediondezdo animal; porque, analisada, a hediondez agravada, pode-se dizer, origina-se da circunstância de que aferocidade irresponsável da criatura está investida no tosão da inocência celestial e do amor; e assim, sejuntarmos duas emoções tão diferentes em nossas mentes, o Urso polar nos assusta com esse contraste tãopouco natural. Mas, mesmo que isso tudo seja verdade; se não pela brancura, não se sentiria um terrortão intenso.

Quanto ao tubarão branco, o aspecto fantasmal, branco e deslizante da calma dessa criatura, quandoconsiderada em seus humores normais, corresponde estranhamente à mesma qualidade do quadrúpedepolar. Essa peculiaridade é mais bem percebida pelos franceses, pelo nome que consagram a tal peixe. Amissa romana dos mortos começa com Requiem eternam (repouso eterno), de onde vem Requiem, adenominar a própria missa e todas as demais músicas fúnebres. Portanto, aludindo à imobilidade demorte, silenciosa e branca desse tubarão, e à mortalidade branda de seus hábitos, os franceses chamam-no de Requin. [N. A.]

{b} Lembro-me do primeiro albatroz que vi. Foi durante uma longa tormenta, nas águas turbulentas dosmares antárticos. Do meu turno da manhã, embaixo, subi para o convés nublado; e lá, projetado noconvés principal, vi uma coisa magnífica, em suas penugens de brancura imaculada, e com um bicoadunco e sublime como um nariz romano. De vez em quando arquejava suas grandes asas de arcanjo,como se cobrisse uma arca sacrossanta. Fantásticas palpitações e vibrações agitavam-no. Ainda que ocorpo não estivesse ferido, soltava gritos, como o espectro de um rei em angústia sobrenatural. Em seusolhos estranhos e inexpressivos pensei ver segredos que chegavam até Deus. Como Abraão diante dosanjos, inclinei-me; aquela coisa branca era tão branca, suas asas tão vastas, e naquelas águas de perpétuoexílio, eu perdera as memórias que trouxera a reboque de tradições e cidades. Durante algum tempofiquei admirando aquele prodígio emplumado. Não sei dizer, só sugerir, as coisas que, então, passavampela minha cabeça. Mas por fim despertei e me virando perguntei a um marinheiro que pássaro eraaquele. Um goney, ele respondeu. Goney! Nunca tinha ouvido esse nome antes; seria possível que aquelacoisa gloriosa fosse totalmente desconhecida pelos homens da terra? Não! Mas algum tempo depois

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descobri que goney era o nome que os marinheiros davam ao albatroz. De modo que não haviapossibilidade de a Balada insana de Coleridge ter relação com as minhas impressões místicas, quando vio pássaro em nosso convés. Pois naquela ocasião ainda não tinha lido a Balada, nem sabia que pássaro erao albatroz. Contudo, ao dizer isso, não faço senão conferir indiretamente um pouco mais de brilho aos jáem si brilhantes méritos do poema e do poeta.

Afirmo, então, que em sua brancura maravilhosa se esconde principalmente o segredo do feitiço; umaverdade ainda mais evidente por esse solecismo que é o de haver aves chamadas albatrozes cinza; eessas, vi-as muitas vezes, mas nunca com a mesma emoção que senti quando vi a ave Antártica.

Mas como essa criatura mística tinha sido apanhada? Não espalhe, que eu conto: com anzol e linhatraiçoeiros, enquanto a ave flutuava sobre o mar. Por fim, o Capitão transformou-a num mensageiro;amarrando em seu pescoço uma etiqueta de couro, na qual estava escrita a data e a posição do navio; edepois a soltando. Mas não duvido que a etiqueta de couro, destinada aos homens, tenha sido tirada noCéu, quando a ave branca voou para se juntar ao alado, evocado e adorado querubim! [N. A.]

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43 ESCUTE!

“Psiu! Você ouviu esse barulho, Cabaco?”Foi durante o turno da meia-noite: uma lua bonita; os marujos em pé, num

cordão que se estendia de uma das pipas de água fresca no poço até a pipa daescotilha, próxima à grinalda. Desse modo, passavam os baldes para encher apipa da escotilha. De pé, em sua maior parte, nos limites sagrados do convés,tomavam cuidado para não falar e nem arrastar os pés. Os baldes eramtransportados de mão em mão no mais profundo silêncio, quebrado apenas poruma fortuita agitação da vela ou pelo zumbido contínuo da quilha queincessantemente avançava.

Foi em meio a essa tranqüilidade que Archy, um dos que estava no cordão,cujo lugar era perto da escotilha da popa, sussurrou para o seu vizinho, umCholo, aquelas palavras.

“Psiu! Você escutou esse barulho, Cabaco?”“Pegue o balde, Archy. Que barulho?”“De novo – aí embaixo da escotilha –, não está ouvindo? – uma tosse – parece

uma tosse.”“Dane-se a tosse! Passe logo o balde vazio.”“De novo – ouviu? –. Parecem duas ou três pessoas se virando enquanto

dormem!”“Caramba! Pare com isso, companheiro, certo? São os três biscoitos

encharcados que você comeu no jantar que estão se revirando dentro de você –nada mais. Preste atenção no balde!”

“Diga o que quiser, companheiro; eu tenho bom ouvido.”“É isso mesmo, não foi você que escutou aquelas senhoras Quacres fazendo

tricô a cinqüenta milhas de Nantucket? Foi, não foi?”“Pode rir à vontade; veremos o que vai acontecer. Escute aqui, Cabaco, tem

alguém aí embaixo no porão que ainda não apareceu no convés; e suspeito quenosso velho Grão-Mogol está sabendo. Escutei Stubb dizer a Flask, numa ronda demanhã, que tinha alguma coisa assim no ar.”

“Ei! O balde!”

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44 A CARTA

Tivesse descido com o Capitão Ahab à sua cabine depois datormenta que tomou lugar na noite seguinte à da impetuosa ratificação de seupropósito junto à tripulação, você o teria visto se dirigir a um armário entre osgios e, trazendo um enorme rolo franzido de cartas marítimas, espalhá-las diantede si sobre a mesa atarraxada ao chão. Em seguida, sentado diante delas, você oteria visto estudar atentamente as várias linhas e sombras que ali encontravamseus olhos; e com lápis lento mas firme traçar rotas adicionais em espaços queantes estavam em branco. Era possível, às vezes, vê-lo em consulta às pilhas develhos diários de bordo que o cercavam, nos quais estavam indicados as estaçõese locais em que, em diversas viagens anteriores de diversos outros navios, oscachalotes haviam sido capturados ou vistos.

Enquanto assim se ocupava, a pesada lamparina de estanho suspensa porcorrentes sobre sua cabeça balançava continuamente com o movimento do navioe jogava contínuos raios e sombras de linhas sobre seu cenho franzido, até quasefazer parecer que, enquanto ele próprio marcava linhas e rotas nos mapasfranzidos, algum lápis invisível também traçava linhas e rotas no mapaprofundamente marcado de seu rosto.

Mas não era nessa noite em particular que, na solidão da sua cabine, Ahabassim meditava sobre suas cartas. Quase todas as noites elas eram trazidas; quasetodas as noites algumas marcas a lápis eram apagadas e substituídas por outras.Pois, com as cartas de todos os quatro oceanos diante de si, Ahab tecia umlabirinto de correntes e sorvedouros, almejando uma realização mais seguradaquele pensamento monomaníaco de sua alma.

Ora, para qualquer um que não estivesse plenamente familiarizado com oscaminhos dos Leviatãs, poderia parecer uma tarefa absurda e irrealizável procurarassim uma solitária criatura nos oceanos inestocáveis deste planeta. Mas não era oque parecia para Ahab, que conhecia os modos de todas as correntes e marés; eassim, calculando os deslocamentos da comida do cachalote; e trazendo à mentecom exatidão as estações de caça em determinadas latitudes; poderia chegar asuposições razoáveis, quase aproximadas da certeza, sobre o dia mais propíciopara estar numa ou noutra região atrás de sua presa.

Tão precisa, de fato, é a periodicidade com que o cachalote freqüenta certaságuas, que muitos pescadores acreditam que, pudesse ele ser observado eestudado no mundo inteiro; fossem os diários de bordo de toda rota baleeira

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cuidadosamente cotejados, então as migrações do cachalote corresponderiaminvariavelmente às dos cardumes de arenques ou aos vôos das andorinhas.Baseadas nessas indicações, foram feitas tentativas de criar elaborados mapasmigratórios do cachalote.{a}

Além disso, fazendo a passagem de uma região alimentícia para outra, oscachalotes, guiados por algum instinto infalível – digamos, quiçá por umainteligência secreta da Divindade –, em sua maioria nadam em veias, como sãochamadas; seguindo seu caminho ao longo de uma certa linha do oceano comuma exatidão tão constante que nenhum navio, com todas as cartas marítimas,jamais conseguiu fazer sua rota com um décimo dessa maravilhosa precisão.Ainda que, nesses casos, a direção tomada por qualquer baleia fosse tão retacomo a régua de um topógrafo, e ainda que a linha de seu percurso fosserigidamente confinada a seu rastro direto e reto, às vezes, a veia arbitrária, noqual o cachalote nessas ocasiões nada, em geral tem algumas poucas milhas delargura (mais ou menos, dado que a veia pode se expandir ou contrair); masnunca excede o campo visual dos topos de mastro dos navios baleeiros, quandoestes deslizam cautelosamente por esta zona mágica. A conclusão é que, emperíodos especiais, dentro daquele limite, e ao longo daquele caminho, se podeprocurar com grande confiança por baleias migrantes.

E assim, não apenas em horas confirmadas, em zonas de engorda bemconhecidas e delimitadas, Ahab podia ter esperanças de encontrar sua presa; mastambém, cruzando as extensões mais vastas das águas entre essas áreas elepoderia, com sua habilidade, colocar-se em seu caminho no tempo e no espaço,de modo a não perder inteiramente a perspectiva de um encontro.

Havia uma circunstância que, à primeira vista, parecia dificultar seu planodelirante e, não obstante, metódico. Mas talvez não na realidade. Embora osgregários cachalotes tenham temporadas regulares em zonas específicas, contudonão se pode concluir que os bandos que assolaram esta ou aquela latitude oulongitude em tal ano, digamos, sejam exatamente idênticos aos que foramencontrados ali na estação precedente; embora existam alguns casos especiais eexemplos inquestionáveis em que o contrário se provou verdadeiro. Em geral, amesma observação, apenas limitada a um campo menos extenso, aplica-se aoscachalotes solitários e eremitas, na maturidade ou na velhice. De tal modo que,se Moby Dick tivesse sido avistado, por exemplo, num ano anterior, na regiãochamada Seychelles no oceano Índico, ou na baía do Vulcão na costa Japonesa;disso não se depreendia que, se o Pequod visitasse um desses lugares natemporada correspondente seguinte, haveria infalivelmente de encontrá-lo ali.Assim, também, ocorria em outras zonas de engorda, onde houvesse por vezes serevelado. Mas todos esses lugares pareciam ser apenas estalagens do mar e pontos

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de parada casuais, por assim dizer, não seus locais de estada prolongada. E ondeas chances de Ahab atingir seu objetivo foram mencionadas, alusões foram feitasapenas a alguma perspectiva de direção, antecedente, inusitada, antes de sechegar a um lugar e tempo determinados, em que todas as possibilidades setornam de fato probabilidades, e, como gostava de pensar Ahab, todaprobabilidade estaria a um passo da certeza. Esse lugar e esse tempodeterminados se engendravam numa única frase técnica: a Temporada-no-Equador. Pois neste quando e onde, durante muitos anos consecutivos, MobyDick havia sido avistado periodicamente, permanecendo por algum temponaquelas águas, como o sol, na sua volta anual, se demora por um tempo previstoem cada um dos signos do Zodíaco. Havia sido ali, também, que a maior partedos encontros fatais com a baleia branca ocorrera; ali as ondas guardavamhistórias de seus feitos; ali também, naquele trágico local, o velho monomaníacohavia encontrado o terrível motivo de sua vingança. Mas, com o cautelosoentendimento e a assídua vigilância com que Ahab lançou sua alma arisca nessacaçada resoluta, ele não se permitiria depositar todas as suas esperanças no únicofato supremo mencionado acima, ainda que propenso fosse a tais esperanças;nem mesmo na vigília de seu juramento ele conseguia tranqüilizar seu inquietocoração no sentido de adiar toda busca ocasional.

Ora, o Pequod partira de Nantucket no começo da Temporada-no-Equador.Nenhum esforço possível poderia, então, impedir seu comandante de completar agrande travessia rumo ao sul, dobrar o cabo Horn e então, pondo-se a sessentagraus de latitude, chegar ao Pacífico equatorial a tempo de cruzar a região. Poresse motivo, ele precisava esperar pela próxima estação. Mas a hora prematura dapartida do Pequod talvez tenha sido corretamente escolhida por Ahab, haja vistaesta complexidade de elementos. Pois um intervalo de 365 dias e noites estavadiante dele; um intervalo que, em vez de suportar impacientemente em terra, elepassaria numa caçada variada; se por acaso a Baleia Branca, passando suas fériasem mares muito distantes de sua costumeira zona de engorda, viesse a mostrarseu cenho franzido perto do golfo Pérsico, ou na baía de Bengala, ou nos maresda China, ou em quaisquer outras águas assoladas por sua espécie. De modo queMonções, Pampeiros, Noroestes, Harmatões, Alísios; todos os ventos, exceto oLevante e o Simum, poderiam impelir Moby Dick para o ziguezague errante daesteira do Pequod em sua circunavegação do mundo.

Mas, com tudo isso admitido; no entanto, reconsiderando-se com prudência ecalma, parecia não passar de uma idéia insana, esta; que, no largo oceanoimenso, uma única baleia, mesmo que fosse encontrada, pudesse ser reconhecidaindividualmente por seu caçador, quase como um Mufti de barbas brancasatravés das abarrotadas ruas de Constantinopla? Não. Pois o cenho nevado de

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Moby Dick, bem como sua nívea corcova não podiam ser senão inconfundíveis. Eeu não marquei o cachalote? – murmuraria Ahab como se, depois de se debruçarsobre as cartas até bem depois da meia-noite, ele se deixasse levar por devaneios –marquei, e ele vai fugir? Suas grossas barbatanas estão furadas e fatiadas como aorelha de uma ovelha desgarrada! E, aqui, sua mente enlouquecida disparavanuma corrida ofegante; até que o cansaço e a fraqueza de tanto pensarultrapassavam-no; e no ar puro do convés ele procurava recuperar suas forças.Deus, que transes de tormentos suporta o homem consumido por umincomensurável desejo de vingança! Dorme com os punhos cerrados; e acordacom suas próprias unhas sangrentas cravadas nas palmas das mãos.

Muitas vezes, arrancado à noite de sua rede por sonhos exaustivos einsuportavelmente reais, os quais, continuando seus intensos pensamentos atravésdo dia, carregavam esses pensamentos numa conflagração de frenesis, e os faziamrodopiar, voltas e mais voltas, em seu cérebro ardente, até que o próprio pulso deseu cerne vital se tornasse insuportável angústia; e quando, como às vezes era ocaso, esses espasmos espirituais erguiam-lhe o ser de sua base, e um precipícioparecia se abrir dentro dele, do qual disparavam labaredas e raios bifurcados, edemônios amaldiçoados convidavam-no a pular para junto deles; quando esteinferno dentro de si escancarava suas bocas embaixo dele, um grito selvagem seouviria pelo navio; e com os olhos dardejantes Ahab sairia de sua cabine, como seescapasse de um leito em chamas. Mas estes, talvez, em vez de serem os sintomasirreprimíveis de alguma fraqueza latente, ou do medo de seu próprio desenlace,fossem os mais puros indícios de sua intensidade. Pois, nessas ocasiões, o loucoAhab, o ardiloso, irreconciliável e tenaz caçador da baleia branca; esse Ahab quetinha ido para sua rede, não era o agente daquilo que o fazia fugir dalihorrorizado mais uma vez. Esse agente era o eterno princípio vital ou almadentro dele; e no sono, estando por algum tempo dissociado da mentediscriminadora, que noutras ocasiões o usava como veículo ou como agenteexterno, esse princípio buscava escapar espontaneamente da escorchantecontigüidade daquela coisa frenética, a qual, naquele momento, não integrava.Mas, como a mente não existe senão atada à alma, portanto deve ter sido essa, nocaso de Ahab, quem dirigia todos os seus pensamentos e suas fantasias para seupropósito supremo; este propósito, por mera tenacidade da vontade, impingiu-secontra deuses e demônios numa espécie de ser independente. Assim, podia vivere queimar implacavelmente, enquanto a vitalidade comum à qual estava ligadafugia horrorizada daquele parto arbitrário e ilegítimo. Portanto, aquele espíritoatormentado que observava do lado de fora dos olhos do corpo, aquele queparecia ser Ahab saindo de seu quarto, era naquela hora apenas uma coisa vazia,um ser sonâmbulo sem forma, um raio de luz viva, é certo, mas sem objeto para

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colorir, e, portanto, a própria vacuidade. Que Deus te ajude, velho: teuspensamentos criaram uma criatura em ti. E aquele cujo pensamento intenso otransformou num Prometeu; um abutre devora-lhe o coração eternamente; e esseabutre é a própria criatura por ele criada.

{a} Depois que isso foi escrito, a afirmação foi felizmente confirmada por uma circular oficial, emitida peloTenente Maury, do Observatório Nacional, de Washington, em 16 de abril de 1851. Segundo a circular,parece que justamente tal carta está em via de ser terminada; e trechos dela são apresentados nacircular. “Esta carta divide o oceano em distritos de cinco graus de latitude por cinco graus de longitude;perpendicularmente, através de cada uma dessas regiões há doze colunas para cada um dos doze meses;e horizontalmente, através de cada região há três linhas; uma para mostrar o número dos dias que foramgastos por mês em cada região, e as outras duas para mostrar o número de dias durante os quais baleias,cachalotes ou francas foram vistos.” [N. A.]

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45 A DECLARAÇÃOJURAMENTADA

Em tanto quanto possa haver de ficção neste livro; e, defato, indiretamente tocando numa ou noutra característica

muito interessante e curiosa dos hábitos do cachalote, o capítulo anterior é, emsua primeira parte, um dos mais importantes que se poderão encontrar nestevolume; mas seu assunto principal requer que sejam alcançados maiores e maisprofundos desenvolvimentos, de modo que seja adequadamente compreendido, emais ainda dissipe a incredulidade que uma profunda ignorância de todo o temapossa induzir em algumas mentes no que concerne à veracidade natural dosprincipais pontos deste caso.

Não me preocupo em desempenhar esta parte de minha tarefametodicamente; mas ficarei satisfeito se produzir a impressão desejada pelascitações em separado dos itens, por mim conhecidos na prática ou por fontesegura de baleeiro; com tais referências, presumo – a conclusão almejadadecorrerá naturalmente.

Primeiro: soube pessoalmente de três casos nos quais a baleia, depois de tersido atingida por um arpão, conseguiu fugir; e, após um intervalo de tempo (emum dos casos, depois de três anos), ela foi novamente atacada pela mesma pessoa,e assassinada; quando os dois ferros foram retirados de seu corpo, ambosapareciam marcados pelo mesmo monograma. Nesse caso em que três anosseparavam o arremesso dos dois arpões; e creio que deve ter sido mais tempo; ohomem que os atirou, viajando durante esse período num navio mercante rumo àÁfrica, desceu à terra, juntou-se a uma expedição de exploração e avançou muitopelo interior, onde viajou por um período de quase dois anos, muitas vezesameaçado por serpentes, selvagens, tigres, vapores venenosos e todos os outrosperigos que acometem a travessia no coração de regiões desconhecidas. Enquantoisso, a baleia atingida por ele também deve ter feito suas viagens; sem dúvida,havia circunavegado o globo três vezes, roçando com suas nadadeiras toda a costada África; mas sem propósito. Tal homem e sua baleia tiveram mais um encontro,e um venceu o outro. Digo que soube pessoalmente de três casos semelhantes aesse; ou seja, em dois deles, vi as baleias sendo abatidas; e, no segundo ataque, vios dois ferros, com as respectivas marcas neles gravadas, sendo posteriormenteretirados do peixe morto. Nesse caso que durou três anos, aconteceu de eu estarno bote ambas as vezes, na primeira e na última; e de, na última vez, reconhecerdistintamente um tipo peculiar de mancha, enorme, embaixo do olho da baleia,

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que eu observara três anos antes. Digo três anos, mas tenho quase certeza de queforam mais. Aqui estão três casos, dos quais tenho pessoalmente, então, oconhecimento da verdade; mas ouvi muitos outros de pessoas de cuja veracidadenão há bases sólidas para a dúvida.

Segundo: é bem sabido na Pesca do Cachalote, apesar da ignorância do mundoem terra firme sobre isso, que há vários exemplos históricos e memoráveis deuma determinada baleia no oceano ter sido, em ocasiões espaçadas no tempo eno espaço, reconhecida pelas pessoas. Por que tal baleia ficou assim marcada nãofoi apenas ou originalmente devido às peculiaridades de seu corpo, distintas dasdemais; pois, por mais peculiar a esse respeito que uma baleia possa de algummodo ser, logo se põe fim a suas peculiaridades matando-a e fervendo-a até quese obtenha um óleo de valor muito peculiar. Não, o motivo foi este: que a partirdas experiências fatais da pesca se difundiu a terrível fama da periculosidade detal baleia, como se fez com Rinaldo Rinaldini, a tal ponto que muitos pescadoresse contentavam em somente cumprimentá-la tocando o gorro de seusimpermeáveis quando percebiam estar navegando ao seu lado, sem buscar ocultivo de uma relação mais íntima. Como os pobres-diabos em terra firme que,encontrando por acaso um homem poderoso e irascível, o saúdam na rua comgestos distantes e moderados, temendo, se ultrapassados os limites da intimidade,receber um sumário sopapo pela presunção.

Mas não apenas cada uma dessas famosas baleias desfrutou de grandenotoriedade individual – não, pode-se falar num reconhecimento oceânico; e nãoapenas foram famosas em vida e agora são imortais nas histórias dos castelos deproa depois de mortas, como também gozaram de todos os direitos, privilégios edistinções de um nome; tiveram tanto renome quanto Cambises ou César. Não éverdade, ó, Tom do Timor!, famoso Leviatã, sulcado como um iceberg, que portanto tempo espreitaste os estreitos orientais desse nome, muito visto a jorrarpelas verdes costas de Ombay? Não é verdade, ó, Jack da Nova Zelândia!, tu quefoste o terror dos navios que arrastavam seus rastros pelas rotas próximas aTattoo! Não é verdade, ó, Morquan!, Rei do Japão, cujo altíssimo jato diziamassumir por vezes a semelhança de uma cruz de neve contra o céu? Não éverdade, ó, Dom Miguel! Cachalote chileno, marcado como velha tartaruga pormísticos hieróglifos no dorso? Em prosa pura e simples, eis quatro baleias tãoconhecidas pelos estudantes da História dos Cetáceos quanto Mario e Sila peloseruditos clássicos.

Mas isso não é tudo. Jack da Nova Zelândia e Dom Miguel, depois de muitasvezes gerar grande destruição em meio a botes de diferentes navios, foram enfimacossados, sistematicamente caçados, perseguidos e mortos por corajosos capitãesde navios baleeiros, que levantaram âncora tendo esse expresso objetivo em vista,

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tal como, encaminhando-se para os bosques de Narragansett, o Capitão Butler deoutrora decidira capturar o famoso selvagem assassino Annawon, o principalguerreiro de Felipe, o Rei Índio.

Não sei onde posso encontrar melhor lugar do que aqui para mencionar umaou duas coisas, que me parecem importantes, no intuito de estabelecer, de formaimpressa, sob todos os aspectos, a razoabilidade de toda a história da BaleiaBranca, e especialmente da catástrofe. Pois este é um daqueles casosdesalentadores, em que a verdade precisa de tanto reforço quanto o erro. Tãoignorante é a maioria dos homens de terra firme no que diz respeito a algumasdas mais simples e palpáveis maravilhas do mundo que, sem a menção de algunsfatos simples, históricos ou não, sobre a pescaria, poderiam desprezar Moby Dickcomo uma fábula monstruosa, ou ainda pior e mais detestável, como hedionda einsuportável alegoria.

Primeiro: ainda que a maioria dos homens tenha uma idéia vaga dos perigosmais comuns da grande pescaria, contudo eles não têm nada como umaconcepção firme e real desses perigos, nem da freqüência com que sãorecorrentes. Talvez uma das razões seja que nem mesmo um entre cinqüentadesses desastres e mortes por acidentes na pescaria chega a ser registradopublicamente pelo país, nem o mais transitório e imediatamente esquecidoregistro. Você acha que aquele pobre coitado, neste momento talvez preso àcorda da baleia além da costa da Nova Guiné, que está sendo arrastado para ofundo do mar pelo Leviatã que mergulha – você acha que o nome do pobrecoitado vai aparecer no obituário do jornal que você vai ler amanhã de manhã nocafé? Não: porque o correio é muito irregular entre aqui e a Nova Guiné. De fato,você já ouviu falar de notícias regulares diretas ou indiretas vindas da NovaGuiné? Ainda assim, digo a você que numa determinada viagem que fiz aoPacífico, entre muitos outros nós entramos em contato com trinta navios, e cadaum deles relatou uma morte causada por baleia, alguns até mais de uma, e trêsperderam a tripulação de um bote. Pelo amor de Deus, economize lamparinas evelas! Nenhum galão é queimado sem que ao menos uma gota de sanguehumano tenha sido derramada.

Segundo: pessoas em terra firme têm mesmo idéias indefinidas de que a baleiaé uma criatura enorme de enorme força; mas percebi que, sempre que conto umcaso específico dessa dupla enormidade, sou apontado significativamente porminha facécia; e então juro por minha alma que não tinha mais intenção de serfacecioso do que Moisés quando escreveu a história das pragas do Egito.

Mas felizmente a questão específica que procuro aqui esclarecer pode serconfirmada por testemunhos inteiramente alheios ao meu. A questão é aseguinte: o Cachalote é em alguns casos forte, inteligente e criteriosamente

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maléfico o suficiente para, com premeditação inequívoca, arrebentar, destruircompletamente e afundar um navio grande; e, acima de tudo, o Cachalote já fezisso.

Primeiro: no ano de 1820, o navio Essex, do Capitão Pollard, de Nantucket,cruzava o oceano Pacífico. Certo dia a tripulação avistou alguns jatos, desceu osbotes e começou a perseguir um bando de cachalotes. Em pouco tempo, váriasbaleias estavam feridas; quando, de repente, uma baleia muito grande queescapara dos botes deixou o bando e irrompeu diretamente contra o navio.Arremessando a cabeça sobre o casco, arrebentou-o de tal forma que em menosde “dez minutos” o navio foi liquidado e afundou. Nem uma tábua do naviojamais se viu desde então. Após duríssimas privações, parte da tripulaçãoalcançou a costa em seus botes. Voltando enfim para casa, o Capitão Pollard umavez mais zarpou para o Pacífico no comando de outro navio, mas os deusesnaufragaram-no de novo contra rochedos submersos e ondas de rebentação; pelasegunda vez seu navio foi totalmente arruinado, e, sem demora abjurando o mar,nunca mais nele se arriscou desde então. Até hoje o Capitão Pollard reside emNantucket. Conheci Owen Chace, que era o primeiro imediato do Essex na épocada tragédia; li a sua narrativa simples e fiel; conversei com seu filho; e tudo isso apoucas milhas do cenário da catástrofe.{a}

Segundo: o navio União, também de Nantucket, estava no ano de 1807totalmente perdido na costa dos Açores por semelhante ocorrência, mas nuncame aconteceu encontrar as autênticas particularidades dessa catástrofe, emborados baleeiros tenha ouvido alusões casuais a ela.

Terceiro: há coisa de dezoito ou vinte anos, o Comodoro J. –, entãocomandante de uma corveta de guerra norte-americana de primeira classe,jantava com um grupo de capitães baleeiros a bordo de um navio de Nantucket,no porto de Oahu, nas ilhas Sandwich. Quando a conversa passou às baleias,agradou ao Comodoro mostrar-se cético quanto à força monumental que lhes eraatribuída pelos senhores profissionais presentes. Negou peremptoriamente, porexemplo, que uma baleia pudesse danificar sua sólida corveta causando umrombo que vazasse sequer um dedal de água. Muito bem; mas havia mais pelafrente. Algumas semanas depois, o Comodoro içou velas com sua indevassávelembarcação rumo a Valparaíso. Mas foi retido no caminho por um imponentecachalote, que lhe pediu alguns momentos para um assunto confidencial. Oassunto consistiu em desferir uma pancada tão forte na embarcação doComodoro, que, com todas as bombas funcionando, foi direto para o porto maispróximo virar a quilha e consertá-la. Não sou supersticioso, mas considero aconversa do Comodoro com a baleia providencial. Saulo de Tarso não seconverteu de sua incredulidade por susto semelhante? Eu sempre digo, o

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cachalote não tolera disparates.Vou referir-me agora às Viagens de Langsdorff, por causa de uma circunstância

menor, de interesse particular para o escritor deste livro. Langsdorff, como sesabe, fazia parte da famosa Expedição de Descobrimento do Almirante RussoKruzenstern, no começo deste século. O Capitão Langsdorff assim começa o seucapítulo dezessete:

“No dia treze de maio, nosso navio estava pronto para zarpar, e no dia seguinteencontrávamo-nos em mar aberto, a caminho de Okhotsk. O tempo estava muitolímpido e belo, mas tão intoleravelmente frio que fomos obrigados a usar casacosde pele. Durante alguns dias tivemos muito pouco vento; apenas no décimo nonodia começou a soprar um forte vento noroeste. Uma baleia de grandezadescomunal, seu corpo era maior do que o próprio navio, estava quase nasuperfície da água, mas não havia sido avistada por ninguém a bordo até omomento em que o navio, que estava a toda vela, se viu praticamente em cimadela, de tal modo que era impossível evitar a colisão. Estávamos, dessarte, emperigo iminente, e então aquela criatura gigantesca, arqueando o dorso, levantouo navio pelo menos três pés fora da água. Os mastros se inclinaram, e as velascaíram umas sobre as outras, enquanto nós que estávamos embaixo corremos aomesmo tempo para o convés, achando que tínhamos batido num rochedo; mas,em vez disso, vimos o monstro grave e solenemente se afastando. O CapitãoD’Wolf concentrou-se imediatamente nas bombas para ver se o navio havia sidoou não danificado pelo choque, mas descobrimos muito felizmente que escaparainteiramente sem estragos.”

Ora, o Capitão D’Wolf, aqui referido como comandante do dito navio, é daNova Inglaterra, e depois de uma longa vida de aventuras incomuns como capitãodo mar hoje vive no vilarejo de Dorchester, perto de Boston. Tenho a honra de serseu sobrinho. Fiz-lhe em particular perguntas sobre esse episódio de Langsdorff.Ele confirmou cada palavra. No entanto, o navio não era grande: umaembarcação Russa, construída na costa da Sibéria e adquirida por meu tio depoisde ter posto em troca a que o trouxera da pátria.

Naquele livro de ponta a ponta viril e de antiquadas aventuras, tão repletotambém de maravilhas verdadeiras – a viagem de Lionel Wafer, um dos velhoscompanheiros de Dampier –, encontrei uma história tão parecida com a que foicitada de Langsdorff que não posso deixar de inseri-la aqui, como exemplocomprobatório, se tal fosse necessário.

Lionel, ao que parece, estava a caminho de “John Ferdinando”, como se chamaa moderna Juan Fernandes. “Em nosso caminho para lá”, diz ele, “cerca dasquatro da manhã, quando estávamos a cerca de cento e cinqüenta léguas daságuas norte-americanas, nosso navio levou um choque terrível, que deixou nossos

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homens tão consternados que mal sabiam onde estavam ou o que pensar; mastodos começaram a se preparar para morrer. E, de fato, o choque foi tãorepentino e tão violento, que tínhamos certeza de que o navio havia atingido umrochedo; mas, quando o susto diminuiu um pouco, lançamos a sonda emedimos, mas não achamos o fundo. (…) A brusquidão do choque fez saltar oscanhões de suas carretas, e vários homens foram sacudidos para fora de suasredes. O Capitão Davis, que estava deitado com a cabeça apoiada em sua arma,foi lançado para fora de sua cabine!” Lionel então continua atribuindo o choque aum terremoto e parece sustentar sua hipótese afirmando que um enormeterremoto, mais ou menos naquela época, de fato fizera grande estrago em terrasEspanholas. Mas eu não me surpreenderia se, na escuridão daquela hora damadrugada, o choque tivesse sido causado por uma baleia submersa, que viesseverticalmente a abalroar o casco por debaixo.

Poderia prosseguir com vários outros exemplos, que fiquei sabendo de um oude outro modo, da enorme força e maldade do cachalote. Mais de uma vez deu-sea saber que o cachalote não apenas perseguiu os botes baleeiros que o atacaram,forçando-os de volta ao navio, mas também o próprio navio, resistindo por muitotempo a todos os arpões que lhe eram atirados do convés. O navio inglês PusieHall pode contar uma história a esse respeito; quanto à sua força, deixe que eulhe diga que há casos em que os cabos presos a um cachalote em fuga, nacalmaria, transferiram sua tensão para o navio e lá ficaram firmes; a baleiaarrastando o enorme casco pelas águas como um cavalo puxa uma carruagem.Também é muito comum observar que, se ao cachalote, depois de atingido, fordado um tempo de recuperação, ele então age não com uma raiva cega, mas complanos obstinados e resolutos de destruição de seus perseguidores; e não deixa deser uma indicação eloqüente de seu caráter o fato de, sendo atacado, elefreqüentemente abrir a boca e se manter nessa posição assustadora por váriosminutos consecutivos. Mas ficarei satisfeito com uma última e mais conclusivailustração; uma notável e significativa ilustração, pela qual você não deixará deperceber que o acontecimento mais maravilhoso deste livro não é apenascomprovado pelos fatos corriqueiros dos dias de hoje, mas que essas maravilhas(como todas as maravilhas) são meras repetições atravessando os tempos; assim,pela milionésima vez, dizemos amém a Salomão – em verdade, não há nada denovo sob o sol.

No sexto século cristão viveu Procópio, um magistrado cristão deConstantinopla, no tempo em que Justiniano era imperador e Belisário general.Como se sabe, ele escreveu a história de seu tempo, um trabalho sob todos osaspectos de valor inestimável. Pelas maiores autoridades, sempre foi consideradoum historiador dos mais confiáveis, nunca exagerado, exceto por um ou outro

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detalhe, que não dizem respeito ao assunto ora apresentado.Pois, em sua história, Procópio menciona que, durante o período de sua

prefeitura em Constantinopla, um grande monstro marinho foi capturado navizinha Propôntida, ou Mar de Mármara, após ter destruído navios naquelas águaspor um período de mais de cinqüenta anos. Um fato assim estabelecido nahistória não pode ser facilmente contestado. Também não haveria razão para tal.De que espécie exatamente era esse monstro marinho, não foi mencionado. Maspor destruir navios, e também por outras razões, deve ter sido uma baleia; esinto-me fortemente inclinado a pensar em um cachalote. E vou lhe dizer porquê. Durante muito tempo imaginei que o cachalote fosse desconhecido noMediterrâneo e nas águas profundas a ele ligadas. Mesmo hoje tenho certeza deque aquelas águas não são, e talvez nunca possam ser, pela presente constituiçãodas coisas, lugar adequado para o retiro habitual e gregário do cachalote. Masulteriores investigações recentemente provaram que nos tempos modernos houvecasos isolados da presença do cachalote no Mediterrâneo. Fui informado, de fontesegura, de que na costa Berbere um certo Comandante Davies da marinhaBritânica encontrou o esqueleto de um cachalote. Ora, como um navio de guerraatravessa facilmente os Dardanelos, assim também um cachalote poderia passarpela mesma rota do Mediterrâneo à Propôntida.

Na Propôntida, até onde sei, não se encontra o brit, alimento da baleia franca.Mas tenho todos os motivos para acreditar que o alimento do cachalote – a lulaou a siba – se esconde no fundo daquele mar, porque criaturas grandes, aindaque não as maiores, foram encontradas em sua superfície. Se você somarcorretamente essas afirmações, e pensar um pouco, verá claramente que, deacordo com o raciocínio humano, o monstro marinho de Procópio, que por meioséculo afundou os navios do Imperador Romano, com toda a probabilidade deveter sido um cachalote.

{a} O que se segue são extratos da narrativa de Chace: “Todos os fatos pareceram afiançar-me na conclusão deque qualquer coisa menos o acaso teria conduzido suas ações; por duas vezes, fez várias investidas contrao navio, com um pequeno intervalo entre elas; ambas, segundo sua direção, sendo calculadas para noscausar maior dano, por terem sido dirigidas à proa e, portanto, combinando a velocidade dos dois objetospara o choque; para tal efeito, exatamente as manobras que fez foram as necessárias. Seu aspecto era omais horrendo, e assim indicava ressentimento e fúria. Veio diretamente do bando em que havíamosacabado de entrar, e no qual feríramos três de seus companheiros, como que incendiado por um desejode vingança pelo sofrimento deles”. E mais: “Em todo caso, todas as circunstâncias consideradas, tendoacontecido diante dos meus próprios olhos, produzindo, naquela hora, impressões de uma maldadedecidida e calculada por parte da baleia (muitas dessas impressões não consigo mais recordar), induzem-me à convicção de que estou certo em minha opinião.”

Eis aqui suas reflexões algum tempo depois de ter deixado o navio, durante uma noite escura numbote aberto, quando quase desistia de encontrar uma praia hospitaleira: “O oceano escuro e as águasagitadas não eram nada; os temores de ser engolido por alguma terrível tempestade, ou atirado contrarochedos submersos, e todos os outros motivos comuns de assustadora contemplação, pareciam apenas

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merecer um instante do meu pensamento; o naufrágio sinistro e o aspecto horrendo e a vingança dabaleia ocupavam totalmente as minhas reflexões, até que o dia raiou novamente.”

Em outro lugar – p. 45 – fala do “ataque misterioso e mortal do animal”. [N. A.]

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46 CONJECTURAS

Embora, consumido pelo fogo ardente de seu propósito,Ahab sempre tivesse presente, em todos os seus pensamentos e ações, a capturadefinitiva de Moby Dick; embora parecesse disposto a sacrificar todos osinteresses mortais àquela sua única paixão; no entanto, por natureza ou porhábito longamente adquirido, talvez estivesse por demais comprometido com acarreira de baleeiro irascível para abandonar todos os outros interessesconcomitantes da viagem. Ou, se não fosse por isso, não faltavam motivos queexercessem influência maior sobre ele. Talvez seja discorrer com excesso desutileza, mesmo levando em conta sua monomania, insinuar que seu desejo dedesforra contra a Baleia Branca pudesse ter se estendido, em certa medida, atodos os cachalotes, e que quanto mais monstros ele matasse tanto maismultiplicaria as possibilidades de que cada baleia encontrada subseqüentementefosse a odiada que ele perseguia. Mas, se tal hipótese fosse objetável, aindahaveria alguns motivos adicionais que, sem se aproximar tanto da selvageria desua paixão hegemônica, poderiam tê-lo influenciado.

Para atingir seu objetivo, Ahab necessitava de ferramentas; e, de todas asferramentas usadas à sombra da lua, os homens são os mais dados à falha. Elesabia por exemplo que, por maior que fosse sua ascendência sobre Starbuck emalguns aspectos, essa ascendência não abrangia sua pessoa espiritual inteira, domesmo modo que a simples superioridade material não implica o domíniointelectual; pois, para o puramente espiritual, as coisas do intelecto seapresentam apenas numa espécie de relação material. O corpo de Starbuck e avontade coagida de Starbuck estavam em poder de Ahab apenas enquanto Ahabmantivesse sua força magnética sobre o cérebro de Starbuck; mas sabia que, adespeito disso, o primeiro imediato, no fundo da alma, abominava a busca docapitão e, se pudesse, teria se desassociado dela com prazer, ou mesmo aimpedido. Era possível que se passasse muito tempo antes que a Baleia Brancafosse avistada. Durante esse longo período, era sempre possível que Starbucktivesse recaídas de rebeldia contra a autoridade de seu capitão, a menos queinfluências comuns, judiciosas e constantes fossem exercidas sobre ele. Nãoapenas isso, mas a loucura sutil de Ahab em relação a Moby Dick de nenhummodo se manifestava mais significativamente do que em sua extraordináriacompreensão e sagacidade ao prever que, naquele momento, era necessáriodespojar a busca daquela impiedade fantasiosa e estranha de que era

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naturalmente investida; que o terror absoluto da viagem deveria recolher-se àsombra de um segundo plano (pois são poucos os homens cuja coragem resiste àreflexão prolongada sem o alívio da ação); que nas longas vigílias noturnas seusoficiais e marinheiros tinham que pensar em coisas mais imediatas do que MobyDick. Pois, a despeito da ansiedade e da impetuosidade com que a feroztripulação havia saudado a proclamação de sua busca; no entanto, todomarinheiro, de qualquer tipo, é mais ou menos caprichoso e pouco confiável –vivem ao relento do ar livre e mutável e inalam sua inconstância –, e quando sãoreservados para um objetivo remoto e distante, ainda que repleto de vida e depaixão, é necessário acima de tudo que interesses e ocupações temporáriasintervenham para mantê-los saudavelmente em suspenso para o ataque final.

Tampouco Ahab se descuidava de uma outra coisa. Nos momentos de emoçõesfortes, o homem despreza as considerações humildes; mas tais momentos sãoefêmeros. A condição permanente do homem tal como é fabricado, pensavaAhab, é a sordidez. Pressupondo que a Baleia Branca incite os corações dessaminha feroz tripulação, e imaginando que sua ferocidade até produza neles umaespécie de brio generoso, todavia, enquanto dão caça a Moby Dick por prazer, énecessário alimentar também seus apetites comuns e rotineiros. Pois mesmo osenlevados e cavalheirescos Cruzados de outrora não se contentavam em atravessarduas mil milhas de terra para lutar por seu Santo Sepulcro sem pilhar, roubar eobter outras pias vantagens pelo caminho. Tivessem eles se limitado a seu únicoobjetivo último e romântico – daquele objetivo último e romântico, muitosteriam desistido por desgosto. Não tirarei desses homens, pensou Ahab, aesperança do dinheiro – sim, dinheiro. Poderiam menosprezar o pagamentoagora; mas deixasse passar alguns meses, sem nenhuma promessa em perspectivade paga, e então esse mesmo capital se amotinaria todo de uma vez dentro delese decapitaria Ahab.

Também não faltava ainda outro motivo para cautela, mais relacionado a Ahabpessoalmente. Tendo impulsivamente, o que é provável, e talvez de certa formaprematuramente revelado o propósito principal, contudo particular, da viagemdo Pequod, Ahab era agora consciente de que, ao agir assim, havia indiretamentese exposto à acusação inquestionável de usurpação; e com total impunidade,tanto moral quanto legal, sua tripulação, se assim quisesse, pois tinhacompetência para isso, poderia não só se recusar a obedecer-lhe, como atémesmo tirar-lhe o comando à força. Da mais tênue insinuação de uma usurpação,e das possíveis conseqüências de uma tal impressão suprimida ganhando terreno,Ahab devia estar logicamente ansioso por se proteger. Essa proteção só podiaconsistir em seu próprio cérebro, coração e mão dominantes, sustentados poruma atenção diligente e rigorosamente calculada às mínimas influências

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atmosféricas a que a sua tripulação estava sujeita.Por todas essas razões, então, e outras talvez demasiadamente analíticas para

serem desenvolvidas aqui verbalmente, Ahab via claramente que ainda devia semanter sempre fiel ao propósito nominal e natural da viagem do Pequod;observar as praxes costumeiras; e não apenas isso, mas também forçar-se apatentear todo o seu interesse apaixonado e notável no desempenho genérico desua profissão.

Seja lá como for, sua voz agora era escutada amiúde saudando os marinheirosnos três topos de mastro, exortando-os a manter a vigilância ativa e não omitirnem mesmo uma marsopa. Essa vigilância não tardou a ser recompensada.

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47 O ESTEIREIRO

Era uma tarde nublada e opressiva; os homens passeavamlentamente pelo convés, ou olhavam distraidamente para as águas plúmbeas.Queequeg e eu estávamos ocupados em tecer tranqüilamente o que se chama deesteira-espada, para servir de amarra suplementar para o nosso bote. Tão calma eabsorta e ainda de certo modo auspiciosa a cena se apresentava, e pairavatamanho encantamento de sonho no ar, que todo marinheiro, em silêncio,parecia dissolver-se em seu próprio eu invisível.

Eu era o ajudante ou assistente de Queequeg, ambos ocupados no trabalho daesteira. Enquanto eu passava e repassava a trama ou fio de merlim por entre oslongos fios da urdidura, usando minha própria mão como lançadeira, Queequeg,de pé ao lado, de vez em quando deslizava sua enorme espada de carvalho porentre as linhas, e, olhando distraidamente para a água, colocava de mododespreocupado e automático cada fio no seu lugar; repito, uma atmosferaestranha de sonho reinava sobre todo o navio e sobre todo o mar, apenasquebrada pelo barulho intermitente da espada, tanto que isto parecia ser o Teardo Tempo, e eu mesmo uma lançadeira mecanicamente tecendo e sempretecendo para as Parcas. Assim estavam presos os fios da urdidura, sujeitos aapenas uma única vibração imutável e constante, e aquela vibração era calculadapara permitir apenas o cruzamento dos outros fios com o seu. A urdidura pareciaa Necessidade; e aqui, pensei, com as minhas próprias mãos guio a lançadeira eteço meu próprio destino nestes fios inalteráveis. Enquanto isso, a espadaindiferente e impulsiva de Queequeg às vezes tocava na trama de modoenviesado, ou torto, ou muito forte, ou muito fraco, conforme o caso; e, com essadiferença, o último golpe produzia um contraste correspondente no aspecto finaldo tecido concluído; a espada desse selvagem, pensei, que dá forma e ajusta, porfim, tanto a urdidura quanto a trama; essa espada indiferente e descuidada deveser o Acaso – sim, Acaso, Livre-Arbítrio e Necessidade – de modo algumincompatíveis – todos entrelaçadamente trabalhando juntos. A urdidura reta daNecessidade, que não deve ser desviada de seu curso final – todas as suasvibrações alternadas, de fato, levam a isso; o Livre-Arbítrio sempre livre para guiarsua lançadeira por entre os fios estabelecidos; e o Acaso, embora restrito pelaslinhas retas da Necessidade, e além do mais tendo os movimentos modificadospelo Livre-Arbítrio, embora seja dessa forma determinado pelos dois, o Acaso acada vez comanda ambos e dispõe do último golpe no configurar dos

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acontecimentos.

* * * * * * *

Estávamos assim tecendo e sempre tecendo, quando fui desperto por um som tãoestranho, tão prolongado e musicalmente selvagem e sobrenatural, que o novelodo Livre-Arbítrio caiu de minha mão, e fiquei a olhar para cima, para as nuvens,de onde aquela voz descia como uma asa. No alto, na plataforma da gávea, estavaTashtego, aquele louco de Gay Head. Seu corpo se jogava avidamente para afrente, a mão esticada como uma vara, e com súbitos intervalos rápidos voltava agritar. Esteja certo de que o mesmo grito talvez tenha sido ouvido naquelemomento por toda a extensão dos mares, vindo de todos os gajeiros de naviosbaleeiros, empoleirados lá em cima; mas de poucos daqueles pulmões o velho episado aviso poderia surgir com uma cadência tão maravilhosa quanto a do índioTashtego.

Enquanto pairasse sobre você como que suspenso no ar, tão ansiosa eavidamente olhando para o horizonte, você o teria comparado a um profeta ouvidente contemplando as sombras do Destino e anunciando com aqueles gritosselvagens sua chegada.

“Lá soprou! Ali! Ali! Ali! Ela sopra! Ela sopra!”“Onde?”“A sotavento, umas duas milhas! Um bando!”Imediatamente tudo se fez comoção.O cachalote sopra como um relógio toca, com a mesma regularidade confiável

e constante. Assim os baleeiros distinguem esse peixe das outras tribos de seugênero.

“Já foram as caudas!”, ouviu-se então Tashtego gritar, e as baleiasdesapareceram.

“Depressa, camareiro!”, gritou Ahab. “As horas! As horas!”Dough-Boy correu para baixo, olhou no relógio e informou Ahab da hora

exata.O navio mantinha-se afastado do vento e deslizava calmamente à sua frente.

Tashtego tendo anunciado que as baleias mergulhavam a sotavento, esperávamosvê-las emergir diretamente na proa. Pois aquela astúcia singular mostrada às vezespelo cachalote, quando, imergindo a cabeça numa direção, se move rapidamentena direção oposta, enquanto se esconde sob a superfície – este subterfúgio nãopodia estar sendo posto em prática naquele momento; pois não havia motivopara supor que o peixe avistado por Tashtego pudesse ter se assustado ou mesmo

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tomado conhecimento de nossa proximidade. Um dos homens escolhidos paraguardar o navio – isto é, um dos que não desciam com os botes, já tinha tomadoo lugar do Índio no topo do mastro principal. Os marinheiros dos mastros de proae de mezena desceram; as bobinas dos cabos foram colocadas em seus lugares; osguindastes foram colocados para fora; a verga principal foi recolhida, e os trêsbotes balançavam sobre o mar como três cestos de salicórnia sobre altospenhascos. Fora da amurada, a tripulação ansiosa, com uma das mãos firmada nobalaústre, colocava o pé na amurada. Assim se colocam numa longa fila osmarinheiros dos navios de guerra prontos para abordar o navio inimigo.

Mas neste momento crítico ouviu-se um grito que afastou todos os olhares dabaleia. Com um sobressalto, todos se viraram para o soturno Ahab, que estavacercado por cinco fantasmas sombrios, que pareciam recém-criados pelo ar.

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48 A PRIMEIRA DESCIDA

Os fantasmas, pois assim pareciam, moviam-serapidamente na outra ponta do convés, e, com uma celeridade silenciosa,soltavam os cordames e os cabos do bote que ali se encontrava suspenso. Essebote sempre estivera, assim pensávamos, entre os botes de reserva, emboratecnicamente pertencesse ao capitão, porque estava suspenso na quadra da popaa estibordo. O vulto que se via na proa naquele momento era alto e moreno, comum dente branco que lhe saltava maldosamente dos lábios de aço. Um casacochinês amarrotado de algodão preto o cobria de modo fúnebre, e vestia enormescalças do mesmo tecido escuro. Mas, para coroar estranhamente essa sua cor deébano, usava um turbante branco resplandecente, franzido, e o cabelo lustrosotrançado e enrolado na cabeça. De aspecto menos moreno, os companheirosdesse vulto tinham aquela cor viva de amarelo-tigre, característica de algunsaborígines de Manila; – uma raça conhecida por um certo diabolismo sutil, e quealguns marujos brancos e honestos julgavam ser de espiões pagos e agentessecretos confidenciais nas águas do Diabo, seu amo, cujo escritório imaginam quefique noutro lugar.

Enquanto a tripulação do navio, ainda surpresa, olhava para esses estranhos,Ahab gritou ao velho de turbante branco que os comandava, “Tudo pronto aí,Fedallah?”.

“Sim”, foi a resposta, como que num assobio.“Descei, então; escutais?”, gritou do convés. “Descei, repito.”Tal foi o estrondo de sua voz que, apesar do estupor, os marinheiros pularam

sobre a amurada; as roldanas giraram nos polés; e com um baque surdo os trêsbotes caíram no mar; enquanto, com uma coragem instantânea e ágil,desconhecida de outra vocação, os marinheiros, como cabras, saltaram docostado oscilante do navio para os botes atirados lá embaixo.

Mal tinham se afastado do sotavento do navio, quando uma quarta barca,vinda de barlavento, deu a volta pela popa, e mostrou os cinco estranhosremando para Ahab, que, de pé na popa, ordenava em voz alta para Starbuck,Stubb e Flask que se espalhassem bem, para cobrir uma grande extensão de água.Mas, de novo com os olhos fixados no moreno Fedallah e seus homens, ostripulantes dos outros botes não obedeceram à ordem.

“Capitão Ahab? –”, disse Starbuck.“Dispersai-vos”, gritou Ahab; “avançai, os quatro botes. Tu, Flask, vai para

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sotavento!”“Sim, sim, senhor”, respondeu com entusiasmo o pequeno King-Post, virando

seu grande remo de direção. “Para trás!”, disse aos seus homens. “Ali! – Ali! – Denovo! Ela está soprando logo ali, rapazes! – para trás! –, não preste atençãoàqueles tipos amarelos, Archy!”

“Ah, eu não me preocupo com eles, senhor”, disse Archy; “eu já sabia. Eu nãotinha escutado no porão? E não tinha até contado para o Cabaco? Não é, Cabaco?Eles são clandestinos, senhor Flask.”

“Força, força, meus caros, coragem! Força, meninos, força, meus pequenos!”,sussurrava calma e tranqüilamente Stubb para os seus homens, alguns dos quaisainda mostravam sinais de apreensão. “Por que não estão quebrando as espinhas,meus meninos? O que estão olhando? Aqueles caras naquele bote ali? Ora, vamos!São apenas mais cinco homens que vieram para nos ajudar – pouco importa deonde –, quanto mais, melhor. Força, mais força; não liguem para o enxofre – osdemônios são bons sujeitos. Isso, isso; assim está bem. Eis aí uma remada quevale mil libras; essa vence todas as apostas! Palmas para a taça de ouro cheia deóleo de espermacete, meus heróis! Três vivas, rapazes – todos corajosos! Devagar,devagar, não tenham pressa – não tenham pressa. Por que não detonam seusremos, tratantes?! Agarrem alguma coisa, seus patifes! Assim, assim, assim; – comcalma, com calma! É isso aí – é isso aí! Longo e forte. Força, mais força! Que odiabo os carregue, seus velhacos canalhas; vocês estão todos dormindo. Parem deroncar, seus dorminhocos, e façam força. Força! Não conseguem fazer força? Nãoquerem fazer força? Por que, em nome das iscas e das tortas de gengibre, nãofazem força? – Façam força e quebrem alguma coisa! Força, e façam saltar osolhos para fora das órbitas! Assim!”, tirando com um gesto brusco a faca afiada docinto; “todos vocês, seus filhos-da-mãe, peguem as facas e remem com a lâminaentre os dentes. Isso – isso! E agora façam qualquer coisa que valha a pena,minhas mordaças de aço. Peguem-na – peguem-na, minhas colheres de prata!Peguem-na, minhas puas de marlim!”

O exórdio de Stubb aos seus homens foi aqui reportado por extenso, porque,em geral, ele tinha um jeito peculiar de falar com eles e, em especial de lhesinculcar a religião dos remadores. Mas não se deve acreditar, por essa amostra deseus sermões, que ele sempre se enfurecia com sua congregação. De jeitonenhum; e nisso consistia sua característica principal. Ele dizia as coisas maisterríveis aos seus homens, num tom estranhamente composto de humor e fúria,e a fúria parecia ser calculada para dar um tempero ao humor, a ponto denenhum remador conseguir escutar essas invocações estranhas sem remar porsua própria vida em jogo, e, ao mesmo tempo, remando só por divertimento.Além disso, ele parecia o tempo todo tão à vontade e indolente, manejando o

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remo de pilotagem com tanta preguiça, com grandes bocejos – às vezes, com aboca totalmente aberta –, que a simples vista de um comandante tão bocejador,por força do contraste, exercia um efeito de magia sobre o grupo. Também Stubbpertencia àquela curiosa espécie de humoristas, cuja alegria às vezes é tãocuriosamente ambígua, que colocava todos os inferiores em guarda quando setratava de lhe prestar obediência.

Em cumprimento a uma ordem de Ahab, Starbuck avançava agoraobliquamente para cruzar Stubb pela proa; e, quando, por um ou dois minutos,os dois botes ficaram bem próximos, Stubb chamou o imediato.

“Senhor Starbuck! Ó, de bordo, bote a bombordo! Uma palavra com o senhor,por favor!”

“Olá!”, respondeu Starbuck, sem se virar sequer uma polegada enquantofalava; sempre incitando severa, ainda que sussurradamente, seus homens; seurosto como uma pederneira aos olhos de Stubb.

“O que o senhor acha daqueles rapazes amarelos?”“Embarcaram de algum modo clandestinamente antes do navio zarpar. (Força,

força, rapazes!)”, murmurou aos seus homens, e depois falando em voz alta denovo: “Uma situação lamentável, senhor Stubb! (agitem, agitem, rapazes!), masnão importa, senhor Stubb, façamos o melhor. Que os seus homens façam força,e seja o que Deus quiser (energia, homens, energia!). Há barris de espermacete ànossa frente, senhor Stubb, e é por isso que estamos aqui (força, meninos!). Oóleo de espermacete, o óleo é o que nos interessa! Pelo menos esse é o nossodever; o dever e o lucro de mãos dadas!”

“É isso, foi o que pensei”, monologou Stubb, quando os botes se separaram,“assim que bati os olhos neles, pensei nisso. É isso mesmo, e é por esse motivoque ele ia tantas vezes ao porão, como Dough-Boy sempre desconfiou. Elesestavam escondidos ali. A Baleia Branca está por detrás disso. Muito bem, queassim seja! Não se pode fazer nada! Tudo bem! Avancem, homens! Nada de BaleiaBranca por hoje! Avancem!”

Ora, o aparecimento dessas criaturas exóticas num momento tão críticoquanto a descida dos botes do convés, isso havia, não sem razão, criado um tipode estupor supersticioso em alguns dos homens da tripulação; mas como adescoberta fantástica de Archy havia sido divulgada anteriormente, embora nãolhe tivessem dado crédito na ocasião, isso numa pequena medida os prepararapara o acontecimento. Isso amainou a intensidade de seu espanto; e, assim, essefato somado ao modo confiante com que Stubb explicou seu aparecimento fezcom que se vissem livres de conjecturas supersticiosas por algum tempo; emborao caso ainda deixasse bastante espaço para todo tipo de suposições terríveis sobreo papel exato que o sombrio Ahab poderia ter no caso desde o início. Quanto a

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mim, em silêncio, lembrei-me das sombras misteriosas que vira subir a bordo doPequod na madrugada escura de Nantucket, bem como das insinuaçõesenigmáticas do inexplicável Elijah.

Enquanto isso, Ahab, fora do alcance da voz de seus oficiais, pois se afastara aomáximo para barlavento, continuava à frente dos outros botes; uma circunstânciaque mostrava como era poderosa a tripulação que o conduzia. Aquelas criaturasamarelo-tigrinas pareciam feitas de aço e barbatana; como cinco martelosmecânicos de alavanca erguiam e baixavam os remos, com movimentos regularesde força, que faziam com que o bote avançasse na água como que movido poruma caldeira de um barco a vapor do Mississippi. Quanto a Fedallah, quemanobrava o remo do arpoador, despira a túnica negra e mostrava o peitodespido, com o tórax claramente delineado acima do costado nas ondulações dohorizonte do mar; enquanto na outra ponta do bote Ahab, com um braço lançadono ar para trás, como o de um esgrimista, para manter o equilíbrio, era vistoconstantemente governando o remo de direção como nas milhares de descidas debotes antes de a Baleia Branca tê-lo mutilado. De repente, o braço estendido fezum movimento característico e deteve-se, e os cinco remos do bote se inclinaramsimultaneamente. Bote e tripulação ficaram sentados imóveis sobre o mar. Nomesmo instante, os três botes que vinham atrás pararam. As baleias haviammergulhado assimetricamente seus corpos no azul, oferecendo assim nenhumsinal de movimento discernível à distância, ainda que, mais próximo delas, Ahabas houvesse observado.

“Todos atentos aos seus remos!”, bradou Starbuck. “Tu, Queequeg, levanta-te!”Saltando lepidamente sobre a caixa triangular que se erguia na proa, o

selvagem ficou ali ereto e fixou os olhos atentos na direção do local onde a caçatinha sido avistada pela última vez. Da mesma forma, no outro extremo do bote,onde também havia uma plataforma triangular no mesmo nível da amurada, opróprio Starbuck equilibrava-se com calma e habilidade sobre o balanço agitadode sua parte da embarcação, olhando em silêncio para o vasto olho azul do mar.

Não muito longe dali, o bote de Flask também jazia imóvel em desalento; seucomandante mantinha-se imprudentemente de pé sobre o posto da arpoeira, umaespécie de poste sólido, preso na quilha, que se elevava a cerca de dois pés acimado nível da plataforma de popa. Era usado para enrolar as voltas da corda dafisga. Seu diâmetro não era maior do que a palma da mão e, ao se pôr de pésobre uma base assim, Flask parecia empoleirado no topo do mastro de um navioque estivesse todo afundado, menos as borlas. Mas o reduzido King-Post erapequeno e baixinho, e, ao mesmo tempo, o minúsculo King-Post tinha umaambição de grandes proporções e altura, de modo que o seu posto de observaçãonão o satisfazia.

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“Não consigo ver para além de três ondas; vamos colocar um remo ali, para eusubir nele.”

Ao ouvir isto, Daggoo, com as duas mãos na amurada para se apoiar, deslizouagilmente para a popa e levantando-se ofereceu seus ombros majestosos comopedestal.

“Um topo de mastro tão bom quanto qualquer outro, senhor. Quer subir?”“Quero e lhe agradeço muito, meu bom rapaz; apenas desejaria que você fosse

uns cinqüenta pés mais alto.”Então, fixando seus pés em duas tábuas opostas do bote, o negro gigantesco,

abaixando-se um pouco, ofereceu a sua palma da mão aberta ao pé de Flask;depois, colocando a mão de Flask em sua cabeça emplumada e, dizendo-lhe quesaltasse quando ele desse um impulso, com um pulo muito ágil colocou opequenino são e salvo sobre seus ombros. E aqui estava Flask agora de pé, Daggoocom um braço levantado oferecendo-lhe um parapeito para se apoiar e equilibrar.

É sempre uma cena curiosa para um novato ver como um baleeiro, com oextraordinário costume da habilidade inconsciente, mantém a postura ereta emseu bote, mesmo quando é lançado nos mares mais perversamente turbulentos ecaóticos. Ainda mais curioso é vê-lo empoleirado vertiginosamente, em taiscircunstâncias, sobre o posto da arpoeira. Mas a cena do pequenino Flaskmontado sobre o gigantesco Daggoo era ainda mais curiosa; porque sesustentando com uma majestade tranqüila, indiferente, desenvolta, impensada ebárbara, a cada movimento do mar, o nobre negro movia seu corpo perfeito emharmonia. Em suas costas enormes, Flask, dos cabelos de linho, parecia um flocode neve. O carregador tinha aparência mais nobre que a carga. Ainda que, emverdade, o pequeno Flask, muito animado, agitado e exibicionista, de vez emquando batesse o pé impaciente; nem por isso o peito soberbo do negro arfava.Assim vi a Paixão e a Vaidade pisando a magnânima terra viva, mas a terra nempor isso alterou suas marés, suas estações.

Enquanto isso, Stubb, o segundo imediato, não traía tais contemplativassolicitudes. As baleias podiam ter feito uma das suas sondagens regulares, e nãoum mergulho temporário de mero susto; e, se tal fosse o caso, Stubb, comosempre nessas ocasiões, ao que parecia, estava resolvido a consolar a languidez dointervalo com seu cachimbo. Tirou o cachimbo da fita do chapéu, onde sempre olevava enviesado como uma pena. Encheu-o e apertou o tabaco com seu polegar;mas mal havia acendido o fósforo na lixa da palma de sua mão, quandoTashtego, seu arpoador, cujos olhos se haviam fixado a barlavento como duasestrelas, saiu subitamente como um relâmpago de sua postura ereta para seuassento, gritando num súbito frenesi arrebatado: “Abaixem-se, abaixem-se todos eavancem! – Elas estão aí!”.

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Para um homem da terra, nenhuma baleia, nem mesmo um sinal de arenque,teria sido visível naquele momento; nada senão uma pequena porção agitada deágua branca esverdeada, e pequenas bolhas de vapor flutuando por de sobre, esoprando difusamente a sotavento, como o confuso deslizar das vagas brancasque se quebram. O ar em volta vibrou e estremeceu de repente, como sobreplacas de aço intensamente aquecidas. Debaixo dessa ondulação e agitaçãoatmosférica, e parcialmente por debaixo de uma fina camada de água, tambémas baleias nadavam. Vistas antes de qualquer outra indicação, as bolhas de vaporque sopravam pareciam estafetas e batedores voadores isolados.

Todos os quatro botes agora tenazmente perseguiam aquele ponto de ar e águaturbulentos. Mas o ponto deixou-os inteiramente para trás; corria para a frentecomo uma massa confusa de bolhas num riacho veloz descendo da colina.

“Força, força, meus rapazes!”, disse Starbuck, num sussurro muito leve, masintensamente concentrado; enquanto seus olhos fixos, mirando bem à frente daproa, quase pareciam duas agulhas visíveis em duas bússolas de bitáculasinfalíveis. Não disse muita coisa aos seus homens, e nem tampouco seus homenslhe disseram algo. O silêncio do bote era apenas quebrado, às vezes, por seussussurros característicos, ora severos a dar ordens, ora moderados a suplicar.

Como era diferente do enfático e pequeno King-Post. “Gritem e digam algumacoisa, meus camaradas. Berrem e remem, meus trovões! Empurrem-me,empurrem-me para cima de seus dorsos negros, rapazes; façam isso por mim elhes darei toda a minha plantação de Martha’s Vineyard, rapazes, junto com aminha esposa e filhos, rapazes. Vamos – vamos! Ó, meu Deus! Vou ficar completae descaradamente louco. Vejam! Vejam aquela água branca!” E, gritando dessamaneira, tirou seu chapéu da cabeça e pisou nele várias vezes; depois o pegou e oatirou bem longe no mar; e por fim começou a se empinar e saltar na popa dobote, como um potro enlouquecido na pradaria.

“Vejam aquele camarada”, disse filosófica e lentamente Stubb, que, com seupequeno cachimbo apagado, mecanicamente preso entre os dentes, estava atrásdeles, a uma pequena distância – “Tem rompantes – Flask tem rompantes.Acessos? Sim, esta é a palavra – tem rompantes. Com alegria, alegria, meusbravos. É pudim no jantar, vocês sabem; – a palavra é alegria. Força, crianças –força, meus bebês – força, todos. Mas por que diabos estão correndo tanto?Devagar, devagar e sempre, meus homens. Só façam força, e continuem fazendoforça – é só isso. Dobrem essa espinha, e mordam suas facas – é só, só. Calma –por que não se acalmam, repito, e arrebentem com seus fígados e pulmões!”

Mas o que o misterioso Ahab disse à sua tripulação amarelo-tigrina – taispalavras é melhor omiti-las aqui; pois você vive sob a luz abençoada da terraevangélica. Somente os infiéis tubarões dos mares bravios podem dar ouvidos a

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tais palavras, quando, com o cenho de um tornado e olhos injetados de vermelhoassassino e a boca espumando, Ahab lançou-se sobre a sua presa.

Enquanto isso todos os botes afastavam. As repetidas alusões específicas deFlask “àquela baleia”, como chamava o monstro fictício que dizia estarcastigando a popa do seu bote com a sua cauda – essas alusões eram às vezes tãovivas e tão reais, que faziam com que um ou outro dos seus homens lançasse umolhar apavorado por sobre os ombros. Mas isso era contra as regras; pois osremadores devem esquecer os olhos e cravar um espeto no pescoço; diz-se atéque, nesses momentos críticos, não devem ter órgãos senão os ouvidos, nemmembros senão os braços.

Era uma visão repleta de puro espanto e terror! As vastas ondulações do maronipotente; o rugido agitado, oco que faziam ao passar ao longo das oito bordasdos botes, feito bolas de madeira gigantescas num campo de grama sem limites;a breve agonia suspensa do bote, ao tocar por um momento a lâmina das ondasmais afiadas, que pareciam ameaçar cortá-lo em dois pedaços; o mergulho súbitoe profundo nos precipícios e ocos das águas; as incitações e estímulos incisivospara chegar ao topo da colina oposta; o deslizar precipitado como de um trenó,do outro lado; – tudo isso, com os gritos dos vigias e dos arpoadores, e os gemidosdos remadores, e com a espantosa visão do Pequod de marfim que seguia osbotes com as velas desfraldadas, como uma galinha selvagem atrás da gritaria desua cria; – tudo isso era excitante. Nem o recruta inexperiente, que marcha doseio da esposa para o fervor da primeira batalha; nem o fantasma do mortoquando encontra o primeiro fantasma desconhecido no outro mundo; – nadadisso pode provocar mais estranhas nem mais entranhadas emoções do que as dohomem que se vê remando pela primeira vez no círculo encantado e tumultuadoda caça ao cachalote.

A água branca e dançante da caça tornava-se agora cada vez mais visível,devido à escuridão crescente que as sombras das nuvens negras lançavam sobre omar. Os jatos de vapor já não se misturavam, mas apareciam em toda parte, àdireita e à esquerda; as baleias pareciam estar separando seus rastros. Os botes seafastavam cada vez mais; Starbuck perseguia três baleias que corriam direto parasotavento. Nossa vela agora estava içada, e, como o vento ainda aumentava,corríamos junto; o bote deslizava tão loucamente pela água, que mal se podiamanobrar os remos de sotavento com a velocidade necessária para evitar quefossem arrancados das toleteiras.

Logo nos encontramos em meio a um denso véu de neblina; não se via nembote, nem navio.

“Avancem, homens”, sussurrou Starbuck, puxando ainda mais para a popa aescota da vela; “ainda temos tempo para matar um peixe antes da tempestade.

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Veja mais água branca ali! – Mais perto! Continuem!”Logo em seguida dois gritos sucessivos vindos de ambos os lados indicaram

que os outros botes haviam sido rápidos; porém mal foram ouvidos, e Starbuckdisse com um sussurro que estalou como um relâmpago: “Levante!”, e Queequeg,com seu arpão na mão, ficou de pé.

Embora nenhum dos remadores pudesse ver de frente o perigo mortal que seencontrava logo adiante, pela fisionomia tensa e pelo olhar fixo do imediato napopa do bote, todos sabiam que o momento crítico havia chegado; tambémescutaram um ruído enorme que parecia de cinqüenta elefantes chafurdando nalama. Enquanto isso o bote continuava a atravessar a neblina, com as ondas a seagitar e silvar à nossa volta, como serpentes furiosas de cabeças levantadas.

“Ali está a corcova. Ali, ali! Dá-lhe!”, sussurrou Starbuck.Um som breve e apressado partiu do bote; era a seta de ferro de Queequeg.

Então, fundindo-se numa mesma comoção veio um ataque invisível da popa,enquanto a proa parecia bater num rochedo; a vela fechou-se e caiu; um jato devapor escaldante ergueu-se ali perto; alguma coisa debaixo de nós rolou e se viroucomo um terremoto. Toda a tripulação ficou um pouco sufocada quando foitemerariamente jogada no branco do creme coalhado da tormenta. Tormenta,baleia, e arpão se haviam mesclado; e a baleia, meramente arranhada pelo ferro,escapava.

Ainda que completamente alagado, o bote estava quase intacto. Boiando à suavolta, recolhemos os remos e, jogando-os transversalmente na amurada,retomamos os nossos lugares. Ali nos sentamos com os nossos joelhos no mar, aágua cobrindo cada viga e tábua, tanto que para os nossos olhos baixos econtemplativos a embarcação parada parecia um bote de coral brotado até nós dofundo do mar.

O vento aumentou até tornar-se um uivo; as ondas arrojavam todas juntas seusbroquéis; toda a tormenta rugia, bifurcava e estalava à nossa volta como umincêndio branco na pradaria, no qual, sem nos consumir, ardíamos; imortais naspróprias mandíbulas da morte! Em vão gritávamos para os outros botes; chamaros botes naquela tormenta era o mesmo que gritar às brasas pela chaminé deuma fornalha em chamas. Nesse ínterim, as rajadas de vento, o nevoeiro e aneblina se tornaram mais escuros com as sombras da noite; não se via nem sinaldo navio. O mar encapelado frustrava todas as nossas tentativas de baldear a águado bote. Os remos eram inúteis como propulsores, desempenhando agora apenasa função de salva-vidas. Assim, cortando as amarras do barril à prova d’água ondeestavam os fósforos, Starbuck, após várias tentativas, conseguiu acender alamparina; então, pendurando-a numa haste, entregou-a a Queequeg como porta-estandarte dessa desamparada esperança. Ali, pois, ele ficou sentado, mantendo

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erguida aquela vela estúpida em meio ao todo-poderoso desamparo. Ali, pois, eleficou sentado, signo e símbolo de um homem sem fé, em vão mantendo erguidaa esperança em pleno desespero.

Molhados, encharcados e tremendo de frio, desesperando de navio ou bote,erguemos os olhos quando surgiu a aurora. A neblina ainda espalhada sobre omar, a lamparina vazia jazia estilhaçada no fundo do bote. De repente, Queequegpôs-se de pé e colocou a mão em concha sobre os ouvidos. Nós todos ouvimos umrangido fraquinho, como de cordas e vergas, até então abafado pela tempestade.O som ficou cada vez mais próximo; a neblina densa dispersou-se turvamentedividida por uma forma imensa e vaga. Aterrorizados, pulamos todos no mar,enquanto o navio finalmente surgiu às nossas vistas, aproximando-se a umadistância não muito superior ao seu comprimento.

Flutuando sobre as ondas vimos o bote abandonado, que por um instante seagitava e debatia sob a proa do navio como uma astilha embaixo de umacatarata; e então o casco imenso passou por sobre ele, e não foi mais visto atéreaparecer espojando-se do lado da popa. De novo nadamos até ele, fomosatirados contra ele pelas águas, e, por fim, fomos recolhidos a bordo sãos e salvos.Antes de a tormenta se aproximar, os outros botes tinham desistido do peixe evoltado a tempo ao navio. O navio nos havia dado por perdidos, mas aindanavegava por ali para ver se encontrava por acaso algum sinal da nossa destruição– um remo ou a haste de uma lança.

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49 A HIENA

Há certas circunstâncias e ocasiões bizarras neste estranho e caóticonegócio que chamamos de vida nas quais um homem considera todo o universouma grande piada, ainda que mal perceba a sua graça, e mais do que suspeitaque a piada seja feita à sua custa e de mais ninguém. No entanto, nada odesanima, e nada parece valer o esforço de uma disputa. Ele engole todos osacontecimentos, todas as crenças e credos, e convicções, todas as coisas difíceis,visíveis ou invisíveis, pouco importando quão intricadas sejam; como um avestruzde estômago poderoso devora cartuchos e pedras de fuzis. Quanto às pequenasdificuldades e preocupações, expectativas de desastres súbitos, perigo de vida ouferimentos; tudo isso e a própria morte lhe parecem apenas manhosos e bem-humorados safanões, tapas nas costas dados pelo galhofeiro invisível einexplicável. Esse tipo estranho de humor caprichoso ao qual me refiro assola ohomem apenas nos momentos de tribulação extrema; assola-o em meio à suaseriedade, de tal modo que aquilo que lhe parecia uma coisa muito importante seafigura, então, como parte da piada geral. Não há nada como os perigos da pescada baleia para gerar esse tipo indulgente e liberto de filosofia genial daquele quenão tem nada a perder; e assim eu agora encarava toda a viagem do Pequod, e agrande Baleia Branca, seu propósito.

“Queequeg”, disse, quando fui levantado ao convés, o último homem, e aindame sacudia para tirar a água que estava na minha jaqueta; “Queequeg, meu bomamigo, esse tipo de coisa acontece sempre?” Sem muita emoção, ainda que tãoencharcado quanto eu, deu-me a entender que tais coisas sempre aconteciam.

“Sr. Stubb”, disse eu, voltando-me àquele homem digno, que, todo abotoadoem seu casaco impermeável, fumava agora calmamente seu cachimbo na chuva;“Sr. Stubb, penso tê-lo ouvido dizer que, de todos os baleeiros que o senhorconhece, nosso primeiro oficial, o sr. Starbuck, é o mais cuidadoso e o maisprudente. Imagino, então, que atirar-se sobre uma baleia fugitiva com a veladesfraldada numa tempestade com neblina é o máximo de prudência que sepode esperar de um baleeiro?”

“É claro! Eu já desci os botes de um navio com vazamento para caçar baleiasno meio de uma tempestade ao largo do cabo Horn.”

“Sr. Flask”, disse eu, virando-me para o pequeno King-Post, que estava paradoali perto; “você tem experiência nessas coisas, e eu não. Você poderia me dizer seé uma lei inalterável nesta pesca, sr. Flask, que um remador deva quebrar a

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coluna arrastando-se de costas para as mandíbulas da morte?”“Precisa fazer tantos rodeios?”, disse Flask. “Sim, esta é a lei. Queria ver uma

tripulação remando de frente para a baleia. Rá, rá! e a baleia ficaria fazendo-lhescaretas, já pensou?!”

Eis que então, de três testemunhas imparciais, eu obtivera declaraçõesdeliberadas sobre todo o caso. Considerando, portanto, que tempestades enaufrágios e os conseqüentes bivaques no fundo do mar eram ocorrênciascomuns neste tipo de vida; considerando que no momento superlativamentecrítico de ir em direção à baleia devo entregar minha vida nas mãos daquele quecomanda o bote – muitas vezes um sujeito que naquele exato momento está emsua impetuosidade a ponto de fazer um rombo na embarcação com suas pisadasfrenéticas; considerando que o desastre em particular de nosso bote em particularfoi principalmente devido a Starbuck ter nos guiado em direção à sua baleia naboca da tempestade, e considerando que Starbuck, no entanto, era famoso porsua grande diligência na pesca; considerando que eu pertencia a este bote doprudentíssimo Starbuck; e finalmente considerando a caçada demoníaca em queeu estava implicado, no tocante à Baleia Branca: levando tudo isso em conta,digo, pensei que podia muito bem descer e fazer um rascunho sumário de meutestamento. “Queequeg”, eu disse, “venha comigo, você será meu advogado,executor e herdeiro.”

Pode parecer um fato estranho que os marinheiros se dediquem aos últimosdesejos e testamentos, mas não há homens no mundo mais afeitos a tal diversão.Esta era a quarta vez em minha vida marinha que fazia a mesma coisa. Depois deconcluída a cerimônia na presente ocasião, senti-me muito mais aliviado; umapedra foi retirada do meu coração. Além do mais, todos os dias que viveria agoraseriam tão bons quanto os que viveu Lázaro após sua ressurreição; um lucrolíquido suplementar de tantos meses ou semanas, conforme fosse o caso. Eusobrevivi a mim mesmo; minha morte e enterro estavam cerrados em meu peito.Olhei ao meu redor tranqüilo e contente, como um fantasma pacífico com aconsciência limpa sentado dentro de um aprazível jazigo de família.

Agora, pois, pensei, inconscientemente arregaçando as mangas do meu casaco,façamos juntos um refrescante mergulho na morte e na destruição, e que o diabocarregue o último que ficar.

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50 O BOTE E ATRIPULAÇÃO DEAHAB • FEDALLAH

“Quem teria imaginado uma coisas dessas, Flask!”,exclamou Stubb; “se eu tivesse apenas uma perna, você nãome veria num bote, a não ser talvez para tapar um buraco

com a minha perna de pau. Ah! Ele é um velho formidável!”“Não acho nada de surpreendente, por conta disso”, disse Flask. “Se a perna

dele fosse cortada até os quadris, aí seria diferente. Isso o tornaria inválido; mas,você sabe, ele tem um dos joelhos e boa parte do outro.”

“Não sei, não, meu pequeno; nunca o vi de joelhos.”

* * * * * * *

Entre os conhecedores de baleias, discute-se muito se, considerando aimportância fundamental de sua vida para o êxito da viagem, é certo um capitãobaleeiro arriscar essa vida tomando parte ativa nos perigos da pesca. Assim ossoldados de Tamerlão sempre discutiam, com lágrimas nos olhos, se aquela vidavaliosa deveria ser exposta ao fragor da batalha.

Mas com Ahab a questão assumia um aspecto diverso. Considerando-se que emduas pernas o homem é apenas uma criatura claudicante diante do perigo;considerando-se que a perseguição de baleias se dá sempre em grandes eextraordinárias dificuldades; que cada momento isolado, de fato, assim encerraum risco; sob tais circunstâncias será prudente um aleijado subir num botebaleeiro durante a caçada? De um modo geral, os proprietários do Pequoddeveriam achar que não.

Ahab bem sabia que seus amigos em terra não se preocupariam com o fato deele entrar num bote em meio às vicissitudes relativamente inócuas da caçada, sópara estar perto da ação e dar ordens pessoalmente, mas ter um boteexclusivamente à sua disposição para conduzir a caçada – e, além disso, equipadocom cinco homens adicionais, para tripular este bote, o Capitão Ahab bem sabiaque tais conceitos generosos jamais passariam pela cabeça dos proprietários doPequod. Portanto, não havia solicitado a eles uma tripulação para o bote, nem deforma alguma havia demonstrado seus desejos nesse sentido. Não obstante, haviatomado em particular todas as providências necessárias quanto ao caso. Até setornar pública a descoberta de Archy, os marinheiros mal poderiam imaginar talcoisa, embora pouco depois de deixarem o porto, todos tendo terminado a rotina

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de preparar os botes para o serviço, algum tempo depois disso, Ahab tivesse sidovisto ocupado com a preparação de toletes para o bote que se considerava dereserva com as próprias mãos, e até mesmo cortando pequenos espetos demadeira, que são fixados na ranhura da proa para deixar correr a corda: quandoviram tudo isso, e, em especial, sua solicitude ao colocar um forro suplementarpara revestir o fundo do bote, como que para fazê-lo suportar melhor a pressãoaguda de sua perna de marfim, e também a ansiedade que demonstrou aomodelar com precisão a tábua de coxa, como é chamada às vezes a peçahorizontal da proa do bote para segurar o joelho quando se atira a lança contra abaleia; quando viram quantas vezes ele subia naquele bote e ficava com o seuúnico joelho preso na concavidade semicircular da tábua, e com um cinzel decarpinteiro tirando um pouco ali, acertando um pouco aqui; todas essas coisas,repito, despertaram muito interesse e curiosidade. Mas quase todos pensaram queesses cuidados especiais preparatórios de Ahab visavam apenas à caçada final deMoby Dick; pois ele já havia revelado sua intenção de dar caça ao monstro mortalpessoalmente. Mas tal suposição de modo algum envolvia a mais remota suspeitade que houvesse uma tripulação designada para aquele bote.

Ora, com os fantasmas subalternos, qualquer mistério que ainda houvesse logose dissipou; pois num baleeiro os mistérios logo mínguam. Além disso, vez poroutra, chega uma indefinível miscelânea oriunda de estranhas nações, dos maisremotos tugúrios e covis da terra para guarnecer os baleeiros de foragidosflutuantes; e os próprios navios muitas vezes recolhem estranhas criaturas àderiva no mar aberto, a se debater sobre tábuas, restos de naufrágios, remos,botes, canoas, juncos japoneses destroçados, e não sei mais o quê; tanto que opróprio Belzebu poderia subir pelo costado e entrar na cabine para conversar como capitão, que isso não causaria nenhuma comoção irrefreável no castelo de proa.

Mas, seja como for, o certo é que logo os fantasmas subalternos encontraramseus lugares em meio à tripulação, embora ainda fossem um pouco diferentes dosoutros; entretanto Fedallah, o homem do turbante na cabeça, manteve-se ummistério protegido até o fim. De onde viera até este mundo gentil, que tipo deligação inexplicável o unia ao destino particular de Ahab, a ponto de exercersobre este uma espécie de pressentida influência, só Deus sabe; mas pareciaexercer até mesmo autoridade sobre ele. Mas não era possível manter um ar deindiferença em relação a Fedallah. Era uma dessas criaturas que as pessoascivilizadas e domésticas da zona temperada vêem apenas em sonhos, e aindaassim vagamente; mas cujo tipo às vezes ocorre nas imutáveis comunidadesAsiáticas, especialmente nas ilhas Orientais a leste do continente – aqueles paísesisolados, imemoriais e imutáveis, que mesmo nos tempos modernos aindaguardam muito do primitivo e do fantasmagórico das primeiras gerações da

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terra, quando a recordação do primeiro homem era uma lembrança nítida, etodos os homens seus descendentes, ignorando de onde ele veio, olhavam unspara os outros como verdadeiros fantasmas, e perguntavam ao sol e à lua por queforam criados e com qual finalidade; quando no entanto, segundo o Gênese, osanjos de fato se casavam com as filhas dos homens, e – acrescentam os rabinosnão canônicos – também os demônios se entregavam a amores terrenos.

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51 O JATO FANTASMA

Passaram-se dias, semanas e, numa travessia agradável,o Pequod de marfim tinha percorrido lentamente quatro regiões de cruzeirodiferentes: ao largo dos Açores; ao largo de Cabo Verde; no Prata (assimchamado), ao largo da foz do rio da Prata; e Carrol Ground, uma extensãomarítima não delimitada, ao sul de Santa Helena.

Foi quando deslizávamos por essas últimas águas que, numa noite calma eenluarada, quando todas as ondas rolavam como pergaminhos de prata e com asua agitação suave faziam o que parecia ser um silêncio prateado e não solidão:foi nessa noite silenciosa que um sopro de prata, bem distante das bolhas brancasda proa, foi avistado. Iluminado pela lua, parecia celestial; parecia um deusemplumado e resplandecente surgindo do mar. Fedallah foi o primeiro a avistaresse jato. Pois nessas noites de luar ele costumava subir ao topo do mastroprincipal e ficar vigiando ali com a mesma atenção que teria durante o dia. Noentanto, embora vários bandos de baleias fossem avistados durante a noite, nemmesmo um de cada cem baleeiros se arriscaria a descer os botes para elas.Imagine então com que emoção os marinheiros contemplaram o velho Orientalempoleirado no topo do mastro numa hora tão incomum; seu turbante e a lua,companheiros no mesmo céu. Mas depois de passar diversas noites sucessivas láem cima, em intervalos regulares, sem proferir uma palavra; quando, depois detodo esse silêncio, escutaram sua voz sobrenatural anunciando o jato de pratailuminado pela lua, todos os marinheiros que estavam deitados se puseram de pé,como se um espírito alado tivesse descido ao cordame e saudado a mortaltripulação. “Lá está ela soprando!” Se a trombeta do Juízo Final houvesse soado,eles não teriam tremido mais; e, no entanto, não sentiam terror; mas, antes,prazer. Pois apesar do inusitado da hora, o grito foi tão impressionante, tãodelirantemente excitante, que quase todos a bordo instintivamente desejaramdescer à água.

Andando no convés a passos rápidos e aos solavancos, Ahab ordenou quecolocassem os joanetes e os mastaréus de sobrejoanete e desfraldassem todas asvelas auxiliares. O melhor homem do navio deve se ocupar do leme. Então, comtodos os mastros guarnecidos, a embarcação deslizou de vento em popa. Aestranha tendência da brisa dos balaústres de popa, a soerguer e levantar,preenchendo o vazio das tantas velas, tornava leve o convés ondulante eflutuante, como houvesse ar sob nossos pés; enquanto o navio avançava, como se

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duas influências antagônicas ali lutassem – uma para subir diretamente ao céu,outra para guinar rumo a algures no horizonte. Se você tivesse visto a cara deAhab naquela noite, pensaria que dentro dele também duas coisas diferentesestavam em guerra. Enquanto sua única perna viva produzia ecos vivos noconvés, cada golpe de sua perna morta soava como o baque da tampa de umcaixão. Sobre a vida e sobre a morte, este velho caminhava. Mas embora o naviotão velozmente deslizasse, e de todos os olhos, feito flechas, olhares ansiosos seatirassem, o jato prateado não se viu mais naquela noite. Todos os marinheirosjuraram tê-lo visto uma vez, mas não duas.

Este sopro da meia-noite já quase se tornara algo esquecido, quando, algunsdias depois, ah!, à mesma hora silenciosa, foi outra vez anunciado: todos oavistaram de novo; mas, ao desfraldar as velas para alcançá-lo, mais uma vezdesapareceu, como se nunca tivesse existido. E assim sucedeu, noite após noite,até que ninguém mais lhe deu atenção, a não ser para admirá-lo. Misteriosamentejorrava à límpida luz da lua, ou das estrelas, conforme o caso; desaparecendooutra vez um dia inteiro, ou dois, ou três; e, de certo modo, a cada uma das suasreaparições, parecendo surgir sempre mais distante à nossa frente, este jorrosolitário parecia atrair-nos sempre em frente.

Nem mesmo com a antiga superstição de sua raça e nem com a influência docaráter sobrenatural que em muitas coisas parecia envolver o Pequod, faltavammarinheiros prontos a jurar que, sempre e onde quer que fosse avistado; emcircunstâncias ou em latitudes e longitudes bem diversas, aquele soproinalcançável era lançado por uma única baleia; e essa baleia era Moby Dick.Durante algum tempo também reinava um sentimento particular de terrorcausado por essa efêmera aparição, como se viesse traiçoeiramente convidar-nos aseguir sempre em frente, para que o monstro pudesse nos atacar de repente e,por fim, nos estraçalhar nos mais remotos e selvagens mares.

Essas apreensões temporárias, tão vagas, mas tão terríveis, extraíamextraordinária força do contraste tão espetacular com o tempo sereno, que algunsachavam que por debaixo da brandura do azul se escondia um encantamentodiabólico, pois durante dias e mais dias viajamos por mares tão enfadonhos edesoladamente amenos, que todo o espaço, como em oposição à nossa missão devingança, parecia esvaziar-se de vida diante de nossa proa em forma de túmulo.

Mas, finalmente, depois de termos rumado para leste, os ventos do Cabocomeçaram a uivar à nossa volta, e subimos e descemos nas águas turbulentasdali; quando o Pequod com os seus dentes de marfim se inclinou bruscamentediante da tempestade e feriu as ondas negras com sua loucura, até que, comouma chuva de prata, os flocos de espuma ultrapassaram sua amurada; então todoesse desolado esvaziamento da vida se foi, mas deu lugar a visões ainda mais

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sinistras do que antes.Perto da proa, estranhas formas na água corriam de lá para cá diante de nós;

enquanto compactos atrás de nós revoavam os misteriosos corvos do mar. E todasas manhãs, empoleiradas nos estais, fileiras inteiras desses pássaros eram vistas;que, malgrado os nossos gritos, se mantinham longo tempo obstinadamente fixosno cânhamo, como se tomassem nosso navio por uma embarcação à deriva,abandonada; um objeto destinado à desolação, e, assim, um poleiro adequado àssuas almas errantes. E se elevava e arremessava, e sem descanso ondulava o marnegro, como se suas vagas enormes fossem uma consciência; e a grande alma domundo sentisse angústia e remorso pelos pecados e sofrimentos que tinhacausado.

Cabo da Boa Esperança, é como te chamam? Antes Cabo das Tormentas, comote chamavam outrora; pois, longamente seduzidos pelo pérfido silêncio de antes,vimo-nos lançados nesse mar atormentado, onde seres culpados, transformadosnaquelas aves e nestes peixes, pareciam condenados a nadar eternamente semnenhum ancoradouro, ou a voar no espaço negro sem horizonte. Mas tranqüilo,invariável e branco; sempre apontando sua fonte de plumas para o céu; sempreacenando de longe para avançarmos, o jato solitário ainda por vezes era avistado.

Durante toda essa escuridão dos elementos, Ahab, embora assumindo naocasião o quase incessante comando do convés alagado e perigoso, manifestava amais lúgubre reserva; e ainda menos que antes se dirigia aos seus oficiais. Emmomentos tempestuosos como esses, depois de tudo amarrado em cima eembaixo, não havia mais nada a ser feito a não ser aguardar passivamente odesenrolar da tempestade. O Capitão e a tripulação tornavam-se então fatalistasincontestáveis. Assim, com a perna de marfim colocada no orifício habitual, ecom uma mão segurando firmemente um ovém, Ahab passava horas e horas depé, olhando fixamente para a direção do vento, enquanto uma rajada ocasionalde granizo ou neve praticamente congelava suas pestanas. Enquanto isso, atripulação, retirada da parte dianteira do navio pelas ondas perigosas, quequebravam com estrondos sobre a proa, fazia uma fila ao longo da amurada, nopoço; e, para se proteger melhor da invasão das ondas, todos os homens seagarravam a uma espécie de bolina presa ao parapeito, na qual se balançavamcomo por um cinto muito grande. Poucas palavras, quiçá nenhuma palavra foidita; e o navio silencioso, como que tripulado por marinheiros de cera pintada,prosseguiu, dia após dia, através da loucura e alegria veloz das ondas demoníacas.De noite, a mesma mudez da humanidade diante dos gritos do oceanoprevalecia; ainda em silêncio, os homens balançavam nas bolinas; ainda sempalavras, Ahab enfrentou a tormenta. Mesmo quando a natureza cansada pareciapedir repouso, ele não buscava esse repouso na rede. Starbuck jamais conseguiu

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esquecer o aspecto do velho, quando, certa noite, ao descer à sua cabine para vero barômetro, deparou com ele, de olhos fechados, sentado em sua cadeiraaparafusada no chão; a chuva e o granizo meio derretido da tempestade da qualhavia saído pouco antes ainda gotejando lentamente do chapéu e do casaco quenem tirara. Sobre a mesa ao seu lado, encontrava-se enrolada uma daquelas cartasde mares e correntes às quais me referi antes. Na sua mão firmemente cerrada,balançava uma lamparina. Embora o corpo estivesse ereto, a cabeça estava jogadapara trás, de tal modo que os olhos fechados estavam fixos no axiômetro quependia de uma trave no teto.{a}

Que velho terrível!, pensou Starbuck com um calafrio, dormindo nestatempestade, tu ainda olhas com determinação para o teu propósito.

{a} A bússola da cabine se chama axiômetro [tell-tale em inglês, “revelador”] porque o Capitão, sem ter queir à bússola do leme, pode se informar do curso do navio enquanto está sob o convés. [N. A.]

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52 O ALBATROZ

A sudeste do cabo, ao largo das distantes ilhas Crozet, numazona boa para a pesca de baleias francas, apareceu um navio, chamado Goney[Albatroz]. Enquanto se aproximava lentamente, eu, do meu poleiro privilegiadono mastro de proa, tinha excelente visão daquele espetáculo tão notável para umnovato da pesca em oceanos longínquos – um navio baleeiro há muito tempodistante da pátria.

Como se as ondas houvessem sido lavadeiras, esse navio desbotara como oesqueleto de uma morsa encalhada. Em todo o costado, a espectral aparição erarajada por compridas nervuras de ferrugem avermelhada, enquanto todas asvergas e o cordame eram como enormes galhos de árvores cobertos de geada.Apenas as velas inferiores estavam içadas. Uma bárbara visão eram os barbudosgajeiros no topo dos três mastros. Pareciam vestidos com peles de animais, tãorasgado e remendado era o vestuário que sobrevivera a quase quatro anos deviagem. De pé nos aros de ferro presos ao mastro, ficavam se equilibrando ebalançando sobre um mar insondável; quando o baleeiro deslizou lentamentepara perto de nossa popa, todos nós, seis homens no ar, ficamos tão perto uns dosoutros que poderíamos ter saltado do topo do mastro de um navio para o dooutro; mas aqueles pescadores de aspecto lastimável, observando-nospacatamente enquanto passávamos, não disseram nenhuma palavra aos nossosgajeiros, quando a saudação do tombadilho foi ouvida lá embaixo.

“Ó, de bordo! Vistes a Baleia Branca?”Mas quando o capitão desconhecido, debruçando-se sobre a pálida amurada, ia

levar o porta-voz à boca, este se soltou de sua mão e acabou caindo no mar; e,com o vento soprando agora furiosamente, ele tentava em vão se fazer ouvir semaquilo. Enquanto isso, seu navio aumentava a distância entre nós. Quando osmarinheiros do Pequod, por vários modos silenciosos, demonstravam atribuir esteincidente agourento à simples menção do nome da Baleia Branca a um outronavio, Ahab parou por um momento; até parecia que ele iria descer um bote paraabordar o desconhecido, se o vento ameaçador não o houvesse impedido. Mas,valendo-se da sua posição a favor do vento, pegou novamente seu porta-voz e,sabendo que por seu aspecto a estranha embarcação era de Nantucket e que logoestaria de volta, bradou em voz alta: “Ó, de bordo! Este é o Pequod, dando a voltaao mundo! Digam a todos que as próximas cartas devem ser endereçadas para ooceano Pacífico! E se dentro de três anos eu não estiver de volta digam que devem

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endereçá-las para –”.Naquele momento, os dois rastros se cruzaram e, instantaneamente, então, a

seu modo singular, cardumes de inofensivos peixinhos, que alguns dias antesvinham nadando placidamente ao nosso lado, dispararam para longe com suasbarbatanas aparentemente trêmulas e alinharam-se aos flancos da estranhaembarcação. Mesmo que ao longo de contínuas viagens Ahab tivesse visto muitosfenômenos semelhantes, no entanto, para um monomaníaco, as ocorrências maistriviais portam significados caprichosos.

“Fugindo de mim?”, murmurou Ahab, olhando a água. Pareciam palavrassimples, mas o tom transmitia uma tristeza profunda e consternada, como ovelho demente jamais demonstrara. Voltando-se ao timoneiro, que até entãomantinha o navio a barlavento, para diminuir a velocidade, gritou, com a sua vozde leão velho, – “Pegue no leme! Rumo à volta ao mundo!”

Volta ao mundo! Há nessas palavras algo que inspira um sentimento deorgulho; mas aonde nos leva toda essa circunavegação? Apenas através deinúmeros perigos e ao mesmo ponto de onde partimos, onde aqueles quedeixamos em segurança estavam o tempo todo diante de nós.

Se este mundo fosse uma planície infinita e, ao navegar para o oriente,pudéssemos sempre alcançar novas distâncias e descobrir espetáculos maisagradáveis e estranhos do que as Cíclades ou as ilhas do rei Salomão, então aviagem conteria uma promessa. Mas no encalço daqueles mistérios remotos comque sonhamos, ou na caçada atormentada do fantasma demoníaco que, vez poroutra, nada à frente de todos os corações humanos; enquanto permanecemosnessa perseguição ao redor do globo, tais mistérios nos levam a labirintos áridosou na travessia nos largam submersos.

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53 O GAM

A razão expressa pela qual Ahab não foi a bordo do baleeiro de quefalávamos foi esta: o vento e o mar agouravam tempestades. Mas, mesmo que nãotivesse sido este o caso, ele, afinal de contas, talvez não o fizesse – a julgar por suaconduta subseqüente em ocasiões similares – se ocorresse que, no processo dasaudação, recebesse uma resposta negativa à pergunta que fazia. Pois, como porfim se revelou, ele não dava importância à convivência, nem mesmo por cincominutos, com um capitão desconhecido, a não ser que este pudesse contribuircom alguma informação sobre o que ele arrebatadamente buscava. Mas tudo issopode ainda ser avaliado inadequadamente, se aqui não se disser alguma coisasobre os costumes particulares dos navios baleeiros quando se encontram emáguas estrangeiras, e em especial numa mesma zona de navegação.

Quando dois estranhos, atravessando as áridas terras de Pine Barrens, noEstado de Nova York, ou as igualmente desoladas planícies de Salisbury, naInglaterra, casualmente se encontram em tais agrestes inóspitos, eles não deixam,de maneira alguma, de fazer uma saudação mútua; e de parar por um momentopara trocar notícias; e, talvez, de sentar um pouco e descansar conciliados: assim,seria ainda mais natural que, nas ilimitadas Pine Barrens e Salisbury do mar, doisnavios baleeiros que se avistam nos confins do mundo – ao largo da isolada ilhade Fanning, ou das distantes King’s Mills; muito mais natural, repito, que em taiscircunstâncias, os navios não apenas trocassem saudações, como tivessem umcontato mais próximo, amistoso e sociável. E isso pareceria especialmenteobrigatório no caso de duas embarcações que pertencessem ao mesmo porto, ecujos capitães, oficiais e não poucos marinheiros se conhecessem pessoalmente; eque, conseqüentemente, tivessem todos os tipos de diletos assuntos domésticospara conversar.

Para o navio ausente há mais tempo, o que ainda está em início de viagem,talvez, traz cartas a bordo; de qualquer modo, este certamente terá alguns jornaisum ou dois anos mais recentes do que o outro, nas suas tão surradas ecompulsadas pastas. Para compensar a gentileza, o navio que está começando aviagem receberia as últimas notícias baleeiras sobre a zona de caça à qual sedestina, informação de importância capital. E do mesmo modo tudo isso valetambém para os navios baleeiros que se cruzam na mesma zona de caça, mesmoque ambos estejam há muito longe da pátria. Pois um deles pode ter recebidouma transferência de cartas de um terceiro navio, agora distante; e algumas

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dessas cartas podem ser destinadas a pessoas do navio encontrado. Além disso,trocariam notícias baleeiras e teriam uma conversa agradável. Pois não apenasesses homens contariam com toda a simpatia dos marinheiros, mas também comas solicitudes peculiares que surgem de uma mesma busca e privações e perigosmutuamente compartilhados.

Tampouco a diferença de país faria grande diferença; isto é, desde que os doisgrupos falassem a mesma língua, como é caso dos norte-americanos e dosingleses. Ainda que, a bem da verdade, devido ao pequeno número de baleeirosingleses, tais encontros não ocorram com muita freqüência, e, quando ocorrem, éfácil haver um certo acanhamento entre os dois; pois o Inglês é um tantoreservado, e o Ianque não aprecia esse tipo de coisa em mais ninguém a não sernele mesmo. Além disso, os baleeiros Ingleses, às vezes, demonstram um tipo desuperioridade metropolitana em relação aos baleeiros Norte-Americanos,considerando o que vem de Nantucket, alto e magro, com sua tacanhiceindescritível, uma espécie de caipira do mar. Mas seria difícil dizer em queconsiste realmente essa superioridade dos baleeiros ingleses, visto que os Ianquesmatam, em conjunto, mais baleias em um dia do que os Ingleses todos em dezanos. Mas essa é uma fraqueza menor e inofensiva dos baleeiros Ingleses, que osde Nantucket não levam muito a sério; provavelmente porque sabem quetambém têm as suas próprias fraquezas.

Assim, pois, vemos que de todas as embarcações que navegam no oceano osbaleeiros são os que têm mais motivos para ser sociáveis – e, de fato, o são. Aopasso que alguns navios mercantes que cruzam as rotas no meio do Atlântico, àsvezes, prosseguem sem trocar uma única palavra de reconhecimento, passandoum pelo outro em alto-mar como dois dândis na Broadway; e, talvez,refestelando-se o tempo todo com críticas mordazes sobre a aparência do outro.Quanto aos navios de guerra, quando se encontram por acaso no mar, executamlogo de início uma tal série de tolas mesuras e rapapés, uma tal agitação debandeiras, que não parece haver muita sinceridade cordial, boa vontade ou amorfraternal nisso tudo. No que tange aos navios negreiros, ora, estes estão semprecom tanta pressa, que fogem uns dos outros o mais depressa possível. Quanto aospiratas, quando seus ossos cruzados se cruzam, a primeira saudação que fazem é– “Quantas caveiras?” –, do mesmo modo que os baleeiros fazem a saudação –“Quantos barris?”. E, com a pergunta assim respondida, os piratas separam-seimediatamente, pois são todos canalhas de quatro costados e não lhes agrada vertanta semelhança com a canalhice alheia.

Mas veja o navio baleeiro, piedoso, honesto, humilde, hospitaleiro, sociável esimples! O que faz o baleeiro quando encontra outro baleeiro e o tempo éagradável? Faz um gam, uma coisa tão completamente desconhecida de outros

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navios, que nunca sequer ouviram esse nome; e, se, por acaso ouvissem, sorririamcom superioridade e fariam gracejos sobre “jatos” e “caldeiras de gordura”, eoutras exclamações jocosas. Por que será que os marinheiros mercantes, etambém os piratas e marujos de navios de guerra e de navios negreiros, sentemtanto desdém pelos navios baleeiros? É uma pergunta difícil de responder. Pois,no caso dos piratas, por exemplo, eu gostaria de saber se há algum tipo de glóriaem sua profissão. Às vezes, terminam numa posição elevada incomum, de fato;mas só no alto de um cadafalso. E, além disso, quando um homem é elevadodesse modo insólito, talvez não tenha fundamento o bastante para tantasuperioridade. Portanto, devo concluir que o pirata, ao se vangloriar de estaracima do baleeiro, não encontra nessa asserção nenhuma base sólida para sesustentar.

Mas o que é um gam? Você pode gastar o indicador percorrendo as colunasdos dicionários e jamais encontrar essa palavra. O Dr. Johnson nunca alcançou talerudição; a arca de Noé Webster não a inclui. Não obstante, essa palavraexpressiva é usada constantemente há muitos anos por cerca de quinze milIanques legítimos. É claro que necessita de uma definição e que deveria serincorporada ao Léxico. Com este objetivo, vou defini-la com erudição.

GAM. Substantivo – Encontro social de dois (ou mais) navios baleeiros, em geral,nas zonas de caça; quando, depois da troca de saudações, as tripulações nos botesse visitam mutuamente: os dois capitães permanecendo temporariamente abordo de um navio, e os dois primeiros imediatos no outro.

Há mais um pormenor relacionado com o gam que não pode ser aqui esquecido.Todas as profissões têm os seus próprios detalhes peculiares; assim também écom a pesca das baleias. Num navio de guerra, de piratas ou de escravos, quandoo capitão é levado de bote para algum lugar, sempre se senta na popa, ali, numassento confortável e acolchoado, e, com freqüência, pilota ele mesmo com umacana de leme muito bonita, decorada com laços e fitas alegres. Mas o botebaleeiro não tem assento na popa, nenhum tipo de sofá e nada de cana de leme.Que grande coisa seria se os capitães baleeiros fossem transportados pelas águasem sofás elegantes, como antigos conselheiros em cadeiras de rodas. Quanto àcana de leme, um baleeiro jamais admite tal efeminação; portanto, quando háum gam, a tripulação toda do bote deve sair do navio, e nesse grupo é o arpoadorquem leva o leme do bote, o subordinado é então o timoneiro, e o capitão, semlugar para se sentar, é transportado de pé, como um pinheiro, para a sua visita.Muitas vezes, percebe-se que, estando consciente de que os olhos de todo omundo visível estão voltados para ele dos costados dos dois navios, esse ereto

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capitão atenta para a importância de sustentar sua dignidade, mantendo-se empé. O que não é uma tarefa muito fácil; pois na popa também fica o enormeremo do piloto que, ao se mover, vez por outra, bate em suas costas, e o remo dafrente retribui, dando-lhe pancadas nos joelhos. Preso dessa forma, pela frente epor trás, ele pode apenas se mexer para os lados, apoiando-se nas pernasesticadas; mas um balanço súbito e violento do bote pode fazê-lo tombar, pois aextensão da base não é nada sem a largura correspondente. Faça um simplesângulo bem aberto com duas varetas e veja como não consegue mantê-las em pé.Também não conviria, diante dos olhos cravados do mundo todo, não seria nadaconveniente, repito, que esse capitão de pernas abertas fosse visto agarrandoalguma coisa com as mãos, por menor que fosse, para se equilibrar; de fato,como sinal de seu autocontrole pleno e flutuante, ele em geral coloca as mãos nobolso da calça; mas talvez, por serem, em geral, mãos grandes e pesadas, ele alias coloque como lastro. Ainda assim, há casos, de todo bem documentados, emque o capitão, num momento mais crítico, digamos, numa borrasca, pegou noscabelos do remador mais próximo e ali se agarrou como a morte implacável.

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54 A HISTÓRIA DO TOWN-HO(TAL COMO FOI

CONTADA NA

ESTALAGEM

DOURADA)

O Cabo da Boa Esperança, e toda a região das águas à sua volta,se parece muito com uma encruzilhada de uma estradaimportante, onde se encontram mais viajantes do que emqualquer outro lugar. Não muito tempo depois do Goney,encontramos o Town-Ho,{a} um outro baleeiro de regresso àpátria. Era tripulado quase inteiramente por Polinésios. Durante

o breve gam que se seguiu, trouxe-nos grandes notícias de Moby Dick. Paraalguns, o interesse geral pela Baleia Branca então aumentou muito devido a umacircunstância da história do Town-Ho, que parecia obscuramente envolver com abaleia uma certa manifestação espantosa, invertida, de um desses chamadosjulgamentos de Deus, que, segundo dizem, às vezes arrebatam alguns homens.Tal circunstância, e seus desdobramentos particulares, que constituem o que sepode chamar de parte secreta da tragédia a ser contada, nunca chegou aosouvidos do Capitão Ahab ou de seus imediatos. Pois essa parte secreta da históriaera desconhecida do próprio capitão do Town-Ho. Era propriedade particular detrês confederados, marinheiros brancos daquele navio, um dos quais, ao queparece, a comunicou a Tashtego, com romanas injunções de sigilo, mas na noiteseguinte Tashtego falou durante o sono e revelou uma parte tão grande quequando acordou não podia mais deixar de contar o resto. Não obstante, isso teveuma influência tão poderosa sobre os marinheiros do Pequod que ficaramsabendo da história toda, que decidiram manter o segredo entre eles, isso poruma delicadeza estranha, por assim dizer, para que nunca transpirasse à ré domastro principal do Pequod. Tecendo corretamente esta linha obscura em meio àhistória que foi narrada em público no navio, começo agora um registrocompleto e extenso desse caso estranho.

A bem do meu próprio humor, preservarei o estilo que usei para narrar certavez em Lima, para um círculo ocioso de amigos espanhóis, na véspera de umferiado santo, fumando na varanda de telhas douradas da Estalagem Dourada.Daqueles cavalheiros elegantes, os jovens dons, Pedro e Sebastian, eram os maispróximos; por isso, as perguntas deles feitas durante o relato foram respondidasna mesma hora.

“Cerca de dois anos antes de quando fiquei sabendo sobre os eventos que voulhes narrar, senhores, o Town-Ho, baleeiro de Nantucket, atravessava este vossoPacífico, estando a poucos dias de viagem a oeste das beiras desta boa Estalagem

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Dourada. Estava algures ao norte da linha do Equador. Certa manhã, aoacionarem as bombas como era o costume diário, observaram que o porão estavafazendo mais água do que de costume. Supuseram que um peixe-espada tivesseatingido o navio, senhores. Mas o capitão, tendo inusitadas razões para acreditarque uma sorte especial o aguardava naquelas latitudes; e por isso não querendoabandoná-las, e o vazamento não tendo sido considerado perigoso, embora, defato, não conseguissem achá-lo depois de procurarem no porão até a sua porçãomais baixa, com um tempo bastante ruim, o navio continuou seu cruzeiro, osmarinheiros trabalhando nas bombas a intervalos largos e cômodos; mas a boasorte não veio; passaram-se mais dias, e não apenas ainda não haviam achado ovazamento, como também sensivelmente este aumentara. Tanto que, então umpouco alarmado, o capitão se encaminhou a todo o pano para o porto maispróximo das ilhas, para examinar e consertar o seu casco.

“Embora não tivesse uma travessia curta diante de si, o capitão, se a sorte maiscomum o favorecesse, não receava que seu navio fosse a pique durante ocaminho, porque suas bombas eram das melhores e, mesmo ficandoperiodicamente sem elas, os seus trinta e seis homens poderiam facilmentemanter o navio flutuando; ainda que o vazamento dobrasse de tamanho. Naverdade, sendo quase toda a travessia servida por uma brisa propícia, o Town-Hoteria chegado em segurança total ao porto sem que ocorresse a menor fatalidade,não fosse pela arrogância brutal de Radney, o imediato, de Nantucket, e aconseqüente vingança cruel de Steelkilt, um lacustre, um criminoso de Buffaloque não tinha nada a perder.

“Um lacustre! – De Buffalo! Por favor, o que vem a ser um lacustre, e onde ficaBuffalo?”, disse Don Sebastian, erguendo-se de sua esteira de palha.

“Na margem leste de nosso lago Erie, Don Sebastian; mas – rogo-lhe agentileza – o senhor logo saberá mais a esse respeito. Ora, senhores, em briguesde velas quadradas ou navios de três mastros, quase tão grandes e tão fortes comoqualquer um dos que tenham zarpado do seu porto de Callao para a distanteManila; este lacustre, no coração da nossa América, crescera alimentado por todasessas impressões bucólicas da pilhagem popularmente associadas ao mar aberto.Pois, em seu conjunto interligado, esses nossos grandes mares de água doce – oErie, o Ontário, o Huron, o Superior e o Michigan – possuem uma expansividadecomo a do oceano, com muitas das características mais nobres do oceano; commuitas variedades de raças e de climas. Contêm arquipélagos circulares de ilhasromânticas, como nas águas da Polinésia; em grande parte, estão cercados pordois grandes países contrastantes, assim como o Atlântico; servem de grandescaminhos marítimos para as nossas numerosas colônias no território do leste, quepontilham suas margens; aqui e ali se encontram sob a carranca das baterias e

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dos escabrosos canhões espalhados como cabras no soberbo Mackinaw; ouviramo estrondo das vitórias navais; por vezes, entregaram suas praias a bárbarosselvagens, cujos rostos vermelhos pintados cintilam em suas tendas de pele; porléguas e léguas, são margeados de antigas florestas interditas, onde pinheiroslúgubres parecem fileiras cerradas de reis nas linhagens góticas; essas mesmasflorestas que abrigam selvagens feras africanas e sedosas criaturas, cuja peleexportada veste os imperadores tártaros; espelham as capitais pavimentadas deBuffalo e Cleveland, assim como os vilarejos de Winnebago; navega aí o naviomercante equipado, o cruzeiro armado do Estado, o barco a vapor e a canoa debétula; são varridos por ventos boreais e rajadas desmastreadoras tão medonhasquanto as de água salgada; sabem o que são naufrágios, pois longe dos olhos, masno interior, afundaram ali muitos navios à meia-noite com toda a tripulação aosgritos. Por isso, senhores, embora fosse do interior, Steelkilt nasceu no oceanobravio e foi criado no oceano bravio, tanto quanto qualquer outro marinheiroaudacioso. Quanto a Radney, embora na infância tivesse se deitado na praiaisolada de Nantucket, embalado pelo oceano maternal; embora durante toda asua vida tivesse seguido o nosso Atlântico austero ou o seu Pacífico contemplativo;ainda assim, era tão vingativo e briguento quanto um marinheiro matuto, quenão sabe o que é o chifre no cabo de um punhal. Mas o homem de Nantuckettinha alguns traços de bondade, e o lacustre, Steelkilt, era um marinheiro que,apesar de ser praticamente um diabo, podia, com uma firmeza inflexível apenasabrandada pela decência do reconhecimento humano, que é o menor dos direitosde um escravo, permanecer inofensivo e dócil. Em todas as ocasiões, sempreprovara ser assim; mas Radney estava condenado e enlouquecido, e Steelkilt –ora, senhores, ouçamos.

“Não mais do que um ou dois dias, no máximo, após ter apontado sua proarumo àquele porto na ilha, o vazamento do Town-Ho parecia estar novamenteaumentando, mas só a ponto de requerer uma hora ou mais das bombas por dia.Os senhores devem saber que em um oceano colonizado e civilizado como onosso Atlântico, por exemplo, alguns capitães nem pensam em usar as bombasdurante toda a travessia; mas, se numa noite tranqüila e indolente um oficial doconvés se esquece do seu dever, os riscos são de que ele e os seus companheirosde bordo nunca mais se lembrem de nada, pois irão todos aqueles braços gentisrepousar no fundo do mar. Mesmo nos mares solitários e selvagens, lá bem longedos senhores, no oriente, é bastante incomum os navios manterem ativa amanivela da bomba, até numa viagem consideravelmente longa; isto é, seestiverem ao largo de uma costa razoavelmente acessível, ou se algum outrorecuo razoável for possível. Apenas quando uma embarcação com um vazamentoestá num lugar muito distante dessas águas, em alguma latitude sem terra à vista,

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é que o seu capitão começa a ficar um pouco ansioso.“Muito próximo disso foi o que se passou com o Town-Ho; e assim, quando se

descobriu que o seu vazamento começava a crescer de novo, na verdade houvealguma preocupação manifestada pelo grupo; especialmente Radney, o imediato.Ele ordenou que as velas superiores fossem içadas, as escotas puxadas e que asvelas ficassem abertas ao vento. Ora, este Radney, suponho, era tão poucocovarde, tão pouco inclinado à apreensão nervosa no que dizia respeito à suapessoa, quanto qualquer outra criatura irracional e destemida, da terra ou domar, que se possa imaginar, meus senhores. Por esse motivo, quando demonstroutal solicitude quanto à segurança do navio, alguns marinheiros declararam quefoi apenas porque ele era um dos proprietários. Então, naquela noite, enquantotrabalhavam nas bombas, não era pouca a malícia das brincadeiras entre eles,com os seus pés enfiados na água clara ondulante; clara como a fonte namontanha, senhores – o borbulhar das bombas atravessou o convés e jorrou emsopros uniformes no mar, pelos embornais a sotavento.

“Agora, como os senhores bem sabem, não é raro o caso neste nosso mundoconvencional – das águas ou outro – de que uma pessoa no comando dos seussemelhantes pense que um deles lhe seja superior em orgulho viril, e que por issosinta imediatamente uma aversão e rancor incontroláveis; e assim que tiver umachance irá derrubar e pulverizar a torre desse subalterno, e fazer dela um montede poeira. Seja lá o que for, senhores, mas em qualquer hipótese, Steelkilt era umanimal alto e nobre com um perfil romano, e uma barba espessa e dourada comoas franjas dos atavios do fogoso cavalo de guerra do último vice-rei dos senhores;e um cérebro e um coração e uma alma, cavalheiros, que teria feito de Steelkiltum Carlos Magno, houvesse ele nascido do pai de Carlos Magno. Mas Radney, oimediato, era feio como uma mula; e tão duro, teimoso e malicioso quanto amesma. Não gostava de Steelkilt, e Steelkilt sabia disso.

“Vendo o imediato chegar perto enquanto trabalhava com a bomba junto comos outros, o lacustre fingiu não notá-lo, e sem medo continuou com sua troçadivertida.

“Pois é, meus alegres rapazes, que vazamento mais animado! Um de vocês, aí,pegue uma caneca, e vamos provar. Cruzes, valeria a pena engarrafar! Vou dizeruma coisa, o investimento do velho Rad deve ter valido a pena! É melhor que eletire a sua parte do casco e reboque para casa. A verdade, rapazes, é que o peixe-espada só começou o serviço; ele voltou agora com um cardume de peixes-carpinteiros, peixes-serradores e peixes-lixadores, e não sei o que mais; e todo opelotão está trabalhando arduamente, atacando e cortando o fundo; acho quepara fazer melhorias. Se o velho Rad estivesse aqui, eu sugeriria que ele pulasseao mar e os espantasse. Estão fazendo o diabo com a sua propriedade, isso eu

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garanto. Mas ele é uma alma pura e boa, o Rad, e muito bonito, também.Rapazes, dizem que todo o resto de suas propriedades ele investiu em espelhos.Será que ele daria o molde do seu nariz para um pobre-diabo como eu?

“Malditos sejam! Por que pararam de bombear?”, rugiu Radney, fingindo nãoter escutado a conversa do marinheiro. “Quero ouvi-la trovejar!”

“Sim, sim, senhor”, disse Steelkilt, gaiato como um grilo. “Força, rapazes,força!”, e fez soar aquela bomba como se fossem cinqüenta carros de bombeiros;os homens arregaçaram as mangas e logo se ouviam os pulmões arfando, o quedenotava a tensão máxima das energias vitais.

“Deixando finalmente a bomba, com o resto de seu grupo, o lacustre foi àfrente, arfante, e sentou-se no sarilho; com o rosto afogueado, vermelho, os olhosinjetados de sangue, enxugou da testa o suor copioso. Que demônio trapaceiro,senhores, tomou conta de Radney, para fazê-lo se meter com um homemdaquele, naquele estado de exasperação física, eu não sei; mas foi o queaconteceu. Andando impaciente pelo convés, o imediato ordenou-lhe que pegasseuma vassoura e varresse as pranchas, e também uma pá, e removesse as coisasrepugnantes que um porco solto ali deixara.

“Pois bem, senhores, varrer o convés de um navio no mar é uma tarefadoméstica que, a não ser em caso de tempestades furiosas, sempre é feita à noite;há casos relatados em que essa tarefa foi executada mesmo em navios queestavam afundando. Tal é a inflexibilidade, senhores, dos costumes do mar, e oamor instintivo dos homens do mar pela limpeza; alguns dos quais não iriam seafogar sem primeiro lavar o rosto. Mas em todo navio o uso da vassoura écompetência exclusiva de meninos, se houver meninos a bordo. Além disso, oshomens mais fortes do Town-Ho haviam sido divididos em grupos, que serevezavam nas bombas; e, sendo o mais atlético de todos os marinheiros, Steelkiltfora designado capitão de um dos grupos; conseqüentemente, ele deveria serliberado das tarefas mais simples, que não fossem ligadas aos deveres náuticos, omesmo valendo para os seus companheiros. Menciono todos esses pormenorespara que saibam exatamente como se deram as coisas entre os dois homens.

“Mas não era só isso: a ordem de pegar a pá foi quase tão diretamente dadapara ofender e insultar Steelkilt, como se Radney tivesse cuspido em seu rosto.Todo homem que já embarcou num baleeiro entenderá isso; e tudo isso, e semdúvida muito mais, o lacustre compreendeu perfeitamente quando o imediatodeu a ordem. Mas sentou-se calado por alguns instantes, olhou com firmeza paraos olhos malignos do piloto e percebeu que neles havia barris de pólvoraempilhados e um estopim queimando lentamente; quando instintivamentepercebeu tudo isso, aquela estranha abstenção e a indisposição para açular aspaixões mais profundas de um ser já iracundo – uma aversão sentida por homens

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verdadeiramente corajosos, mesmo quando sobressaltados –, este anônimosentimento imaginário, senhores, arrebatou Steelkilt.

“Portanto, em seu tom costumeiro, apenas entrecortado pelo cansaço em quese encontrava temporariamente, respondeu dizendo que varrer o convés não erasua obrigação, e que não o faria. E então, não mencionando a pá, apontou para ostrês rapazes que costumavam varrer o convés, os quais não tinham sido escaladospara as bombas e portanto não tinham feito quase nada ou nada mesmo o diainteiro. A isso, Radney respondeu com blasfêmias, repetindo incondicionalmentea sua ordem, de modo arrogante e insultante, ao mesmo tempo em que avançavapara cima do lacustre, que continuava sentado, empunhando um martelo detoneleiro, que apanhara de um barril próximo.

“Esquentado e irritado pelo trabalho intermitente com as bombas, apesardaquele primeiro sentimento anônimo de abstenção, o suado Steelkilt mal podiasuportar tal ousadia no imediato; mas de alguma forma, ainda abafando aconflagração dentro de si, sem falar nada, permaneceu obstinadamente preso aoseu assento até que o raivoso Radney sacudiu o martelo a poucos centímetros deseu rosto, ordenando furiosamente que obedecesse ao comando.

“Steelkilt levantou-se e, dando a volta ao sarilho, sempre seguido peloimediato com o martelo ameaçador, repetiu deliberadamente o seu propósito denão obedecer. Ao perceber que a sua abstenção não surtia o menor efeito, poruma intimação algo terrível e indizível com o punho cerrado, preveniu oestúpido homem ensandecido; porém de nada adiantou. E, desse modo, os doisderam mais uma volta no sarilho, até que, resolvido a não recuar e achando já teragüentado tudo o que podia agüentar, o lacustre parou na escotilha e assim falouao oficial:

“‘Sr. Radney, não vou lhe obedecer. Tire esse martelo daqui ou então tomecuidado’. Mas o imediato predestinado, chegando ainda mais perto de onde olacustre estava parado, sacudiu o pesado martelo a um centímetro dos seusdentes, enquanto repetia uma série de intragáveis maldições. Sem recuar ummilésimo de centímetro; fulminando-o com o destemido punhal do seu olharfito, Steelkilt, fechando sua mão direita atrás de si e trazendo-a para frente, dissea seu perseguidor que se o martelo apenas roçasse a sua face ele (Steelkilt) omataria. Mas, senhores, o louco havia sido marcado pelos deuses para omorticínio. Naquele momento, o martelo tocou o seu rosto; no instante seguinte amandíbula do oficial foi partida ao meio; ele caiu na escotilha jorrando sanguecomo uma baleia.

“Antes que o grito chegasse à popa, Steelkilt sacudiu um dos cabos do mastro,onde estavam dois colegas seus como gajeiros. Os dois eram Canalenses.”

“Canalenses?!”, gritou Don Pedro. “Já vi muitos baleeiros em nossos portos,

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mas nunca ouvi falar em Canalenses. Perdão, mas quem e o que são eles?”“Canalenses, Don Pedro, são os barqueiros do nosso grande canal Erie. O

senhor deve ter ouvido falar deles.”“Não, señor; aqui nesta terra insípida, quente, ociosíssima e hereditária

sabemos muito pouco sobre o seu norte vigoroso.”“É mesmo? Bom, Don Pedro, encha o meu copo de novo. A sua chicha está

muito boa; antes de prosseguir, vou contar-lhes quem são os nossos Canalenses,pois essa informação pode lançar alguma luz sobre a minha história.

“Por trezentas e sessenta milhas, senhores, na extensão total do Estado de NovaYork; através de numerosas cidades populosas e vilarejos prósperos; através degrandes pântanos desabitados e sinistros, e campos cultivados e opulentos defertilidade ímpar; nos bares e nos bilhares; através da mais sagrada das florestassagradas; por arcos romanos sobre rios indígenas; sob o sol e sob a sombra; porcorações felizes ou partidos; por todo o cenário contrastante da terra dos nobresMohawk; e especialmente pelas fileiras de níveas capelinhas, cujas torres seerguem como marcos, onde corre o rio ininterrupto de uma corrupção venezianae muitas vezes sem lei. Lá está, senhores, seu verdadeiro Axanti; lá se lamentamos pagãos; onde sempre se encontram, na porta ao lado; à sombra comprida, aoabrigo padroeiro das igrejas. Por uma curiosa fatalidade, como se nota muitasvezes entre os seus piratas metropolitanos, sempre acampados em torno aospalácios de justiça, assim também os pecadores, senhores, transbordam dassacras cercanias.”

“Será um frade passando?”, perguntou Don Pedro, olhando para a praçapovoada, com uma preocupação divertida.

“Que bom para o nosso amigo do norte que a Inquisição de Dona Isabel estáacabando em Lima”, riu Don Sebastian. “Continue, senhor.”

“Um momento! Perdão!”, exclamou um outro do grupo. “Em nome de todosnós, Limenhos, desejo apenas lhe dizer, senhor marinheiro, que não nos passoudespercebida a sua gentileza ao substituir a Lima de hoje pela remota Veneza, nasua comparação sobre a corrupção. Ah! Não precisa fazer cerimônia, nemmostrar-se surpreso; o senhor conhece o provérbio que corre por toda a costa:‘Corrupta como Lima’. Por certo só faz corroborar a sua afirmação; ou seja, hámais igrejas sempre abertas do que salões de bilhar, e, no entanto, ‘Corruptacomo Lima’. Assim também em Veneza; já estive lá; a cidade sagrada dosabençoados evangelistas, São Marcos! Que São Domingos a purifique! O seu copo!Agradecido, eu vou enchê-lo; bem, agora é a sua vez.”

“Livremente descrito por seus próprios dons, senhores, o Canalense daria umexcelente herói dramático, tão abundantes e pitorescos são os seus ardis. ComoMarco Antônio, por dias e dias ao longo de seu Nilo florido e verdejante, navega

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indolente, brincando descuidado com a sua Cleópatra de faces rosadas,amadurecendo a sua coxa adamascada ao sol no convés. Mas em terra toda essaefeminação acaba. A aparência bandoleira que o Canalense ostenta com tantoorgulho; seu chapéu de lado, alegre e enfeitado com fitas, auguram seu grandiosocondão. Um terror para a inocência sorridente dos vilarejos por onde passa; desua aparência trigueira e atitude arrogante tampouco se escapa nas cidades. Certavez em que vagava por seu canal, recebi boa ajuda de um desses Canalenses;agradeço-lhe de coração; não quero ser ingrato; mas é freqüentemente uma dasprincipais qualidades compensatórias desse homem violento estender a mão paraajudar um pobre estrangeiro em apuros e saquear um rico. Em suma, senhores, aselvageria dessa vida no canal é enfaticamente provada por isto; e mesmo emnossa bravia pesca da baleia havendo tantos desses rematados tipos, quasenenhuma raça de homens, exceto os de Sidney, inspiram tanta desconfiança emnossos capitães baleeiros. O mais curioso é que, para milhares dos nossos garotosrústicos e jovens nascidos ao longo dessas águas, a prova da vida no Grand Canalrepresenta uma simples transição entre ceifar um milharal cristão e singrarafoitamente as águas dos oceanos mais bárbaros.”

“Entendi! Entendi!”, exclamou com ímpeto Don Pedro, derramando a chichaem seus punhos argênteos. “Não há necessidade de viajar! O mundo inteiro éLima. Eu achava que no seu norte temperado as gerações fossem frias e santascomo os outeiros. Mas vamos à história.”

“Senhores, parei quando o lacustre sacudia o brandal. Nem bem o fizeraquando foi cercado por três pilotos novatos e quatro arpoadores, que oempurraram para o convés. Mas, descendo pelas cordas tais malignos cometas, osdois Canalenses acudiram ao tumulto e tentaram arrastar seu homem para ocastelo de proa. Outros marinheiros se juntaram a eles nessa tentativa, e formou-se a balbúrdia infernal; enquanto o valente capitão, para ficar fora de perigo,movia para cima e para baixo um forcado de baleia, instigando os seus oficiais adeter aquele canalha atroz, para castigá-lo no tombadilho. De tempos em tempos,corria para perto da borda revoltosa da confusão e, abrindo o cerco com seuforcado, tentava espetar o objeto de seu ressentimento. Mas Steelkilt e seuscelerados eram demais para eles: conseguiram ganhar o convés do castelo deproa, onde, rolando três ou quatro barris grandes, formando uma fileira com osarilho, esses parisienses do mar entrincheiraram-se atrás da barricada.

“‘Saiam daí, seus piratas!’, rugiu o capitão, ameaçando-os com uma pistola emcada mão, que um camareiro acabara de lhe trazer. ‘Saiam daí, seus degoladores!’

“Steelkilt pulou para a barricada e, caminhando por ali a passos largos,desafiou o pior que as pistolas podiam fazer; mas fez com que o capitãoentendesse claramente que a sua morte (a de Steelkilt) seria o sinal para um

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motim assassino por parte de todos. Receando profundamente que isso setornasse verdade, o capitão recuou um pouco, mas ainda ordenou que osinsurgentes voltassem imediatamente ao seu dever.

“‘O senhor promete que não seremos molestados se o fizermos?’, perguntou olíder do motim.

“‘Voltem! Voltem! – Não faço promessas. – Ao dever! Querem afundar o navioabandonando seus postos numa hora destas? Voltem!’, e levantou outra vez umapistola.

“‘Afundar o navio?’, gritou Steelkilt. ‘É mesmo, pois que afunde. Nenhum denós vai voltar, a não ser que você jure que não irá tocar em nenhum fio do nossocabelo. O que acham, rapazes?’, virando-se para os seus companheiros. Comoresposta, animadamente deram vivas.

“O lacustre agora patrulhava a barricada, o tempo todo de olho no Capitão,soltando frases como estas: – ‘A culpa não é nossa; nós não queríamos; eu disse aele que tirasse o seu martelo da minha frente; isso é coisa de moleque; ele jádevia me conhecer; falei para ele não mexer no vespeiro; acho que quebrei umdedo no maldito queixo dele; os facões não estão no castelo de proa?; vejam essasalavancas, meus caros. Capitão, pelo amor de Deus, veja bem; é só dizer; não sejatolo; esqueça tudo; estamos prontos para voltar; trate-nos decentemente eseremos os seus homens; mas não seremos açoitados’.

“‘Voltem! Não faço promessas. Repito, voltem!’“‘Agora você vai ouvir’, gritou o lacustre, estendendo o braço na sua direção,

‘há poucos de nós aqui (e eu sou um deles) que embarcaram só pela viagem,entendeu? Ora, como o senhor bem sabe, podemos pedir para sermosdispensados assim que a âncora baixar; por isso não queremos uma rixa; não nosinteressa; queremos ser pacíficos; estamos prontos para trabalhar, mas nãoseremos açoitados.’

“‘Voltem’, rugiu o Capitão.“Steelkilt olhou a sua volta por um momento e disse – ‘Vou lhe dizer uma

coisa, Capitão, em vez de matá-lo e ser enforcado por causa de um tratantemiserável, não faremos nada contra o senhor a não ser que sejamos atacados; masenquanto o senhor não der a sua palavra de que não seremos açoitados nãomexeremos um dedo’.

“‘Para o castelo de proa, então, vão para lá. Vou deixá-los ali até que enjoem.Para lá.’

“‘Vamos descer, então?’, gritou o líder a seus homens. A maior parte eracontra, mas por obediência a Steelkilt precederam-no na descida ao seu antrosinistro e desapareceram rosnando, como ursos numa caverna.

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“Assim que a cabeça despida do lacustre chegou à altura das pranchas doconvés, o capitão e a sua súcia pularam sobre a barricada e, puxandorapidamente a peça corrediça da escotilha, colocaram as suas mãos sobre ela epediram em voz alta ao camareiro que trouxesse o cadeado pesado de bronze dotombadilho. Abrindo então um pouco a peça, o Capitão sussurrou algo pelafenda, fechou-a e girou sobre eles – em número de dez –, deixando no convés unsvinte ou mais que se mostraram neutros.

“Durante toda a noite manteve-se a vigília de todos os oficiais, na popa e naproa, especialmente no escotilhão do castelo de proa e na caverna-mestra; poronde temiam que os insurgentes pudessem emergir, caso arrombassem o tabique.Mas as horas de escuridão transcorreram em paz; os homens que continuaramcumprindo os seus deveres, trabalhando arduamente nas bombas, cujo troar eretroar na noite lúgubre sinistramente ressoavam por todo o navio.

“Quando o sol nasceu o Capitão foi para vante, e, batendo no convés, intimouos prisioneiros ao trabalho; mas, aos berros, eles se recusaram. Desceram-lhesentão água, e alguns punhados de biscoitos lhes foram atirados em seguida;quando então novamente o Capitão girou a chave, e, colocando-a no bolso, voltouao tombadilho. Isso se repetiu duas vezes por dia, durante três dias, mas naquarta manhã ouviu-se um tumulto que parecia uma briga, e depois umburburinho, quando as ordens costumeiras foram dadas; de repente, quatrohomens assomaram ao castelo de proa, dizendo que estavam prontos para voltar.O fétido ar enclausurado, a dieta de fome, somados talvez a eventuais temores deuma retaliação definitiva, obrigaram-nos à rendição incondicional. Encorajadopor isso, o Capitão reiterou a sua ordem para o resto, mas Steeklilt gritou-lhe queparasse com o falatório e fosse para o seu lugar. Na quinta manhã outros trêsamotinados irromperam ao ar livre, desvencilhando-se dos braços que tentavamsegurá-los lá embaixo. Apenas três restaram.

“‘É melhor voltar agora!’, disse o Capitão, zombando cruelmente.“‘Tranque-nos de novo!’, gritou Steelkilt.“‘Ah! Pois não!’, disse o Capitão, e a chave girou.“Foi nessa hora, senhores, que, enraivecido pela deserção de sete dos seus

companheiros, mordido pela voz zombeteira que o chamara, e enlouquecidopelo sepultamento de vários dias num lugar escuro como a entranha dodesespero; foi aí que Steelkilt propôs aos dois Canalenses, que até então pareciamestar de acordo com ele, que saíssem do buraco na próxima intimação da guarda;e que, armados com suas facas afiadas (utensílios longos, pesados, em forma decrescente, com um cabo de cada lado), corressem do gurupés ao balaústre dapopa; e, como que por um desespero diabólico, tomassem posse do navio.Quanto a ele, disse que o faria de qualquer jeito, caso se juntassem a ele ou não.

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Esta era a última noite que ele passaria naquele antro. Mas os outros dois não seopuseram ao plano; juraram que estavam prontos para aquilo, ou qualquer outraloucura, qualquer coisa, em suma, exceto a rendição. E, mais do que isso, ambosinsistiram em ser o primeiro a subir ao convés, quando chegasse a hora de agir.Mas a isso seu líder opôs tenaz objeção, reservando a primazia para si mesmo;principalmente porque nenhum de seus dois companheiros cederia ao outronessa questão, e ambos não poderiam subir juntos primeiro, pois a escada sópermitia um homem por vez. E, aqui, senhores, a perfídia desses canalhas deveser revelada.

“Ao ouvir o projeto ensandecido de seu líder, cada um deles arquitetou omesmo golpe traiçoeiro no seu íntimo, a saber: ser o primeiro a sair, para ser oprimeiro dos três, embora o último dos dez, a se entregar; e assim garantirqualquer mínima possibilidade de perdão que tal conduta merecesse. Mas,quando Steelkilt lhes fez saber sua determinação de liderá-los até o fim, de algummodo os dois, por uma química de sutil vilania, mesclaram todas juntas as suastraições secretas; e, quando o líder pegou no sono, expuseram verbalmente, umao outro, as suas idéias em três sentenças; amarraram o adormecido com cordas,e o amordaçaram; e chamaram aos gritos o Capitão à meia-noite.

“Pressentindo a iminência de um assassinato, e farejando o sangue no arescuro, ele e todos os seus companheiros armados e arpoadores avançaram para ocastelo de proa. Em alguns minutos a escotilha foi aberta, e, de pés e mãosatados, o líder ainda se debatendo foi empurrado para cima por seus pérfidosaliados, que imediatamente quiseram receber o crédito pela prisão de umhomem plenamente disposto ao assassinato. Mas foram os três encoleirados earrastados pelo convés como reses mortas; e, lado a lado, foram içados aocordame de mezena, como três quartos de carne, e ali ficaram pendurados até demanhã. ‘Diabos os carreguem!’, gritou o Capitão, andando de um lado para ooutro à frente deles, ‘nem os abutres querem vocês, seus canalhas!’

“Quando o sol raiou, ele convocou todos os marinheiros; e, separando osrebeldes dos que não tomaram parte no motim, disse aos primeiros que tinha aintenção de açoitá-los – que, pensando bem, assim faria –, teria de fazê-lo – que ajustiça assim exigia que fosse; mas agora, levando em consideração a suaoportuna rendição, ele os deixaria ir com uma reprimenda, a qualapropriadamente administrou no vernáculo.

“‘Mas quanto a vocês, seus patifes moribundos’, virando-se para os três homensno cordame – ‘penso em picá-los para a fornalha’; e, pegando uma corda,aplicou-a com toda a força nas costas dos dois traidores, até que parassem degritar e pendessem as cabeças sem vida para o lado, como a ilustração dos doisladrões crucificados.

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“‘Fizeram-me torcer o pulso!’, gritou, finalmente, ‘mas ainda tenho cordasuficiente para você, meu galinho de briga, que não quis desistir. Tirem amordaça da boca dele e vamos ouvir o que ele tem a dizer a seu favor.’

“Por um momento o exausto amotinado moveu a mandíbula trêmula, depois,virando penosamente a cabeça, disse numa espécie de sussurro: ‘O que eu querodizer é o seguinte – preste bem atenção –, se me açoitar, eu te mato!’.

“‘Ah, é? Pois veja como me assusta’, e o Capitão afastou a corda para bater.“‘É melhor não’, sussurrou o lacustre.“‘Mas eu devo’, e a corda foi novamente puxada para o golpe.“Nesse momento, Steelkilt sussurrou algo inaudível para todos, menos para o

Capitão, que, para o espanto de todos, recuou, deu dois ou três passos peloconvés, e, atirando subitamente a corda, disse: ‘Não vou fazer isso – soltem-no –,desçam-no daí: ouviram?’.

“Mas, quando os novatos correram para executar a ordem, um homem pálido,com a cabeça enfaixada, os deteve – Radney, o imediato. Desde o soco, ficaraestendido no beliche; mas naquela manhã, ao escutar o tumulto no convés,arrastara-se para fora e até ali assistira a toda a cena. Tal era o estado de sua boca,que ele mal podia falar; mas murmurou algo sobre ele querer e ser capaz de fazero que o Capitão não ousara tentar; pegou a corda e avançou na direção do seuinimigo atado.

“‘Seu covarde!’, sussurrou o lacustre.“‘Sou mesmo, mas tome isto.’ O imediato estava na posição de açoitá-lo,

quando um outro sussurro deteve o seu braço erguido. Fez uma pausa: e então,sem pausa alguma, fez valer sua palavra, apesar da ameaça de Steelkilt, qualquerque tenha sido. Os três homens foram soltos, todos voltaram ao trabalho, e,fastidiosamente acionadas pelos tristes marinheiros, as bombas de ferro troaramcomo antes.

“Logo depois que escureceu aquele dia, após a troca de turno da vigia, ouviu-seum clamor no castelo de proa; e os dois trêmulos traidores, correndo para cima,pararam diante da porta da cabine, dizendo que não se atreviam a juntar-se àtripulação. Súplicas, bofetões ou pontapés, nada os levaria de volta, por isso,atendendo a seu pedido, foram colocados na popa do navio onde ficariam a salvo.E assim não voltou a haver nenhum sinal de motim entre os outros. Pelocontrário, parecia que, principalmente por instigação de Steelkilt, eles haviamresolvido manter a mais perfeita paz, obedecer a todas as ordens, e, quando onavio chegasse ao porto, desertar em massa. Mas para assegurar o fim maisrápido para a viagem todos concordaram com mais uma coisa – a saber, nãoanunciar caso encontrassem uma baleia. Pois, apesar do vazamento, apesar de

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todos os outros perigos, o Town-Ho continuava com os seus mastros erguidos, eseu Capitão ainda queria descer, como no primeiro dia em que a embarcação saiupara a pesca; e o imediato Radney da mesma forma estava pronto para trocar oseu beliche por um bote, e, mesmo com sua boca enfaixada, tentar amordaçaraté a morte a vigorosa mandíbula da baleia.

“Mas, embora o lacustre tivesse induzido os marinheiros a adotar essa espéciede passividade na conduta, ele mantivera em segredo (ao menos até que tudotivesse terminado) a sua vingança particular e condizente contra o homem que oferira nos ventrículos do coração. Ele estava no turno de vigia do imediatoRadney; e como se o ensandecido corresse em busca de seu destino, após a cenado cordame, ele insistiu, contrariando o conselho do capitão, em reassumir aliderança da vigília à noite. Com isso, mais uma ou duas outras circunstâncias,Steelkilt sistematicamente construiu o plano de sua vingança.

“Durante a noite, Radney costumava sentar-se, de um modo estranho aosmarinheiros, na amurada do tombadilho, encostando o braço na borda de umbote que ficava pendurado, um pouco acima da lateral do navio. Nesta posição,como era sabido por todos, ele às vezes cochilava. Havia um espaço considerávelentre o bote e o navio, e lá embaixo disto tudo era o mar. Steelkilt calculou otempo e viu que o seu próximo turno no leme seria às duas horas, na manhã doterceiro dia após o dia em que fora traído. Calmamente, usou os seus intervalospara tecer algo com muito cuidado, nos quartos embaixo.

“‘O que você está fazendo aí?’, perguntou um companheiro de bordo.“‘O que você acha? O que parece?’“‘Parece um riz para o ilhó da sua sacola, mas me parece meio esquisito.’“‘É mesmo, é um pouco esquisito’, disse o lacustre, estendendo-o diante de si,

‘mas acho que vai resolver. Marujo, não tenho mais cordão – você não teria umpouco?’

“Mas não tinha mais no castelo de proa.“‘Bem, vou ver se consigo algum com o velho Rad’, e levantou-se para ir à

popa.“‘Você não está pensando em pedir bem para ele!’, disse um marinheiro.“‘Por que não? Acha que ele não me fará um favor se é para ajudá-lo no final,

companheiro?’“E aproximando-se do imediato olhou para ele com tranqüilidade e pediu-lhe

um pouco de cordão para consertar a sua rede. Deu-lhe – nem cordão e nem caboforam jamais vistos outra vez; mas na noite seguinte uma bola de ferro, presanuma rede, escorregou parcialmente do bolso do casaco de marinheiro deSteelkilt, quando este o dobrava para usar de travesseiro em sua rede. Vinte e

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quatro horas mais tarde, fazendo o seu turno no leme silencioso – perto dohomem que conseguia dormir sobre o túmulo sempre pronto para o marinheiro–, o momento fatal se aproximava; e, para um espírito predisposto como o deSteelkilt, o imediato já estava completamente estirado como um cadáver, com atesta esfacelada.

“Mas, senhores, um tolo salvou o futuro assassino da ação sanguinária que eleplanejara. Assim ele foi totalmente vingado, sem ser o vingador. Pois que por umafatalidade misteriosa o próprio céu pareceu interferir ao tomar em suas mãos etirando das dele o ato condenável que teria praticado.

“Foi entre a madrugada e o nascer do sol da manhã do segundo dia, quandoestavam lavando o convés, que um estúpido homem de Tenerife, tirando água damesa da enxárcia, começou a gritar de repente: ‘Lá vem ela! Lá vem ela! MeuDeus, uma baleia!’. Era Moby Dick.”

“‘Moby Dick!’, exclamou Don Sebastian. “Por São Domingos! Senhormarinheiro, as baleias têm nome próprio? A quem o senhor trata de Moby Dick?”

“Um monstro muito branco, famoso e imortal, Don; – mas essa é uma históriamuito comprida.”

“Como assim? Como assim?”, suplicaram todos os jovens espanhóis,aglomerando-se.

“Não, senhores, senhores – não e não! Não posso contá-la agora. Deixe-metomar um pouco de ar.”

“A chicha! A chicha!”, pediu Don Pedro, “o nosso amigo vigoroso parece fraco;– encham o copo dele.”

“Não é necessário, senhores, um momento e já posso continuar. Ora, senhores,assim que avistou a nívea baleia a umas cinqüenta jardas do navio – esquecendo-se do pacto combinado pela tripulação –, na excitação do momento, o homem deTenerife, instintiva e involuntariamente, ergueu a voz para o monstro, que poucotempo antes fora avistado nos três taciturnos topos de mastro. Tudo era agorafrenesi. ‘A Baleia Branca! – A Baleia Branca!’ era o grito do capitão, dos pilotos earpoadores, que, inadvertidos dos horrendos rumores, estavam todos ansiosospara capturar o tão famoso e precioso peixe; enquanto a tripulação desconfiadaolhava de soslaio e amaldiçoava a espantosa beleza da vasta massa láctea, queiluminada por um sol luzindo do horizonte se movia e brilhava como uma opalaviva no oceano azul da manhã. Senhores, uma fatalidade estranha permeia todo opercurso destes eventos, como que mapeada antes de o próprio mundo sercartografado. O amotinado era o remador do imediato, e quando arpoavam umpeixe era seu dever sentar-se ao seu lado, enquanto Radney ficava em pé com asua lança na proa, e puxar ou soltar a ostaxa conforme o comando. Além disso,quando os quatro botes foram baixados, o imediato assumiu a dianteira; ninguém

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gritou mais ferozmente de prazer que Steelkilt, ao fazer força com seu remo.Após uma forte arrancada, o arpoador foi rápido, e com o arpão na mão Radneypulou para a proa. Ele estava sempre furioso, ao que parecia, dentro de um barco.Agora seu grito enfaixado era para que o desembarcassem no alto do dorso dabaleia. De bom grado, seus remadores empurraram-no para cima, através de umaneblina cegante que mesclava duas brancuras; até que, de repente, o bote sechocou como que contra um rochedo submerso, e tombou, derrubando oimediato que estava de pé. Naquele instante, quando caiu no dorso escorregadioda baleia, o bote se endireitou e foi arremessado por uma ondulação, enquantoRadney era jogado ao mar, do outro lado da baleia. Ele se bateu por entre osborrifos, e, por um instante, foi visto difusamente, através daquele véu,desesperadamente buscando afastar-se do olho de Moby Dick. Mas a baleiaarremeteu de volta num súbito redemoinho; prendeu o nadador entre as maxilas;e erguendo-se com ele bem alto mergulhou de cabeça outra vez, e afundou.

“Entrementes, no primeiro toque do fundo do bote, o lacustre soltara a ostaxa,para que caísse atrás do sorvedouro; olhando tudo calmamente, pensou com osseus botões. Mas um solavanco brusco, terrível e para baixo no bote de repentelevou sua faca para a ostaxa. Ele a cortou; e a baleia estava livre. Mas, a uma certadistância, Moby Dick emergiu outra vez, com alguns retalhos da blusa de lãvermelha de Radney presos nos dentes que o haviam destruído. Os quatro botesretornaram à caça; mas a baleia os evitou e finalmente desapareceu porcompleto.

“Em boa hora, o Town-Ho chegou a seu porto – um lugar selvagem, solitário –,onde não vivia nenhuma criatura civilizada. Ali, conduzidos pelo lacustre, todos,exceto uns cinco ou seis dos homens do mastro de proa, desertaramdeliberadamente por entre as palmeiras; por fim, conforme se viu, tomando umagrande canoa de guerra dupla dos selvagens e velejando para um outro porto.

“Estando a tripulação do navio reduzida apenas a um punhado de homens, ocapitão pediu aos ilhéus que o ajudassem na laboriosa tarefa de erguer o naviopara consertar o vazamento. Mas tal foi a vigilância desses aliados perigososexigida do pequeno grupo de brancos, tanto de dia quanto de noite, e o trabalhotão extremamente pesado por que passaram, tão incessante, que quando aembarcação ficou novamente pronta para voltar ao mar, eles estavam tão fracosque o capitão não se atreveu a sair ao mar com eles numa embarcação tãopesada. Depois de se aconselhar com os seus oficiais, ancorou o navio o maislonge possível da costa, carregou as canhoneiras dos dois canhões da proa;ensarilhou os mosquetes no tombadilho; e, avisando os ilhéus para não seaproximarem do navio, pelo perigo que corriam, levou consigo um homem, e,desfraldando a vela do seu melhor bote, rumou de vento em popa para o Taiti, a

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quinhentas milhas dali, para conseguir reforços para a sua tripulação.“No quarto dia de viagem, uma grande canoa foi avistada, que parecia ter feito

escala numa ilha pequena de corais. Ele se desviou dela, mas a embarcaçãoselvagem os perseguiu; e logo a voz de Steelkilt disse-lhe que parasse, ou ele osderrubaria dentro d’água. O capitão sacou uma arma. Com um pé em cada proadas canoas de guerra conjugadas, o lacustre riu com desdém; assegurando-lheque, se a arma fizesse um simples clique, ele o sepultaria em bolhas e espuma.

“‘O que você quer de mim?’, indagou o capitão.“‘Para onde você vai? E por que vai?’, perguntou Steelkilt. ‘Não minta.’“‘Vou ao Taiti buscar mais homens.’“‘Ótimo. Deixe-me subir a bordo por um instante; – venho em boa paz.’ E

assim ele saltou da canoa, nadou para o bote; e subindo na amurada ficou frentea frente com o capitão.

“‘Cruze os braços, senhor, coloque a cabeça para trás. Agora repita depois demim: ‘assim que Steelkilt me deixar, juro que levarei este bote para a praiadaquela ilha, e lá permanecerei por seis dias. Que os raios me fulminem se eunão o fizer!’

“‘Que aluno aplicado!’, riu o lacustre. ‘Adiós, Señor!’, e, pulando no mar,nadou de volta para os seus companheiros.

“Observando o bote até que desembarcasse na praia, perto das raízes doscoqueiros, Steelkilt zarpou outra vez, e no tempo devido chegou ao Taiti, que eraseu próprio destino. Ali, a sorte lhe sorriu: dois navios estavam zarpando para aFrança e necessitavam providencialmente do número exato de homens que omarinheiro liderava. Embarcaram; abrindo assim uma distância definitiva de seuantigo capitão, caso estivesse em seus planos uma retaliação legal contra eles.

“Uns dez dias depois que os navios franceses partiram, o bote baleeiro chegou,e o capitão foi forçado a arregimentar alguns taitianos entre os mais civilizados,que de alguma maneira estivessem acostumados ao mar. Fretando uma pequenaescuna nativa, ele voltou com eles à sua embarcação; e, encontrando ali tudo emordem, seguiu viagem.

“Onde Steelkilt está agora, senhores, ninguém sabe; mas na ilha de Nantucket,a viúva de Radney ainda olha para o mar, que se recusa a entregar seu morto;ainda vê em sonhos a terrível baleia branca que o destruiu.”

* * * * * * *

“Terminou?”, disse Don Sebastian, com calma.“Sim, Don.”

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“Suplico-lhe então que me diga, a bem de suas próprias convicções, se a suahistória é realmente verdadeira? É mais que maravilhosa! Soube-a de fontesegura? Tenha paciência comigo se parece que faço pressão.”

“Também lhe pedimos paciência conosco, senhor marinheiro; pois todosqueremos fazer o mesmo pedido de Don Sebastian”, exclamou o grupo, comgrande interesse.

“Há um exemplar dos Sagrados Evangelhos na Estalagem Dourada, senhores?”“Não”, disse Don Sebastian, “mas conheço um padre muito ilustre aqui perto,

que poderia facilmente conseguir um para mim. Vou tratar disso; mas pensoubem? Isto pode se tornar uma coisa séria demais.”

“Você poderia trazer o padre também, Don?”“Embora já não haja autos-de-fé em Lima”, disse um do grupo para o outro,

“receio que o nosso amigo marinheiro corra perigo com o arcebispado. Afastemo-nos um pouco da luz da lua. Não vejo a necessidade disto.”

“Desculpe importuná-lo, Don Sebastian, mas posso pedir-lhe também queprocure os maiores Evangelhos que encontrar?”

“Aqui está o padre, e traz consigo os Evangelhos”, disse Don Sebastian, grave,voltando com uma pessoa alta e solene.

“Vou tirar o chapéu. Bem, venerável sacerdote, um pouco mais para a luz, esegure o Livro Sagrado diante de mim, para que eu possa tocá-lo.

“Que o céu me proteja! Palavra de honra que a história que lhes contei,senhores, é verídica na sua essência e nos assuntos principais. Sei que é verídica;que aconteceu neste mundo; estive no navio; conheci a tripulação; vi Steelkilt econversei com ele, depois da morte de Radney.”

{a} O antigo grito baleeiro, usado no momento em que se avistava uma baleia do topo do mastro, aindaproferido pelos baleeiros na caça da famosa tartaruga das ilhas Galápagos. [N. A.]

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55 DAS REPRESENTAÇÕES MONSTRUOSAS DE BALEIAS

Devo sem demora pintar-lhes, da melhor maneira possível sem uma tela, algosemelhante à verdadeira forma da baleia tal como aparece de fato aos olhos dobaleeiro quando todo o seu corpo está amarrado ao lado do navio de tal modoque se pode perfeitamente até andar sobre ela. Pode valer a pena, assim, referirpreviamente aqueles curiosos retratos imaginários que até hoje em diacertamente desafiam a fé do homem da terra. É hora de corrigir o vulgo quanto aeste assunto, provando que tais pinturas da baleia estão todas equivocadas.

Pode ser que a origem primeira de todas essas fraudes pictóricas se encontreentre as mais antigas esculturas Hindus, Egípcias e Gregas. Pois desde essasépocas inventivas mas inescrupulosas, sobre os painéis de mármore dos templos,nos pedestais das estátuas, e nos escudos, medalhões, taças, e moedas, desenhava-se o golfinho com uma cota de malha de escamas como a de Saladino, com umelmo na cabeça como o de São Jorge; desde então, algo desse mesmo tipo delicença prevaleceu, não apenas nas pinturas mais populares da baleia, comotambém em muitas de suas apresentações científicas.

Ora, muito provavelmente, o retrato mais antigo existente que de algum modorepresenta a baleia encontra-se na famosa caverna-pagode de Elefanta, na Índia.Os brâmanes sustentam que nas quase infindáveis esculturas daquele pagodeimemorial todas as ocupações e profissões e todos os passatempos concebíveis dohomem estão prefigurados eras antes de qualquer um deles vir a existir de fato.Não admira, portanto, que de algum modo a nossa nobre profissão de baleeiroestivesse ali esboçada. A referida baleia Hindu encontra-se numa área separada daparede, que mostra a encarnação de Vixnu com a forma de Leviatã, conhecidapelos doutos como Matse Avatar. Mas embora essa escultura seja metade homeme metade baleia, de modo a mostrar apenas a cauda desta última, contudo, essapequena parte está toda errada. Mais se parece com a cauda afilada de umaanaconda do que com as palmas amplas da cauda majestosa da verdadeira baleia.

Mas vão às velhas galerias e vejam então o retrato deste peixe feito por umgrande pintor Cristão; pois ele não é mais bem-sucedido que o antediluvianoHindu. É a pintura de Guido, de Perseu salvando Andrômeda do monstromarinho ou baleia. Onde Guido conseguiu o modelo de uma criatura tão estranhacomo aquela? Nem Hogarth conseguiu ao pintar a mesma cena em A descida de

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Perseu algo minimamente melhor. A enorme corpulência daquele monstrohogarthiano ondula na superfície, mal deslocando uma polegada de água. Temuma espécie de palanquim no dorso, e a sua boca distendida, com presas paradentro da qual as ondas são arrastadas, se parece com a Traitor’s Gate que leva,pela água, do Tâmisa até a Torre de Londres. Em seguida, há as baleias doProdromus do velho escocês Sibbald, e a baleia de Jonas, conforme representadanas estampas das velhas Bíblias e gravuras de velhas cartilhas. O que se podedizer sobre estas? Quanto à baleia do encadernador retorcendose feito a liana davideira em torno ao cepo de uma âncora que desce – conforme a estampa emouro das lombadas e frontispícios de vários livros velhos e novos –, trata-se decriatura muito pitoresca, mas puramente fabulosa, e, acredito, copiada de figurassimilares dos vasos antigos. Embora universalmente denominado golfinho,contudo, este peixe do encadernador eu chamo de esboço de baleia; pois tal era aintenção quando o artefato foi introduzido pela primeira vez. Foi introduzido porum velho editor italiano algures por volta do século XV, durante o Renascimentodos Estudos; e naqueles dias, e mesmo até um período relativamente recente,supunha-se popularmente que os golfinhos fossem uma espécie de Leviatã.

Nas vinhetas e outros adornos de alguns livros antigos encontrar-se-ão porvezes traços muito curiosos da baleia, onde toda sorte de sopros, jets d’eau,termas quentes e frias, Saratoga e Baden-Baden, brotam borbulhando de seucérebro inexaurível. No frontispício da edição original de Advancement ofLearning há algumas baleias curiosas.

Mas, deixando de lado esses esforços de amadores, vamos dar uma olhada nasfiguras do Leviatã que se pretendem descrições sóbrias e científicas, feitas porquem sabe. Na velha coleção de viagens de Harris há algumas ilustrações debaleias tiradas de um livro holandês de viagens, de 1671, intitulado Uma viagemà pesca de baleias em Spitzbergen, no navio ‘Jonas na Baleia’, pelo capitão PeterPeterson, de Friesland. Numa dessas ilustrações, as baleias, como enormes balsasde madeira, estão representadas deitadas em ilhas de gelo, vivas, com ursosbrancos correndo sobre os seus dorsos. Em outra ilustração, o extraordináriodisparate é a representação da baleia com uma cauda perpendicular.

Há também um in-quarto impressionante, escrito por um certo capitãoColnett, da marinha britânica, intitulado Uma viagem em torno do cabo Horn eaos Mares do Sul, com o propósito de expandir a pescaria de Cachalotes. Nestelivro há um esboço que se pretende um “Desenho de uma baleia Physeter ouEspermacete, feito, segundo a escala, a partir de uma baleia morta na costa doMéxico, em agosto de 1793, e içada a bordo”. Não duvido que o capitão quisesseum retrato verídico para o benefício dos seus marujos. Para mencionar só umacoisa a seu respeito, eu diria que a baleia tem um olho que, se colocado num

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Cachalote adulto, segundo a escala que acompanha, transformaria o olho doanimal numa janela oitavada de uns cinco pés de comprimento. Ah, galhardocapitão, por que não nos fez Jonas olhando de dentro daquele olho?!

Tampouco as compilações mais escrupulosas de História Natural, para oproveito dos jovens e crianças, estão livres dos mesmos erros abomináveis. Vejama popular Natureza animada, de Goldsmith. Na edição condensada londrina de1807 há gravuras de uma suposta “baleia” e de um “narval”. Não quero parecerdeselegante, mas essa baleia repugnante se parece com uma gironda amputada;e, quanto ao narval, basta uma olhadela para se espantar que, neste século XIX,pespeguem um tal hipogrifo como verdadeiro diante de um público deestudantes inteligentes.

Também, em 1825, Bernard Germain, Conde de Lacépède, famoso naturalista,publicou um livro científico e sistematizado sobre as baleias, no qual se vêemvárias imagens de diferentes espécies do Leviatã. Não apenas estão todasincorretas, como a imagem do Mysticetus ou baleia da Groenlândia (ou seja, abaleia franca), o próprio Scoresby, homem de longa experiência com essaespécie, reconheceu como inexistente na natureza.

Mas o coroamento de toda essa parvoíce estava reservado ao cientista FrederickCuvier, irmão do famoso barão. Em 1836, publicou uma História natural dasbaleias, na qual nos dá algo que chamou de uma figura do Cachalote. Antes demostrar tal imagem a um nativo de Nantucket, é melhor preparar-se para umaretirada sumária de Nantucket. Em suma, o Cachalote de Frederick Cuvier não éum Cachalote, mas uma abóbora. É claro que ele nunca teve o privilégio de fazeruma viagem de pesca de baleias (poucos homens o tiveram), mas quem sabedizer de onde ele tirou tal imagem? Talvez do mesmo lugar de onde Desmarest,cientista e seu predecessor no mesmo campo, obteve um de seus autênticosabortos; ou seja, de um desenho chinês. E como esses rapazes chineses sãoespirituosos com um lápis, informam-nos as muitas xícaras e seus pires esquisitos.

Quanto às baleias dos pintores de tabuletas que se vêem nas ruas, por cima daslojas de comerciantes de óleo, o que dizer a respeito? Em geral são baleiasRicardo III, com corcovas de dromedários, muito cruéis; comendo no desjejumtrês ou quatro tortas de marinheiros, ou seja, botes cheios de marujos: suasdeformidades chapinhando em mares de sangue e tinta azul.

Mas esses erros abundantes ao retratar a baleia não são tão surpreendentesassim. Pensem bem! A maior parte dos desenhos científicos foi feita a partir depeixes encalhados; e esses são quase tão corretos quanto o desenho de um navionaufragado, com o casco partido, tentando representar corretamente a própriacriatura em todo o orgulho de seu casco e mastros intactos. Embora os elefantestenham posado para retratos de corpo inteiro, um Leviatã com vida jamais

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flutuou o bastante para que se fizesse o seu retrato. A baleia com vida, com toda asua majestade e importância, só pode ser vista no oceano, em águas insondáveis;e, flutuando, seu vasto volume tampouco se vê, como não se distingue um naviode esquadra em uma linha de batalha; e fora desse elemento é algo eternamenteimpossível para um mortal içar o seu corpo no ar, preservando todas as suasenormes ondulações e protuberâncias. Sem falar na presumível diferença decontorno entre uma jovem cria de baleia e um Leviatã Platônico adulto; mesmono caso de uma dessas jovens crias estar suspensa no convés de um navio, a suaforma é tão estranha, angüiliforme, maleável e variada, que a sua expressão exatanem mesmo o diabo conseguiria captar.

Mas cabe imaginar que a partir do esqueleto nu de uma baleia encalhadaderivem indícios acurados sobre a sua forma verdadeira? De modo algum. Poisuma das coisas mais curiosas sobre este Leviatã é que o seu esqueleto dá umaidéia muito vaga de sua forma. Embora o crânio de Jeremy Bentham,dependurado como um candelabro na biblioteca de um dos seus testamenteiros,dê uma idéia correta de um velho senhor utilitarista de testa larga, com todas assuas outras características pessoais importantes, nada disso pode ser inferido dosossos articulados de um Leviatã. De fato, como diz o grande Hunter, um simplesesqueleto de baleia tem a mesma relação com o animal revestido e recheado queum inseto com a crisálida que o envolve. Tal particularidade se prova de modoadmirável na cabeça, como se mostrará incidentalmente algures neste livro. Étambém revelada de modo muito curioso na barbatana lateral, cujos ossoscorrespondem com quase exatidão aos ossos da mão humana, excetuando opolegar. Essa barbatana tem ossos de quatro dedos regulares, o indicador, omédio, o anular e o mínimo. Mas todos se ocultam permanentemente sob acobertura da carne, como os dedos humanos sob coberturas artificiais. “Por maistemerária que a baleia possa, às vezes, ser conosco”, disse Stubb certo dia,fazendo graça, “pode-se dizer que ela nos trata com luvas de pelica.”

Por todas essas razões, então, seja de que modo se considere o caso, é forçosoconcluir que o grande Leviatã é a única criatura do mundo que deverápermanecer para sempre inexprimível. De fato, um retrato pode se aproximarmais do alvo do que outro, mas nenhum pode alcançar um grau muitoconsiderável de exatidão. Portanto, não existe um modo terreno de se saberprecisamente como é uma baleia na realidade. E o único modo pelo qual se podeter uma idéia plausível do seu perfil com vida é ir pessoalmente à pesca debaleias; mas, ao fazê-lo, corre-se um grande risco de ser destroçado e afundadopara sempre por ela. Destarte, parece-me melhor não ser muito exigente em suacuriosidade em relação a este Leviatã.

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56 DAS REPRESENTAÇÕES MENOS ERRÔNEAS DE BALEIASE REPRESENTAÇÕES GENUÍNAS DE CENAS DA PESCA BALEEIRA

A propósito das representações monstruosas de baleias, estou aqui fortementetentado a contar histórias ainda mais monstruosas sobre aquelas que seencontram em certos livros, antigos e modernos, sobretudo em Plínio, Purchas,Hackluyt, Harris, Cuvier, &c. Mas deixarei tal assunto de parte.

Sei de apenas quatro esboços publicados do grande Cachalote; de Colnett, deHuggins, de Frederick Cuvier e de Beale. No capítulo anterior, os de Colnett e deCuvier foram mencionados. O de Huggins é muito melhor que o deles; mas, delonge, o de Beale é o melhor de todos. Todos os desenhos de Beale desta baleiasão bons, exceto a figura do meio na figura das três baleias em várias posições,que abre o segundo capítulo. O frontispício, botes atacando Cachalotes, semdúvida calculado para provocar o ceticismo civilizado de certos cavalheiros, éadmiravelmente preciso e natural no seu efeito geral. Alguns desenhos deCachalotes de J. Ross Browne são bastante corretos quanto aos contornos; masmuito mal gravados. Mas isso não é por culpa dele.

Da Baleia Franca, os melhores esboços estão em Scoresby, mas foramdesenhados numa escala pequena demais para oferecer uma impressãosatisfatória. Ele tem apenas uma representação de uma cena de pesca baleeira, eisso é uma deficiência grave, pois é apenas por essas representações, quando sãobem feitas, que se pode ter uma idéia verdadeira da baleia viva tal como os seuscaçadores a vêem.

Mas, tomadas em conjunto, não há dúvida de que as mais belas representaçõesde baleias e de cenas de pesca baleeira, embora não sejam as mais corretas emalguns detalhes, são duas grandes gravuras francesas, bem executadas e tiradasdas pinturas de um certo Garneray. Representam, respectivamente, assaltos aoCachalote e à Baleia Franca. Na primeira gravura, um nobre Cachalote é retratadoem plena majestade de sua força, quando surge, embaixo do bote, dasprofundezas do oceano, carregando para o alto, no seu dorso, os tremendosdestroços de tábuas arrebentadas. A proa do bote está parcialmente intacta, e érepresentada equilibrando-se sobre a espinha do monstro; e de pé nessa proa,apenas nesse lampejo do tempo único e imensurável, vê-se um remador, semi-encoberto pelo sopro fervente da baleia, preparando-se para saltar, como que de

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um precipício. O movimento de toda a cena é maravilhosamente belo everdadeiro. A selha da ostaxa pela metade flutua no mar embranquecido; ashastes de madeira dos arpões atirados surgem obliquamente em meio às águas;as cabeças dos homens da tripulação dispersas, nadando ao redor da baleia,mostram expressões de terror, enquanto na distância negra e tempestuosa se vê onavio adernar na cena. Alguns erros crassos podem ser vistos nos detalhesanatômicos dessa baleia, mas deixemos estar; pois, ainda que disso dependesse aminha própria vida, eu jamais poderia fazer um desenho tão bom.

Na segunda gravura, o bote prepara-se para abordar o flanco coberto de cracasde uma enorme Baleia Franca em movimento, que faz rolar a sua massa negraincrustada de algas pelo oceano, tal como um deslizamento de pedras musgosasnos penhascos da Patagônia. Seus jatos são verticais, densos e negros como afuligem; assim que, ao ver uma fumaça assim abundante na chaminé, poder-se-iapensar que havia, nas volumosas entranhas abaixo, uma farta ceia sendopreparada. Aves marinhas bicam pequenos caranguejos, mariscos e outrasguloseimas e macarrões marinhos, que a Baleia Franca por vezes carrega em seudorso pestilento. E o tempo todo o Leviatã de lábios espessos avança pelasprofundezas, deixando em seu rastro toneladas de um tumulto de coágulosbrancos e balançando o bote esquálido nas ondas, como um esquife pego pelaspás de um barco a vapor oceânico. Assim, o primeiro plano é todo uma comoçãofuriosa, mas no segundo plano, num admirável contraste artístico, vêem-se asuperfície vítrea de um mar acalmado, as velas abandonadas e pensas do navioexangue e a massa inerte de uma baleia morta, uma fortaleza conquistada, com abandeira da captura indolentemente desfraldada no mastro enfiado no buraco dosopro.

Não sei quem é, nem quem foi o pintor Garneray. Mas aposto que era versadona prática de seu tema, ou foi maravilhosamente instruído por algum experientebaleeiro. Os Franceses são mestres na pintura de ação. Observem todas as pinturasda Europa: onde se encontra uma galeria assim, de viva comoção e respirandosobre tela, como nos triunfais corredores de Versalhes; onde o espectador,perplexo, luta para atravessar por entre consecutivas batalhas da França; ondecada espada parece uma cintilação da Aurora Boreal, e os sucessivos reis eImperadores com as suas armas avançam, como uma carga de centauroscoroados? Não inteiramente indignos de um lugar naquela galeria, são essas cenasde batalhas navais de Garneray.

A aptidão natural dos Franceses para apreender o lado pitoresco das coisasparece estar manifesta, em especial, nas pinturas e gravuras que fizeram de suascenas de pesca baleeira. Sem um décimo da experiência de pesca dos Ingleses, enem um milésimo da experiência dos Norte-Americanos, não obstante,

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forneceram aos dois países os únicos desenhos completos e capazes de transmitiro verdadeiro espírito da caça à baleia. Na sua maior parte, os desenhistas debaleias Ingleses e Norte-Americanos parecem contentar-se plenamente aoapresentar um esboço mecânico das coisas, como o contorno vazio de umabaleia; o que, em termos de efeitos pitorescos, é equivalente a fazer um esboçodo contorno de uma pirâmide. Mesmo Scoresby, o renomado caçador de BaleiasFrancas, depois de nos dar um retrato do corpo estirado de uma Baleia daGroenlândia, e três ou quatro delicadas miniaturas de narvais e marsopas,apresenta uma série de gravuras clássicas de ganchos de botes, facas deesquartejar e fateixas; e, com a diligência microscópica de um Leuwenhoeck,submete à inspeção do mundo trêmulo noventa e seis fac-símiles ampliados decristais de neve do Ártico. Não pretendo vilipendiar o excelente viajante (respeito-o como veterano), mas, num assunto de tal importância, por certo foi um lapsonão ter procurado uma declaração de autenticidade de todos os cristais junto aum juiz de paz da Groenlândia.

Além das belas gravuras de Garneray, há outras duas gravuras Francesas dignasde nota, de uma pessoa que assina “H. Durand”. Uma delas, ainda que nãoexatamente adequada ao nosso propósito atual, merece no entanto sermencionada por outros motivos. É uma cena vespertina tranqüila entre as ilhasdo Pacífico; um baleeiro Francês ancorado na praia, em plena calmaria, abastecelentamente o navio com água; as velas frouxas do navio e as folhas compridas daspalmeiras ao fundo pendem no ar sem brisa. O efeito é muito bonito,considerando-se o fato de apresentar os audazes pescadores sob um dos seus rarosaspectos de descanso oriental. A outra gravura é algo bastante diverso: o navioparado em mar aberto, no próprio cerne da vida leviatânica, ao lado de umaBaleia Franca; a embarcação (no ato de se interpor) atraca-se ao monstro como sefosse um cais; e um bote, afastando-se rapidamente da cena da ação, vai dar caçaàs baleias distantes. Os arpões e lanças estão apontados; três remadores colocam omastro em seu buraco; enquanto, devido a um movimento súbito do mar, opequeno bote ergue a proa para fora da água, como um cavalo empinado. Donavio, o vapor dos tormentos da baleia sobe como a fumaça sobre uma aldeia deferreiros; e, a barlavento, uma nuvem negra, surgindo com promessas de chuvase trovoadas, parece apressar a atividade dos marinheiros exaltados.

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57 DAS BALEIAS PINTADAS A ÓLEO; GRAVADAS EM DENTES;MADEIRA; METAL; PEDRA; MONTANHAS; ESTRELAS

Em Tower-Hill, quando se desce para as docas de Londres, pode-se ver ummendigo aleijado (ou poita, como dizem os marinheiros), segurando umatabuleta pintada, que representa a cena trágica em que perdeu sua perna. São trêsbaleias e três botes; e um dos botes (onde se presume ainda estar a perna quefalta em sua integridade original) está sendo triturado pela mandíbula da baleiaem primeiro plano. A qualquer hora, nestes dez anos, segundo me disseram, essehomem está ali com esse quadro, expondo o toco de sua perna para um mundocético. Mas é chegado o tempo de sua justificativa. Suas três baleias são tão boasquanto as que foram publicadas em Wapping, sob qualquer aspecto; e o seu tocoé tão inquestionável quanto qualquer outro que se encontre em paragensocidentais. Embora sempre montado naquela plataforma, jamais discursa o pobrebaleeiro; e sim, de olhos baixos, contempla com pesar a própria amputação.

Por todo o Pacífico, e também em Nantucket, e New Bedford, e Sag Harbor,deparam-se desenhos vívidos de baleias e cenas da pesca baleeira, talhados pelospróprios pescadores em dentes de Cachalotes, e espartilhos feitos de osso deBaleia Franca, e outros artigos de skrimshander, como os baleeiros chamam osnumerosos objetos pequenos e originais que cuidadosamente esculpem naquelamatéria-prima, em suas horas de lazer marítimo. Alguns deles possuem caixinhasde apetrechos que parecem de dentistas, destinados especialmente ao ofício doskrimshander. Mas, em geral, lavram apenas com os seus canivetes; e, com essaferramenta quase onipotente, fazem qualquer coisa que se queira, segundo afantasia dos marujos.

O longo exílio da Cristandade e da civilização inevitavelmente devolve ohomem àquela condição na qual Deus o colocou, i.e., a chamada selvageria. Overdadeiro caçador de baleias é tão selvagem quanto um Iroquês. Eu mesmo souum selvagem, que só deve lealdade ao Rei dos Canibais; e pronto para, a qualquermomento, me rebelar contra ele.

Ora, um dos traços característicos do selvagem, nas horas em que está emcasa, é a sua fantástica e paciente engenhosidade. Uma clava guerreira, um antigoremo do Havaí, com os seus múltiplos e elaborados entalhes, são monumentostão grandiosos da perseverança humana quanto um léxico Latino. Pois, com

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simples pedaços de conchas quebradas ou um dente de tubarão, essacomplexidade milagrosa do rendilhado de madeira foi obtida; e isso custoulongos anos de longa aplicação.

Como o selvagem do Havaí, assim tambem é o selvagem marinheiro branco.Com a mesma paciência maravilhosa, e com o mesmo único dente de tubarão,com o seu único pobre canivete, ele fará uma escultura de osso, não tão bemacabada, mas cujo labirinto do desenho é tão intricado quanto o do selvagemGrego, do escudo de Aquiles; e repleta do espírito e de sugestões bárbaras comoas estampas daquele bom e velho selvagem holandês, Albert Dürer.

Baleias de madeira ou silhuetas de baleias entalhadas em pequenas tábuasescuras da madeira nobre dos navios dos Mares do Sul são encontradas comfreqüência nos castelos de proa dos navios baleeiros Norte-Americanos. Algumasforam feitas com muita exatidão.

Em algumas velhas casas de campo com telhados de empena, vêem-se baleiasde metal suspensas pela cauda, servindo de aldrava na porta de entrada. Quandoo porteiro está dormindo, a baleia cabeça de bigorna é a mais útil. Mas essasbaleias de aldrava raramente são notáveis pela fidelidade do escopo. Nas agulhasdas torres de antiquadas igrejas, vêem-se baleias de ferro laminado a servir decata-vento; mas ficam tão no alto, e, além disso, são rotuladas com todas as letrasde “Não me toques!”, que não se pode vê-las de perto para julgar o seu mérito.

Nas regiões descarnadas e escaveiradas da terra, onde, ao pé de altospenhascos escarpados, massas rochosas se espalham em conjuntos fantásticossobre a planície, com freqüência se descobrem imagens como que de formaspetrificadas do Leviatã parcialmente imersas na vegetação, que um dia de ventofaz quebrar contra elas numa arrebentação de ondas verdes.

E ainda, nas regiões montanhosas, onde o viajante sempre está cingido poranfiteatrais alturas; aqui e ali, de algum venturoso ponto de vista, captam-setransitórios lampejos de perfis de baleias delineados ao longo dos sulcosondulantes. Mas é preciso ser um rematado baleeiro para ver tais cenas; e nãoapenas isso, quando se quer voltar à mesma vista, há que ser criterioso e marcar aintersecção exata da latitude e da longitude do primeiro ponto de observação,caso contrário – tão casuais são essas observações das encostas –, recuperar o seuexato e primeiro ponto de vista requereria uma trabalhosa redescoberta; como asilhas Salomão, que ainda são desconhecidas, embora o agitado Mendaña tenhaali pisado e o velho Figueroa as tenha descrito.

Nem mesmo engrandecidamente elevado ao sublime pelo assunto, pode-seevitar distinguir enormes baleias nos céus estrelados, e botes a dar-lhes caça;como quando longamente tomadas por pensamentos bélicos as nações do Orienteviram exércitos a travar batalhas entre as nuvens. Assim no Norte estive no

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encalço do Leviatã, dando voltas ao redor do Pólo, com as revoluções dos pontosluminosos que primeiramente o delinearam para mim. E, sob refulgentes céusAntárticos, abordei o Navio dos Argonautas e juntei-me à caçada da Baleiacintilante, muito além dos mais remotos domínios da Hidra e dos Peixes.

Com âncoras de fragata a servir de freios, e feixes de arpões por esporas,quisera ser capaz de montar naquela baleia e subir ao mais alto firmamento, paraver se os céus fabulosos, com as suas inúmeras tendas, estão realmenteacampados além de minha visão mortal!

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58 BRIT

Rumando a nordeste das ilhas Crozet enredamo-nos em vastas pradariasde brit, a minúscula, amarela substância de que a Baleia Franca fartamente senutre. Por léguas e mais léguas, aquilo ondulou à nossa volta, de modo queparecíamos estar navegando através de ilimitados campos de trigo maduro edourado.

No segundo dia, avistamos um grande número de Baleias Francas, as quais, asalvo de serem atacadas por um navio de pesca de Cachalotes como o Pequod,boquiabertas nadavam indolentemente através do brit, que, aderindo às bordasfibrosas das impressionantes venezianas que têm nas bocas, era assim separadoda água que lhes escapava pelos lábios.

Como ceifeiros matutinos, que lado a lado avançam suas foices, lenta etempestuosamente, através da relva sempre úmida das campinas alagadiças;assim também esses monstros nadavam, fazendo um som estranho, de capim, decorte; e deixando atrás de si um sem-fim de gavelas azuis no mar amarelo.{a}

Mas era apenas o barulho que faziam ao atravessar o brit que lembrava a ceifa.Vistas dos topos dos mastros, especialmente quando faziam uma pausa e ficavamestáticas por algum tempo, suas imensas formas negras se pareciam mais commassas rochosas sem vida do que qualquer outra coisa. E, como nas regiõesimportantes de caça da Índia, o forasteiro nas planícies por vezes passa ao largode elefantes em decúbito sem sabê-lo, tomando-os por elevações nuas eenegrecidas do solo; o mesmo sucede, muitas vezes, com aquele que pelaprimeira vez contempla esta espécie de Leviatãs do mar. E mesmo quando são,por fim, reconhecidos, sua imensa magnitude torna muito difícil acreditar quetais massas tão volumosas de gigantismo possam estar repletas em todas as suaspartes do mesmo tipo de vida que vive num cão ou cavalo.

De fato, sob outros aspectos, mal se pode considerar qualquer criatura dasprofundezas com os mesmos sentimentos que se votam às da terra. Pois aindaque alguns velhos naturalistas tenham sustentado que todas as criaturas da terrapossuem correspondentes entre as do mar; e ainda que de um ponto de vistageral isso possa ser verdade; contudo, chegando às particularidades, onde, porexemplo, o oceano apresenta algum peixe cuja disposição corresponde à bondadesagaz do cão? Apenas do amaldiçoado tubarão pode-se dizer que em termosgenéricos guarde alguma analogia com ele.

Mas embora, para os homens da terra em geral, os habitantes nativos dos

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mares sempre tenham sido considerados com emoções indizivelmente anti-sociáveis e repulsivas; embora saibamos que o mar é uma eterna terra incognita,que Colombo navegou sobre inúmeros mundos desconhecidos para descobrir oseu único, superficial e ocidental; embora, com larga margem, os mais terríveisde todos os desastres mortais, imemorial e indiscriminadamente, tenhamocorrido a dezenas e centenas de milhares daqueles que se fizeram ao mar;embora um só momento de consideração nos ensinasse que, por mais que sevanglorie o homem infantil de sua ciência e capacidade, e por mais que numincensado futuro essa ciência e capacidade possam vir a crescer; no entanto, paratodo o sempre, até o fim dos tempos, o mar o ofenderá e o assassinará, epulverizará a mais imponente e sólida fragata que ele possa fazer; contudo, pelarepetição contínua dessas mesmas impressões, o homem perdeu aquele senso dopleno temor do mar que originalmente ao mar pertence.

O primeiro barco de que lemos notícia flutuou num oceano que, em vingançadigna de um Português, inundou um mundo inteiro sem nem deixar sequer umaviúva. Aquele mesmo oceano se agita agora; aquele mesmo oceano destruiu osnavios naufragados do ano passado. Sim, mortais insensatos, o dilúvio de Noéainda não cessou; dois terços do belo mundo ele ainda cobre.

Em que diferem o mar e a terra, que um milagre naquele não é um milagrenesta outra? Terrores preternaturais acometeram os Hebreus, quando sob os pésde Coré e seus companheiros o chão vivo se abriu e os engoliu para sempre;contudo nenhum sol moderno jamais se põe sem que, precisamente da mesmamaneira, o mar vivo engula navios e tripulações.

Mas o mar não é esse adversário apenas do homem que o desconhece, mas étambém inimigo de suas próprias crias; pior do que o anfitrião Persa queassassinou os seus convidados; não poupa as criaturas que ele mesmo desova.Como uma tigresa selvagem que abalada na selva esmaga os próprios filhotes,assim também o mar atira até mesmo as baleias mais poderosas contra osrochedos, e as deixa lado a lado com os vestígios dos naufrágios dos navios. Nemmisericórdia, nem força nenhuma senão a do próprio mar o governa. Arquejandoe resfolegando como um louco corcel de batalha que perdeu o seu cavaleiro, ooceano sem dono transborda o globo.

Considere a sutileza do mar; como as suas criaturas mais temidas deslizam sobas águas, invisíveis na maior parte, e traiçoeiramente ocultas sob os matizes maisencantadores do azul. Considere também o brilho e a beleza diabólica de muitasde suas tribos sem piedade, como a forma delicadamente adornada de muitasespécies de tubarões. Considere, uma vez mais, o canibalismo universal do mar;cujas criaturas todas se devoram umas às outras, continuando a guerra eternadesde o início do mundo.

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Considere tudo isso; e então se volte para esta terra tão verde, suave e dócil;ambos considere, o mar e a terra; e você não acha que existe uma analogiaestranha com algo dentro de você? Pois, tal como o oceano aterrador cerca a terraverdejante, também na alma do homem há um Taiti insular, cheio de paz ealegria, mas rodeado por todos os horrores da metade desconhecida da vida.Deus te proteja! Não te afastes dessa ilha, poderás não mais voltar!

{a} Aquela parte do mar conhecida pelos baleeiros como “Bancos do Brasil” não tinha esse nome, como osbancos de Newfoundland, por haver ali rasos e baixios, mas devido ao seu aspecto notável de campina,causado pelas vastas borras de brit que flutuam constantemente nas latitudes onde se caça comfreqüência a Baleia Franca. [N. A.]

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59 LULA

Atravessando lentamente as pradarias de brit, o Pequod ainda seguia asua viagem a nordeste, rumo à ilha de Java; uma brisa suave impelindo a quilha,de tal modo que na serenidade circundante seus três mastros altos e afiladosbalançassem brandamente, como três brandas palmeiras numa planície. E, comlongos intervalos na noite prateada, o jato solitário e encantador ainda se avistava.

Mas numa manhã azul e transparente, quando uma tranqüilidade quasesobrenatural se espalhava por sobre o mar, embora desacompanhada de umaestanque calmaria; quando a clareira longamente polida do sol sobre as águasparecia um dedo de ouro, impondo-lhes algum segredo; quando as ondas dechinelos sussurravam juntas enquanto corriam suavemente; neste profundosossego da esfera visível, um estranho espectro foi visto por Daggoo do topo domastro principal.

Na distância, um grande vulto branco ergueu-se preguiçosamente, e erguendo-se cada vez mais, e destacando-se do azul, enfim cintilou diante da nossa proacomo um trenó, que viesse descendo a neve da colina. Assim faiscante por ummomento, também lentamente baixou, e submergiu. Então mais uma vezergueu-se, e cintilou em silêncio. Não parecia uma baleia; mas será que é MobyDick?, pensou Daggoo. Novamente desceu o fantasma, mas ao reaparecer maisuma vez, com uma voz cortante como um punhal que despertou todos osmarinheiros de seu cochilo, o negro berrou – “Ali! Outra vez ali! Ali ela salta! Bemem frente! A Baleia Branca, a Baleia Branca!”.

Com isso, os homens do mar correram para os lais das vergas, como na horado enxame as abelhas buscam os galhos. Com a cabeça descoberta ao sol ardente,Ahab ficou no gurupés, e com uma das mãos bem estendida para trás, prontapara dar ordens ao timoneiro, lançou seu olhar ansioso na direção indicada noalto pelo braço imóvel de Daggoo.

Quer tenha sido a fugaz aparição do jato solitário o que gradualmente agirasobre Ahab, de modo que agora estava preparado para associar as noções debrandura e repouso com a primeira visão da baleia específica que perseguia;mesmo que fosse isso, ou que sua ansiedade o tivesse traído; de qualquer modoque tenha sido, bastou-lhe distintamente perceber o vulto branco para, cominstantânea intensidade dar as ordens de descer os botes.

Os quatro botes logo estavam no mar; o de Ahab na frente, e todos tenazesremando em direção à presa. Logo esta mergulhou e, enquanto, com os remos

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suspensos, esperávamos que reaparecesse, oh, no mesmo ponto em que afundara,lentamente ressurgiu. Quase esquecendo por ora os pensamentos sobre MobyDick, então contemplamos o mais maravilhoso fenômeno que os mares secretosjá revelaram até ali aos homens. Um imenso vulto carnudo, com centenas demetros de comprimento e de largura, de reluzente coloração leitosa, flutuava naágua, com inúmeros tentáculos compridos irradiando do centro, e se enrolavam econtorciam feito um ninho de anacondas, como que cegamente dispostos aapanhar algum desgraçado objeto ao seu alcance. Não tinha rosto ou faceperceptível; nenhum indício concebível de sensação ou instinto; mas ondulava alisobre as ondas, uma aparição sobrenatural, amorfa e fortuita da vida.

Quando aquilo, com um som baixo e aspirado, desapareceu novamente,Starbuck, ainda fitando as águas agitadas onde aquilo mergulhara, com vozenfurecida exclamou – “Quase preferiria ter visto e lutado contra Moby Dick, ater visto a ti, fantasma branco!”.

“O que foi aquilo, senhor?”, disse Flask.“A grande lula viva, a qual, dizem, poucos navios baleeiros viram e voltaram

aos seus portos para contar.”Mas Ahab não disse nada; virou o seu bote e voltou ao navio; os demais,

também mudos, seguiram-no.Quaisquer que fossem as superstições dos pescadores de Cachalotes quanto à

visão desse objeto, é certo que, sendo raríssimo o seu vislumbre, tal circunstânciafoi o bastante para investir o encontro de maus presságios. Tão raramente écontemplada, que, embora muitos declarem ser a maior criatura animada dooceano, pouquíssimos têm uma vaga idéia de sua verdadeira natureza e forma;não obstante, acreditam que fornece ao Cachalote o seu único alimento. Poisembora outras espécies de baleias encontrem seu alimento na superfície da água,e possam ser vistas pelo homem no ato de se alimentar, o espermacete sealimenta em zonas desconhecidas, abaixo da superfície; e apenas por inferência éque alguém pode dizer em quê, precisamente, consiste tal alimento. Às vezes,quando seguido de muito perto, ele expele o que se supõe sejam tentáculos dalula; algumas delas assim expostas ultrapassam vinte ou trinta pés decomprimento. Pensavam que o monstro ao qual os tentáculos pertencem ficassesempre preso por eles ao leito do oceano; e que o Cachalote, ao contrário dasoutras espécies, dispusesse de dentes para atacá-lo e destroçá-lo.

Parece que há algum fundamento para imaginar que o grande Kraken, dobispo Pontoppidan, possa ser ao fim e ao cabo a própria Lula. O modo pelo qual obispo o descreve, alternadamente emergindo e afundando, com alguns outrosparticulares que ele narra, tudo isso faz com que os dois se assemelhem. Mas épreciso dar um desconto em relação ao volume incrível que ele lhe atribui.

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Alguns naturalistas que ouviram rumores esparsos sobre a misteriosa criatura,de que falamos aqui, colocam-na na classe da siba, à qual, de fato, pareceriapertencer em alguns aspectos externos, mas apenas como o Enaque da tribo.

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60 A OSTAXA

Em relação à cena baleeira que em breve será relatada, assimcomo para um melhor entendimento de todas as cenas similares alguresapresentadas, devo aqui falar da mágica e por vezes horrível ostaxa do arpão.

A ostaxa usada originalmente na pesca era feita do melhor cânhamo,levemente vaporizado com alcatrão, mas não totalmente impregnado, como ascordas comuns; pois conquanto o alcatrão, usado segundo o costume, faz ocânhamo mais flexível para o cordoeiro, e também torna a corda maisconfortável para o marujo no uso diário do navio; no entanto, não só aquantidade comum tornaria a ostaxa do arpão demasiado rígida para oenrolamento estreito a que precisa ser submetida; mas, como a maior parte dosmarinheiros está começando a entender, o alcatrão, em geral, de modo algumacrescenta durabilidade ou resistência à corda, por mais que lhe possa dardensidade e brilho.

Há alguns anos que a corda de manilha na pesca Norte-Americana substituiuquase por completo o cânhamo como material para as ostaxas de arpão; apesarde não ser tão durável quanto o cânhamo, é mais forte, e muito mais macia eelástica; e acrescentarei (já que há uma estética em todas as coisas) que é muitomais bonita e cai melhor ao navio do que o cânhamo. O cânhamo é um sujeitoescuro, moreno, uma espécie de Índio, mas a manilha é como uma Circassianade cabelos dourados, para ser vista.

A ostaxa do arpão tem apenas dois terços de polegada de espessura. À primeiravista, não parece tão forte quanto o é na realidade. A experiência mostra que cadaum dos seus cinqüenta e um fios agüenta um peso de cento e doze libras; demodo que a corda completa suporta uma carga equivalente a quase trêstoneladas. No comprimento, a ostaxa do arpão comum para a pesca deCachalotes mede pouco mais de duzentas braças. Mais para a popa, fica enroladaem espiral na selha, não como a serpentina de um alambique, mas de modo afazer como uma massa redonda, em forma de queijo, de “polias” densamentecompactadas, ou camadas de espirais concêntricas, sem nenhum vazio exceto o“centro”, ou um tubo vertical minúsculo formado no eixo do queijo. Como amenor enroscadura ou emaranhamento na aducha, ao desenrolar da ostaxa,inevitavelmente arrancaria um braço, uma perna ou um corpo inteiro, usa-se amáxima precaução ao enrolar a ostaxa na selha. Alguns arpoadores passam quaseuma manhã inteira nesse mister, fazendo a ostaxa subir e depois descer enlaçada

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através de um cepo até a selha, para durante o enrolamento evitar qualquercarquilha ou trançado.

Nos botes Ingleses são usadas duas selhas em vez de uma; sendo a mesmaostaxa continuamente enrolada em ambas. Há uma certa vantagem nisso; porqueestas duas selhas gêmeas são tão pequenas que se acomodam nos botes com maisfacilidade, e são menos pesadas; já a selha Norte-Americana, de quase três pés dediâmetro, e de profundidade proporcional, constitui uma carga volumosa parauma embarcação cujas tábuas têm apenas meia polegada de espessura; pois ofundo do bote baleeiro é como uma camada fina de gelo, que agüenta um pesoconsiderável distribuído, mas não muito se concentrado. Quando a capa de lonapintada cobre a selha da ostaxa Norte-Americana, o bote parece estar levando umimenso bolo de casamento para as baleias.

Ambas as extremidades da ostaxa ficam expostas; a ponta inferior terminandonuma alça ou anel que sobe do fundo pelo lado da selha e pende sobre sua borda,totalmente solta do resto. Essa disposição da ponta inferior é necessária por doismotivos. Primeiro: para facilitar que se amarre a ela uma ostaxa adicional de umbote próximo, no caso de a baleia atingida mergulhar tão fundo que ameacelevar toda a ostaxa originalmente presa ao arpão. Nesses casos, a baleia é passadacomo uma caneca de cerveja, fosse esse o caso, de um bote a outro; embora oprimeiro bote sempre fique por perto para ajudar o companheiro. Segundo: essadisposição é indispensável para a segurança de todos; pois se a ponta inferior daostaxa estivesse de algum modo presa ao bote, e se a baleia fizesse a corda correraté o fim, num único minuto fugaz, como às vezes faz, não pararia aí, pois o botecondenado seria inevitavelmente arrastado junto a ela para baixo, para asprofundezas do mar; e, nesse caso, nenhum pregoeiro público jamais poderiaencontrá-lo de novo.

Antes de descer os botes para a caça, a ponta superior da ostaxa é retirada daselha, e, passando-a em volta do posto da arpoeira, puxam-na em direção à proa,por toda a extensão do bote, pousando-a através das forquetas ou chumaceiras detodos os remos, para que ela corra sob seus pulsos quando estão remando; epassam-na também por entre os homens, sentados alternadamente nas amuradasopostas, até os calços ou cunhas de chumbo na ponta extremamente aguda daproa, onde um pino ou um espeto de madeira, do tamanho de uma bobinacomum, impede que corra rápido demais. Das buzinas, a ostaxa pende comouma grinalda para fora da proa, e volta para dentro do bote de novo; umas dezou vinte braças (a chamada ostaxa de caixa) ficando enroladas na caixa na proa,continua um pouco mais o seu caminho até a amurada, onde é presa à vioneira –a corda que está ligada diretamente com o arpão; mas, antes dessa conexão, avioneira passa por diversas confusões, e seria muito enfadonho relatá-las com

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minúcias.Desse modo a ostaxa abraça o bote inteiro em seus complicados meandros,

virando e torcendo-se em quase todas as direções. Todos os remadores envolvem-se em suas perigosas contorções; tanto que aos olhos tímidos do homemcontinental eles mais parecem malabaristas Indianos, com as mais venenosasserpentes adornando-lhes com graça os membros. Nem pode qualquer filho deuma mortal sentar-se pela primeira vez por entre esse cânhamo intrincado e,enquanto dá tudo de si aos remos, perceber que a qualquer momento, uma vezdisparado o arpão, todas as horríveis contorções poderiam ser desencadeadascomo raios anelados; ele não tem como se ver nessas circunstâncias sem sentirum arrepio que faça o tutano de seus ossos tremer feito geléia. E, no entanto, ocostume – que coisa estranha! O que é que o costume não consegue resolver? –Gracejos mais divertidos, risos mais agradáveis, piadas mais engraçadas eemendas mais brilhantes, você nunca os ouviu mais à sua mesa do que ouviriasobre o cedro branco de meia polegada de um bote baleeiro quando suspenso emum nó de forca; como os seis burgueses de Calais diante do rei Eduardo, os seishomens da tripulação remam para as mandíbulas da morte com uma corda emvolta do pescoço, como se diz.

Talvez um pouquinho só de reflexão possa agora ajudá-lo a compreender o quesão esses recorrentes desastres da pesca baleeira – poucos dos quais casualmenterelatados – quando, vez ou outra, um ou outro homem é puxado para fora dobote pela ostaxa, e nunca mais encontrado. Pois, quando a ostaxa é lançada, estarentão sentado num bote é como estar sentado em meio aos muitos ruídos daengrenagem de uma máquina a todo o vapor, quando todas as alavancas, hastes erodas o roçam de leve. É pior; pois você não pode ficar sentado sem se mexer nocoração de tais perigos, porque o bote balança como um berço, e você éarremessado de um lado para outro, sem o menor aviso; e é tão-somente com ocontrole do próprio movimento e o equilíbrio de vontade e ação que você podeescapar a ser transformado num Mazeppa e levado aonde nem o próprio sol, essetodo-olhos, poderia avistá-lo.

E mais: tal como a calmaria profunda que apenas aparentemente precede eanuncia a tempestade, talvez mais terrível do que a própria tempestade – pois, defato, a calmaria é apenas envoltório e capa para a tempestade; e a abriga dentrode si, como o – a princípio – inofensivo rifle contém a pólvora, a bala e a explosãofatais; assim também é o repouso suave da ostaxa, quando serpenteiasilenciosamente em torno dos remadores antes de entrar em ação – isso é algoque encerra mais do verdadeiro terror do que qualquer outro aspecto dessaperigosa empreitada. Mas para que dizer mais? Todos os homens vivemenvolvidos por ostaxas de arpão; todos nasceram com a corda no pescoço; mas é

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apenas quando são apanhados na súbita e traiçoeira reviravolta da morte que osmortais percebem os silenciosos, sutis e sempre presentes perigos da vida. E sevocê é um filósofo, embora sentado num bote baleeiro, você não sentiria nocoração nem um pouquinho mais de horror do que se estivesse sentado diante dalareira à noite, não com um arpão, mas com um atiçador ao seu lado.

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61 STUBB MATAUMA BALEIA

Se para Stubb a aparição da Lula foi coisa agourenta, paraQueequeg tudo se deu de outro modo.

“Quando vuncê vê’ lula”, disse o selvagem, afiando seu arpão na popa do botesuspenso, “depois tu logo vê’ Cachalote.”

O dia seguinte foi extremamente parado e abafado, e, com nada de especialpara ocupá-la, a tripulação do Pequod quase não conseguiu resistir ao encanto dosono gerado por um mar tão apático. Pois aquela parte do oceano Índico poronde àquelas alturas viajávamos não é o que os baleeiros chamam de zonaagitada; ou seja, ela oferece pouquíssimas aparições de marsopas, peixes-voadores, e outros nativos vivos de águas mais agitadas, como as imediações doRio da Prata, ou ao largo das costas do Peru.

Era minha vez de ficar no topo do mastro de proa; e, com os ombros apoiadoscontra as cordas frouxas dos ovéns, para frente e para trás eu balançava indolenteno que parecia ser uma atmosfera encantada. Nenhuma vontade conseguiriaresistir; naquele divagar perdendo toda a consciência, por fim minha alma sedesprendeu do corpo; ainda que meu corpo continuasse a oscilar como umpêndulo, muito tempo depois de a força que lhe tinha dado impulso ter seretirado.

Antes que o abandono total me dominasse, notei que os marinheiros no topodos mastros principal e de mezena estavam igualmente sonolentos. De modo que,por fim, nós três nos balançávamos desfalecidos no arvoredo, e para cada balançoque fazíamos havia embaixo um meneio do timoneiro que dormitava. As ondastambém meneavam suas cristas indolentes; e, ao longo do imenso transe dooceano, o leste meneava para o oeste, e o sol pairava sobre todos.

De repente, pareceu-me que bolhas estouravam para além dos meus olhosfechados; como prensas, minhas mãos se agarraram aos ovéns; uma misteriosaforça invisível me salvou; com um choque voltei à vida. E, oh!, bem perto, asotavento, a menos de quarenta braças, um Cachalote gigantesco rolava pela águacomo o casco virado de uma fragata, seu dorso enorme e lustroso, de uma corEtíope, brilhando ao sol como um espelho. Mas ondulando preguiçosa pelas cavasdo mar, e, vez ou outra, lançando tranqüila seu jato vaporoso, a baleia pareciaum burguês corpulento fumando o seu cachimbo numa tarde de calor. Masaquele cachimbo, pobre baleia, foi o teu último! Como se tocado por umavarinha de condão, o navio sonolento e todos os que cochilavam começaram de

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uma vez a despertar; e dezenas de vozes de todas as partes do navio, junto com astrês que vinham do alto, lançaram o grito costumeiro, enquanto o peixe enorme,com calma e com regularidade, esguichava no ar a salmoura cintilante.

“Arriar os botes! Orçar!”, gritou Ahab. E, obedecendo à sua própria ordem,baixou o leme antes que o timoneiro pudesse pegá-lo.

Os gritos repentinos da tripulação devem ter assustado a baleia; e antes que osbotes descessem à água, virando-se com majestade, ela nadou a sotavento, mascom tal tranqüilidade, e fazendo tão pouco movimento enquanto nadava, queAhab, pensando que talvez ainda não estivesse assustada, deu ordens para quenem um remo fosse usado e que nenhuma palavra fosse proferida, senão emsussurros. Assim sentados, tal como Índios de Ontário nas amuradas dos botes,com as pás largas vogávamos rápida e silenciosamente; uma vez que a calmarianão nos permitia usar as velas. Logo, enquanto desse modo deslizávamos em seuencalço, o monstro levantou a cauda perpendicularmente a quarenta pés no ar eafundou, desaparecendo como uma torre que fosse tragada.

“Ali vai a cauda!”, foi o grito, anúncio imediatamente seguido da presteza deStubb em pegar um fósforo e acender seu cachimbo, pois agora haveria descansogarantido. Decorrido o intervalo da sondagem, a baleia emergiu de novo e,estando de frente para o bote do fumante, mais perto dele do que dos outrosbotes, Stubb se fez de rogado das honras de capturá-la. Era óbvio, àquela altura,que a baleia havia se apercebido de seus perseguidores. Todo o silêncio da cautelade nada mais adiantava. As pás largas foram deixadas, e os remos entraramruidosamente em ação. Ainda dando baforadas no seu cachimbo, Stubb incitou atripulação ao ataque.

Sim, uma mudança brusca acometera o peixe. Sensível ao perigo, vinha de“cabeça para fora”; projetando obliquamente essa sua parte para fora da espumaque produzia.{a}

“Força, força, meus homens! Não se apressem; demorem bastante – mas façamforça; a força de um estrondo de trovão, e só!”, gritou Stubb, soltando a fumaçaenquanto falava. “Força, agora; quero um movimento forte e demorado,Tashtego. Força, Tash, meu jovem – força, todos; mas mantenham a calma,mantenham a calma – frieza é a palavra –, devagar, devagar – façam força comoos demônios sorridentes e a morte sombria, e levantem perpendicularmente osdefuntos enterrados em seus túmulos, rapazes – só isso. Força!”

“Uuh-uuh! Uah-ih!”, berrou o nativo de Gay Head em resposta, lançando algumantigo grito de guerra aos céus, enquanto todos os remadores no bote tensionadoforam involuntariamente jogados para a frente com o fortíssimo golpe que oÍndio impetuoso desferiu.

Mas seus gritos selvagens foram respondidos por outros quase tão selvagens.

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“Qui-ih! Qui-ih!”, bradou Daggoo, fazendo força para a frente e para trás em seuassento, como um tigre que anda na jaula.

“Qua-la! Quu-lu!”, uivou Queequeg, como se estalasse os lábios abocanhandoum bom pedaço de bife. E assim, com remos e gritos as quilhas singravam o mar.Enquanto isso, Stubb, mantendo-se à frente, encorajava seus homens ao ataque,sem parar de baforar a fumaça. Como criminosos destemidos eles desciam osremos e os puxavam de volta com força, até que o grito tão esperado surgiu:“Levante-se, Tashtego! – Ao ataque!”. O arpão foi arremessado. “À ré!” Osremadores recuaram; no mesmo instante alguma coisa passou quente e sibilantepor seus pulsos. Era a ostaxa mágica. Pouco antes, Stubb havia rapidamente lhedado duas voltas adicionais em torno do posto da arpoeira, de onde, em razão darapidez com que corria, a fumaça azul do cânhamo subia e se misturava àsbaforadas sempre presentes de seu cachimbo. À medida que a ostaxa girava emtorno do posto da arpoeira; assim também, antes de chegar àquele ponto, elapassava cortante pelas mãos de Stubb, das quais os panos para a mão, ou pedaçosde lona acolchoada, às vezes úteis nessas ocasiões, haviam caído. Era comosegurar pela folha a afiada espada de dois gumes de um inimigo, enquanto este aretorce todo o tempo para arrancá-la de suas mãos.

“Molhe a ostaxa! Molhe a ostaxa!”, gritou Stubb para o remador da selha (elesentado perto da selha), o qual, tirando o chapéu, jogou água nela.{b} Mais voltascorreram, de modo que a ostaxa começou a parar. O bote voava naquelemomento pela água agitada como um tubarão cheio de nadadeiras. Stubb eTashtego trocaram de lugares – popa por proa –, uma tarefa realmentedesconcertante em meio àquela comoção balançante.

Da ostaxa vibrante, esticada por toda a extensão da parte superior do bote, edo fato de estar mais tensa que a corda de uma harpa, a impressão era de que aembarcação tinha duas quilhas – uma cortando a água, a outra o ar –, pois o botecorria agitado através dos dois elementos opostos de uma só vez. Uma cascatacontínua se formava na proa; e um torvelinho ininterrupto na esteira; e, aomenor movimento dentro do bote, mesmo o de um dedinho, a embarcação, quevibrava e rangia, oscilava sua amurada convulsiva nas águas. Assim passavam,desbragados; todos os homens agarrados com toda a força aos bancos, para evitarserem lançados à espuma; e a silhueta alta de Tashtego junto ao remo-guia comoque se desdobrando em duas para manter seu centro de equilíbrio. Atlânticos ePacíficos inteiros pareciam ficar para trás enquanto eles disparavam em seucaminho, até que, por fim, a baleia afrouxou um pouco sua fuga.

“Recolher – Recolher!”, gritou Stubb ao remador da proa e, voltando-se para abaleia, todas as mãos começaram a puxar o bote para perto dela, enquanto o boteainda corria a reboque. Logo chegando perto de seu flanco, Stubb, firmando o

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seu joelho na tosca castanha, dardejou dardo após dardo no peixe fugitivo; a seucomando, o bote ora retrocedia frente às horríveis contorções da baleia, ora seaproximava para um novo ataque.

A corrente vermelha jorrava de todos os lados do monstro, como riachoscolina abaixo. Seu corpo torturado rolava não mais na água salgada, mas nosangue, que borbulhava e fervia por centenas de metros em sua esteira. O solcrepuscular, lançando luz sobre aquele lago carmim, devolvia seu reflexo aosrostos de todos, que cintilavam entre si como se fossem peles-vermelhas. Por todoesse tempo, jatos e mais jatos de fumaça branca eram esguichados em agonia doespiráculo da baleia, e baforadas e mais baforadas veementemente expelidas daboca do oficial agitado; enquanto a cada arremesso, recolhendo a lança retorcida(por meio da vioneira a ela presa), Stubb a endireitava, batendo-a contra aamurada, para depois arremessá-la de novo contra a baleia.

“Puxar – puxar!”, gritava para o remador da proa, enquanto a baleia abatidaarrefecia sua fúria. “Puxar! – mais perto!”, e o bote costeou o flanco do peixe.Quando estava bem em cima da proa, Stubb cravou lentamente sua lançacomprida e afiada no peixe, e ali a manteve, revolvendo sempre de novo,cuidadoso, como se estivesse cautelosamente procurando por um relógio de ouroque a baleia tivesse engolido, e que ele temia que se quebrasse antes de conseguirfisgá-lo para fora. Mas aquele relógio de ouro que procurava era a vida maisprofunda do peixe. E ele então a atingiu; pois saindo de seu transe para aquelacoisa indescritível que se chama “convulsão”, o monstro contorceu-seterrivelmente em seu próprio sangue, envolveu-se num impenetrável, ardente elouco vapor, de tal modo que a embarcação a perigo, retrocedendo de imediato,teve muita dificuldade de sair às cegas daquele crepúsculo frenético para o arlímpido do dia.

Já enfraquecida em sua convulsão, a baleia fez-se mais uma vez presente aosolhos; debatendo-se de um lado para o outro; dilatando e contraindo o espiráculocom espasmos e uma agonizante, seca e crepitante respiração. Por fim, soprosapós sopros de sangue coagulado, como a borra púrpura do vinho tinto, foramlançados ao ar repleto de terror; e caindo, escorreram dos flancos imóveis para omar. Seu coração havia estourado!

“Está morta, senhor Stubb”, disse Tashtego.“Sim; os dois cachimbos se apagaram!”, e tirando-os da boca Stubb espalhou

as cinzas mortas sobre a água; e, por um instante, ficou a olhar pensativo para oimenso cadáver que havia feito.

{a} Em outra parte, ver-se-á de que substância leve consiste o interior todo da cabeça enorme do Cachalote.Ainda que aparentemente a mais pesada, é de longe a mais leve. Por isso, ergue-a com facilidade, e

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invariavelmente o faz quando nada em alta velocidade. Além disso, tal é a largura da parte superior edianteira de sua cabeça, e tal a forma afilada de sua parte inferior, em talha-mar, que, ao levantá-laobliquamente, se pode dizer que de uma galeota vagarosa de proa larga a baleia se transforma numabarca de piloto nova-iorquina pontiaguda. [N. A.]

{b} Para mostrar como até certo ponto esse gesto é indispensável, lembro que na antiga pescaria Holandesase usava um pano para molhar com água a ostaxa que corria; em muitos outros navios, leva-se umpequeno balde de madeira para esse fim. No entanto, o chapéu é o mais prático. [N. A.]

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62 O ARREMESSO

Uma palavra sobre um incidente do capítulo anterior.Segundo o invariável costume da pesca, o bote baleeiro se afasta do navio com

o oficial, ou matador de baleias, como timoneiro temporário, e o arpoador, oucaçador de baleias, movendo o remo-guia, conhecido como remo do arpoador. Énecessário ter um braço vigoroso e forte para cravar o primeiro ferro no peixe;pois, amiúde, quando se trata do chamado arremesso comprido, o pesadoapetrecho tem de ser lançado a uma distância de vinte ou trinta pés. Por maislonga e exaustiva que seja a caçada, espera-se do arpoador que empenhe forçamáxima em seu remo; de fato, espera-se que dê aos outros o exemplo de umaatividade sobre-humana, não apenas por um extraordinário remar, como tambémao proferir repetidamente altas e intrépidas exclamações; e o que significa gritara plenos pulmões, quando todos os músculos estão exaustos e alquebrados – issoninguém pode saber, senão por experiência. Quanto a mim, não consigo gritarcom muito entusiasmo e trabalhar com muita determinação ao mesmo tempo.Nesse estado de cansaço e de gritaria, de costas para o peixe, de repente oarpoador exaurido escuta um agitado comando – “Levante-se! Ao ataque!”. Eleentão tem de soltar e prender o remo, dar meia-volta, pegar seu arpão daforquilha e, com o pouco de força que ainda lhe resta, tentar de algum modoacertá-lo na baleia. Não admira, pois, considerando-se as frotas de baleeiros emconjunto, que de cinqüenta oportunidades para um arremesso nem cinco delastenham êxito; não admira que tantos e infelizes arpoadores sejam furiosamenteamaldiçoados e desqualificados; não admira que alguns deles estourem seus vasossangüíneos no bote; não admira que alguns caçadores de Cachalotes fiquem porquatro anos ausentes para apenas quatro barris de óleo; não admira que paramuitos proprietários de navios baleeiros a pesca de baleias signifique prejuízo;pois é o arpoador que faz a viagem, e se lhe tiram o fôlego, como pode se esperarque ele o recupere no momento mais necessário?!

Ainda assim, se o arremesso é bem-sucedido, há um segundo momento crítico,ou seja, quando a baleia começa a correr, e o líder do bote e o arpoador tambémcomeçam a correr, da proa para a popa, com perigos iminentes para si e para osdemais. É nesse momento que trocam de lugares; e o líder, o oficial principal dapequena embarcação, toma sua posição na proa do bote.

Ora, não me importa quem pense o contrário, mas tudo isso é estúpido edesnecessário. O oficial deveria ficar na proa do começo ao fim, deveria

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arremessar o arpão e a lança, e não deveria remar, por mais que o esperassem, anão ser em circunstâncias óbvias para qualquer pescador. Sei que isso por vezesenvolveria uma pequena perda de velocidade na caça; mas a longa experiência devários baleeiros de mais de um país me convenceu de que a grande maioria dosfracassos na pesca não foi de modo algum causada pela velocidade da baleia, maspela anteriormente descrita exaustão do arpoador.

Para garantir uma maior eficiência no arremesso, os arpoadores deste mundodeveriam se levantar saídos do descanso, não da fadiga.

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63 A FORQUILHA

Dos troncos crescem os galhos; e destes, os ramos. Da mesmaforma, de assuntos fecundos, crescem os capítulos.

A forquilha a que me referi em página anterior merece uma atenção especial.É um bastão entalhado com uma forma específica, de cerca de dois pés decomprimento, que é instalado perpendicularmente na amurada a estibordo,próximo à proa, com o propósito de servir de apoio para a extremidade demadeira do arpão, cuja ponta nua e farpada se projeta inclinada da proa. Dessemodo, a arma fica à mão do lançador, que pode tomá-la de seu suporte tãoprontamente quanto um homem do bosque alcança seu rifle pendurado naparede. É costume manter dois arpões presos à forquilha, os respectivamentechamados primeiro e segundo ferros.

Mas esses dois arpões, cada qual por sua própria vioneira, estão ambos ligadosà ostaxa; sendo este seu objetivo: de lançá-los, se possível, um imediatamenteapós o outro na mesma baleia; de tal modo que, caso um não agüente o esforçosubseqüente, o outro se mantenha firme. É uma duplicação das possibilidades.Mas com muita freqüência acontece que, devido à fuga imediata, violenta econvulsiva da baleia ao receber o primeiro ferro, se torna impossível para oarpoador, ainda que rápido como um raio em seus movimentos, lançar-lhe osegundo ferro. Não obstante, como o segundo ferro está ligado à ostaxa, e aostaxa está correndo, a arma deve, em quaisquer circunstâncias, ser atirada depronto para fora do bote, não importando como; de outro modo, os mais terríveisperigos poderiam acometer a tripulação inteira. Atirá-la na água é o maisadequado para tais casos; as voltas sobressalentes da ostaxa de caixa(mencionadas no capítulo anterior) tornam esse ato, no mais das vezes, umaprecaução possível. Mas esse gesto decisivo nem sempre evita as mais tristes efatais desgraças.

Além disso, você deve saber que, quando o segundo ferro é atirado para forado bote, ele se torna então um imprevisível terror pontiagudo; curveteandonervoso junto ao bote e à baleia, embaraçando as linhas, ou cortando-as, eproduzindo uma prodigiosa sensação em todas as direções. Tampouco,geralmente, é possível recuperá-lo antes que a baleia seja capturada e morta.

Pense, então, como deve ser no caso de quatro botes, todos engajados em umabaleia conhecida, agitada e extremamente forte; quando, devido a essas suasqualidades, bem como aos milhares de acidentes que sujeitam uma empreitada

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tão audaciosa, oito ou dez segundos ferros soltos podem estar à deriva em suasproximidades. Pois, é claro, cada bote dispõe de vários arpões para prender àostaxa, caso o primeiro seja atirado em vão e não possa ser recuperado. Todosesses detalhes foram fielmente relatados aqui, pois não nos faltarão paraesclarecer alguns dos mais importantes, porém complicados, pontos nas cenasque adiante serão descritas.

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64 A CEIA DE STUBB

A baleia de Stubb fora morta a uma certa distância donavio. Havia calmaria, então; assim, formando uma fila de três botes, começamoso lento trabalho de reboque do prêmio para o Pequod. E agora, com dezoitohomens, trinta e seis braços, e cento e oitenta dedos e dedões, trabalhando lentae arduamente, hora após hora, naquele cadáver inerte e insensível no mar; e queparecia mal sair do lugar, salvo após longos intervalos; tínhamos por isso clarosindícios da grandeza da massa que carregávamos. Pois, no grande canal de Hang-Ho, ou como quer que o chamem, na China, quatro ou cinco trabalhadorescarregarão por uma trilha qualquer uma carga volumosa de junco a umavelocidade de uma milha por hora; mas o imenso galeão que rebocávamosavançava aos trancos e pesadamente, como se estivesse carregado de barras dechumbo.

Era chegada a escuridão; mas três luzes suspensas em diferentes alturas nocordame do Pequod guiavam obscuramente nosso caminho, até que, chegandomais perto, vimos Ahab pendurando mais uma dentre muitas lamparinas naamurada. Contemplando por um instante a baleia suspensa com um olhar vazio,deu as ordens costumeiras para que a prendêssemos por aquela noite e,entregando sua lamparina a um marinheiro, seguiu em seu caminho para acabine e de lá não saiu até o dia seguinte.

Ainda que, na supervisão da captura dessa baleia, Ahab tivesse demonstradosua habitual diligência, por assim dizer; agora que a criatura estava morta, umcerto desprazer, ou impaciência, ou desespero, parecia dominá-lo; como se avisão daquele corpo morto o fizesse lembrar de que Moby Dick restava ainda pormatar, e mesmo se milhares de outras baleias fossem levadas ao seu navio, issoem nada o ajudaria em seu grande e monomaníaco propósito. Pouco depois, pelobarulho no convés do Pequod, você poderia ser levado a pensar que todos osmarinheiros estavam se preparando para lançar a âncora no mar; pois pesadascorrentes estavam sendo arrastadas pelo convés e estrondosamente atiradas pelasvigias. Mas por aquelas cadeias retumbantes era o imenso cadáver, e não o navio,que devia ser atracado. Presa pela cabeça à popa, e pela cauda à proa, a baleiaficou então com seu casco preto encostado ao do navio, e vistos na escuridão danoite, que obscurece a verga e o cordame no alto, os dois – navio e baleia –pareciam sob o mesmo jugo como dois bois colossais, um dos quais descansavaenquanto o outro permanecia de pé.{a}

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Se o temperamental Ahab era agora todo calma, pelo menos tanto quanto sepodia perceber no convés, Stubb, o segundo imediato, era o entusiasmo. Estavaele em um tão incomum alvoroço que o sóbrio Starbuck, seu superior, lhedelegou temporariamente a condução das operações. A pequena causadeterminante de toda a animação de Stubb logo se fez estranhamente manifesta.Stubb gostava de uma boa dieta; e apreciava de um modo um tantodestemperado a baleia, a mais saborosa iguaria para o seu paladar.

“Um bife, um bife antes de dormir! Você aí, Daggoo! Desce e corta um pedaçoda parte mais delgada!”

Esclareça-se que, embora esses pescadores ferozes, em geral, e segundo agrande máxima militar, não façam o inimigo pagar as despesas da guerra (pelomenos antes de calcular os lucros da viagem), no entanto, vez por outra, vocêencontra um desses nativos de Nantucket que sente um verdadeiro prazer comaquela parte do Cachalote desejada por Stubb; que consiste na extremidadeafilada do corpo.

Por volta da meia-noite o bife havia sido cortado e cozinhado; e, iluminado porduas lamparinas de óleo de Cachalote, Stubb subiu com sua ceia de Cachalote aotopo do cabrestante, como se o cabrestante fosse um aparador. Mas não foi sóStubb que se refestelou com carne de baleia naquela noite. Mesclando grunhidose dentadas, milhares e milhares de tubarões, apinhados em torno do Leviatãmorto, deleitaram-se vivamente em sua gordura. Os poucos homens quedormiam nos beliches embaixo acordavam muitas vezes assustados com oincisivo golpe das caudas contra o casco, a poucas polegadas de seus corações. Àsescondidas pelo costado, você os podia ver (como antes os escutava) agitados nassombrias águas escuras, virando-se de costas enquanto arrancavam imensospedaços circulares da baleia, estes do tamanho de uma cabeça humana. Essegesto específico do tubarão parece quase milagroso. Como, numa superfícieaparentemente inatacável, ele logra cortar nacos tão simétricos, ainda é parte doenigma universal das coisas. A marca que deixa na baleia pode muito bem sercomparada ao buraco feito por um carpinteiro para fazer girar um parafuso.

Ainda que, no meio de todo o horror e malvadeza fumegantes de uma luta nomar, os tubarões sejam vistos a observar com ansiedade o convés do navio, comocachorros famintos em volta de uma mesa onde uma peça de carne malpassadaestá sendo fatiada, prontos para se atirar sobre qualquer homem morto que lhesseja lançado; e ainda que, enquanto valentes açougueiros estão à mesa do convéscortando, como canibais, a carne viva uns dos outros, com facas de corte todasornadas de borlas e banhadas a ouro, também os tubarões, com suas bocascravejadas de brilhantes, cortem litigiosamente a carne morta debaixo da mesa; eainda que, invertendo toda a situação, ela permanecesse mais ou menos a

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mesma, ou seja, um assunto repulsivamente tubaronesco para todas as partes; eainda que os tubarões sejam os invariáveis batedores de todos os navios negreirosque cruzam o Atlântico, acompanhando-os sistematicamente pelos flancos, paraestar por perto caso um pacote tenha de ser levado a algum lugar, ou um escravomorto tenha de ser enterrado decentemente; e ainda que se possa dar mais umou outro exemplo, com referência aos períodos, ocasiões e lugares em que ostubarões se reúnem socialmente e organizam seus mais alegres festins; aindaassim, não existe outra ocasião ou época melhor para encontrá-los em tão grandenúmero e tão bem dispostos e alegres, quanto ao redor de um Cachalote mortopreso a um navio baleeiro à noite no mar. Se você nunca viu esse espetáculo,suspenda então seu juízo sobre as convenções do culto ao demônio e a vantagemde se conciliar com ele.

Mas, até então, Stubb não prestou atenção aos grunhidos do banquete queestava acontecendo tão perto dele, tanto quanto os tubarões aos estalos de seuslábios epicúrios.

“Cozinheiro, cozinheiro! – Onde está o velho Fleece?”, gritou, por fim,apartando ainda mais as pernas, como se quisesse fazer uma base mais segurapara sua ceia; e, ao mesmo tempo, batendo com ímpeto o garfo no prato, comose o estivesse perfurando com sua lança; “cozinheiro, cozinheiro! – Vem aqui,cozinheiro!”

O preto velho, de modo algum satisfeito por terem-no tirado de sua redeaconchegante numa hora tão inoportuna, veio aos trancos de sua cozinha, pois,como muitos pretos velhos, tinha um problema nas patelas, que ele nãomantinha tão bem cuidadas quanto suas panelas; o velho Fleece, o Lã-de-Carneiro, como o chamavam, veio arrastando os pés e manquitolando, auxiliandosuas passadas com uma tenaz, que havia sido toscamente feita de duas argolas deferro esticadas; o velho Ébano veio trôpego e, obedecendo à ordem, parouabruptamente do outro lado do aparador de Stubb; quando, entrelaçando asmãos e apoiando-se em sua bengala de duas pernas, dobrou ainda mais suascostas já curvadas, e ao mesmo tempo inclinou a cabeça de lado, de modo a levarseu ouvido bom à questão.

“Cozinheiro”, disse Stubb, levando com rapidez um pedaço bem vermelho àboca, “você não acha que esse bife passou do ponto? Você bateu demais esse bife;está macio demais. Não digo sempre que um bom bife de baleia precisa estarduro? Temos esses tubarões no costado; você não vê que eles os preferem duros emalpassados? Que balbúrdia estão fazendo! Cozinheiro, vá lá falar com eles; digaa eles que podem vir se servir civilizadamente e com moderação, mas queprecisam ficar quietos. O raio que os parta! Não consigo ouvir minha própria voz.Vá, cozinheiro, transmita a eles minha mensagem. Aqui, pegue essa lamparina”,

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disse, apanhando uma lamparina do aparador; “agora vá e lhes faça a pregação.”Pegando contrariado a lamparina que lhe foi oferecida, o velho Fleece

atravessou claudicante o convés até a amurada; e então, com uma mãoaproximando a luz do mar, de modo a ter uma visão boa de sua congregação,com a outra ele brandiu solenemente sua tenaz, e inclinando-se sobre o costadocom uma voz baixa se dirigiu aos tubarões, enquanto Stubb, chegando sorrateiropor detrás, escutou tudo o que foi dito.

“Caras criatura’: me mandaru’ aqui pra dizê’ que ‘cêis têm que pará’ com essemaldito barulho aí. Ouviru’? Parem d’istalá’ os beiço! O sinhô Stubb disse que‘cêis pode enchê’ o seu maldito bucho ‘té arrebentá’, mas, pelo amô’ de Deus,‘ceis têm que pará’ co’ a baderna!”

“Cozinheiro!”, interrompeu Stubb, dando-lhe um tapa nas costas paraacompanhar o chamado, “Cozinheiro! Maldito seja! Não blasfeme desse jeitoenquanto prega. Isso não é jeito de converter os pecadores, cozinheiro!”

“E quem feiz isso? Então ‘cê mesmo prega pr’eles”, virando-se carrancudo parair embora.

“Não, cozinheiro; continua, continua.”“Bem, então, caras amada’ criatura’…”“Isso mesmo!”, exclamou Stubb, com aprovação, “tente persuadi-los com

lisonjas; tente assim”, e Fleece continuou.“Apesa’ que ‘cêis é tudo tubarão, e muito glutão por natureza, eu tenho que

dizê’ pro’cêis, caras criatura’, que essa voracidade – pare’ de batê’ esse malditorabo! Como é que vão ouvi’ se ficá’ com essas malditas batida e mordida aí?”

“Cozinheiro”, gritou Stubb, agarrando-o pela gola, “Não quero blasfêmias. Faladireito com eles.”

Mais uma vez o sermão continuou.“A gula do‘cêis, caras criatura’, num culpo ‘cêis por isso; isso é natureza e num

dá pra fazê’ nada; mas guverná’ essa natureza malvada, esse é o objetivo. ‘Cêissão tubarão, ‘tá certo; mas se ‘cêis guverná’ o tubarão dentro do‘cêis, então ‘cêissão anjo: porque tud’os anjo é só um tubarão bem guvernado. Ora, veja’ bem,irmãos, tente só uma veiz sê’ civilizado, quando se servi’ dessa baleia. Num tirema gordura da boca do vizinho, repito. Um tubarão num tem tantos direito’ quantoo otro sobre essa baleia? Pelo amô’ de Deus, nenhum do‘cêis tem direito a essabaleia; essa baleia pertence a otro. Sei que auguns do‘cêis têm uma boca muitogrande, maió’ que a dos otro; mas às veiz as boca’ grande’ têm as barriga’pequena’; mode que a grandeza da boca num é pra enguli’ muito, mas praarrancá’ a gordura pros tubarão pequeno, que num pode empurrá’ pra se servi’.”

“Muito bem, velho Fleece!”, gritou Stubb, “isso é Cristianismo, continua.”

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“Num ‘dianta continuá’, os maldito’ canalha continua empurran’o e baten’o,seu Stubb; num ‘tão escutan’o nenhuma palavra; num ‘dianta pregá’ prunsmaldito fominha, como se diz, antes que o bucho deles ‘teja cheio, e o buchodeles num tem fundo; e quando ‘tão de bucho cheio, num vão querê’ escutá’,porque afundam no má’, correm pra dormi’ no coral, e não vão ouvi’ nada,nunca mais.”

“Dou a minha palavra que sou da mesma opinião! Dê-lhes uma bênção, Fleece,que vou voltar à minha ceia.”

Com isso, Fleece estendeu as duas mãos sobre a multidão de peixes, levantou asua voz estridente, e gritou –

“Malditas caras criatura’! Façam o maió’ barulho que pudé’, encham o buchoaté estourá’ – e depois morram.”

“Ora, cozinheiro”, disse Stubb, voltando à sua ceia no cabrestante; “fique alionde você estava antes; ali, do outro lado, e preste atenção.”

“Toda ‘tenção”, disse Fleece, curvando-se de novo sobre a tenaz, na posiçãodesejada.

“Bem”, disse Stubb, servindo-se à vontade enquanto isso, “Vou voltar agora aoassunto do bife. Em primeiro lugar, quantos anos você tem, cozinheiro?”

“O qui é qui isso tem a vê’ com o bife?”“Silêncio! Quantos anos você tem, cozinheiro?”“Uns noventa, dizem”, murmurou com tristeza.“E você viveu quase cem anos neste mundo, cozinheiro, e não aprendeu a

fazer um bife de baleia?”, mastigando rapidamente um pedaço depois da últimapalavra, de tal modo que o pedaço parecia a continuação da questão. “Onde vocênasceu, cozinheiro?”

“‘Trás da escotilha, numa balsa que ‘tava atravessando o Roanoke.”“Nasceu numa balsa! Isso é estranho, também. Mas quero saber em que lugar

você nasceu, cozinheiro.”“Eu num disse na região do Roanoke?”, disse, com um tom de amargura.“Não, não disse, cozinheiro, mas vou dizer-lhe aonde quero chegar,

cozinheiro. Você deve voltar para casa e nascer de novo, pois ainda não sabe fazerum bife de baleia.”

“Valha-me Deus se eu fizé’ mais um”, resmungou, com raiva, virando-se para irembora.

“Volte aqui, cozinheiro – aqui, dê-me essa tenaz –, agora pegue um pedaçodaquele bife ali e me diga se está bem feito? Pegue, repito, pegue eexperimente!”, disse, segurando as tenazes na sua direção.

Experimentando um pouquinho com os seus lábios secos, o preto velho

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murmurou: “Mió’ bife qui já comi, dilicioso muito dilicioso”.“Cozinheiro”, disse Stubb, voltando a se servir, “você vai à igreja?”“Fui uma vez em Cape Down”, disse o homem, mal-humorado.“E passou uma vez na sua vida numa igreja sagrada em Cape Town, onde, sem

dúvida, ouviu um santo pároco dirigir-se aos ouvintes como se estivesse falandocom caras criaturas muito queridas, não é, cozinheiro? No entanto, você vemaqui, e conta uma mentira deslavada como fez agora, hein?”, disse Stubb. “Aondevocê pensa que vai, cozinheiro?”

“Pra cama bem depressa”, murmurou, dando meia-volta ao dizer isso.“Alto lá! Pare! Eu quis dizer quando você morrer, cozinheiro. É uma pergunta

terrível. Qual é sua resposta?”“Quando esse preto véio morrê’”, disse o preto devagar, mudando de tom e de

comportamento, “ele num vai pra lugá’ nenhum, mas um anjo abençoado vembuscá’ e levá’ ele.”

“Buscá-lo? Como? Numa carruagem com quatro cavalos como buscaram Elias?E levá-lo para onde?”

“Lá pra cima”, disse Fleece segurando a tenaz em cima da cabeça, e mantendo-a ali com solenidade.

“Então, você espera subir ao cesto da gávea quando morrer, cozinheiro? Masvocê não sabe que quanto mais alto se sobe mais frio fica? Cesto da gávea, hein?”

“Num disse isso”, disse Fleece, mal-humorado de novo.“Você disse lá em cima, não? Olhe você mesmo, e veja para onde a tenaz está

apontando. Mas talvez você queira chegar ao céu passando pelo buraco dogajeiro, cozinheiro; mas, não, cozinheiro, não se chega lá a não ser pelo caminhoregular, dando a volta no cordame. É um negócio delicado, mas que deve serfeito, não tem jeito! Mas nenhum de nós chegou ao céu. Solte a tenaz,cozinheiro, e escute as minhas ordens. Está escutando? Segura o seu chapéu comuma mão, e bata no coração com a outra, quando eu estiver dando as minhasordens, cozinheiro. O quê? O seu coração fica aí? – isso é a sua barriga! Mais pracima! Mais pra cima! Aí! – Agora está bem. Fique assim e preste atenção.”

“Toda atenção”, disse o preto velho, com as duas mãos dispostas como haviasido indicado, torcendo em vão a cabeça grisalha, como se quisesse colocar asduas orelhas para a frente ao mesmo tempo.

“Pois bem, cozinheiro, perceba que esses bifes de baleia estão tão ruins quetenho que tirá-los da minha frente o mais rápido possível; você percebe isso, não?Pois bem, no futuro, se você fizer outro bife de baleia para a minha mesaparticular aqui, o cabrestante, vou lhe dizer o que fazer para não estragá-locozinhando-o por muito tempo. Segure o bife com uma mão e mostre-lhe uma

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brasa com a outra; isto feito, sirva-o, escutou? Amanhã, cozinheiro, quandocortarmos o peixe, não deixe de estar por perto, para pegar as pontas dasbarbatanas; coloque-as em conserva. Quanto às pontas da cauda, coloque-as emsalmoura, cozinheiro. Pronto, agora pode ir.”

Mas, mal Fleece tinha dado três passos, foi novamente chamado.“Cozinheiro, quero costeletas para a ceia amanhã à noite na minha vigília.

Escutou? E agora vá – Ei! Pare! Faça uma reverência antes de partir – Pare outravez! Os testículos da baleia para o café da manhã – não se esqueça.”

“Pelo amô’ di Deus! queria que a baleia comesse ele, em vez que ele comesse abaleia. Juro que ele é mais tubarão que o próprio sinhô Tubarão”, resmungou ovelho, enquanto claudicava de volta; e com essa sábia exclamação foi para a suarede.

{a} Um pormenor poderia muito bem ser relatado aqui. A forma mais confiável e firme de segurar umabaleia ao flanco de um navio é pelos lobos ou pela cauda. Sendo mais densa, essa parte é relativamentemais pesada do que qualquer outra (exceto as barbatanas laterais); mesmo quando morta, suaflexibilidade faz com que afunde um pouco abaixo da superfície; de tal modo que não se conseguealcançá-la com a mão do bote, para amarrá-la com a corrente. Mas essa dificuldade é resolvida commuita engenhosidade: prepara-se uma corda pequena e forte, com uma bóia de madeira na extremidadeexterior e um contrapeso no meio, enquanto a outra ponta fica presa ao navio. Com uma manobrahabilidosa a bóia de madeira emerge do outro lado do corpo, de tal modo que, tendo dado a volta nabaleia, a corrente está pronta para fazer o mesmo; e deslizando ao longo do corpo, por fim, é ligada comfirmeza à parte mais estreita da cauda, no ponto de junção dos seus lobos enormes. [N. A.]

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65 A BALEIA COMOUM PRATO

Que um mortal se alimente da criatura que alimenta sualamparina, e, que, como Stubb, coma o animal sob sua

própria luz, como se pode dizer; é uma coisa que parece tão estranha que se faznecessário entrar um pouco na história e na filosofia desse fato.

Consta dos livros que, há três séculos, a língua da Baleia Franca eraconsiderada uma deliciosa iguaria na França, chegando a alcançar altos preços.Também se diz que, no tempo de Henrique VIII, um certo cozinheiro da Corterecebeu uma recompensa generosa por ter inventado um molho excelente paraacompanhar as marsopas grelhadas, que, como se há de lembrar, são um tipo debaleia. As marsopas, de fato, são até hoje consideradas um prato refinado. A carneé preparada em bolinhos do tamanho aproximado de bolas de bilhar, e quandobem temperadas e condimentadas podem passar por bolinhos de tartaruga ou devitela. Os monges antigos de Dunfermline apre-ciavam-nas muitíssimo. A Coroatinha-lhes feito uma grande doação de marsopas.

Fato é que, entre os seus caçadores, pelo menos, a baleia teria sido por todosconsiderada um prato nobre, não fosse ela tão abundante; mas, quando vocêchega a se sentar diante de um bolo de carne de quase cem pés de comprimento,ele leva embora seu apetite. Apenas um sujeito tão sem preconceitos quantoStubb consegue, hoje em dia, desfrutar das baleias cozidas; mas os Esquimós nãosão tão exigentes. Todos sabemos como baseiam sua vida nas baleias, possuindoraros e antigos estoques de um óleo de primeira linha. Zogranda, um dos seusmais afamados médicos, recomenda tiras de gordura para as crianças, por seremmuito saborosas e nutritivas. Isso me traz à mente que alguns Ingleses – há muitotempo deixados por acaso na Groenlândia por um navio baleeiro – sealimentaram por meses a fio dos pedaços bolorentos que haviam sido deixadosem terra depois de retirada a gordura. Os baleeiros Holandeses chamam essesdespojos de “fritadas”; com as quais guardam de fato grande semelhança, poissão marrons e tostadas, com um cheiro semelhante ao das rosquinhas oubolinhos fritos que as donas-de-casa de Amsterdã fazem, quando frescos. Têm umaspecto tão apetitoso que o mais sóbrio dos estrangeiros não consegue se conter.

No entanto, o que deprecia ainda mais a baleia como um prato civilizado é asua gordura excessiva. Ela é o touro premiado do mar, gordo demais para serapreciado. Veja sua corcova, que poderia ser uma iguaria tão requintada quanto ado búfalo (que é considerada um prato raro), não fosse uma pirâmide tão sólida

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de gordura. Mas o espermacete, que cremoso e suave ele é; igual à polpatransparente e gelatinosa de um coco no terceiro mês de sua maturação, porémgorduroso demais para servir de substituto à manteiga. No entanto, muitosbaleeiros têm um método de combinar a gordura com outras substâncias e entãoingeri-la. Nas longas vigílias noturnas em que se derrete a gordura, é comum verum marinheiro mergulhar seu biscoito numa enorme frigideira e deixá-lo ali,fritando por algum tempo. Várias ceias gostosas eu fiz desse modo.

No caso de um Cachalote pequeno, o cérebro é tido em conta como iguaria. Acaixa craniana é quebrada com um machado, e os dois lobos arredondados eesbranquiçados são retirados (lembram exatamente dois grandes pudins),misturados com farinha, e cozidos até que se tornem um delicioso manjar, comsabor semelhante ao da cabeça de vitela, que é prato estimado por algunsgastrônomos; e todo mundo sabe que alguns janotas entre os gastrônomos, detanto comer o cérebro da vitela, pouco a pouco começaram a experimentar seuspróprios cérebros, para conseguir diferenciar a cabeça da vitela de suas próprias,o que requer um extraordinário discernimento. Esse é o motivo pelo qual umjanota de ar inteligente diante de uma cabeça de vitela é, de certo modo, umadas cenas mais tristes que se pode ver. A cabeça parece lançar-lhe algum tipo dereprimenda, como se dissesse “Et tu Brute!”.

Talvez não seja tanto por causa da excessiva gordura da baleia que os homensda terra pareçam considerar com nojo a possibilidade de comê-la; tal sensaçãoderiva, de certo modo, da consideração outrora mencionada: i.e., do fato decomer um animal marinho recentemente morto, e usando-o, para tanto, tambémcomo iluminação. Mas não resta dúvida de que o primeiro homem que matouum boi tenha sido considerado um assassino; talvez tenha sido enforcado; e, setivesse sido levado a julgamento por bois, certamente o teria sido; e certamente oteria merecido, se é que algum assassino merece tal fim. Vá ao mercado decarnes, num sábado à noite, e veja as multidões de bípedes vivos de olhosvidrados nas longas filas de quadrúpedes mortos. Esse espetáculo não tira um dosdentes do maxilar dos canibais? Canibais? Quem não é um canibal? Garanto avocê que o Juízo Final será mais tolerante com um providente Fidjiano que salgouum missionário magro em sua adega para se prevenir contra a fome do quecontigo, gourmand civilizado e esclarecido, que prendes os gansos no chão e terefestelas com seus fígados dilatados em teu paté de foie gras.

Mas Stubb, ele come a baleia à luz de seu próprio óleo, não? E isso é somarinsulto à injúria, não é? Olhe para o cabo de sua faca, meu caro gourmandcivilizado e esclarecido a comer um rosbife, do que é feito o cabo? – do quê,senão dos ossos do irmão do mesmo boi que você está comendo? E com o quevocê palita os dentes, depois de devorar aquele ganso gordo? Com uma pena da

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mesma ave. E com que pena o Secretário da Sociedade de Supressão deCrueldade aos Gansos escreve suas circulares? Há apenas um ou dois meses essasociedade tomou a decisão de patrocinar somente penas de aço.

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66 O MASSACREDOS TUBARÕES

Quando nas pescarias do Sul, um Cachalote capturado, apósum trabalho muito prolongado e cansativo, é trazido ao

costado do navio tarde da noite, não se costuma, em geral, dar início aosprocedimentos de corte na mesma hora. Pois essa tarefa é realmente muitoárdua; não termina com muita rapidez; e requer a participação de todos. Porconseguinte, o costume é ferrar as velas; prender o leme a sotavento; e entãomandar todos para suas redes até o dia amanhecer, com a ressalva de que, atéessa hora, deve ser mantida a vigília; ou seja, de dois em dois, a cada hora, oshomens devem subir ao convés para ver se está tudo em ordem.

Mas às vezes, especialmente no Pacífico equatorial, esse esquema não trazresultados; porque incontáveis hostes de tubarões se reúnem em torno da carcaçaatracada, que se deixada desse modo por cerca de seis horas, digamos, corridas,pouco mais do que seu esqueleto seria encontrado na manhã seguinte. Em boaparte de outras paragens do oceano, no entanto, onde tais peixes não existem emabundância, sua espantosa voracidade pode por vezes ser consideravelmenteesmaecida, caso sejam fustigados energicamente com as afiadas pás de baleia,um procedimento que contudo, em alguns casos, parece apenas incitá-los aindamais. Mas não era isso que acontecia naquele momento com os tubarões doPequod; já que, para falar a verdade, qualquer pessoa que não estivesse habituadaàquele espetáculo, só de olhar sobre o costado naquela noite quase chegaria àconclusão de que a grande superfície esférica do mar era um único e imensoqueijo, e os tubarões, seus vermes.

Não obstante, com Stubb montando a vigília depois de finda a ceia; e quando,depois, Queequeg e um marinheiro do castelo de proa subiram ao convés, nãopouco alvoroço havia entre os tubarões; pois, suspendendo de pronto os cortessobre o costado, e descendo três lamparinas, de modo a lançar longos fachos deluz por sobre o mar conturbado, os dois marujos, arremessando suas compridaspás de baleias, iniciaram uma interminável chacina de tubarões, acertando o açoafiado bem fundo em seus crânios,{a} aparentemente seu único ponto vital. Mas,em meio àquela confusão espumante de misturadas hostes rivais, os atiradoresnem sempre conseguiam acertar o alvo; e isso trazia à tona novas revelaçõesacerca da incrível ferocidade do inimigo. Mordiam com voracidade não somenteas entranhas dos companheiros estripados, mas, como arcos flexíveis, curvavam-se e mordiam suas próprias; a tal ponto que aquelas entranhas pareciam estar

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sendo sempre engolidas pela mesma boca, para serem depois expelidas pelaferida aberta. Mas isso não era tudo. Era perigoso mexer com os cadáveres e osespíritos dessas criaturas. Uma espécie de vitalidade genérica ou Panteísticaparecia à espreita em suas juntas e ossos, depois de a chamada vida individual terpartido. Morto e trazido para o convés, em função de sua pele, um dessestubarões quase arrancou a mão do pobre Queequeg, quando ele tentou fechar atampa morta de sua mandíbula assassina.

“Pouco impo’ta pra Queequeg qual deus faz ele tubarão”, disse o selvagemsacudindo a mão machucada para cima e para baixo; “si foi um deus Fidjiano ouum de Nantucket; mas esse deus que faz tubarão deve de sê’ uma máquinamaldita.”

{a} A pá de baleia usada no corte é feita do melhor aço; tem mais ou menos o tamanho de uma mão humanaaberta; e sua forma corresponde, em geral, a instrumentos de jardinagem, dos quais emprestou o nome;somente os lados são perfeitamente planos, e a extremidade superior consideravelmente mais estreitado que a inferior. Tal arma está sempre tão afiada quanto possível; e, quando usada, é às vezes amolada,como se fosse uma navalha. Uma estaca de vinte a trinta pés de comprimento é colocada em suaembocadura, para servir de cabo. [N. A.]

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67 O CORTE

Era um sábado à noite, e que domingo o seguiu! Os baleeiros sãomestres ex-officio em quebrar o descanso desse dia. O ebúrneo Pequodtransformou-se no que parecia ser um matadouro; cada marinheiro, umaçougueiro. Você chegaria a pensar que estávamos oferecendo dez mil bois emsangue aos deuses do mar.

Em primeiro lugar, as enormes talhas de corte, que entre as outras coisaspesadas consistiam num conjunto de cadernais geralmente pintados de verde,que nenhum homem conseguia levantar sozinho – esse imenso cacho de uvas foierguido até a gávea e amarrado com firmeza ao topo do mastro-real, o pontomais firme que existe acima do convés de um navio. A ponta de uma cordasemelhante a uma espia que passava por esses meandros foi então conduzida aomolinete, e o enorme cadernal das talhas ficou pendente sobre a baleia; a essecadernal o imenso gancho de gordura, pesando cerca de cem libras, foi preso. Eentão, suspensos em plataformas sobre o costado, Starbuck e Stubb, os imediatos,armados de suas pás compridas, começaram a abrir um buraco no corpo paracolocar o gancho de cima bem próximo às duas barbatanas laterais. Isso feito,cortaram uma linha semicircular comprida ao redor do buraco, o gancho foicolocado, e a maior parte da tripulação, alardeando um coro selvagem, começa apuxar do molinete em uma só massa compacta. Então, imediatamente, o naviointeiro aderna sobre o costado; todos os seus parafusos se sobressaltam, como acabeça dos pregos de um antigo casarão sujeito ao frio intenso; o navio treme, seagita, e inclina o topo assustadiço dos mastros no céu. Cada vez mais ele pendepor sobre a baleia, enquanto cada puxada ofegante do molinete encontra eco noesforço auxiliar dos vagalhões; até que, por fim, se escuta um brusco e rápidoestalo; com um grande estrondo sobre as águas o navio rola para cima e para trásda baleia, e a talha triunfante surge trazendo consigo, desprendida, aextremidade semicircular da primeira tira de gordura. Uma vez que a gorduraenvolve a baleia como a casca envolve a laranja, quando ela é retirada do corpo,isso é feito em espiral, do mesmo modo que se faz quando se tira a casca dalaranja. Pois a força constante exercida pelo molinete mantém a baleia rolando naágua, e como a gordura se desprende em uma tira uniforme ao longo da linhachamada “cachecol”, cortada ao mesmo tempo pelas pás de Starbuck e Stubb, osimediatos; e com a mesma rapidez com que é descascada, e por força dissomesmo, ela é erguida mais e mais alto, até que sua ponta superior toca o cesto da

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gávea; os homens do molinete, então, param de puxar, e, por um ou doisinstantes, a prodigiosa massa que se esvai em sangue balança para a frente e paratrás, como se estivesse suspensa no céu, e todos presentes devem ter o cuidado dese esquivar dela enquanto balança, caso contrário podem levar uma pancada noouvido, ou ser atirados para fora do navio.

Um dos arpoadores presentes aproxima-se então com uma arma comprida eafiada, a chamada espada de abordagem, e, esperando o momento certo, abrecom agilidade um considerável buraco na parte inferior da massa que balança.Nesse buraco, a extremidade da segunda talha alternante é enganchada de modoa deter a gordura e dar guarida ao que vem em seguida. Depois disso, esseespadachim de bons costumes, pedindo a todos que se afastem, mais uma vezproduz um talhe científico na massa, e com mais uns cortes laterais, cheios deurgência, divide-a em duas; de modo tal que, enquanto a pequena parte inferiorpermanece presa, a comprida tira superior, chamada “manta”, queda solta epronta para ser arriada. Os carregadores agora param de cantar, e enquanto umatalha descasca e levanta uma segunda tira da baleia, a outra é lentamenteafrouxada, e a primeira tira é levada para baixo pela escotilha, para um cômodosem mobília, chamado câmara de gordura. Nesse cômodo úmido e crepuscularmãos ágeis enrolam a manta como se fosse uma imensa massa viva de cobrasentrelaçadas. E assim o trabalho prossegue; as duas talhas levantando e abaixandoao mesmo tempo; a baleia e o molinete sendo puxados, os puxadores cantando,os homens da câmara da gordura enrolando, os imediatos decepando, o naviosuportando a carga, e todos os marinheiros blasfemando de quando em quando,para trazer algum alívio à fadiga geral.

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68 A MANTA

Não dediquei pouca atenção a esse assunto um tanto incômodo, apele da baleia. Entrei em discussões a esse respeito com experientes baleeiros debordo e doutos naturalistas de terra. A minha opinião inicial ainda é a mesma;contudo, é apenas uma opinião.

Eis o problema – o que é, e onde está, a pele da baleia? Você já sabe o que ésua gordura. A gordura tem algo da consistência firme e fibrosa da carne do boi,embora mais dura, mais elástica e compacta, com uma espessura de oito ou dez adoze ou quinze polegadas.

Ora, por mais absurdo que pareça à primeira vista afirmar que uma criaturatenha uma pele com tal espessura e consistência, de fato não existem argumentoscontra tal hipótese; porque não se encontra nenhuma outra camada densaenvolvendo o corpo da baleia, salvo essa mesma gordura; e a mais externacamada que envolva qualquer animal, se consideravelmente densa, o que podeser senão sua pele? De fato, raspando o corpo da baleia morta e ainda fresca comas próprias mãos você pode extrair uma substância infinitamente fina etransparente, que lembra um pouco a mais fina lâmina de cola de peixe, masquase tão flexível e macia quanto o cetim; isto é, antes de ficar seca, quando nãoapenas se contrai e engrossa, como também se torna dura e quebradiça. Tenhovários desses pedaços secos, que uso para marcar meus livros sobre baleias. Sãotransparentes, como disse antes; e quando colocados sobre a página impressa,muito me apraz imaginar que pudessem ter um efeito de aumento. De qualquermodo, é muito agradável ler sobre as baleias através de suas próprias lentes, porassim dizer. Mas eis aonde quero chegar. Aquela mesma substância infinitamentefina, a cola de peixe, que, digo, reveste o corpo todo da baleia, não pode serconsiderada a pele do animal, mas a pele da pele, por assim dizer; pois seriasimplesmente ridículo afirmar que a pele da imensa baleia é mais fina e macia doque a pele de um bebê recém-nascido. Mas vamos encerrar este assunto.

Admitindo que a gordura seja mesmo a pele da baleia; então, quando essapele, como no caso de um grande Cachalote, produz um volume de cem barrisde óleo; e quando consideramos que em quantidade, ou melhor, em peso, talóleo, em seu estado outrora referido, representa apenas três quartos, e não toda asubstância do revestimento; teremos uma idéia da enormidade dessa massa viva,da qual uma simples parte do tegumento produz tamanho lago de óleo.Calculando dez barris por tonelada, você tem dez toneladas em peso líquido para

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apenas três quartos da pele da baleia.Em vida, a superfície visível do Cachalote não é a menor de suas muitas

maravilhas. Quase sempre é inteiramente cruzada e recruzada por inúmerostraços retos em arranjo cerrado, como as linhas das melhores gravuras Italianas.Mas esses traços não parecem estar impressos na referida substância dorevestimento, mas parecem atravessá-la, como se estivessem gravados no própriocorpo. Mas isso não é tudo. Em alguns casos, para um olhar rápido e perspicaz,aqueles traços lineares, como nas verdadeiras gravuras, apenas servem de basepara vários outros desenhos. Esses são hieroglíficos; isto é, se você chama aquelesmisteriosos criptogramas das paredes das pirâmides de hieróglifos, então essa é apalavra certa para se usar na presente ocasião. Por minha boa memória doshieróglifos de um Cachalote em especial, impressionou-me sobremaneira umquadro que representava antigos caracteres Indígenas, traçado nas famosaspaliçadas hieroglíficas dos barrancos do alto Mississippi. Assim como osenigmáticos rochedos, também a baleia assinalada de enigmas permaneceindecifrada. Essa referência aos rochedos indígenas me fez lembrar de mais umacoisa. Além de todos os demais fenômenos exteriores que o Cachalote apresenta,ele amiúde dispõe de dorso, e ainda mais de flancos, desprovidos das visíveislinhas regulares, em razão dos numerosos e terríveis arranhões que lhe dão umaspecto acidental e irregular. Eu diria que esses rochedos no litoral da NovaInglaterra, os quais, assim crê Agassiz, trazem as marcas de um violento contatoabrasivo com enormes icebergs flutuantes – eu diria que tais rochedos revelamnão pouca semelhança com o Cachalote neste particular. Também me parece quetais arranhões na baleia foram possivelmente feitos por um contato hostil comoutras baleias; pois os vi em maior número nos machos grandes e adultos daespécie.

Mais uma ou duas palavras sobre o assunto da pele ou gordura da baleia. Já foidito que ela é arrancada da baleia em pedaços compridos, chamados de mantas.Como a maior parte dos termos náuticos, este é muito conveniente e significativo.Pois a baleia está de fato embrulhada em sua gordura como numa manta ounuma colcha; ou, melhor ainda, como num poncho Indígena, que enfiado pelacabeça chegasse até a outra ponta. É devido a essa proteção aconchegante de seucorpo que a baleia encontra meios de se sentir confortável em quaisquercondições climáticas, em todos os oceanos, tempos e marés. O que aconteceriacom a baleia da Groenlândia, por exemplo, nos mares setentrionais frios etrépidos, se não dispusesse desse sobretudo aconchegante? Em verdade, outrospeixes são encontrados bem vivos naquelas águas Hiperbóreas; mas esses, quefique claro, são peixes de sangue frio, desprovidos de pulmões, cujas barrigas sãogeladeiras; criaturas que se aquecem a sotavento de um iceberg, como um

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viajante no inverno se aqueceria diante de uma lareira numa estalagem; ao passoque, como os homens, a baleia tem pulmões e sangue quente. Congele seusangue, e ela morrerá. Como é espantoso – salvo depois dessa explicação– queesse imenso monstro, para o qual o calor do corpo é tão indispensável quantopara o homem; como é espantoso que ele possa ser encontrado à vontadesubmerso até os lábios, para o resto da sua vida, naquelas águas Árticas! Lugaronde, quando caem para fora dos navios, os marinheiros são às vezesencontrados, depois de meses, perpendicularmente congelados no coração doscampos de gelo, como uma mosca encontrada presa ao âmbar. Mas ainda maissurpreendente é saber que, como foi demonstrado por experimento, o sangue deuma baleia Polar é mais quente do que o de um negro de Bornéu em pleno verão.

Parece-me que aqui vemos a rara virtude de uma vitalidade individualpoderosa, e a grande virtude das paredes espessas, e a grande virtude de umaimensidão interior. Ah, homem! Admira e espelha-te na baleia! Permaneceaquecido, tu também, no gelo. Vive neste mundo, tu também, sem pertencer aele. Sê frio no Equador; mantém o sangue correndo no Pólo. Como a grandecúpula da Catedral de São Pedro, e como a grande baleia, mantém, ó, homem, atua própria temperatura em todas as estações!

Mas quão fácil e inútil é ensinar essas coisas belas! Das construções, quãopoucas são as que têm uma cúpula como a Catedral de São Pedro! Das criaturas,quão poucas têm a magnitude da baleia!

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69 O FUNERAL

“Puxem as correntes! Soltem a carcaça à ré!” As enormes talhasjá cumpriram com seu dever. O corpo branco e despido da baleia decapitadabrilha como um sepulcro de mármore; embora sua cor tenha mudado,aparentemente não perdeu nada em volume. Ainda é colossal. Vagarosamente elaflutua para longe, muito longe, com a água ao seu redor salpicada de insaciáveistubarões, e o ar em cima perturbado pelo vôo predatório de aves barulhentas,cujos bicos são como muitos punhais a afrontar a baleia. O grande fantasmabranco flutua decapitado para bem longe do navio, e a cada jarda que flutua, oque parecem milhas quadradas de tubarões e milhas cúbicas de aves aumenta abalbúrdia sanguinária. Durante horas a fio, do navio quase parado, vê-se essehorrível espetáculo. Sob o céu azul sem nuvens, na superfície tranqüila do marsereno, levada pelas brisas fagueiras, a grande massa da morte continua a flutuar,até se perder na paisagem infinita.

É um funeral lúgubre e escarnecido! Os abutres do mar todos em lutorespeitoso, e os tubarões do ar impecavelmente de preto ou mesclados. Em vidapoucos deles teriam ajudado a baleia, creio eu, se por acaso ela tivesse precisado;mas no banquete de seu funeral todos a espreitam religiosamente. Oh, terrívelrapacidade do mundo, da qual nem mesmo a mais poderosa baleia está livre!

Mas isso não é o fim. Por mais profanado que o corpo esteja, um fantasmavingativo sobrevive e paira sobre ele para assustar. Visto de longe por um navio deguerra acanhado, ou por um navio de exploração disparatado, com a distânciaobscurecendo a multidão de aves, ainda se vê a massa branca flutuando ao sol, eo grande jato branco se elevando a suas alturas; de pronto o cadáver inofensivo dabaleia é registrado com dedos trêmulos no livro de bordo – baixios, rochedos evagalhões nas redondezas: cuidado! E por anos a fio é possível que os naviosevitem aquelas paragens; pulando-a como estúpidos carneiros pulam sobre ovazio, apenas porque seu líder, quando forçado, pulava. Eis a lei de precedentes;eis a utilidade das tradições; eis a história da sobrevivência obstinada das antigascrenças, sem fundamentos na terra, e nem correntes no ar! Eis a ortodoxia!

Assim, enquanto em vida o corpo imenso da baleia pode ter sido um terrorreal para seus inimigos, na morte seu fantasma se transforma em pânico inócuopara o mundo.

Você acredita em fantasmas, meu amigo? Existem outros fantasmas além deCock-Lane, e homens mais perspicazes do que o Dr. Johnson que acreditam neles.

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70 A ESFINGE

Não deveria ter sido omitido que, antes de esfolarem porcompleto o corpo do Leviatã, ele havia sido decapitado. Ora, a decapitação doCachalote é uma proeza anatômica de ordem científica, da qual osexperimentados cirurgiões de baleias se orgulham muito: e não sem motivo.

Observe que a baleia não tem nada que possa propriamente ser chamado depescoço; pelo contrário, a região onde sua cabeça e corpo parecem se juntar, ali,naquele ponto, encontramos sua parte mais grossa. Lembre-se também de que ocirurgião tem de operar do alto, com um espaço de cerca de oito a dez pés entreele e o paciente, e que o paciente está quase oculto no mar opaco, ondulante emuitas vezes tumultuado. Também tenha em mente que, nessas circunstânciaspouco propícias, ele tem de fazer cortes profundos na carne; e que, desse modosubterrâneo, sem poder dar uma simples olhada na incisão, em contraçãocontínua, ele deve evitar com habilidade todas as partes adjacentes e interditadase dividir a espinha com exatidão num ponto crucial, junto à sua inserção nocrânio. Pois então, não é surpreendente que Stubb, para sua glória, precisasse deapenas dez minutos para decapitar o Cachalote?

Assim que é cortada, a cabeça cai para trás e é segura por um cabo, até quetirem a gordura do corpo. Feito isso, se ela pertencer a uma baleia pequena, ela épendurada no convés para que se dê cabo dela adequadamente. Mas com umgrande Leviatã, isso é impossível; pois a cabeça do Cachalote ocupa cerca de umterço de seu comprimento total, e suspender um volume desses, mesmo com asimensas talhas de um navio baleeiro, seria tão inútil quanto querer pesar umestábulo Holandês com uma balança de joalheiro.

Estando a baleia do Pequod decapitada e seu corpo esfolado, sua cabeça foiiçada contra o costado do navio – onde ficou meio suspensa na água, de modoque ainda podia, em grande parte, flutuar em seu elemento natural. Ali, com aembarcação tensionada e abruptamente inclinada sobre ela, devido à enormetração para baixo exercida pelo topo do mastro, e todos os lais de verga daquelelado projetando-se como guindastes sobre as ondas; ali, a cabeça de sanguegotejante balançava no cintado do Pequod como a do gigante Holofernes nocinturão de Judite.

Quando esta última tarefa foi cumprida era meio-dia, e os homens do marforam para baixo almoçar. O silêncio reinava no convés outrora tumultuado, masagora deserto. Uma intensa tranqüilidade de cobre, como um universal lótus

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amarelo, abria aos poucos suas silenciosas e desmesuradas folhas sobre o oceano.Passou-se um curto espaço de tempo, e em meio àquele silêncio Ahab saiu

sozinho de sua cabine. Dando algumas voltas no tombadilho, parou para observaralém do costado e então, andando devagar por entre as correntes, pegou a pácomprida de Stubb – que ainda estava lá depois da degola – e, cravando-a naparte inferior da massa meio suspensa, colocou a outra ponta embaixo do braçocomo uma muleta e ficou assim, apoiado, com os olhos fixos e atentos voltadospara a cabeça.

Era uma cabeça negra e encapuzada; e pendurada ali no meio de umacalmaria tão intensa, ela parecia a da Esfinge no deserto. “Fala, extraordinária evenerável cabeça”, murmurou Ahab, “que, embora não agraciada com barbas,aqui e ali apresentas o musgo respeitável; fala, cabeça poderosa, conta-nos osegredo que guardas em ti. De todos os mergulhadores, tu mergulhaste maisfundo. Essa cabeça, sobre a qual o sol lá em cima brilha, moveu-se pelasfundações deste mundo. Onde nomes e navios esquecidos enferrujam, eesperanças e âncoras perdidas apodrecem; onde, em seu porão de morte, a nauterra encontra lastro nos ossos de milhões de afogados; ali, naquele terrívelmundo aquático, ali era a tua moradia mais corriqueira. Estiveste onde sino emergulhador jamais estiveram; dormiste ao lado de muitos marinheiros, ondemães insones teriam dado a vida para repousar. Viste os amantes abraçadossaltando do navio em chamas; de corações unidos eles afundaram sob a ondatriunfante; fiéis um ao outro, quando o céu lhes parecia falso. Viste o oficialassassinado, quando lançado do convés pelos piratas à meia-noite; durante horascaiu na mais profunda meia-noite de sua goela insaciável; e os assassinoscontinuaram navegando incólumes – enquanto raios velozes destroçavam o naviovizinho que podia estar trazendo um marido fiel para braços abertos e ansiosos.Ó, cabeça! Viste o suficiente para apartar os planetas e tornar Abraão descrente, enem uma sílaba escuto de ti!”

“Vela à vista!”, gritou uma voz triunfal do alto do topo do mastro principal.“É mesmo? Bem, isso sim é uma alegria”, gritou Ahab, aprumando-se de

pronto, enquanto as nuvens tempestuosas se dissipavam de sua fronte. “Esse gritotão cheio de vida em meio a esse marasmo poderia converter um homem. –Onde está?”

“A três graus da proa, a estibordo, senhor, e trazendo a brisa com ela!”“Cada vez melhor, meu rapaz. Que São Paulo também viesse junto e trouxesse

com ele sua brisa para minha asfixia! Ó, natureza! Ó, alma do homem! Suasanalogias vão além de todas as palavras! Nem o menor átomo se move ou vive namatéria sem que tenha uma sutil duplicata no espírito.”

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71 A HISTÓRIADO JEROBOÃO

De mãos dadas, navio e brisa avançavam; mas a brisa era maisrápida, e o Pequod logo começou a balançar.

Dentro em pouco, vistos pelo binóculo, os botes e os topos de mastroguarnecidos provaram ser de um navio baleeiro. Mas como estava muito distantea barlavento, e correndo a velas cheias, aparentemente de passagem para outrazona de pesca, o Pequod não conseguia alcançá-lo. Assim, o sinal foi dado paraver que resposta receberiam.

Seja dito que, à semelhança dos navios de guerra, os navios da Frota BaleeiraNorte-Americana têm cada qual seu sinal particular; uma vez que todos os sinaisestão reunidos num livro junto aos nomes dos respectivos navios, todos oscapitães dispõem de um exemplar. Dessa forma, os comandantes baleeiros sãocapazes de reconhecer uns aos outros no oceano, mesmo a grandes distâncias, ecom não pouca facilidade.

O sinal do Pequod foi por fim respondido por um sinal do estranho; o qualprovou ser o Jeroboão, de Nantucket. Ajustando as vergas, ele reduziu a vela,colocou-se de atravessado a sotavento do Pequod e prontamente arriou um bote;este logo se aproximou; mas enquanto a escada estava sendo armada por ordensde Starbuck para receber o capitão visitante, o estranho em questão acenou dapopa de seu bote em sinal de que o procedimento era inteiramente desnecessário.Descobriu-se que uma epidemia maligna havia acometido o Jeroboão, e queMayhew, seu capitão, receava contaminar a tripulação do Pequod. Pois, emboraele próprio e a tripulação do bote não estivessem doentes, e embora seu navioestivesse a uma distância de meio tiro de rifle, e um mar e uma atmosferaincorruptíveis rolassem e fluíssem entre ambos; ainda assim, sustentandoconscientemente a quarentena de terra, recusou-se peremptoriamente a travarcontato direto com o Pequod.

Mas isso de modo algum lhes obstou o diálogo. Impondo a distância dealgumas jardas entre si e o navio, o bote do Jeroboão às vezes se valendo dosremos manteve-se paralelo ao Pequod, enquanto este avançava com dificuldade(pois naquele momento havia pouca brisa), com a gávea para trás; ainda que, àsvezes pelo súbito assalto de uma grande onda que rolasse, o bote fosseempurrado para a frente; no entanto, logo retomava a posição. Expostos a isso e aoutras ocasionais interrupções semelhantes, os dois grupos mantiveram aconversa; mas não sem outra interrupção, esta de natureza bem diversa.

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Puxando um remo no bote do Jeroboão, havia um homem de aspecto peculiar,mesmo para aquela selvagem vida baleeira, em que singularidades constroemtotalidades. Era um jovem, baixo e franzino, com o rosto manchado de sardas e ocabelo excessivamente amarelo. Um casaco comprido, de um castanho desbotadoe cortado de modo cabalístico, o vestia; suas mangas longas apareciam enroladasnos punhos. Um delírio profundo, fixo e fanático transparecia em seus olhos.

Tão logo esse vulto foi avistado, Stubb exclamou – “É ele! É ele! – o bufão decasaco comprido; era a respeito dele que a tripulação do Town-Ho falava!” Stubbreferia-se a uma estranha história do Jeroboão, e de um certo homem de suatripulação, sabida havia algum tempo, de quando o Town-Ho e o Pequod seencontraram. Segundo esse relato e o que se soube mais tarde, parece que obufão em questão havia conquistado grande influência sobre quase todos ostripulantes do Jeroboão. A história era a seguinte:

Ele havia sido originalmente criado no seio da louca comunidade dos Shakersde Neskyeuna, onde fora um conhecido profeta; em suas doidas reuniões secretashavia descido várias vezes do céu por meio de um alçapão, anunciando aabertura da sétima âmbula, que guardava no bolso do colete; mas que em lugarde conter pólvora, se supunha estar cheia de láudano. Tendo sido tomado poruma estranha fantasia apostólica, foi de Neskyeuna a Nantucket, onde, com aastúcia própria da loucura, assumiu uma aparência razoável e correta e ofereceu-se como novato para a viagem do Jeroboão. Contrataram-no; mas assim que onavio se afastou da terra sua loucura veio à tona. Anunciou-se como o arcanjoGabriel e ordenou que o capitão saltasse ao mar. Publicou um manifesto, no qualse declarava libertador das ilhas do mar e vigário-geral de toda a Oceânica. Aseriedade inabalável com que declarou estas coisas; – o jogo ousado e sombrio desua imaginação insone e agitada, e todos os terrores sobrenaturais do delírio realuniram-se para que, aos olhos da maioria da tripulação ignara, esse Gabriel fosseinvestido de uma atmosfera de santidade. Afora isso, temiam-no. Uma vez queum homem desses não trouxesse benefícios para o navio, especialmente porquese recusava a trabalhar, a não ser quando queria, o capitão incrédulo logo tentouse livrar dele; mas, ao ser informado de que o capitão tinha a intenção dedesembarcá-lo no primeiro porto que aparecesse, o arcanjo sem demora abriutodos os seus lacres e âmbulas – que levariam o navio e os marinheiros à perdiçãototal, caso o plano fosse levado a cabo. Tão eficaz foi seu poder sobre seusdiscípulos da tripulação, que um grupo deles se dirigiu ao capitão, para dizer-lheque se Gabriel fosse expulso do navio nenhum marinheiro restaria a bordo. Porisso, o capitão foi forçado a desistir do plano. Também não permitiriam queGabriel fosse maltratado, não importando o que dissesse ou fizesse; de tal modoque Gabriel passou a ter liberdade total no navio. A conseqüência disso foi que o

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arcanjo não se importou mais com o capitão e seus imediatos; e, depois que sedeflagrou a epidemia, seu poder aumentou mais do que nunca; declarou que apraga, como era chamada, estava unicamente sob suas ordens; e que não cessariacaso ele não o desejasse. Os marinheiros, uns pobres coitados em sua maioria, seencolhiam, quando não se curvavam diante de sua presença; em obediência àssuas instruções, por vezes rendiam-lhe homenagens como se fosse um deus. Essascoisas parecem incríveis; apesar de espantosas, são verdadeiras. Nem é a históriado fanatismo tão surpreendente pela auto-sugestão excessiva do próprio fanático,quanto por seu poder excessivo de enganar e atormentar sem misericórdia tantaspessoas. Mas é hora de voltarmos ao Pequod.

“Não temo a tua epidemia, homem”, disse Ahab da amurada ao CapitãoMayhew, que estava de pé na popa do bote; “vem a bordo”.

Mas Gabriel ficou de pé.“Pensa, pensa na febre, amarela e biliosa! Cuidado com a praga terrível!”“Gabriel, Gabriel!”, gritou o capitão Mayhew, “Deves também –” Mas naquele

momento uma onda impetuosa atirou o bote para longe, e a espuma afogou-lhetodas as palavras.

“Viste a Baleia Branca?”, perguntou Ahab, quando o bote descaiu para trás.“Pensa, pensa no teu bote baleeiro, avariado e afundado! Atenção à cauda

terrível!”“Vou dizer mais uma vez, Gabriel, que –”, mas o bote foi lançado para a frente

de novo como se puxado por demônios. Por alguns instantes nada foi dito,enquanto corria uma sucessão de ondas rebeldes, que por um desses fortuitoscaprichos do mar faziam o bote tombar, em vez de seguir adiante. Enquanto isso,a cabeça pendurada do Cachalote sacudia violentamente, e notou-se que Gabriel aolhava com um temor bem maior do que sua natureza de arcanjo lhe permitia.

Quando esse interlúdio findou, o Capitão Mayhew deu início a uma terrívelhistória sobre Moby Dick; não, porém, sem as interrupções freqüentes de Gabriel,sempre que seu nome fosse mencionado, e do mar enfurecido, que parecia ter-sealiado a ele.

Não havia decorrido muito tempo desde a partida do Jeroboão quando, apóster falado com um navio baleeiro, sua tripulação ficou seguramente a par daexistência de Moby Dick, e dos grandes estragos que produzia. Assimilandoavidamente os relatos, Gabriel preveniu seriamente o capitão contra um ataque àBaleia Branca, caso o monstro fosse encontrado; em sua tagarelice ensandecida,afirmou que a Baleia Branca era nada menos do que o Deus dos Shakersencarnado; dela tendo recebido a Bíblia. Mas, um ou dois anos depois, quandoMoby Dick foi avistado do topo dos mastros, Macey, o primeiro imediato,

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ardendo de vontade de encontrar a baleia; e não sendo o próprio capitão avesso apermitir que aproveitasse a oportunidade, a despeito de todas as premonições eadvertências do arcanjo, Macey conseguiu convencer cinco homens a tripular seubote. Com eles, remou; e, depois de muita força e de muitos perigosos emalogrados assaltos, conseguiu por fim cravar-lhe um ferro. Enquanto isso,Gabriel, subindo ao mastaréu do sobrejoanete no topo do mastro, agitava um dosbraços com gestos frenéticos e proferia vaticínios de súbita desgraça aosagressores sacrílegos de sua divindade. Ora, enquanto Macey, o imediato, estavade pé na proa do bote, e com a energia infatigável de sua tribo vociferavapalavras selvagens contra a baleia, buscando a melhor oportunidade para sualança suspensa, oh!, uma enorme sombra branca emergiu do mar; e ummovimento rápido e agitado deixou os remadores quase sem ar. No momentoseguinte, o imediato desafortunado, tão cheio de fúria, foi violentamentegolpeado para o alto, e fazendo um longo arco em sua queda caiu no mar a umadistância de mais ou menos cinqüenta jardas. Nenhuma lasca do bote foidanificada, como nenhum fio de cabelo dos remadores; mas o imediato afundoupara sempre.

Que se diga, entre parênteses, que dos tipos de acidente fatal na Pesca doCachalote esse é tão freqüente quanto qualquer outro. Às vezes, ninguém semachuca, exceto o homem que é aniquilado; mais amiúde, a proa do bote éarrancada, ou a prancha coxal, lugar onde fica o líder, é arrancada de seu lugaracompanhando o corpo. Mas a circunstância mais estranha de todas, que ocorreumais de uma vez, é aquela em que o corpo recuperado não traz marcas deviolência, mas o homem está morto.

A tragédia toda, a queda do corpo de Macey, foi vista do navio com nitidez.Lançando um grito penetrante – “A âmbula! A âmbula!”, Gabriel fez com que atripulação aterrorizada parasse de perseguir a baleia. Esse evento terrível investiuo arcanjo de ainda maior influência; pois seus discípulos crédulos acreditavamque ele o tinha especificamente prenunciado, em vez de ter proferido apenasuma profecia genérica, que qualquer um poderia ter feito e assim, por acaso, teracertado num dos muitos alvos que a ampla margem permitia. Tornou-se o terrorinominável do navio.

Quando Mayhew terminou sua narrativa, Ahab fez-lhe tais perguntas que ocapitão não pôde se abster de perguntar se tinha intenção de caçar a BaleiaBranca, caso a oportunidade se lhe apresentasse. Ao que Ahab respondeu – “Sim”.De pronto, Gabriel se pôs de pé, fixou os olhos no velho e exclamouveementemente com o dedo apontado para baixo – “Pensa, pensa no blasfemador– morto, lá embaixo! Cuidado com o fim do blasfemador!”.

Ahab virou-se impassível; e então disse a Mayhew, “Capitão, acabo de me

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lembrar da minha mala de cartas; há uma carta para um dos teus oficiais, se nãome engano. Starbuck, vai buscar a mala!”.

Todos os navios baleeiros levam um grande número de cartas para diferentesnavios, cuja entrega às pessoas às quais estão dirigidas depende de por acasoencontrá-las nos quatro oceanos. Assim, a maior parte das cartas nunca chega aseu destino; e muitas são recebidas somente depois de dois ou três ou mais anos.

Logo Starbuck voltou com uma carta na mão. Estava terrivelmenteamarrotada, úmida, coberta de um mortificado musgo verde e manchado por terficado no armário escuro da cabine. De tal carta, a própria Morte poderia ter sidoo estafeta.

“Não consegues lê-la?”, gritou Ahab. “Dá-me aqui, homem. Sim, é apenas umgarrancho apagado; – o que é isso?” Enquanto Ahab a examinava, Starbuckpegou o cabo de uma pá cortadora e com sua faca fendeu rapidamente a ponta,para ali colocar a carta e, desse modo, entregá-la ao bote, sem que esse tivesseque se aproximar do navio.

Enquanto isso, Ahab, segurando a carta, murmurou, “Senhor Har –, sim,Senhor Harry – (uma letra de mulher – a esposa do homem, aposto) – sim –Senhor Harry Macey, navio Jeroboão; – ora, é para Macey, e ele está morto!”

“Coitado! Coitado! De sua esposa”, suspirou Mayhew; “mas entrega-me acarta!”.

“Não, guarda contigo!”, gritou Gabriel para Ahab; “em breve seguirás para lá.”“Que as maldições te sufoquem!”, gritou Ahab. “Capitão Mayhew, prepara-te

para recebê-la”, e tirando a missiva fatal das mãos de Starbuck prendeu-a nafenda do cabo e estendeu-a em direção ao bote. Mas assim que o fez, osremadores, na expectativa, largaram seus remos; o bote flutuou um pouco emdireção à popa do navio; e de tal modo que, como por magia, a carta ficasse aoalcance da mão ávida de Gabriel. Ele a agarrou de pronto, tomou o facão do bote,e cravando nele a carta mandou-a assim carregada de volta ao navio. Faca e cartacaíram aos pés de Ahab. Gabriel, então, berrou aos companheiros que remassem,e desse modo o bote amotinado disparou para longe do Pequod.

Enquanto, depois desse interlúdio, os marinheiros retomavam o trabalho coma pele da baleia, coisas estranhas foram sugeridas acerca desse singularíssimoepisódio.

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72 A CORDA DE MACACO

No trabalho tumultuado de cortar e de cuidar dabaleia, há muita correria de lá para cá em meio à tripulação. Ora os marinheirossão necessários em um lugar, ora são chamados em outro lugar. Ninguém páraem lugar algum; pois tudo tem de ser feito ao mesmo tempo e em toda parte.Acontece o mesmo com quem pretende descrever a cena. É preciso que voltemosum pouco. Foi mencionado que antes de começar a cortar o dorso da baleia secoloca um gancho no buraco original feito pelas pás dos imediatos. Mas como sepode fixar o gancho no buraco de um volume tão desajeitado e pesado? Ele foicolocado ali pelo meu dileto amigo Queequeg, cujo dever, como arpoador, erasubir no dorso do monstro com o referido propósito. Mas em muitos casos ascircunstâncias exigem que o arpoador permaneça na baleia até que a operação dedespelar e de esfolar termine. A baleia, bom que se observe, está quaseinteiramente submersa, salvo as partes nas quais se está trabalhando. Ali,portanto, a dez pés abaixo do nível do convés, o pobre arpoador mal se sustenta,parte sobre a baleia e parte na água, enquanto a enorme massa se revolve comoum moinho abaixo dele. Nessa presente ocasião, Queequeg vestia roupas daHighland – uma saia e meias – nas quais aos meus olhos, pelo menos, pareciainsolitamente elegante; e ninguém teve oportunidade melhor de observá-lo, comose verá em seguida.

Sendo o proeiro do selvagem, ou seja, o sujeito que manobrava o remo de proaem seu bote (o segundo da frente para trás), era meu prazeroso dever ajudá-lo emsua difícil escalada sobre o dorso da baleia morta. Você já viu meninos italianostocadores de realejo segurando um macaquinho com um cordão comprido. Domesmo jeito, do costado íngreme do navio, segurei Queequeg lá embaixo no mar,por meio do que, na pescaria, é tecnicamente chamado de corda de macaco,presa a um cinto de lona forte amarrado ao redor de sua cintura.

Era uma tarefa engraçada e perigosa para nós dois. Pois, antes de prosseguir, épreciso dizer que a corda de macaco estava presa às duas extremidades; presa aocinto largo de lona de Queequeg e presa ao meu cinto estreito de couro. De modoque, para o bem ou para o mal, nós dois, naquele momento, estávamos unidos; ecaso o coitado do Queequeg afundasse para não voltar mais, tanto o costumequanto a honra exigiam que, em vez de cortar a corda, ela deveria me arrastarjunto a ele. Assim, portanto, uma alongada ligadura Siamesa nos unia. Queequegera meu inseparável irmão gêmeo; nem podia eu, de forma alguma, livrar-me das

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perigosas responsabilidades que o liame de cânhamo envolvia.De modo tão intenso e metafísico eu compreendia minha situação que,

enquanto vigiava diligentemente seus movimentos, parecia perceber com clarezaque minha própria individualidade havia se fundido com outra numa sociedadeconjunta de ações: que meu livre-arbítrio recebera um golpe mortal; e que o erroou azar do outro poderia me dragar, um inocente como eu, para um desastre oumorte imerecida. Conseqüentemente, vi que aquilo era uma espécie deinterregno da Providência; pois sua justiça sempre presente jamais poderia tersancionado uma injustiça tão flagrante. E seguindo adiante em meuspensamentos – enquanto às vezes o puxava de entre a baleia e o navio, queameaçava esmagá-lo –, repito, seguindo adiante em meus pensamentos, percebique essa minha situação era rigorosamente igual à de todo mortal que respira;apenas, na maioria dos casos, de um modo ou de outro ele tem essa ligaçãoSiamesa com vários outros mortais. Se seu banqueiro falir, você quebra; se seuboticário por engano colocar veneno em suas pílulas, você morre. Claro, vocêpode achar que, com extremo cuidado, possivelmente se escapa dessas e de umainfinidade de outras fatalidades da vida. Mas, mesmo lidando tão cuidadosamentecom a corda de macaco de Queequeg quanto possível, às vezes ele lhe davatrancos tão fortes que fiquei muito perto de cair para fora do barco. Tampoucopodia esquecer que, fizesse o que fosse, eu tinha apenas o controle de uma dassuas pontas.{a}

Antes dei a entender que tinha de puxar com freqüência o coitado doQueequeg de entre a baleia e o navio – onde vez por outra caía por conta doincessante balançar e rolar de ambos. Mas esse não era o único risco de seresmagado a que estava exposto. Em nada amedrontados pelo massacreperpetrado à noite, os tubarões, refeitos em suas forças e ainda mais atraídos pelosangue outrora encerrado que começava a fluir da carcaça – as furiosas criaturasse aglomeravam em torno da carcaça como abelhas em torno da colméia.

E bem no centro desses tubarões estava Queequeg; que muitas vezes tentavaafastá-los batendo com seus pés instáveis. Uma coisa incrível é que, se não atraídopor uma presa como uma baleia morta, o de outro modo ecumenicamentecarnívoro tubarão raras vezes ataca o homem.

Não obstante, pode-se bem acreditar que, uma vez que tivessem se posto alicom tanta voracidade, seria prudente ficar bem atento a eles. Portanto, além dacorda de macaco, com a qual vez por outra eu puxava o pobre coitado paraafastá-lo das imediações de uma goela que pudesse pertencer a um tubarãoespecialmente feroz – ele ainda dispunha de outra proteção. Suspensos junto aocostado numa das plataformas, Tashtego e Daggoo brandiam sem parar duasafiadas pás de baleia sobre sua cabeça, com as quais abatiam tantos tubarões

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quantos pudessem alcançar. Era certo que tal gesto viesse da benevolência e daabnegação desses homens. Eles queriam o bem de Queequeg, tenho deconcordar; mas em sua ânsia precipitada de ajudá-lo, e porque Queequeg e ostubarões, por vezes, ficavam às vezes meio escondidos na água turvada desangue, aquelas suas pás imprudentes pareciam mais propensas a amputar umaperna do que uma cauda. Mas ao coitado do Queequeg, imagino eu, arfando eentregando toda sua força àquele gancho de ferro imenso – ao coitado doQueequeg, imagino eu, só lhe restou rezar para seu Yojo e entregar a própria vidaàs mãos de seus deuses.

Bem, bem, meu dileto amigo e irmão gêmeo, pensei eu, enquanto trazia eentão lentamente soltava a corda a cada onda do mar – o que importa, afinal decontas? Você não é a preciosa imagem de todos nós, homens, nesse mundobaleeiro? O oceano insondável no qual você está ofegante é a Vida; aquelestubarões, seus inimigos; aquelas pás, seus amigos; e entre tubarões e pás você estáem aperto e apuro, meu pobre rapaz.

Mas, coragem! Um estoque de alegria ainda te aguarda, Queequeg. Poisquando, de lábios azuis e olhos vermelhos de sangue, o exausto selvagem por fimsubiu pelas correntes, ele inteiro pingando e tremendo sobre o costado; ocamareiro avança, e com um olhar benevolente e consolador lhe oferece – O quê?Um conhaque quente? Não! Ó, deuses, não! Ele lhe oferece uma xícara degengibre quente com água!

“Gengibre? É cheiro de gengibre?”, perguntou Stubb, desconfiado,aproximando-se. “Sim, deve ser gengibre”, espiando a ainda intocada xícara.Depois, parado por uns instantes como se não acreditasse, seguiu calmamente nadireção do camareiro estupefato dizendo-lhe pausadamente: “Gengibre?Gengibre? Quer ter a bondade de me explicar, senhor Dough-Boy, de que serve ogengibre? Gengibre! Seria o gengibre uma espécie de combustível que se usa,Dough-Boy, para acender o fogo desse canibal trêmulo? Gengibre! – Que diabosvem a ser o gengibre? – Carvão do mar? – Lenha? – Fósforos de Lúcifer? – Isca? –Pólvora? – O que vem a ser esse gengibre, repito, que você oferece a este nossocoitado Queequeg?”.

“Há um movimento dissimulado da Sociedade da Abstinência nisso”,acrescentou de repente, aproximando-se de Starbuck, que acabava de chegar daproa. “O senhor poderia dar uma olhada nesta kannakin; por favor, sinta ocheiro.” Depois, observando a expressão do oficial, acrescentou: “SenhorStarbuck, o camareiro teve o desplante de oferecer calomelano com jalapa aoQueequeg, aqui, neste instante saído da baleia. Seria o camareiro um boticário,senhor? Posso saber se isso é um tipo de fole com o qual espera trazer de volta arespiração de um homem que quase se afogou?

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“Não creio que seja”, disse Starbuck, “é muito pouca coisa.”“Sim, sim, camareiro”, gritou Stubb, “vamos lhe ensinar como medicar um

arpoador; nada desses seus remédios de boticário aqui; queres nos envenenar, nãoé? Tens apólices de seguro sobre nossas vidas e quer nos assassinar a todos paraembolsar a grana, não é?”

“Não fui eu!”, gritou Dough-Boy, “Foi a tia Charity que trouxe o gengibre abordo; e ordenou-me que nunca desse álcool aos arpoadores, apenas um trago degengibre – como ela mesma disse.”

“Trago de gengibre! Seu tratante de gengibre! Toma isto! Corre para osarmários e me traz algo melhor. Espero não estar errado, senhor Starbuck. Sãoordens do capitão – grog para o arpoador que vier da baleia.”

“Basta”, respondeu Starbuck, “não batas nele outra vez, senão –”“Oras, eu nunca machuco quando bato, a não ser que seja uma baleia ou algo

parecido; esse sujeito é uma fuinha. O que o senhor dizia?”“Apenas isto: desce com ele e pega o que tu queres.”Quando Stubb voltou, veio com um frasco escuro numa mão, e uma espécie

de caixa de chá na outra. O primeiro continha uma bebida forte e foi entregue aQueequeg; a segunda era o presente de tia Charity, que foi oferecidogratuitamente às ondas.

{a} Todos os navios baleeiros têm cordas de macacos, mas apenas no Pequod o macaco e seu auxiliar ficavamamarrados dessa forma. O aperfeiçoamento do costume original foi feito por ninguém menos do queStubb, para proporcionar ao arpoador em perigo uma garantia quanto à fidelidade e à vigilância de seuauxiliar com a corda. [N. A.]

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73 STUBB E FLASK MATAM UMA BALEIA FRANCA; E DEPOISCONVERSAM A RESPEITO DELA

É preciso ter em mente que, durante todo esse tempo, tivemos uma prodigiosacabeça de Cachalote balançando no costado do Pequod. Mas será preciso deixá-laali pendurada por algum tempo até que tenhamos condições de lhe dar atenção.No momento, outros são os assuntos urgentes, e o melhor que podemos fazerpela cabeça, por ora, é rezar aos céus para que as talhas agüentem.

Ora, durante a noite e pela manhã, o Pequod havia sido levado aos poucospara um mar que, por suas áreas ocasionais de brit amarelo, revelava indíciosinusitados da presença de Baleias Francas nos arredores, uma espécie do Leviatãque poucos imaginavam àquela época estar se movendo em quaisquerimediações. Embora, em geral, os marinheiros desprezassem a captura daquelascriaturas inferiores; embora o Pequod não estivesse autorizado a persegui-las, eembora tivesse encontrado várias delas perto das ilhas Crozet sem ter descido osbotes; no entanto, uma vez que um Cachalote havia sido levado para o navio edecapitado, para a surpresa de todos, foi anunciado que uma Baleia Francadeveria ser capturada naquele dia, caso houvesse oportunidade.

E a oportunidade não tardou. Jatos altos foram vistos a sotavento; e dois botes,os de Stubb e Flask, foram destacados para a perseguição. Vogando sempre paralonge, eles por fim ficaram praticamente invisíveis para os homens no topo domastro. Mas subitamente, a distância, avistaram uma grande quantidade de águabranca em movimento, e em seguida notícias do topo informavam que um dosbotes ou ambos deviam estar indo depressa. Passado um tempo, os botessurgiram inteiros aos olhos dos gajeiros, ambos arrastados em direção ao naviopela baleia rebocadora. Tão perto a baleia chegou do casco que, de início, pareciaque tinha intenções malignas; mas afundando de repente num redemoinho, acerca de cinqüenta pés das pranchas, ela desapareceu completamente da vista,como se mergulhasse sob a quilha. “Cortar, cortar!”, foi o grito que saiu do naviopara os botes, que, por um instante, pareciam a ponto de se chocar mortalmentecontra o costado do veleiro. Mas, havendo linha suficiente nas selhas, e a baleianão tendo mergulhado muito depressa, soltaram a corda em abundância e, aomesmo tempo, remaram com toda a força para ficar à frente do navio. Por algunsminutos, a luta foi intensamente travada; pois, enquanto ainda afrouxavam a

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linha esticada em uma direção, e ainda impunham aos remos a contrária, atração conflituosa ameaçava afundá-los. Mas ganhar alguns metros na dianteiraera tudo o que queriam. E insistiram até que os ganharam; quando, subitamente,se sentiu um breve tremor correndo como um relâmpago ao longo da quilha,enquanto a ostaxa esticada, arranhando a base do navio, reapareceu de repentesob a proa, estalando e vibrando; e lançando tão violentamente suas gotas d’águaque elas caíam como cacos de vidro na água, enquanto a baleia mais adiantetambém reaparecia, e mais uma vez os botes ficavam livres para correr. Mas abaleia cansada diminuiu a velocidade e, alterando seu rumo às cegas, deu a voltana popa do navio rebocando os dois botes, de forma que percorreram um circuitocompleto.

No entretempo, eles puxaram mais e mais suas ostaxas, até que, flanqueando abaleia de perto pelos dois lados, Stubb e Flask arremessaram suas lanças; e assim,a batalha continuou, dando voltas no Pequod, enquanto as multidões de tubarõesque antes nadavam em torno do corpo do Cachalote correram para o sanguefresco que derramava, bebendo-o com sede a cada novo corte, como os ávidosIsraelitas o fizeram nas fontes novas que brotaram da rocha fendida.

Por fim seu sopro ficou espesso e, com um tranco e um vômito horrível, abaleia virou de costas, um cadáver.

Enquanto os dois oficiais se ocupavam de amarrar as cordas à cauda da baleia,nesse sentido cuidando para que a massa pudesse ser rebocada, iniciaram umaconversa.

“O que será que o velho deseja com esse monte de banha fétida?”, disse Stubb,não sem alguma aversão à idéia de ter de lidar com um Leviatã tão desprezível.

“O que deseja?”, disse Flask, enrolando a ostaxa sobressalente na proa do bote,“você nunca escutou falar que desde que um navio traga a cabeça de umCachalote pendurada a estibordo, e ao mesmo tempo a de uma Baleia Franca abombordo; Stubb, você nunca escutou que esse navio nunca mais poderánaufragar?”

“Por que não?”“Eu não sei, mas escutei Fedallah, aquele fantasma amarelo, dizer isso e parece

que sabe tudo a respeito de feitiços de navios. Mas às vezes acho que ele vaienfeitiçar o navio com maldade. Não gosto nem um pouco daquele sujeito,Stubb. Você já percebeu que aquela presa dele parece entalhada na cabeça deuma cobra, Stubb?”

“Afogue-o! Nunca olho para ele; mas se eu tiver uma oportunidade, numa noiteescura, e ele estiver ocupado em sua vigília na amurada, com ninguém por perto;olha lá, Flask” – apontando para o mar com um gesto específico de ambas asmãos – “Sim, eu o faço! Flask, tenho para mim que Fedallah é o demônio

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disfarçado. Você acredita naquela história sem pé nem cabeça de que ele veio abordo como clandestino? Ele é o demônio, vá por mim. A gente só não vê o rabodele porque ele o esconde; acho que enrolado em seu bolso. Maldito seja!Pensando nisso, ele sempre pede estopa para colocar na ponta das suas botas.”

“Ele dorme em suas botas, não é? Ele não tem rede; mas eu já dei com eledeitado sobre um rolo de cordame.”

“Sem dúvida, e isso é por causa de seu maldito rabo; ele o deixa enrolado noolho do cordame.”

“O que será que o velho tanto quer com ele?”“Uma troca ou uma barganha, creio.”“Barganha? – de quê?”“Ora, preste atenção, o velho está empenhado na caça da Baleia Branca, e o

diabo está tentando envolvê-lo, aliciá-lo em troca de seu relógio de prata, ou desua alma, ou de qualquer coisa do gênero, para depois lhe entregar Moby Dick.”

“Ora essa! Stubb, você está de brincadeira; como Fedallah pode fazer umacoisa dessas?”

“Não sei, Flask, mas o diabo é um sujeito curioso e bem malvado, posso lhegarantir. Pois bem, dizem que certa vez foi dar um passeio numa velha naucapitânia, abanando a cauda de modo diabólico e cavalheiresco e perguntando seo velho comandante estava em casa. Bem, ele estava em casa e perguntou aodiabo o que queria. O diabo, batendo os cascos, se levanta e diz, ‘Quero o John’.‘Para quê?’, pergunta o velho comandante. ‘O que você tem com isso?’, disse odiabo, ficando irritado, – ‘Quero usá-lo!’. ‘Leve-o’, diz o comandante – e, peloamor de Deus, Flask, se o diabo não castigou John com a cólera Asiática antes deacabar com ele, eu como essa baleia em uma bocada. Mas cuidado – você aindanão ‘tá pronto? Bem, puxe daí, e vamos deixar a baleia ao longo do costado.”

“Acho que me lembro de uma história como essa que você contou”, disseFlask, quando, por fim, os dois botes avançavam lentamente com a carga emdireção ao navio, “mas não consigo me lembrar de onde.”

“Nos Três espanhóis? As aventuras dos três soldados sanguinários? Você leu ali,Flask? Acho que sim.”

“Não: nunca vi tal livro; já ouvi falar dele, de todo modo. Mas agora me digauma coisa, Stubb, você acha que o diabo de quem você estava falando agora é omesmo que você diz estar a bordo do Pequod?”

“Sou o mesmo homem que ajudou a matar essa baleia? O diabo não vive parasempre? Quem já ouviu falar que o diabo morreu? Você já viu algum padreenlutado por causa do diabo? Se o diabo tem uma chave de cadeado para entrarna cabine do almirante, você não acha que ele pode rastejar pela vigia?

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Responda, senhor Flask.”“Quantos anos você acha que Fedallah tem, Stubb?”“Você está vendo o mastro principal ali?”, apontando para o navio; “bem, esse

é o número um; agora pegue todos os aros do porão do Pequod e os coloqueenfileirados atrás do mastro, no lugar dos zeros, entendeu? Bem, isso não dariapara o começo da idade de Fedallah. Nem todos os toneleiros trabalhando juntospoderiam oferecer aros em número suficiente para tantos zeros.”

“Mas vê bem, Stubb, agora mesmo achava você um pouco cheio de bravata,quando disse que jogaria Fedallah ao mar, se houvesse oportunidade. Ora, se ele étão velho quanto esses seus aros dizem, se ele vai viver para sempre, de queadiantaria jogá-lo ao mar – quer me dizer?”

“Ele ao menos ganharia um bom mergulho.”“Mas ele voltaria.”“E que ele mergulhasse de novo; e assim continuasse, mergulho após

mergulho.”“E se ele tivesse a idéia de fazer você mergulhar também – sim, e afogá-lo –, e

então?”“Gostaria de vê-lo tentar; eu lhe daria dois olhos tão roxos que ele não ousaria

mais mostrar seu rosto na cabine do almirante por um bom tempo, muito menosnaquele bailéu, onde ele vive, e no tombadilho, por onde se move sorrateiro.Dane-se o diabo, Flask; você pensa que tenho medo do diabo? Quem tem medodele, a não ser o velho comandante, que não ousa agarrá-lo e algemá-lo, comomerece, mas o deixa andar por aí roubando pessoas? Sim, e assinou um contratocom ele permitindo que fritasse todas as pessoas que tivesse roubado. Quecomandante!”

“Você acredita que Fedallah queira roubar o Capitão Ahab?”“Se acredito? Logo vai saber, Flask. Mas agora vou ficar de olho nele; e, se eu

vir alguma coisa suspeita acontecendo, vou agarrá-lo pelo colarinho e dizer –Olha aqui, Belzebu, você não vai fazer isso; e se ele fizer algum estardalhaço, juropor Deus que tiro o rabo dele do bolso, levo para o cabrestante e dou-lhe tantospuxões e trancos que seu rabo vai ficar tão pequeno quanto um coto – entendeu?E depois disso, creio que quando se vir atracado daquele jeito esquisito,decepado, vai rastejar daqui sem nem ao menos sentir alegria de ter o rabo entreas pernas.”

“E o que você vai fazer com o rabo, Stubb?”“O que vou fazer? Vendê-lo como um chicote de boi quando voltarmos para

casa – o que mais?”“Ora, você está falando a sério? Você está falando a sério desde o começo,

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Stubb?”“Sério ou não, agora chegamos ao navio.”Os botes foram chamados para rebocar a baleia para o costado de bombordo,

onde correntes para a cauda e outros apetrechos haviam sido preparados paraprendê-la.

“Não falei?”, disse Flask; “sim, em breve você vai ver a cabeça dessa baleiafranca pendurada do lado oposto à do Cachalote.”

Não muito depois, as palavras de Flask provaram ser verdadeiras. Antes oPequod havia se inclinado abruptamente na direção da cabeça do Cachalote;agora, com o contrapeso das duas cabeças, a quilha retomou a posição desempre; embora isso lhe custasse muito esforço, acredite. Assim, quando você içade um lado a cabeça de Locke, vai-se para esse lado; mas então erga a cabeça deKant do outro lado, e você volta à posição anterior; mas num estado deplorável.Desse modo, certas mentes estão sempre tentando retomar o prumo. Ó,insensatos! Jogai ao mar todas essas cabeças retumbantes e navegareis direto ereto.

Arrumando o corpo de uma baleia franca, quando trazida para o costado donavio, segue-se o mesmo procedimento preliminar dedicado ao Cachalote;apenas, no caso do último, a cabeça é cortada por inteiro, enquanto no primeirolábios e língua são retirados e pendurados separadamente no convés, com aconhecida barbatana escura presa à chamada coroa. Mas, nesse caso, nada dissofoi feito. As carcaças das duas baleias foram deixadas para trás; e o navio levandoas duas cabeças parecia uma mula carregando dois cestos muito pesados.

Enquanto isso, Fedallah olhava tranqüilamente para a cabeça da baleia franca,e, de vez em quando, seus olhos passavam das rugas profundas do animal para aslinhas de sua própria mão. E Ahab estava numa posição tal, que o Parse ocupavasua sombra; enquanto, se é que o Parse tinha uma sombra, esta se fundiu com ade Ahab, encompridando-a. Enquanto os marinheiros trabalhavam, faziamconjecturas Lapônicas a respeito de todas as coisas acontecidas.

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74 A CABEÇA DO CACHALOTE – UM EXAME COMPARATIVO

Eis aqui, então, duas grandes baleias, com as cabeças emparelhadas;aproximemo-nos delas e unamos a elas nossas próprias cabeças.

Na grande ordem dos Leviatãs in-fólio, o Cachalote e a Baleia Franca são delonge os mais notáveis. São as únicas baleias regularmente caçadas pelo homem.Para o nativo de Nantucket, elas representam os dois extremos das variedadesconhecidas da baleia. Como as suas diferenças exteriores se observam melhor nascabeças; e como as cabeças de uma e de outra estão balançando agora no costadodo Pequod; e como podemos ir à vontade de uma a outra, pelo simples atravessardo convés: – onde, gostaria eu de saber, você conseguiria oportunidade melhor deestudar Cetologia na prática?

Em primeiro lugar, chamará sua atenção o contraste geral entre as cabeças.Em sã consciência, as duas são imensas; mas há uma certa simetria matemáticano Cachalote que à Baleia Franca lamentavelmente falta. Há mais personalidadena cabeça do Cachalote. Contemplando-o, involuntariamente se reconhece neleuma enorme superioridade, a da dignidade que o permeia. No presente caso,também, tal dignidade ganha realce pela cor de sal e pimenta de sua testa, índicede idade avançada e larga experiência. Em suma, ele é o que os pescadorestecnicamente chamam de “baleia grisalha”.

Observemos agora o que é menos desigual nessas cabeças – nomeadamente, osdois órgãos mais importantes, o olho e o ouvido. Bem atrás, na parte lateral dacabeça, embaixo, perto de cada articulação do maxilar da baleia, se olhar comatenção, você verá, por fim, um olho sem cílios, que pensaria ser o olho de umpotro jovem; tão fora de proporção que está em relação à magnitude da cabeça.

Ora, dessa posição lateral dos olhos da baleia, é claro que ela não consegue vernenhum objeto que esteja à sua frente, assim como não pode ver o que estáexatamente atrás. Em resumo, a posição dos olhos da baleia corresponde àposição das orelhas do homem; e você pode imaginar, por si, como seria se vocêtivesse que olhar os objetos de lado, com as orelhas. Descobriria que só temdomínio de uns trinta graus de visão para a frente da linha reta perpendicular àvista; e mais uns trinta graus para trás. Se seu inimigo figadal estivesse andandoem sua direção em linha reta, com um punhal na mão em plena luz do dia, vocênão conseguiria vê-lo, assim como não o veria se o estivesse assaltando por trás.

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Em suma, você teria duas costas, por assim dizer, mas também, ao mesmotempo, duas frontes (frontes laterais): pois o que faz o rosto de um homem – oque, de fato, senão seus olhos?

Além disso, na maior parte dos animais dos quais consigo me lembrar, osolhos estão colocados de modo a fundir imperceptivelmente seu poder visual,produzindo uma imagem, e não duas, no cérebro; a posição peculiar dos olhos dabaleia, efetivamente separados como são por muitos pés cúbicos de cabeça sólida,que se impõem entre eles como uma imensa montanha separando dois lagos novale; essa, é claro, deve separar inteiramente as impressões que cada órgãoindependente recebe. A baleia, por isso, deve enxergar uma imagem distinta deum lado, e uma outra imagem distinta do outro lado; enquanto entre eles tudodeva ser escuridão profunda e nada. Com efeito, pode-se dizer que o homem olhapara o mundo de uma guarita com dois caixilhos unidos servindo de janelas. Maspara a baleia os dois caixilhos foram postos separados, criando duas janelasseparadas, que lamentavelmente lhe prejudicam a visão. Essa característica dosolhos da baleia é algo que sempre se deve ter em mente na pesca; e que deve serlembrado pelo leitor em cenas que virão a seguir.

Uma questão curiosa e intrigante poderia ser levantada no que concerne a esseassunto da visão do Leviatã. Mas devo me contentar em fazer apenas uma alusão.Desde que os olhos de um homem se abram para a luz, o ato de ver éinvoluntário; ou seja, ele não pode deixar de ver mecanicamente os objetos queestão diante dele. Não obstante, a experiência de qualquer um lhe ensinará que,embora possa perceber um conjunto indiscriminado de coisas num relance, lhe équase impossível examinar com atenção e exatidão duas coisas diferentes – nãoimportando quão grandes ou pequenas – ao mesmo tempo; não importando queestejam lado a lado e tocando uma a outra. Mas se você separar os dois objetos,colocando ao redor de cada um deles um círculo de uma escuridão profunda;então, para poder ver um deles, para que sua mente possa entrar em contato comele, o outro objeto será totalmente excluído de sua consciência coetânea. Como sepassa isso, então, com a baleia? Em verdade, seus dois olhos devem agirsimultaneamente por si mesmos; mas seria seu cérebro tão mais completo,associativo e astuto do que o do homem, de modo que possa, ao mesmo tempo,examinar com atenção dois cenários diferentes, um de um lado e o outro nadireção exatamente oposta? Se for possível, então isso é uma das maravilhas dabaleia, como se um homem fosse capaz de fazer simultaneamente demonstraçõesde dois problemas diferentes de Euclides. Se estritamente investigada, não hánenhuma incongruência nessa comparação.

Talvez seja apenas um capricho ocioso, mas sempre me pareceu que asextraordinárias hesitações de movimento que algumas baleias demonstram

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quando cercadas por três ou quatro botes; a timidez e a propensão a temoresestranhos, tão comuns em tais baleias; penso eu que tudo isso indiretamenteadvém da perplexidade fatal de sua vontade, que certamente está ligada à suavisão dividida e diametralmente oposta.

Mas o ouvido da baleia é tão curioso quanto seus olhos. Se você estáinteiramente alheio à sua raça, você poderia persegui-lo nessas cabeças por horasa fio e nunca descobri-lo. O ouvido não tem nenhum lobo externo; e dentro dopróprio buraco você mal consegue fazer passar uma pena, tão incrivelmentediminuto ele é. Está localizado um pouco atrás do olho. Em relação aos ouvidos,há uma diferença importante a ser observada entre o Cachalote e a baleia franca.Enquanto no primeiro o ouvido tem uma abertura externa, o ouvido da última étotalmente coberto por uma membrana, e por isso quase imperceptível do ladode fora.

Não é curioso que um ser tão imenso quanto a baleia veja o mundo com umolho tão pequeno, e escute o trovão com um ouvido menor do que o de umalebre? Mas se seus olhos fossem tão grandes quanto as lentes do grande telescópiode Herschel; e seus ouvidos tão amplos quanto os pórticos das catedrais; teria porisso um alcance maior da visão ou ficaria com o ouvido mais apurado? De modoalgum. – Por que, então, você procura “ampliar” sua mente? Aprimore-a.

Viremos ao contrário, então, com quaisquer alavancas e motores a vapor quetenhamos à mão, a cabeça do Cachalote; em seguida, subindo ao topo com umaescada, espiemos sua boca; e não estivesse seu corpo completamente separadodela, com uma lamparina poderíamos descer à grande caverna de KentuckyMammoth de seu estômago. Mas fiquemos por aqui, perto deste dente, eprocuremos saber onde estamos. Que boca de compleição mais linda e casta! Dochão ao teto, revestida, ou melhor, envolta numa membrana branca reluzente,brilhante como o cetim das noivas.

Mas agora saiamos e olhemos para esse portentoso maxilar inferior, que separece com a tampa estreita e comprida de uma enorme caixa de rapé, com adobradiça numa extremidade, em vez de estar num dos lados. Se você a ergue,para que fique no alto e exiba suas fileiras de dentes, parece mais uma terrívelponte levadiça: como, ai!, provam ser para muitos dos valentes da pesca, que taisescápulas empalam com força brutal. Mas muito mais terrível é de se observarquando, braças abaixo da superfície da água, você surpreende uma baleia furiosa,seu flutuar ali em suspenso, com sua prodigiosa mandíbula, de uns quinze pés decomprimento, descaindo de seu corpo em ângulo reto, afigurando-se tal como opau da bujarrona de um navio. Essa baleia não está morta; está apenas sem vigor;enfraquecida, talvez; melancólica; e tão sorumbática que as articulações de suamandíbula relaxaram, deixando-a ali numa espécie de desajeitado apuro, um

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descrédito para toda a sua tribo, que, sem dúvida, deve amaldiçoá-la comtrismos.

Na maioria dos casos, essa mandíbula – facilmente destravada por um artesãoexperiente – é decepada e içada ao convés com o propósito de extrair os dentesde marfim e de fazer um suprimento do branco e rijo osso de baleia, com o qualos pescadores elaboram variados artigos interessantes, incluindo bengalas, cabosde guarda-chuvas e pegadeiras para açoites de montaria.

Com um demorado e aborrecido içamento, a mandíbula é arrastada a bordo,como se fosse uma âncora; e quando chega a hora certa – alguns dias depois dooutro trabalho –, Queequeg, Daggoo e Tashtego, todos dentistas respeitáveis,metem-se a arrancar os dentes. Com uma afiada pá de corte, Queequeg realizaincisões na gengiva; em seguida, a mandíbula é atada a arganéus e, estando atalha presa ao cordame do alto, ele arranca esses dentes, como bois de Michiganpuxam pedaços de carvalhos velhos para fora das florestas selvagens. Em geral,são ao todo quarenta e dois dentes; nas baleias velhas, estão todos bem gastos,mas sem cáries; nem preenchidos com nossas obturações artificiais. A mandíbulapor fim é serrada em placas, que são empilhadas como vigas para a construçãode casas.

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75 A CABEÇA DA BALEIA FRANCA – UM EXAME COMPARATIVO

Cruzando o convés, vamos agora dedicar toda nossa atenção à cabeça da BaleiaFranca.

Assim como, em seu formato geral, a cabeça aristocrática do Cachalotepoderia ser comparada com uma biga Romana (especialmente se vista de frente,onde é tão amplamente arredondada), também a cabeça da Baleia Franca, grossomodo, guarda uma semelhança não muito elegante com um gigantesco sapato debico de galeota. Há duzentos anos, um velho viajante Holandês comparou suafigura à forma de um sapateiro. E nessa mesma forma ou sapato aquela velhasenhora do conto infantil com sua cria desmedida poderia ter se acomodadoconfortavelmente, ela e toda sua prole.

Mas, quando você se aproxima desta enorme cabeça, ela começa a assumirdiferentes aspectos, segundo seu ângulo de visão. Se você ficar em seu cume eolhar para os dois orifícios do jato e sua forma em “F”, você tomará a cabeça porum grande contrabaixo, e seus espiráculos, as aberturas da sua caixa deressonância. Mas se você fixar os olhos nessa incrustação estranha, cristada,semelhante a um pente no topo da massa – essa coisa verde com crustáceos, aque os Groenlandeses chamam de “coroa” e os pescadores do Sul de “gorro” daBaleia Franca; fixando os olhos apenas nisso, você tomaria a cabeça pelo troncode um carvalho enorme, com um ninho de passarinhos na forquilha. Semdúvida, quando você observa esses caranguejos vivos aninhados nesse gorro, talidéia certamente lhe ocorrerá; a menos que sua imaginação tenha se fixado notermo técnico “coroa”, que também lhe foi atribuído; nesse caso, parecer-lhe-áinteressante imaginar que esse monstro poderoso, na verdade, é um reidiademado do oceano, cuja coroa verde foi feita para ele desse extraordináriomodo. Mas, se esse cetáceo for mesmo um rei, é um sujeito muito intratável paraser adornado por uma coroa. Veja seu lábio inferior dependurado! Quanto mauhumor, e que tromba! É um mau humor e uma tromba, segundo as medidas deum carpinteiro, de vinte pés de comprimento e cinco pés de profundidade; ummau humor e uma tromba que poderiam produzir cerca de 500 galões de óleo,se não mais.

É lamentável, ora, que essa baleia desafortunada tenha um lábio leporino. Afenda tem cerca de um pé de comprimento. É provável que a mãe estivesse

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nadando na costa Peruana, num período importante, quando terremotos fizerama praia se abrir. Por esse lábio, como por uma soleira ardilosa, vamos agoraescorregar para dentro da boca. Dou minha palavra; estivesse eu em Mackinaw,teria aproveitado a oportunidade para adentrar uma tenda indígena. Meu Deus!Foi esse o caminho que Jonas trilhou? O telhado tem cerca de doze pés de alturae faz um ângulo agudo, como se tivesse uma viga mestra comum; enquanto aslaterais reforçadas, ogivadas e felpudas, nos oferecem ripas de barbatanasmaravilhosas, meio verticais, semelhantes às cimitarras, umas trezentas de umlado, que, suspensas na parte superior da cabeça ou osso da coroa, formamaquelas venezianas já mencionadas sucintamente em outro lugar. As bordas dasbarbatanas são guarnecidas por fibras felpudas, com as quais a Baleia Franca filtraa água e em cujos emaranhados retém os peixes pequenos, quando de bocaescancarada ela atravessa oceanos de brit na época de se alimentar. Nasvenezianas centrais da cartilagem, quando se conservam na ordem natural, hácertas marcas curiosas, curvas, buracos e arestas, pelas quais alguns baleeiroscalculam a idade do animal, como a idade de um carvalho se calcula por seusanéis circulares. Embora a exatidão desse critério esteja longe do demonstrável,tem a graça da probabilidade analógica. De qualquer modo, se o aceitamos,temos de atribuir à Baleia Franca uma idade muito superior àquela que pareceriarazoável à primeira vista.

Parece que outrora existiam as fantasias mais curiosas a respeito dessasvenezianas. Em Purchas, um viajante as denomina as espetaculares “suíças” dedentro da boca da baleia;{a} um outro, “escovões”; um terceiro cavalheiro, deHackluyt, usa as elegantes palavras a seguir: “São cerca de duzentos e cinqüentabarbatanas que nascem em cada lado de seu morso superior, que arquejam sobresua língua em cada lado de sua boca”.

Como todo mundo sabe, esses mesmos “escovões”, “barbatanas”, “suíças”,“venezianas”, ou como queira, fornecem às senhoras seus corpetes e outrosenrijecidos artifícios. Mas nesse particular a demanda vem há algum tempodiminuindo. Foi no tempo da rainha Anne que o osso conheceu a glória, quandoas anquinhas ditavam a moda. E como aquelas senhoras de outrora se moviamcom alegria, embora nas mandíbulas da baleia, por assim dizer; do mesmomodo, nós, hoje em dia, num dia de chuva nos abrigamos sob a proteção dasmesmas mandíbulas; sendo o guarda-chuva uma tenda aberta sobre o mesmoosso.

Mas esqueça tudo sobre venezianas e suíças por um momento e, de frente paraa boca da Baleia Franca, observe-a mais uma vez. Ao ver todas essas colunatas deossos tão metodicamente dispostas, você não se suspeitaria dentro do fabulosoórgão de Haarlem, admirado de seus milhares de tubos? À guisa de tapete para o

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órgão, temos o mais macio dos tapetes Turcos – a língua, colada, como se assimfosse, ao rés da boca. É muito opulenta e tenra, capaz de desfazer-se em pedaçosquando içada ao convés. Essa língua em especial, agora diante de nós; num passarde olhos eu diria que é uma “seis barris”; ou seja, poderia render essa quantidadede óleo.

Antes disso, você deve ter percebido com clareza a verdade do que eu disse noinício – que o Cachalote e a Baleia Franca têm cabeças quase que inteiramentediferentes. Resumindo, pois: na Baleia Franca não se encontra um bom poço deespermacete; nem dentes de marfim; nem uma longa e delgada mandíbulainferior, como a do Cachalote. Também não há no Cachalote algo comovenezianas de barbatana; nenhum lábio inferior imenso; e quase nada de língua.Além disso, a Baleia Franca tem dois orifícios externos de sopro, e o Cachaloteapenas um.

Olhe, agora, uma última vez para essas respeitáveis cabeças encapuzadas,enquanto ainda aparecem juntas; pois, em breve, uma afundará no mar semepitáfio; e a outra não tardará em segui-la.

Você consegue perceber a expressão do Cachalote ali? É a mesma de quandomorreu, apenas algumas das rugas compridas de sua fronte parecem terdesbotado. Creio que essa fronte imensa está repleta de uma placidez campestre,nascida de uma indiferença especulativa diante da morte. Mas observe aexpressão da outra cabeça. Veja aquele espantoso lábio inferior, comprimido poracidente contra o costado do navio, de modo a segurar com firmeza a mandíbula.A cabeça inteira não parece expressar uma grande e resoluta decisão de enfrentara morte? Essa Baleia Franca eu julgo ter sido uma Estóica; e o Cachalote, umPlatônico, que em seus últimos anos de vida se dedicou a Espinosa.

{a} Isso nos faz lembrar que a Baleia Franca tem mesmo algo próximo às suíças, ou melhor, ao bigode, queconsiste em alguns fios de cabelo branco espalhados na parte superior da ponta exterior da mandíbulainferior. Por vezes, esses tufos dão um aspecto de bandoleira à sua de outro modo solene fisionomia. [N.A.]

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76 O ARÍETE

Antes de deixar, por ora, a cabeça do Cachalote, gostaria que você,na condição de fisiologista prudente, apenas – particularmente – reparasse noaspecto da fronte, em toda sua coesão e calma. Gostaria que a examinasse agoracom o único objetivo de fazer uma avaliação inteligente e nada exagerada daforça de aríete que possa estar contida ali. É uma questão crucial; pois ou vocêaceita esse evento como inquestionável, ou permanece descrente para todo osempre de um dos fatos mais estarrecedores, porém verdadeiros, que receberamregistro nos autos da história.

Observe que, em sua posição comum de nado, a testa do Cachalote fica numplano quase totalmente vertical em relação à água; observe que a parte inferiorde sua testa se inclina bem para trás, como se fosse um abrigo para o encaixecomprido que recebe a verga de sua mandíbula inferior; observe que a boca deleestá por completo embaixo da cabeça, mais ou menos como se sua própria bocaestivesse inteiramente sob seu queixo. Ademais, observe que a baleia não tem umnariz externo; e que o nariz que tem – o orifício do jato – fica no topo de suacabeça; observe que seus olhos e orelhas ficam do lado da cabeça, aaproximadamente um terço do comprimento de seu corpo a partir da cabeça.Com isso, você deve ter percebido que a testa da cabeça do Cachalote é umaparede insensível e desprovida de aberturas, sem um único órgão ouprotuberância frágil de qualquer espécie. Além disso, lembre-se de que apenas naparte inferior extrema da testa, inclinada para trás, existe algum vestígio de osso;e de que, antes de chegar a uns vinte pés da testa, você não encontrará um plenodesenvolvimento do crânio. Portanto, essa massa imensa e desossada é somenteuma almofada. Como será revelado, enfim, seu conteúdo constitui-se, em parte,do óleo mais refinado; entretanto, agora você será informado da natureza dasubstância que reveste de modo tão inexpugnável toda essa aparente efeminação.Nalgum lugar acima, descrevi como a gordura envolve o corpo da baleia, àmaneira da casca que envolve a laranja. Assim se dá com a cabeça; mas com estaparticularidade: perto da cabeça, tal invólucro, embora não tão espesso, se faz deuma dureza desossada, inimaginável para alguém que jamais tenha tocado nele.O arpão mais afiado, a lança mais incisiva atirada pelo mais forte dos braçoshumanos, nela ricocheteiam impotentes. É como se a testa do Cachalote fossepavimentada com cascos de cavalos. Não creio que qualquer sensibilidade existaali.

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Considere ainda uma outra coisa. Quando dois avantajados e carregados naviosmercantes da rota da Índia se empurram e se espremem nas docas, o que é queos marinheiros fazem? Não colocam entre eles, no ponto de contato, nenhumasubstância rija como ferro ou madeira. Não, eles suspendem ali um enchimentogrande e redondo de estopa e cortiça, enrolado no mais espesso e duro couro deboi. Este, valente e livre de dano, recebe a compressão que teria arrebentadoescoras de carvalho e alavancas de ferro. Isso basta para demonstrar o fato óbvio aque me refiro. Mas, somando-se a esse fato, ocorreu-me a hipótese de que, comoo peixe comum tem uma bexiga natatória, capaz de aumentar ou diminuir àvontade; e como o Cachalote, tanto quanto sei, não dispõe de tal recurso;considerando a maneira de outro modo inexplicável com que ora afundainteiramente sua cabeça abaixo da superfície, ora nada com a cabeça bemelevada para fora da água; considerando a elasticidade jamais obstruída de seuinvólucro; considerando a especialíssima parte interna de sua cabeça; ocorreu-mea hipótese, repito, de que seus misteriosos e alveolares favos pulmonares possamter uma, até o presente momento, desconhecida e insuspeitada relação com o arexterior, de modo a serem suscetíveis à expansão e contração atmosférica. Seassim for, imagine quão irresistível é tal poder, que conta com a contribuição domais inalcançável e destrutivo de todos os elementos.

Agora, atenção. Impelindo de modo implacável essa parede insensível,inexpugnável, invencível, e essa coisa que flutua dentro dela; ali nada, por trás detudo isso, uma gigantesca massa de vida, que só pode ser adequadamentecalculada como lenha empilhada – em cordéis; e que obedece a uma únicavontade, como o menor inseto. De modo que, quando, mais adiante, eu explicarem detalhes todas as peculiaridades e concentrações de energia escondidas pelocorpo desse monstro expansível; quando eu mostrar algumas de suas maisordinárias proezas craniais; creio que você renunciará a toda a incredulidadeignorante e estará pronto para aceitar isto: que ainda que o Cachalotearrebentasse uma passagem através do Istmo de Darien, misturando o Atlânticoao Pacífico, você não perderia um fio de cabelo. Pois, se não reconhecer umabaleia, você será apenas um provinciano e sentimentalista diante da Verdade. Masa Verdade cristalina é uma coisa com a qual só as salamandras gigantes sedeparam; como são pequenas, então, as chances de um provinciano! O queaconteceu com o jovem infirme que levantou o véu da temível deusa em Sais?

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77 O GRANDE TONELDE HEIDELBERG

Chegamos agora ao Baldear do Estojo. Mas paracompreendê-lo bem é preciso que você saiba algo sobre

a curiosa estrutura interna da coisa sobre a qual vamos trabalhar.Caso considerasse a cabeça do Cachalote como um sólido oblongo, você

poderia, em um plano inclinado, lateralmente dividi-la em duas cunhas demastaréu,{a} sendo a inferior a estrutura óssea que forma o crânio e asmandíbulas, e a superior, uma massa gordurosa destituída de ossos; com suaampla extremidade dianteira constituindo a fronte visível, vertical e expandida,da baleia. Subdivida horizontalmente, no centro da fronte, a cunha superior, evocê terá duas partes quase iguais, antes naturalmente divididas por uma paredeinterna de espessa substância tendínea.

A subdivisão inferior, chamada de refugo, é um imenso favo de óleo, formadopelo cruzamento e recruzamento, em dez mil alvéolos infiltrados, de firmes eelásticas fibras brancas em toda sua extensão. A parte superior, conhecida comoEstojo, pode ser entendida como Grande Tonel de Heidelberg do Cachalote. Damesma forma que esse recipiente famoso é misteriosamente esculpido na frente,assim a imensa testa franzida da baleia forma incontáveis e estranhos desenhospara a ornato emblemático de seu magnífico tonel. Além disso, tal como o Tonelde Heidelberg sempre esteve repleto do melhor vinho do vale do Reno, tambémo tonel da baleia contém o mais precioso dos óleos de sua vindima; a saber, oestimadíssimo espermacete, em seu estado puro, límpido e perfumado. Essasubstância preciosa não se encontra, íntegra, em nenhuma outra parte dacriatura. Embora quando em vida se mantenha em perfeita fluidez, exposta ao ardepois da morte, começa a ganhar solidez; assumindo a forma de belíssimosbotões cristalinos, como os primeiros pedaços delicados de gelo que se formamna água. O estojo de uma baleia grande produz cerca de quinhentos galões deespermacete, embora, por circunstâncias inevitáveis, uma grande parte derrame,vaze, goteje ou, de outro modo, se perca irrevogavelmente na delicada operaçãode transportar o que é possível.

Não sei de que fino e dispendioso material o Tonel de Heidelberg foi revestidopor dentro, mas em sua riqueza superlativa tal revestimento não se poderiadeixar comparar com a membrana sedosa e perolada, semelhante ao forro deuma peliça, que constitui a superfície interna do estojo do Cachalote.

Teremos visto que o Tonel de Heidelberg do Cachalote compreende a extensão

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total de todo o topo da cabeça; e visto que – como já disse noutro lugar – acabeça compreende um terço da extensão total da criatura, se estabelecermosque a extensão de uma baleia de bom tamanho é de oitenta pés, chega-se a maisde vinte e seis pés de profundidade do tonel, quando se encontra suspenso emposição vertical junto ao costado do navio.

Como, ao decapitar a baleia, o instrumento do cirurgião é levado para perto dolugar onde depois será aberta uma entrada para o depósito do espermacete; eletem, destarte, de ser muito cuidadoso para que um inoportuno golpe não invadao santuário e desperdice seu inestimável conteúdo. É essa extremidade decapitadada cabeça que, por fim, é retirada da água e mantida nessa posição pelas enormestalhas de cortar, cujas combinações do cânhamo, num dos lados, criam umaverdadeira selva de cordas naquele lugar.

Dito tudo isso, preste atenção, assim o peço, à maravilhosa e – nesse casoespecífico – quase fatal operação pela qual o Grande Tonel de Heidelberg doCachalote é esvaziado.

{a} A cunha do mastaréu [quoin] não é um termo Euclidiano. Pertence à mais pura matemática náutica. Nãoconheço nenhuma definição anterior. Um cunho é um sólido que difere de uma cunha comum [wedge]por ter a extremidade aguda formada pela inclinação íngreme de um lado, e não pelo afunilamento dosdois lados. [N. A.]

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78 A CISTERNAE OS BALDES

Lépido como um gato, Tashtego sobe no topo do mastro; e semmudança em sua postura ereta corre sobre o lais da verga

principal ao ponto onde esta mais exatamente se projeta sobre o Tonel suspenso.Leva consigo uma talha leve chamada candeliça, feita de duas partes apenas, quepassa pelo cadernal de uma roldana. Amarrando o cadernal de modo a suspendê-lo do lais da verga, ele balança uma ponta da corda, até que um homem noconvés consegue pegá-la e segurá-la com firmeza. Então, mão sobre mão, pelaoutra ponta da corda, o Índio se lança ao ar, até que pousa com agilidade no topoda cabeça. Naquele lugar – bem acima do resto da companhia, para a qual elevivamente grita – ele se parece com um Muezim Turco chamando as pessoas debem para as orações do alto de uma torre. Munido da pá afiada, o cabo curto,que lhe dão, ele procura com cuidado o lugar certo para começar a perfurar oTonel. Esse trabalho ele realiza cheio de cuidados, como um caçador de tesourosnuma mansão antiga, auscultando as paredes para encontrar o lugar onde o ouroestá cimentado. Terminada tal sondagem cautelosa, um resistente balde de ferro,exatamente como um balde de poço, é amarrado a uma ponta da candeliça;enquanto a outra ponta, esticada sobre o convés, é segurada por dois ou trêsmarinheiros atentos. Estes, então, colocam o balde ao alcance do Índio, a quemoutra pessoa ergueu uma vara bem comprida. Inserindo a vara no balde, Tashtegoo conduz para dentro do Tonel até que desapareça por inteiro; então, dando aordem aos marinheiros com a candeliça, sobe o balde outra vez, tão espumantequanto um balde de leite fresco da moça do curral. Diligentemente descido desuas alturas, o recipiente repleto encontra as mãos de um marinheiro designadopara isso e é rapidamente esvaziado numa enorme tina. Levado mais uma vezpara o alto, o balde repete a mesma operação, até que a cisterna profunda nãolhe ofereça mais nada. Próximo do fim, Tashtego tem de calcar sua vara mais emais forte e mais e mais fundo dentro do Tonel, até que atinja uma profundidadede aproximadamente vinte pés.

Ora, os homens do Pequod já baldeavam desse modo havia já um tempo;várias tinas apareciam repletas do espermacete perfumado; quando de súbitoocorreu um estranhíssimo acidente. Fosse porque Tashtego, o Índio selvagem,estivesse tão afoito e fosse tão descuidado a ponto de soltar por um instante ocabo das talhas grandes que seguravam a cabeça; ou porque o lugar onde eleestava fosse muito viscoso e traiçoeiro; ou porque o próprio Diabo tivesse

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preparado isso sem dar nenhuma explicação; como exatamente se sucedeu, nãose soube; mas, de repente, enquanto o octogésimo ou nonagésimo balde vinhasendo puxado – meu Deus, coitado do Tashtego! – como o balde complementarnum poço verdadeiro, ele caiu de cabeça no Grande Tonel de Heidelberg e, numhorrível borbulhar de óleo, desapareceu de vista!

“Homem ao mar!”, gritou Daggoo, que em meio à consternação geral foi oprimeiro a recobrar o juízo. “Mandem o balde para cá!”, e colocando um pédentro dele, de modo a segurar melhor o cabo da candeliça escorregadia, osiçadores o ergueram para o topo da cabeça, antes mesmo que Tashtego pudesseter chegado ao fundo. Enquanto isso, criou-se um terrível tumulto. Olhando sobreo costado, eles viam a cabeça outrora sem vida palpitando e surgindo à superfíciedo mar, como se subitamente acometida de uma idéia importante; quando, noentanto, era apenas o coitado do Índio revelando inconscientemente por seusgolpes a perigosa profundidade a que havia afundado.

Naquele instante, enquanto Daggoo, no topo da cabeça, soltava a candeliça –que havia de alguma forma se enredado nas grandes talhas de cortar –, ouviu-seum barulho nítido de alguma coisa se quebrando; e, para o terror inenarrável detodos, um dos ganchos imensos que seguravam a cabeça se soltou, e com imensatrepidação a massa enorme balançou para os lados, até que o navio bêbadocambaleou e sacudiu como se tivesse sido atingido por um iceberg. O gancho querestava, sobre o qual estava todo o peso, parecia estar a ponto de ceder a qualquermomento; algo ainda mais provável devido aos movimentos violentos da cabeça.

“Desce daí! Desce daí!”, gritavam os marinheiros para Daggoo, mas segurandoo cabo das talhas pesadas com uma das mãos, de modo que se a cabeça caísse elecontinuaria suspenso; e, tendo desfeito o embaraço da linha, o negro então socouo balde para dentro do poço em colapso, sugerindo que o arpoador enterrado oagarrasse e assim pudesse ser puxado para fora.

“Pelo amor de Deus, homem!”, gritou Stubb, “O que você está socando? Umcartucho? Pare! Como você acha que vai ajudá-lo: acertando esse balde de ferrona cabeça dele? Pare!”

“Cuidado com a talha!”, gritou uma voz explosiva como um foguete.Quase no mesmo instante, com o estrondo de um trovão, a massa enorme caiu

no mar, como a rocha de Niágara no redemoinho; o casco subitamente liberadose afastou para longe, afundando em seu cobre reluzente; e todos suspenderam arespiração quando, meio que balançando – ora sobre as cabeças dos marinheiros,ora sobre a água –, Daggoo, em meio a uma espessa névoa de vapor, se agarravaàs talhas bambas, enquanto o pobre Tashtego, sepultado vivo, desciairremediavelmente às profundezas do mar! Contudo, mal havia se dissipado aneblina, um vulto nu com um sabre de abordagem na mão foi visto por um

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brevíssimo instante procurando equilíbrio sobre a amurada. Em seguida, ummergulho barulhento na água anunciava que meu corajoso Queequeg haviamergulhado para o salvamento. Uma horda avançou para o costado, e todos osolhos contavam cada onda, como um instante após o outro, e não havia sinal deafogado ou mergulhador. Alguns marinheiros pularam num bote ao lado eremaram um pouco para longe do navio.

“Ah! Ah!”, gritou Daggoo, de repente, do alto de seu agora calmo e balançantepoleiro; e, olhando mais além do costado, vimos um braço retesado em meio àsondas azuis; uma visão estranha, como se fosse um braço retesado em meio àgrama de uma sepultura.

“Os dois! Os dois! – São os dois!”, gritou Daggoo outra vez com alegria; e logodepois Queequeg foi visto buscando impulso corajosamente com uma mão,enquanto a outra agarrava o cabelo comprido do Índio. Puxados para o bote queos esperava, foram levados de pronto ao convés; mas Tashtego demorava arecobrar os sentidos, e Queequeg não parecia muito animado.

Pois bem, como se realizara esse corajoso salvamento? Ora, mergulhando atrásda cabeça que afundava lentamente, Queequeg, com seu sabre bem afiado,desferira estocadas laterais nas proximidades de sua base, como se ali abrisse umalarga escotilha; então, soltando o sabre, forçou o braço para dentro e para cima edesse modo puxou o coitado do Tashtego para fora pela cabeça. Confessou que,quando enfiara o braço pela primeira vez, encontrara uma perna; mas bemsabendo que não deveria proceder desse modo, que isso poderia causarproblemas, enfiara, então, a perna de volta, e, com hábeis e esforçados gestos,manobrara o corpo do Índio; de tal modo que na tentativa seguinte ele veio à luzda boa e velha maneira – com a cabeça em primeiro lugar. Quanto à cabeçagrande, essa havia se comportado tão bem quanto se podia esperar.

E assim, graças à coragem e à grande habilidade de Queequeg em obstetrícia,o parto, ou melhor, a libertação de Tashtego foi bem-sucedida, ainda que entre osdentes dos mais desfavoráveis e aparentemente intransponíveis impedimentos; oque é uma lição que não deve ser de modo algum esquecida. O ofício da parteiradeveria ser ensinado tal como a esgrima, o pugilismo, a equitação e o remo.

Sei que essa estranhíssima aventura do índio de Gay Head pareceráinacreditável para alguns homens terrestres, ainda que tenham visto, ou escutadohistórias sobre pessoas que caíram em cisternas em terra; um acidente que raroacontece, por muito menos do que com o Índio, dada a condição excessivamenteescorregadia da borda do poço do Cachalote.

Mas, talvez se alegará com astúcia, como é possível? Pensávamos que a cabeçado Cachalote, sedosa e porosa, fosse sua parte mais leve, mais afeita à cortiça;mas tu a fazes afundar num elemento de densidade muito superior à dela.

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Pegamos-te. De modo algum, fui eu quem vos pegou; pois quando o coitado doTash caiu lá dentro o estojo estava quase vazio de seus conteúdos mais leves,restando pouco mais do que a parede densa e tendinosa do poço – umasubstância duas vezes unida e batida, como disse antes, muito mais pesada que aágua do mar, um bloco da qual afunda quase como chumbo. Mas a tendênciadessa substância para afundar rapidamente foi neutralizada pelo fato de semanter ligada às outras partes da cabeça, de tal modo que afundou devagar,dando uma boa chance para Queequeg fazer seu rápido trabalho de obstetra,como se pode dizer. Pois sim, foi um parto rápido, e como.

Ora, se Tashtego tivesse morrido naquela cabeça, teria sido uma morte muitovalorosa; sufocado no perfume do espermacete mais alvo e delicado; posto noataúde, levado em cortejo fúnebre, e enterrado na câmara secreta do templo maissagrado da baleia. Apenas um fim mais encantador pode de pronto ser lembrado– a morte deliciosa do caçador de abelhas de Ohio, que ao procurar mel naforquilha de uma árvore oca encontrou tamanho reservatório que, de muitodebruçar-se sobre este, foi sugado e morreu embalsamado. Quantos outros,pensai, terão caído da mesma maneira na cabeça de mel de Platão, para alimorrer docemente?

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79 A PRADARIA

Examinar com atenção as linhas do rosto, ou mexer nasprotuberâncias da cabeça desse Leviatã; essas são ocupações que nenhumFisionomista ou Frenologista tomou para si até agora. Tal iniciativa pareceria tãopropícia quanto para Lavater a de analisar as dobraduras do Rochedo deGibraltar, ou para Gall a de subir numa escada e tocar a Cúpula do Panteão. Nãoobstante, em sua obra famosa, Lavater não apenas discorre sobre os vários rostosdos homens, como também estuda com cuidado os rostos dos cavalos, pássaros,serpentes e peixes; detendo-se com minúcia nas alternâncias de expressão queconsegue discernir. Tampouco Gall e seu discípulo Spurzheim deixaram de fazerobservações sobre as características frenológicas de outras criaturas que não oshomens. Por isso, apesar de ser pouco qualificado para um pioneiro, na aplicaçãodessas duas semiciências à baleia farei minha tentativa. Experimento de tudo; etermino o que posso.

Do ponto de vista fisiognomônico, o Cachalote é uma criatura anômala. Elenão possui um nariz de verdade. E uma vez que o nariz é o mais importante econspícuo dos predicados; e que talvez seja o que mais modifica e controla, porfim, a expressão; assim poderia parecer que sua absoluta ausência, comoprolongamento externo, deve influir muito na fisionomia da baleia. Pois, como najardinagem paisagística, um cálamo, uma cúpula, um monumento, ou uma torrequalquer, são julgados quase indispensáveis para o acabamento de um cenário;assim também um rosto não pode ser fisiognomonicamente harmonioso sem osoberbo campanário ornamental do nariz. Quebre o nariz do Jove marmóreo deFídias e veja que triste espólio nos resta! Não obstante, o Leviatã possui tãoelevada magnitude, suas proporções são tão imponentes, que a mesmadeficiência, hedionda em um Jove esculpido, nele não constituiria imperfeição.Pelo contrário, trata-se de um esplendor a mais. Um nariz para a baleia seria umdescalabro. Quando, em sua viagem fisiognomônica, você navegar em seu botede serviço ao redor de sua cabeça enorme, seus nobres pensamentos sobre elajamais serão insultados pela idéia de que ela tenha um nariz a ser esticado. Umpensamento nocivo, que amiúde se intromete mesmo quando se contempla omais poderoso arauto real em seu trono.

Num certo sentido, talvez a perspectiva mais imponente do Cachalote, doponto de vista fisiognomônico, seja a de sua cabeça observada de frente. Essaimagem é sublime.

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Em meio a pensamentos, uma bela fronte humana é como o Orienteatormentado pelo amanhecer. No repouso da pastagem, a fronte franzida dotouro tem um toque de grandeza. Carregando canhões pesados por desfiladeiros emontanhas, a fronte do elefante é majestosa. Humana ou animal, a fronte místicaé como o grande selo dourado afixado pelos imperadores Germânicos em seusdecretos. Significa – “Deus: hoje feito por minha mão”. Mas na maior parte dascriaturas, e também no próprio homem, a fronte é muito amiúde somente umafaixa de terra alpina ao longo da divisa de neve. Raras são as frontes, como as deShakespeare ou a de Melanchton, que sobem tão alto e descem tão baixo que ospróprios olhos parecem ser lagos das montanhas, claros, eternos e sem marés; e,acima deles, nos vincos da testa, poder-se-ia seguir-lhes o rastro dos pensamentoschifrados que descem para aí beber, como os caçadores da Highland seguem orastro das pegadas dos veados na neve. Mas no enorme Cachalote essa elevada epujante dignidade divina, inerente à fronte, é tão imensamente ampliada que,contemplando-a de frente, você sentirá a Divindade e os poderes do horror commais força do que junto a qualquer outro ser vivo da natureza. Pois você nãoencontrará nenhum ponto preciso; nenhuma característica diferente é revelada;nem nariz, nem olhos, nem orelhas, nem boca; nem rosto; ele não tem nada queseja propriamente um rosto; nada além do imenso firmamento que é a fronte,franzida de enigmas; mergulhando com indiferença diante da destruição debotes, navios e homens. Nem de perfil essa fronte assombrosa diminui; emboravista desse ângulo sua grandeza não lhe seja tão evidente. De perfil, vocêperceberá claramente no meio da fronte a depressão horizontal em meia-lua,que, segundo Lavater, é a marca do gênio no homem.

Mas como? Gênio no Cachalote? O Cachalote já escreveu livros ou fezdiscursos? Não, seu grande gênio manifesta-se no simples fato de não fazer nadade específico para prová-lo. Manifesta-se, além disso, em seu silêncio piramidal. Eisso me faz lembrar que, fosse o Cachalote conhecido do ingênuo MundoOriental, ele teria sido divinizado pela infantilidade mágica do pensamento deseus homens. Eles divinizaram o crocodilo do Nilo, porque o crocodilo não temlíngua; e o Cachalote também não a tem; ou melhor, tem uma língua tãoincrivelmente pequena que é incapaz de botá-la para fora. Se, doravante, umanação muito poética e erudita atrair de volta ao seu direito hereditário os antigosdeuses alegres do mês de maio; e entronizá-los vivos de novo no céu, hoje egoísta;na montanha, hoje deserta; então, esteja certo, elevado ao trono de Jove, o grandeCachalote há de ser senhor.

Champollion decifrou os hieróglifos cortados no granito. Mas não existeChampollion que decifre o Egito do rosto de cada homem e de cada ser. Afisiognomia, como todas as ciências humanas, é apenas uma fábula passageira. Se

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Sir William Jones, que lia em trinta línguas, não sabia ler o rosto de um humildecamponês em seu significado mais profundo e sutil, como poderia o iletradoIshmael esperar ler o apavorante Caldeu da fronte do Cachalote? Tudo o queposso fazer é colocar tal fronte diante de você. Leia-a, se puder.

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80 A NOZ

Se o Cachalote é fisiognomicamente uma Esfinge, para o frenologistaseu cérebro parece um círculo geométrico sem possibilidade de enquadramento.

Na criatura adulta o crânio mede pelo menos vinte pés de comprimento.Desencaixe o maxilar inferior, e a vista lateral desse crânio será como a vistalateral de uma superfície moderadamente inclinada que repousa sobre uma basede todo plana. Mas em vida – como vimos em outra parte – esse plano inclinadoestá preenchido de ângulos, quase formando um quadrado devido à enormemassa de refugo e espermacete sobrepostos. Na extremidade superior o crânioforma uma cratera para alojar aquela parte da massa; ao passo que embaixo dosolo extenso dessa cratera – em outra cavidade que raramente excede dezpolegadas de comprimento e profundidade – repousa o pouco mais quepequenino cérebro de tal monstro. O cérebro situa-se a pelo menos vinte pés desua testa visível em vida; fica escondido atrás de seus imensos baluartes, como amais interna cidadela dentro das dilatadas fortalezas de Quebec. Tanto é comoum precioso porta-jóias o que se esconde nele, que conheci alguns baleeiros quenegaram peremptoriamente que o Cachalote tivesse qualquer outro cérebro alémdaquela imagem palpável de um constituído pelas jardas cúbicas de sua reservade espermacete. Encontrado em estranhas pregas, camadas e circunvoluções, naopinião deles parece mais certo considerar, segundo a concepção de sua forçacomo um todo, aquela parte misteriosa dele como a sede de sua inteligência.

É evidente, pois, que frenologicamente a cabeça desse Leviatã, quandoplenamente vivo, é uma desilusão completa. Quanto a seu verdadeiro cérebro,você não encontrará indícios dele e tampouco poderá tocá-lo. A baleia, comotodas as coisas poderosas, veste um falso semblante ao mundo público.

Se você descarregar o crânio de seu enorme conteúdo de espermacete e entãoolhar de trás para a sua parte posterior, que é a extremidade no alto, ficaráimpressionado com a semelhança que tem com o crânio humano, visto damesma posição e do mesmo ponto de vista. De fato, coloque este crânio invertido(reduzido à escala humana) em meio a uma bandeja de crânios humanos einvoluntariamente você o confundirá com os demais; e, observando as depressõesde uma parte de seu topo, em jargão frenológico você diria – Este homem nãopossuía auto-estima, nem veneração. E com tais negativas, consideradas junto aoaspecto positivo de seu tamanho e força imensa, você pode melhor formar para sia mais verdadeira, ainda que não a mais efusiva idéia do que seja a máxima

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potência.Mas, se a partir das dimensões comparativas do cérebro da baleia

propriamente dito você considerar que não se pode fazer um mapa adequado,tenho outra idéia. Se você examinar com atenção a espinha de quase todos osquadrúpedes, ficará surpreso com a semelhança de suas vértebras com um colarde pequeninos crânios enfiados, todos guardando grossa semelhança com umcrânio real. É uma concepção Alemã, a de que as vértebras são crânios atrofiados.Mas creio que os Alemães não foram os primeiros a formá-la. Um amigoestrangeiro certa vez me mostrou isso no esqueleto de um inimigo que eleassassinara, com as vértebras que ele incrustara, numa espécie de baixo-relevo, nobico da proa de sua canoa. Ora, penso eu que os frenologistas omitiram umacoisa importante quando não estenderam suas pesquisas do cerebelo ao canal daespinha. Pois acredito que muito do caráter de um homem se encontra assinaladoem sua coluna vertebral. Prefiro tocar na espinha a tocar no crânio de quem querque seja. Uma espinha de viga fraca jamais sustentou uma alma nobre ecompleta. Regozijo-me de minha coluna vertebral, haste firme e audaciosa dabandeira que estendo ao mundo.

Aplique esse ramo espinhal da frenologia ao Cachalote. A cavidade do crânio écontígua à primeira vértebra cervical; e nessa vértebra o fundo do canal da colunavertebral mede dez polegadas de um lado a outro, oito de altura, e tem a formade um triângulo com a base para baixo. Quando passa por outras vértebras, ocanal afunila em tamanho, mas por uma longa distância continua com altacapacidade. É evidente que esse canal é preenchido com a mesma substânciaestranhamente fibrosa – a medula espinhal – do cérebro; e se comunicadiretamente com o cérebro. E mais ainda, por muitos pés depois de sair dacavidade do cérebro, a medula espinhal conserva intacta sua circunferência,quase igual à do cérebro. Nessas circunstâncias, não seria razoável pesquisar emapear frenologicamente a coluna vertebral da baleia? Pois, vista sob esseprisma, a relativa pequenez prodigiosa do cérebro verdadeiro é mais do quecompensada pela relativa amplitude prodigiosa de sua medula espinhal.

Mas deixando essa sugestão para o trabalho dos frenologistas, gostaria, por ummomento, de tomar essa teoria da coluna vertebral em relação à corcova doCachalote. Essa veneranda corcova, se não me engano, eleva-se sobre uma dasvértebras maiores, e, por isso, de certa forma, serve-lhe de revestimento, convexoe exterior. Devido à sua posição relativa, pois, chamarei essa corcova elevada deórgão da firmeza e da indomabilidade do Cachalote. E que o monstro imenso éindomável, você em breve terá bons motivos para acreditar.

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81 O PEQUOD ENCONTRAO VIRGEM

O dia predestinado chegou, e em tempo nosencontramos com o navio Jungfrau do capitão

Derick De Deer, de Bremen.Outrora os maiores baleeiros do mundo, holandeses e alemães hoje estão entre

os menos importantes; mas, vez por outra, a largos intervalos de latitude elongitude, ainda é possível se encontrar sua bandeira no Pacífico.

Por algum motivo, o Jungfrau parecia muito interessado em nos fazer umavisita de cortesia. Quando ainda a certa distância do Pequod, ele contornou, e,baixando um bote, seu capitão foi trazido até nós, impaciente, de pé na proa emvez de na popa.

“O que ele vem trazendo na mão?”, gritou Starbuck, apontando para algo queo alemão segurava e balançava. “Impossível!… um abastecedor de lamparina!”

“Não é isso!”, disse Stubb, “Não! Não! É uma cafeteira, senhor Starbuck; elevem nos fazer café, o teutão; não vês a lata de estanho ao seu lado?… é águaquente. Oh! Ele é bem-vindo, o teutão.”

“Pare com isso!”, gritou Flask. “É um abastecedor de lamparina e uma lata deóleo. O óleo dele acabou, e ele vem pedir um pouco.”

Por mais curioso que possa parecer um navio de óleo de baleia vir pedir óleoemprestado numa região baleeira, e por mais que possa inversamente contradizero velho provérbio sobre levar carvão a Newcastle, contudo tal coisa pode às vezesde fato acontecer; e, no caso, o capitão Derick De Deer trazia indubitavelmenteum abastecedor de lamparina, como dissera Flask.

Quando ele subiu ao convés, Ahab abordou-o bruscamente, sem prestar amenor atenção ao que trazia na mão; mas em seu linguajar truncado o alemãologo demonstrou total ignorância quanto à Baleia Branca; imediatamente levandoa conversa para o seu abastecedor de lamparina e a lata de óleo, com algunscomentários sobre ter que se virar na rede à noite, na mais profunda escuridão –consumida a sua última gota de óleo de Bremen, e ainda não tendo capturadoum único peixe-voador para suprir a falta; concluiu sugerindo que o seu navio erade fato o que na pesca se chamava tecnicamente de um navio limpo (isto é,vazio), bem merecendo o nome de Jungfrau ou a Virgem.

Necessidades atendidas, Derick partiu; mas nem bem alcançou o costado deseu navio, quando dos topos dos mastros de ambos os navios, quasesimultaneamente, avistaram as baleias; e ele estava tão ansioso pela caça, que,

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sem nem sequer deixar a lata de óleo e o abastecedor de lamparina a bordo, virouo seu bote e foi dar caça ao Leviatã abastecedor de lamparinas.

Ora, como a caça emergira a sotavento, ele e os outros três botes alemães quelogo o seguiram levavam uma vantagem considerável sobre as quilhas do Pequod.Havia oito baleias, um baleal médio. Cientes do perigo, seguiam lado a lado, emalta velocidade, à frente do vento, roçando os seus flancos cerradamente comoparelhas de cavalos arreados. Deixaram um rastro imenso e largo, como secontinuamente desenrolassem um imenso e largo pergaminho por sobre o mar.

Bem nesse rastro veloz, e muitas braças atrás, nadava um macho enorme comuma corcova, que a julgar pelo progresso relativamente lento, assim como pelasincrustações amareladas incomuns, parecia acometido de icterícia, ou algumaoutra enfermidade. Que essa baleia pertencesse ao baleal à frente, pareciaquestionável; pois não é o costume que Leviatãs tão veneráveis sejam sociáveis.Não obstante, ateve-se à esteira das outras, apesar de atrasado pela água deixadapor elas, porque a cartilagem ou a ondulação do seu amplo focinho era achatada,como ondulação que se forma quando duas correntes contrárias se encontram.Seu sopro era curto, lento, difícil, saindo em golfadas engasgado, esvaindo-se emfarrapos desfiados, seguido por estranhas comoções subterrâneas dentro dele, quepareciam sair da outra extremidade enterrada, fazendo das águas atrás delesubirem borbulhas.

“Alguém tem um paregórico?”, perguntou Stubb, “receio que ele esteja comdor de barriga. Meu Deus, uma dor de barriga de meio acre! Ventos adversosestão fazendo uma festa louca de Natal dentro dele, rapazes. É o primeiro vaporsinistro que já vi soprar pela popa; mas reparem: onde já se viu uma baleia guinardesse jeito? Deve ter perdido o leme.”

Como um navio indiano abarrotado que se aproxima do litoral do Industãocom um convés cheio de cavalos assustados aderna, sepulta, revira e se revolveem seu caminho; assim fazia essa baleia velha com o seu velho corpanzil, e, vezpor outra, virando um pouco suas costelas incomodadas, expunha a causa de seurastro desviante no toco anormal da barbatana direita. Se perdera aquelabarbatana numa luta ou se já nascera sem, era difícil dizer.

“Espera um pouco, meu velho, amarrarei uma faixa nesse braço ferido”, gritouo cruel Flask, apontando para a linha do arpão perto dele.

“Cuidado para que ela não te amarre”, gritou Starbuck. “Abre caminho, ou oalemão vai levá-la.”

Com o mesmo propósito, todos os botes rivais combinados se dirigiram paraesse mesmo peixe, não só porque era o maior, e por isso o mais valioso, comotambém o mais próximo, e as outras baleias tinham alcançado uma talvelocidade, além do mais, que quase ignorava a perseguição naquele momento.

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Nesse ponto, as quilhas do Pequod tinham ultrapassado os três botes alemães quedesceram por último; mas, em virtude da grande dianteira que levava, o bote deDerick ainda liderava a caçada, embora os seus rivais estrangeiros seaproximassem cada vez mais. A única coisa que receavam era que, estando tãopróximos do objetivo, ele pudesse atirar o seu arpão antes que conseguissemultrapassá-lo. Quanto a Derick, parecia bem confiante de que isso aconteceria, e,por vezes, num gesto de zombaria, sacudia o abastecedor de lamparina,mostrando-o para os outros botes.

“Que cão ingrato e desgraçado!”, gritou Starbuck; “faz troça de mim e meafronta com a mesma caixa de esmolas que lhe dei não faz nem cinco minutos!”e depois, com o seu sussurro vigoroso: “Força, meus galgos! Atrás dele!”.

“Vou dizer o que há, rapazes”, gritou Stubb à sua tripulação. “É contra aminha religião ficar zangado, mas eu queria devorar aquele pulha teutão. Forçaaí! Não? E deixar que aquele tratante os vença? Não gostam de conhaque? Meiapipa de conhaque para quem for o melhor. Vamos! Por que algum de vocês nãoarrebenta uma veia? Quem jogou a âncora no mar… não nos movemos nem umapolegada! Estamos sem vento. Ora, a grama está nascendo no fundo do bote…pelo amor de Deus, o mastro está florescendo. Assim não dá, rapazes! Olho noteutão! Em suma, rapazes, vocês vão cuspir fogo ou não?”

“Oh! Vejam a espuma que ele está fazendo!”, gritou Flask, dançando de lá paracá. “Que corcova!… Oh, vamos ao bife… parece uma tora! Oh, companheiros,força… bolo assado na chapa com mariscos para a ceia, meus jovens… mexilhõesassados com bolinhos… força, força… deve dar uns cem barris… não vamosperdê-la agora… não, oh, não… olho no teutão… oh! Não querem remar por umpudim, meus jovens… que baleia! Que baleia grande! Não gostam deespermacete? Lá se vão três mil dólares, rapazes!… um banco!… um bancointeiro! O banco da Inglaterra!… Ora, vamos, vamos!… o que esse teutão estáfazendo agora?”

Naquele momento, Derick estava a ponto de jogar o abastecedor de lamparinaaos botes que se aproximavam, e também a lata de óleo, talvez com o duploobjetivo de retardar o ritmo de seus rivais, e, ao mesmo tempo, economicamenteacelerando o seu com o ímpeto momentâneo do arremesso para trás.

“Bacalhoeiro grosso!” gritou Stubb. “Força, rapazes, como um bando dedemônios ruivos em cinqüenta mil navios de combate. Que achas, Tashtego? Éscapaz de quebrar a tua coluna em vinte e dois pedaços pela honra de um velhode Gay Head? Que tal?”

“Vou remar como um demônio!”, gritou o índio.Impetuosamente, mas justamente, estimulados pelas provocações do alemão,

os três botes do Pequod então com ele se alinharam quase lado a lado; e, assim

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dispostos, momentaneamente dele se aproximaram. Naquela postura elegante,relaxada e cortês de um decapitador que se aproxima de sua presa, os três oficiaisficaram de pé orgulhosos, ajudando o último remador a empurrar e, vez poroutra, gritando animadamente “Ali está agora! Vamos sentir a brisa desses freixosvelozes! Morte ao teutão! Pra cima dele!”

Mas tão cabal era a vantagem da partida de Derick, que, apesar de todas asbravatas, ele teria sido vitorioso nessa corrida, não houvesse caído sobre ele umjuízo providencial sob a forma de uma caranguejola que fez seu remador do meiocom a lâmina de seu remo. Quando esse parvo desajeitado tentava soltar o seufreixo, e, por conseqüência, o bote de Derick quase virou, com ele bradando aosseus homens com uma fúria poderosa; esse foi um bom momento para Starbuck,Stubb e Flask. Com um brado, deram uma arrancada mortal para a frente, e seencontraram enviesados logo atrás do alemão. Mais um pouco, e todos os quatrobotes corriam na diagonal da esteira contígua da baleia, enquanto estreitando-osde ambos os lados estava a onda de espuma que ela fazia.

Era um espetáculo terrível, lastimável, enlouquecedor. A baleia agora fugiacom a cabeça para fora, soltando diante de si um jato incessante e atormentado;enquanto a sua única e pobre barbatana batia de lado numa agonia apavorada.Ora para um lado, ora para o outro, desviava da rota da sua claudicantedebandada, e, a cada nova onda que se quebrava, mergulhava convulsivamenteno mar, ou virava de lado, apontando para o céu, a sua única barbatana pulsante.Assim também vi um pássaro de asa quebrada fazer círculos imperfeitos eapavorados no ar, tentando em vão escapar de falcões flibusteiros. Mas o pássarotem voz, e com gritos de lamento comunica o seu medo; mas o medo desse vastoe mudo brutamontes marinho ficou encerrado e encantado dentro dele; nãotinha voz, salvo a respiração sufocada do espiráculo, e isso tornava a cenaindizivelmente lastimável; ainda que o seu volume espantoso, a sua mandíbulalevadiça e a cauda onipotente pudessem assustar o homem mais corajoso quedela se compadecesse.

Vendo agora que alguns momentos a mais dariam vantagem aos botes doPequod, Derick, antes de se ver frustrado na caça, resolveu arriscar o que deve terlhe parecido um arremesso muito longo, para não perder a sua últimaoportunidade.

Mal seu arpoador se levantou para o golpe, todos os três tigres – Queequeg,Tashtego e Daggoo –, numa fileira em diagonal, ficaram instintivamente de pé,apontaram as suas farpas ao mesmo tempo; e, atirados por sobre a cabeça doarpoador alemão, seus três ferros de Nantucket cravaram-se na baleia. Vaporesofuscantes de espuma e incandescência! Os três botes, na primeira fúria dacorrida precipitada da baleia, bateram no costado do alemão com tanta força,

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que Derick e o seu arpoador desconcertado foram cuspidos para fora, passandosobre eles as três quilhas velozes.

“Não tenham medo, seus comedores de manteiga”, gritou Stubb, lançando umolhar de passagem para eles; “serão apanhados daqui a pouco… tudo bem… viuns tubarões atrás – cães São Bernardo, conhecem? –, eles acalmam os viajantesaflitos. Hurra! Assim é que se navega. Cada quilha, um raio de sol! Hurra!… Lávamos nós, como três chaleiras de estanho atrás de um puma enlouquecido! Istome faz pensar em amarrar um elefante num tílburi numa planície – faria voar osraios da roda, rapazes, amarrar-se desse modo; e há também o perigo de seratirado para fora, quando se bate num morro! Hurra! É assim que uma pessoa sesente quando visita Davy Jones – uma corrida só para baixo em uma planícieinclinada sem fim! Hurra! Essa baleia leva o correio da eternidade!”

Mas a investida do monstro foi breve. Com um arfar repentino, mergulhou notumulto. Num ímpeto rangente, as três linhas correram em torno ao posto daarpoeira com tanta força que nele cavaram sulcos profundos; enquanto osarpoadores, tão temerosos de que esse mergulho repentino pudesse esgotar alinha, usaram toda a sua força e habilidade dando voltas repetidas na linhafumegante para segurá-la; até que por fim – devido à pressão perpendicular doscontrapesos de chumbo dos botes, cujas três linhas mergulharam no azul do mar– as amuradas das proas ficaram quase no nível do mar, enquanto as três popas seergueram no ar. E quando a baleia parou de mergulhar eles ainda ficaramnaquela postura por algum tempo, temerosos de dar mais linha, embora aposição fosse um tanto instável. Mas, apesar de botes terem sido afundados eperdidos desse modo, é este “agüentar”, como é chamado; este fisgar com farpasafiadas a carne viva do dorso do Leviatã; o que muitas vezes tanto atormenta oLeviatã, e faz com que suba outra vez para enfrentar a lança afiada dos seusinimigos. Contudo, para não falar no perigo da coisa, é duvidoso que esseprocedimento seja sempre o melhor; pois seria razoável presumir que, quantomais tempo a baleia atingida ficasse submersa, mais cansada ficasse. Pois, devidoà sua enorme superfície – num Cachalote adulto pouco menos de dois mil pésquadrados –, a pressão da água é imensa. Todos sabemos como é assombroso opeso atmosférico que nós mesmos suportamos; mesmo aqui, em cima da terra,no ar; como deve ser imenso, assim, o fardo de uma baleia, levando nas costasuma coluna de duzentas braças de oceano! Deve equivaler pelo menos ao peso decinqüenta atmosferas. Um baleeiro certa vez estimou-o como o peso de vintenavios de guerra, com todas as suas armas, provisões e homens a bordo.

Enquanto os três botes permaneciam ali naquele mar que rolava suavemente,contemplando o seu eterno meio-dia azul; e como nenhum gemido ou bramidode qualquer espécie, não, nem mesmo uma ondulação ou bolha subia de suas

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profundezas; qual homem terrestre teria imaginado que, sob aquele silêncio etranqüilidade, se contorcia e se retorcia em agonia o maior monstro marinho?!Da proa não se viam nem oito polegadas de corda perpendicular. Pareceverossímil que o grande Leviatã estivesse suspenso por três linhas finas, como opêndulo de um relógio de corda para oito dias? Suspenso? Pelo quê? Por trêspedaços de madeira. A mesma criatura sobre quem outrora se escreveutriunfalmente: “Encher-lhes-á a pele de arpões? Ou a cabeça de farpas? Se o golpede espada o alcança. de nada vale, nem de lança, de dardo, ou de flecha. Para eleo ferro é palha, e o cobre é pau podre. A seta o não faz fugir; as pedras das fundasse lhe tornam em restolho. Os cacetes atirados são para ele como palha, e ri-se dobrandir da lança”. É esta criatura? Este é ele? Oh! Que aos profetas lhescoubessem insucessos! Pois, com a força de mil coxas em sua cauda, o Leviatãenfiou a sua cabeça nas montanhas do mar para se esconder das lanças doPequod!

Nos raios oblíquos de sol daquela tarde, as sombras que os três botes jogavamsobre a superfície eram tão longas e tão largas que poderiam cobrir metade doexército de Xerxes. Quem sabe dizer como deve ter sido assustador para a baleiaferida ver esses fantasmas enormes pairando sobre a sua cabeça?

“A postos, rapazes! Ela se move”, gritou Stubb, quando as três linhas de súbitovibraram na água, levando distintamente para cima, como se fossem fiosmagnéticos, as palpitações de vida e de morte da baleia, tanto que todos osmarinheiros as sentiram no seu banco. No instante seguinte, liberados em grandeparte da tensão da parte de baixo da proa, de repente, os botes deram um saltopara cima, como acontece numa pista de gelo pequena quando um bando deursos brancos aglomerados é enxotado para o mar.

“Puxem! Puxem!”, gritou Starbuck outra vez; “ela está subindo.”As linhas, das quais no instante anterior não se podia ganhar nem um palmo,

agora eram recolhidas em voltas longas, pingando no fundo dos botes, e logo abaleia fendeu as águas a dois navios de distância dos caçadores.

Os movimentos dela deixavam às claras a sua total exaustão. A maior parte dosanimais terrestres tem umas válvulas, ou comportas, em algumas veias, que,quando feridos, estancam um pouco o sangue para certas direções. Isso não se dácom a baleia; uma de suas peculiaridades é ter uma estrutura inteira de vasossanguíneos sem válvulas, de tal modo que, quando é perfurada por algo tãopequeno quanto a ponta de um arpão, logo se inicia um escoamento mortal doseu sistema arterial; quando este aumenta, em virtude da pressão enorme da águaa grande profundidade, se pode dizer que a vida dela jorra para fora em correntesincessantes. Mas a quantidade de sangue é tão grande, e as suas fontes internassão tão distantes e numerosas, que ela fica sangrando e sangrando por um tempo

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considerável; como um rio, cuja fonte fica nos morros distantes e invisíveis, quecorre durante a seca. Mesmo agora, quando os botes se aproximaram destabaleia, perigosamente perto da cauda que se movia, e as lanças foram atiradas,houve uma sucessão de jatos constantes da ferida recém-aberta, que continuava aborbotar, enquanto o espiráculo natural, na sua cabeça, só jorrava de vez emquando, mas lançando com rapidez no ar o seu vapor assustado. Do respiradouroainda não saía sangue, pois nenhuma parte vital havia sido atingida até aquelemomento. A sua vida, como significativamente a chamam, estava intacta.

Quando os botes a circundaram mais de perto, toda a sua porção superior,grande parte da qual em geral fica submersa, estava bem visível. Seus olhos, oumelhor, os lugares onde antes estavam, podiam ser vistos. Do mesmo modo quesubstâncias estranhas crescem nos olhos dos nós dos carvalhos mais nobres,quando derrubados, assim também nos lugares onde os olhos da baleia haviamestado saíam bulbos cegos, uma comiseração horrível de ser vista. Mas não haviaclemência. Apesar de toda a sua idade, apesar da sua única barbatana e dos seusolhos cegos, ela devia morrer aquela morte horrível, assassinada para iluminar asnúpcias alegres e outras festividades dos homens, e também para iluminar asigrejas solenes que pregam que todos devem ser incondicionalmente inofensivosuns para os outros. Revolvendo-se ainda no seu sangue, por fim, ela expôs umaparte de um tumor ou protuberância, do tamanho de uma tina, bem na base deum dos flancos.

“Um belo lugar”, gritou Flask; “deixem-me espetá-la uma vez ali.”“Basta!”, gritou Starbuck, “não há necessidade disso!”Mas o bem-intencionado Starbuck chegou tarde demais. No momento do

arremesso, um jato inflamado jorrou da ferida cruel, e, incitada por uma angústiainsuportável, a baleia, agora esguichando um sangue espesso, atirou-se veloz,com uma fúria cega, contra a embarcação, espargindo sobre eles e a suasgloriosas tripulações uma chuvarada de sangue coagulado, virando o bote deFlask e destruindo as proas. Foi o seu golpe mortal. Pois, a essa altura, estava tãodesgastada pela perda de sangue, que se afastou impotente da ruína que tinhacausado; virou-se de lado arfando, batendo inutilmente o toco de sua barbatana, eentão girou lentamente, um giro após o outro, como um mundo esvanecente;virou para cima a alvura secreta de seu ventre; estirou-se como um tronco, emorreu. Foi muito triste o último sopro que expeliu. Como se mãos invisíveisextraíssem gradativamente a água de uma fonte poderosa, e com um borbulharmelancólico reprimido a coluna do jato diminuísse, diminuísse até chegar aochão – assim foi o último longo sopro de morte da baleia.

Sem demora, enquanto as tripulações esperavam pela chegada do navio, ocorpo deu sinais de que iria afundar com todos os seus tesouros por pilhar. Por

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ordens de Starbuck, sem delonga, prenderam cordas em lugares diferentes, de talmodo que todos os botes serviram de bóias; e a baleia submersa ficou suspensapelas cordas algumas polegadas abaixo dos botes. Com uma manobra cautelosa,quando o navio se aproximou, a baleia foi transferida para o costado, e ali ficoupresa com firmeza pelas correntes de cauda, pois era evidente que, se não fossesustentada de modo artificial, o seu corpo teria afundado de pronto.

Sucedeu que ao fazer o primeiro corte com o facão encontraram um arpãointeiro oxidado alojado na carne dela, na parte inferior do tumor antes descrito.Mas como fragmentos de arpões são muitas vezes encontrados nos corpos mortosde baleias capturadas com a carne a sua volta em perfeito estado, e semnenhuma protuberância para indicar o seu local, deveria haver um outro motivodesconhecido neste caso, responsável pela ulceração a que me referi. Mas aindamais curioso foi encontrar uma ponta de lança de pedra nela, perto do ferroenterrado, com a carne perfeitamente sadia ao redor. Quem teria atirado aquelalança de pedra? E quando? Podia ter sido atirada por um índio do noroeste, bemantes de a América ter sido descoberta.

Não se pode dizer que outras maravilhas poderiam ter sido procuradasnaquele armário monstruoso. Mas as buscas foram suspensas de súbito por umfato sem precedentes: o navio virou sobre o costado para o mar devido àtendência sempre crescente do corpo a afundar. Contudo, Starbuck, que estavano comando, insistiu até o último instante; insistiu com tanta resolução que, defato, por fim, quando o navio ia mesmo virar se os homens continuassem presosao corpo, naquele momento, deu a ordem de livrar-se da baleia, pois tanta era apressão inerte que exercia sobre as abitas às quais as correntes e os cabos estavampresos, que era impossível soltá-los. Enquanto isso, tudo no Pequod ficouenviesado. Atravessar o convés de um lado ao outro era como subir pelo telhadoíngreme de duas águas de uma casa. O navio gemia e arfava. Várias dasincrustações de marfim da amurada e das cabines saíram dos seus lugares, devidoao deslocamento incomum. Em vão foram trazidos alavancas e pés-de-cabra paramover as correntes inertes, para arrancá-las de qualquer jeito das abitas; naquelemomento, a baleia tinha descido tanto que ninguém mais podia se aproximar dasextremidades submersas, enquanto, a todo instante, toneladas pareciam se somarao volume que afundava, e o navio parecia prestes a ir a pique.

“Espera aí, espera um pouco!”, gritou Stubb para o corpo, “sem essa pressa dosdiabos para afundar! Raios, rapazes, temos que fazer ou buscar alguma coisa. Nãoadianta forçar ali; basta de alavancas, um de vós correi para buscar um livro deorações e um canivete para cortar as correntes grandes.”

“Faca? É isto! É isto!”, gritou Queequeg, e pegou um machado pesado decarpinteiro, debruçou-se sobre uma escotilha, e, do aço para o ferro, começou a

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bater nas correntes mais grossas. Mas poucos golpes foram dados, com muitasfaíscas, quando a pressão excessiva se encarregou do resto. Com um estampidoterrível, todas as amarras foram à deriva: o navio se endireitou, e a carcaçaafundou.

Ora, o afundamento inevitável de alguns Cachalotes recém-mortos é um fatocurioso que ocorre vez ou outra, e que ainda não foi bem explicado por nenhumpescador. Em geral, o Cachalote morto flutua com muita leveza, com o dorso ouo ventre bem acima da superfície. Se as únicas baleias que afundassem dessemodo fossem velhas, magras e esmorecidas, com a gordura reduzida e os ossospesados e reumáticos, então, poder-se-ia dizer com razão que o afundamento écausado pelo peso específico insólito do peixe, decorrente da ausência de matériaflutuante. Mas não é assim. Mesmo as baleias jovens, com saúde perfeita, einfladas de aspirações nobres, que são prematuramente cortadas no florescimentotépido e na primavera da vida, com toda a sua gordura palpitando no corpo,mesmo essas heroínas flutuantes e vigorosas, às vezes, afundam.

Contudo, é preciso dizer que o Cachalote é muito menos sujeito a esse tipo deacidente do que as outras espécies. Para cada Cachalote há vinte baleias francasque afundam. Essa diferença entre as espécies sem dúvida é atribuída em grandeparte à enorme quantidade de ossos da baleia franca, cujas venezianas às vezespesam mais de uma tonelada, mas desse estorvo o Cachalote está livre. Contudo,há casos em que, depois de um intervalo de várias horas ou dias, a baleiaafundada emerge outra vez, mais flutuante do que em vida. Mas o motivo disso éóbvio. Gases se formam dentro dela, fazendo-a inchar até um tamanho espantoso,quando se torna uma espécie de balão animal. Um navio de guerra dificilmenteconseguiria mantê-la submersa nesse caso. Na costa baleeira, no fundo do mar, ounas baías da Nova Zelândia, quando uma baleia franca dá sinais de afundar,algumas bóias são amarradas nela com muita corda, de tal modo que, quando ocorpo afundar, se fica sabendo onde procurá-lo quando subir de novo.

Não foi muito tempo depois do afundamento do corpo que se ouviu um gritodo topo do mastro do Pequod anunciando que o Jungfrau estava baixando osbotes outra vez, embora o único sopro visível fosse o da baleia azul, pertencente àespécie de baleias incapturáveis, devido ao seu impressionante poder de nadar.Não obstante, o sopro da baleia azul é tão semelhante ao do Cachalote quepescadores pouco habilidosos se confundem. Por conseguinte, Derick e os seusmarinheiros, naquele momento, davam caça com valentia à fera inalcançável.Com todas as velas, o Virgem seguiu os seus quatro botes, e desse modo, todosdesapareceram a sotavento, sempre numa caça ousada e esperançosa.

Oh! Muitas são as baleias azuis e muitos são os Dericks, meu amigo.

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82 HONRA E GLÓRIADA PESCA BALEEIRA

Há certas empreitadas em que uma desordem cuidadosaé o método mais eficaz.

Quanto mais mergulho neste assunto da pesca baleeira e faço avançar minhapesquisa até as suas mais remotas fontes, muito mais me impressiona a suagrande respeitabilidade e antiguidade; especialmente quando encontro tantossemideuses, heróis e profetas de todos os tipos, que, de um jeito ou de outro, lheconferiram distinção, sou arrebatado pela idéia de que eu mesmo pertenço,embora como subalterno, a uma muito ilustre confraria.

O audaz Perseu, um dos filhos de Júpiter, foi o primeiro baleeiro; e, pela honraeterna da nossa profissão, seja dito que a primeira baleia atacada pela nossairmandade não foi morta por nenhum motivo sórdido. Aqueles eram temposcavalheirescos da nossa profissão, quando nos armávamos apenas para socorrer osnecessitados, e não para abastecer as lamparinas dos homens. Todos conhecem abela história de Perseu e Andrômeda; como a adorável Andrômeda, a filha de umrei, estava presa a um rochedo à beira-mar, e quando o Leviatã estava a ponto delevá-la embora Perseu, o príncipe dos baleeiros, avançou intrépido, arremessou oseu arpão contra o monstro, e salvou e se casou com a donzela. Foi uma proezaartística admirável, raras vezes realizada pelos melhores arpoadores dos dias dehoje; uma vez que o Leviatã foi morto ao primeiro arremesso. E que ninguémduvide deste conto arqueu, pois na antiga Jope, hoje Jafa, na costa da Síria, emum dos templos pagãos, por muitos séculos, viu-se o esqueleto imenso de umabaleia, que as lendas da cidade e todos os seus habitantes afirmavam ser os ossosdo monstro que Perseu tinha matado. Quando os romanos tomaram Jope, omesmo esqueleto foi levado para a Itália em triunfo. O que parece maisextraordinário, sugestivo e importante nesta história é o seguinte: foi a partir deJope que Jonas se fez ao mar.

Semelhante à aventura de Perseu e Andrômeda – de fato, certas pessoasacreditam que indiretamente dela se origine – é a famosa história de São Jorge eo dragão; cujo dragão eu sustento que era uma baleia; pois em muitas crônicasantigas as baleias e os dragões se confundem de modo estranho, e amiúde setomam uns pelos outros: “És como um leão das águas, e como o dragão do mar”,diz Ezequiel, querendo claramente dizer uma baleia; na verdade, algumas versõesda Bíblia usam essa palavra. Além disso, seria uma diminuição da glória da suaproeza se São Jorge tivesse encontrado apenas um réptil terrestre rastejante, em

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vez de ter lutado contra um monstro das profundezas. Qualquer homem poderiater matado uma serpente, mas somente um Perseu, um São Jorge, um Coffinteriam a valentia de enfrentar bravamente uma baleia.

Não deixemos que essas pinturas modernas nos enganem; pois ainda que acriatura encontrada pelo valoroso baleeiro de outrora esteja representadavagamente com a forma de um grifo, ainda que a batalha esteja pintada na terrae o santo a cavalo, se considerarmos a ignorância enorme daqueles tempos,quando a verdadeira forma da baleia não era conhecida pelos artistas; e seconsiderarmos que, como no caso de Perseu, a baleia de São Jorge deve ter saídodo mar para a praia; e se considerarmos que o animal que São Jorge cavalgavapoderia ser apenas uma foca enorme, ou um cavalo marinho; levando-se tudo issoem conta, não parecerá incompatível com a lenda sagrada, nem com os desenhosmais antigos da cena, interpretar que o assim chamado dragão não é outro senãoo grande Leviatã. De fato, se colocada diante da verdade mais estrita etransparente, essa história se parece com a do ídolo dos filisteus, um peixe, bichoe ave, chamado Dagon, que ao ser colocado diante da arca de Israel, lhe caíram acabeça de cavalo e as duas palmas das mãos, restando apenas o coto ou sua partede peixe. Tal e qual, pois, um dos nossos nobres, mesmo sendo baleeiro, é oguardião tutelar da Inglaterra, e por legítimo direito, nós, arpoadores deNantucket, deveríamos ser alistados na mui nobre Ordem de São Jorge. Por isso,os cavaleiros daquela venerável companhia (nenhum dos quais, ouso dizer,jamais teve de enfrentar uma baleia, como o seu grande patrono) nunca deveriamolhar com desdém para um nativo de Nantucket, visto que, mesmo nas nossasroupas de lã e nas calças de marinheiro, temos mais direito à insígnia de SãoJorge do que eles.

Quanto a admitir Hércules entre nós ou não, isso por muito tempo me deixouna dúvida: pois, embora de acordo com a mitologia grega, esse antigo Crockett eKit Carson, esse executor robusto de grandes feitos tenha sido engolido e expelidopor uma baleia, é discutível se isso o torna um baleeiro. Em nenhum lugar estáescrito que ele lançou um arpão contra o peixe, a não ser, de fato, que o hajafeito de dentro. Não obstante, pode ser considerado um tipo de baleeiroinvoluntário; de qualquer modo, se ele não pegou, foi pego por uma baleia.Reivindico-o pois para o nosso clã.

Mas, segundo as melhores autoridades contraditórias, essa história grega deHércules e a baleia é considerada uma derivação da história hebraica ainda maisantiga de Jonas e a baleia; e vice-versa; certamente são muito parecidas. Sereivindico o semideus, por que não o profeta?

Não são apenas os heróis, santos, semideuses e profetas os incluídos no rol danossa ordem. Nosso grão-mestre ainda não foi nomeado; pois, como os monarcas

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de outrora, as origens da nossa irmandade remontam simplesmente aos própriosgrandes deuses. A história oriental maravilhosa do Sutra deve ser contada, a quenos apresenta o terrível Vixnu, uma das três personalidades da divindade doshindus; que nos apresenta esse divino Vixnu como o nosso Senhor -- Vixnu, quena primeira das suas dez encarnações terrenas distinguiu e santificou a baleiapara todo o sempre. Quando Brama, ou o deus dos deuses, segundo o Sutra,depois de uma das dissoluções periódicas, resolveu recriar o mundo, deu à luzVixnu, para que presidisse a sua obra; mas os Vedas, ou livros místicos, cujaleitura atenta parecia indispensável a Vixnu antes de iniciar a criação, e que,portanto, deviam conter algo na forma de sugestão prática para jovens arquitetos,esses Vedas estavam no fundo do mar; então Vixnu encarnou numa baleia emergulhou nas profundezas das águas para resgatar os volumes sagrados. Pois,então, não era esse Vixnu um baleeiro? Alguém que monta um cavalo não échamado de cavaleiro?

Perseu, São Jorge, Hércules, Jonas e Vixnu! Eis um belo elenco! Que círculo,senão o dos baleeiros, poderia ter um começo desses?

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83 JONAS CONSIDERADOHISTORICAMENTE

Alusões foram feitas ao relato histórico de Jonas e abaleia no capítulo precedente. Ora, certos nativos

de Nantucket não acreditam muito no relato histórico de Jonas e a baleia. Mastambém existiram céticos gregos e romanos que, afastando-se dos pagãosortodoxos do seu tempo, igualmente duvidaram da história de Hércules e abaleia, e de Arion e o golfinho; e, no entanto, o fato de duvidarem dessastradições não fez com que as tradições se tornassem nem um pouquinho menosfactuais, apesar de tudo.

A razão principal para um velho baleeiro de Sag-Harbor colocar em dúvida ahistória hebraica é a seguinte: ele tinha uma daquelas admiráveis Bíblias antigas,enriquecida por ilustrações curiosas e nada científicas; uma delas representava abaleia de Jonas com dois espiráculos na cabeça – uma peculiaridade verdadeiraapenas no caso de uma espécie de Leviatã (a baleia franca e suas variações), comreferência à qual os pescadores têm um adágio: “Um pãozinho de um centavofaria com que engasgasse”, tão pequena é a sua garganta. Mas em relação a isso aresposta de antemão do bispo Jebb está pronta. Diz o bispo que não é necessárioconsiderar que Jonas ficou sepultado no ventre da baleia, mas que ficou alojadopor algum tempo em alguma parte da sua boca. Essa sugestão do bispo parecebastante razoável. Pois, na verdade, a boca da baleia franca poderia acomodarduas mesas de uíste, com todos os jogadores confortavelmente sentados. Épossível, também, que Jonas estivesse abrigado no buraco de um dente; maspensando melhor, a baleia franca não tem dentes.

Outro motivo que Sag-Harbor (ele ficou conhecido por esse nome) apresentoupara a sua falta de crença na história do profeta foi algo que tinha uma relaçãoobscura a propósito do seu corpo encarcerado e dos sucos gástricos da baleia. Mastambém essa objeção cai por terra, pois um exegeta alemão supõe que Jonas serefugiou no corpo flutuante de uma baleia morta – tal como os soldados francesesna campanha da Rússia transformaram os seus cavalos mortos em tendas e searrastaram para dentro delas. Além do mais, outros comentadores continentaisprognosticaram que quando Jonas foi jogado ao mar do navio de Jope, se salvounadando direto para um outro navio próximo, um navio com uma baleia comofigura de proa; e eu acrescentaria que é possível que se chamasse Baleia, comoalgumas embarcações hoje em dia se chamam Tubarão, ou Gaivota, ou Águia.Também não faltam exegetas cultos a opinar que a baleia mencionada no livro de

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Jonas significava apenas um salva-vidas – um saco cheio de ar – para o qual oprofeta ameaçado nadou, e, desse modo, escapou de uma morte aquática.Portanto, o coitado do Sag-Harbor parece ter sido derrotado em tudo. Mas eletinha mais um motivo para a sua descrença. Se bem me lembro, foi o seguinte:Jonas foi engolido pela baleia no mar Mediterrâneo, e, depois de três dias, foivomitado em algum lugar a três dias de viagem de Nínive, uma cidade do Tigre,uma viagem muito mais longa do que três dias de viagem do ponto maispróximo da costa mediterrânea. Como assim?

Mas não havia outro caminho para que a baleia soltasse o profeta tão perto deNínive? Sim. Poderia tê-lo transportado pelo caminho do cabo da Boa Esperança.Mas sem falar da passagem por toda a extensão do Mediterrâneo, e de outrapassagem pelo golfo Pérsico e pelo mar Vermelho, tal suposição implicaria acircunavegação completa da África em três dias, e sem falar nas águas do Tigre,próximas a Nínive, que eram muito rasas para uma baleia nadar. Além disso, essaidéia de Jonas dobrando o Cabo da Boa Esperança numa época tão remota tirariaa honra de Bartolomeu Dias, o seu famoso descobridor, pela descoberta daquelepromontório, transformando a história moderna em mentirosa.

Mas todos esses argumentos tolos de Sag-Harbor apenas demonstravam o seudesmedido orgulho racional – coisa ainda mais repreensível nele, visto que poucosabia além do que aprendera com o sol e o mar. Repito que isso apenasdemonstra o seu orgulho tolo e ímpio e uma rebelião abominável e diabólicacontra o reverendo clero. Pois, para um sacerdote português, essa idéia de Jonas irpara Nínive via cabo da Boa Esperança é tomada como um aumento significativodo milagre todo. E assim foi. Além disso, até hoje, os turcos muito instruídosacreditam no relato histórico de Jonas. E há uns três séculos um viajante inglês,nas velhas Viagens de Harris, nos fala de uma mesquita turca erigida em honra aJonas, na qual havia uma lamparina milagrosa que ardia sem óleo algum.

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84 ALANCEAR

Para fazê-los correr com facilidade e agilidade, os eixos dascarruagens são lubrificados; e com o mesmo propósito alguns baleeiros fazemuma operação análoga em seus botes: engraxam o casco. Tampouco se deveduvidar de que tal procedimento, uma vez que não causa dano algum, possatrazer alguma vantagem significativa; considerando-se que o óleo e a água sãoincompatíveis, e que o óleo é escorregadio, e que o objetivo é fazer o botedeslizar com arrojo. Queequeg acreditava firmemente em lubrificar o seu bote, e,certa manhã, não muito tempo depois que o navio alemão Jungfrau tinhadesaparecido, esmerou-se mais do que nunca nessa tarefa; agachou-se sob ocasco, que estava dependurado de lado, e esfregou a gordura como se com a suadiligência pudesse fazer crescer cabelo na quilha calva da embarcação. Pareciatrabalhar em obediência a um pressentimento particular. Que não ficou sem serjustificado pelos fatos.

Quase ao meio-dia avistaram-se baleias; mas, assim que o navio velejou na suadireção, elas se viraram e fugiram precipitadamente; uma fuga desordenada,como os barcos de Cleópatra em Áctio.

Não obstante, os botes prosseguiram, com Stubb à frente dos outros. Commuito esforço, Tashtego conseguiu por fim cravar uma lança; mas a baleiaatingida, sem nem mergulhar, continuou sua fuga horizontal, com acrescentadapresteza. Tamanha tensão intermitente no arpão cravado, cedo ou tarde,terminaria por extraí-lo. Tornava-se imperativo alancear a baleia fugidia, ouconformar-se em perdê-la. Mas puxar o bote até seu flanco parecia impossível,pois ela nadava depressa e com fúria. O que restava então?

De todos os maravilhosos expedientes e destrezas, prestidigitações e inúmerasoutras sutilezas a que o baleeiro veterano amiúde recorre, nada impressiona maisdo que a bela manobra com a lança, o chamado alancear. Espada pequena ouespada grande, com todos os seus floreios, não se comparam ao alancear. Faz-senecessário apenas com uma baleia que insiste em fugir; a sua característicagrandiosa é a distância estupenda à qual a lança comprida é atirada comprecisão, de um bote que balança e sacode, avançando rapidamente. Tomando-seo aço e a madeira em conjunto, a lança mede dez ou doze pés de comprimento;o cabo é mais leve do que o do arpão, e também o seu material é mais leve:pinho. Tem uma pequena corda chamada calabrote, de considerável extensão,com a qual pode ser puxada de volta à mão depois do arremesso.

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Mas, antes de prosseguir, é importante dizer aqui que, mesmo que o arpãopossa ser lançado do mesmo modo que a lança, isso raras vezes é feito; e, quandofeito, o seu êxito é menos freqüente, por causa do peso maior e do comprimentomenor do arpão em relação à lança, o que, de fato, se constituiu numadesvantagem séria. Portanto, de uma forma geral, deve-se primeiro estar preso àbaleia, antes de alancear.

Olhe para Stubb agora: um homem que devido a sua calma e equanimidadedeliberada e bem-humorada, nas emergências mais terríveis, tinha asqualificações especiais para sobressair ao alancear. Olhe para ele: está de pé naproa oscilante do bote que corre; envolta numa espuma lanosa, a baleiarebocadora está quarenta pés à frente. Empunhando a lança comprida comleveza, olhando duas ou três vezes para a sua extensão, para ver se está bem reta,assobiando, Stubb pega o rolo do calabrote com uma mão, para garantir que aponta livre está segura, e deixa o resto solto. Segurando então a lança compridabem à frente da cintura, ele mira a baleia; quando, apontando para a baleia, eleabaixa com firmeza a extremidade traseira da lança em sua mão, com issolevanta a ponta até que a arma fica bem assentada na palma da mão, quinze pésno ar. Faz lembrar um malabarista equilibrando um cajado no seu queixo. Nomomento seguinte, com um impulso rápido e indescritível, o aço brilhante,fazendo um arco esplêndido no alto, transpõe a distância espumante, e trepida noponto vital da baleia. Em lugar de água gasosa, ela jorra sangue vermelho.

“Isso lhe arrancou o batoque!”, gritou Stubb. “É o 4 de Julho imortal; todas asfontes têm que jorrar vinho hoje! Quisera que fosse o uísque de Orleans, ou umvelho Ohio, ou o indescritível velho Monongahela! Então, Tashtego, meu rapaz,por mim, faria com que levasses uma caneca ao jato e nós beberíamos em voltadele! É, na verdade, meus queridos, faríamos um ponche especial no canal do seuespiráculo ali, e dessa poncheira viva sorveríamos a bebida viva!”

Falando sem parar desse modo alegre, o exímio arremesso é repetido, e a ramavolta ao seu dono, como um cachorro preso na coleira. A baleia agonizantecomeça a se agitar, a linha é afrouxada, e o arremessador, indo para trás, cruza osbraços e, em silêncio, assiste à morte do monstro.

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85 A FONTE

Que por seis mil anos – e ninguém sabe quantos milhões de erasantes – as grandes baleias tenham estado a soprar pelos oceanos, borrifando emistificando os jardins profundos, como tantos regadores e vaporizadores; e que,por séculos, milhares de caçadores estivessem próximos da fonte da baleia,assistindo aos borrifos e esguichos – que tudo isso tenha ocorrido e que, até esteabençoado momento (uma hora, quinze minutos e quinze segundos da tarde, dodia dezesseis de dezembro de 1850 d.C.), ainda seja um problema saber se ossopros são, afinal de contas, de água mesmo ou nada além de vapor – isto é semdúvida algo notável.

Ocupemo-nos, portanto, deste assunto, a par com eventuais aspectosinteressantes. Todos sabem que com a habilidade especial de suas guelras as raçasque têm barbatanas, em geral, respiram o ar que está combinado com oelemento no qual nadam; desse modo, um arenque ou um bacalhau poderiamviver um século, sem nunca ter que pôr a cabeça para fora da água. Mas devido asua estrutura interna característica, dotada de pulmões como os de ser humano, abaleia só pode viver se inalar o ar livre a céu aberto. Daí a necessidade de fazervisitas periódicas ao mundo exterior. Mas não pode de forma alguma respirar pelaboca, pois na sua posição costumeira a boca do Cachalote fica submersa a pelomenos oito pés da superfície; e, além disso, a sua traquéia não tem ligação com aboca. Não, ele só respira pelo espiráculo; e este fica no topo de sua cabeça.

Se digo que para todas as criaturas a respiração é a única função indispensávelà vida, visto que retiram do ar um certo elemento que é, em seguida, colocadoem contato com o sangue e que comunica ao sangue o seu princípio vivificante,não creio incorrer em erro; embora possa estar usando alguns termos científicossupérfluos. Isso posto, segue-se que, se todo o sangue de um homem pudesse serarejado com uma só respiração, ele poderia fechar as suas narinas e não respirarpor algum tempo. Ou seja, ele viveria sem respirar. Por anômalo que pareça, tal éprecisamente o caso da baleia, que vive sistematicamente, de tempos em tempos,uma hora ou mais (quando está no fundo), sem inalar nada, nem mesmo umapartícula de ar, pois, lembre-se, ela não tem guelras. Como assim? Entre ascostelas, e de cada lado da coluna, ela tem um incrível labirinto de Cretaenredado de vasos finos, aletriados, que quando ela submerge se expandem porcompleto com o sangue oxigenado. De tal modo que por uma hora ou mais, amil braças de profundidade, ela leva consigo um abastecimento extra de

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vitalidade, como um camelo que atravessa um deserto sem água carrega umabastecimento extra de líquido em seus quatro estômagos suplementares, parausar no futuro. A existência anatômica desse labirinto é indiscutível; e essasuposição é razoável e verdadeira, e me parece ainda mais convincente quandopenso na obstinação, de outro modo inexplicável, com que o Leviatã solta os jatosde água, como os pescadores dizem. Isso é o que quero dizer. Se não forincomodado, ao surgir na superfície, o Cachalote continua ali por algum tempo,como faz em todas as suas emersões sem incômodos. Suponhamos que fiquedurante onze minutos e solte setenta jatos, ou seja, respire setenta vezes; então,quando subir novamente, terá a certeza de ter as suas setenta respirações outravez, no mesmo espaço de tempo. Ora, se for incomodado depois de respirar umaspoucas vezes e tiver que mergulhar, ficará subindo sempre de novo paraconseguir a quantidade de ar de que necessita. E enquanto não completar assetenta respirações permanece lá embaixo. No entanto, observe que em sujeitosdiferentes esses números são diferentes, mas em qualquer um deles é constante.Ora, por que uma baleia deveria insistir em soltar os jatos na superfície, se nãofosse para reabastecer o seu reservatório de ar antes de descer de vez? É muitoóbvio, então, que a necessidade de subir da baleia a expõe aos riscos fatais dacaçada. Pois nem com um gancho e nem com uma rede se poderia capturar esseimenso Leviatã quando nada a mil braças sob a luz do sol. Não é tanto a tuahabilidade, pois, ó, caçador, mas as grandes necessidades vitais que te garantem avitória!

No homem, a respiração é incessante – uma respiração servindo apenas paraduas ou três pulsações; de modo que para qualquer outra tarefa que tenha defazer, acordado ou dormindo, ele precisa respirar, senão morre. Mas o Cachaloteapenas respira um sétimo, ou um domingo, de todo o seu tempo.

Disse que a baleia só respira por meio do seu espiráculo, e se pudesse dizerque, na verdade, os seus sopros são misturados com água, eu opinaria queteríamos a explicação para o fato de que o seu olfato parece obliterado; pois aúnica coisa nela que corresponde a um nariz é o próprio espiráculo; pois, estandoentupida com dois elementos, não se poderia esperar que tivesse a capacidade desentir cheiro. Mas devido ao mistério do seu sopro – quanto a ser água ou vapor –não se pode chegar a uma certeza absoluta quanto ao principal. Não obstante, écerto que o Cachalote não tem órgãos olfativos. Mas para que precisaria deles?Não há rosas, nem violetas, nem águas-de-colônia no mar.

Além do mais, como a sua traquéia só se abre para o tubo do canal de jato, ecomo esse canal comprido – semelhante ao grande canal Erie – tem uma espéciede comporta (que se abre e se fecha) para reter o ar dentro ou expelir a água parafora, a baleia não tem voz; a menos que você a insulte dizendo que ela murmura

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de um modo tão estranho que é como se falasse pelo nariz. Mas, novamente, oque a baleia teria a dizer? Raras vezes conheci um ser profundo que tivesse algo adizer para este mundo, exceto quando forçado a balbuciar alguma coisa paraganhar a vida. Oh! Que bem-aventurança que o mundo seja um ouvinte tãoexcepcional!

Ora, o canal de esguichar do Cachalote, destinado essencialmente aotransporte do ar, estende-se por vários pés, na posição horizontal, logo abaixo dasuperfície na parte superior da cabeça, e um pouco para o lado; esse canalestranho é muito parecido com um cano de gás no subsolo de uma cidade, aolongo de uma rua. Mas volta a questão de saber se o cano de gás é também umcano de água; em outras palavras, se o sopro do Cachalote é apenas o vapor darespiração exalada, ou se essa exalação é misturada com a água da boca, edescarregada pelo espiráculo. É certo que a boca se comunica de maneira indiretacom o canal de esguicho; mas não se pode provar que isso é feito com opropósito de soltar água pelo espiráculo. Pois a maior necessidade de agir assimseria quando, ao se alimentar, a baleia acidentalmente ingerisse água. Mas aalimentação do Cachalote fica muito abaixo da superfície e ali ele não poderiaesguichar mesmo se quisesse. Além disso, se você olhar de perto, e marcar com orelógio, verá que quando não está sendo incomodado, há uma correspondênciainvariável entre a periodicidade dos jatos e a da respiração.

Mas por que aborrecer alguém com tantos argumentos sobre o assunto? Faleclaro! Você o viu soprar; pois conte como é o seu sopro: não sabe a diferençaentre a água e o ar? Meu caro senhor, neste mundo não é tão fácil estabelecernada sobre as coisas mais simples. Sempre achei que essas coisas simples eram asmais emaranhadas. E, quanto a esse sopro de baleia, você pode estar em pé,dentro dele, e ainda assim não saber com certeza do que se trata.

A parte central do sopro oculta-se na neblina nívea e borbulhante que oenvolve; mas não há como alguém dizer com certeza se a água cai dali, pois,quando se está perto de uma baleia a ponto de ver bem seu sopro, ela se encontrasempre em prodigiosa agitação, e a água jorrando à sua volta. Se nessas ocasiõesvocê achar que viu, de fato, algumas gotas de umidade no sopro, como saber senão são apenas condensações do seu vapor, ou como saber que não são asmesmas gotas alojadas superficialmente na fissura do espiráculo, escareada notopo da cabeça da baleia? Pois mesmo nadando tranqüila no oceano ao meio-dia,numa calmaria, com a sua elevada corcova seca como a de um dromedário nodeserto, sempre leva consigo uma pequena vasilha de água na cabeça, como se vêpor vezes numa rocha, sob um sol ardente, uma cavidade cheia de água dachuva.

Também não é prudente para um caçador demonstrar muita curiosidade em

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relação à natureza do sopro da baleia. Não convém olhar lá dentro, colocar orosto ali. Não se pode ir com o jarro a essa fonte, enchê-lo e ir embora. Poisquando se mantém um contato, mesmo superficial, com as partículas externas evaporosas do jato, o que ocorre com freqüência, a pele arde com febre, devido àacidez daquilo. Conheço uma pessoa que ao ter um contato mais estreito com osopro, não sei se com um objetivo científico ou não, teve a pele do rosto e dobraço descascada. Por isso, entre os baleeiros, o sopro é considerado venenoso:tentam evitá-lo. Mais uma coisa: ouvi falar, e não duvido, que se o jato éesguichado nos olhos você pode ficar cego. A coisa mais sábia que o investigadortem a fazer, ao que me parece, é deixar esse sopro mortal em paz.

Contudo, podemos fazer hipóteses, mesmo se não pudermos prová-las e nemdemonstrá-las. A minha hipótese é a seguinte: o sopro é apenas névoa. Além deoutros motivos, cheguei a essa conclusão estimulado por considerações referentesà enorme dignidade e à sublimidade do Cachalote; não o considero um sercomum ou insípido, visto que é um fato irrefutável ele nunca ser encontrado emáguas pouco profundas ou próximas do litoral; todas as outras baleias o são àsvezes. Ele é ponderoso e profundo. Estou convencido de que da cabeça de todosos seres ponderosos e profundos como Platão, Pirro, o Diabo, Júpiter, Dante, eassim por diante, sempre sai um certo vapor semivisível, quando estãomergulhados em pensamentos profundos. Quando escrevia um pequeno tratadosobre a eternidade, tive a curiosidade de colocar um espelho à minha frente; elogo vi refletida ali uma ondulação curiosa e coleante no ar sobre a minhacabeça. A umidade invariável do meu cabelo, quando mergulhado empensamentos profundos, depois de seis xícaras de chá quente em meu sótão detelhas finas, num meio-dia de agosto, parece um argumento adicional para aminha suposição anterior.

E como cresce com nobreza em nosso conceito o poderoso monstro nebuloso,contemplado a navegar solene as águas calmas do mar tropical; sua cabeçaimensa e suave, coberta por um dossel de vapor, engendrado por suascontemplações incomunicáveis, e esse vapor – como se vê por vezes – glorificadopor um arco-íris, como se o próprio céu houvesse posto o seu selo sobre os seuspensamentos. Pois, como se sabe, os arco-íris não visitam o ar puro; apenas seirradiam no vapor. Assim, através da densa névoa das dúvidas obscuras do meuespírito, vez ou outra surgem intuições divinas, iluminando-me a neblina comum raio celestial. Agradeço a Deus por isso; pois todos têm dúvidas; muitosnegam; mas entre dúvidas e negações, poucos têm ainda intuições. Dúvidas sobretodas as coisas terrenas e intuições de algumas coisas celestiais; essa combinaçãonão faz de ninguém nem crente nem infiel, mas um homem que a ambas estimacom os mesmos olhos.

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86 A CAUDA

Outros poetas trovaram as glórias do doce olhar do antílope, e aplumagem encantadora do pássaro que não pousa jamais; menos celestial, eucelebro uma cauda.

Calculando que a cauda do maior Cachalote começa no ponto em que otronco se afunila até atingir quase a cintura de um homem, apenas a sua partesuperior compreende uma área de pelo menos cinqüenta pés quadrados. O blocosólido e arredondado da raiz divide-se em dois lobos ou palmas grandes, firmes eachatados, que diminuem aos poucos até alcançar menos de uma polegada deespessura. No vértice da cauda, ou junção, os lobos sobrepõem-se um pouco,depois se afastam para os lados, como asas, deixando um espaço grande entre si.Em nenhuma criatura viva as linhas da beleza estão definidas com maisdelicadeza do que nas bordas em meia-lua desses lobos. Na sua maior expansão,numa baleia adulta, a cauda excederá em muito os vinte pés de largura.

O membro inteiro parece um denso leito entretecido de tendões fundidos; masao cortá-lo descobre-se que é feito de três camadas distintas: a superior, a média ea inferior. As fibras da camada superior e da inferior são compridas e horizontais;as da camada média são muito curtas, ziguezagueando entre as camadasexternas. Essa estrutura tríplice, mais do que qualquer outro fator, confere força àcauda. Para o estudioso de antigas muralhas romanas, a camada média forneceum paralelo curioso com a fileira fina de azulejos sempre alternada com aspedras, dessas maravilhosas relíquias dos antigos, e que, sem dúvida, contribuemmuito para a grande resistência da construção.

Mas, como se essa imensa força localizada na cauda tendinosa não bastasse, ocorpo todo do Leviatã está coberto por uma urdidura e contextura de fibras efilamentos musculares, que ao passar ao lado dos lombos, estendendo-se até oslobos, a eles se misturam insensivelmente, aumentando em muito a sua força; detal modo que na cauda o incomensurável vigor da baleia inteira parece estarconcentrado em um só ponto. Se a matéria pudesse ser aniquilada, esse seria omeio.

Nem isso – a sua força assombrosa – consegue comprometer a graciosaflexibilidade de seus movimentos; onde uma desenvoltura infantil serpeia comuma força titânica. Ao contrário, tais movimentos extraem dela a sua beleza maisestarrecedora. A verdadeira força jamais arruína a beleza ou a harmonia, masmuitas vezes a provê; e, em tudo que é imponentemente belo, o vigor se liga ao

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mágico. Eliminem-se os tendões nodosos que parecem sair do mármore daestátua de Hércules e o seu encanto se esvairá. Quando o devoto Eckermannlevantou o lençol de linho que cobria o cadáver nu de Goethe, ficouimpressionado com o tórax imponente do homem, que parecia um arco dotriunfo romano. Quando Michelangelo pinta Deus Pai em forma humana, vejaque força lhe atribui. E por mais que possam revelar do amor divino no Filho asdelicadas, aneladas e hermafroditas pinturas italianas, nas quais a sua idéia foiincorporada com maior sucesso, tão destituídas de qualquer vigor, não sugeremforça, a não ser na forma negativa e feminina da submissão e tolerância, que,como todos sabem, forma a base peculiar das virtudes práticas dos seusensinamentos.

Tal é a elasticidade sutil do órgão de que trato, quer seja agitado porbrincadeira, ou a sério, ou com raiva; em qualquer que seja o humor, as suasflexões são sempre marcadas por uma graça extraordinária. Nisso, não existe mãode fada capaz de superá-la.

Cinco movimentos importantes lhe são peculiares. Primeiro, quando usadacomo nadadeira de propulsão; segundo, quando usada como uma clava numabatalha; terceiro, para varrer; quarto, para bater a água; quinto, ao mergulhar.

Primeiro: sendo a sua posição horizontal, a cauda do Leviatã se comporta demodo diferente das caudas de todas as outras criaturas marinhas. Nunca sedebate. No homem ou no peixe, debater-se é um sinal de inferioridade. Para abaleia, a sua cauda é o único meio de propulsão. Enrolada para a frente como umrolo de pergaminho embaixo do corpo, e então jogando-se depressa para trás, éisso o que dá aquele movimento rápido singular de salto ao monstro quando nadacom fúria. As suas barbatanas laterais servem apenas para pilotar.

Segundo: é significativo que o Cachalote lute contra um outro Cachaloteusando apenas a sua cabeça e mandíbula, e que, no entanto, na luta contra ohomem use, principalmente e com desdém, mais a sua cauda. Ao atacar umbote, afasta a cauda depressa, em curva, e o golpe é desferido quando recua. Sefor dado no ar desobstruído, e, em especial, se cair sobre o alvo, o golpe é, defato, irresistível. Nenhuma costela humana ou bote consegue agüentar. A únicasalvação é evitá-lo; mas se vier de lado por águas que oferecem resistência, então,em parte, devido à leveza do bote e à elasticidade dos materiais, uma costelaquebrada, ou uma ou duas tábuas arrebentadas, ou um corte que precise desutura na lateral, em geral, é o resultado mais grave. Esses golpes lateraissubmersos são tão freqüentes na pesca, que são considerados brincadeiras decrianças. Alguém tira a camisa e tapa-se o buraco.

Terceiro: não posso prová-lo, mas me parece que na baleia o sentido do tato seconcentra na cauda; pois nesse aspecto existe nela uma delicadeza apenas

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igualada pela gentileza da tromba do elefante. Essa delicadeza é mais evidente naação de varrer a água, quando, com uma candura donzelesca, a baleia move a suacauda imensa, com uma certa suave morosidade, de lá para cá, sobre a superfíciedo mar; e, se sentir um fio de barba de um marinheiro, coitado do marinheiro,da barba e de tudo o mais. Que ternura há nesse toque preliminar! Se essa caudativesse algum poder preênsil, eu de pronto pensaria no elefante de Darmonodes,que ia ao mercado de flores e com saudações cordiais oferecia buquês às donzelase lhes acariciava a cintura. Por mais de um motivo, é uma pena que a baleia nãotenha a virtude preênsil na cauda; pois ouvi falar de um outro elefante que, ao seferir durante a luta, virou a sua tromba e extraiu o dardo.

Quarto: seguindo-se furtivamente a baleia na segurança que imagina ter nomeio dos oceanos solitários, pode-se vê-la sem a dignidade do seu vulto imenso, ecomo um gatinho ela brinca no oceano como este se fosse uma lareira. Masmesmo nessa brincadeira percebe-se a sua força. Os lobos enormes da sua caudaerguem-se altos no ar; e, em seguida, batendo na superfície da água, a estrondosaconcussão ressoa por milhas. Quase se pensaria tratar-se de um tiro de canhãodisparado; e, ao reparar na leve espiral de vapor do espiráculo na outraextremidade, pensar-se-ia tratar-se da fumaça do orifício de uma arma.

Quinto: visto que, na posição comum de flutuação do Leviatã, a cauda ficabem abaixo do nível do seu dorso, quando ele está submerso não se pode vê-la;mas, quando está prestes a mergulhar nas profundezas, a cauda toda e pelomenos trinta pés do seu corpo inteiro ficam eretos no ar, e vibram por ummomento até que, mergulhando, ficam invisíveis. Exceto o salto sublime – aindapor ser descrito algures –, esse mergulho da baleia é talvez a cena maisimpressionante que se pode ver em toda a natureza viva. Vinda das profundezasinfinitas, a cauda gigantesca parece tentar arrebatadamente alcançar algo no céusupremo. Assim, em sonhos vi o majestoso Satã avançar a sua enorme garraatormentada desde as chamas do Báltico do Inferno. Mas, ao contemplar taiscenas, tudo depende do seu estado de espírito: se no de Dante, ocorrer-te-ão osdemônios; se no de Isaías, os anjos. De pé, junto ao topo do mastro do meu navio,durante um pôr-do-sol que deixou o céu e o mar vermelhos, vi, certa vez, umbando enorme de baleias no leste indo na direção do sol, e vibrando concertadaspor um momento, com as caudas erguidas. Pareceu-me, na ocasião, que umapersonificação tão grandiosa de adoração aos deuses nunca acontecera antes, nemmesmo na Pérsia, na terra dos adoradores do fogo. Tal como Ptolomeu Filopatortestemunhou sobre o elefante africano, eu dou o meu testemunho sobre a baleia,declarando-a a mais devota das criaturas. Pois, segundo o rei Juba, os elefantes deguerra da Antiguidade amiúde faziam saudações pelas manhãs, com as suastrombas elevadas no mais profundo silêncio.

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A comparação fortuita deste capítulo, entre a baleia e o elefante, no tocante aalguns aspectos da cauda de um e da tromba do outro, não deveria colocar essesdois órgãos opostos em paridade, e muito menos as criaturas às quais pertencemrespectivamente. Pois, assim como o mais forte elefante não passa de um terrierpara o Leviatã, da mesma forma, comparada com a cauda do Leviatã, sua trombaé o talo de um lírio. O golpe mais terrível da tromba de um elefante seria como abatidinha de um leque se comparada com o impacto e o choque desmedidos dacauda ponderosa do Cachalote, que em vários casos arremessaram botes inteiroscom todos os remos e tripulação no ar, do mesmo modo que um malabaristaindiano atira as suas bolas.{a}

Quanto mais penso nessa cauda poderosa, mais lamento a minha poucahabilidade em descrevê-la. Há nela certos gestos que, embora pudessemdignificar a mão de um homem, permanecem totalmente inexplicáveis. Numbando grande, às vezes, esses gestos misteriosos são tão extraordinários queescutei caçadores dizendo que são parecidos com os sinais e símbolos daMaçonaria; que a baleia, de fato, por esses métodos conversa inteligentementecom o mundo. Tampouco faltam outros movimentos do corpo da baleia,estranhos e inexplicáveis para o seu agressor mais experiente. Por mais que adisseque, não consigo ir além da superfície da sua pele; não a conheço, e jamais aconhecerei. Mas se dessa baleia nada sei nem sobre a cauda, como compreendersua cabeça? Ainda mais, como compreender o seu rosto, se rosto ela não o tem?Tu me verás pelas costas, a minha cauda, ela parece dizer, porém a minha facenão se verá. Mas não consigo ver direito o seu traseiro, e por mais que hajaindícios de um rosto, digo e repito, ela não o tem.

{a} Ainda que a comparação entre o volume geral da baleia e do elefante seja absurda, visto que nesseaspecto o elefante está para a baleia mais ou menos como um cachorro está para o elefante, nãoobstante, não faltam alguns pontos curiosos de semelhança, entre eles, o jato. Sabe-se que o elefanteamiúde aspira água ou poeira com a sua tromba e, em seguida, ergue-a, expelindo um jato. [N. A.]

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87 A GRANDE ARMADA

A península comprida e estreita de Malaca, que seestende a sudeste dos territórios da Birmânia, forma a ponta mais meridional detoda a Ásia. Numa linha contínua e prolongada dessa península, estendem-se asilhas de Sumatra, Java, Bali e Timor; as quais, com inúmeras outras, formam umvasto molhe, ou fortificação, que une longitudinalmente a Ásia com a Austrália eque separa o extenso e indiviso oceano Índico dos arquipélagos orientaisespessamente salpicados. Essa fortificação é polvilhada de portos de saída aserviço dos navios e das baleias; dentre os quais se destacam os estreitos de Sondae Malaca. Pelo estreito de Sonda, principalmente, os navios do ocidente comdestino à China emergem nos mares da China.

O pequeno estreito de Sonda separa Sumatra de Java; e situando-se no meio docaminho daquela grande fortificação de ilhas, escorado por aquele íngremepromontório verde, conhecido pelos marinheiros pelo nome de Cabo de Java,parece muito um portão central da entrada de certos impérios amuralhados: econsiderando-se a fortuna inesgotável de especiarias, sedas, jóias, ouro e marfim,que enriquece as mil ilhas daquele oceano oriental, parece uma significativaprovidência da natureza que tais tesouros, pela própria formação da terra,estejam protegidos, ao menos na aparência, ainda que ineficaz, da cobiça domundo Ocidental. As praias do estreito de Sonda não têm as fortalezasdominantes que defendem as entradas do Mediterrâneo, do Báltico e daPropôntida. Diferentemente dos Dinamarqueses, esses Orientais não exigem ahomenagem servil das gáveas arriadas, das procissões intermináveis de navios devento em popa, que, durante séculos, passaram, dia e noite, pelas ilhas deSumatra e Java, carregados com as cargas mais preciosas do ocidente. Mas,embora renunciem a tal cerimonial, não deixam de reivindicar um tributo maissólido.

Desde tempos imemoriais, os paraus piratas dos Malaios, movendo-sefurtivamente pelos esconderijos sombrios e ilhotas de Sumatra, atacavam osnavios que passavam pelo estreito, exigindo cruelmente um tributo com a pontade suas lanças. Devido aos sucessivos castigos sangrentos que receberam denavegadores europeus, a audácia desses corsários diminuiu um pouco, mas, atéos dias de hoje, vez por outra, ainda se ouve contar de navios Ingleses ou norte-americanos que, naquelas águas, foram abordados e pilhados sem remorsos.

Com um vento refrescante e favorável, o Pequod aproximava-se agora daquele

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estreito; Ahab estava determinado a passar por ali até o mar de Java, e de lá ir aonorte, por mares sabidamente freqüentados aqui e ali pelo Cachalote, alcançar acosta das ilhas Filipinas e ganhar a remota costa do Japão, a tempo da grandetemporada de pesca de baleias. Dessa forma, em sua circunavegação, o Pequodpercorreria quase todas as zonas conhecidas da rota do Cachalote no mundo,antes de dirigir-se para a linha do Equador no Pacífico; onde Ahab, apesar damalograda perseguição em todos os outros lugares, contava travar uma batalhacontra Moby Dick, no mar que se sabia mais freqüentado por ela; e numa épocaem que seria razoável presumir encontrá-la ali.

Mas como assim? Nessa busca zonal, Ahab nunca toca a terra? Sua tripulaçãobebe ar? É claro que tem que parar para buscar água. Não! Há muito tempo, osol, em sua itinerância circense, corre dentro de seu círculo ardente e não precisade nenhum sustento exceto o que está contido em si mesmo. Assim é Ahab. Omesmo vale para o navio baleeiro. Enquanto outros cascos estão carregados decoisas estranhas que serão transportadas para cais estrangeiros, o navio baleeiro,vagamundo, não transporta outra carga senão a si mesmo e sua tripulação, suasarmas e privações. Tem o conteúdo de um lago inteiro engarrafado em seu amploporão. Está lastreado com utilidades; sem lingotes de chumbo ou de ferro quenão são utilizáveis. Leva água para alguns anos. Água cristalina de primeira deNantucket, que, depois de navegar por três anos, o nativo de Nantucket noPacífico prefere beber ao fluido salobro, embora recém-trazido em tinas, dearroios do Peru ou da Índia. Eis por que outros navios podem ir e voltar de NovaYork à China, parando em uma vintena de portos, enquanto nesse intervalo onavio baleeiro não avistou um pedaço de terra; e sua tripulação não viu outrohomem senão outros marinheiros em viagem, como eles próprios. De modo que,se lhes trouxessem a notícia de um novo dilúvio, eles apenas responderiam: “Poisbem, rapazes, a arca está aqui!”.

Ora, muitos Cachalotes foram capturados perto da costa oeste de Java, nasproximidades do estreito de Sonda; de fato, a maior parte da zona vizinha era emgeral reconhecida pelos pescadores como um lugar excelente para navegar;assim, à medida que o Pequod se aproximava do cabo de Java, os gajeiros eramcada vez mais chamados e advertidos para que se mantivessem bem atentos. Masembora os penhascos verdes com palmeiras da terra em breve surgissem aestibordo da proa, e com as narinas deleitadas sentíssemos o cheiro de canela noar, nenhum sopro foi visto. Quase desistindo da idéia de encontrar caça por perto,o navio estava perto de entrar no estreito, quando se ouviu o grito costumeirovindo do alto, e logo um espetáculo de esplendor magnífico nos saudou.

Mas diga-se aqui, de antemão, que, devido ao afã incansável com que nosúltimos tempos os Cachalotes foram perseguidos pelos quatro oceanos, em vez de

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nadar quase invariavelmente em pequenos grupos isolados, como outrora, agorasão encontrados amiúde em bandos extensos, compreendendo às vezes umamultidão tão grande, que se poderia pensar que várias nações de Cachalotesjuraram respeitar uma liga e pacto solene de assistência e proteção mútua.Devido a essa aglomeração de Cachalotes em caravanas tão grandes, pode-seagora navegar por semanas e meses a fio, mesmo nas melhores regiões decruzeiro, sem avistar um único sopro; e então, de súbito, ser saudado pelo quepor vezes parecem milhares e milhares deles.

Às claras, dos dois lados da proa, a uma distância de duas ou três milhas, eformando um grande semicírculo que abrangia metade da linha do horizonte,uma corrente de sopros contínuos de baleias brincava no alto e resplandecia aocéu do meio-dia. Ao contrário dos jatos duplos retilíneos e perpendiculares daBaleia Franca, os quais, ao se dividir no topo, caem em dois ramos, como osgalhos fendidos de um salgueiro, o sopro único e inclinado para a frente doCachalote apresenta-se como um arbusto espesso e encaracolado de brumabranca, que sobe e desce sem parar a sotavento.

Do convés do Pequod, então, quando este subia no alto de uma colina do mar,essa multidão de sopros vaporosos, cada um deles ondulando no ar, e através deuma atmosfera matizada por uma névoa azulada, parecia a miríade de chaminéscalorosas de uma densa metrópole, vista numa balsâmica manhã de outono porum cavaleiro do alto de um cume.

Assim como os exércitos em marcha que ao se aproximar de um desfiladeirohostil nas montanhas aceleram a marcha, ansiosos por deixar para trás apassagem perigosa, e voltar a se espalhar com relativa segurança na planície;aquela imensa frota de baleias parecia acelerar apressada através do estreito;contraindo aos poucos as asas do semicírculo, e nadando em frente, num centrosólido, mas ainda em forma de meia-lua.

Desfraldando todas as velas, o Pequod as seguia; os arpoadores seguravam assuas armas e gritavam animados das proas de seus botes. Se o vento continuasseassim, não tinham dúvidas de que, perseguida através do estreito de Sonda, aimensa frota mal chegaria aos mares orientais e testemunharia a captura demuitos de seus membros. E quem saberia dizer se, naquela caravana reunida, aprópria Moby Dick não poderia estar nadando temporariamente, como o elefantebranco sagrado no cortejo da coroação dos Siameses! Assim, com cutelo sobrecutelo, velejamos, com os Leviatãs à nossa frente; quando, de repente, se ouviu avoz de Tashtego, chamando a nossa atenção para alguma coisa em nosso rastro.

Equivalente à meia-lua diante de nós, vimos outra à ré. Parecia formada devapores brancos isolados, subindo e descendo como os sopros das baleias; só quenão iam e voltavam por completo; pois pairavam sem desaparecer por fim.

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Ajustando a luneta a essa visão, Ahab virou-se depressa no orifício de sua perna depau e gritou: “Para cima, preparai as roldanas e os baldes para molhar as velas!Malaios, meu senhor, atrás de nós!”.

Como se espreitassem já havia muito tempo por detrás do promontório, atéque o Pequod adentrasse bastante pelo estreito, os patifes asiáticos agora nosperseguiam ardorosamente, para compensar a demora de sua excessiva cautela.Mas quando o Pequod, veloz, com um vento fresco a conduzi-lo, também corriacom ardor; que gentileza a desses pardos filantropos em nos ajudar a acelerar aperseguição de nossa escolha – meros estafins e esporas para o navio, eis o queforam. Com a luneta embaixo do braço, Ahab percorria o convés de cima a baixo;na ida, olhando para os monstros que ele perseguia, e, na volta, para os piratassanguinários que o perseguiam – parecia absorto em conjecturas sobre o assunto.E quando lançou um olhar acima das paredes verdes do desfiladeiro de águasonde o navio então velejava, e pensou que através daquele portão se estendia oroteiro de sua vingança, e considerou que através do mesmo portão estava agoraperseguindo e sendo perseguido rumo ao seu final fatídico; e não apenas isso,mas um bando selvagem de piratas sem remorsos e desumanos demônios ateusincitavam-no com suas imprecações infernais; quando todos esses pensamentoslhe passaram pelo cérebro, o semblante de Ahab tornou-se lúgubre e franzido,como a praia de areia escura depois de atormentada por uma maré turbulenta,que não consegue, contudo, arrastá-la do lugar.

Tais pensamentos, porém, atormentavam poucos membros da ávidatripulação; e quando, após deixar os piratas cada vez mais para trás, o Pequod porfim vislumbrou o verde vívido da Ponta de Cockatoo, do lado de Sumatra,emergindo, por fim, nas águas abertas do outro lado; naquele momento, osarpoadores pareciam mais lamentar que as céleres baleias houvessem se afastadodo navio do que se alegrar que o navio houvesse se afastado dos Malaios. Mas,seguindo sempre no rastro das baleias, estas por fim pareceram perder o ritmo;aos poucos, o navio se foi aproximando; e, quando o vento então diminuiu, foidada a ordem para saltarem aos botes. Mas assim que o bando, por algumprodigioso instinto do Cachalote, percebeu as três quilhas no seu encalço –embora ainda uma milha atrás –, uma vez mais se apurou, e formando fileirascerradas e batalhões, de modo que todos os seus sopros pareceram filascintilantes e compactas de baionetas, moveu-se com velocidade redobrada.

De camisetas e de ceroulas, lançamo-nos ao freixo dos nossos remos, e depoisde fazer força por várias horas estávamos quase desistindo da caça, quando asbaleias, numa hesitação generalizada, deram sinais de que estavam, por fim, soba influência daquela estranha perplexidade da indecisão inerte, que ospescadores, quando a percebem nas baleias, dizem que estão sarapantadas.{a} As

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compactas fileiras marciais em que haviam nadado, depressa e comdeterminação, até ali, agora se desfaziam numa balbúrdia desmedida; e, como oselefantes do rei Poro na batalha da Índia contra Alexandre, pareciamensandecidos de consternação. Espalhavam-se em todas as direções, formandovastos círculos irregulares, nadando sem rumo de um lado para o outro, e os seussopros espessos e curtos demonstravam claramente estarem confusas de pânico.Isso ficava ainda mais estranhamente demonstrado por algumas dentre elas que,estando completamente paralisadas, flutuavam indefesas como naviosdespedaçados quase a pique. Se esses Leviatãs fossem um simples rebanho deovelhas perseguidas no pasto por três lobos ferozes, não teriam demonstradomais horror. Mas essa timidez eventual é uma característica de quase todas ascriaturas que vivem em rebanhos. Embora formem manadas de dezenas demilhares, os búfalos do oeste, com as suas jubas de leão, fogem quando vêem umcavaleiro solitário. Seres humanos também são testemunhas de que, quandoaglomerados no aprisco da platéia de um teatro, ao menor sinal de alarme defogo, logo começa o corre-corre em busca das saídas, empurrando, pisoteando,apertando e atirando uns aos outros à morte. Melhor, portanto, é refrear todo oespanto diante de baleias estranhamente sarapantadas, pois não existe insensatezde animal algum da terra que não seja infinitamente superada pela loucura doshomens.

Embora muitas das baleias, como foi dito, se encontrassem em violentacomoção, deve-se dizer que, como um todo, o bando nem avançava nemretrocedia, mas permanecia coletivamente no mesmo lugar. Como é o costumenessas ocasiões, os botes logo se separaram, cada um se dirigindo para uma baleiasozinha à margem do bando. Dentro de uns três minutos, o arpão de Queequegfoi atirado; o peixe atingido lançou em nossos rostos um vapor que cegava, e,ligeiro feito a luz, arrastou-nos arrebatadamente para o bojo do bando. Ainda quetal movimentação por parte da baleia atingida sob tais circunstâncias não seja demodo algum sem precedentes; e quase se possa antecipar que isso vá ocorrer; issorepresenta, no entanto, uma das vicissitudes mais perigosas da pescaria. Pois,quando o monstro veloz te arrasta cada vez mais para o frenético cardume, dásadeus à vida circunspecta e passas a existir apenas numa turbação delirante.

Enquanto a baleia, cega e surda, arremetia para a frente, como se pela força davelocidade pudesse livrar-se do férreo parasita preso às costas; e como nós, assim,fizéssemos um talho branco no mar, por todos os lados ameaçados, enquantovoávamos, pelas criaturas ensandecidas nadando de um lado para o outro à nossavolta; nosso bote sitiado parecia um navio cercado por ilhas de gelo numatempestade, lutando para conduzir-se através de complicados canais e estreitos,sem saber em que momento ficaria preso ou seria esmagado.

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Mas, desassombrado, Queequeg nos conduzia com virilidade; ora desviandodesse monstro logo à frente em nossa rota; ora se afastando daquele, cuja caudaenorme se erguia acima de nossas cabeças, enquanto todo o tempo Starbuckficava de pé na proa, com a lança na mão, espetando qualquer baleia que surgisseem nosso caminho com lances curtos, pois não havia tempo para longosarremessos. Tampouco os remadores ficaram muito parados, embora estivessemdispensados naquele momento de seu mister usual. Ocuparam-se principalmenteda parte dos gritos. “Fora do caminho, comodoro!”, gritou um deles para umdromedário enorme que subiu de repente à superfície, e, por um instante,ameaçou nos afundar. “Abaixa essa cauda!”, gritou um segundo para outra baleia,que, perto do nosso costado, parecia estar se refrescando calmamente com suaprópria extremidade em leque.

Todos os botes baleeiros carregam consigo curiosos artefatos, originalmenteinventados pelos índios de Nantucket, chamados druggs. Dois quadrados espessosde madeira do mesmo tamanho, apertados com força um contra o outro, de talmodo que cruzam os veios um do outro em ângulos retos; uma linha de tamanhoconsiderável é presa ao centro deste bloco, e com a outra ponta se faz um laçopara que possa ser presa depressa a um arpão. Principalmente com as baleiassarapantadas, usa-se esse drugg. Pois então há mais baleias à sua volta do que sepode caçar de uma vez. Mas Cachalotes não são encontrados todos os dias;portanto, tenta-se matar tantos quantos for possível. E, se não for possível matá-los todos de uma vez, deve-se feri-los, para se poder matá-los depois, com calma.Eis por que, nessas ocasiões, o drugg se faz necessário. Nosso bote tinha três. Oprimeiro e o segundo foram arremessados com êxito, e vimos as baleias fugindoatordoadas, acorrentadas pela enorme resistência lateral dos druggs a reboque.Estavam confinadas como criminosos com a corrente e a bola. Mas ao atirar oterceiro à água, na hora de jogar o volumoso bloco de madeira, este se prendeusob um dos assentos do bote, e num instante arrancou-o e o levou embora,fazendo com que o remador caísse sentado no fundo do bote, quando o assentodeslizou por debaixo dele. O mar entrou pelos dois lados das tábuas quebradas,mas enfiamos duas ou três ceroulas e camisetas ali, interrompendo o vazamentopor algum tempo.

Teria sido quase impossível atirar esses arpões com druggs se, à medida queadentrávamos o rebanho, o ritmo de nossa baleia não tivesse diminuído muito;além disso, ao nos afastarmos cada vez mais da circunferência da comoção, omedonho mistifório pareceu abrandar. De tal modo que, por fim, quando o arpãonum solavanco se soltou, e a baleia que nos rebocava desapareceu na lateral;devido à diminuição da força no momento da separação, deslizamos por entreduas baleias até o próprio coração do baleial, como se houvéssemos descido por

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um rio da montanha até um lago sereno no vale. Ali, as estrondosas tempestadesdas barrancas entre as baleias mais externas eram ouvidas mas não sentidas.Nesse espaço central, o mar apresentava aquela superfície lisa como cetim,chamada de remanso, produzido pelo vapor sutil expelido pela baleia em seuhumor mais sereno. Sim, estávamos agora naquela encantada tranqüilidade quedizem espreitar no cerne de toda comoção. E na desassossegada distância aindaassistimos ao tumulto dos círculos concêntricos mais externos e vimos sucessivosbaleais, de oito ou dez baleias cada um, girando depressa, feito múltiplasparelhas de cavalos num picadeiro; e tão próximas, ombro a ombro, umas dasoutras, que um titânico cavaleiro de circo poderia facilmente arquear as pernassobre as do meio e cavalgar sobre seus dorsos. Dada a densidade das baleias querepousavam ali, imediatamente rodeando o eixo engolfado do bando, nenhumapossibilidade de fuga se nos apresentava. Precisávamos esperar por uma brechanaquela parede viva que nos confinava; a parede que nos admitira apenas paranos encerrar. Mantidos no centro do lago, éramos por vezes visitados por fêmeas efilhotes pequenos e dóceis; mulheres e crianças dessa hoste afugentada.

Ora, incluindo os espaçosos vazios ocasionais entre os rodopiantes círculosexternos, inclusive os espaços entre os vários baleais de cada um daquelescírculos, a área total dessa confluência, compreendendo toda a multidão, deviaconter pelo menos duas ou três milhas quadradas. De qualquer modo – embora,de fato, tal verificação, em tal situação, pudesse ser enganosa –, do nossopequeno bote avistávamos sopros que pareciam ir até a borda do horizonte.Menciono essa circunstância pois, como se as fêmeas e os filhotes tivessem sidotrancados de propósito nesse redil mais interno; e como se toda a extensão dorebanho até aqui os houvesse impedido de saber o motivo exato da sua parada;ou talvez ainda por serem tão jovens, tão pouco sofisticadas, e em tudo inocentese inexperientes; fosse qual fosse o motivo, essas baleias menores – vez por outravindo da borda do lago até nosso bote refreado – demonstravam confiança edestemor extraordinários, ou, ao menos, um pânico imóvel e deslumbrado diantedo qual era impossível não se maravilhar. Como cães domésticos, vinham noscheirar, subindo até as amuradas, tocando-as; até quase parecer que uma certamágica os havia domesticado. Queequeg afagou as suas frontes; Starbuck coçou-lhes o dorso com a sua lança; mas temendo as conseqüências, por ora, absteve-sede lançá-los.

Muito abaixo desse maravilhoso mundo da superfície, um outro universoainda mais estranho se descortinava diante de nós quando olhávamos pelocostado. Pois, suspensas naqueles subterrâneos aquáticos, flutuavam formas debaleias que amamentavam seus filhotes, e outras que, pelo tamanho imenso dacintura, pareciam que em breve se tornariam mães. O lago, conforme sugeri, até

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uma profundidade considerável, era extraordinariamente transparente; e como osbebês humanos quando mamam olham calma e fixamente para longe do peito,como se levassem duas vidas diferentes ao mesmo tempo; e, conquanto sorvamalimento mortal, ainda assim se deleitam espiritualmente com algumareminiscência extraterrena; assim também os bebês dessas baleias pareciam olharna nossa direção, mas não para nós, como se não passássemos de pedaços desargaço aos seus olhos recém-nascidos. Flutuando ao lado deles, as mães tambémpareciam calmamente nos observar. Um desses bebês, que por alguns estranhossinais mal parecia ter um dia de vida, media cerca de quatorze pés decomprimento e uns seis de diâmetro. Era um pouco travesso; embora o seu corponão parecesse ainda ter se recuperado da maçante posição que ocupararecentemente na bolsa materna; onde, da cauda até a cabeça, pronto para o saltofinal, a futura baleia jaz encurvada como um arco tártaro. As delicadas nadadeiraslaterais e os lobos de sua cauda ainda conservavam fresca a aparência franzida eenrugada das orelhas de um bebê recém-chegado de regiões distantes.

“Corda! Corda!”, gritou Queequeg, olhando sobre a amurada; “prende ela!Prende ela!… quem pôs corda? Quem acertou?… duas baleias: uma grande, outrapequena!”

“Que é que há, homem?”, gritou Starbuck.“Olhaqui”, disse Queequeg apontando para baixo.Como quando um Cachalote ferido, depois de soltar da tina milhares de

braças de corda; como, após um mergulho profundo, volta à tona e mostra alinha enrolada flutuando para cima, fazendo espirais no ar; assim via agoraStarbuck uma espiral comprida do cordão umbilical de Madame Leviatã, peloqual a jovem cria parecia atada à fêmea. Não raro nas rápidas vicissitudes dacaça, essa linha natural, com a extremidade materna solta, enrola-se com a decânhamo, de tal modo que o filhote fica preso. Alguns dos segredos mais sutisdos mares pareceram se nos revelar nesse lago encantado. Nós vimos os amoresdo jovem Leviatã nas profundezas.{b}

E assim, embora cercadas por círculos justapostos de consternação e terror,essas inescrutáveis criaturas do centro se dedicavam livre e desimpedidamente àsmais pacíficas atenções; sim, serenamente se regalavam em flertes e deleites. Masmesmo assim, no proceloso Atlântico do meu ser, sempre no íntimo espaireço emmuda calma; e, enquanto planetas ponderosos de dor incessante revolteiam àminha volta, bem lá no fundo e bem lá dentro continuo a me banhar na eternabrandura do gozo.

Entrementes, como permanecíamos em transe, alguns súbitos espetáculosfrenéticos na distância demonstravam a atividade dos outros botes, aindaocupados em atirar os druggs nas baleias das bordas do rebanho; ou

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possivelmente fazendo a guerra dentro do primeiro círculo, onde o espaçoabundante e esconderijos convenientes lhes eram concedidos. Mas a visão dasbaleias enfurecidas, atingidas pelos druggs, atirando-se às cegas de um lado paraoutro, atravessando os círculos, não era nada comparada com o que por fim seapresentou aos nossos olhos. Às vezes, quando presos a um Cachalote mais forte ealerta do que o normal, costuma-se tentar paralisá-lo, como foi o caso, dividindoou mutilando o seu gigantesco tendão da cauda. Isso é feito atirando-se um facãode cabo curto, ao qual se prende uma corda para puxá-lo de volta. Uma baleiaferida (como soubemos depois) nessa parte, mas não de modo eficaz, conforme sedemonstrou, desvencilhou-se do bote, levando consigo metade da ostaxa; e naextraordinária agonia do ferimento, atirava-se agora nos círculos revoluteantescomo Arnold, o desesperado cavaleiro solitário, na batalha de Saratoga, semeandohorror aonde quer que fosse.

Mas por mais atroz que fosse o ferimento dessa baleia, e um espetáculoassustador o bastante, de qualquer modo; contudo o horror característico queparecia despertar no resto do rebanho era devido a um fato que, de início, adistância não nos permitira perceber. Mas por fim percebemos que, por um dosacasos inimagináveis da pesca, esta baleia havia se enroscado na ostaxa querebocava; também havia fugido com o facão cravado nela; e como a extremidadesolta da corda presa à arma se prendera na ostaxa, que se lhe enrolara em tornoda cauda, a própria lâmina da lança se lhe soltara da carne. De modo que,atormentada até à loucura, se agitava agora na água, dando golpes violentos coma sua cauda flexível, atirando a lâmina afiada ao seu redor e ferindo e matando assuas próprias companheiras.

Esse caso terrível pareceu acordar em todo o bando o seu pavor estático.Primeiro, as baleias que formavam a margem do nosso lago começaram a sejuntar um pouco, esbarrando umas nas outras, como que erguidas por longínquasondulações extenuadas; em seguida o próprio lago começou a engrossar e a seagitar; os leitos nupciais submarinos e os quartos das crianças sumiram; emórbitas cada vez mais contraídas, as baleias dos círculos centrais começaram anadar em grupos mais densos. Sim, a prolongada calmaria se despedia. Logo seouviu um zumbido baixo e crescente; e então, como massas tumultuosas de gelodo grande rio Hudson quando se quebram na primavera, toda a hoste de baleiasveio desmoronar no centro, como se todas quisessem empilhar-se numamontanha comum. No mesmo instante, Starbuck e Queequeg trocaram delugares; e Starbuck assumiu a popa.

“Remos! Remos!”, sussurrou com intensidade, pegando o leme, “pegai vossosremos e segurai vossas almas, agora! Meu Deus, rapazes, preparai-vos! Empurraessa aí, Queequeg… aquela baleia!… espeta-a!… atinge-a! Levantai-vos… levantai-

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vos, ficai assim! Pulai, rapazes… força, rapazes, sem ligar para os dorsos… passaipor cima!… por cima!”

O bote estava espremido naquele momento entre dois enormes vultos negros,deixando um Dardanelos estreito entre as suas extensões. Mas com um esforçodesesperado alcançamos, por fim, uma abertura temporária; aproveitamosdepressa a oportunidade, olhando com atenção, ao mesmo tempo, procurandooutra saída. Depois de muitas escapadas por um fio, por fim deslizamos depressapara o que até havia pouco era um dos círculos externos, agora atravessado detodos os lados por baleias ao acaso, atraídas violentamente para o centro. Osalvamento fortuito se deu pela perda do chapéu de Queequeg. Ele, junto àamurada para espicaçar as baleias fugitivas, tivera o chapéu arrancado da cabeçapelo redemoinho feito no ar pela agitação súbita de um par de caudas imensasbem de perto.

Desordenado e tumultuado, o pânico universal que se via não tardou a seresolver por si próprio no que pareceu um movimento sistemático; pois, tendo-sejuntado num único corpo denso, por fim, as baleias recomeçaram a sua fuga paraa frente em velocidade redobrada. Era inútil continuar a persegui-las; mas osbotes ainda se demoraram no rastro delas, para apanhar as atingidas pelos druggsque ficassem para trás, e também para amarrar uma que Flask havia matado emarcado. O marcador é o mastro de uma bandeira, dois ou três dos quais sãolevados em todos os botes; e, quando há mais caça disponível, são cravadosverticalmente no corpo flutuante da baleia morta, tanto para marcar o lugar ondeela está no mar, como para sinalizar a posse, caso botes de um outro navio seaproximem.

O resultado dessa descida de botes foi ilustrativo de um dizer perspicaz dospescadores: muita baleia, pouca pesca. De todas as baleias atingidas pelos druggs,apenas uma foi capturada. O resto conseguiu escapar por ora, mas, comoveremos logo adiante, até serem capturadas por outro navio que não o Pequod.

{a} To gally, ou gallow, é amedrontar excessivamente, perturbar de medo. É uma antiga palavra saxônica.Aparece uma vez em Shakespeare:

“The wrathful skiesGallows the very wanderers of the dark,And make them keep their caves.”

[Os céus iracundos/Sarapantam até os errantes das trevas,/E os fazem ficar nas grutas.]

Rei Lear, Ato III, cena II.

No uso comum em terra firme, a palavra é hoje totalmente obsoleta. Quando um homem cortês da terraescuta-a de um pobre nativo de Nantucket, tende a entendê-la como uma selvageria própria debaleeiros. O mesmo sucede com outras vigorosas palavras saxônicas deste tipo, que emigraram para os

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rochedos da Nova Inglaterra com a nobre pujança dos antigos emigrantes ingleses na época doCommonwealth. Assim, algumas das melhores e mais distantes palavras advindas dos ingleses – osetimológicos Howards e Percys – estão ora democratizadas, ou melhor, plebeizadas, por assim dizer, noNovo Mundo. [N. A.]

{b} O Cachalote, como as outras espécies de Leviatãs, mas diferentemente da maioria dos outros peixes, sereproduz indistintamente em qualquer estação; após uma gestação que provavelmente se pode fixar emnove meses, produz apenas uma cria por vez; embora, em alguns poucos casos conhecidos, dando à luzum Esaú e Jacó – contingência que atende amamentando com duas tetas situadas, curiosamente, uma decada lado do ânus; os próprios seios, no entanto, estendem-se um pouco acima dali. Quando, por acaso,essas partes preciosas da baleia lactante são cortadas pela lança do caçador, o leite e o sangue que corremda mãe concorrem para tingir o mar por dezenas de jardas. O leite é muito doce e nutritivo; já foiexperimentado pelo homem; deve ficar bom com morangos. Quando transbordam de mútua estima, asbaleias encomendam-se more hominum [à maneira dos homens]. [N. A.]

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88 ESCOLAS E MESTRES

O capítulo anterior foi uma explicação de umamultidão imensa, ou rebanho de Cachalotes, e também foram mencionadas ascausas possíveis dessas grandes aglomerações. Ora, embora às vezes taismultidões sejam encontradas, até os dias de hoje, como vimos, pode-se emalgumas ocasiões observar pequenos bandos isolados, de vinte a cinqüentaindivíduos. Tais grupos são conhecidos por escolas. Em geral, são de dois tipos: osconstituídos quase que só por fêmeas e os que reúnem apenas machos jovens evigorosos, ou touros, como são conhecidos informalmente.

A escoltar cavalheirescamente o cardume de fêmeas, vê-se sempre um machoadulto, mas não velho; o qual, ao menor sinal de alarme, revela sua galanteriaindo para a retaguarda, para dar cobertura à fuga das senhoras. Na verdade, essecavalheiro é um voluptuoso Otomano, que nada pelo mundo das águasacompanhado de todos os estímulos e carícias de um harém. O contraste entreesse Otomano e as suas concubinas é notável; pois ele é sempre de enormesproporções leviatânicas, ao passo que as damas, mesmo quando adultas, não têmnem um terço do volume de um macho médio. Em comparação, elas são de fatodelicadas; e ouso afirmar que suas cinturas não excedem meia dúzia de jardas.Não obstante, não se pode negar que em geral elas sejam hereditariamente enbon point.

É curiosíssimo observar esse harém e o seu sultão em suas indolentesperambulações. Como janotas, estão sempre agitados, numa desocupada busca dediversão. Pode-se encontrá-los na linha do Equador por ocasião do plenodesabrochar da temporada de alimentação, talvez recém-chegados, depois depassar o verão nos mares setentrionais, burlando o cansaço e o calor desagradáveldo verão. Depois de terem passeado pelo Equador por algum tempo, partem paraas águas Orientais, na iminência da estação fresca, e assim evitam a outratemperatura exagerada do ano.

Quando avança serenamente em suas viagens, se alguma visão suspeita ouestranha se lhe depara, meu Senhor Cachalote mantém olhos atentos à suainteressante família. Se um jovem Leviatã insolente vier naquela direção semautorização e tomar a liberdade de se aproximar com intimidade de alguma dasdamas, com que fúria prodigiosa o paxá o ataca e o expulsa dali! Seria ótimomesmo se fosse permitido aos jovens libertinos sem princípios como ele invadir asantidade da bem-aventurança familiar; no entanto, não importa o que o paxá

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faça, não consegue manter o mais notório Lotário longe de seu leito; pois, ai!,todos os peixes se deitam juntos. Como em terra, as damas muitas vezesprovocam os duelos mais terríveis entre seus admiradores rivais; exatamentecomo ocorre com as baleias que às vezes travam batalhas mortais, e tudo poramor. Esgrimem com as compridas mandíbulas inferiores, que às vezes setravam, e assim, combatem pela supremacia, como os alces quando entrelaçamos seus chifres numa justa. Não poucas são capturadas com as cicatrizesprofundas desses encontros: sulcos na cabeça, dentes quebrados, barbatanasfatiadas e, em alguns casos, mandíbulas torcidas ou deslocadas.

Mas, supondo que o invasor da bem-aventurança doméstica resolva fugir àprimeira investida do senhor do harém, então é muito divertido observar essesenhor. Insinua-se gentilmente, com o seu vulto enorme no meio delas e alifesteja por algum tempo, na vizinhança sedutora do jovem Lotário, como opiedoso Salomão prestando seu culto devoto, em meio às suas mil concubinas.Caso outras baleias estejam à vista, raras vezes os pescadores dão caça a umdesses grão-turcos; pois os grão-turcos são muito pródigos em força e têm,portanto, pouca untuosidade. Quanto aos filhos e filhas que engendram, poisbem, esses filhos e filhas devem cuidar de si mesmos; no máximo, contando coma ajuda materna. Pois, como outros amantes onívoros e errantes, de quem aqui sepoderia dizer os nomes, ao meu Senhor Cachalote não apraz o quarto dascrianças, embora lhe apraza a alcova; e assim, por ser um grande viajante,espalha bebês anônimos pelo mundo; todos exóticos. Na hora propícia, contudo,quando declina o ardor da juventude; quando os anos e as depressões aumentam;quando a reflexão acarreta pausas solenes; em suma, quando a lassidãogeneralizada toma conta do turco saciado; então um amor pelo descanso e pelavirtude suplanta o amor pelas donzelas; nosso Otomano entra no estágio daimpotência, do arrependimento e das repreensões da vida, e repudia e dispersa oharém, tornando-se uma alma exemplar e rabugenta, e segue sempre sozinhopelos meridianos e paralelos, fazendo as suas orações e prevenindo os jovensLeviatãs contra os seus erros de amor.

Ora, como o harém de baleias é chamado pelos pescadores de escola, assim oamo e senhor dessa escola é conhecido tecnicamente por mestre. Não é portantomuito próprio, embora deveras irônico, que, depois de freqüentar a escola, ele vápara o exterior apregoar não o que aprendeu, mas o desatino ali contido. O seutítulo, mestre, poderia derivar naturalmente do nome dado ao harém, mas háconjecturas de que o homem que assim batizou o Cachalote Otomano teria lidoas memórias de Vidocq e sabia que espécie de mestre da zona rural o famosoFrancês foi nos seus dias de juventude, e a natureza das aulas secretas que dava aalguns de seus discípulos.

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A mesma reclusão e o isolamento a que o mestre Cachalote se retira na idadeavançada se dá com todos os velhos Cachalotes. Quase universalmente uma baleiasolitária – como se chama o Leviatã sozinho – significa uma baleia velha. Como ovenerável Daniel Boone com suas barbas de musgo, o Cachalote não admitiráninguém ao seu lado a não ser a própria Natureza; e toma-a por esposa no agrestedas águas, a ela, que é a melhor das esposas, embora guarde tantos segredosmelancólicos.

Os cardumes compostos apenas por machos jovens e vigorosos, previamentemencionados, fazem um forte contraste com os haréns. Pois, enquanto essasfêmeas são tipicamente tímidas, os machos jovens, ou touros de quarenta barris,como os chamam, são de longe os Leviatãs mais belicosos e proverbialmente osmais perigosos de deparar; excetuando as assombrosas baleias grisalhas às vezesencontradas, e estas lutam como demônios implacáveis, exasperadas pela gotapenosa.

Os cardumes de touros de quarenta barris são maiores que os haréns. Comouma multidão de jovens colegiais, são cheios de combatividade, de alegria e demaldade, saltando ao redor do mundo com uma velocidade tão afoita e travessaque nenhum agente cauteloso lhes faria um seguro, assim como não o fazempara um jovem desordeiro em Yale ou em Harvard. Mas depressa desistem dessaturbulência, e, quando chegam quase à idade adulta, dispersam-se e cada umbusca se estabilizar, ou seja, encontrar o seu harém.

Um outro ponto de diferença entre os cardumes de machos e fêmeas é aindamais característico dos sexos. Suponha que você atingiu um touro de quarentabarris… pobre coitado! Todos os companheiros dele o abandonam. Mas, se atingirum membro de um harém, as companheiras delas nadam ao redor com todos ossinais de preocupação, e às vezes chegam tão perto e permanecem tanto tempo,que se transformam elas mesmas em presas.

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89 PEIXE PRESOE PEIXE SOLTO

A referência a bandeiras marcadoras e mastros no penúltimocapítulo necessita de alguns esclarecimentos acerca das leis e

dos regulamentos da pesca de baleias, da qual a bandeira pode ser considerada osímbolo e a insígnia.

Quando vários navios viajam juntos, sucede com freqüência que uma baleiaseja atingida por uma embarcação e então consiga fugir, para depois ser morta ecapturada por uma outra embarcação; e neste exemplo estão inclusas outrascontingências menores, todas participantes deste caso mais importante. Porexemplo, depois da caçada e da captura de uma baleia, o corpo pode se soltar porcausa de uma violenta tempestade; e, derivando para bem longe a sotavento, serrecolhida por um outro baleeiro que, com calma e conforto, a leva a reboquesem arriscar a vida ou a corda. Assim, surgiriam as disputas mais vexaminosas emais violentas entre os baleeiros, se não existisse uma lei incontestável, universal,escrita ou não, e aplicável a todos os casos.

Talvez o único código formal da pesca de baleias autorizado por decretolegislativo seja o da Holanda. Foi decretado pelos Estados-Gerais em 1695. Mas,embora nenhuma outra nação tenha escrito uma lei para a pesca de baleias, ospescadores norte-americanos são os seus próprios legisladores e advogados nesteassunto. Providenciaram um sistema que, por sua concisão e amplitude, supera asPandectas de Justiniano e os Regulamentos da Sociedade Chinesa para Suprimir aIntromissão nos Assuntos de Outras Pessoas. Pois é; essas leis poderiam sergravadas naqueles míseros cêntimos da rainha Ana, ou na ponta de um arpão, eusadas no pescoço, de tão pequenas.

I. Um peixe preso pertence ao grupo que o prendeu.II. Um peixe solto é caça regular para aquele que apanhá-lo mais depressa.

Mas o que prejudica esse código magistral é a sua brevidade admirável, o querequer um vasto volume de comentários para explicá-lo.

Primeiro: o que é um peixe preso? Vivo ou morto, um peixe está tecnicamentepreso quando está ligado a um navio ou a um bote tripulado por um meiocontrolável pelo ocupante, ou pelos ocupantes, um mastro, um remo, uma cordade nove polegadas, um cabo de telégrafo, ou um fio de aranha, dá tudo namesma. Do mesmo modo, um peixe está tecnicamente preso quando tem uma

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bandeira marcadora, ou qualquer outro símbolo de posse reconhecível; desdeque o grupo que colocou a bandeira demonstre sua capacidade de levá-lo para ocostado a qualquer hora, assim como a sua intenção de fazê-lo.

Estes são comentários científicos; mas os comentários dos próprios baleeirosconsistem, por vezes, em palavras desagradáveis e socos ainda mais desagradáveis– são os Coke-upon-Littleton dos punhos. É verdade que entre os baleeiros maishonrados e honestos são sempre feitas concessões para cada caso particular,quando seria uma injustiça moral ultrajante um grupo reivindicar a posse de umabaleia caçada e morta primeiro por um outro grupo. Mas nem todos são tãoescrupulosos.

Há cerca de cinqüenta anos, deu-se um caso curioso de litígio para arestituição de uma baleia na Inglaterra, no qual os queixosos relataram que, apósperseguir com dificuldade uma baleia nos mares setentrionais, eles (os queixosos)conseguiram fincar o arpão no peixe, mas foram obrigados, por fim, dado operigo que corriam, a abandonar não apenas as cordas como o próprio bote. Maistarde, os réus (a tripulação do outro navio) avançaram sobre a baleia, golpearam-na, mataram-na, pegaram-na e por fim apropriaram-se dela diante dos queixosos.E, quando foram reclamar aos réus, o comandante mostrou total indiferençadiante dos queixosos e garantiu-lhes que, baseado na doxologia da proeza quetinha executado, se apropriaria da corda, arpões e bote, que tinham ficado presosà baleia quando foi capturada. Em conseqüência, os queixosos abriram umprocesso para recuperar o montante de sua baleia, corda, arpões e bote.

O senhor Erskine era o advogado dos réus, e o lorde Ellenborough era o juiz.No decurso da defesa, o arguto Erskine, para ilustrar sua posição, citou um casorecente de adultério, no qual um senhor, depois de tentar em vão refrear adepravação da esposa, abandonou-a, por fim, nos mares da vida; mas, com opassar dos anos, arrependeu-se e moveu uma ação para recuperar sua posse.Erskine defendia o outro lado e disse que, embora o cavalheiro tivesse arpoadooriginalmente a senhora e a tivesse prendido uma vez, e apenas devido à tensãoda sua depravação extrema a tivesse abandonado; fato era que, ao abandoná-la,ela havia se tornado um peixe solto; e, por conseqüência, quando um outrocavalheiro a arpoou, aquela senhora se tornou propriedade do outro cavalheiro,junto com qualquer arpão que estivesse fincado nela.

No caso presente, Erskine sustentava que os exemplos da baleia e da senhorailustravam um ao outro.

Ouvindo as devidas alegações e as réplicas, o douto juiz, com termos precisos,sentenciou o seguinte: quanto ao bote, ele o adjudicava aos queixosos, pois otinham abandonado apenas para salvar as suas vidas; mas quanto à controvertidabaleia, arpões e corda, estas pertenciam aos réus; a baleia, pois, era um peixe

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solto na hora da captura; e os arpões e a corda, pois quando ele (o peixe) fugiu,apropriou-se desses objetos; por conseqüência, quem apanhasse o peixe depoisteria direito a eles. Ora, os réus apanharam o peixe depois; ergo, os objetosreferidos lhes pertenciam.

Um homem comum que examinasse essa decisão do douto juiz poderia lhefazer objeções. Mas, aprofundando-se no assunto, ver-se-á que os dois grandesprincípios estabelecidos pelas duas leis da pesca de baleias antes referidas eaplicadas e elucidadas pelo referido caso de lorde Ellenborough; essas duas leis de“peixe preso” e “peixe solto”, repito, se pensarmos bem, encontram-se embasadasem toda a jurisprudência humana; pois, a despeito das suas esculturascomplicadas, o Templo da Lei, como o Templo dos Filisteus, tem apenas doispilares para se apoiar.

Não existe um ditado em todas as bocas, segundo o qual a posse é a metade dalei: ou seja, sem se levar em conta como se obteve a coisa? Mas amiúde a posse éa lei por inteiro. O que são os tendões e as almas dos servos Russos e dos escravosRepublicanos senão peixe preso, cuja posse equivale à totalidade da lei? Para osenhorio ganancioso, o que são as economias da viúva, senão peixe preso? O quea mansão de mármore do vilão não desmascara com uma placa na porta a servirde bandeira, senão peixe preso? O que é o ágio devastador que Mordecai, oagiota, recebe do coitado do Woebegone, o falido, de um empréstimo para que afamília de Woebegone não morra de fome; o que é esse ágio devastador, senãopeixe preso? O que é a renda de cem mil libras do Arcebispo de Savesoul, tiradado escasso pão e queijo de milhares de trabalhadores de costas curvadas (todoscertos de irem ao céu sem a ajuda de Savesoul), o que é esse número redondo decem mil, senão peixe preso? O que são as cidades e as aldeias herdadas do duquede Dunder, senão peixe preso? O que é a coitada da Irlanda para John Bull,aquele temível arpoador, senão peixe preso? O que é o Texas para o irmãoJonathan, aquele soldado apostólico armado de lança, senão peixe preso? E, emrelação a todos eles, a posse não é a lei por inteiro?

Mas se a doutrina do peixe preso é bastante aplicável, em geral, a doutrinaanáloga do peixe solto o é ainda mais. É aplicável internacional e universalmente.

O que era a América em 1492, senão um peixe solto, no qual Colombo fincouo estandarte espanhol, como bandeira dos reis, seu senhor e senhora? O que era aPolônia para o czar? A Grécia para os turcos? A Índia para a Inglaterra? O que oMéxico será para os Estados Unidos no final? Todos peixes soltos.

O que são os Direitos do Homem e as Liberdades do Mundo, senão peixe solto?As opiniões e os juízos dos homens, senão peixe solto? O que é o princípioreligioso, dentro deles, senão peixe solto? O que são as idéias dos pensadores paraos verborrágicos pomposos, senão peixe solto? O que é o próprio imenso globo,

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senão peixe solto? E o que é você, leitor, senão peixe solto e também peixe preso?

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90 CABEÇAS OU CAUDAS

De balena vero sufficit, si rex habeat caput, et regina caudam.BRACTON, 1.3, c.3.{a}

Este latim dos livros de Leis da Inglaterra, tomadoem seu contexto, significa que, de todas as baleias capturadas por qualquerpessoa na costa daquele país, o Rei, como Grão-Arpoador Honorário, deve recebera cabeça, e a Rainha ser mui respeitosamente presenteada com a cauda. Umadivisão que, na baleia, equivale a cindir uma maçã ao meio; não há terceira parteque reste. Ora, como essa lei, a despeito das modificações, permanece em vigorainda hoje na Inglaterra; e como oferece, em vários aspectos, estranhos desviosno que toca à lei geral do Peixe Preso e Peixe Solto, será tratada num capítulo àparte, com base no mesmo princípio cordial que faz com que as estradas de ferroinglesas custeiem um vagão separado, especialmente reservado para acomodar arealeza. Em primeiro lugar, como prova curiosa de que a referida lei ainda vigora,começarei por relatar um caso que ocorreu há menos de dois anos.

Parece que uns marujos honestos de Dover, ou de Sandwich, ou de algum dosCinque Ports, após uma dura caçada, haviam logrado matar e rebocar até a praiauma baleia portentosa, que antes avistaram muito longe da costa. Ora, os CinquePorts estão em parte e de algum modo sob a jurisdição de um tipo de policial oubedel, chamado de Lorde Guardião. Recebendo suas atribuições diretamente dacoroa, creio eu, todos os emolumentos reais, inerentes ao território dos CinquePorts, mediante adjudicação, tornam-se seus. Para alguns escritores, esse encargoé uma sinecura. Mas não é assim. Pois o Lorde Guardião ocupa-se ativamente porvezes em embolsar as suas gratificações; que são dele sobretudo porque asembolsa.

Quando esses pobres marujos, queimados de sol, descalços e com as calçasenroladas no alto das pernas enguiosas, muito esforçadamente arrastaram seupeixe gordo para um lugar alto e seco, sob as promessas de umas £ 150 de óleo eossos preciosos; e imaginavam degustar raros chás com suas esposas, e beber deboa cerveja com seus amigos, contando com o que lhes renderiam suasrespectivas partes; eis que aparece um cavalheiro erudito, muito Cristão ecaridoso, com um livro de Blackstone sob o braço; e colocando-o sobre a cabeçada baleia, diz – “Tirai as mãos! Este peixe, meus senhores, é um Peixe Preso.Tomo posse dele em nome do Lorde Guardião”. A isso, os coitados dos

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marinheiros, em sua consternação respeitosa – tão verdadeiramente Inglesa –,sem saber o que dizer, começaram a coçar a cabeça vigorosamente; enquantoolhavam pesarosos para a baleia e para o estranho. Isso nada ajudou a contornar acontenda, ou de algum modo a abrandar o duro coração do ilustrado cavalheiroportador da cópia de Blackstone. Por fim, um deles, depois de coçardemoradamente as idéias, atreveu-se a falar.

“Por favor, senhor, quem é o Lorde Guardião?”“O duque.”“Mas ele não fez nada para pegar esse peixe?”“É dele.”“Nós passamos por muita dificuldade, tivemos despesas, corremos perigo, e

tudo isso em benefício do duque? Não receberemos nada por nosso esforço alémdo cansaço?”

“É dele.”“O duque é tão pobre que se vê forçado a ganhar a vida desse modo

desesperado?”“É dele.”“Pensei que poderia ajudar a minha mãe enferma com parte do meu quinhão

dessa baleia.”“É dele.”“O duque não ficaria satisfeito com um quarto ou com a metade?”“É dele.”Em suma, a baleia foi confiscada e vendida, e Sua Graça, o Duque de

Wellington, recebeu o dinheiro. Pensando que, visto sob determinadas luzes, aum certo ponto, o caso até poderia ser considerado injusto, um honesto pastor dacidade escreveu uma nota respeitosa a Sua Graça, rogando-lhe que levasse emconsideração o caso dos marujos desafortunados. A isso o Lorde Duque emsubstância respondeu (as duas cartas foram publicadas) que já o havia feito, erecebido o dinheiro, e que agradeceria ao venerável reverendo se no futuro, ele (ovenerável reverendo) deixasse de se intrometer nos negócios alheios. Seria esse ovelho agressivo, que fica pelas esquinas dos três reinos exigindo, de todas asformas, as esmolas dos mendigos?

De pronto se verá que nesse caso o alegado direito do Duque à baleia lhe era,antes, uma atribuição do Soberano. Devemos investigar, portanto, o princípio emque o Soberano se fundamenta para investir-se de tal direito. A lei já foi mostrada.Mas Plowden nos explica os motivos. Diz Plowden que a baleia assim capturadapertence ao Rei e à Rainha “em razão de sua excelência superior”. E oscomentadores mais justos sempre consideram este um argumento irrefutável em

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tais disputas.Mas por que deveria o Rei receber a cabeça e a Rainha a cauda? Um motivo

para isso, advogados!Em seu tratado sobre o “Ouro da Rainha”, ou miudezas da Rainha, um velho

escritor da Bancada do Rei, um certo William Prynne, assim teue dito: “A caudahe da Rainha, pera que os trajos da Rainha tenhão osso de baleia”. Ora, isso foiescrito quando a barbatana escura e flexível da baleia da Groenlândia ou dabaleia franca já era usada em grande escala nos corpetes das senhoras. Mas o ditoosso não está na cauda; e sim na cabeça, o que configura triste engano para umtão sagaz advogado quanto o fora Prynne. Mas seria a Rainha uma sereia, para serpresenteada com uma cauda? Um significado alegórico pode ocultar-se aí.

Há dois peixes reais, assim tratados à pena pelos bacharéis da lei Inglesa – abaleia e o esturjão; ambos de propriedade real sob certas limitações, constituindodestarte o décimo ramo das receitas ordinárias da Coroa. Não tenho notícia denenhum outro autor que tenha abordado o assunto; mas, por inferência, creioque o esturjão seja dividido como a baleia, com o Rei recebendo a cabeça muitocompacta e elástica característica do peixe, fato que, levado simbolicamente emconta, pode estar jocosamente baseado em afinidades congênitas. E portantoparece haver uma razão em todas as coisas, inclusive na lei.

{a} Heads or Tails, no original, significa também “cara ou coroa”. A epígrafe vem de Henry de Bracton, DeLegibus et Consuetudinibus Angliae (século XIII; impresso em 1569), “sobre a baleia, basta que o reitenha a cabeça e a rainha a cauda.” [N. T.]

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91 O PEQUOD ENCONTRAO BOUTON-DE-ROSE

Em vão revolveu o ventre deste Leviatã procurando âmbar-gris, o fedorintolerável impediu-lhe a busca.

Sir T. Browne, V.E.

Foi uma ou duas semanas depois da última cena depesca de baleias relatada, quando estávamos

navegando vagarosamente sobre um indolente e vaporoso mar de meio-dia, queos diversos narizes do convés do Pequod se revelaram melhores e mais atentosobservadores do que os três pares de olhos no alto. Um cheiro peculiar e nãomuito agradável vinha do mar.

“Aposto uma coisa”, disse Stubb, “que algumas daquelas baleias que atingimoscom os druggs no outro dia estão em algum lugar por aqui. Achei que logoemborcariam.”

Dentro em pouco, a bruma à nossa frente dissipou-se; e à distância viu-se umnavio, cujas velas ferradas prefiguravam uma baleia presa ao costado. À medidaque nos aproximamos, vimos as cores da França no topo do navio estrangeiro; edevido ao redemoinho nebuloso de vulturinas aves marinhas que voavam egiravam, pairando e descendo ao redor, estava claro que a baleia ao longo docostado devia ser o que os pescadores chamam de baleia empestada, ou seja, umabaleia que morreu no mar sem ser molestada, e que, dessa forma, flutuara comoum cadáver sem dono. Pode-se imaginar o odor desagradável que uma tal massaexala; pior do que uma cidade Assíria durante a peste, quando os vivos já não sãocapazes de enterrar os mortos. Tão intolerável uns o consideram que nem acobiça poderia persuadi-los a amarrar-lhe o corpo. No entanto, há aqueles queainda o farão; a despeito do fato de que o óleo obtido desses espécimes seja dequalidade muito inferior, sem predicado que lembre a essência de rosas.

Aproximando-nos ainda mais, à medida que a brisa expirava, percebíamos queo Francês trazia uma segunda baleia ao costado; e que essa baleia parecia aindamais perfumada que o primeiro ramalhete de flores. Na realidade, tratava-se deuma daquelas baleias problemáticas, que parecem murchar e morrer por algumtipo de prodigiosa dispepsia ou indigestão; deixando seus corpos defuntos quaseque totalmente destituídos de qualquer coisa que lembre óleo. Não obstante, nomomento apropriado, veremos que nenhum pescador experiente torce o narizpara uma baleia dessas, ainda que, em geral, evite as baleias empestadas.

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O Pequod aproximara-se tanto do estranho que Stubb jurou reconhecer o cabode sua pá de corte emaranhado nas ostaxas presas em torno da cauda de umadessas baleias.

“Aí temos um bom sujeito, agora”, riu, fazendo troça, de pé na proa do navio,“aí temos um chacal! Sei bem que esses Crapôs Franceses são apenas uns pobres-diabos na pesca; por vezes, descem os botes atrás de espuma, confundindo-a como sopro do Cachalote; sim, e, por vezes, zarpam do porto com o porão cheio decaixas com velas de sebo e caixotes de apagadores de velas, prevendo que todo oóleo que conseguirem não será suficiente para molhar o pavio do Capitão; sim,nós sabemos disso; mas bem aí temos um Crapô que se satisfaz com os nossosrestos, digo, como a baleia com o drugg; sim, fica satisfeita em arranhar os ossossecos daquele outro peixe precioso que tem ali. Coitado! Um de vós aí – passaium chapéu e vamos presenteá-los com um pouco de óleo, em nome da caridade.Pois o óleo que conseguir dessa baleia com o drugg não serve para queimar numacadeia; não, nem numa cela de condenado. Ora, quanto à outra baleia, creio queconseguiria eu mais óleo cortando e derretendo estes três mastros do que elestrabalhando naquele amontoado de ossos; ainda que, pensando bem, ele possater algo bem mais valioso do que óleo; sim, o âmbar-gris. Será que o nosso velhopensou nisso? Vale a pena tentar. Sim, estou disposto a isso”, e, dizendo isso,correu para o tombadilho.

Enquanto isso, a brisa tênue havia se transformado em completa calmaria; demodo que, querendo ou não, o Pequod se via apanhado pelo cheiro, semesperança de escapar, caso a brisa não voltasse. Saindo da cabine, Stubb chamoua tripulação do seu bote e remou em direção ao estranho. Aproximando-se daproa, notou que, de acordo com o extravagante gosto Francês, a parte superior doquebra-mar estava entalhada à maneira de um enorme talo inclinado, pintada deverde, e que à guisa de espinhos tinha pregos de cobre saídos de toda parte;terminando num simétrico bulbo vincado, de um vermelho reluzente. Sobre astábuas da amurada, em grandes letras douradas, lia-se Bouton-de-Rose, – “Botão-de-Rosa”, ou “Moça Bonita”; e esse era o nome romântico desse navioaromatizado.

Conquanto Stubb não entendesse a parte da inscrição referente a Bouton, apalavra rose, somada à figura de proa com bulbos, foi suficiente para explicartudo a ele.

“Um botão-de-rosa de madeira, hein?”, gritou, com a mão no nariz, “Ficamuito bem; mas cheira feito toda a Criação!”

Para estabelecer uma comunicação direta com as pessoas no convés, ele teveque remar em torno da proa para estibordo e assim se aproximar da baleiaempestada; falando, então, por cima dela.

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Chegando ali, com uma mão ainda no nariz, berrou – “Ó, de bordo, Bouton-de-Rose! Há algum de vocês, Bouton-de-Roses, que fale inglês?”

“Sim”, replicou um nativo de Guernsey, que era o primeiro imediato.“Pois bem, meu botão de Bouton-de-Rose, você avistou a Baleia Branca?”“Quê Baleia franca?”“A Baleia Branca – um cachalote – Moby Dick?”“Nunca ouvi falar de tal baleia. Cachalot Blanche! Baleia Branca – não!”“Pois bem, então; até logo por enquanto, volto num minuto.”Remou depressa de volta, na direção do Pequod e, ao ver Ahab inclinado no

balaústre do tombadilho, esperando por informações, juntou as duas mãos emconcha e gritou – “Não, senhor! Não!”. Com isso, Ahab retirou-se, e Stubb voltouao Francês.

Reparou naquele momento que o nativo de Guernsey, que acabara de enfiar-sepor entre as correntes, segurando uma pá de corte, colocara o nariz numa espéciede saco.

“O que aconteceu com o seu nariz”, disse Stubb. “Está quebrado?”“Gostaria que estivesse quebrado, ou que não tivesse nariz!”, respondeu o

nativo de Guernsey, que não parecia gostar muito do trabalho que estava fazendo.“Mas por que seguras o seu?”

“Ah, por nada! É um nariz de cera; tenho que segurá-lo. Dia lindo, não émesmo? A brisa jardineira, eu diria; você nos jogaria aqui uns buquês de flores,Bouton-de-Rose?”

“Que diabo você quer aqui?”, bradou o nativo de Guernsey, encolerizando-sede súbito.

“Oh! Calminha aí! – fica calmo; sim, é esta a palavra; por que você não envolveessas baleias com gelo enquanto trabalha nelas? Sem brincadeira; sabe que ébobagem tentar extrair óleo dessas baleias, Botão-de-rosa? Quanto àquelaressecada, não tem nem um quarto de libra na carcaça inteira.”

“Sei muito bem, mas, veja, o capitão daqui não acredita; é a primeira viagemdele; antes, ele tinha uma manufatura em Colônia. Mas vem a bordo; talvez eleacredite em você, já que não acredita em mim; e eu me livrarei desses restosimundos.”

“Qualquer coisa para fazer um obséquio, meu querido companheiro amável”,replicou Stubb, que subiu de pronto ao convés. Ali, uma estranha cena se lheapresentou. Os marinheiros, com ornados gorros de lã vermelha, preparavam astalhas pesadas para as baleias. Mas trabalhavam bem devagar, falavam bemdepressa, e pareciam não estar de bom humor. Seus narizes projetavam-se paracima como se fossem paus de bujarronas. Vez ou outra largavam o trabalho aos

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pares e corriam para o topo do mastro para respirar ar fresco. Alguns, achandoque pegariam a peste, mergulhavam pedaços de estopa no alcatrão e apertavam-nas de tempo em tempo nas narinas. Outros, tendo quebrado o cabo dos seuscachimbos quase junto à boquilha, aspiravam a fumaça do tabaco com força,para manter os seus órgãos olfativos ocupados ininterruptamente.

Stubb ficou impressionado com uma saraivada de gritos e anátemas vinda detrás da cabine do Capitão; olhou naquela direção e viu um rosto colérico sair detrás daquela porta, mantida entreaberta por dentro. Era o atormentado médico debordo, que, depois de protestar em vão contra os procedimentos do dia, fora, elepróprio, à cabine do capitão (cabinet, como ele dizia) para evitar a peste; mas,vez ou outra, não conseguia conter as suas súplicas e a sua raiva.

Observando isso tudo, Stubb concluiu que seu plano poderia render bonsfrutos e, voltando-se ao nativo de Guernsey, teve uma breve conversa com ele,durante a qual o estranho imediato manifestou seu desapreço pelo Capitão, umignorante convencido, que levara todos eles àqueles tão desvantajosos edesagradáveis apuros. Sondando-o com cuidado, Stubb ainda percebeu que onativo de Guernsey não manifestava a menor suspeita do âmbar-gris. Portanto,nada falou sobre o assunto, demonstrando-se contudo franco e de confiança, a talponto que os dois rapidamente maquinaram um plano para enganar eridicularizar o Capitão, sem que este sonhasse em suspeitar de sua sinceridade.Segundo esse pequeno plano, o nativo de Guernsey, no papel de intérprete, diriaao Capitão o que bem quisesse, mas como se viesse de Stubb; e este, por sua vez,diria qualquer bobagem que lhe viesse à mente durante o colóquio.

Nesse momento a vítima designada saiu de sua cabine. Era um homempequeno e escuro, mas de aspecto muito delicado para um capitão, com grandessuíças e um bigode; vestia um colete de veludo vermelho, com um relógio esinetes laterais. A este cavalheiro Stubb foi apresentado com civilidade pelonativo de Guernsey, que, de pronto, se colocou ostensivamente no papel deintérprete entre os dois.

“O que digo a ele primeiro?”, disse.“Ora”, disse Stubb, olhando para o colete de veludo, para o relógio e os sinetes,

“pode começar dizendo que ele parece uma criancinha, mas que não pretendojulgar seu aspecto.”

“Ele diz, Monsieur”, disse o nativo de Guernsey, em francês, virando-se para ocapitão, “que ontem mesmo o navio dele falou com uma embarcação, cujocapitão e o primeiro imediato, juntamente com seis marinheiros, morreramtodos de uma febre transmitida por uma baleia empestada, que traziam aocostado.”

Ouvindo isso, o capitão estremeceu e quis saber muito mais.

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“O que mais?” disse o nativo de Guernsey a Stubb.“Ora, já que ele aceita tudo tão fácil, diga-lhe que agora que observei com

atenção tenho certeza de que ele é tão capaz de comandar um navio baleeiroquanto um macaco de Santiago. Melhor; diga-lhe que, na minha cabeça, ele éum babuíno.”

“Ele jura e declara, Monsieur, que a outra baleia, a ressecada, é ainda maismortífera do que a empestada; em suma, Monsieur, ele nos conjura, se damosvalor às nossas vidas, a separarmo-nos destes peixes.”

No mesmo instante, o capitão correu adiante e, em alto e bom som, ordenou àsua tripulação que parasse de içar as talhas e que prontamente soltasse as cordase as correntes que prendiam as baleias ao navio.

“O que mais?” disse o nativo de Guernsey, quando o capitão voltou a eles.“Ora, deixe-me ver; sim, diga-lhe agora que – que –, diga-lhe que, de fato, eu

aprontei com ele, e (à parte, para si mesmo) talvez com alguém mais.”“Ele diz, Monsieur, que está muito feliz em ter sido útil.”Ouvindo isso, o capitão jurou que eles eram os agradecidos (querendo dizer,

ele e o oficial) e concluiu convidando Stubb a descer à sua cabine para tomaruma garrafa de Bordeaux.

“Ele quer que você tome um copo de vinho com ele”, disse o intérprete.“Agradeça-lhe de coração, mas diga-lhe que é contra os meus princípios beber

com um homem que eu enganei. Na verdade, diga-lhe que devo partir.”“Ele diz, Monsieur, que seus princípios não o autorizam a beber; mas que, se o

Monsieur quiser viver outro dia para beber, então Monsieur deveria arriar osquatro botes e puxar o navio para longe dessas baleias, pois com esta calma nãoseguirão sozinhas.”

A essa altura, Stubb descia pelo costado e, embarcando em seu bote, chamouo nativo de Guernsey para lhe dizer isso – que, tendo um comprido cabo dereboque no bote, faria o que estivesse ao seu alcance para ajudá-los, puxando, porexemplo, a baleia mais leve do costado do navio. Então, enquanto os botes dosFranceses se empenhavam em levar o navio para uma direção, o bondoso Stubbrebocava sua baleia em outra direção, soltando ostensivamente um cabo dereboque de comprimento fora do comum.

Uma brisa logo soprou; Stubb fingiu soltar a baleia; içando os botes, o Francêslogo imprimiu distância, enquanto o Pequod deslizava entre ele e a baleia deStubb. E então Stubb remou depressa de encontro ao corpo flutuante e,chamando o Pequod para dar nota de suas intenções, começou de pronto acolher o fruto de sua dissimulada injustiça. Pegando a afiada pá de seu bote, deuinício ao procedimento de escavação do corpo, um pouco atrás da barbatana

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lateral. Poder-se-ia pensar que estava cavando um porão no mar; e quando, porfim, sua pá atingiu as costelas magras, foi como se aparecessem antigas cerâmicase azulejos Romanos enterrados no denso barro Inglês. Os homens de seu boteestavam todos envolvidos em grande alvoroço, querendo avidamente ajudar seuchefe, tão ansiosos quanto os caçadores de ouro.

E todo o tempo inúmeras aves mergulhavam e arremetiam e guinchavam egritavam e lutavam à sua volta. Stubb começava a ficar desapontado,especialmente à medida que o terrível aroma de seu ramalhete aumentava,quando de súbito, do próprio coração dessa pestilência, emanou tênue correntede perfume, que correu através da maré de mau cheiro sem ser por ela absorvida,como um rio que deságua noutro, seguindo com ele sem que suas águas semisturem por algum tempo.

“Aqui, aqui”, gritou Stubb com alegria, batendo em alguma coisa na partesubmersa, “uma bolsa, uma bolsa!”

Largando a pá, enfiou as duas mãos e tirou uns punhados de uma coisa queparecia sabão de Windsor, ou um velho queijo forte e mosqueado; e, ademais,gorduroso e bastante saboroso. Poderíamos amassá-lo entre os dedos comfacilidade; sua cor fica entre o amarelo e o cinza. E isso, caros amigos, é o âmbar-gris, do qual cada onça vale um guinéu de ouro em qualquer boticário. Foramobtidos cerca de seis punhados; mas uma boa parte, inevitavelmente, se perdeuno mar, sem contar a outra, ainda melhor, que poderia ter sido guardada se nãofosse o impaciente e enfático Ahab, que logo ordenou a Stubb que desistisse eviesse a bordo, caso contrário, o navio lhe diria adeus.

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92 O ÂMBAR-GRIS

Ora, esse âmbar-gris é uma substância muito curiosa e tãoimportante como artigo de comércio que, em 1791, um certo capitão Coffin,nascido em Nantucket, foi interrogado sobre o assunto nas barras da Câmara dosComuns na Inglaterra. Pois naquela época, e até tempos mais ou menos recentes,a origem precisa do âmbar-gris, assim como a do próprio âmbar, permaneceu umproblema para os doutos. Embora a palavra âmbar-gris seja um composto deorigem francesa de âmbar e cinza, as duas substâncias são bem diferentes. Pois oâmbar, ainda que por vezes seja encontrado no litoral, é extraído dos solos dointerior, ao passo que o âmbar-gris só é encontrado no mar. Além disso, o âmbar éuma substância dura, transparente, quebradiça e inodora usada para fazer o bocaldos cachimbos, miçangas e ornamentos; mas o âmbar-gris, macio e céreo, é tãoaromático e temperado que é muito usado em perfumes, defumadores, velas degrande valor, pós para o cabelo e brilhantina. Os Turcos usam-no para cozinhar etambém o levam para Meca, com o mesmo propósito com que se leva incensopara a catedral de São Pedro, em Roma. Alguns mercadores de vinho derramamalguns grãos no clarete, para dar-lhe sabor.

Quem, então, poderia imaginar que cavalheiros e senhoras tão elegantes seregalassem com uma essência encontrada nos intestinos tão pouco gloriosos deuma baleia doente! Mas é isso que ocorre. Para alguns o âmbar-gris ésupostamente a causa e para outros o efeito da dispepsia da baleia. Seria difícildizer como curar tal dispepsia, a menos que se lhe administrassem três ou quatrobotes carregados de pastilhas de Brandreth, e depois se saísse do caminho, comoos trabalhadores fazem quando explodem pedras.

Esqueci de dizer que no âmbar-gris foram encontradas certas placas duras,redondas como de osso, que Stubb, a princípio, pensou tratar-se de botões decalças de marinheiros; mas depois se viu que eram apenas pedacinhos de ossosde lulas embalsamados desse modo.

Que a incorrupção desse âmbar-gris aromático seja encontrada no coração detamanha podridão, não parece algo extraordinário? Recorda-te do que São Paulodisse aos Coríntios sobre a corrupção e a incorrupção; como somos semeados peladesonra, mas ressuscitamos em glória. Lembra-te também do que disse Paracelsosobre aquilo de que é feito o melhor almíscar. Tampouco te esqueças de que aágua-de-colônia, nos primeiros estágios da sua fabricação, é a pior de todas ascoisas que cheiram mal.

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Gostaria de terminar este capítulo com a súplica acima, mas não posso, emvirtude da minha ansiedade em refutar uma acusação amiúde feita contra osbaleeiros, a qual, na avaliação de algumas pessoas predispostas, pode serconsiderada, de modo indireto, ligada àquilo que foi dito sobre as duas baleias doFrancês. No decurso deste livro condenou-se a calúnia difamatória de que aprofissão dos baleeiros é uma atividade desmazelada ou suja. Mas há algo mais aser refutado. Insinua-se que todas as baleias sempre cheiram mal. Ora, qual é aorigem desse estigma detestável?

Na minha opinião, isso remonta à chegada a Londres dos primeiros naviosbaleeiros da Groenlândia, há mais de dois séculos. Pois os baleeiros nãoderretiam, nem derretem hoje em dia, a gordura no mar, como os navios do sulsempre fizeram; mas cortavam a gordura fresca em pedaços pequenos, enfiavam-nos pelos buracos dos batoques em tonéis grandes e levavam-nos para a sua terradessa forma; a brevidade da estação naqueles mares congelados e as súbitastempestades violentas às quais ficavam expostos não lhes permitiam outro trajeto.A conseqüência é que, ao entrar no porão para descarregar um desses cemitériosde baleias nas docas da Groenlândia, se espalhava um cheiro parecido com o quesurge ao se escavar o cemitério antigo de uma cidade, para ali colocar asfundações de um hospital-maternidade.

Suponho também que essa acusação maldosa contra os baleeiros tenha sidoimputada, em parte, à existência no litoral da Groenlândia, em outros tempos, deuma aldeia holandesa chamada Schmerenburgh ou Smeerenberg, sendo esteúltimo o nome que é usado pelo douto Fogo Von Slack em sua importante obrasobre cheiros, livro básico sobre esse assunto. Como o nome indica (smeer,gordura; berg, conservar) essa aldeia foi fundada para que a frota baleeiraholandesa tivesse um lugar para derreter a gordura, sem ter que levá-la para aHolanda com esse propósito. Era um conjunto de fornalhas, caldeiras e depósitosde óleo; quando o trabalho estava em pleno vapor é certo que não exalava umodor muito agradável. Mas isso é bem diferente quando se trata de um baleeirodos mares do sul; que numa viagem de cerca de quatro anos, depois de encher oporão de óleo, não necessita de cinqüenta dias para a atividade de ferver; e noestado em que vai para os tonéis o óleo é quase inodoro. A verdade é que, viva oumorta, a baleia, se for tratada com decência, como espécie, não cheira mal demodo nenhum; tampouco se pode reconhecer um baleeiro pelo nariz, como aspessoas da Idade Média pretendiam descobrir um Judeu num grupo. A baleia, defato, não pode deixar de ser cheirosa, quando goza de saúde perfeita; faz bastanteexercício; está sempre fora de casa; embora raras vezes, é fato, ao ar livre. Afirmoque o movimento da cauda do Cachalote na superfície exala um perfume comouma senhora com cheiro de almíscar quando move seu vestido num tépido salão.

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Com o que posso comparar a fragrância do Cachalote, considerando suamagnitude? Não haveria de ser com o elefante famoso, com jóias nas presas,cheirando a mirra, que saiu de uma cidade da Índia para homenagear Alexandre,o Grande?

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93 O NÁUFRAGO

Poucos dias depois do encontro com o Francês, um fatomuito significativo sucedeu a um dos membros mais insignificantes da tripulaçãodo Pequod; um fato lamentável que terminou por antecipar ao naviopredestinado e por vezes loucamente alegre uma profecia viva e sempre presentede um futuro trágico que poderia ser o seu.

Ora, num navio baleeiro, não são todos os que embarcam nos botes. Algunspoucos marinheiros, chamados guardas de navio, ficam de reserva, e cabe a elestrabalhar no navio, enquanto os botes perseguem a baleia. Em geral, essesguardas de navio são pessoas tão valentes quanto as que estão nos botes. Mas, sehouver um indivíduo muito franzino, desajeitado ou medroso no navio, é certoque ele será o guarda de navio. Foi o que aconteceu com o negrinho apelidado dePippin, abreviado para Pip. Coitado do Pip! Já falei dele antes; você deve selembrar do seu pandeiro naquela meia-noite dramática, tão lúgubre e tão alegre.

No aspecto exterior, Pip e Dough-Boy formavam uma dupla, um pônei preto eum branco, com o mesmo desenvolvimento, mas com cores diferentes, atreladoscomo uma parelha pouco comum. Mas, ao passo que o desafortunado Dough-Boyera lerdo e tinha um intelecto reduzido por natureza, Pip, ainda que tivesse umcoração muito mole, no fundo, era muito brilhante, com aquele brilho alegre,genial e agradável característico da sua raça; uma raça que aprecia todos osferiados e todas as festividades com prazer mais aguçado do que qualquer outraraça. Para os negros, os calendários deveriam apenas trazer trezentos e sessenta ecinco dias de 4 de Julho e de Ano-Novo. Não ria assim, quando escrevo que onegrinho era brilhante, pois mesmo a negritude tem o seu brilho; observe ospainéis lustrosos de ébano dos gabinetes reais. No entanto, Pip amava a vida e asegurança tranqüila da vida; tanto que o evento assustador no qual se viuenvolvido de um modo inexplicável obscureceu lamentavelmente a suavivacidade; embora, como se verá em breve, o que ficou por um temposubjugado, por fim, estava destinado a ser iluminado extraordinariamente porfogos estranhos, que o mostrariam com um lustre dez vezes maior que o natural,com o qual, em seu nativo condado de Tolland, em Connecticut, outrora alegraraos prados com a sua festa de violinos, e alterara, com o seu ah! ah! alegre, nocrepúsculo melodioso, o horizonte circular de seu pandeiro com uma estrelasonora. Do mesmo modo, um pingente de diamante de água pura penso numcolo de veias azuis tem um brilho saudável no ar límpido do dia; mas, se um

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joalheiro astuto quiser mostrar-lhe o diamante com um brilho ainda maisimpressionante, coloca-o numa base escura, depois o ilumina, não com a luz dosol, mas com um gás artificial. Surgem, então, fulgores abrasadores, diabólicos eextraordinários; é então que o diamante de chamas malignas, outrora o símbolomais divino dos céus de cristal, se parece com uma jóia da coroa roubada ao Reido Inferno. Mas voltemos à história.

No episódio do âmbar-gris sucedeu que o remador da popa de Stubb torceu opulso e ficou aleijado por um tempo; portanto, Pip foi provisoriamente colocadoem seu lugar.

Na primeira vez que Stubb desceu com ele, Pip demonstrou estar muitonervoso; mas, por sorte, naquela ocasião, não teve um contato próximo com abaleia, e, por isso, não se saiu de todo mal; ainda que Stubb, observando-o,tomasse o cuidado de o exortar para que se armasse de coragem ao máximo, poisamiúde poderia ser útil.

Ora, na segunda descida, o bote remou em direção à baleia; e ao receber oferro lançado o peixe deu a sua pancada costumeira que, naquele caso, foi bemembaixo do banco de Pip. O pavor involuntário do momento fez com que elepulasse com o remo na mão, para fora do bote; e de tal modo que uma parte dacorda solta se enrolou no peito, e ele a carregou sobre o costado, ficandoenredado nela quando, por fim, caiu na água. Nesse instante, a baleia atingidacomeçou a correr a toda a velocidade, e a linha logo se esticou, e o coitado do Pipveio espumante para as escoras do bote, impiedosamente arrastado pela corda,que tinha dado várias voltas em torno de seu peito e pescoço.

Tashtego estava de pé na proa. Estava todo inflamado pela caça. Odiava Pip,por sua covardia. Tirando da bainha a faca do bote, colocou a lâmina afiada sobrea corda, virou-se para Stubb e perguntou: “Corto?”. Enquanto isso, o rosto azul easfixiado de Pip parecia dizer, corta, pelo amor de Deus! Tudo se passou numinstante. Tudo isso aconteceu em menos de meio minuto.

“Maldito seja! Corta!”, gritou Stubb, e assim a baleia se perdeu, e Pip foi salvo.Tão logo se recuperou, o coitado do negrinho foi atacado pelos gritos e

impropérios da tripulação. Permitindo com calma que os xingamentosintermitentes se dissipassem, Stubb, de um modo simples e direto, mas umpouco jocoso, xingou Pip oficialmente; feito isso, deu-lhe verdadeiros conselhosnão oficiais. Não oficialmente, em essência, era: Nunca pula de um bote, Pip,exceto… Mas todo o resto era vago, como o são os conselhos mais sinceros. Ora,em geral, Fique no bote é o lema real da pesca de baleias; mas há casos em quePule do bote é ainda melhor. Além disso, como se afinal percebesse que com osintermináveis conselhos conscienciosos deixaria uma margem ampla demais paraPip pular no futuro, Stubb de súbito parou com os conselhos e concluiu com

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uma ordem peremptória: “Fique no bote, Pip, ou juro por Deus que não oapanharei; lembre-se disso. Não podemos nos dar ao luxo de perder baleias porcausa de tipos como você; no Alabama, uma baleia alcançaria um preço trintavezes mais alto que você, Pip. Lembre-se disso e não pule mais”. Com isso, talvezStubb dissesse de modo indireto que, ainda que o homem ame o seu semelhante,é também um animal que faz dinheiro, propensão essa que muitas vezesinterfere em sua benevolência.

Mas estamos todos nas mãos dos Deuses, e Pip pulou mais uma vez, emcircunstâncias muito parecidas às da primeira vez, só que dessa vez não levou acorda no peito; por isso, quando a baleia começou a correr, Pip foi deixado paratrás no mar, como se fosse a mala de um viajante apressado. Ai! Stubb manteve-sefiel à sua palavra. Era um dia azul, maravilhoso e exuberante; o mar cintilanteestava calmo e fresco, estendendo-se até o horizonte, como a lâmina de ouro deum bate-folhas, martelada ao máximo. Subindo e descendo naquele mar, acabeça de ébano de Pip parecia um cravo-da-índia. Nenhuma faca de bote selevantou quando ele caiu tão depressa à ré. Stubb virou-lhe as costas implacáveis;e a baleia parecia ter asas. Em três minutos, havia uma extensão de uma milha deoceano sem praias entre Pip e Stubb. No centro do mar, o coitado do Pip virava acabeça negra, crespa, anelada para o sol, outro náufrago solitário, embora o maissoberbo e o mais brilhante.

Ora, em tempos calmos, nadar no mar aberto é tão fácil para um nadadorexperiente quanto andar numa carruagem em terra. Mas a terrível solidão éinsuportável. A intensa concentração do eu no meio de tal imensidão impiedosa,meu Deus, quem pode exprimir isso? Observe os marinheiros como se banhamna calmaria em pleno oceano – observe como ficam perto do navio, nadandoapenas ao longo do costado.

Mas teria Stubb abandonado mesmo o coitado do negrinho ao seu destino?Não; pelo menos não é o que queria. Pois havia dois botes na sua esteira, eimaginou, sem dúvida, que eles chegariam depressa a Pip e o pegariam, aindaque, na verdade, tal consideração para com os remadores postos em perigo porseu medo nem sempre seja manifestada pelos caçadores em tais circunstâncias; etais circunstâncias não ocorrem com freqüência; na pesca, quase sempre, ochamado covarde é tão detestado quanto na marinha e no exército dos militares.

Mas sucedeu que os botes, sem ver Pip, avistando de repente umas baleiasperto deles de um lado, voltaram-se e começaram a persegui-las; e o bote deStubb já ia longe, e ele e a sua tripulação estavam tão empenhados em caçar opeixe que o horizonte circular de Pip lamentavelmente começou a alargar-se àsua volta. Por mero acaso, o próprio navio o salvou por fim; mas, a partir daquelemomento, o negrinho passou a andar pelo convés como um idiota, ou, pelo

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menos, é o que diziam. O mar zombador tinha-lhe poupado o corpo finito, masafogara o infinito de sua alma. Não a afogara por completo. Antes a levara vivapara as profundezas maravilhosas, onde as formas estranhas do mundo primitivointacto passavam de um lado para outro diante de seus olhos passivos; e a sereiaavarenta, a Sabedoria, revelou-lhe os tesouros que acumulara; e entre aseternidades alegres, insensíveis e sempre juvenis, Pip viu as multidões de insetosde corais, deuses onipresentes, que do firmamento das águas seguravam os orbescolossais. Viu o pé de Deus no pedal do tear e falou com ele; e por isso seuscompanheiros de bordo consideraram-no louco. Assim, a insanidade do homem éa sanidade do céu; e, distanciando-se de toda razão mortal, o homem chega porfim ao pensamento celeste, que para a razão é um absurdo e um delírio; e, bemou mal, então se sente intransigente e indiferente como o seu Deus.

Quanto ao resto, não julgue Stubb com muita severidade. A coisa é comumnaquele tipo de pesca; e no decorrer da narrativa ver-se-á que também coube amim um abandono semelhante.

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94 UM APERTO DE MÃO

A baleia de Stubb, adquirida a um preço tão caro, foidevidamente levada para o costado do Pequod, onde foram feitas todas asoperações antes detalhadas, de içar e cortar até o esvaziamento do Tonel deHeidelbergh, ou Estojo.

Enquanto alguns se ocupavam com esta última tarefa, outros se empenhavamem levar os barris maiores, tão logo estivessem cheios de espermacete; e quandochegava a hora certa esse mesmo espermacete era manipulado com cuidadoantes de ser refinado, sobre o que falarei dentro em pouco.

Ele havia esfriado e cristalizado a tal ponto que, quando me sentei com váriosoutros diante de uma imensa banheira de Constantino repleta de espermacete,achei que este endurecera de um modo estranho, com alguns caroços querolavam de um lado para outro na parte líquida. Era nossa tarefa apertar essescaroços para que ficassem líquidos outra vez. Um dever doce e untuoso! Nãoadmira que outrora esse espermacete fosse um cosmético tão apreciado. Quedetergente! Que edulcorante! Que amaciante! Um emoliente tão delicioso! Depoisde colocar aí as minhas mãos apenas por poucos minutos, meus dedos pareciamenguias e começaram, por assim dizer, a ondular e a fazer uma espiral.

Estava ali sentado à vontade, de pernas cruzadas no convés; depois de todo oesforço no molinete; sob um céu azul tranqüilo; o navio de velas indolentesdeslizava com serenidade, enquanto eu banhava as minhas mãos nesses glóbulosmacios e suaves de tecidos infiltrados, urdidos quase naquela mesma hora;enquanto meus dedos os esmagavam, derramando sua opulência como o vinhode uvas bem maduras; enquanto eu cheirava aquele aroma límpido – literal erealmente como o perfume das violetas na primavera –, eu lhe asseguro quenaquele momento estive num prado perfumado com almíscar; esqueci tudosobre o nosso juramento terrível; naquele espermacete inexprimível, lavei asminhas mãos e a minha alma; quase comecei a crer na superstição antiga deParacelso de que o espermacete tem a virtude rara de apaziguar o ardor da ira:enquanto me banhava ali, sentia-me divinamente livre de todo rancor, petulânciaou maldade de qualquer tipo.

Apertar! Apertar! Apertar! Durante toda a manhã, eu apertei aqueleespermacete até que quase me fundi com ele; apertei o espermacete até que umtipo estranho de insanidade tomou conta de mim, e vi-me apertando, sem osaber, as mãos dos meus companheiros dentro dele, confundindo as mãos com os

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caroços macios. Essa tarefa cria um sentimento tão forte, afetuoso, amistoso,amoroso, que, por fim, eu apertava as suas mãos sem parar e olhava nos seusolhos com ternura, como se quisesse dizer: Ó, bem-amados semelhantes, por quecontinuar a acalentar as amarguras em nosso convívio, ou tomar conhecimentodo mau humor e da inveja? Vinde, vamos apertar as mãos à nossa volta; não,vamos nos apertar uns contra os outros; vamos nos apertar universalmente noleite e no espermacete da bondade.

Se eu pudesse apertar o espermacete para sempre! Pois agora, à força daexperiência, percebi que em todos os casos o homem deve diminuir ou, pelomenos, deslocar a idéia que faz da felicidade possível, não a colocando emnenhum lugar do intelecto ou da fantasia, mas na esposa, no coração, na cama,na mesa, na sela, na lareira, no campo; agora que percebi isso, estou pronto paraapertar o estojo para sempre. Nos pensamentos das visões noturnas, vi filascompridas de anjos no paraíso, todos com as mãos numa jarra de espermacete.

Ora, a propósito do espermacete, convém falar de coisas relacionadas a ele, natarefa de preparar o cachalote para a refinaria.

Primeiro vem o chamado white horse, ou cavalo branco, que se obtém da parteafilada do peixe, e também das partes mais espessas da cauda. É duro, temtendões condensados – um chumaço de músculo –, mas contém óleo. Depois deser separado da baleia, o white horse é cortado em retângulos, antes de serpicado. Parece-se muito com blocos de mármore de Berkshire.

Plum-pudding é o termo usado para certas partes fragmentárias da carne dabaleia, que aderem num ou noutro lugar à cobertura de gordura e que muitasvezes participam em alto grau de sua untuosidade. É o objeto mais refrescante,jovial e belo de se observar. Como o nome indica, pudim de ameixa, é de umacor muito intensa e mosqueada, com o fundo com estrias brancas e douradas,marcado por pontos vermelhos e violáceos. São ameixas de rubi sobre figuras delimões. A despeito da razão, é difícil resistir à vontade de comê-las. Confesso queuma vez me escondi atrás do mastro de proa para experimentá-las. Têm o gostode algo que imagino ser um pedaço real da coxa de Louis le Gros, supondo quetivesse sido morto no primeiro dia depois da estação de caça ao veado, e queaquela estação de caça específica tivesse coincidido com uma vindima especialdos vinhedos de Champagne.

Há uma outra substância, muito singular, que surge durante o processo, mas queme parece muito difícil descrever ao certo. É chamada slobgollion, nome originaldado pelos baleeiros, e é também a natureza da substância. É uma coisa

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inexprimível, gosmenta e com limo, encontrada nas tinas de espermacete depoisde muito apertar e decantar. Acredito que são as membranas rotas do estojo,muito finas, que se aglutinaram.

Gurry, assim chamado, é um termo que pertence aos pescadores de baleiasfrancas, mas às vezes é usado ao acaso por pescadores de cachalotes. Designauma substância escura e viscosa que se tira do dorso da baleia franca ou da baleiada Groenlândia, que muitas vezes cobre o convés das almas inferiores que caçamaquele Leviatã desprezível.

Nippers. A palavra no seu sentido estrito, pinça, não é própria do vocabulário dabaleia. Mas em tal se transforma quando é utilizada pelos baleeiros. A pinça deum baleeiro é uma tira firme e curta de um pedaço de tendão cortado da parteafilada da cauda do Leviatã: tem em média uma polegada de espessura, e o restoé mais ou menos do tamanho da parte de ferro de uma enxada. Movida para olado no convés oleoso, atua como uma vassoura de couro, atraindo para si, comopor magia, todas as impurezas.

Mas para aprender sobre todos esses assuntos recônditos é melhor descer de vezpara o quarto da gordura e conversar com os seus moradores. Esse lugar já foimencionado antes como sendo o depósito para os pedaços de gordura, quandotirados da baleia e içados. Chegada a hora certa de cortar o seu conteúdo, esselugar torna-se um espetáculo de terror para todos os principiantes, em especial denoite. De um lado, iluminado por pouca luz, há um espaço para os trabalhadores.Em geral, trabalham em duplas – um com pique e gancho, o outro com a pá. Opique baleeiro é parecido com a arma de abordagem do mesmo nome dasfragatas. O gancho se parece com um gancho de bote. Com o gancho, o homemespeta um pedaço de gordura e faz força para evitar que deslize, quando o naviose atira e muda bruscamente de direção. Enquanto isso, o homem da pá pisa nafolha, cortando-a de lado em pedaços grandes fáceis de transportar. A pá é tãoafiada quanto possível; o homem da pá fica descalço; a coisa sobre a qual seequilibra por vezes escorrega como um trenó. Se ele cortar um dos seus dedos dopé, ou o de um ajudante, isso lhe causaria algum espanto? Os dedos do pé dosveteranos do quarto da gordura são escassos.

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95 A BATINA

Se você tivesse subido a bordo do Pequod num certo momentodaquela autópsia da baleia; e tivesse passeado perto do molinete, estou certo deque teria examinado com muita curiosidade um objeto enigmático muitoesquisito, que teria visto ali, jogado de comprido sobre os embornais desotavento. Nem a cisterna maravilhosa da imensa cabeça da baleia, nem oprodígio da sua mandíbula inferior desconjuntada, nem o milagre da sua caudasimétrica, nada o surpreenderia tanto como a visão daquele cone inexplicável –mais comprido do que um nativo de Kentucky, com quase um pé de diâmetro nabase e negro retinto como Yojo, o ídolo de ébano de Queequeg. É um ídolo, defato; ou melhor, a sua imagem foi outrora. Um ídolo como o que foi encontradonos bosques secretos da rainha Maaca, na Judéia, que, por tê-lo adorado, foideposta pelo rei Asa, seu filho, que destruiu o ídolo, queimando-o como umaabominação no rio Cedron, como está tristemente exposto no décimo quintocapítulo do primeiro Livro de Reis.

Veja o marinheiro, chamado picador, que vem agora, ajudado por doiscompanheiros, e traz nas costas o grandissimus, como dizem os marinheiros, e,com os ombros curvados, cambaleia como se fosse um granadeiro trazendo docampo um colega morto. Estendendo-o no convés do castelo de proa, começa aremover em cilindros a pele escura, como um caçador Africano esfola uma jibóia.Isso feito, vira-lhe a pele do avesso, como a perna de uma calça, dá-lhe umaesticada, até quase lhe dobrar o diâmetro, e, por fim, pendura-a, bem espalhada,no cordame para secar. Pouco depois, a pele é levada para baixo; então, tirando-lhe cerca de três pés perto da extremidade pontiaguda e cortando duas aberturas,como cavas de mangas na outra extremidade, enfia o corpo dentro dela, decomprido. O picador apresenta-se agora diante de você vestido com os trajescanônicos da sua vocação. Imemorial como todas as ordens, essa investidura éuma proteção adequada, quando usada nas funções características do seu ofício.

Esse serviço consiste em picar os imensos pedaços de gordura para oscaldeirões, uma operação que é feita com um estranho cavalo de pau, colocadoperpendicularmente contra a amurada, e com uma tina de madeira espaçosaembaixo, onde caem os pedaços picados, tão rápidos quanto as folhas do atril deum orador arrebatado. Vestido de preto honroso, encontrando-se num púlpitonotável, absorto em folhas de bíblia, que candidato para um arcebispado, quepapa seria esse picador!{a}

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{a} Folhas de bíblia! Folhas de bíblia! Era o grito imutável dos oficiais ao picador. É uma ordem para que sejacuidadoso e corte fatias tão finas quanto puder, pois com isso acelera a tarefa de ferver o óleo, assimcomo aumenta bastante a quantidade, além de talvez aperfeiçoar a qualidade. [N. A.]

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96 A REFINARIA

Além dos botes suspensos, um navio baleeiro norte-americanodiferencia-se, no seu aspecto externo, por sua refinaria. Esta apresenta a anomaliacuriosa de ter uma alvenaria muito sólida que une a madeira do carvalho com ocânhamo, para constituir o navio acabado. É como se um forno de cozer tijolostivesse sido transportado para o seu convés.

A refinaria é colocada entre o mastro da proa e o mastro grande, a parte maisampla do convés. As tábuas embaixo têm uma resistência especial, própria paraagüentar o peso de uma massa compacta de tijolos e argamassa, com umaextensão de cerca de dez por oito pés quadrados e uma altura de cinco pés. Afundação não penetra no convés, mas a alvenaria fica presa com firmeza nasuperfície por meio de pesados suportes de ferro, apertados por todos os lados eparafusados nas tábuas. Dos lados, é cercada por madeira e por cima é cobertapor uma escotilha grande e inclinada com um batente. Tirando-se a escotilhavêem-se os imensos caldeirões, dois no total, cada um com capacidade para váriosbarris. Quando não estão sendo usados, são mantidos bem limpos. Às vezes, sãopolidos com pedra-sabão e areia, até que brilhem como poncheiras de prata.Durante as vigílias noturnas alguns velhos marinheiros cínicos rastejam paradentro deles e ali se enrolam para dar um cochilo. Enquanto se ocupam em poli-los – um homem para cada caldeirão, um do lado do outro –, muitascomunicações secretas são trocadas sobre os lábios de ferro. É também um lugarpara uma reflexão matemática profunda. Foi no caldeirão esquerdo do Pequod,com a pedra-sabão circulando com diligência à minha volta, que me ocorreu,pela primeira vez, o fato notável, na geometria, de que todos os corpos quedeslizam ao longo de um cilindro – a minha pedra-sabão, por exemplo – descemde qualquer ponto usando sempre o mesmo tempo.

Retirando-se o guarda-fogo da frente da refinaria, a alvenaria fica exposta desselado, mostrando as duas bocas de ferro das fornalhas, bem embaixo doscaldeirões. As bocas têm portas pesadas de ferro. O calor intenso do fogo éimpedido de se comunicar com o convés por causa de um reservatório poucoprofundo que se estende sob toda a superfície da refinaria. Um tubo colocadoatrás reabastece esse reservatório assim que a água evapora. Não há chaminésexternas; elas saem direto da parede de trás. E, aqui, vamos retornar um pouco.

Eram quase nove horas da noite quando a refinaria do Pequod começou afuncionar pela primeira vez naquela viagem. Coube a Stubb supervisionar o

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trabalho.“Todos prontos aí? Tirem a escotilha, então, e comecem a trabalhar. Você,

cozinheiro, acenda o fogo.” Isso era uma coisa fácil, pois o carpinteiro tinhajogado os restos de lenha na fornalha durante muito tempo. Diga-se que numaviagem de pesca de baleias o primeiro fogo da refinaria tem que ser alimentadocom lenha durante algum tempo. Depois disso não se usa mais lenha, excetocomo um meio de ignição rápida do combustível básico. Em suma, depois darefinação, a gordura tostada e murcha, chamada sobra ou rijão, ainda guardauma parte considerável de gordura. Os rijões alimentam as chamas. Como ummártir pletórico na fogueira, ou um misantropo se autoconsumindo, uma vez queo fogo é aceso, a baleia fornece o seu próprio combustível e queima o seu própriocorpo. Se pudesse consumir a sua própria fumaça! Pois essa fumaça é horrível deser inalada, e não apenas é forçoso respirá-la como também se é obrigado a viverdentro dela por um tempo. Tem um odor hindu inexprimível e feroz, como oque deve se esconder nas proximidades das piras fúnebres. Tem o cheiro da asaesquerda do dia do Juízo Final; é um argumento a favor do inferno.

Por volta da meia-noite, a refinaria estava em plena atividade. Tínhamos noslivrado da carcaça; navegávamos; o vento refrescava e a escuridão do oceanoferoz era intensa. Mas essa escuridão foi engolida por chamas ardentes, que, vezou outra, se bifurcavam nos canos cheios de fuligem e iluminavam todos os cabosdo cordame no alto, tal como o fogo grego inesquecível. O navio ardenteavançava, como que impiedosamente encarregado de um ato de vingança. Comoos brigues carregados de piche e enxofre do corajoso Canaris de Hidra, saindo dosportos à meia-noite, com imensos lençóis de chamas por velas, atirando-se sobreas fragatas turcas, envolvendo-as em conflagrações.

Retirada a escotilha do topo da refinaria, via-se uma lareira grande à frente. Depé sobre ela ficavam as formas tartáreas dos arpoadores pagãos, que sempre eramos foguistas do navio baleeiro. Com forquilhas imensas atiravam as massas degordura sibilantes nos caldeirões escaldados, ou mexiam no fogo embaixo, atéque as chamas serpentinas disparassem para fora, enroladas, e pegassem-nospelos pés. A fumaça se enrolava formando morros lúgubres. A cada jogada donavio o óleo fervente se movia, parecendo ansioso por saltar-lhes na cara. Dianteda boca da refinaria, além da lareira de madeira ficava o molinete, que servia desofá marítimo. Os homens da vigília descansavam aí, quando não estavamtrabalhando em outra coisa, olhando para o calor vermelho do fogo até os seusolhos se sentirem ressecados. As suas feições morenas, agora sujas de fumaça esuor, as suas barbas desgrenhadas e o brilho extraordinário e contrastante dosseus dentes eram revelados de modo estranho pelo fulgor volúvel das chamas darefinaria. Quando relatavam as suas incríveis aventuras uns aos outros, os seus

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contos de terror narrados com palavras alegres, quando as suas risadasincivilizadas se bifurcavam no alto, como as chamas do forno, quando diantedeles os arpoadores arrebatados mexiam as enormes forquilhas e conchas,quando o vento uivava e o mar pulava, e o navio gemia e mergulhava, e, noentanto, inabalável, não deixava de levar o seu inferno vermelho cada vez maispara dentro da escuridão do mar e da noite, e, com desdém, mascava o ossobranco na boca e cuspia com maldade por todos os lados, naquele momento, oPequod impetuoso, carregado de selvagens, abarrotado de fogo, queimando umcadáver e mergulhando na escuridão tenebrosa, parecia uma cópia feita damatéria da alma do seu comandante monomaníaco.

Assim me parecia, quando, durante horas, ficava ao timão guiando em silêncioo navio de fogo no mar. Eu mesmo, mergulhado em trevas durante aqueletempo, via melhor o ardor, a loucura e o horror dos outros. A visão incessante deformas diabólicas diante de mim, saltando na fumaça e no fogo, acabou por gerarvisões análogas na minha alma, tão logo comecei a ceder à sonolênciaincompreensível que sempre me acometia no leme à meia-noite.

Mas naquela noite, em especial, uma coisa estranha (e até hoje inexplicável)aconteceu comigo. Acordando sobressaltado de um cochilo em pé, tiveconsciência, de um modo horrível, de que alguma coisa estava fatalmente errada.A cana do leme de osso da mandíbula feria as minhas costelas, que se apoiavamnela; nos meus ouvidos sussurravam as velas, começando a se agitar ao vento;achei que os meus olhos estavam abertos; tenho quase certeza de que levei osmeus dedos às pálpebras e lembro de apartá-las mecanicamente. Mas, apesardisso tudo, não vi a bússola diante de mim para me guiar, embora me parecesseque um minuto antes eu tinha examinado a carta à luz da lamparina da bitáculaque a iluminava. Parecia não existir nada diante de mim a não ser um breuabsoluto que, vez ou outra, virava terrível devido aos vermelhos clarões. A minhaimpressão mais forte era de que, por mais rápida e impetuosa que fosse aquelacoisa na qual eu estava, ela não estava se dirigindo a um porto à frente, mas quefugia de todos os portos que deixava para trás. Uma sensação violenta edesnorteante, como de morte, invadiu-me. As minhas mãos se agarraramconvulsivamente ao leme, mas tive a impressão enlouquecida de que o leme, poralgum encantamento, estava invertido. Meu Deus! O que há comigo?, pensei. Oh!No meu cochilo tinha me virado e estava de frente para a popa do navio, decostas para a proa e para a bússola. Num instante, dei uma volta, bem em tempode evitar que o navio se virasse contra o vento e que, com toda a probabilidade,emborcasse. Que gratidão e alegria senti quando me livrei da alucinaçãosobrenatural da noite e da contingência fatal de ser arrastado para sotavento!

Não olhe por muito tempo para o fogo, homem! Nunca sonhe com a mão no

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timão! Não vire de costas para a bússola, aceite a primeira sugestão da cana doleme; não acredite no fogo artificial, quando a sua vermelhidão faz com quetodas as coisas pareçam terríveis. Amanhã, à luz natural do sol, os céus brilharão;aqueles que brilharam como demônios nas chamas bifurcadas, de manhãmostrar-se-ão com outro relevo, mais suave; o sol alegre, dourado e glorioso, aúnica lamparina verdadeira – todas as outras são mentirosas!

Contudo, o sol não esconde o pântano horroroso de Virginia, nem a campanhamal-aventurada de Roma, nem o imenso Saara, nem os milhões de milhas dedesertos e de adversidades sob a lua. O sol não esconde o oceano, que é o ladoescuro da Terra, que ocupa dois terços da Terra. Por conseguinte, o homemmortal que traz dentro de si mais alegria do que tristeza, tal homem não pode serverdadeiro – não verdadeiro, ou mal desenvolvido! O mesmo sucede com oslivros. O homem mais verdadeiro de todos foi o Homem das Tristezas, e o livromais verdadeiro o de Salomão: o Eclesiastes é o magnífico aço temperado da dor.“Tudo é vaidade.” TUDO. Este mundo obstinado ainda não apreendeu a sabedoriade Salomão. Mas aquele que evita os hospitais e as prisões e caminha depressanos cemitérios, prefere conversar sobre óperas a conversar sobre o inferno; chamaCowper, Young, Pascal e Rousseau de pobres-diabos doentes; e durante a vidadespreocupada jura que Rabelais é o mais sábio e por isso o mais alegre – essehomem não está apto a se sentar nas lápides sepulcrais e quebrar a relva verde eúmida com o maravilhoso e incomensurável Salomão.

Mas o próprio Salomão diz: “O homem que se afasta do caminho doentendimento permanecerá” (isto é, mesmo enquanto vivo) “na companhia dosmortos”. Não te entregues, portanto, ao fogo, para que ele não te altere e não teenfraqueça, como fez comigo por algum tempo. Existe uma sabedoria que é dor,mas existe uma dor que é insanidade. E existe uma águia de Catskill em certasalmas que consegue mergulhar nos desfiladeiros mais sombrios, subir de volta etornar-se invisível nos lugares ensolarados. E, ainda que voasse no desfiladeiropara sempre, o desfiladeiro fica nas montanhas; e assim, mesmo na sua investidamais rasa, a águia da montanha ainda voa mais alto do que todos os pássaros dasplanícies, por mais alto que voem.

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97 A LAMPARINA

Se, por um instante, você tivesse descido da refinaria doPequod para o castelo de proa do Pequod, onde os homens que estavam de folgadormiam, teria quase acreditado que estava de pé num santuário iluminado dereis e conselheiros canonizados. Estavam deitados ali nas suas criptas triangularesde carvalho, todos os marinheiros talhados em silêncio; cerca de vinte lamparinascintilando sobre os seus olhos fechados.

Nos navios mercantes, para o marinheiro, o óleo é mais raro do que o leite dasrainhas. Vestir-se no escuro, comer no escuro e cair na cama no escuro é ocostume. Mas o baleeiro, como procura o alimento da luz, também vive na luz.Transforma o seu beliche numa lâmpada de Aladim e deita-se nele; de tal modoque, na noite mais escura, o casco negro do navio sempre irradia uma claridade.

Veja com que liberdade absoluta o baleeiro pega um punhado de lamparinas –amiúde apenas garrafas e frascos velhos – e leva ao refrigerador de cobre darefinaria, para abastecê-las, como canecas de cerveja num tonel. Também queimao óleo mais puro, no seu estado mais bruto e, portanto, incorrupto; um fluidoque as invenções solares, lunares e astrais da terra firme desconhecem. É tãosuave quanto a manteiga de vacas no pasto em abril. Ele busca o seu óleo para tercerteza do seu frescor e da sua autenticidade, tal como o viajante no campo buscaa caça para o seu jantar.

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98 ARRUMAÇÃOE LIMPEZA

Já foi descrito como o grande Leviatã é avistado ao longe dotopo do mastro; como é perseguido sobre as charnecas de

água e como é abatido nos vales marinhos; como é rebocado para o costado edegolado; e como (baseado no mesmo princípio que dava ao carrasco as roupasdo decapitado) o seu sobretudo forrado se torna propriedade do executor; como,na hora devida, é condenado aos caldeirões, e como Sidrac, Misac e Abdenago, oseu espermacete, óleo e ossos, passam incólumes pelo fogo. Mas ainda faltaconcluir o último capítulo sobre esta parte da descrição contando – cantando, sepossível – o processo romântico de colocar o óleo nos tonéis e levá-los para baixo,para o porão, quando mais uma vez o Leviatã retorna às suas profundezasnaturais, deslizando sob a superfície como antes, mas, oh!, para nunca mais subire soprar.

Ainda quente, o óleo, da mesma forma que o ponche, é colocado em tonéis deseis barris; e, quando o navio é sacudido e jogado de um lado para o outro nomar à meia-noite, os tonéis enormes são jogados e caem de ponta-cabeça, e, àsvezes, deslizam perigosamente pelo convés escorregadio, da mesma forma queocorrem tantos deslizamentos em terra, até que, por fim, são apanhados edetidos na sua corrida; e em volta dos aros, toque, toque, batem tantos martelosquantos possam trabalhar neles, pois nesse momento, ex officio, todos osmarinheiros são toneleiros.

Por fim, quando o último quartilho foi colocado no tonel, e tudo está calmo,as grandes escotilhas são abertas, as entranhas do navio ficam escancaradas, e ostonéis descem para o seu descanso final no oceano. Feito isso, as escotilhas sãorepostas, fechadas hermeticamente, como um gabinete emparedado.

Na pesca de cachalotes, esse talvez seja um dos fatos mais notáveis de toda apescaria. Num dia, correntes de sangue e de óleo escoam pelas tábuas; no sagradotombadilho superior, volumes imensos da cabeça da baleia são empilhados demodo profano; enormes tonéis enferrujados ficam espalhados como no pátio deuma cervejaria; a fumaça da refinaria suja a amurada de fuligem; os marujoscirculam cobertos de gordura; o navio todo parece o próprio Leviatã, enquanto,por toda parte, o alarido é ensurdecedor.

Mas um ou dois dias mais tarde você olha à sua volta nesse mesmo navio, comos ouvidos bem atentos; e, se não fosse pelos botes e pela refinaria, juraria estarpasseando sobre um navio mercante silencioso, com um escrupuloso capitão

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amante da limpeza. O óleo bruto do cachalote tem uma qualidade detergentesingular. Esse é o motivo pelo qual o convés nunca parece mais branco do quelogo após a chamada “operação do óleo”. Além disso, das cinzas dos restosqueimados da baleia faz-se uma lixívia poderosa, prontamente; e sempre quealguma viscosidade do dorso da baleia fica presa ao costado, a lixívia a extermina.Os marinheiros vão diligentes para a amurada e restauram sua limpeza absolutacom os baldes de água e com os panos. A fuligem é tirada com uma escovada nocordame de baixo. Todos os inúmeros implementos que foram usados tambémsão limpos com cuidado e guardados. A grande escotilha é esfregada e colocadasobre a refinaria, escondendo os caldeirões por completo; todos os tonéis sãoguardados; todas as talhas são colocadas em cantos não visíveis; e quando, com otrabalho reunido e simultâneo de quase toda a tripulação do navio, essa tarefameticulosa é levada a cabo, então os marinheiros começam as suas própriasabluções; trocam de roupa dos pés à cabeça; por fim, surgem no convésimaculado, viçosos e incandescentes como noivos recém-saídos da mais delicadaHolanda.

Nesse momento, com passos de júbilo, passeiam pelo convés em grupos dedois ou três e conversam alegres sobre salas de visitas, sofás, tapetes e cambraiasdelicadas; sugerem colocar tapetes no convés; imaginam ter cortinas até o alto;não fazem objeções a tomar chá ao luar, na varanda do castelo de proa. Seriapouco menos do que uma audácia fazer menção a óleo, ossos ou gordura junto amarinheiros tão perfumados. Ignoram essa coisa a que você se refere. Vá e traga-nos guardanapos!

Mas atenção: lá em cima, no topo dos três mastros, há três homensempenhados em procurar mais baleias, que se forem apanhadas voltarãoinevitavelmente a sujar a velha mobília de carvalho e deixarão cair pelo menosuma mancha de gordura em algum lugar. Sim, não foram poucas vezes que,depois de um trabalho ininterrupto muito árduo, que não conheceu a noite;contínuo ao longo de noventa e seis horas; depois de saídos do bote com ospulsos inchados de tanto remar o dia todo na linha do Equador – eles pisam noconvés apenas para levar as correntes enormes e içar o molinete pesado, e cortare fatiar, sim, para serem queimados e enfumaçados, sob os seus próprios suores,pelos fogos unidos do sol equatorial e da refinaria equatorial; quando semexeram, depois disso tudo, por fim, para limpar o navio, e transformá-lo emalgo como uma leiteria incólume; não foram poucas vezes que esses pobrescoitados, mal tendo abotoado o colarinho das suas vestes limpas, foram alertadospelo grito de “Lá ela sopra!” e correram para lutar contra outra baleia, e passarampor toda aquela coisa cansativa de novo. Oh! Meus amigos, mas isso é de matar!Mas a vida é assim. Pois, nós mortais mal extraímos, com muito trabalho, o

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escasso porém valioso espermacete do imenso volume desse mundo; e com umapaciência incansável, mal nos limpamos das sujeiras; e aprendemos a viver aqui,nos tabernáculos limpos da alma; mal isso foi levado a cabo, quando – “Lá elasopra!” – o fantasma torna a se levantar e navegamos para lutar contra um outromundo, e recomeçamos a velha rotina da nossa juventude outra vez.

Oh! A metempsicose! Oh! Pitágoras, que na Grécia esplêndida, há dois milanos, morreu tão generoso, tão sábio, tão suave; naveguei contigo pela costaperuana, na última viagem – e, tolo que sou, um rapaz simples e novato, ensineia ti como se amarra uma corda!

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99 O DOBRÃO

Já foi descrita a maneira pela qual Ahab andava pelo tombadilhosuperior, dando voltas regulares nos dois extremos, na bitácula e no mastroprincipal; mas, na multiplicidade de outras coisas que pedem um relato, não foidito que, nesses passeios, às vezes, Ahab, mergulhado em si mesmo, costumavadeter-se em cada um desses pontos e ficar parado ali a olhar de modo estranhopara o objeto específico que tinha diante de si. Quando parava diante da bitácula,com o olhar fixo na agulha pontiaguda da bússola, o seu olhar parecia oarremesso de um dardo com a intensidade pontiaguda da sua determinação; equando, ao retomar o passeio, detinha-se outra vez diante do mastro principal,então, o mesmo olhar fixo se concentrava na moeda de ouro ali fixada, e elemantinha o mesmo aspecto de resolução férrea, só que marcado por uma espéciede desejo, se não esperançoso, turbulento.

Mas, certa manhã, voltando-se na direção do dobrão, Ahab pareceu sentir-seatraído como nunca antes pelas figuras e inscrições estranhas gravadas na moeda,como se tentasse interpretar para si, pela primeira vez, de um modomonomaníaco, algum significado oculto. Certos significados ocultam-se em todasas coisas, caso contrário todas as coisas teriam pouco valor, e o próprio mundoseria apenas um zero vazio, bom para ser vendido como a carga de uma carroça,como se faz nas colinas perto de Boston, para aterrar algum pântano da ViaLáctea.

Mas esse dobrão era de ouro puro e bruto, extraído de algum lugar no coraçãode colinas maravilhosas, onde, ao ocidente e ao oriente, correm sobre as areiasdouradas as águas de vários Pactolos. Embora estivesse preso na ferrugem dosparafusos de ferro e no azinhavre dos pregos de cobre, ainda conservava intacto obrilho de outrora de Quito. E ainda que estivesse no meio de uma tripulaçãoperversa, passando a toda hora por pessoas perversas, e nas noites intermináveisenvolto pelas trevas densas que poderiam encobrir uma aproximação furtiva,toda aurora encontrava o dobrão onde o poente o tinha deixado. Pois estavaseparado e santificado para um fim aterrorizante; e, por mais libertinos que osmarinheiros fossem, todos o reverenciavam como o talismã da baleia branca. Porvezes, conversavam sobre ele nas cansativas vigílias à noite, imaginando quemseria o proprietário no final, e se este viveria o bastante para gastá-lo.

Mas essas magníficas moedas de ouro da América do Sul são medalhas do sol esímbolos dos trópicos. As suas palmeiras, as alpacas e os vulcões; os discos solares

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e as estrelas; as eclípticas, as cornucópias, e as bandeiras magníficas tremulandoestão gravadas em luxuriosa abundância, de tal modo que o ouro precioso parecequase derivar uma riqueza ulterior e glórias acentuadas ao ser cunhado emmoedas tão fantasiosas, tão espanholas, tão poéticas.

Quis a sorte que o dobrão do Pequod fosse um exemplo riquíssimo dessascoisas. Na sua borda circular trazia escrito REPUBLICA DEL ECUADOR: QUITO. Portanto,essa moeda reluzente procedia de um país situado na metade do mundo, sob alinha do grande Equador, da qual emprestava o nome, e tinha sido cunhada nomeio dos Andes, naquele clima invariável que não conhece o outono. Rodeadapor aquelas letras via-se a imagem de três picos dos Andes e, sobre o primeiro,uma flama; uma torre, sobre o segundo; sobre o terceiro pico, um galo quecantava; um segmento do zodíaco dividido ficava arqueado sobre os três, com ossignos representados de modo cabalístico, e o sol, princípio básico, entrando noponto do equinócio em Libra.

Diante dessa moeda equatorial, Ahab, não sem ser notado pelos outros, ficouparado naquele momento.

“Há sempre uma coisa egoísta nos picos das montanhas e nas torres, e emtodas as outras coisas grandes e elevadas; vê só – três picos, tão orgulhosos quantoLúcifer. A torre firme, assim é Ahab; o vulcão, assim é Ahab; a ave corajosa,indômita e vitoriosa, assim é Ahab; todos são Ahab; esse ouro redondo é apenas aimagem de um globo redondo, que, como uma bola de cristal, espelha para todoe qualquer homem apenas o seu próprio eu misterioso. Muito esforço e poucosganhos para os que pedem ao mundo que lhes dê uma explicação; o mundo nãopode explicar-se. Penso que esse sol em forma de moeda tem um rosto vermelho;mas vê! Sim, está entrando no signo das tempestades, no equinócio! Mas seismeses atrás saiu do equinócio anterior em Áries! De tempestade em tempestade!Que assim seja, então. Parido com dores, é certo que o homem viva comsofrimento e morra em agonia! Que assim seja, então! Eis um bom material parao infortúnio. Que assim seja, então!”

“Nenhum dedo de fada pode ter gravado esse ouro, mas as garras do diabodevem ter deixado suas impressões desde ontem”, murmurou Starbuck para simesmo, apoiando-se na amurada. “O velho parece estar lendo a inscrição terrívelde Baltasar. Nunca observei a moeda em detalhe. Ele desce; vou examiná-la. Umvale sombrio entre três picos poderosos quase tocando o céu, parece quase umsímbolo terreno e simples da Trindade. Assim, nesse vale da Morte, Deus noscerca; e sobre a nossa tristeza o sol da Justiça resplandece como um farol e comouma esperança. Ao abaixarmos os olhos, o vale sombrio mostra seu solobolorento, mas, ao levantá-los, o sol fulgurante vem ao nosso encontro para nosalegrar. Mas, oh, o sol não é imóvel e se quiséssemos obter algum consolo à meia-

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noite debalde olharíamos para o alto! A moeda fala com sabedoria, doçura everdade, mas com tristeza comigo. Vou deixá-la para que a Verdade não meperturbe falsamente.”

“Eis o velho Grão-Mogol”, Stubb soliloquiou, próximo à refinaria, “que acabade examiná-la; e lá vai Starbuck depois de ter feito o mesmo, ambos com carasque daqui eu diria terem nove braças de comprimento. Tudo por causa de umamoeda de ouro que eu não olharia por muito tempo antes de gastar se a tivesseem Negro Hill ou em Corlaer’s Hook. Hum! Na minha simples e insignificanteopinião, acho isso esquisito. Já vi dobrões em outras viagens, os dobrões da velhaEspanha, os dobrões do Peru, os dobrões do Chile, os dobrões da Bolívia, osdobrões de Popayán, junto com muitas dobras e outras moedas de ouro, e réis deprata, muitos réis de prata e quartos de réis de prata de Portugal. O que haveránesse dobrão do Equador que é tão irresistivelmente maravilhoso? Pela Golconda!Deixa-me ir vêlo uma vez. Puxa! Tem mesmo signos e maravilhas! É o que o velhoBowditch no seu Epítome chama de Zodíaco, e meu almanaque lá embaixotambém. Vou buscar o almanaque! E, como ouvi dizer que os demônios podemser chamados com a aritmética de Daboll, vou tentar encontrar um sentido nestascoisas estranhas com o calendário de Massachusetts. Eis o livro. Vamos ver. Signose maravilhas, e o sol sempre entre eles. Hum, hum, hum; ei-los – aí estão – lá sevão – todos vivos: Carneiro, ou Áries; Taurus, ou Touro; e Jimini! Aqui estáGemini, ou Gêmeos. Bem, o sol gira ali no meio. Sim, aqui na moeda estáatravessando a porta entre duas das doze salas que formam uma roda. Livro! Ficaaí; a verdade é que vocês, livros, devem saber qual é o seu lugar. Vocês nos dãoapenas as palavras e os fatos, mas nós provemos os pensamentos. Esta é a minhaparca experiência, com respeito ao calendário de Massachusetts, ao navegador deBowditch e à aritmética de Daboll. Signos e maravilhas, hein? Que pena se nãohouver nada de maravilhoso nos signos, nem de significativo nas maravilhas! Háum indício em algum lugar; espere um pouco; psiu – ouça! Por Jove, ei-lo! Veja,Dobrão, o seu zodíaco é a vida do homem em um só capítulo: e agora vou lê-la,direto do livro. Venha, Almanaque! Para começar: eis Carneiro, ou Áries – cãodevasso, ele nos gera; depois Taurus, ou Touro – ele nos dá o primeiro golpe;depois Gemini, ou Gêmeos – ou seja, a virtude e o vício; experimentamos aVirtude quando chega o Caranguejo, Câncer, e nos leva para trás; aqui, partindoda Virtude, Leo, um Leão que ruge, está deitado no caminho – ele morde feroz,por vezes, e dá umas patadas certeiras; escapamos e saudamos Virgo, a Virgem! Éo nosso primeiro amor; casamo-nos, pensamos que seremos felizes para sempre,quando de pronto vem Libra, ou Balança – a felicidade é pesada, o peso é pouco;enquanto estamos tristes por isso, meu Deus, damos um pulo repentino quandoScorpio, ou Escorpião, nos dá uma ferroada pelas costas; estamos tratando da

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ferida quando de súbito flechas nos cercam por todos os lados; o Arqueiro, ouSagitário, está se divertindo. Quando tiramos as flechas, sai da frente, chega oaríete Cabra, Capricórnio, a toda a velocidade, vem correndo, e somos jogados decabeça para baixo; quando o Carregador de Água, ou Aquário, verte todo o seudilúvio e nos afoga; e para concluir, com Pisces, ou Peixes, nós dormimos. Eis umsermão escrito nas alturas, onde o sol aparece todos os anos, e, contudo, sai delevivo e vigoroso. Lá em cima, alegre, passa por labutas e dificuldades, enquanto cáembaixo o alegre Stubb faz o mesmo. Oh, que mundo alegre para vocês! Adeus,Dobrão! Mas espera aí! Lá vem King-Post; vou me esconder atrás da refinaria,agora, e ouvir o que ele tem a dizer. Isso! Ele está diante da moeda, já dirá algo.Isso, isso, está começando.”

“Não vejo nada aqui, salvo uma coisa redonda feita de ouro, e quem avistaruma certa baleia receberá essa coisa redonda. Pois então, por que é que todomundo fica olhando? Vale dezesseis dólares, é verdade; cada charuto custa doiscentavos, isso dá novecentos e sessenta charutos. Não fumo cachimbos imundoscomo Stubb, mas gosto de charutos, e aqui tem novecentos e sessenta, e por issoFlask está subindo agora para observar.”

“Devo chamar a isto de sabedoria ou de bobagem? Se for sabedoria, temaspecto de bobagem; mas, se for mesmo uma bobagem, tem certa sabedoria.Basta! Aí vem o nosso velho homem da ilha de Man – deve ter sido um cocheirode carros fúnebres, isto é, antes de vir para o mar. Está indo para a bolina à frentedo dobrão; puxa, deu a volta do outro lado do mastro; ora, tem uma ferradurapregada daquele lado; está voltando de novo agora; o que é isso? Veja! Estámurmurando – a voz se parece com a de uma velha máquina de café quebrada.Preste atenção e escute!”

“Se a Baleia Branca for avistada, isso acontecerá dentro de um mês e um dia,quando o sol estiver em um desses signos. Estudei os signos e conheço as figuras;a bruxa velha de Copenhague ensinou-me quatro décadas atrás. Ora, em quesigno estará o sol nessa ocasião? No signo da ferradura, pois está ali, do ladocontrário do ouro. E o que é o signo da ferradura? O leão é o signo da ferradura –o leão que ruge e devora. Navio, meu velho navio! A minha cabeça velhaestremece ao pensar em ti!”

“Existe uma outra versão, mas é o mesmo texto. Todos os tipos de homens emum só tipo de mundo, bem se vê. Esconder-me, outra vez! Aí vem Queequeg –todo tatuado –, parece com os próprios signos do Zodíaco. O que diz o Canibal?Pela minha vida, ele está comparando os sinais; está olhando para o seu fêmur;acho que pensa que o sol fica na coxa, ou na panturrilha, ou nas tripas, como asvelhas do campo falam sobre a Astronomia do Cirurgião. Por Jove, achou algumacoisa perto da sua coxa – acho que é Sagitário, o Arqueiro. Não, ele não sabe o

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que pensar do dobrão, confunde-o como um botão velho das calças de um rei.Mas para o lado, outra vez! Aí vem o demônio-fantasma, Fedallah, com a caudaenrolada como sempre, e com estopa na ponta dos sapatos como sempre. O quediz, com aquele olhar que tem? Ah, só faz um sinal para o sinal e se curva; temum sol na moeda – adorador do fogo, sem dúvida. Oh! Mais e mais. Ali vem Pip –coitado! Se tivesse morrido, ou eu, sinto quase horror ao vê-lo. Ele também está aobservar esses intérpretes – eu inclusive –, e, veja, vai ler com o rosto sobrenaturalde um idiota. Vai para o lado outra vez e escuta o que ele diz. Escuta!”

“Eu olho, tu olhas, ele olha, nós olhamos, vós olhais, eles olham.”“Pela minha alma, ele anda estudando a gramática de Murray! Aperfeiçoando

o espírito, coitado! Mas o que diz agora – psiu!”“Eu olho, tu olhas, ele olha, nós olhamos, vós olhais, eles olham.”“Ora, está decorando – psiu! Outra vez!”“Eu olho, tu olhas, ele olha, nós olhamos, vós olhais, eles olham.”“Isso é engraçado.”“E eu, tu, e ele; e nós, vós, e eles, somos todos morcegos; e eu sou um corvo,

especialmente quando fico de pé no alto desse pinheiro aqui. Crau! Crau! Crau!Crau! Crau! Crau! Não sou um corvo? Cadê o espantalho? Está ali, dois ossosenfiados em uma calça velha, e mais dois colocados nas mangas de um casacovelho.”

“Será que está falando de mim? – lisonjeiro! – coitado! – eu poderia meenforcar. De qualquer modo, por enquanto, vou deixar essa proximidade comPip. O resto ainda consigo agüentar, pois estão lúcidos, mas esse aí está muitolouco para a minha sanidade. Assim, assim, deixo-o a murmurar.”

“Este dobrão aqui é o umbigo do navio, e todos estão em chamas para soltá-lo.Mas, se soltarem o umbigo, qual será a conseqüência? Mas também, se ele ficaraqui a coisa também ficará feia, pois quando há alguma coisa pregada no mastroé sinal que as coisas vão mal. Ha, ha! Velho Ahab! A Baleia Branca vai pregar você!Isso é um pinheiro. O meu pai, no condado de Tolland, certa vez cortou umpinheiro e encontrou um anel de prata que cresceu junto com ele, uma aliançade um velho negro. Como foi parar ali? Também vão perguntar o mesmo naressurreição, quando vierem buscar esse mastro velho e encontrarem o dobrãopreso, com ostras incrustadas na sua casca áspera. Oh, o ouro! O ouro precioso,precioso! – o miserável verde guardará você em breve! Deus vai entre os mundoscolhendo amoras. Cozinheiro! Ó, cozinheiro! Estamos fritos! Jenny! ei, ei, ei, ei, ei,Jenny, Jenny! Faz logo o teu pão!”

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100 A PERNA E O BRAÇO(O PEQUOD DE NANTUCKET ENCONTRA O SAMUEL ENDERBY DE LONDRES)

“Ó, de bordo! Viste a Baleia Branca?”Ahab gritou, saudando mais uma vez um navio com as cores da Inglaterra, que

passava à ré. Com a trombeta na boca, o velho estava de pé no seu bote içado notombadilho, com a sua perna de marfim à mostra para o capitão estrangeiro, queestava apoiado indolentemente na proa do seu bote. Era um homem de pelebronzeada, robusto, jovial e de boa aparência, por volta dos sessenta anos; vestiauma jaqueta comprida de tecido azul-marinho que o envolvia como umagrinalda; uma manga vazia do seu casaco ondulava atrás dele como a mangabordada de um capote de hussardo.

“Viste a Baleia Branca?”“Vê isso aqui?”, disse o outro, retirando das dobras que o escondiam, agitou

um braço branco de osso de cachalote, preso numa ponta de madeira como umramalhete.

“Homens para o meu bote!”, gritou Ahab, impetuoso, jogando os remos queestavam perto dele. “Preparai-vos para descer!”

Em menos de um minuto, sem deixar a sua pequena embarcação, ele e atripulação foram lançados à água, e logo estavam junto ao estrangeiro. Masnaquele momento apresentou-se uma dificuldade curiosa. Naquela grandeexcitação, Ahab esqueceu-se de que nunca mais tinha pisado a bordo de outronavio que não fosse o seu, desde que tinha perdido a perna, e isso por causa deum dispositivo mecânico engenhoso do Pequod, que não poderia ser armado oucolocado em nenhum outro navio de uma hora para a outra. Ora, não é tarefamuito fácil para ninguém – exceto para os baleeiros – subir pelo costado de umnavio de um bote em mar aberto; pois, de início, as ondas grandes levantam obote até a amurada, para em seguida deixá-lo cair antes de alcançar a carlinga.Assim, destituído de uma perna, e não tendo o navio estrangeiro nenhum tipo deinvenção que o favorecesse, mais uma vez, Ahab viu-se vergonhosamentereduzido ao estado de um homem da terra desajeitado, olhando sem esperançapara as alturas incertas e movediças que jamais conseguiria alcançar.

Talvez já se tenha dito antes que sempre que algum revés menor o acometia,que tinha alguma relação com o seu infortúnio, isso quase sempre irritava e

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exasperava Ahab. Nesse caso, essa sensação intensificava-se ao ver dois oficiais donavio estrangeiro, debruçados na amurada, junto a uma escada perpendicular depaus firmes, jogando um par de cordas decoradas com bom gosto na sua direção;pois, de início, pareciam não acreditar que um homem de uma perna só pudesseestar tão aleijado que não conseguisse usar o corrimão. Mas o constrangimentodurou apenas um minuto, pois o capitão estrangeiro, ao perceber o estado dascoisas, gritou: “Já vi! Já vi! Basta de erguer aí! Pulai, rapazes, e suspendei a talha”.

Quis a sorte que, um ou dois dias antes, tivessem tido uma baleia ao costado, eas talhas grandes ainda estavam no alto, com o gancho pesado da gordura, agoralimpo e seco, ainda preso à extremidade. Foi baixado depressa para Ahab, que depronto compreendeu tudo, apoiou a sua única perna na curva do gancho (eracomo se sentar na ponta de uma âncora, ou na forquilha de uma macieira), deu osinal, agarrou-se com firmeza, e, ao mesmo tempo, ajudou a levantar o seupróprio peso puxando, com uma mão após a outra, uma das partes corrediças datalha. Logo foi içado com cuidado para o interior da amurada alta e colocadocom delicadeza no alto do cabrestante. Com o seu braço de marfim cordialmenteestendido para dar as boas-vindas, o outro capitão aproximou-se, e Ahab estirou asua perna de marfim de modo a cruzá-la com o braço de marfim (como duasnadadeiras de peixes-espadas) e exclamou à maneira de uma morsa: “É isso aí, éisso mesmo, meu caro! Toquemos os ossos! – um braço e uma perna! –, um braçoque nunca vai encolher, e uma perna que nunca vai correr. Quando viste a BaleiaBranca? – há quanto tempo?”

“A Baleia Branca”, disse o inglês, apontando o seu braço de marfim para oleste, e olhando pesaroso por ele, como se fosse um telescópio, “Eu a vi na linhado Equador, na última temporada”.

“E ela arrancou o teu braço, não é?”, perguntou Ahab, descendo do cabrestantee apoiando-se no ombro do inglês, enquanto falava.

“Sim! Foi a causa disto, pelo menos; dessa perna também?”“Conta-me os pormenores”, disse Ahab; “como aconteceu?”“Era a primeira vez na vida que eu navegava na linha do Equador”, começou o

inglês. “Nada sabia sobre a Baleia Branca naquela época. Pois bem, certo dia,descemos os botes para ir atrás de um bando de quatro ou cinco baleias, com omeu bote preso a uma delas; era um autêntico cavalo de circo, girava como ummoinho, tantas vezes e de tal modo que a tripulação do meu bote só conseguiuequilibrá-lo sentando-se na borda do bote na popa. De repente, do fundo do mar,irrompeu uma baleia imensa, com a cabeça e a corcova brancas como leite,cobertas de pés-de-galinha e rugas.”

“Era ele, era ele!”, gritou Ahab, soltando de repente a respiração presa.“E arpões cravados próximos à nadadeira a estibordo.”

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“Sim, sim – eram meus – ‘meus ferros”, gritou Ahab, exultante, “masprossiga!”

“Se deixares”, disse o inglês, de bom humor. “Pois bem, esse bisavô velhinho,com a cabeça e a corcova brancas, coberto de espuma, precipitou-se contra obote e furioso abocanhou a minha corda presa.”

“É isso, estou vendo! – queria quebrá-la, libertar o peixe preso – um dos seusvelhos ardis – eu o conheço.”

“Não sei como foi exatamente”, continuou o comandante maneta, “mas aomorder a corda esta se enredou nos seus dentes e ali ficou presa; não o sabíamosentão; de modo que quando puxamos a corda em seguida, cataplum!, saltamosdireto para a sua corcova! – enquanto a outra baleia fugia para sotavento, com acauda para cima. Ao perceber em que pé as coisas estavam, e como a enormebaleia era soberba – a maior e mais soberba que já vi em toda a minha vida,senhor –, resolvi capturá-la, apesar da raiva furibunda que ela parecia sentir. Epensando que a corda pudesse se soltar por acaso, ou que o dente ao qual estavapresa pudesse cair (pois tenho uma tripulação diabólica quando se trata de puxara corda); pensando nisso tudo, pulei para o bote do meu primeiro oficial – o sr.Mounttop aqui (a propósito, Capitão – Mounttop, Mounttop – Capitão) –, comodizia, pulei para o bote de Mounttop, que, veja bem, estava encostado ao meunaquele momento, agarrei o primeiro arpão, e atirei naquele bisavô velhinho.Mas, misericórdia, senhor – no mesmo instante, em um segundo, fiquei cegocomo um morcego – dos dois olhos – envoltos na névoa e nas trevas de umaespuma negra – a cauda da baleia apareceu ali, perpendicular no ar, como umcampanário de mármore. De nada adiantaria recuar naquele momento; masenquanto eu tateava ao meio-dia, com um sol que cegava como as jóias da coroa;enquanto procurava o segundo arpão, para atirá-lo – a cauda desabou, como atorre de Lima, quebrando o meu bote ao meio, estilhaçando as duas metades; acauda, primeiro, e depois a corcova branca, ele recuou, passando pelos destroçoscomo se fossem aparas. Nós todos nadamos. Para escapar dos seus golpesterríveis, agarrei o cabo do meu arpão e por um momento fiquei preso a elecomo um peixinho. Mas uma onda ao quebrar jogou-me para fora dali, e nomesmo instante o peixe, dando um salto para a frente, mergulhou de súbito, e afarpa do segundo arpão maldito estando perto de mim, atingiu-me aqui –”(colocou sua mão logo abaixo do ombro); “sim, atingiu-me bem aqui e levou-mepara baixo, para as chamas do inferno, segundo parecia, quando – quando, derepente, graças ao bom Deus, a farpa abriu caminho pela carne – por toda aextensão do meu braço – saindo perto do pulso, e eu subi para a superfície – e ocavalheiro aqui irá lhe contar o resto (a propósito, capitão, Dr. Bunger, o cirurgiãodo navio; Bunger, meu jovem, o capitão). Pois bem, Bunger, meu jovem, conta a

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tua parte.”O profissional, apontado com tanta familiaridade, tinha estado o tempo todo

perto deles, sem nada de muito especial que indicasse a sua distinção a bordo.Tinha o rosto bem redondo, mas pacato, vestia uma túnica ou camisa de lã azuldesbotada e calças com remendos; até então, tinha dividido a sua atenção entreuma escápula que trazia numa mão e uma caixa de remédios que trazia na outra,lançando vez ou outra um olhar crítico aos membros de marfim dos dois capitãesaleijados. Mas, quando o seu superior o apresentou a Ahab, curvou-se educado emostrou-se disposto a obedecer às ordens do capitão.

“Foi um ferimento deveras horrível”, começou o cirurgião do baleeiro, “eaceitando o meu conselho o capitão Boomer conduziu o nosso velho Sammy –”

“Samuel Enderby é o nome do meu navio”, interrompeu o capitão maneta,dirigindo-se a Ahab; “continue meu jovem.”

“Conduziu o nosso velho Sammy para o norte, para sair do calor ardente dalinha do Equador. Mas de nada adiantou – fiz tudo o que foi possível; cuidei delepor noites a fio; fui muito severo com a dieta –”

“Oh, muito severo!”, ecoou o paciente; depois, de súbito, mudou de voz,“bebia toddy de rum quente comigo todas as noites, até que não sabia mais ondeestava colocando as ataduras; mandava-me para a cama meio bêbado, por voltadas três horas da madrugada. Oh, astros! Cuidou de mim mesmo e foi muitosevero com a minha dieta. Oh, o doutor Bunger é um grande gajeiro e muitosevero com a dieta. (Bunger, seu cachorro, podes rir! Por que não ris? Tu sabesque és um velhaco de primeira.) Mas continua, meu jovem, prefiro ser morto porti a ser mantido vivo por qualquer outro homem.”

“Deves ter percebido, respeitável senhor”, disse Bunger, sem se perturbar, como seu ar devoto, curvando-se um pouco para Ahab, “que o meu capitão gosta depilhérias, às vezes; inventa várias coisas engenhosas desse tipo para nós. Masposso dizer – en passant, como diriam os franceses – que eu mesmo – isto é, JackBunger, outrora membro do venerável clero, sou um homem totalmenteabstêmio, nunca bebo –”

“Água!”, gritou o capitão; “nunca bebe água, pois lhe provoca ataques; a águapura lhe causa hidrofobia; mas prossiga – prossiga com a história do braço.”

“Sim, talvez seja melhor”, disse o cirurgião, indiferente. “Eu ia dizendo,senhor, antes que o capitão Boomer interrompesse com pilhérias, que apesar dosmeus esforços mais árduos o ferimento piorou muito; a verdade é que era um dosferimentos mais horripilantes que um cirurgião jamais viu; tinha mais do quedois pés e várias polegadas de comprimento. Medi-o com a sonda. Em suma,começou a ficar preto; eu sabia o que ameaçava e amputei-o. Mas não tinha umbraço de marfim à mão no navio; aquela coisa é contra todas as regras”,

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apontando para o braço com a escápula, “aquilo é obra do capitão, não minha;ordenou ao carpinteiro que fizesse; creio que tinha aquele martelo ali para pôr naponta, para bater na cabeça de alguém, como certa vez tentou fazer comigo. Porvezes tem uns ataques infernais. Vês essa incisão, senhor?”, tirando o chapéu,puxou o cabelo para o lado, para mostrar uma cavidade com a forma de umatigela na cabeça, mas que não tinha nenhuma cicatriz, nem indício de ter sidoum ferimento. “Pois bem, o capitão lhe contará como chegou aqui, ele sabe.”

“Não, não sei”, disse o capitão, “mas a mãe dele sabe, é de nascença. Ah, seumoleque atrevido, seu – seu Bunger! Existirá um outro Bunger neste mundo daságuas? Quando morreres, Bunger, serás colocado na salmoura, seu cachorro; tensque ser preservado para as gerações futuras, seu velhaco.”

“O que aconteceu com a Baleia Branca?”, gritou Ahab, que até então ficaraescutando impaciente a esse bate-boca dos dois Ingleses.

“Oh!”, exclamou o capitão maneta, “oh, sim! Pois bem, depois de mergulhar,não a vimos por algum tempo; de fato, como disse antes, não sabia então qual eraa baleia que tinha me pregado tal peça, até que um certo tempo depois, aovoltarmos à linha do Equador, ouvimos falar sobre Moby Dick – como é chamadopor certas pessoas – e então soube quem era.”

“Voltaste a cruzar com ele?”“Duas vezes”.“Mas não conseguiste prendê-lo?”“Nem tentei: não basta um membro? O que faria sem esse outro braço? Acho

que Moby Dick prefere engolir a mastigar.”“Pois bem”, interrompeu Bunger, “dê-lhe então o seu braço esquerdo como

isca para conseguir o direito. Sabeis, senhores”, curvando-se com seriedade e comcálculo diante de cada um dos capitães, “sabeis, cavalheiros, que os órgãosdigestivos da baleia são construídos de modo tão inescrutável pela ProvidênciaDivina que é quase impossível para ela digerir por completo o braço de umhomem? Ela sabe disso também. Por isso, aquilo que se acredita ser a maldade daBaleia Branca é apenas falta de jeito. Pois ela não tem nunca a intenção de engolirum membro, quer apenas aterrorizar com ataques simulados. Mas, por vezes, elaé como o velho trapaceiro, meu paciente antigo do Ceilão, que ao fazer de contaque engolia canivetes certa vez engoliu um de verdade, que ali ficou por dozemeses ou mais; quando lhe dei um vomitivo, ele o devolveu em forma depequenos pregos, entenderam? Não era possível digerir o canivete e incorporá-loao sistema do seu corpo. Pois é, Capitão Boomer, se fores bem ligeiro epretenderes arriscar um braço pelo privilégio de enterrar o outro com decência,nesse caso, o braço é seu; dá só mais uma chance para a baleia, é só isso.”

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“Não, muito agradecido, Bunger”, disse o Capitão Inglês, “ela pode ficar com obraço que tem, uma vez que não posso fazer nada, não a conhecia naquelaocasião; mas o outro, não! Chega de Baleias Brancas para mim; desci os botesatrás dela uma vez e fiquei satisfeito. Haveria muita glória em matá-la, sei disso; etem o carregamento de um navio em espermacete de valor nela, mas escuta bem,é melhor deixá-la em paz; não pensas assim também, Capitão?”, olhando para aperna de marfim.

“É, pois sim. Mas ele será perseguido, por causa disso tudo. Essa coisa maldita,que seria melhor deixar em paz, é a que me atrai mais. Ele é um ímã! Quantotempo faz que o viste pela última vez? Que rumo seguia?”

“Que Deus me abençoe e amaldiçoe o demônio”, gritou Bunger, andandocurvado em volta de Ahab, farejando como um cão, de modo estranho; “o sanguedesse homem – tragam um termômetro! – está em ponto de ebulição! – o seupulso faz bater as tábuas! – senhor!”, e tirou um bisturi do bolso, aproximando-odo braço de Ahab.

“Basta!”, rugiu Ahab, atirando-o contra a amurada. “Homens ao bote! Querumo seguia?”

“Meu Deus!”, gritou o Capitão Inglês, a quem a pergunta fora feita. “O que éque há? Acho que ia para o leste. O seu capitão está louco?”, sussurrou paraFedallah.

Mas Fedallah, levando um dedo aos lábios, passou pela amurada para pegar oremo principal do bote, e Ahab, virando a talha na sua direção, ordenou aosmarinheiros do navio que o ajudassem a descer.

Num segundo, estava de pé na popa do bote, e os homens de Maniladobraram-se sobre os remos. Debalde o Capitão Inglês o saudou. De costas para onavio estrangeiro, com o rosto duro como uma pedra, Ahab manteve-se ereto depé até chegar ao Pequod.

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101 A GARRAFA

Antes que o navio inglês desapareça de vista, seja dito que nossaudava de Londres e que fora batizado com o nome do finado Samuel Enderby,mercador daquela cidade, fundador da famosa casa baleeira Enderby & Sons;uma casa que, na minha simples opinião de baleeiro, não fica muito atrás dascasas reais dos Tudors e dos Bourbons somadas, desde que vistas segundo umgenuíno interesse histórico. Há quanto tempo, antes do ano de Nosso Senhor de1775, existia essa grande casa baleeira, meus numerosos documentos peixeirosnão esclarecem; mas naquele ano (1775) ela armou os primeiros navios Inglesesde caça regular ao Cachalote; embora houvesse vários anos (desde 1726) desdeque nossos valentes Coffins e Maceys de Nantucket e de Vineyard iniciaram emgrandes frotas a perseguição ao Leviatã, ainda que apenas no Atlântico Norte eSul: não em outros lugares. Aqui se faz necessário o registro, que os nativos deNantucket foram os primeiros dentre os homens a arpoar o grande Cachalotecom aço civilizado; e que, durante meio século, foram as únicas pessoas domundo que assim o fizeram.

Em 1788, um belo navio, o Amélia, armado unicamente para esse fim e aserviço exclusivo dos vigorosos Enderbys, dobrou intrépido o cabo Horn e foi oprimeiro entre as nações a descer um bote baleeiro de qualquer espécie nosvastos Mares do Sul. Foi uma viagem hábil e bem-sucedida; e, regressando a seuporto com o porão repleto do precioso espermacete, o exemplo do Amélia foilogo seguido por outros navios, Ingleses e Norte-Americanos, e desse modo asimensas zonas de caça ao Cachalote abriram-se no Pacífico. Porém, não contentecom esse grande feito, a infatigável casa lançou-se a uma nova empreitada:Samuel e seus Filhos todos – quantos, apenas a mãe o sabe – e sob sua prontaproteção, e em parte, julgo, às suas expensas, o governo Britânico foi persuadidoa enviar a corveta Cascavel numa viagem de reconhecimento baleeiro aos Maresdo Sul. Comandado por um Capitão da Marinha Real, o Cascavel fez uma viagemchocalhante e prestou alguns serviços; quantos, não se sabe. Mas isso não é tudo.Em 1819, a mesma empresa armou um de seus navios de reconhecimento paraum cruzeiro exploratório nas águas remotas do Japão. O navio – que trazia oacertado nome de Sereia – fez um cruzeiro bem-sucedido; e foi assim que aimensa Zona de Caça Baleeira do Japão se tornou conhecida. O Sereia, nessafamosa viagem, foi comandado por um certo Capitão Coffin, nativo deNantucket.

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Todas as honrarias, portanto, aos Enderbys, cuja casa, julgo eu, existe aindaem nossos dias; embora sem dúvida seu fundador, Samuel, deva há muito tempoter soltado seus cabos rumo aos grandes Mares do Sul do outro mundo.

O navio batizado com seu nome era digno da honra, tratando-se de um veleirorápido e de uma nobre embarcação sob todos os aspectos. Subi certa vez em seuconvés, à meia-noite, em algum lugar ao largo da costa da Patagônia, e bebi deum bom flip{a} no castelo de proa. Tivemos um gam maravilhoso, todos eramótimos sujeitos – todos a bordo. A eles, votos de uma vida breve e de uma boamorte. E aquele nosso maravilhoso gam – muito tempo depois de o velho Ahabpisar aquele convés com seu calcanhar de marfim – fez-me recordar a nobre esólida hospitalidade Saxã daquele navio; e que meu pastor se esqueça de mim, eo demônio se lembre, caso algum dia eu me esqueça disso. Flip? Eu disse quebebemos flip? Sim, à razão de dez galões por hora; e, quando chegou atempestade (pois é tempestuosa a costa da Patagônia) e todos os marinheiros – osvisitantes e os demais – foram convocados para rizar as velas da gávea, estávamostão estufados que tivemos de ajudar-nos uns aos outros nas bolinas; e, sem nosdarmos conta, prendíamos a fralda de nossas jaquetas nas velas, de modo queficávamos suspensos, atados à tormenta ululante, uma advertência exemplar paratodos os marinheiros embriagados. Seja como for, os mastros não foram jogadosao mar; e pouco a pouco descemos com dificuldade, tão sóbrios que tivemos devoltar ao flip, embora a incontrolável espuma salgada que arrebentava naescotilha do castelo de proa o tivesse diluído e salgado demais para meu gosto.

A carne era excelente – dura, mas altriz. Uns disseram que era carne de vaca;outros, que era carne de camelo; não sei ao certo do que se tratava. Tinhamtambém bolinhos; pequenos, mas sólidos, simetricamente boleados eindestrutíveis. Pareceu-me que os sentia dando voltas no estômago depois deengoli-los. Se nos curvássemos demais para a frente, corríamos o risco de vê-lossaltar pela boca como bolas de bilhar. O pão! – desse, entretanto, não podíamoscorrer; ademais, era antiescorbútico; resumindo, o pão era o único alimentofresco a bordo. Mas o castelo de proa não era muito claro, e era muito fácil irpara um canto escuro quando se comia. Porém, no conjunto, considerando-o daborla ao leme, levando-se em conta as dimensões dos caldeirões do cozinheiro,incluindo as próprias caldeiras que ali estavam, em cor de pergaminho; da proa àpopa, digo, o Samuel Enderby era um navio alegre; de boa e farta mesa; flip fortee de primeira linha; e sujeitos engraçados, todos eles fantásticos, dos pés àcabeça.

No entanto, dirá você, por que razão o Samuel Enderby e outros tantosbaleeiros Ingleses de que tenho notícia – não todos, claro – eram tão famosos ehospitaleiros; por que dividiam a carne, o pão, a bebida e a piada; e nunca se

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cansavam de comer, beber e rir? Vou lhe contar. A comida abundante dessesbaleeiros Ingleses é assunto para investigação histórica. Jamais me furtei àspesquisas históricas referentes às baleias, quando me pareceram necessárias.

Os Ingleses foram precedidos na pesca de baleias pelos Holandeses,Neozelandeses e Dinamarqueses; de quem receberam vários termos aindapresentes na pesca; e, o mais interessante, seus antigos e gordos hábitos de comere de beber em abundância. Pois, em geral, os navios mercantes Ingleses deixavamsua tripulação à míngua; mas os navios baleeiros, não. Portanto, entre os Ingleses,esse negócio de fartos comes e bebes entre baleeiros não é normal e natural, masincidental e próprio; e, por conseguinte, deve ter uma origem especial, que aquiindiquei, e mais adiante elucidarei.

No decurso de minhas pesquisas sobre as histórias Leviatânicas, deparei poracaso com um antigo livro Holandês, que, pelo cheiro de mofo e baleia quetinha, supus tratar de caça baleeira. O título era Dan Coopman, donde concluíque deviam ser as inestimáveis memórias de um toneleiro de Amsterdã a bordo,já que todos os navios baleeiros sempre levam consigo um toneleiro. Minhaimpressão foi reforçada ao perceber que essas eram obra de um certo “FitzSwackhammer”. Mas meu amigo Dr. Snodhead, homem muito erudito, professorde Baixo Holandês e Alto Alemão no colégio de Santa Claus e St. Pott’s, a quementreguei a obra para que a traduzisse, dando-lhe uma caixa de velas deespermacete pelo incômodo – este mesmo Dr. Snodhead, tão logo viu o livro,assegurou-me de que Dan Coopman não significava “O Toneleiro”, mas “OMercador”. Em suma, esse antigo e ilustre livro escrito em Baixo Holandês versavasobre o comércio na Holanda; e, entre outros assuntos, incluía um relato muitointeressante sobre a pesca de baleias. E foi nesse capítulo, intitulado “Smeer”, ou“Gordura”, que encontrei uma longa e detalhada lista das provisões para asdespensas e porões de 180 navios de baleeiros Holandeses; de cuja lista, traduzidapelo Dr. Snodhead, transcrevo o que se segue:

400.000 lbs. de carne.60.000 lbs. de porco de Friesland.150.000 lbs. de bacalhau.550.000 lbs. de biscoito.72.000 lbs. de pão.2.800 barriletes de manteiga.20.000 lbs. de queijo Texel & Leyden.144.000 lbs. de queijo (provavelmente um produto inferior).550 ankers{b} de Genebra.

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10.800 barris de cerveja.

A maioria das tabelas estatísticas é de leitura ressecadamente árida; não no casopresente, contudo, pois o leitor se sente inundado por pipas inteiras, barris,quartos de galão e quartos de pinta de bom gim e boa comida.

Na época dediquei três dias à estudiosa digestão de tanta cerveja, carne e pão,durante os quais várias reflexões profundas me ocorreram, dignas de umaaplicação transcendental e Platônica; além disso, compilei tabelas suplementaresde próprio punho, referentes às prováveis quantidades de bacalhau, &c., que cadaum dos arpoadores Holandeses naquela antiga pesca de baleias da Groenlândia ede Spitzbergen consumiu. Em primeiro lugar, as quantidades de manteiga e dequeijo Texel & Leyden consumidas pareceram-me espantosas. Atribuo-as, noentanto, à natureza naturalmente gordurosa dos pescadores, que se tornava aindamais gordurosa pela natureza de sua vocação e especialmente em virtude de suaperseguição à caça nos frígidos Mares Polares, na costa do país dos Esquimós,cujos nativos brindam uns aos outros com copos cheios de óleo de baleia.

A quantidade de cerveja também é muito grande, 10.800 barris. Ora, como aspescas polares só podiam ser levadas a cabo no curto verão desse clima, tanto quequalquer cruzeiro de um desses baleeiros Holandeses, incluindo a curta viagemde ida e volta ao mar de Spitzbergen, não excedia três meses, e calculando-secerca de 30 homens para cada navio da frota de 180 baleeiros, teremos um totalde 5.400 marinheiros holandeses; por conseguinte, isso representa exatos doisbarris de cerveja por homem, num período de doze semanas, sem contar a partede 550 ankers de genebra que lhes cabia. Ora, é pouco provável que essesarpoadores de genebra e cerveja, tão embriagados quanto se pode imaginar queestivessem, fossem os homens mais indicados para ficar na proa do bote eapontar com precisão para as baleias fugidias. No entanto, apontavam e tambémacertavam. Porém, isso ocorria no Extremo Norte, é bom que lembremos, onde acerveja combina bem com o organismo; no Equador, para a nossa pescameridional, a cerveja teria feito com que os arpoadores ficassem sonolentos notopo do mastro e embriagados no bote; e perdas dolorosas para Nantucket e paraNew Bedford se seguiriam.

Mas basta; já se disse o suficiente para mostrar como os velhos baleeirosHolandeses de dois ou três séculos atrás levavam uma boa vida; e como osbaleeiros Ingleses não desperdiçaram tão bom exemplo. Pois, dizem eles, quandose viaja a bordo de uma embarcação vazia, se o mundo não puder lhe dar nadamelhor, que sirva pelo menos uma bela refeição. E com isso se esvazia a garrafa.

{a} Uma mistura de bebida alcoólica, cerveja, ovos e açúcar. [N. T.]

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{b} Medida para bebidas alcoólicas usada na Holanda, Alemanha, Dinamarca, Suécia e Rússia. [N. T.]

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102 UM CARAMANCHÃONAS ARSÁCIDAS

Até aqui, neste descritivo discorrer sobre o Cachalote,prolonguei-me sobretudo nas maravilhas de seu

aspecto exterior; ou então, à parte e detalhadamente, em certas especificidadesde sua estrutura interna. Mas, para uma compreensão mais ampla e cabal,compete a mim agora desabotoá-lo ainda mais, e desatando-lhe os laços docalção, e desafivelando-lhe as ligas, e soltando-lhe os ganchos e colchetes dasjuntas de seus ossos mais íntimos, mostrá-lo em seu estado final; o que significadizer, em seu esqueleto indefectível.

Mas como assim, Ishmael? Como você, um mero remador na pesca, pretendesaber alguma coisa a respeito das partes subterrâneas da baleia? Teria o eruditoStubb, montado no cabrestante, ministrado palestras sobre a anatomia dosCetáceos; e, com a ajuda do molinete, exibido um exemplar de costela comodemonstração? Explica-te, Ishmael. Pode você arriar uma baleia adulta sobre oconvés para examiná-la, como um cozinheiro ajeita um porco assado numatravessa? Claro que não. Até aqui você foi uma testemunha confiável, Ishmael;mas tome cuidado ao apoderar-se do privilégio exclusivo de Jonas; o privilégio dediscorrer sobre as vigas e traves; os caibros, as vigas mestras, os dormentes e osesteios que constituem a estrutura do Leviatã; e igualmente os tonéis de gordura,as leiterias, as manteigarias e as queijarias de suas entranhas.

Confesso que poucos baleeiros depois de Jonas penetraram muito para além dapele da baleia adulta; não obstante, fui abençoado com a oportunidade dedissecá-la em miniatura. Em um navio em que estive engajado, certa feita içou-seao convés um filhote de cachalote para lhe extraírem o saco, ou bolsa, que servepara fazer as bainhas dos arpões e as pontas das lanças. Você acha que deixaria aoportunidade escapar, sem me servir da machadinha e do canivete e quebrar olacre e decifrar o conteúdo daquele filhote?

E, no que se refere a meu conhecimento exato sobre os ossos do Leviatã emseu desenvolvimento pleno e gigantesco, devo tal raro conhecimento a meufinado e nobre amigo Tranquo, rei de Tranque, uma das Arsácidas. Quando estiveem Tranque, há alguns anos, pertencendo à tripulação do navio mercante Dei deArgel, fui convidado a passar uma parte dos feriados Arsacianos com o senhor deTranque, em sua afastada vila de palmeiras, em Pupella; um vale perto da costa enão muito distante daquilo a que nossos marinheiros chamam Cidade Bambu,sua capital.

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Dentre muitas outras qualidades benfazejas, meu nobre amigo Tranquo, sendodotado de um amor fervoroso pela arte bárbara, havia reunido em Pupella todasas raridades que o engenho de seu povo houvesse inventado; principalmentemadeiras entalhadas com magníficos desenhos, conchas esculpidas, lançasmarchetadas, remos suntuosos, canoas aromáticas; e tudo isso distribuído juntoàs maravilhas naturais que as ondas carregadas de maravilhas ofereciam às suaspraias à guisa de tributo.

Mais importante dentre tais oferendas era um imenso Cachalote que, depoisde uma tempestade inusitadamente longa e violenta, fora encontrado morto eencalhado, com a cabeça contra um coqueiro, cujos pendores tufados comoplumas pareciam ser seu jato verdejante. Quando por fim se despojou o imensocorpo de seu invólucro espesso de várias braças e seus ossos se verteram em restossecos ao sol, o esqueleto então foi cuidadosamente transportado para a ravina dePupella, onde um magnífico templo de palmeiras majestosas o abrigava.

As costelas foram cobertas de troféus; as vértebras foram entalhadas com osanais Arsacianos, em estranhos hieróglifos; no crânio, os sacerdotes mantinhamuma inextinguível chama aromática, de tal modo que a cabeça mística de novoexpelia seu jato vaporoso; enquanto, suspensa num galho, a terrível mandíbulainferior vibrava sobre todos os devotos, como a espada presa a um fio de cabeloque tanto assustou Dâmocles.

Era um espetáculo assombroso. O bosque era verde como o musgo de IcyGlen; as árvores erguiam-se altas e desdenhosas, sentindo a força de sua seiva; aterra laboriosa embaixo era como o tear de um tecelão, e nele um tapeteformoso, do qual as gavinhas das videiras formavam a trama e a textura, e asflores vivas as imagens. Todas as árvores, com seus galhos colmados; todos osarbustos, e a relva, e as samambaias; o ar carregado de recados; tudo estava ematividade incessante. Através do entrelaçamento das folhas, o sol imenso pareciauma lançadeira voadora, tecendo a vegetação incansável. Ó, tecelão ativo! Tecelãoinvisível! – pára! – uma palavra! – para onde corre a urdidura? Que palácio irádecorar? Para que toda essa faina incessante? Fala, tecelão! – Detém a tua mão! –Só uma simples palavra contigo! Não – a lançadeira voa – flanam figuras faceirasno teu tear; o incontrolável tapete da inundação desliza para sempre. O deustecelão, ele tece; e ao tecer, ensurdece, não escuta voz humana; por esse zunido,nós, que olhamos para o tear, ensurdecemos também; e apenas quando nosafastarmos ouviremos milhares de vozes que falam através dele. O mesmo sucedeem todas as fábricas existentes. As palavras pronunciadas que são inaudíveis entreas rocas desenfreadas; essas mesmas palavras são ouvidas com nitidez do lado defora das paredes, transbordando pelos batentes abertos. Assim foram descobertasas infâmias. Ah, mortal! Sê, pois, cuidadoso; no meio do rumor do grande tear do

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mundo, teus pensamentos mais sutis podem ser ouvidos a distância.Ora, em meio ao tear verde e incansável do bosque Arsacídeo, o imenso e

venerado esqueleto branco jazia indolente – um gigantesco desocupado! Noentanto, enquanto a trama e a textura verdejantes se mesclavam, zunindo à suavolta, o indolente portentoso parecia ser o tecelão habilidoso; todo entrelaçado devideiras; a cada mês ostentando mais verde e fresca verdura; e, no entanto, umesqueleto. A Vida envolvia a Morte; a Morte entrelaçava a Vida; o deus ferozdesposava a Vida jovial e gerava glórias de cabelos cacheados.

Ora, quando em companhia do régio Tranquo visitei essa baleia maravilhosa, evi o crânio feito altar, e a fumaça artificial que ascendia de onde outrora subira ojato verdadeiro, fiquei maravilhado de saber que o rei considerasse uma capelaum objeto de arte. Ele riu. Ainda mais me espantou que os sacerdotes jurassemque o jato de fumaça era autêntico. E de um lado para o outro caminhei diantedo esqueleto – afastei as videiras – abri as costelas – e com um rolo de barbanteArsaciano vaguei, corri em torvelinhos por muito tempo, dando voltas por entreas colunatas sombrias e caramanchões sinuosos. Mas depressa meu barbante seacabou; e, seguindo-o de volta, cheguei à abertura pela qual havia entrado. Não vinenhum ser vivo lá dentro; nada além de ossos.

Cortando uma vara verde para medida, mergulhei no esqueleto de novo. Peloburaco fino do crânio, os sacerdotes perceberam que eu media a altura da últimacostela. “Como ousas?”, gritaram; “Medir o nosso deus! Isso cabe a nós.” “Sim,sacerdotes – quanto ele mede, então?” Mas isso suscitou entre eles uma ferozcontrovérsia em relação a pés e polegadas; bateram na cabeça uns dos outros comseus bordões de medida – a caveira enorme ecoou – e, aproveitando aoportunidade, terminei depressa minhas medições.

Tais medidas são as que proponho apresentar agora. Porém, primeiro, fiqueregistrado que neste caso não tenho liberdade para estabelecer nenhuma medidafantasiosa. Pois existem autoridades em esqueletos a quem você pode recorrerpara avaliar minha precisão. Há um Museu Leviatânico, dizem-me elas, em Hull,na Inglaterra, um dos portos baleeiros do país, com magníficos exemplares debaleias de barbatana dorsal, entre outras. Igualmente, ouvi dizer que no museude Manchester, em New Hampshire, existe o que os proprietários designam o“único espécime perfeito da Baleia da Groenlândia ou Baleia de Rio nos EstadosUnidos”. Além disso, num lugar de Yorkshire, na Inglaterra, de nome BurtonConstable, um certo Sir Clifford Constable tem em seu poder o esqueleto de umCachalote, mas de tamanho médio, que não se compara de maneira nenhumacom a magnitude do Leviatã adulto de meu amigo, o Rei Tranquo.

Em ambos os casos, as baleias encalhadas às quais os dois esqueletospertenceram foram originalmente reclamadas por seus proprietários sob

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circunstâncias semelhantes. O rei Tranquo apoderou-se da sua porque assim oquis; e Sir Clifford, porque era o senhor daquelas cercanias. A baleia de SirClifford foi inteiramente articulada; de tal modo que, como um enormegaveteiro, era possível abri-la e fechá-la em todas as cavidades ósseas – abrir-lhe ascostelas como um gigantesco leque – e balançar-se um dia inteiro em suamandíbula. Fechaduras serão colocadas em alguns alçapões e postigos; e umserviçal apresentará as dependências aos futuros visitantes com um molho dechaves à cinta. Sir Clifford pensa em cobrar dois pence por uma olhadela naabóbada acústica da coluna vertebral; três pence para escutar o eco na cavidadedo cerebelo; e seis pence pela vista sem par que se tem de sua fronte.

As dimensões do esqueleto que agora divulgarei foram fidedignamentecopiadas do meu braço direito, onde as tenho tatuadas; uma vez que, em minhasandanças sem rumo daquele período, não havia outro meio seguro de preservarestatísticas tão valiosas. Como não dispunha de muito espaço e pretendia queoutras partes de meu corpo permanecessem páginas em branco para o poemaque então estava compondo – pelo menos as partes não tatuadas que pudessemrestar –, não me preocupei com as frações de polegadas; nem, de fato, aspolegadas deveriam constar da medição de uma baleia.

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103 MEDIÇÃO DO ESQUELETO DA BALEIA

Em primeiro lugar, é minha vontade fazer-lhes uma revelação muito simples eespecífica, referente ao volume deste Leviatã em vida, cujo esqueleto estamosperto de examinar. Tal revelação poderá se mostrar útil aqui.

Segundo o cálculo meticuloso que realizei, em parte baseado na estimativa doCapitão Scoresby, de setenta toneladas para a maior baleia da Groenlândia, desessenta pés de comprimento; segundo meu cálculo meticuloso, digo, umCachalote de maior magnitude, de oitenta e cinco a noventa pés decomprimento, e pouco menos de quarenta pés em sua circunferência completa,tal baleia pesará no mínimo noventa toneladas; de modo que, supondo trezehomens por tonelada, ele poderia superar consideravelmente o peso dapopulação reunida de uma aldeia de mil e cem habitantes.

Não lhes parece que miolos, como bois atrelados, deviam ser conferidos a esseLeviatã para fazê-lo se mover ao toque da imaginação de qualquer homem daterra?

Já lhes tendo apresentado de várias maneiras o crânio, o espiráculo, amandíbula, os dentes, a cauda, a fronte, as barbatanas e variadas outras partes,devo agora simplesmente assinalar o que houver de mais interessante no volumegeral de seus ossos desobstruídos. Todavia, como o crânio colossal abrange umaparte tão grande da extensão total do esqueleto; como é, de longe, o ponto maiscomplicado; e como nada relativo ao crânio será repetido neste capítulo, vocêsnão devem deixar de tê-lo em mente, ou debaixo do braço, enquantoprosseguimos, caso contrário não serão capazes de obter uma noção completa daestrutura geral que estamos prestes a examinar.

Em comprimento, o esqueleto do Cachalote de Tranque media setenta e doispés; de modo que, ao vivo, quando inteiramente revestido e estendido, deviamedir pelo menos noventa pés; pois, na baleia, o esqueleto perde cerca de umquinto do comprimento em relação ao corpo vivo. Desses setenta e dois pés, seucrânio e sua mandíbula correspondiam a uns vinte pés, sobrando outroscinqüenta pés de coluna. Atado a essa coluna, em quase um terço dessecomprimento, encontra-se o enorme cesto circular de costelas que, outrora,encerraram seus órgãos vitais.

Para mim esse imenso baú de costelas de marfim, com a longa espinha

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ininterrupta alongando-se sem interrupção em uma linha reta, não poucolembrava o casco embrionário de um grande navio recém-levado ao estaleiro,quando somente umas vinte de suas costelas de proa foram instaladas, e a quilhanão passa ainda de um longo vigamento independente.

As costelas eram dez de cada lado. A primeira, a contar do pescoço, mediaquase seis pés de comprimento; a segunda, a terceira e a quarta eramsucessivamente mais compridas, até que se chegasse ao clímax da quinta, umadas costelas do meio, que media oito pés e algumas polegadas. Dali, as costelasrestantes diminuíam, até a décima e última, de apenas cinco pés e algumaspolegadas. Em espessura geral, todas correspondiam à sua extensão específica. Ascostelas do meio eram as mais arqueadas. Em algumas das Arsácidas usavam-nascomo traves em que se apoiavam as passarelas por sobre pequenos córregos.

Pensando sobre tais costelas, não pude senão ser mais uma vez tocado pelofato, tantas vezes repetido neste livro, de o esqueleto da baleia não ser de maneiraalguma o molde de seu corpo. A maior das costelas de Tranque, uma do meio,ocupava a parte do peixe que, em vida, é a maior em profundidade. Ora, a maiorprofundidade do corpo encarnado dessa baleia específica deve ter sido de pelomenos dezesseis pés; ao passo que a costela correspondente media pouco mais deoito pés. Portanto, tal costela comunicava apenas meia idéia da grandeza própriaàquela parte. Além disso, onde eu não via mais do que uma espinha nua, tudoaquilo outrora esteve envolto em toneladas adicionais de carne, músculos, sanguee entranhas. Isso sem contar que, em lugar das grandes nadadeiras, eu não vejomais do que umas poucas articulações desordenadas; e em lugar da caudamajestosa e imponente, porém desprovida de ossos, um vazio absoluto!

Quão inútil e insensato é, pois, pensei eu, para um homem acanhado edesconhecedor do mundo tentar compreender essa baleia assombrosa, limitando-se a contemplar seu esqueleto morto, diminuído e estirado naquele bosquetranqüilo! Não. Apenas em meio aos perigos mais fulminantes; apenas quandodentro dos redemoinhos de sua cauda feroz; apenas no mar profundo e semlimites pode a baleia encarnada revelar-se viva e verdadeiramente.

Sim, a espinha. Quanto a essa, o melhor modo de examiná-la é, com umagrua, empilhar-lhe os ossos até o alto. Tarefa nem um pouco rápida. Mas, umavez encerrada, fica muito parecida com o Pilar de Pompeu.

São quarenta e tantas vértebras no total, que no esqueleto não estão encaixadasumas às outras. Elas estão em sua maioria dispostas como grandes blocos nodososde um pináculo Gótico, formando fiadas sólidas de pesada alvenaria. A maior,intermediária, tem de largura pouco menos de três pés, e de profundidade, maisde quatro. A menor, onde a espinha segue afilando em direção à cauda, medeapenas duas polegadas de largura e assemelha-se a uma bola de bilhar branca.

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Contaram-me que existiam outras menores, mas foram perdidas por unscanibaizinhos travessos, os filhos do sacerdote, que as haviam roubado parabrincar de bolinha de gude. Assim vemos como mesmo a espinha do maior dosseres vivos se apequena até se tornar afinal um simples jogo infantil.

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104 A BALEIA FÓSSIL

Por sua massa incomensurável a baleia oferece um temapropício à expansão, à amplificação e às minudências em geral. Ainda quequisesse, a síntese não seria possível. Com justiça só se poderia abordá-la numfólio de proporções imperiais. Para não repetir suas braças do espiráculo à cauda,e tampouco as jardas de sua cintura; pense apenas nas gigantescas involuções deseus intestinos, que correm dentro dela como cabos e espias enrolados no bailéusubterrâneo de um navio de linha.

Visto que me incumbi de tratar desse Leviatã, coube a mim aceitar aonisciência exaustiva de tal tarefa; sem jamais fazer vistas grossas aos mínimosgermes seminais de seu sangue, inquirindo-lhe a mais íntima dobra das vísceras.Já tendo descrito a maior parte de seus hábitos e peculiaridades anatômicas, restaagora exaltá-lo do ponto de vista arqueológico, fóssil, antediluviano. Aplicados aoutra criatura que não o Leviatã – a uma formiga ou pulga –, tais termosportentosos poderiam ser com razão considerados de um exagero injustificável.Mas quando o assunto é o Leviatã o caso muda de figura. Muito me aprazcambalear de encontro a essa tarefa sob as palavras mais pesadas do dicionário. Eque fique claro que, sempre que sua consulta se fez necessária ao longo destestratados, invariavelmente usei uma enorme edição in-quarto de Johnson,adquirida exclusivamente para este fim; pois o extraordinário volume corpóreodo famoso lexicógrafo qualificou-o mais do que qualquer outro a compilar umléxico útil a um autor de baleias como eu.

Ouve-se amiúde falar de escritores que se elevam e se avolumam com seustemas, ainda que possam parecer comuns. Como sucederia, então, comigo, queescrevo sobre o Leviatã? Inconscientemente, minha caligrafia expande-se emletras garrafais. Dêem-me uma pena de condor! Dêem-me a cratera do Vesúviopor tinteiro! Amigos, segurem meus braços! Pois, no simples ato de escrever meuspensamentos sobre este Leviatã, eles me consomem e debilitam pela enormeabrangência de sua envergadura, como se incluíssem o conjunto total das ciênciase todas as gerações de baleias, de homens e mastodontes, passadas, presentes evindouras, com todos os panoramas movediços dos impérios terrestres, e atravésdo universo inteiro, sem exclusão dos arrabaldes. Tamanha, e tão magnífica, é avirtude de um tema amplo e farto! Dilatamo-nos a seu volume. Para escrever umgrande livro, é preciso escolher um grande tema. Não há obra grande eduradoura que possa ser escrita sobre a pulga, embora muitos já o tenham

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experimentado.Antes de entrar no assunto das Baleias Fósseis, apresento minhas credenciais de

geólogo, dizendo que, no decurso de minha vida agitada, fui pedreiro e tambémum grande cavador de valas, canais, poços, adegas, cavas e cisternas de todos ostipos. Do mesmo modo, à guisa de preliminar, é meu desejo lembrar ao leitorque, enquanto nas camadas geológicas mais antigas se encontram os fósseis dosmonstros por ora quase completamente extintos; os restos descobertos naschamadas formações Terciárias parecem constituir os elos, de algum modointerrompidos, entre as criaturas antecrônicas e aquelas por cuja descendênciaremota se afirmam ingressas na Arca; todas as Baleias Fósseis encontradas atéagora pertencem ao período Terciário, o último precedente das formaçõessuperficiais. Embora nenhuma delas corresponda exatamente às espéciesconhecidas no presente, são bastante semelhantes nos aspectos gerais parajustificar sua classificação como fósseis de Cetáceos.

Fósseis esparsos e quebrados de baleias pré-adamitas, fragmentos de seus ossose esqueletos, foram encontrados no decurso dos últimos trinta anos, emdiferentes ocasiões, na base dos Alpes, na Lombardia, na França, na Inglaterra, naEscócia e nos Estados de Louisiana, Mississippi e Alabama. Entre os mais curiososdesses despojos há um pedaço de crânio que, no ano de 1779, foi desenterrado naRua Dauphine, em Paris, uma rua pequena que desemboca quase diretamente noPalácio das Tulherias; e os ossos desenterrados nas escavações das grandes docasde Antuérpia, no tempo de Napoleão. Cuvier afirmou que esses fragmentospertenceram a uma espécie Leviatânica desconhecida por completo.

Mas de longe a mais maravilhosa de todas as relíquias cetáceas foi o enormeesqueleto quase completo de um monstro extinto, encontrado no ano de 1842 nafazenda do Juiz Creagh, no Alabama. Os escravos das cercanias, crédulos eespantados, o tomaram pelos ossos de um dos anjos caídos. Os doutores doAlabama declararam-no réptil imenso e atribuíram-lhe o nome de Basilossauro.Mas alguns ossos atravessaram o mar para chegar a Owen, o Anatomista Inglês, everificou-se que o réptil em litígio era uma baleia, embora de espécie perdida.Uma ilustração significativa do fato, várias vezes repetido neste livro, de que oesqueleto da baleia dá poucas pistas da forma de seu corpo inteiramenteencarnado. Assim Owen trouxe mais uma vez ao seio da Cristandade o monstroZeuglodonte; e, em palestra proferida à Sociedade Geológica de Londres, declaroutratar-se, em substância, de uma das mais extraordinárias criaturas cuja existênciaas mutações do globo já haviam suprimido.

Quando me encontro em meio a esses imensos esqueletos Leviatânicos,crânios, presas, mandíbulas, costelas e vértebras, todos caracterizados porsemelhanças parciais com espécies existentes de monstros marinhos; mas ao

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mesmo tempo trazendo afinidades por outro lado similares com os Leviatãsantecrônicos extintos, seus antepassados mais do que longínquos; sinto-me, comoque por uma inundação, arrastado para aquele período maravilhoso, anterior aoque se pode chamar de início dos tempos; pois o tempo começou com o homem.Aqui, o caos cinzento de Saturno rola sobre mim, e tenho visões trêmulas esombrias dessas eternidades Polares; quando bastiões de gelo em cunha faziampressão sobre o que são agora os Trópicos; e em todas as vinte e cinco mil milhasda circunferência deste mundo não se via um palmo de terra habitável. O mundointeiro pertencia então ao Leviatã; e, rei da criação, ele deixou seu rastro deespuma ao longo das atuais linhas dos Andes e do Himalaia. Quem é capaz deostentar uma linhagem como a do Leviatã? O arpão de Ahab derramou sanguemais antigo que o dos Faraós. Matusalém parece um menino de colégio. Olho àminha volta para dar um aperto de mão a Sem. O horror me acomete diante daexistência antemosaica e sem origens dos terrores inomináveis da baleia, que,anteriores ao tempo, ainda existirão depois do fim das eras humanas.

Todavia, esse Leviatã não deixou vestígios pré-adâmicos apenas nas lâminasestereotipadas da natureza, tampouco a reprodução de seu busto antigo somentena pedra calcária e na marga; nas tabuletas Egípcias, cuja antiguidade parecereivindicar um caráter como que fóssil, encontramos a marca inequívoca de suanadadeira. Numa câmara do grande templo de Denderah, há cinqüenta anos,descobriu-se no granito do teto um planisfério esculpido e pintado, abundanteem centauros, grifos e golfinhos similares às figuras grotescas da esfera celestedos modernos. Deslizando entre eles, o velho Leviatã nadava como desde sempre;nadava ali naquele planisfério, séculos antes de Salomão ser colocado no berço.

Tampouco se deve omitir outro estranho testemunho da antiguidade da baleiaem sua realidade óssea pós-diluviana, tal como registrado pelo venerável JohnLeo, o velho viajante da Barbaria.

“Não longe da Costa, eles têm um Templo, as Vigas e Traves dele são feitas deOssos de Baleias; pois Baleias de um tamanho monstruoso são amiúdearremessadas mortas naquelas praias. As Pessoas Simples imaginam que, graças aum Poder secreto conferido por Deus ao Templo, nenhuma Baleia pode passardiante dele sem de súbito morrer. No entanto, a verdade do Fato é que, de todosos lados do Templo, existem Rochas que se projetam por duas Milhas no Mar eferem as Baleias quando passam por cima delas. Eles conservam uma Costela deBaleia de um comprimento impressionante como um Milagre, que, posta sobre oSolo com a parte convexa para cima, forma um Arco, cujo Topo não pode seralcançado por um Homem montado no Dorso de um Camelo. Diz-se que essaCostela (diz John Leo) foi posta ali cem Anos antes de eu tê-la visto. SeusHistoriadores afirmam que um Profeta que profetizou Maomé veio desse Templo,

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e outros não temem afirmar que o Profeta Jonas foi regurgitado pela Baleia dianteda Base do Templo.”

Nesse Templo Africano da Baleia eu o deixo, leitor, e se for um nativo deNantucket, e baleeiro, ali tomará parte do culto em silêncio.

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105 A GRANDEZA DA BALEIA DIMINUIU? – ELA SE EXTINGUIRÁ?

Tanto quanto, então, esse Leviatã chegue até nós se debatendo desde ascabeceiras das Eternidades, seria apropriado indagar se, no longo suceder dasgerações, ele não assistiu à degenerescência do tamanho original de seusantepassados.

Mas mediante investigação descobrimos não apenas que as baleias de nossosdias são superiores em magnitude àquelas cujos fósseis remanescentes sãoencontrados no sistema Terciário (que compreende um distinto período geológicoanterior ao homem), mas também que as baleias encontradas nessas camadasterciárias, as que pertencem a suas formações mais recentes ultrapassam emgrandeza as de formações mais antigas.

De todas as baleias pré-adâmicas já exumadas, de longe a maior é a doAlabama, mencionada no último capítulo, cujo esqueleto tinha menos de setentapés de comprimento. No entanto, já vimos que a fita métrica mostra setenta edois pés num esqueleto de uma baleia moderna de tamanho grande. E fiqueisabendo, por meio de baleeiros, que foram perseguidos Cachalotes com cerca decem pés de comprimento no momento da captura.

Mas não seria possível, uma vez que as baleias de nosso tempo demonstrammaior magnitude do que as de todos os períodos geológicos anteriores; não seriapossível que desde os tempos de Adão elas tivessem degenerado?

Certamente, assim devemos concluir, se dermos crédito aos relatos decavalheiros como Plínio, e aos naturalistas antigos em geral. Pois Plínio nos falade baleias que abrangiam acres inteiros de massa presente, e Aldrovando, deoutras que mediam oitocentos pés de comprimento – Alamedas Rope e Túneis doTâmisa de Baleias! E mesmo nos dias de Banks e de Solander, os naturalistas deCook, encontramos um membro Sueco da Academia de Ciências atribuindo acertas baleias da Islândia (reydar-fiskur, ou Ventres Enrugados) cento e vintejardas; isto é, trezentos e sessenta pés. E Lacépède, o naturalista Francês, em sualaboriosa história das baleias, no início da obra (à página 3), atribui a uma BaleiaFranca cem metros, trezentos e vinte e um pés. A obra foi publicada em 1825 D.C.

Mas será que algum baleeiro acredita nessas histórias? Não. A baleia atual é tãogrande quanto suas antecessoras no tempo de Plínio. E se algum dia eu for aondePlínio estiver, eu, um baleeiro (mais do que ele já foi), tomarei a liberdade de lhe

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dizer isso. Porque não posso entender como é isso, que enquanto as múmiasEgípcias enterradas milhares de anos antes de Plínio ter nascido não medem maisem seu sarcófago do que um moderno nativo de Kentucky de meias; queenquanto as vacas e outros animais esculpidos nas tabuletas mais antigas do Egitoe de Nínive, pelas proporções relativas em que estão representados, provam domesmo modo que uma vaca de raça, criada em bom pasto e premiada, deSmithfield, não apenas iguala como excede em grandeza a vaca mais gorda doFaraó; em face disso tudo, não posso admitir que dentre todos esses animais abaleia tenha sido o único a degenerar.

Mas resta ainda outra indagação; uma de causar alvoroço entre os maisreservados nativos de Nantucket. Talvez devido aos quase oniscientes vigias dostopos dos mastros dos navios baleeiros, varando mesmo o Estreito de Bering, e ointerior das mais remotas gavetas e armários secretos do mundo; e aos milharesde arpões e lanças arremessados ao longo de todas as praias continentais; o pontode discussão é se o Leviatã conseguirá resistir a uma caçada tão implacável, a umamatança tão impiedosa; se ele não será afinal exterminado dos oceanos, e aúltima baleia, como o último homem, fumará seu último cachimbo e evaporar-se-á na baforada final.

Comparando as manadas corcovadas de baleias às manadas corcovadas debúfalos, que, há menos de quarenta anos, cobriam às dezenas de milhares aspradarias de Illinois e de Missouri, e sacudiam suas crinas férreas e franziam suastestas de trovões coalhados diante de populosas capitais à beira-rio, onde agoraum corretor bem-educado vende terras a um dólar a polegada; de tal comparaçãoparece surgir um argumento irresistível, que nos mostra que a baleia perseguidajá não pode escapar a uma rápida extinção.

No entanto, é preciso examinar a questão à luz de todos os aspectos. Ainda quehá muito pouco tempo – nem sequer a duração de uma vida – o censo do búfalode Illinois excedesse o censo de homens de Londres, e ainda que já não reste umúnico chifre ou casco em toda a região; e ainda que a causa desse extermínioassustador fosse a lança do homem; a natureza muito diversa da pesca de baleiasnão permite, em hipótese alguma, tão inglório fim para o Leviatã. Quarentahomens em um navio durante quarenta e oito meses à caça do Cachaloteconsideram-se mais do que felizardos e agradecem a Deus se por fim levarempara casa o óleo de quarenta peixes. Em contrapartida, na época dos velhoscaçadores e armadilheiros do Oeste, canadenses e indígenas, quando o mais ermoOeste (em cujo poente os sóis ainda se levantam) era inculto e virgem, o mesmonúmero de homens em seus mocassins, durante o mesmo número de meses,montados a cavalo em vez de engajados em navios, teria matado não quarenta,mas quarenta mil búfalos, senão mais; fato que, se necessário fosse, poderia ser

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comprovado com estatísticas.Tampouco, bem ponderado, parece argumento favorável à extinção gradual do

Cachalote que, por exemplo, em anos anteriores (digamos, os últimos anos doséculo passado), se encontravam pequenos bandos desses Leviatãs com muitomais freqüência do que hoje em dia e, em conseqüência disso, as viagens nãoeram tão exaustivas e também muito mais recompensadoras. Pois, como vimosalhures, tais baleias, influenciadas por certa intuição de segurança, agora nadamos mares em imensas caravanas, de modo que, em larga escala, os solitários, ospares, os bandos e os cardumes dispersos de outrora agora se reúnem emgrandes, porém esparsos e raros exércitos. Só isso. E igualmente falaciosa parece aidéia de que as chamadas baleias de barbatana, porque deixaram de freqüentarzonas onde outrora foram abundantes, sejam uma espécie em declínio. Pois elasapenas foram impelidas a ir do promontório ao cabo: e, se uma costa não estásendo agraciada por seus jatos, é certo que outra e mais remota rebentação foimuito recentemente surpreendida por esse espetáculo incomum.

Mais ainda: no que concerne aos últimos Leviatãs mencionados, eles têm duasfortalezas sólidas que, segundo todas as probabilidades, continuarãoinexpugnáveis para sempre. E assim como sob a invasão de seus vales os frígidosSuíços se retiraram para as montanhas; também, perseguidas nas savanas e nosvales dos mares centrais, as baleias de barbatana podem por fim recorrer às suascidadelas Polares e, mergulhando sob as últimas barreiras e muralhas vítreas,emergir em campos e bancos de gelo; e, num círculo encantado de Dezembroeterno, desafiar abertamente toda a perseguição humana.

Todavia, como talvez cinqüenta dessas baleias de barbatana são arpoadas paracada cachalot, alguns filósofos de castelo de proa concluíram que essa verdadeiracarnificina já diminuiu em muito seus batalhões. Muito embora, já há algumtempo, um número considerável dessas baleias, não menos de 13 mil, tenha sidomorto anualmente na costa noroeste só pelos americanos; algumas consideraçõesreduzem esses fatos a pouca ou nenhuma importância como argumento contrárioao assunto.

Por mais natural que seja mostrar-se incrédulo quanto à abundância dasmaiores criaturas do globo, como responderemos a Horto, o historiador de Goa,quando nos relata que numa única caçada o Rei de Sião capturou 4 mil elefantes;que naquelas regiões os elefantes são tão numerosos quanto o gado nos climastemperados? E parece não haver motivo para duvidar que se esses elefantescaçados durante milhares de anos por Semíramis, Poro, Aníbal e todos ossucessivos monarcas do Oriente – se eles ainda sobrevivem em grande número,muito mais pode a enorme baleia resistir a todas as caçadas, desde que encontrea pastagem para se espraiar, que tem exatamente o dobro do tamanho de toda a

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Ásia, as duas Américas, a Europa e a África, a Nova Holanda e todas as Ilhas dooceano reunidas.

Ainda mais: devemos considerar que, em vista da suposta longevidade dasbaleias, sendo possível que atinjam a idade de um século ou mais, em certosperíodos várias gerações adultas diferentes devem ser contemporâneas. E o queisso representa, logo poderemos entender, se imaginarmos todos os cemitérios,sepulcrários e criptas familiares do mundo devolvendo os corpos com vida detodos os homens, mulheres e crianças que viveram há cerca de setenta e cincoanos; e acrescentarmos essa multidão incontável à população atual do globo.

Em vista disso tudo, portanto, consideramos a baleia imortal como espécie,embora perecível em sua individualidade. Nadou nos oceanos antes de oscontinentes surgirem das águas; nadou outrora no lugar onde hoje se encontramas Tulherias, o castelo de Windsor e o Kremlin. No dilúvio de Noé desprezou suaArca; e, se o mundo for mais uma vez inundado, como os Países Baixos, paraacabar com os ratos, a baleia eterna sobreviverá e, alçando-se na crista mais altada inundação equatorial, fará jorrar seu desafio espumante aos céus.

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106 A PERNA DE AHAB

A maneira precipitada com que o Capitão Ahababandonara o Samuel Enderby, de Londres, não decorrera sem algum prejuízopara sua pessoa. Atirara-se com tal energia contra um banco de seu bote que suaperna de marfim sofreu um golpe que a trincou. E depois de ter chegado aoconvés de seu navio, e a seu buraco de encaixe, virou-se com tanta veemênciapara dar uma ordem urgente ao timoneiro (era, como sempre, algo a propósitode ele não pilotar com suficiente rigor); e, assim, o marfim já avariado recebeuuma tal torcida e tranco adicionais, que, muito embora permanecesse inteiro, e aprincípio firme, Ahab julgou não ser mais confiável.

De fato, não era surpreendente que, malgrado sua louca insensatezgeneralizada, por vezes Ahab prestasse grande atenção às condições daquele ossomorto sobre o qual parte do seu corpo se apoiava. Pois, não muito tempo antes deo Pequod partir de Nantucket, ele fora encontrado certa noite estendido debruços no chão e sem sentidos; por um acidente desconhecido e aparentementeinexplicável, sequer imaginável, a perna de marfim fora deslocada com tantaviolência que o ferira, e, como uma estaca, quase perfurara sua virilha; e não foisem extrema dificuldade que a ferida dolorosa se curou por inteiro.

Nem, àquelas alturas, deixou de passar por sua mente monomaníaca que todaa angústia de seu sofrimento fosse conseqüência direta de um infortúnio anterior;e ele parecia ver com clareza que, como o réptil mais venenoso do pântanoperpetua sua espécie tão inevitavelmente quanto o cantor mais doce do bosque;assim também toda a desgraça, como a felicidade, gera naturalmenteacontecimentos similares a si. Não exatamente como, pensou Ahab; já que alinhagem e a posteridade da Dor superam as da Alegria. Pois, para que não sesubentenda isso: que se pode inferir de certos ensinamentos canônicos que algunsdeleites naturais deste mundo não gerarão filhos no outro mundo, mas, aocontrário, devido à esterilidade da alegria, serão seguidos de todo o desesperoinfernal; ao passo que os fatais sofrimentos criminosos gerarão com fertilidadepara além-túmulo uma prole eterna de tristezas sucessivas; para que não sesubentenda isso, parece haver uma desigualdade, quando se analisa o assuntocom profundidade. Pois, pensou Ahab, se mesmo na felicidade terrena maiselevada sempre existe oculta uma certa mesquinhez insignificante, enquanto, nofundo, todas as dores do coração escondem um significado místico e, em certoshomens, uma grandeza angelical; assim, sua análise diligente não desmente a

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dedução óbvia. Percorrer a genealogia dessas altas misérias mortais nos conduzafinal às primogenituras sem origens dos deuses; de modo que, diante de todos osalegres sóis fecundos e das rotundas luas outonais, iluminando o suave farfalharda colheita, é necessário dar-se conta disso: de que os próprios deuses nemsempre são felizes. O sinal de nascença, triste e indefectível na fronte do homem,é apenas a marca da tristeza dos que a imprimiram.

Por descuido foi divulgado um segredo, que talvez pudesse ter sido reveladoantes de modo mais apropriado. Entre muitas outras particularidades atribuídas aAhab, sempre permaneceu um mistério o porquê de, durante certo tempo, antese depois da viagem no Pequod, ele se resguardar com a exclusividade digna deum Grande Lama; e de, durante esse período, ele buscar um refúgio taciturno,por assim dizer, no senado marmóreo dos mortos. A razão difundida pelo CapitãoPeleg não pareceu adequada; embora, de fato, no que dizia respeito àsprofundezas de Ahab, toda revelação participasse mais de uma obscuridadesignificativa do que de uma claridade explicativa. Porém, no fim, tudo veio àtona; pelo menos, esse episódio. Havia uma desgraça atroz no fundo de suareclusão temporária. Não apenas isso, mas para o grupo de homens da terra,sempre decrescente e minguante, que, por uma razão qualquer, tinha o privilégiode se aproximar dele com menos restrições; para esse pequeno grupo o acidentereferido – que permaneceu, de fato, sem ser explicado por Ahab – se revestia deterror, não inteiramente dissociado da terra dos espíritos e dos lamentos. Por isso,por respeito a ele, todos conspiraram, tanto quanto puderam, para escamoteardos outros o conhecimento do caso; e assim foi, de modo que muito tempo sepassou até que a notícia se espalhasse pelo convés do Pequod.

Mas seja lá como for; que o sínodo de ar, invisível e ambíguo, ou os príncipesvingativos e os soberanos do fogo, tenham ou não parte com o terrestre Ahab,fato é que, no caso presente de sua perna, ele recorreu a um simplesprocedimento prático – chamou um carpinteiro.

E, quando o funcionário se apresentou diante dele, ordenou-lhe que se pusessesem demora a lhe fazer uma perna nova e orientou os imediatos para que lhedessem todos os pinos e vigas das mandíbulas de marfim (do Cachalote) quetivessem até então sido acumulados durante a viagem, para que fosse feita umaescolha cuidadosa do material mais resistente e sólido. Feito isso, o carpinteirorecebeu ordens de terminar a perna naquela noite; e de providenciar todos osseus acessórios, independentemente dos que pertenciam à perna desacreditadaainda em uso. Além do mais, a forja do navio devia ser tirada do ócio temporáriono porão; e, para acelerar as coisas, determinou-se que o ferreiro começasse deimediato a forjar os dispositivos de ferro que fossem necessários.

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107 O CARPINTEIRO

Senta-te sultanicamente entre as luas de Saturno, eimagina um solitário homem abstrato; e ele te parecerá um prodígio, umagrandeza, um sofrimento. Do mesmo ponto, porém, imagina toda a humanidade,e, na maior parte, ela te parecerá uma turba de desnecessárias duplicatas, a umsó tempo contemporâneas e hereditárias. No entanto, por mais humilde quefosse, e longe de fornecer um exemplo da alta abstração humana; o carpinteirodo Pequod não era uma duplicata; destarte, ele sobe agora em pessoa para estepalco.

Como todos os carpinteiros marítimos, e mais especialmente aqueles quepertencem aos navios baleeiros, ele era, de maneira um tanto prática eimprovisada, igualmente experiente em diversos afazeres e funções paralelos aoseu mister; sendo a arte do carpinteiro o tronco antigo e repleto de galhos detodos os numerosos ofícios mais ou menos ligados à madeira como materialauxiliar. Entretanto, além de se dedicar às referidas observações gerais, estecarpinteiro do Pequod era singularmente competente nas mil inomináveisemergências mecânicas que acometem regularmente um navio grande, numaviagem de três ou quatro anos, por longínquos e incultos mares. Para não falarapenas de sua habilidade em tarefas comuns: – consertar botes avariados, mastrosquebrados, remodelar a pá de remos malfeitos, inserir aberturas no convés, oupinos de madeira nas tábuas laterais, e outras variadas tarefas mais diretamenterelacionadas à sua profissão específica; ele era ainda um especialista seguro detodos os tipos de ofícios contrastantes, úteis ou inauditos.

O grande palco onde desempenhava tantos e tão diversos papéis era suabancada de torno; uma comprida e pesada mesa rústica provida de vários tornosde tamanhos diferentes, de ferro e de madeira. Sempre, exceto quando haviabaleias no costado, a bancada ficava solidamente amarrada na transversal donavio na parte de trás da refinaria.

Uma cavilha é muito grande para ser colocada no buraco: o carpinteiro acoloca num de seus tornos sempre disponíveis e de pronto reduz seu tamanho.Um estranho pássaro de terra perdeu o rumo e é capturado a bordo: com varetasbem polidas de ossos da baleia franca e estruturas de marfim do cachalote, ocarpinteiro faz uma gaiola parecida com um pagode. Um remador torce o pulso:o carpinteiro prepara uma loção lenitiva. Stubb deseja pintar estrelas vermelhasna pá de seus remos: prendendo cada remo no grande torno de madeira, o

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carpinteiro produz uma constelação simétrica. Um marinheiro deseja usarbrincos de osso de tubarão: o carpinteiro fura suas orelhas. Outro está com dor dedente: o carpinteiro pega o alicate e batendo a mão na bancada pede para que sesente ali; mas o pobre coitado tem um sobressalto incontrolável durante aoperação inconclusa; girando o cabo de seu torno de madeira, o carpinteiro fazum sinal para que coloque o maxilar ali, caso queira extrair o dente.

Assim, o carpinteiro estava preparado para tudo, igualmente indiferente eirreverente em relação a tudo. Os dentes, ele tinha por pedaços de marfim; ascabeças, ele entendia como roldanas de guindaste; os próprios homens nãopassavam de cabrestantes. Contudo, num campo de ação tão vário e amplamentebem-sucedido, com uma habilidade tão vigorosa; tudo isso pareceria confirmar-lhe uma rara vivacidade intelectual. Mas não era bem o caso. Pois não havia nadade especial naquele homem exceto uma certa insensibilidade impessoal;impessoal, repito; pois ela tanto se imiscuía no infinito circundante das coisas queparecia constituir um todo com a insensibilidade geral do mundo visível; que,sempre ativo de diferentes maneiras, ainda guarda eternamente a paz e nosignora, mesmo que você cave fundações para catedrais. Mas aquela era umainsensibilidade tão horrorosa, que também implicava, como se via, uma durezainabalável; – e, no entanto, por vezes estranhamente matizada por umacomicidade antiga, claudicante, antediluviana e asmática, não privada de umacerta espirituosidade anciã; tal como deve ter sido usada para passar o tempo nasvigílias noturnas no castelo de proa da arca do barbudo Noé. Não teria sido essevelho carpinteiro um vagabundo eterno que, de tanto rolar de cá para lá, nãotivesse criado musgo; e, além disso, tivesse eliminado quaisquer resíduosexteriores que lhe pudessem ter pertencido? Ele era uma abstração, nua e crua;um integral sem frações; descompromissado como um recém-nascido; um servivente sem relações premeditadas com este ou outro mundo. Pode-se mesmodizer que sua estranha falta de comprometimento supusesse alguma falta deinteligência; pois, em suas numerosas ocupações, não parecia trabalhar com arazão ou por instinto, ou apenas por ter sido instruído, ou pela combinação, igualou desigual, disso tudo; mas por uma espécie de processo espontâneo e literal desurdo-mudo. Era um simples manipulador; se chegou a ter um cérebro, esse deveter escorregado para os músculos dos dedos. Era como um daqueles objetosabsurdos, porém altamente úteis, feitos em Sheffield, multum in parvo, que têmo aspecto exterior – embora um pouco volumoso – de um canivete comum; masque não apenas têm lâminas de todos os tamanhos, como chaves de fenda, saca-rolhas, pinças, furadores, canetas, réguas, lixas e escareadores. Assim, se ossuperiores quisessem usar o carpinteiro como chave de fenda, bastava abriraquela sua parte, e o parafuso girava ligeiro; ou se como pinças, que o pegassem

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pelas pernas e lá estavam elas.No entanto, como antes se deu a entender, aquele carpinteiro abre-e-fecha,

multitarefa, não era mero mecanismo de um autômato. Se não tinha uma almacomum, tinha algo sutil que, de forma talvez anômala, cumpria seu dever. O queera, se essência de mercúrio, ou umas poucas gotas de amoníaco, não se sabebem. Mas ali estava; e ali ele vivia há uns sessenta anos, se não mais. E era issoseu princípio vital, inexplicável e engenhoso; era isso que o fazia falar sozinho amaior parte do tempo; mas apenas como uma roda irracional que ao zunir falasozinha; ou antes seu corpo era uma guarita e ele ali mantinha guarda, falando otempo todo para se manter acordado.

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108 AHAB E OCARPINTEIRO

O CONVÉS – PRIMEIRA VIGÍLIA NOTURNA

[O carpinteiro está de pé diante da sua bancada, à luz de duas lamparinas,ocupado em afilar um pedaço de marfim, este firmemente preso à bancada.Placas de marfim, tiras de couro, almofadas, parafusos e instrumentos devários tipos estão espalhados pela bancada. No primeiro plano, vê-se a chamavermelha da forja, onde trabalha o ferreiro.]

Maldita lima e maldito osso! O que deveria ser mole é duro, e oque deveria ser duro é mole. É sempre assim conosco, que

limamos maxilares e tíbias velhas. Vamos tentar de novo [espirra]. Sim, assim estámelhor [espirra]. Puxa, esse pó de osso é [espirra] –, é mesmo [espirra] –, santoDeus, não me deixa falar! Isso é o que velho recebe por trabalhar com madeiramorta. Serre uma árvore viva, você não vê tanta poeira; ampute um osso vivo, evocê também não vê [espirra]. Vamos, vamos, velho Smut, ajude e faça logo ahaste e a fivela; logo estarei pronto para elas. Que sorte [espirra] não precisar derótula; poderia confundir um pouco; mas uma simples tíbia – é tão fácil quantofazer uma vara de lúpulo; mas queria dar um bom acabamento. Tempo, tempo;se apenas eu tivesse tempo, ela ficaria tão bem feita quanto qualquer uma quetenha se prestado [espirra] à reverência a uma dama no salão. Não se comparariacom aquelas pernas de pele de veado e panturrilhas que vi em vitrines de lojas.Elas absorvem água; e, claro, também ficam reumáticas, e precisam ser tratadaspor um médico [espirra] com banhos e loções, como pernas vivas. Aí está; antesde serrá-la, devo chamar sua velha Potestade para ver se o comprimento estácerto; curta demais, parece. Ah! Eis o salto; estamos com sorte; lá vem ele oualgum outro, é certo.

AHAB [avançando][Durante a cena seguinte o CARPINTEIRO continua a espirrar por vezes.]“Pois bem, criador de homens!”“Bem na hora, senhor. Se o capitão permitir, marcarei o comprimento agora.

Deixe-me tirar as medidas, senhor.”“Tirar as medidas de uma perna! Bom! Não é a primeira vez. Mãos à obra!

Assim; deixa o dedo assim. Tens aqui um torno excelente, carpinteiro; deixa-mever se prende bem. Com efeito, isso agarra bem.”

“Oh, senhor, pode quebrar um osso – cuidado, cuidado!”

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“Não tenhas medo; gosto de um bom aperto; gosto de sentir alguma coisasegura neste mundo vacilante, homem. O que o Prometeu está fazendo ali? –quero dizer, o ferreiro – o que está fazendo?”

“Deve estar forjando a fivela agora, senhor.”“Certo. É uma parceria; ele faz a parte dos músculos. Está fazendo uma terrível

labareda vermelha ali!”“Sim, senhor; ele necessita do calor branco para esse trabalho delicado.”“Hum-hum. Sem dúvida. Parece-me agora realmente significativo que o velho

Grego, Prometeu, que ao que se diz criou os homens, tenha sido um ferreiro eque os tenha animado com o fogo; pois o que é feito no fogo, deve justamentepertencer ao fogo; e assim o inferno é provável. Como voa a fuligem! Deve tersido com esses resíduos que o Grego fez os Africanos. Carpinteiro, quando eleterminar a fivela, diz-lhe que forje um par de omoplatas de aço; há um mascate abordo com um fardo esmagador.”

“Senhor?”“Espera; quando Prometeu for fazê-lo, encomendarei um homem completo de

acordo com um modelo desejável. Em primeiro lugar, altura de cinqüenta pés,descalços; depois, o peito modelado segundo o Túnel do Tâmisa; depois, pernascom raízes, para ficar num só lugar; depois, braços com três pés de pulso; semcoração algum, fronte de bronze e um quarto de acre de excelente cérebro; eespera – encomendarei olhos para ver o exterior? Não, mas coloca uma clarabóiano topo da cabeça para iluminar o interior. É isso, anota a encomenda e vai.”

“Mas o que é que ele está dizendo e com quem está falando, gostaria de saber.Devo ficar aqui? [à parte]”

“Não passa de arquitetura medíocre fazer uma cúpula sem abertura; eis uma.Não, não, não; preciso de uma lamparina.”

“Oh, oh! Era isso, hein? Aqui estão duas, senhor; a mim basta uma.”“Por que estás a me apontar esse pega-ladrão à cara, homem? Não sabes que

apontar uma luz é pior do que apresentar armas?”“Pensei que o senhor estivesse falando com o carpinteiro.”“Carpinteiro? Pois bem, é isso – mas não; – tens aqui um tipo de trabalho

muito limpo, assaz cavalheiresco, carpinteiro; – ou preferirias trabalhar comargila?”

“Senhor? – Argila? Argila, senhor? É barro; deixamos o barro para os coveiros,senhor.”

“O sujeito é um ímpio! Por que estás espirrando?”“O osso faz muito pó, senhor.”“Que isso te sirva de lição, portanto; e, quando estiveres morto, não deixes que

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te enterrem sob o nariz dos vivos.”“Senhor? – oh! ah! – acho que sim; – oh, meu Deus!”“Olha, carpinteiro, ouso dizer que te consideras um trabalhador que faz o

trabalho como se deve, não é? Bem, então, não seria honrar o teu trabalho se,quando eu estiver com a perna que estás a fazer, eu sentisse ainda uma outraperna no mesmo lugar; isto é, carpinteiro, minha velha perna perdida, a de carnee osso, em suma. Não poderias fazer desaparecer aquele velho Adão?”

“É verdade, senhor, começo a entender alguma coisa agora. Sim, ouvi falarqualquer coisa curiosa a esse respeito, senhor; como um homem desmastreadonão perde nunca inteiramente o sentimento de seu velho mastro, mas por vezessente um formigamento. Posso humildemente perguntar-lhe se é verdade,senhor?”

“É assim, homem. Olha, põe tua perna viva aqui no lugar onde já esteve aminha; agora só há uma perna visível para os olhos, e no entanto são duas para aalma. Onde sentes formigar a vida; ali, nesse exato lugar, sem um milímetro deerro, eu também sinto. É um enigma?”

“Eu chamaria humildemente de adivinhação, senhor.”“Cala-te, então. Como sabes se alguma coisa inteira, viva e pensante, não se

encontra, invisível e impenetrável, exatamente onde estás agora; sim, e encontra-se aí a despeito de ti? Em tuas horas mais solitárias, talvez, não temes que teouçam? Espera, não fales! E se eu sinto ainda o espasmo de minha pernaesmagada, embora há muito apodrecida, por que não podes tu, carpinteiro,sentir para sempre as dores terríveis do inferno mesmo sem um corpo? Ah!”

“Meu Deus! É verdade, senhor, se a coisa é assim, devo refazer todos os meuscálculos; mas não creio ter medido tão curto, senhor.”

“Olha aqui, os palermas nunca deveriam dar por certas as premissas – Dentrode quanto tempo a perna ficará pronta?”

“Talvez uma hora, senhor.”“Ao trabalho, então, e traze-a para mim [volta-se para ir embora]. Oh, Vida!

Aqui estou, orgulhoso como um deus Grego, e contudo dependo de um palermapara ter um osso para ficar de pé! Maldita seja a rede mortal de débitos que nãose livrará dos livros-caixa. Eu seria livre como o ar; e estou preso aos papéis domundo inteiro. Eu sou tão rico que poderia disputar lance a lance com os maisricos pretorianos o leilão do Império Romano (que era o mundo) e todavia tragodívidas pela carne da língua com a qual me vanglorio. Pelos céus! Tenho deencontrar um crisol onde possa dissolver a mim próprio até que não reste maisdo que uma pequena e concisa vértebra. Assim!”

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CARPINTEIRO

[Retomando o trabalho]“Bem, bem, bem! Stubb conhece-o melhor do que todos, e Stubb sempre diz queele é esquisito; não diz nada além daquela palavrinha que basta, esquisito; ele éesquisito, diz Stubb; ele é esquisito – esquisito, esquisito; e fica dizendo o tempotodo para o senhor Starbuck – esquisito, senhor – esquisito, esquisito, muitoesquisito. E cá está a perna dele! Sim, agora que penso nisso, cá está acompanheira de leito dele! Ele tem um bastão de maxilar de baleia por esposa! Eisso é a perna dele; ele vai se apoiar nisso. Que foi aquilo sobre uma perna estarem três lugares, e todos os três lugares estarem no inferno – que foi aquilo? Oh!Não me surpreende que ele me olhasse com tanto desprezo! Às vezes tenho umasidéias estranhas, dizem; mas isso é muito raro. Pois um homem velho e pequenocomo eu não deveria nunca atravessar águas profundas com capitães altos, queparecem garças; a água bate no queixo rapidinho e todos clamam por botes salva-vidas. E aqui está, a perna da garça! Longa e fina, claro! Ora, para a maioria daspessoas duas pernas duram uma vida toda, pois talvez as tratem com cuidado,como uma velha senhora de bom coração trata seus velhos e fortes cavalos decarruagem. Mas Ahab; ah, ele é um cocheiro difícil. Veja, levou uma perna àmorte, e a outra ele estropiou para toda a vida, e agora usa pernas de osso aosmontes. Ei, você aí, Smut! Me dê uma mão aqui com esses parafusos e vamosterminar antes que o sujeito da ressurreição chegue com sua trombeta chamandotodas as pernas, verdadeiras ou falsas, como os homens das cervejarias recolhemos barris de cerveja usados, para enchê-los de novo. Que perna, esta! Parece umaperna viva de verdade, limada até o talo; ele vai se apoiar nela amanhã; ganharáas alturas. Puxa! Ia me esquecendo da plaquinha oval de marfim polido, onde elecalcula a latitude. Assim, assim; agora o cinzel, a lima e a lixa!”

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109 AHAB E STARBUCKNA CABINE

Segundo o costume, eles bombeavam o navio namanhã seguinte; e, oh!, uma quantidade nem um

pouco pequena de óleo subiu com a água; os tonéis embaixo deviam estar comum sério vazamento. Via-se muita preocupação; e Starbuck desceu à cabine parareportar o infausto incidente.{a}

Ora, pelo Sul e pelo Oeste o Pequod rolava próximo a Formosa e às ilhas Bashi,entre as quais se situa uma das saídas tropicais dos mares da China para oPacífico. E assim Starbuck encontrou Ahab diante de um mapa geral dosarquipélagos orientais; e uma outra carta separada representando a longa costaoriental das ilhas japonesas – Nippon, Matsmai e Shikoku. Com sua nova pernade marfim, branca como a neve, apoiada à perna fixa da mesa, e com o podão deum grande canivete à mão, o velho notável, de costas para a porta do corredor,franzia a testa e traçava mais uma vez suas velhas rotas.

“Quem vem?”, ao ouvir passos à porta, mas sem se virar. “Ao convés! Fora!”“O Capitão Ahab se engana; sou eu. O óleo no porão está vazando, senhor.

Temos de subir os Burtons e retirar a carga do navio.”“Subir os Burtons e retirar a carga do navio? Agora que estamos chegando

perto do Japão; lançar a âncora aqui por uma semana para remendar um lote deargolas velhas?”

“Ou fazemos isso, senhor, ou perderemos em um dia mais óleo do queconseguimos juntar em um ano. Vale a pena salvar aquilo que buscamos porvinte mil milhas, senhor.”

“Certo, certo, se a pegarmos.”“Eu estava falando do óleo no porão, senhor.”“E eu não estava falando ou pensando em nada disso. Vá embora! Que vaze! Eu

também estou vazando. Sim! Vazamentos em vazamentos! Não apenas cheio debarris com vazamentos, mas os barris com vazamentos estão num navio comvazamentos; e esse é um apuro muito pior do que o do Pequod, homem. Etodavia não me detenho para tapar meu vazamento; pois quem pode encontrá-lonum casco tão carregado; e como esperaria tapá-lo, mesmo se o encontrasse,nessa tormenta assustadora da vida? Starbuck! Não içarei os Burtons.”

“Que dirão os proprietários, senhor?”“Que os proprietários fiquem na praia de Nantucket e gritem mais alto que os

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Tufões! Que importa a Ahab? Proprietários, proprietários? Estás sempre a me falardesses proprietários sovinas, Starbuck, como se os proprietários fossem minhaconsciência. Mas, atenta, o único verdadeiro proprietário de alguma coisa é seucomandante; e escuta, minha consciência está na quilha deste navio – ao convés!”

“Capitão Ahab”, disse o imediato enrubescido, entrando na cabine com umaaudácia tão estranhamente prudente e respeitosa que não só parecia querer fazertodo o possível para evitar a mais leve manifestação exterior de si mesma, comotambém indicava mais do que alguma desconfiança de si mesma: “Um homemmelhor do que eu poderia te perdoar por aquilo que o ofenderia prontamentenum homem mais jovem; sim, e mais feliz, capitão Ahab”.

“Que inferno! Como ousas pensar em me criticar? – Ao convés!”“Não, senhor, ainda não; rogo-lhe. Senhor, atrevo-me a – ser indulgente! Não

seria possível entendermo-nos melhor, Capitão Ahab?”Ahab pegou um mosquete carregado que estava no cabide de armas (parte da

mobília da maioria das cabines dos marinheiros dos Mares do Sul), e apontando-ona direção de Starbuck exclamou: “Só existe um Deus que é Senhor da terra eum Capitão que é senhor do Pequod – Ao convés!”.

Por um instante, pelos olhos flamejantes do oficial e seu rosto inflamado, vocêquase teria pensado que ele de fato recebera a carga do cano apontado. Porém,controlando a emoção, levantou-se quase calmo e, saindo da cabine, parou uminstante e disse: “Não me insultaste, senhor, mas me ultrajaste; contudo, por issonão te peço que tenhas cuidado com Starbuck; pois apenas te ririas; mas queAhab tenha cuidado com Ahab; tem cuidado contigo mesmo, velho”.

“Ele demonstra coragem, e contudo obedece; trata-se de uma valentia muitocautelosa!”, murmurou Ahab, enquanto Starbuck desaparecia. “O que disse – queAhab tenha cuidado com Ahab –, há alguma coisa aí!” Então, usando semperceber o mosquete como bengala, com um duro semblante ele andou de umlado para o outro na pequena cabine; logo as rugas espessas da testa relaxaram e,devolvendo a arma ao cabide, ele voltou ao convés.

“És muito bom sujeito, Starbuck”, ele disse em voz baixa ao imediato; então,levantando a voz, disse à tripulação: “Ferrai as velas dos joanetes, rizai forte asgáveas, à proa e à ré; trazei a verga principal; subi os Burtons e descarregai osbarris do porão principal.”

Talvez seja inútil querer saber o motivo por que, respeitando Starbuck, Ahabagia desse modo. Poderia ter sido um ímpeto de honestidade; ou simplesprotocolo de prudência, que, sob tais circunstâncias, proibia imperiosamente omenor sinal de inimizade declarada, ainda que temporária, contra o importanteprimeiro oficial de seu navio. Em todo caso, as ordens foram executadas e osBurtons subiram.

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{a} Nos navios baleeiros usados para a pesca de Cachalotes que têm grande quantidade de óleo a bordo, é umdever colocar uma mangueira no porão regularmente duas vezes por semana e banhar os tonéis comágua do mar, que, em seguida, a intervalos variáveis, é retirada pelas bombas do navio. Dessa formaprocura-se manter os tonéis fechados e úmidos, enquanto, pelas características alteradas da águaretirada, os marujos detectam rapidamente qualquer vazamento sério na carga preciosa. [N. A.]

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110 QUEEQUEG EM SEU CAIXÃO

Durante a busca, descobriu-se que os últimosbarris arriados ao porão estavam em perfeito estado e que o vazamento deviaestar mais embaixo. Assim, estando calmo o tempo, seguiram abrindo caminhoporão adentro, perturbando o sono das enormes fileiras de barricas do fundo; e,daquela meia-noite escura, mandaram aqueles gigantescos molhes para a luz aoalto. Foram fundo; e tão antigo, e corroído e mofado era o aspecto dos barris maisfundos que a expectativa que se tinha era a de topar com algum barril bolorentoe fundador contendo as moedas do capitão Noé, com cópias dos cartazes afixadosinutilmente avisando o desvairado mundo antigo sobre o dilúvio. Pipas e maispipas de água, e pão, carne de vaca, aduelas e feixes de argolas de ferro, foramalçadas, até que, por fim, o convés atulhado se tornou quase intransponível; e ocasco oco ressoava sob os pés, como se você estivesse andando sobre catacumbasvazias, e balançava e jogava no mar como um garrafão carregado de ar. O navioestava pesado no topo, como um estudante em jejum que tivesse todo Aristótelesna cabeça. Bom para eles que os Tufões não os tivessem visitado naquela ocasião.

Ora, foi nessas circunstâncias que meu pobre companheiro pagão, meu amigodo peito, Queequeg, foi acometido por uma febre que o levou a quase dois passosdo fim infinito.

Seja dito que, neste ofício de baleeiro, se desconhecem as sinecuras; adignidade e o perigo andam de mãos dadas; enquanto não se chega a Capitão,mais alto o cargo, mais pesado é o trabalho. Assim era para o pobre Queequeg,que na qualidade de arpoador não apenas devia enfrentar a fúria da baleia viva,mas – como vimos alhures – montar no dorso do cadáver em mar aberto; e, porfim, descer às trevas do porão e suar amargamente o dia inteiro nessa prisãosubterrânea, manejando resoluto os mais canhestros barris e cuidar de sua estiva.Em suma, entre os baleeiros, os arpoadores são os chamados homens do porão.

Pobre Queequeg! Quando o navio estava quase estripado, você deveria ter seinclinado sobre a escotilha e olhado para ele lá embaixo; onde, reduzido às suasceroulas de lã, o selvagem tatuado rastejava em meio à umidade e ao lodo, comoum lagarto verde malhado no fundo de um poço. E um poço ou depósito de gelofoi o que provou ser para o pobre pagão; onde, estranho dizer, apesar do calor deseu suor, apanhou um resfriado terrível que descambou em febre; e que, por fim,depois de um sofrimento de dias, o obrigou à rede, junto à soleira da porta damorte. Como definhou e definhou naqueles poucos dias vagarosos, até que lhe

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parecia restar pouco mais do que osso e tatuagem. Mas, enquanto todo o restodefinhava e os ossos da face ficavam mais salientes, os olhos, no entanto,pareciam ficar cada vez maiores; adquiriram um fulgor de estranhatranqüilidade; e plácidos, porém penetrantes, olhavam para você do fundo dadoença, um testemunho maravilhoso da saúde imortal que tinha e não podiamorrer, nem enfraquecer. E, como os círculos na água que, à medida queenfraquecem, expandem; seus olhos davam voltas e mais voltas como os anéis daEternidade. Um terror sem nome dominava quem quer que se sentasse ao lado doselvagem enfermiço e visse coisas tão estranhas em seu rosto quanto astestemunhadas pelos presentes à morte de Zoroastro. Pois tudo o que éverdadeiramente prodigioso e assustador no homem ainda não foi expresso empalavras ou em livros. E a aproximação da Morte, que a todos iguala, a todosimpressiona com uma última revelação que só um autor dentre os mortospoderia expressar com propriedade. De modo que – digo de novo – nenhumCaldeu ou Grego moribundo teve mais sagrados ou elevados pensamentos do queaqueles cujas sombras misteriosas se insinuavam pelo rosto do pobre Queequeg,enquanto jazia tranqüilo na rede, balançando, e o mar ondulante parecia embalá-lo ao repouso final, e a maré invisível do oceano o elevava sempre mais alto emdireção ao céu de seu destino.

Não houve um homem da tripulação que não o considerasse perdido; e,quanto ao próprio Queequeg, o que ele pensava de seu caso demonstrou-se demaneira convincente por um curioso favor que pediu. Chamou um dosmarinheiros para junto de si, na cinzenta vigília matinal quando o dia apenasraiava, e, pegando em sua mão, disse-lhe que vira por acaso em Nantucketpequenas canoas de madeira escura, como a preciosa madeira de guerra de suailha natal; e, informando-se, veio a saber que todos os baleeiros que morriam emNantucket eram colocados naquelas mesmas canoas escuras e a idéia de jazerdesse modo muito lhe agradara; pois não diferia do costume de sua própriagente, que, depois de embalsamar um guerreiro morto, o estendia em sua canoae o deixava à deriva entre os arquipélagos estrelados; pois não apenas acreditavaque as estrelas eram ilhas, mas que muito além do horizonte visível seus serenosmares sem continentes se mesclavam com os céus azuis; dando assim origem aosbrancos vagalhões da Via-Láctea. Acrescentou que estremecia com a idéia de serenterrado com sua rede, segundo o costume marítimo, atirado como algumacoisa desprezível aos tubarões devoradores de mortos. Não: ele desejava umacanoa como aquelas de Nantucket, tanto mais apropriadas, sendo ele umbaleeiro, pois, como os botes baleeiros, essas canoas-caixão não portavam quilhas;embora isso implicasse uma navegação bastante incerta e uma grande deriva paraas eras sombrias.

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Ora, quando esse caso estranho foi levado à ré, o carpinteiro recebeu ordens deatender às vontades de Queequeg, quaisquer que fossem suas implicações. Haviaa bordo uma velha madeira pagã, cor de caixão, que, no decurso de uma longaviagem anterior, havia sido cortada nos bosques nativos das ilhas Laquedivas, edessas tábuas escuras recomendou-se que o caixão fosse feito. Não tardou mais ocarpinteiro a receber a ordem do que, tomando a régua, encaminhar-se com todaa indiferente presteza que o caracterizava para o castelo de proa e tomar asmedidas de Queequeg com muita perícia, tracejando regularmente o giz napessoa do arpoador enquanto movia a régua.

“Ah! Pobre-diabo! Terá de morrer agora!”, exclamou o marinheiro de LongIsland.

De volta à sua bancada, o carpinteiro, por comodidade ou referência geral,transferiu-lhe o exato comprimento que o caixão deveria ter, e então tornoupermanente tal transferência, talhando duas fendas nas extremidades. Feito isso,enfileirou tábuas e ferramentas e pôs-se a trabalhar.

Quando o último prego foi cravado, e a tampa devidamente aplainada eajustada, o carpinteiro levou o caixão aos ombros sem esforço e seguiu com ele àfrente, perguntando se ali já estavam prontos para usá-lo.

Ouvindo os gritos indignados, porém um tanto engraçados, com que aspessoas do convés empurravam o caixão para longe de si, Queequeg, para aconsternação geral, ordenou que o objeto fosse imediatamente trazido até ele, enão houve quem o negasse; visto que, de todos os mortais, certos moribundos sãoos mais tirânicos; e, sem dúvida, uma vez que em pouco tempo eles nos darãotão pouco trabalho para sempre, os caprichos dos pobres-diabos devem seratendidos.

Debruçando-se na beira da rede, Queequeg demorou-se a contemplar o caixãocom olhares atentos. Pediu então seu arpão, fez com que lhe tirassem o cabo demadeira e então ordenou que colocassem a parte metálica no caixão junto a umdos remos de seu bote. Ainda segundo sua vontade, foram espalhados biscoitospor toda sua volta interna: um frasco de água doce foi depositado à cabeceira, eum saquinho de pó de madeira lixada do porão posto a seus pés; e, sendo umpedaço de lona de vela enrolado à guisa de travesseiro, Queequeg apelou paraque fosse levado a seu último leito, para poder experimentar de sua comodidade,se é que havia. Ficou ali deitado sem se mover por alguns minutos e então pediupara que alguém fosse a seu embornal e lhe trouxesse seu pequeno deus, Yojo.Então, cruzando os braços sobre o peito com Yojo entre eles, solicitou que atampa do caixão (chamou-a de escotilha) fosse colocada sobre ele. A extremidadeda cabeça abria-se com uma dobradiça de couro, e ali Queequeg permaneceu,deitado em seu caixão, mostrando um pouco de seu semblante sereno. “Rarmai”

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(serve; é confortável), murmurou por fim, e fez sinal para que o recolocassem narede.

Mas, antes que isso fosse feito, Pip, que todo o tempo vagava furtivamentepelas imediações, aproximou-se de onde ele jazia e, com soluços brandos, tomou-o pela mão; enquanto a outra segurava seu pandeiro.

“Pobre andarilho! Você não cansa nunca de vagar? Aonde você vai agora? Se ascorrentezas levarem seu corpo para aquelas Antilhas queridas, onde apenas osnenúfares alcançam as praias, você poderia fazer uma pequena busca para mim?Procure um certo Pip, há muito desaparecido: creio que ele está numa daquelasremotas Antilhas. Se você o encontrar, console-o; pois deve estar triste. Veja!Deixou seu pandeiro para trás; – eu o encontrei. Rig-a-dig, dig, dig! Agora,Queequeg, morra; e eu tocarei sua marcha fúnebre.”

“Ouvi dizer”, murmurou Starbuck, observando pela escotilha, “que no decursode febres violentas homens, de todo ignorantes, falaram línguas antigas; equando o mistério é posto à prova sempre se descobre que em sua infânciainteiramente esquecida essas línguas antigas haviam sido faladas a seus ouvidospor alguns notáveis eruditos. Assim, segundo minha mais sincera crença, o pobrePip, nessa estranha doçura de sua insanidade, traz garantias celestiais de todas asnossas pátrias celestiais. Onde teria aprendido isso, senão lá? – Escuta! Ele fala denovo; agora, no entanto, com mais veemência.”

“Formem dois a dois! Façamos dele um General! Oh, onde está seu arpão?Coloquem-no aqui, de atravessado – Rig-a-dig, dig, dig! Hurra! Ai, se um galocorajoso pousasse na cabeça dele e cantasse! Queequeg morre corajoso! –lembrem-se disto; Queequeg morre corajoso! – prestem bastante atenção a isso;Queequeg morre corajoso! – repito; corajoso, corajoso, corajoso! Mas o pequeno edesprezível Pip, esse morreu covarde, morreu tremendo inteiro; – fora, Pip!Escute aqui; se você encontrar esse Pip, diga em todas as Antilhas que ele é umfugitivo; um covarde, um covarde, um covarde! Diga-lhes que pulou de um botebaleeiro! Eu nunca tocaria meu pandeiro para o desprezível Pip, nem o celebrariaGeneral, se ele estivesse morrendo de novo aqui. Não, não! Vergonha sobre todosos covardes – vergonha sobre eles! Que se afoguem como Pip, que pulou de umbote baleeiro. Vergonha! Vergonha!”

Durante todo esse tempo, Queequeg permaneceu deitado de olhos fechados,como num sonho. Pip foi levado, e o homem doente foi recolocado na rede.

Porém, agora que ele aparentemente havia encerrado todos os preparativospara a morte; agora que o caixão se mostrava bem adaptado, Queequegsubitamente se recobrou; logo parecia não haver mais necessidade da caixa docarpinteiro; e, daí que, quando alguém expressava sua alegre surpresa, elerespondia, em substância, que a causa de sua repentina convalescença era a

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seguinte; – em um momento crítico, lembrara-se de uma pequena obrigação, quehavia ficado pendente em terra; daí que mudara de idéia sobre morrer: ainda nãopodia morrer, declarou. Perguntaram-lhe, então, se viver ou morrer era umaquestão de seu desejo e prazer soberanos. Certamente, respondeu. Resumindo,era do pensamento de Queequeg acreditar que, se um homem decidisse viver,uma simples doença não poderia matá-lo: nada, exceto uma baleia, umatormenta, ou qualquer força destrutiva violenta, estúpida e ingovernável dessanatureza.

Ora, existe uma diferença digna de nota entre os selvagens e os civilizados;enquanto, digamos, um doente civilizado pode passar seis meses convalescendo,um doente selvagem pode ficar quase curado em um dia. Assim, em boa hora,meu Queequeg recuperou sua força; e depois de ter permanecido sentado aomolinete por uns poucos dias indolentes (mas comendo com apetite vigoroso), derepente pôs-se de pé, esticou os braços e as pernas, alongou-se bem, bocejou umpouquinho e então, saltando para a proa de seu bote suspenso, e brandindo oarpão, declarou estar pronto para a luta.

Com uma selvagem extravagância, servia-se agora do caixão como arca; e,retirando as roupas de seu embornal de lona, arrumou-as ali. Passou muitas horasde folga entalhando a tampa com todo o tipo de figuras e desenhos grotescos; eparecia desse modo empenhado, segundo sua rudeza de modos, em copiar partesda intricada tatuagem de seu corpo. E essa tatuagem fora obra de um finadoprofeta e vidente de sua ilha, o qual, mediante tais sinais hieroglíficos, escreveraem seu corpo uma teoria completa dos céus e da terra e um tratado místico sobrea arte de alcançar a verdade; de modo que Queequeg, por seu próprio corpo, eraum enigma a ser decifrado; uma maravilhosa obra em um volume; mas cujosmistérios nem mesmo ele próprio podia ler, ainda que seu próprio coraçãopulsante batesse contra eles; e esses mistérios estivessem, portanto, destinados ase desfazer no pó do pergaminho vivo em que estavam inscritos e ficar semsolução até o fim. E deve ter sido esse pensamento que sugeriu a Ahab aquela suafuriosa exclamação, quando certa manhã ele retornava da visita ao pobreQueequeg – “Oh, diabólica tentação dos deuses!”.

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111 O PACÍFICO

Quando, deslizando ao longo das ilhas Bashi, saímos afinal nogrande Mar do Sul; não fosse por outros motivos, eu poderia ter celebrado meuquerido Pacífico com incontáveis agradecimentos, pois então a longa querênciade minha juventude fora atendida; aquele oceano sereno rolando a meu leste aolongo de milhares de léguas azuis.

Não se sabe que doce mistério existe naquele oceano, cujos tumultosgentilmente terríveis parecem falar de um espírito oculto em suas profundezas;como as lendárias ondulações do relvado Efésio sobre o sepulto São JoãoEvangelista. E é justo que, sobre esses pastos marinhos, sobre a água que rola poressas grandes pradarias e por sobre as valas de indigentes dos quatro continentes,as ondas ascendam e caiam, fluam e refluam incessantes; pois aqui milhares desombras e trevas, sonhos afogados, sonambulismos, devaneios; tudo o quechamamos existências e almas jaz sonhando, sempre sonhando; revirando-secomo os adormecidos em seus leitos; as ondas incessantes são assim geradas porsuas inquietudes.

Para qualquer Feiticeiro, andarilho e pensativo, este plácido Pacífico, uma vezcontemplado, deve se tornar para sempre seu mar de adoção. Agita-se em meio àságuas mais centrais do mundo, com o Índico e o Atlântico formando meramenteseus braços. Essas mesmas ondas lavam os quebra-mares das recém-construídascidades da Califórnia, somente ontem fundadas pela mais nova estirpe dehomens, e banham as fronteiras apagadas, porém maravilhosas, das terrasAsiáticas, mais antigas do que Abraão; enquanto ao centro tudo flutua entre asvias-lácteas das ilhas de corais, e os planos, infinitos e desconhecidosArquipélagos e os insondáveis Japoneses. Assim esse misterioso e divino Pacíficocinge quase toda a vastidão do mundo; faz de todas as costas uma única baía;parece a maré pulsante do coração da terra. Soerguido por tais ondas eternas,você não pode deixar de reconhecer o deus sedutor, inclinando sua cabeça diantede Pã.

Todavia, poucas idéias de Pã atormentavam o cérebro de Ahab, enquanto,ereto como uma estátua de ferro em seu lugar costumeiro, junto ao cordame demezena, sem perceber inspirava com uma narina o almíscar açucarado das ilhasBashi (em cujos bosques perfumados deviam caminhar ternos amantes) e com aoutra inalava conscientemente a baforada salgada do oceano recém-descoberto;oceano em que a odiada Baleia Branca devia estar nadando naquele momento.

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Arremessado por fim sobre essas águas quase finais, e deslizando em direção àzona de cruzeiro Japonesa, o propósito do velho intensificou-se. Seus firmes lábiosse uniram como os lábios de um torno; o Delta das veias de sua fronte inchoucomo riachos transbordantes; e mesmo durante o sono seu grito retumbanteatravessou o casco inclinado, “Todos à ré! A Baleia Branca esguicha sanguedenso!”.

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112 O FERREIRO

Valendo-se da temperatura amena e fresca do verão que orareinava naquelas latitudes e preparando-se para as perseguições especialmenteativas, esperadas para breve, Perth, o velho ferreiro, irritado e coberto defarruscas, ainda não removera sua forja portátil para o porão depois de terconcluído sua participação no trabalho com a perna de Ahab; mantendo-a noconvés, presa a argolas junto ao mastro de proa; sendo quase incessantementesolicitado pelos líderes dos botes, arpoadores e remadores para lhes fazer algumtrabalho; modificando, consertando ou remodelando as diversas armas eutensílios do bote. Muitas vezes ficava rodeado por um círculo ansioso, todosesperando ser servidos; segurando pás, pontas de piques, arpões e lanças,observando ciosos cada um de seus gestos fuliginosos, enquanto trabalhava.Todavia, o que esse velho homem possuía era um martelo paciente empunhadopor um braço paciente. Murmúrios, impaciência ou petulância, de sua parte nadahavia. Silencioso, vagaroso e solene; curvando sempre mais suas costascronicamente arquejadas, trabalhava como se o trabalho fosse a própria vida; e abatida grave de seu martelo, a batida grave de seu coração. E assim era. – Muitoinfeliz!

O curioso passo desse velho homem, uma espécie de guinada leve, porémdolorosa, em seu caminhar, aguçara desde o início da viagem a curiosidade dosmarujos. E às insistentes perguntas importunas ele por fim cedeu; e desde entãotodos vieram a saber da história vergonhosa de seu triste destino.

Em certa noite de um inverno rigoroso, estando atrasado, e nãoinocentemente, numa estrada entre dois vilarejos, o ferreiro um tantoestupidamente se deixou invadir por um torpor mortal e procurou abrigo em umestábulo envergado, caindo aos pedaços. O resultado foi a perda das extremidadesde ambos os pés. Após essa revelação, cena a cena, foram contados os quatro atosde alegria e o longo e catastrófico quinto ato de tristeza do drama de sua vida.

Era um homem velho que, aos quase sessenta anos de idade, haviatardiamente encontrado aquilo que entre os peritos em tristeza se chama ruína.Fora um artesão de renomada excelência e sempre com muito trabalho parafazer; possuía casa e jardim; abraçava uma esposa jovem e dedicada, quase umafilha, e três filhos alegres e saudáveis; todos os domingos freqüentava uma igrejaalegre, situada num bosque. Mas certa noite, sob o manto das trevas, e além dissoescondido sob um astuto disfarce, um ladrão perigoso invadiu-lhe sorrateiro a

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casa feliz e lhe roubou tudo de tudo. E, ainda mais triste é dizê-lo, havia sido opróprio ferreiro que, sem o saber, conduzira esse ladrão ao seio de sua família.Era o Mago da Garrafa! Ao sacar a rolha fatal, o demônio voou para fora eencolheu sua casa. Ora, por prudentes razões de bom senso e economia, a oficinado ferreiro ficava no porão da habitação, porém com uma entrada separada; demodo que a jovem esposa dedicada e saudável sempre ouvia, sem nenhumnervosismo de tristeza, mas com vigorosa satisfação, a forte batida do martelo deseu velho marido de braços jovens; cujas reverberações, abafadas ao passar porassoalhos e paredes, chegavam até ela não sem doçura no quarto das crianças; eassim, à férrea cantiga de ninar do Trabalho árduo, a prole do ferreiro eraembalada até dormir.

Oh, dor sobre dor! Ó, Morte, por que não podes às vezes ser conveniente? Setivesses levado contigo esse velho ferreiro antes de a ruína completa se abatersobre ele, a jovem esposa teria conhecido uma tristeza amena, e os órfãos, um pailendário, verdadeiramente venerável, com quem sonhariam nos anos futuros; etodos teriam renda suficiente, dispensando cuidados. Mas a Morte colheu outroirmão, virtuoso e mais velho, de cujos cantarolantes labores diários dependia amanutenção de outra família, e deixou o mais que inútil velho de pé, até que arepugnante podridão da vida o tornasse mais fácil de ceifar.

Para que contar tudo? Os golpes do martelo no porão a cada dia tornaram-semais espaçados; e a cada dia os golpes ficavam mais fracos do que osprecedentes; a esposa sentava-se à janela, com frio, sem lágrimas nos olhos, que,cintilando, observavam os rostos lacrimosos de suas crianças; o fole caiu; a forjaentupiu-se de cinzas; a casa foi vendida; a mãe mergulhou na longa relva docemitério; os filhos, duas vezes, fizeram-lhe companhia; e o velho, sem casa, nemfamília, partiu cambaleante, um vagabundo de luto; nenhuma de suas aflições foirespeitada; suas cãs tornaram-se o escárnio dos cachos dourados!

A Morte parece ser o único destino desejável para uma tal travessia; a Morte,porém, é apenas o zarpar à região do estranho Desconhecido; é apenas a primeirasaudação às possibilidades do imenso Remoto, do Selvagem, do Úmido, doIlimitado; portanto, aos olhos de tais homens desejosos de morrer, que aindaguardam em si algum escrúpulo contra o suicídio, o todo dadivoso e receptivooceano estende sedutoramente toda a sua planície de inconcebíveis e tentadoresterrores e maravilhosas aventuras de uma nova vida; e dos corações de infinitosPacíficos milhares de sereias cantam para eles – “Vem para cá, coração partido;aqui há outra vida, sem a culpa da morte intermediária; aqui há maravilhassobrenaturais, sem que se tenha de morrer por elas. Vem para cá! Enterra-tenuma vida que, para teu tão detestável quanto detestado mundo terreno, se fazmais do esquecimento que a morte. Vem para cá! Ergue a tua lápide também no

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cemitério e vem para cá, que nós te esposaremos!”.Atento a essas vozes, a Leste e Oeste, pela hora da alvorada e do crepúsculo, o

espírito do ferreiro respondeu, Sim, eu vou! E assim Perth conheceu a vidabaleeira.

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113 A FORJA

Com a barba embaraçada e enfiado num tosco avental de pele detubarão, por volta do meio-dia Perth estava de pé entre a forja e a bigorna, estaúltima colocada sobre um tronco de madeira dura, segurando com uma mão aponta de uma lança sobre o carvão, e com a outra, o fole, quando o Capitão Ahabse aproximou, trazendo à mão um pequeno saco de couro, de aspectoenferrujado. Ainda a uma certa distância da forja, o taciturno Ahab parou; atéque, por fim, Perth, tirando o ferro do fogo, começou a martelá-lo sobre abigorna – a massa incandescente lançando centelhas em espessas flutuaçõesvolantes, das quais algumas caíram perto de Ahab.

“São esses teus petréis, Perth? Estão sempre voando no teu rastro; aves de bomagouro, também, mas não para todos; – olha aqui, elas queimam; mas tu – tuvives entre elas sem te chamuscares.”

“Pois estou todo chamuscado, Capitão Ahab”, respondeu Perth, descansandoum instante sobre seu martelo; “sou à prova de fogo; a brasa não me marcaria tãofacilmente.”

“Bem, bem; basta! Tua voz retraída me parece calma e sensata demais em suador. Distante do Paraíso, como estou, impaciento-me diante de toda desgraça quenão seja louca. Devias acabar louco, ferreiro; fala, por que não enlouqueces?Como podes agüentar sem enlouquecer? Será que os céus ainda te odeiam, aponto de não poderes enlouquecer? – O que estás a fazer aí?”

“Soldando uma velha ponta de lança, senhor; tinha fendas e mossas.”“E podes deixá-la lisa de novo, ferreiro, depois de tão árduos serviços?”“Penso que sim, senhor.”“E suponho que podes alisar quase todas as fendas e mossas; não importa quão

duro seja o metal, ferreiro?”“Sim, senhor, penso que sim; todas as fendas e mossas, exceto uma.”“Olha aqui então”, exclamou Ahab, avançando irascível e apoiando as duas

mãos nos ombros de Perth; “olha aqui – aqui –, podes alisar uma fenda comoessa, ferreiro?”, passando uma das mãos nos vincos da testa; “se fosses capaz,ferreiro, feliz eu deitaria minha cabeça na bigorna e sentiria o mais pesado dosteus martelos entre meus olhos. Responde! Podes alisar esta fenda?”

“Oh! Mas é justo essa, senhor! Não disse eu todas as fendas e mossas, excetouma?”

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“Sim, ferreiro, é ela; sim, homem, ela não aceita teu trabalho; pois, embora sóa vejas em minha carne, ela chegou ao osso do meu crânio – ele é todo fendas!Mas chega de brincadeiras; basta de fisgas e lanças por hoje. Olha aqui!”, fazendotinir o saco de couro, como se estivesse cheio de moedas de ouro. “Tambémquero que me faças um arpão; um que mil parelhas de demônios não consigamquebrar, Perth; algo que permaneça cravado numa baleia como sua própriabarbatana. Aqui tens o material”, atirando a bolsa sobre a bigorna. “Olha aqui,ferreiro, são pedaços de cravos recolhidos das ferraduras de aço de cavalos decorrida.”

“Cravos de ferraduras, senhor? Ora, Capitão Ahab, tens então o melhor e maisresistente material com que nós, ferreiros, trabalhamos.”

“Sei disso, velho; esses pedaços se fundirão como a cola dos ossos derretidosdos assassinos. Rápido! Forja-me o arpão. E forja-me, antes, doze hastes para seucabo; depois enrola e torce e martela essas doze numa só, como as linhas e oscordões de uma corda de reboque. Rápido! Eu atiçarei o fogo.”

Quando afinal as doze hastes foram feitas, Ahab experimentou-as, uma a uma,girando-as, com as próprias mãos, em torno de uma longa e pesada cavilha deferro. “Um defeito!”, rejeitando a última. “Faça-a de novo, Perth.”

Feito isso, Perth ia começar a soldar as doze hastes numa só, quando Ahab lhesegurou a mão e disse que ele mesmo soldaria seu ferro. Enquanto, com pigarrosregulares e ofegantes, ele martelava na bigorna, com Perth passando-lhe as hastesincandescentes, uma após a outra, e a forja duramente provocada lançava ao altosua intensa chama reta, o Parse atravessou em silêncio e, inclinando a cabeça emdireção ao fogo, pareceu invocar alguma praga, ou bênção, sobre o trabalho. Mas,assim que Ahab lhe dirigiu o olhar, ele se afastou.

“O que aquela penca de luciferários estará tramando?”, murmurou Stubb,observando do castelo de proa. “Aquele Parse cheira a fogo de pavio; ele mesmotem esse cheiro, como a caçoleta de pólvora quente de um mosquete.”

Por fim o cabo, já compondo uma única haste, recebeu a chama final; e assimque Perth, para temperá-lo, mergulhou-o chiando no barril de água perto dele, ovapor escaldante subiu ao rosto inclinado de Ahab.

“Queres marcar-me a fogo, Perth?”, estremecendo um instante pela dor;“estive então forjando meu próprio carimbo?”

“Rogo a Deus que não; mas receio algo, Capitão Ahab. Não seria este arpãopara a Baleia Branca?”

“Para o demônio branco! Mas agora, à farpa; tu mesmo deves fazê-la, homem.Aqui estão minhas navalhas – o melhor do aço; aqui, e faze a farpa tão pontudaquanto o granizo agulheado do Mar Glacial.”

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Por um instante o velho ferreiro olhou para as navalhas como se hesitasse emusá-las.

“Pega-as, homem, já não preciso delas; pois já não faço a barba, nem como,nem rezo até que – mas toma aqui – ao trabalho!”

Modelado afinal à maneira de uma flecha, e soldado por Perth ao cabo, o açologo despontou da extremidade do ferro; e no momento em que o ferreiro seaprontava para dar às farpas a chama final, antes de temperá-las, gritou a Ahabpara que trouxesse o barril de água para perto.

“Não, não – não quero água para isso; quero que o seja pela verdadeiratêmpera da morte. Ó, de bordo! Tashtego, Queequeg, Daggoo! Que dizeis,pagãos? Vós me dareis sangue suficiente para temperar essa farpa?”, segurando-ano alto. Um grupo de cabeças escuras acenando respondeu, Sim. Foram feitos trêsburacos na carne pagã, e e as farpas da Baleia Branca foram então temperadas.

“Ego non baptizo te in nomine patris, sed in nomine diaboli!”, uivou Ahab emdelírio, enquanto o ferro maligno devorava ardentemente o sangue batismal.

Depois, examinando as hastes sobressalentes no chão e escolhendo uma denogueira, ainda revestida de casca, Ahab prendeu a ponta ao encaixe do ferro.Um rolo novo de corda de reboque foi então desenrolado, algumas braças levadaspara o molinete e ali esticadas com grande tensão. Pressionando a corda com o péaté ela zunir como a corda de uma harpa, depois se curvando, ansioso, semencontrar qualquer filamento solto, Ahab exclamou, “Bom! Agora, à costura”.

Numa extremidade a corda foi desfeita, e os vários cordões espalhadostrançaram-se e entreteceram-se em torno do encaixe do arpão; a haste foi entãoempurrada com força para dentro do encaixe; e a corda foi apertada até a metadedo comprimento da haste, firmemente ligada às tranças do cordão. Feito isso,cabo, ferro e corda – como as Três Parcas – fizeram-se inseparáveis, e, de armaem punho, Ahab pôs-se em taciturna marcha; o ruído de sua perna de marfim e oruído da haste de nogueira, ambos ressoavam ocos ao longo de todas as tábuas.Mas antes de entrar na cabine ouviu-se um ruído leve, sobrenatural, meiozombeteiro, mas muito comovente. Ah, Pip! Tua risada infeliz, teu olharindolente, porém incansável; toda essa tua estranha pantomima fundia-se nãosem sentido à tragédia lúgubre do navio melancólico, e dela zombavam!

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114 O DOURADOR

Penetrando mais e mais no coração da zona de cruzeiro doJapão, o Pequod logo se viu ocupado com a pescaria. Amiúde, com temperaturaamena e agradável, por doze, quinze, dezoito e vinte horas seguidas, osmarinheiros atarefaram-se nos botes, ora fazendo força, ora navegando à vela ouremando perseverantes em busca de baleias, ou então, durante intervalos desessenta a setenta minutos, aguardando calmamente sua emergência; ainda quesem muito êxito em seus esforços.

Em tais momentos, sob um sol brando; flutuando o dia todo sobre ondasvagarosas e suaves; sentado em bote leve como uma canoa de bétula; e tãosociavelmente se misturando às próprias ondas macias que, como os gatos nalareira, ronronam ao bater na amurada; são esses os momentos de quietudesonhadora, quando, observando o fulgor e a beleza tranqüila da pele do oceano,qualquer um esquece do coração de tigre que palpita submerso; e não quererialembrar, em sã consciência, que essa pata de veludo esconde uma garraimpiedosa.

São esses os momentos quando, em seu bote, o vagamundo dedica certosentimento filial, íntimo, como que terrestre, ao mar; que toma por campoflorido; e o navio distante, que mostra apenas o topo de seus mastros, pareceavançar não através do agitado rolar das ondas, mas através da grama alta de umapradaria ondulante: tal como os cavalos dos emigrantes do Oeste, quando sómostram as orelhas eretas, enquanto seus corpos escondidos abrem caminho pelaassombrosa verdura.

Os longamente extensos vales virgens; o azul discreto das colinas; e, sobreestes, o silêncio e o sussurro insinuantes; você poderia jurar que crianças cansadasde brincar jazem dormindo nessas solidões, em algum alegre mês de maio,quando as flores dos bosques são colhidas. E tudo isso se mistura a seus modosmais místicos; de tal modo que fato e fantasia, a meio caminho reunidos, seinterpenetram e formam uma totalidade compacta.

Tais cenas reconfortantes, embora efêmeras, não deixaram de produzir umefeito, ainda que efêmero, sobre Ahab. Mas, se essas secretas chaves douradaspareciam liberar seus próprios tesouros dourados, sua voz sobre elas fez com queperdessem o brilho.

“Oh, clareiras verdejantes! Oh, intermináveis, sempiternas primaveras dessaspaisagens da alma; em vós, – embora já há muito esturricadas neste deserto

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mortal da vida terrestre, – em vós, os homens podem rolar como potros no trevorecente da manhã; e, por alguns instantes fugazes, sentir o orvalho fresco da vidaimortal por sobre eles. Quisera Deus que essas abençoadas calmarias durassem!No entanto, os fios misturados e enredados da vida são tecidos por textura etrama; calmarias atravessadas por tempestades, uma tempestade para cadacalmaria. Não há progresso sem retrocesso nessa vida; não avançamos segundoprogressões fixas, com uma pausa no fim: – através do encantamentoinconsciente da infância, da fé imprudente da meninice, da dúvida daadolescência (o destino comum), e então o ceticismo, a descrença, descansandoafinal no repouso meditativo do Se da madureza. Mas, mal percorridos,recomeçamos os caminhos; e somos crianças, meninos, homens, e eternos Ses.Onde fica o último porto, de onde não mais zarparemos? Em que éterarrebatador navega o mundo, de que os mais cansados jamais se cansarão? Ondese esconde o pai da criança enjeitada? Nossas almas são como aqueles órfãoscujas mães solteiras morrem ao trazê-los à vida: o segredo de nossa paternidadejaz em seus túmulos e ali devemos descobri-lo.”

E nesse mesmo dia também, do costado de seu bote, mergulhando os olhospelas profundezas do mesmo mar dourado, Starbuck murmurou:

“Encanto insondável, como amante nenhum encontrou nos olhos da jovemesposa! – Não me fales das fileiras de dentes dos teus tubarões, nem dos teushábitos de canibal raptor. Que a fé expulse o fato; que a imaginação expulse amemória; olho para as profundezas e acredito.”

E Stubb, como um peixe, de escamas cintilantes, pôs-se de pé nessa mesmaluz dourada:

“Eu sou Stubb, e Stubb tem sua história; mas aqui Stubb jura que foi semprealegre!”

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115 O PEQUOD ENCONTRA O SOLTEIRO

E muito animadas foram as cenas eas vozes que se aproximaram a barlavento, algumas poucas semanas depois de oarpão de Ahab ter sido soldado.

Era um navio de Nantucket, o Solteiro, que acabara de armazenar seu últimotonel de óleo e trancar as escotilhas abarrotadas; e agora, em belos trajes de festa,alegre, embora um tanto vangloriosamente, navegava por entre os naviosdistantes uns dos outros da região, antes de aproar à pátria.

Os três homens no topo de mastro usavam compridas flâmulas de uma estreitaestamenha vermelha em seus chapéus; à popa, um bote estava suspenso, decasco para cima; e balançando sob o gurupés cativa via-se a comprida mandíbulainferior da última baleia morta. Sinais, insígnias e bandeiras de todas as corestremulavam no cordame por todos os lados. Amarrados à lateral de cada um dostrês cestos da gávea estavam dois barris de espermacete; acima dos quais, nosvaus dos mastaréus correspondentes, você encontraria barricas menores domesmo líquido precioso; e, pregada à borla principal, uma lamparina de bronze.

Como depois soubemos, o Solteiro tivera o mais surpreendente êxito; tantomais maravilhoso quanto, cruzando as mesmas águas, outros navios nãohouvessem conseguido capturar um único peixe durante meses. Não apenasdispensara barris de carne e pão para dar lugar ao muito mais valiosoespermacete, como também fizera permutas para conseguir barricassuplementares dos navios que encontrara; estas ficaram empilhadas no convés enos camarotes particulares do capitão e dos oficiais. Mesmo a mesa do camarotese acabou em lenha; e as refeições no camarote foram servidas no grande tampode um tonel, preso ao assoalho à guisa de móvel de centro. No castelo de proa osmarinheiros haviam calafetado e pichado até suas arcas para enchê-las; dizia-setambém, em tom de brincadeira, que o cozinheiro pusera uma tampa em seumaior caldeirão para enchê-lo; que o camareiro vedara a cafeteira sobressalentepara enchê-la; que os arpoadores viraram a embocadura dos arpões para enchê-los; e que, na verdade, tudo estava cheio de espermacete, exceto os bolsos dascalças do capitão e os que ele reservara para enfiar as mãos, como complacentetestemunho de sua mais absoluta satisfação.

Quando esse alegre navio de boa sorte veio ao encontro do taciturno Pequod, oritmo bárbaro de imensos tambores chegava de seu castelo de proa; e,aproximando-se ainda mais, viu-se um grupo de homens de pé ao redor dos

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caldeirões do forno, cobertos dos pergaminhos de poke, a pele do estômago depeixe preto, que despendia altos gritos a cada batida dos punhos cerrados datripulação. No tombadilho superior, imediatos e arpoadores dançavam commoças de pele azeitonada que haviam fugido com eles das Ilhas Polinésias;enquanto, suspensos em botes enfeitados, firmemente amarrados no alto, entre omastro de proa e o mastro principal, três pretos de Long Island, com cintilantesarcos de violino de marfim de baleia, conduziam a giga hilária. Enquanto isso,outros membros da tripulação ocupavam-se tumultuosamente da alvenaria doforno, de onde os imensos caldeirões haviam sido retirados. Quase se poderiapensar que estavam demolindo a amaldiçoada Bastilha, tão selvagem era agritaria promovida, como se então estivessem lançando ao mar os tijolos e aargamassa imprestáveis.

Amo e senhor a dominar a cena, o capitão mantinha-se ereto no elevadotombadilho do navio, de modo que o alegre espetáculo se desenrolasse à suafrente e parecesse ter sido concebido tão-somente para a sua distração pessoal.

E Ahab, este também estava de pé em seu tombadilho, rústico e lúgubre, comuma obstinada melancolia; e quando os dois navios cruzaram as esteiras um dooutro – um, cheio de alegria pelas coisas passadas, o outro, todo cheio depressentimentos pelo que se sucederia – os dois capitães personificaram opungente contraste da cena.

“A bordo, a bordo!”, exclamou o alegre comandante do Solteiro, erguendo umcopo e uma garrafa no ar.

“Viste a Baleia Branca?”, rangeu Ahab em resposta.“Não, apenas ouvi falar dela; mas eu mesmo não acredito nela”, disse o outro

de bom humor. “A bordo!”“Estás alegre demais para o meu gosto. Segue teu rumo. Perdeste homens?”“Nada que valha a pena mencionar – dois ilhéus, foi tudo; – mas venha a

bordo, velho camarada, venha. Logo lhe tiro a tristeza do rosto. Venha, não quer?(o espetáculo é alegre); um navio cheio e a caminho de casa.”

“É extraordinário como são amigáveis os idiotas!”, murmurou Ahab; e em vozalta, “És um navio cheio e a caminho de casa, dizes; pois bem, já eu sou naviovazio e correndo de casa. Assim, segue teu caminho, eu sigo o meu. Avante, vós!Largai todo o pano e mantende-vos ao vento!”

E assim, enquanto um navio seguia alegre em ventos favoráveis, o outro lutavaobstinadamente contra ele; e assim as duas embarcações partiram; a tripulaçãodo Pequod contemplando com olhares sérios e demorados o Solteiro quedesaparecia; e os homens do Solteiro, porém, não desviando o olhar um instantesequer da alegre festa de que participavam. E enquanto Ahab, debruçado sobre as

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grades da popa, olhava para o navio de regresso à pátria, retirou do bolso umpequeno frasco de areia e, então, olhando do navio para o frasco, pareceu unirassim duas idéias distantes, visto que aquele frasco estava cheio de terra deNantucket.

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116 A BALEIAAGONIZANTE

Não raro nesta vida, quando, do lado certo, navegam perto denós os prediletos da sorte, nós, embora antes estivéssemos

desanimados, apanhamos algo dessa brisa súbita e com alegria sentimos nossasvelas enfunarem. O mesmo pareceu suceder com o Pequod. Pois, no dia seguinteao encontro com o festivo Solteiro, avistaram-se baleias e quatro delas forammortas; uma delas por Ahab.

Caía o fim da tarde; e quando todas as lanças do rubro combate se foram; eflutuando no maravilhoso crepúsculo de céu e mar, sol e baleia pereciampacificamente juntos; então, tal doçura e tal melancolia, tal voluta de oraçõeshavia, subindo pelo ar róseo espiraladas, que era como se de muito longe, dosverdejantes e castos vales profundos das ilhas de Manila, a brisa da terraEspanhola, vertida em insolente sopro náutico, tivesse ido ao mar, carregadadesses cânticos vesperais.

Mais uma vez calmo, mas apenas para chegar a uma melancolia maisprofunda, Ahab, que se afastara da baleia, assistia com atenção à sua agonia final,sentado em seu bote agora tranqüilo. Pois aquele estranho espetáculo que seobserva em todos os cachalotes agonizantes – o movimento da cabeça voltando-sena direção do sol e morrer assim –, aquele estranho espetáculo, contempladonum tão plácido entardecer, de certo modo proporcionava a Ahab ummaravilhamento até então desconhecido.

“Ele sempre se volta para aquela direção – quão lento, e no entanto firme, éseu semblante venerando e vocativo, na eminência de seus últimos e agonizantesmovimentos. Também ele adora o fogo; nobre vassalo do sol, imenso e varonil! –Oh, que esses tão benevolentes olhos ainda vejam esses tão benevolentesespetáculos. Vede! Aqui, preso por águas longínquas; muito além de todo o zunirde felicidade ou fracasso humano; nestes mares mais cândidos e imparciais; ondepara as tradições não há rochedos que forneçam placas; onde pelas longas erasChinesas os vagalhões rolam sem voz ou ouvidos, como estrelas que brilhamsobre a fonte desconhecida do Níger; aqui, também, a vida termina olhando comfé para o sol; mas, vede! Nem bem morreu, a morte faz virar o cadáver; e acabeça permanece apontada naquela direção –

“Oh, tu, escura metade Indiana da natureza, que de ossos afogados construísteteu trono separado em algum lugar no coração desses mares sem verdor! Tu ésuma descrente, rainha, e falas verdadeiramente comigo na enorme matança do

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Tufão e no silencioso funeral da calmaria. E esta tua baleia não virou sua cabeçaagonizante para o sol e depois para o outro lado sem me deixar uma lição.

“Oh, flanco de poder, três vezes soldado e cingido! Oh, ambicioso e matizadojato! – aquele se empenha, este jorra em vão! Em vão, ó, cachalote, buscas aintervenção do distante sol vivificante, que apenas faz surgir a vida, mas não arestitui. Porém, tu, metade mais escura, embalas-me com uma fé mais orgulhosa,embora mais sombria. Todas as tuas combinações sem nome flutuam aquidebaixo de mim; sou sustentado à superfície pela respiração das criaturas outroravivas, exaladas como ar, mas agora água.

“Saúdo-te então, saúdo-te para sempre, ó, mar, em cuja agitação eterna a aveselvagem encontra seu único repouso. Nascido na terra, mas nutrido pelo mar;embora colina e vale me tenham servido de mãe, vós, vagalhões, sois meusirmãos de criação!”

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117 A VIGÍLIADA BALEIA

As quatro baleias caçadas naquela tarde morreram em pontosdistantes; uma, bem longe, a barlavento; uma outra, menos

distante, a sotavento; uma outra, à proa; uma outra, à popa. As três últimas foramamarradas ao costado antes do cair da noite; no entanto, a que estava abarlavento não pôde ser alcançada antes da manhã; e o bote que a matou ficouao seu lado toda a noite; e aquele era o bote de Ahab.

O mastro de reconhecimento foi diretamente fincado no espiráculo da baleiamorta; e a lamparina, pendurada no topo, projetava uma luz agitada e trêmulasobre o negro dorso rutilante e, ao longe, sobre as ondas noturnas, que esvaeciamsuaves no enorme flanco da baleia, como se brandamente quebrassem na praia.

Ahab e toda a tripulação do bote pareciam dormir, salvo o Parse; que,agachado à proa, observava os tubarões que espectralmente rondavam a baleia,esbarrando nas leves tábuas de cedro com suas caudas. Um ruído, como osgemidos dos grupos de fantasmas condenados de Gomorra sobre o Asfaltita,atravessou o ar vibrando.

Despertado de seu cochilo, Ahab deu com o Parse, face a face, diante de si; e,cercados pela escuridão da noite, eles pareciam os últimos homens de um mundosubmerso. “Sonhei de novo”, disse ele.

“Com os carros fúnebres? Já não te disse, velho, que nem carro fúnebre, nemcaixão podem ser teus?”

“E quem, morrendo no mar, pode ser levado num carro fúnebre?”“Mas eu disse, velho, que, antes de poder morrer nesta viagem, dois carros

fúnebres haveriam de ser vistos por ti sobre o mar; o primeiro, jamais concebidopor mãos mortais; e a madeira visível do outro deve ter vindo da América.”

“Sim, sim! Uma cena estranha essa, Parse: – um carro fúnebre e suas plumasflutuando sobre o oceano com as ondas conduzindo o féretro. Ha! Tal espetáculonão veremos tão cedo!”

“Acreditando ou não, não podes morrer enquanto não o vires, velho.”“E o que dizia a teu respeito?”“Embora eu deva chegar ao fim, irei antes de ti, teu piloto.”“E quando tiveres ido antes de mim – se isso realmente acontecer –, então

antes de eu te seguir, tu ainda aparecerás para mim, para pilotar-me, não é? Poisbem, se eu acreditasse em tudo que dizes, ó, meu piloto! Tenho aqui duas

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garantias de que ainda hei-de matar Moby Dick e sobreviver-lhe.”“Eis outra garantia, velho”, disse o Parse, enquanto seus olhos brilhavam como

vaga-lumes na escuridão – “Apenas cânhamo pode te matar.”“A forca, queres dizer – Então sou imortal na terra e no mar”, gritou Ahab,

com um riso de escárnio; – “imortal na terra e no mar!”Os dois ficaram em silêncio de novo, como um só homem. Era chegada a

aurora cinzenta; e a tripulação sonolenta levantou-se do fundo do bote e, antes domeio-dia, a baleia morta foi levada ao navio.

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118 O QUADRANTE

A temporada de caça no Equador por fim se aproximou; etodos os dias, quando Ahab, saindo da cabine, lançava os olhos ao alto, otimoneiro vigilante manobrava o leme com alarde e os marujos ansiosos corriamdepressa aos braços das vergas e lá ficavam todos os olhos fixados no dobrãopregado; impacientes de receber a ordem de aproar para o Equador. Em boa horaa ordem foi dada. Era quase meio-dia; e Ahab, sentado na proa de seu botesuspenso, fazia a habitual observação diária do sol para determinar a latitude.

Ora, naquele mar Japonês, os dias de verão são como inundações de fulgor. Eaquele sol Japonês, sem pálpebras que lhe escondam o fulgor, parece mais o focoabrasador do imenso vidro incandescente do oceano translúcido. O céu parecelaqueado; nuvens, não há; o horizonte flutua; e a nudez dessa radiação a pino écomo o esplendor intolerável do trono de Deus. Bom que o quadrante de Ahabestivesse guarnecido com vidros coloridos, através dos quais se podia observar ofogo solar. Assim, sentado, balançando seu corpo ao ritmo do navio, e com seuinstrumento de astrólogo diante do olho, ele permaneceu nessa posição poralguns instantes para ver o exato momento em que o sol atingisse o meridiano.Nesse meio-tempo, enquanto nada mais o podia ocupar, o Parse se ajoelhavaabaixo dele no convés do navio e, com o rosto também voltado para o alto,olhava com ele para o mesmo sol; apenas as pálpebras ocultavam um pouco osorbes, e seu rosto selvagem se reduzia a uma apatia terrestre. Afinal, fez-se aobservação desejada; e com o lápis na perna de marfim Ahab logo calculou qualseria a latitude naquele preciso instante. Depois, abandonando-se a um devaneiomomentâneo, olhou para o sol no alto e murmurou para si mesmo: “Tu, balizado mar! Tu, alto e poderoso Piloto! Dizes-me verdadeiramente onde estou – masnão podes sequer lançar-me um sinal de onde estarei? Ou poderás dizer-me ondevive uma outra coisa além de mim neste momento? Onde está Moby Dick? Nestemomento deves estar a vê-lo. Estes meus olhos contemplam agora os mesmosolhos que neste momento o vêem; sim, e os olhos que agora tambémcontemplam os objetos do lado desconhecido, do outro lado de ti, ó, sol!”.

Atentando então a seu quadrante e manejando, um após o outro, seusnumerosos e cabalísticos dispositivos, pensou mais uma vez e murmurou:“Brinquedo estúpido! Joguete infantil de insolentes Almirantes, Comodoros eCapitães; o mundo vangloria-se de ti, de tua astúcia e poder; mas, afinal, o quesabes fazer, além de informar o pobre e miserável ponto em que por acaso te

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encontras neste vasto planeta e a mão que te segura: não! Nada além disso! Nãopodes dizer onde uma gota de água ou um grão de areia estarão amanhã ao meio-dia: e, no entanto, com tua impotência insultas o sol! Ciência! Maldito sejas, tu,brinquedo inútil; e malditas sejam todas as coisas que fazem levantar os olhosdos homens para aquele céu cujo fulgor incandescente apenas o fere, como agoraestes velhos olhos são feridos por tua luz, ó, sol! Nivelados pela natureza aohorizonte da terra, são esses os vislumbres dos olhos humanos; nunca saídos dotopo de sua cabeça, como se Deus quisesse que olhassem para o firmamento.Maldito sejas tu, quadrante!”, atirando-o ao convés, “não mais orientarei meucaminho terreno por ti; a simples bússola do navio e o simples cálculo de posiçãocom a barquilha e a linha; estes hão de me conduzir e mostrar minha posição nomar. Assim”, descendo do bote para o convés, “assim piso em ti, ó, coisainsignificante que fragilmente apontas para as alturas; assim te quebro edestruo!”.

Enquanto o velho frenético assim falava e assim esmagava com o pé vivo ecom o morto, um sorriso de triunfo, que parecia endereçado a Ahab, e umdesespero fatalista, que parecia endereçado a si mesmo – ambos passaram pelorosto mudo e imóvel do Parse. Sem ser visto, este se levantou e se afastou;enquanto, apavorados pelo aspecto de seu comandante, os homens do navioreuniram-se no castelo de proa até o momento em que Ahab, percorrendoagitado o convés, gritou – “Aos braços! Ao leme! – Cruzar as vergas!”.

Num instante as vergas giraram; e, enquanto o navio dava meia-volta sobre simesmo, seus três elegantes e sólidos mastros, equilibrados verticalmente sobreseu casco comprido cheio de costelas, pareciam os três Horácios fazendo piruetasem um único cavalo.

De pé entre os fidalgos, Starbuck observava os modos agitados do Pequod etambém de Ahab, enquanto cambaleava pelo convés.

“Sentei-me diante do fogo denso do carvão e vi-o todo incandescente, cheio desua atormentada e ardente vida; e vi-o diminuir por fim, mais e mais, até sereduzir ao mais silencioso pó. Velho oceânico! De toda esta tua vida irascível, oque sobrará de ti além de um punhado de cinzas?”

“Sim”, gritou Stubb, “mas cinzas de carvão marinho – preste bem atenção,senhor Starbuck –, carvão marinho, não do teu carvão comum. Ora, então! OuviAhab murmurar: ‘Há alguém que joga estas cartas nestas minhas velhas mãos; ejura que devo jogar com elas e não com outras’. E raios me partam, Ahab, mas tuages de modo correto; que vivas no jogo e que nele morras!”

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119 OS CÍRIOS

Os climas mais quentes alimentam as garras mais cruéis: o tigrede Bengala atocaia-se nos bosques perfumados de verdor eterno. Os maisesplendorosos céus abrigam os trovões mais fatais: a deslumbrante Cuba conhecetornados que nunca varreram as tranqüilas terras do norte. Assim também, nestesfúlgidos mares Japoneses, o marujo encontra a mais calamitosa de todas astormentas: o Tufão. Às vezes rebenta de um céu sem nuvens, como uma bombaexplodindo sobre uma cidade atordoada e sonolenta.

Próximo do anoitecer daquele dia, o Pequod foi lacerado em suas velas, e demastros nus foi deixado a lutar contra um Tufão que o atacara diretamente pelaproa. Quando veio a escuridão, céu e mar rugiram, e explodiram com os trovõese resplandeceram com os raios, que mostravam, avariados, os mastros agitados deum lado para outro com os farrapos que a primeira fúria da tempestade deixarapara diversão posterior.

Agarrado a um brandal, Starbuck estava de pé no tombadilho; olhando paracima a cada clarão dos relâmpagos, para ver que outro desastre poderia teratingido as intricadas peças do lugar; enquanto isso, Stubb e Flask davam ordensaos homens da tripulação para içar mais alto os botes e amarrá-los com maisfirmeza. Mas qualquer esforço parecia vão. Embora erguido até o topo dosguindastes, o bote a barlavento (o de Ahab) não escapou. Um enorme vagalhãoencrespado, precipitando-se contra a parte superior do costado do navio quebalançava, arrombou o fundo do bote na popa, deixando-o em seguida a gotejarcomo uma peneira.

“Péssimo trabalho! Péssimo trabalho, senhor Starbuck”, disse Stubb, avaliandoos destroços, “mas o mar agirá a seu modo. Stubb, sozinho, não pode combatê-lo.Veja você, senhor Starbuck, que uma onda toma um grande impulso antes desaltar, primeiro dá uma volta ao mundo, e só então se levanta! Quanto a mim,para tomar impulso para enfrentá-la não tenho mais do que a extensão do convésaqui. Mas isso não importa; é tudo brincadeira: assim diz a velha canção; –”[canta.]

É alegre o vendavalE a baleia, um jogral,Faz a cauda balançar.Que sujeito divertido, engraçado e gozador, rabugento, feiticeiro e brincalhão

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é o Mar!

As nuvens voando,São um flip espumando,Com aromas temperando.Que sujeito divertido, engraçado e gozador, rabugento, feiticeiro e brincalhãoé o Mar!

Trovões, navios naufragam,Enquanto seus lábios estalamProvando mais um trago.Que sujeito divertido, engraçado e gozador, rabugento, feiticeiro e brincalhãoé o Mar!

“Basta, Stubb!”, gritou Starbuck, “deixa o Tufão cantar e tocar a harpa aqui emnosso cordame; mas, se tu és um homem valente, cala-te.”

“Mas não sou um homem valente; nunca disse que era um homem valente;sou um covarde e canto para criar coragem. E digo-lhe mais, senhor Starbuck,não há outro jeito no mundo de parar a minha cantoria, senão cortando a minhagarganta. E, quando isso for feito, dou dez contra um que lhe cantarei adoxologia para concluir.”

“Louco! Olha com meus olhos se não tens os teus próprios.”“O quê? Como você pode ver melhor numa noite escura do que qualquer

outro, por mais tolo que seja?”“Aqui!”, gritou Starbuck, agarrando Stubb pelo ombro e apontado o dedo na

direção da popa a barlavento, “não percebes que o vendaval vem do leste, damesma direção que Ahab deve seguir para alcançar Moby Dick? A mesma direçãoque tomou hoje ao meio-dia? Agora atenta a este bote aqui; onde está o rombo?Na popa, marinheiro; onde ele costuma ficar – seu ponto de apoio é o rombo,marinheiro! Agora pula ao mar e canta à vontade, se for necessário!”.

“Não compreendo nem a metade do que você diz: o que há com o vento?”“Sim, sim, dobrar o cabo da Boa Esperança é o caminho mais curto para

Nantucket”, falou Starbuck subitamente para si, desatento à pergunta de Stubb.“O vendaval que agora nos esmaga e nos destroça, nós podemos vertê-lo em ventofavorável, que nos conduza para casa. Lá longe, a barlavento, tudo são trevas edestruição; mas a sotavento, na direção de casa – vejo que tudo se ilumina; e nãopor causa do relâmpago.”

Naquele momento, num dos intervalos da escuridão absoluta, na seqüência

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dos clarões, ouviu-se uma voz ao seu lado; e quase no mesmo instante uma salvade estrondos de trovões ribombou no alto.

“Quem está aí?”“O Velho Trovão!”, disse Ahab, tateando ao longo da amurada na direção de

seu buraco de sustentação; e, por fim, encontrando seu caminho traçado porangulosas lanças de fogo.

Ora, como o pára-raios na costa serve para conduzir o fluido perigoso para osolo; assim, a haste semelhante que no mar alguns navios trazem em cada mastroserve para que seja conduzido à água. Mas como esse condutor tem que descer aconsiderável profundidade, de modo que sua extremidade não tenha nenhumcontato com o casco; e como, não obstante, ali ficando a reboque constante,estaria sujeito a muitos acidentes, senão interferindo bastante no cordame eatrapalhando a marcha do navio na água; por causa disso tudo, as partesinferiores dos pára-raios dos navios não ficam sempre no mar; geralmenteconsistindo, portanto, em compridos e leves liames, que possam ser lançados omais prontamente possível junto às correntes exteriores, ou jogados ao mar,conforme exigido pela ocasião.

“Os pára-raios! Os pára-raios!”, gritou Starbuck à tripulação, chamado de súbitoà vigilância por um relâmpago acachapante que acabara de arremessar seusarchotes para iluminar o passo de Ahab até seu posto. “Estão no mar? Descei-osentão, de popa à proa. Rápido!”

“Basta!”, gritou Ahab; “vamos jogar limpo aqui, embora sejamos os maisfracos. Ainda ajudarei a erguer pára-raios no Himalaia e nos Andes, para que omundo todo fique seguro; mas nada de privilégios! Deixa-os onde estão, senhor.”

“Olha para cima!”, gritou Starbuck. “Fogos-de-santelmo! Fogos-de-santelmo!”As vergas traziam um fogo pálido nas pontas; e, mechados em cada um dos

extremos tripartidos dos pára-raios por três tênues chamas brancas, cada um dostrês mastros altivos ardia silenciosamente naquele ar sulfuroso, como três círiosimensos aos pés do altar.

“O bote que se espatife! Deixem que se acabe!”, gritou Stubb naquele instante,quando o mar aos estouros se ergueu sob a pequena embarcação, de tal modoque a amurada lhe esmagou a mão, enquanto passava as amarras. “Maldito!” –mas, deslizando para trás no convés, seus olhos erguidos perceberam as chamas;e, imediatamente mudando de tom, exclamou – “Que os fogos-de-santelmotenham piedade de nós!”

Para os marinheiros, as juras são palavras familiares; praguejarão tanto no augeda calmaria como nas garras da tempestade; e imprecarão maldições de cima doslaises da vela da gávea, quando mal se sustentam sobre o mar irado; no entanto,

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em todas as minhas viagens, raras vezes ouvi uma simples praga enquanto o dedoardente de Deus repousasse sobre o navio; enquanto o Seu Mene, Mene, Tequel,Upharsim{a} aparecesse enfiado entre os brandais e o cordame.

Enquanto aquele palor ardia ao alto, poucas palavras se ouviram da tripulaçãoenfeitiçada; que em um único e compacto grupo permanecia no castelo de proa,todos os olhos acesos diante da lívida fosforescência, tal qual uma longínquaconstelação de estrelas. Destacado diante da luz fantasmagórica, o gigantesconegro betuminoso, Daggoo, assomava três vezes maior do que sua real estatura, eparecia ser a nuvem retinta de onde descera o trovão. A boca entreaberta deTashtego revelava seus dentes brancos de tubarão, que estranhamente luziamcomo se também tivessem sido acesos pelos fogos-de-santelmo; enquanto,iluminadas pela luz sobrenatural, as tatuagens de Queequeg queimavam comoSatânicas labaredas azuis por seu corpo.

O quadro inteiro esvaeceu, por fim, contra o clarão das alturas; e mais umavez o Pequod e todas as criaturas do convés viram-se cingidos por um sudário.Um ou dois instantes se passaram, quando Starbuck, adiantando-se, esbarrou emalguém. Era Stubb. “Que pensas agora, marinheiro? Ouvi o teu clamor, não era omesmo da canção.”

“Não, não era; pedi aos fogos-de-santelmo que tivessem piedade de nós; eespero que ainda tenham. Mas só terão piedade de rostos sérios? – não sentirãomisericórdia de uma risada? Veja, senhor Starbuck – mas está muito escuro paraver. Escute-me, então: entendo aquela chama que vimos no topo de mastro comoum sinal de boa sorte; pois esses mastros estão enraizados num porão que vaiestar com espermacete saindo pelo ladrão; e então todo esse óleo vai subir pelosmastros, como a seiva na árvore, entendeu? Sim, os nossos três mastros aindaserão três velas de espermacete – essa é a boa promessa que vimos.”

Naquele momento Starbuck se deu conta de que o rosto de Stubb começavalentamente a reluzir. Olhando para o alto, gritou: “Olha! Olha!”, e mais uma vezforam vistas as altas chamas mechadas como que duas vezes mais sobrenaturaisem seu palor.

“Que os fogos-de-santelmo tenham piedade de nós!”, gritou Stubb, mais umavez.

Na base do mastro principal, bem abaixo do dobrão e da labareda, o Parsepermanecia de joelhos à frente de Ahab, mas com sua cabeça inclinada para aoutra direção; enquanto ali perto, no cordame arqueado e oscilante, ondeacabava de prender uma verga, um grupo de marinheiros, arrebatado peloclarão, se mantinha unido, porém pendurado como um bando de vespasentorpecidas num galho que envergasse no pomar. Em várias posiçõesenfeitiçadas, em pé, andando, ou correndo como os esqueletos de Herculano, os

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outros enraizaram-se no convés; mas todos com os olhos para o alto.“Sim, sim, marinheiros!”, exclamou Ahab. “Olhai bem; observai bem: a chama

branca ilumina o caminho para a Baleia Branca! Dai-me os liames do mastroprincipal; muito me agradaria sentir este pulso e deixar o meu bater contra ele;sangue contra fogo! Assim!”

Virando-se, então – com o último liame firmemente preso à mão esquerda,colocou seu pé sobre o Parse; e, com o olhar fixo para cima e o braço direito bemlevantado, deteve-se ereto diante da soberba trindade de chamas tripartidas.

“Ó, tu, espírito translúcido de fogo translúcido, que outrora nestes mares,como um Persa, adorei, até que no ato sacramental fui por ti tão queimado, queainda hoje guardo a cicatriz; agora te conheço, tu, espírito translúcido, e agorasei que teu culto é desafiar-te. Amor e veneração não te fazem benevolente; emesmo pelo ódio tu sabes apenas matar; e tudo destróis. Não é um tolodestemido que ora te enfrenta. Reconheço o teu poder sem lugar ou palavra; masaté o derradeiro alento desta minha vida de terremotos contestarei tuadominação incondicional e absoluta sobre mim. Em meio a essa personificaçãodo impessoal, há uma personalidade aqui. Embora eu seja, no máximo, somenteum pormenor; de onde quer que eu tenha vindo; para onde quer que eu vá;enquanto viver neste mundo, a personalidade régia vive dentro de mim e temconsciência de seus régios direitos. Mas guerra é dor, e o ódio, infelicidade. Vemna tua mais baixa forma de amor e eu estarei de joelhos para beijar-te; mas emtua mais suprema, vem como simples força divina; e embora lances esquadras demundos carregados, há qualquer coisa aqui dentro que permanece indiferente. Ó,tu, espírito translúcido, do teu fogo me fizeste, e como um verdadeiro filho dofogo eu o exalo de volta a ti.”

[Clarões de relâmpagos súbitos e repetidos; as nove chamas alongam-se,triplicando sua altura; Ahab, com os demais, fecha os olhos, a mão direitapressionando-os com força.]

“Reconheço o teu poder sem lugar ou palavra, não o disse? Isso não me foiimposto; não solto esses liames. Podes cegar; mas posso tatear. Podes consumir;mas então serei cinzas. Aceita a homenagem destes pobres olhos e destas mãos,que os fecham. Eu não aceitaria. O relâmpago acende em meu crânio; meusolhos doem e doem; todo o meu cérebro exausto parece decapitado, a rolar emalgum solo atordoante. Oh, oh! Apesar de cego, falarei contigo. Ainda que sejasluz, saltas das trevas; mas eu sou escuridão que salta da luz, salta de ti! Os dardoscessam; olhos abertos; vês ou não vês? Ali ardem as chamas! Ó, tu, magnânimo!Dou-me agora à glória de minha genealogia. Mas és apenas o meu pai ardente; aminha doce mãe, eu não conheço. Ah, cruel! Que fizeste com ela? Eis o meuenigma; mas o teu é maior. Não sabes como nasceste, e por isso dizes que não és

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gerado; certamente não conheces teu princípio, e por isso dizes que não tenscomeço. Eu conheço de mim o que não conheces de ti. ó, tu, onipotente. Há algoque não se propaga para além de ti, espírito translúcido, algo para o que toda atua eternidade é apenas tempo, e toda a tua criatividade mera mecânica. Atravésde ti, de teu ser flamejante, meus olhos crestados vagamente o percebem. Ó, tu,fogo enjeitado, ermitão imemorável, também tens teu enigma incomunicável,tua dor não partilhada. Mais uma vez, com insolente agonia, decifro o meu pai.Pula! Pula e lambe o céu! Pulo contigo; queimo contigo; queria fundir-me a ti:desafiando-te, eu te adoro!”

“O bote! O bote!”, gritou Starbuck, “olha o teu bote, velho!”O arpão de Ahab, o que fora forjado no fogo de Perth, permanecia firmemente

atado à conspícua forquilha, de modo que se projetava além da proa do bote;mas o mar que danificara o seu fundo também lhe arrancara a bainha de couroque estava solta; e da farpa de aço afiada surgia então a chama baixa de umpálido fogo bifurcado. Enquanto o arpão silencioso queimava ali como a línguade uma serpente, Starbuck agarrou Ahab pelo braço – “Deus, Deus está contra ti,velho; desiste! É uma viagem desgraçada! Desgraçada em seu início, desgraçadaem seu andor; deixa-me prender as vergas enquanto há tempo, velho, e usar ovento favorável para voltarmos para casa, para fazer uma viagem melhor queessa”.

Ouvindo Starbuck, a tripulação tomada de pânico correu imediatamente paraos braços das vergas – embora não restasse nenhuma vela ao alto. Naquelemomento todos os pensamentos do imediato aterrorizado pareciam ser deles;lançou-se um grito de motim. Mas, atirando os liames crepitantes do pára-raios noconvés e agarrando o arpão candente, Ahab brandiu-o como uma tocha no meiodos homens; jurando trespassar o primeiro marinheiro que soltasse uma ponta decorda. Petrificados por seu aspecto e ainda mais encolhidos devido ao dardocausticante que ele segurava, os homens recuaram amedrontados, e Ahab faloude novo:

“Todos os vossos juramentos de dar caça à Baleia Branca são tão fortementefirmados quanto o meu; e o coração, a alma, o corpo, os pulmões e a vida dovelho Ahab estão comprometidos. E, para que conheçais a afinação da batidadeste coração; vede aqui: assim apago o último medo!” E com um só soproapagou a chama.

Tal como quando um furacão varre a planície e os homens fogem para avizinhança de algum olmo solitário e gigantesco, cuja altura e força apenas otornam tão mais inseguro, uma vez que é um alvo para os raios; do mesmomodo, ditas as últimas palavras de Ahab, vários marinheiros dele correram emterror e desalento.

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{a} Daniel, 5:25. [N. T.]

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120 O CONVÉS AO FINAL DA PRIMEIRA VIGÍLIA NOTURNA

[Ahab de pé, junto ao leme. Starbuck aproxima-se dele.]“Temos de arriar a verga do mastro grande, senhor. A braçadeira está solta e o

amantilho de sotavento está quase rompido. Devo abaixá-la, senhor?”“Não abaixe nada; amarre-a. Se tivesse mastaréus de sobrejoanete para os

cutelos, eu os mandaria subi-los.”“Senhor! – pelo amor de Deus! – senhor?”“Sim.”“As âncoras estão unhadas, senhor. Devo trazê-las a bordo?”“Não abaixe nada, não mexa em nada – apenas amarre tudo. O vento se

apresenta, mas ainda não chegou ao meu altiplano. Rápido, cuide disso – Pelosmastros e quilhas! Ele me toma por um mestre corcunda de uma barca qualquerda pesca costeira. Abaixar a verga da gávea do meu mastro grande! Oh, carola! Asborlas mais altas são feitas para os ventos mais violentos, e essa borla do meucérebro agora navega no meio dessa rajada de vento. Devo arriar isso? Oh, apenascovardes abaixam as borlas de seus cérebros na hora da tempestade. Quantoalarde lá em cima! Eu a consideraria sublime, se não soubesse que a cólica é umadoença barulhenta. Oh, tomai remédio, tomai remédio!”

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121 MEIA-NOITE – A AMURADA DO CASTELO DE PROA

[Stubb e Flask montados sobre a amurada, passando amarras suplementaresnas âncoras ali penduradas.]

“Não, Stubb; bata o quanto quiser nesse nó, mas você nunca vai conseguir enfiarna minha cabeça o que acabou de dizer. E quanto tempo se passou desde quevocê disse exatamente o contrário? Não disse certa vez que todo navio no qualAhab navegue deveria pagar um extra na apólice de seguro, tal como se estivessecarregado de barris de pólvora na popa e caixas de fósforos luciféricos na proa?Pare, agora: você não disse isso?”

“Pois bem, e se tivesse dito? E daí? Mudei grande parte do meu corpo desdeentão; por que não mudaria de idéia? Além disso, caso estejamos carregados combarris de pólvora na popa e fósforos na proa, com que diabos iriam os fósforospegar fogo com toda essa surriada alagando aqui? Sim, meu homenzinho, vocêtem os cabelos bem vermelhos, mas não poderia pegar fogo agora. Dê umasacudida; você é Aquário, Flask, carregador de água; bem podia encher jarroscom a gola do seu casaco. Não vê, pois, que por esses riscos extras as companhiasde Seguro Marítimo têm garantias extras? Aqui há hidrantes, Flask. Mas escute,que vou responder mais uma coisa. Antes tire a perna de cima do cepo da âncoraaqui para que eu possa passar o cabo; e agora escute. Qual é a grande diferençaentre segurar o pára-raios de um mastro na tempestade e ficar perto de ummastro que não tem nenhum pára-raios numa tempestade? Não vê, seuignorante, que nenhum dano pode suceder ao que segura o pára-raios se o mastronão for atingido antes? Do que você está falando, então? Não chega a haver umnavio em cem que leve pára-raios, e Ahab – sim, marinheiro, e todos nós –, agente não está em perigo maior, na minha simples opinião, do que todas astripulações dos dez mil navios que agora estão navegando nos mares. Ora, King-Post, você gostaria que todos os homens do mundo andassem com um pequenopára-raios na ponta do chapéu, como a pena espetada de um oficial de milícia, eo fio arrastando-se como um talabarte? Por que você não pondera, Flask? É fácilser ponderado; por que você não tenta, então? Qualquer homem que tenhaapenas a metade de um olho pode ser ponderado.”

“Não sei, Stubb. Às vezes é bem difícil.”“Sim, quando um sujeito está ensopado, fica difícil ser ponderado, isso é um

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fato. E estou encharcado com essa surriada. Não importa; pegue a volta e passe-a.Parece-me que estamos amarrando estas âncoras agora como se nunca maisfossem ser usadas. Atar estas duas âncoras aqui, Flask, é como atar as mãos de umhomem pelas costas. E que grandes mãos generosas são estas, de fato. São os seuspunhos de aço, hein? Que capacidade de segurar eles têm! Pergunto-me, Flask, seo mundo está ancorado em algum lugar; se estiver, ele balança com um caboexcepcionalmente grande. Isso, martele esse nó de uma vez e terminamos. Assim;depois de pisar em terra, descer ao convés é a melhor coisa que existe. Vocêpoderia torcer as abas da minha jaqueta? Muito obrigado. Ridicularizam as capascompridas, Flask; mas, na minha opinião, sempre devemos usar capas comcaudas compridas nas tormentas de alto-mar. As caudas que se afilam desse modoservem para drenar a água, vê? O mesmo se dá com os tricórnios; os bicosformam calhas no beiral da empena, Flask. Não quero mais jaquetas demarinheiro e oleados; queria usar um fraque e vestir uma pele de castor, assim.Lá vai! Uau! Lá se vai o meu oleado ao mar; Senhor, Senhor, como os ventos quevêm do céu podem ser tão mal-educados! É uma noite péssima, rapaz.”

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122 MEIA-NOITE NO ALTO – TROVÕES E RELÂMPAGOS

[A verga da gávea no mastro grande. – Tashtego passa novas amarras em suavolta.] “Hum, hum, hum. Parem o trovão! Trovões demais aqui em cima. Para queservem os trovões? Hum, hum, hum. Não queremos trovões; queremos rum; dê-nos um copo de rum. Hum, hum, hum!”

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123 O MOSQUETE

Durante os impactos mais violentos do Tufão, o homem àcana da mandíbula que formava o leme do Pequod havia sido várias vezesarremessado ao convés aos rodopios por seus movimentos espasmódicos, apesardas talhas preventivas acopladas a ele – e que, no entanto, estavam folgadas –,pois deixar um certo jogo ao leme é indispensável.

Num vendaval implacável como aquele, quando o navio é apenas uma petecaem meio às rajadas, não é raro ver as agulhas das bússolas, às vezes, girando semparar. Assim sucedeu no Pequod; em quase todos os impactos não passoudespercebida ao timoneiro a velocidade vertiginosa com a qual elas giravam nasrosas-dos-ventos; é uma cena a que dificilmente alguém pode assistir sem algumtipo de emoção inusitada.

Algumas horas depois da meia-noite, o Tufão amainara o suficiente para que,com os esforços enérgicos de Starbuck e Stubb – um à frente e o outro à popa –,os vestígios destroçados da bujarrona e das velas do mastro de proa e do traquetefossem cortados das vergas à matroca e ficassem rodopiando a sotavento, como aspenas de um albatroz que às vezes se soltam ao vento quando esse pássaro,lançado à tempestade, passa voando.

As três novas velas correspondentes foram então envergadas e rizadas, e umavela feita de capas para tempestade foi estendida à ré; de modo que o navio logoatravessou as águas mais uma vez com alguma precisão; e a rota – naquelemomento, leste-sudeste –, que, se possível, devia governar a proa, foi mais umavez informada ao timoneiro. Pois, durante a violência da borrasca, ele pilotaraapenas ao sabor da intempérie. No entanto, uma vez que agora ele conduzia onavio tanto mais próximo de sua rota, nesse meio-tempo observando a bússola,oh!, que bom sinal!, o vento pareceu voltar-se à popa; sim, o vento contrário fez-se favorável!

No mesmo instante as vergas foram presas, ao som da alegre canção Oh! Ovento bom! oh-hey-yo, alegria, marinheiros!, que a tripulação cantava feliz, poisum tal acontecimento, tão promissor, logo anularia os maus augúrios que ohaviam precedido.

Em obediência à ordem permanente do comandante – de reportarimediatamente, e a qualquer das vinte e quatro horas do dia, qualquer mudançadecisiva nos assuntos do convés –, Starbuck não mareara com as vergas à brisa –embora relutante e lôbrego – mas, mecanicamente, descera para notificar o

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Capitão Ahab do fato.Antes de bater à porta do aposento parou sem querer diante dela por um

momento. A lamparina da cabine – pendulando longamente numa e noutradireção – intermitente ardia e deitava sombras intermitentes sobre a portatrancada do velho, – uma porta fina com venezianas fixas em lugar de telassuperiores. O isolamento subterrâneo da cabine fazia com que uma espécie desilêncio com zunido ali reinasse, embora cingida por todo o rugir dos elementos.Os mosquetes carregados no cabide de armas revelavam-se em seu lustro,erguidos contra o anteparo dianteiro. Starbuck era um homem honesto e correto;mas, em seu coração, no instante em que viu os mosquetes, elaborou-seestranhamente um pensamento molesto; mas tão mesclado a neutras e boasintenções que, naquele instante, ele mal reconheceu por si mesmo.

“Ele teria atirado em mim naquela ocasião”, murmurou, “sim, este é o mesmomosquete que ele apontou para mim; – esse com a coronha cravejada; deixa-metocá-lo – erguê-lo. Estranho que eu, que manejei tantas lanças mortais, estranhoque trema tanto agora. Carregado? Vamos ver. Sim, sim; pólvora na caçoleta; –isso não é bom. Melhor descarregar? – Espera. Quero curar-me disso. Segurarei,corajoso, este mosquete enquanto penso. – Vim para informá-lo sobre o ventofavorável. Mas quão favorável? Favorável à morte e à destruição – isso é favorávelpara Moby Dick. É um vento favorável que somente é favorável para aquela coisa– somente para aquele peixe maldito. – Apontou-me este mesmo cano! – este aqui– que agora tenho em mãos; ele teria me matado com essa mesma coisa queagora tenho em mãos. – Sim, e estaria disposto a matar toda a tripulação. Nãodisse ele que jamais arriaria as vergas a uma tempestade? Não destroçou seuquadrante celeste? E não tateia em busca do caminho nesses mesmos maresperigosos baseando-se nos cálculos obsoletos de uma barquilha obtusa? E,durante o Tufão, não jurou que não queria pára-raios? Mas esse velho insensatoseria capaz de arrastar tranqüilamente à destruição toda a tripulação do naviojunto com ele? – Sim, isso faria dele o assassino premeditado de trinta ou maishomens, se este navio sofrer algum dano fatal; e um dano fatal, isso a minhaalma jura que este navio sofrerá, caso Ahab faça o que pretende. Então, se elefosse nesse momento posto de lado, tal crime não seria seu. Ah! Está balbuciandoenquanto dorme? Sim, ali – lá dentro, ele dorme. Dorme? Sim, mas ainda vivo elogo mais acordado de novo. Não posso resistir a ti, velho. Nem à razão; nem aosprotestos; nem às súplicas tu dás ouvidos; desprezas tudo. Obediência cega àstuas ordens cegas, é tudo o que dizes. Sim, e dizes que os homens juraram teujuramento; dizes que nós todos somos Ahabs. Deus me livre! – Mas não haveráoutro meio? Um meio lícito? – Fazê-lo prisioneiro para levá-lo para casa? O quê!Ter esperança de arrancar o vigoroso poder desse velho de suas próprias mãos

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vigorosas? Só um louco se atreveria. Supondo que estivesse atado; todo amarradocom cabos e cordas; acorrentado e preso a argolas no chão desta cabine; ele seriamais abominável do que um tigre enjaulado. Eu não suportaria tal cena; nãopoderia fugir aos seus gritos; toda a tranqüilidade, o próprio sono e a inestimávelrazão me abandonariam na longa e intolerável viagem. Que resta, pois? A terraestá a centenas de léguas e o inacessível Japão é a terra mais próxima. Estou só,aqui, em pleno mar, com dois oceanos e um continente inteiro entre mim e a lei.– Sim, sim, é bem isso. – Será o céu um assassino quando um raio seu fulminaum provável assassino no leito, reduzindo ao mesmo tempo lençóis e pele acinzas? Seria eu um assassino, então, se” – e devagar, furtivamente, olhando paraos lados, encostou à porta o cano do mosquete carregado.

“Nesta altura, a rede de Ahab balança lá dentro; sua cabeça está desse lado.Um toque e Starbuck talvez sobreviva para abraçar a esposa e o filho novamente– Ah, Mary! Mary! – Filho! Filho! Filho! –, mas se te desperto, e não para a morte,velho, quem poderá dizer em que insondáveis profundezas afundará o corpo deStarbuck em menos de uma semana junto com toda a tripulação! Grande Deus,onde estás? Devo? – Devo? – O vento acalmou e mudou de direção, senhor; asgáveas do mastro de proa e do mastro grande estão rizadas e postas; estamos narota.”

“Tudo à ré! Oh, Moby Dick, finalmente vou agarrar teu coração!”Estes eram os sons que roncavam com violência do sono atormentado do

velho, como se a voz de Starbuck houvesse posto o longo sono mudo para falar.O mosquete ainda erguido tremia como o braço de um bêbado contra a tela

da porta; Starbuck parecia lutar com um anjo; mas, afastando-se da porta,devolveu o cano da morte no cabide de armas e saiu.

“Ele dorme profundamente, senhor Stubb; vai lá embaixo acordá-lo e conta aele. Eu devo cuidar do convés. Tu sabes o que dizer.”

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124 A AGULHA

Na manhã seguinte, o mar ainda não apaziguado rolava emondas longas e vagarosas, de um volume enorme, e empenhadas em meio aosborbotões do rastro do Pequod empurravam-no adiante como as mãosespalmadas de um gigante. A brisa forte e galharda era tão abundante que céu ear se afiguravam imensas velas enfunadas; o mundo inteiro avançava ao vento.Encoberto em plena luz matinal, o sol invisível só se reconhecia pela intensidadeirradiada de seu posto; de onde seus raios de baioneta partiam às medas.Adornos, como os dos reis e rainhas coroados da Babilônia, reinavam sobre tudo.O mar era como uma copela de ouro fundido, que, jorrando, salta com luz ecalor.

Longamente impondo-se um silêncio encantado, Ahab permaneceu a distância;e sempre que o gurupés do navio, que jogava da popa à proa, afundava, ele sevirava para olhar os raios brilhantes do sol que surgiam à frente; e, quando onavio mergulhava pela popa, virava-se para trás para ver o lugar do sol àretaguarda e como os mesmos raios amarelos se fundiam com o rastroincontornável.

“Ha, ha, meu navio! Tu bem poderias ser tomado pela carruagem marítima dosol. Ho, ho! Vós, nações perante minha proa, eu vos trago o sol! Aparelhai-vossempre mais, ondas distantes! Olá! Um tandem, eu dirijo o mar!”

Mas de repente, freado por um pensamento contrário, correu em direção aoleme, exigindo roucamente saber qual era a direção do navio.

“Lés-sudeste, senhor”, disse o timoneiro assustado.“Mentes!”, acertando-lhe com o punho cerrado. “Rumo leste a essa hora da

manhã com o sol à ré?”Diante disso, todos os marinheiros ficaram confusos; pois o fenômeno então

observado por Ahab escapara inexplicavelmente a todos; mas a própria evidênciaincompreensível deve ter sido a causa.

Avançando com a cabeça a meio palmo da bitácula, Ahab deu uma olhada nasbússolas; seu braço levantado tombou devagar; por um instante, pareceu a pontode cambalear. De pé atrás dele, Starbuck olhou e, oh!, as duas bússolas indicavamleste e era certo que o Pequod estava navegando para oeste.

Mas, antes que o primeiro alarme tumultuoso chegasse ao meio da tripulação,o velho, com um riso seco, exclamou, “Entendi! Já aconteceu antes. SenhorStarbuck, o estrondo de ontem alterou as nossas bússolas – isso é tudo. Suponho

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que já ouviste falar disso antes”.“Sim, mas nunca antes me tinha acontecido, senhor”, disse o pálido oficial,

com ar sombrio.Aqui é necessário dizer que acidentes como esse ocorreram mais de uma vez

com navios no transcurso de uma tempestade violenta. A energia magnética quese desenvolve na agulha de marear é, como todos sabem, essencialmente damesma natureza da eletricidade do céu; portanto, não é de se estranhar que taiscoisas aconteçam. Nos casos em que o raio de fato atingiu a embarcação,destruindo uma parte das vergas e do cordame, o efeito sobre a agulha foi porvezes ainda mais fatal; toda a força magnética da agulha ficou aniquilada, de talmodo que o aço, antes magnético, ficou tão útil quanto a agulha de tricô de umavelha senhora. Mas, seja como for, a agulha, por si mesma, nunca mais recuperaa força original, assim estragada ou perdida; e, se as bússolas da bitácula sãoafetadas, o mesmo acontece às outras que se encontram a bordo; mesmo que amais baixa delas esteja inserida na sobrequilha.

Deliberadamente de pé em frente à bitácula e olhando para as bússolasdesreguladas, o velho, com a ponta da mão estendida na direção exata do sol econvencido de que as agulhas estavam exatamente invertidas, ordenou aos gritosque a rota do navio fosse alterada. As vergas foram colocadas com dificuldade; emais uma vez o Pequod lançou sua proa intrépida ao vento contrário, pois osuposto vento favorável era mera trapaça.

Nesse ínterim, quaisquer que fossem seus pensamentos secretos, Starbucknada disse, mas com calma expediu as ordens requeridas; enquanto Stubb e Flask– que em certa medida pareciam compartilhar de seus sentimentos – tambémaquiesceram sem um murmúrio. Quanto aos marinheiros, embora alguns delesresmungassem em voz baixa, seu medo de Ahab era maior que seu medo doDestino. Mas, como sempre se dera antes, os arpoadores pagãos permaneceraminabaláveis; ou, se abalados, apenas por um certo magnetismo injetado em seuscorações amáveis pelo coração inflexível de Ahab.

Durante algum tempo o velho caminhou pelo convés em devaneios circulares.Mas, escorregando por acaso com o salto de marfim, viu os tubos de cobreesmagados do quadrante que no dia anterior atirara ao convés.

“Tu, pobre e orgulhoso contemplador do céu e piloto do sol! Ontem eu tedestruí, e hoje as bússolas quiseram destruir a mim. Bem, bem! Mas Ahab é aindao senhor do ímã. Senhor Starbuck – uma lança sem o cabo; um pilão; e a menoragulha de coser velas. Rápido!”

Atreladas, talvez, ao impulso que ditava a ação que estava por fazer, haviacertas razões de prudência, cujo objetivo seria reanimar o moral da tripulaçãocom um gesto de sutil habilidade, num caso tão assombroso como o das agulhas

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invertidas. Ademais, o velho bem sabia que pilotar por agulhas desreguladas,embora fosse canhestramente praticável, não era coisa que marinheirossupersticiosos aceitassem sem alguns sobressaltos e maus presságios.

“Homens”, disse ele, olhando fixamente para a tripulação, enquanto o oficiallhe entregava as coisas que pedira, “meus homens, o trovão inverteu as agulhasdo velho Ahab; mas com esse pedacinho de aço Ahab pode fazer uma à suamaneira, que nos orientará tão bem quanto qualquer outra.”

Olhares desconcertados de admiração servil foram trocados entre osmarinheiros, enquanto escutavam essas palavras; e com olhos fascinadosaguardaram a tal mágica que se seguiria. Mas Starbuck olhou para longe.

Com um golpe de pilão Ahab tirou a cabeça de aço da lança e então,entregando a longa haste de ferro ao oficial, pediu-lhe que a segurasse reta, semtocar no convés. Em seguida, depois de golpear repetidas vezes a extremidadesuperior da haste de ferro, colocou em cima do pilão a agulha cega e, com menosforça, bateu ali diversas vezes, com o oficial ainda segurando a haste como antes.Então, fazendo alguns movimentos estranhos com ela – talvez indispensáveis paramagnetizar o aço, ou com a simples intenção de aumentar o assombro datripulação –, pediu um fio de linho; e, movendo-se para a bitácula, retirou asduas agulhas invertidas de lá e suspendeu horizontalmente a agulha de vela pelomeio, sobre uma das rosas-dos-ventos da bússola. De início o aço deu váriasvoltas, tremendo e vibrando nas duas extremidades; mas, por fim, fixou-se emseu lugar, quando Ahab, que esperava ansioso por esse resultado, se afastouostensivamente da bitácula e, apontando-a com o braço esticado, exclamou –“Vede com os vossos olhos se Ahab não é o senhor do ímã! O sol está a leste e abússola jura isso!”.

Um após o outro, eles espiaram, pois nada senão seus próprios olhos poderiampersuadir uma ignorância como a deles, e, um após o outro, retiraram-sefurtivamente.

Com os olhos flamejantes de desprezo e triunfo, vocês então encontrariamAhab em todo o seu orgulho fatal.

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125 A BARQUILHAE A LINHA

Até então, durante toda a longa viagem do predestinadoPequod, a barquilha e a linha muito raramente haviam sido

usadas. Devido a uma destemida confiança em outros meios de determinar aposição de uma embarcação, alguns navios mercantes e muitos baleeiros,especialmente quando estão em cruzeiro, negligenciam o içar da barquilha porcompleto; embora, ao mesmo tempo, e mais por formalidade do que por outracoisa, registrem regularmente sobre a lousa tradicional a rota seguida pelo navio,assim como a suposta progressão horária. Assim sucedera com o Pequod. Ocarretel de madeira e a barquilha angular presa a ele estavam havia muitopendurados, sem terem sequer sido tocados, bem abaixo dos paveses da popa.Chuvas e surriada molharam-na; sol e vento empenaram-na; todos os elementosconcorreram para estragar uma coisa tão ociosamente dependurada. Mas,desatento a tudo isso, o mau humor apoderou-se de Ahab, enquanto seu olharcaía por acaso sobre o carretel, não muitas horas depois da cena do ímã, e ele selembrava do quadrante que já não existia, rememorando seu juramento frenéticoa respeito da barquilha e da linha. O navio arfava; e à popa as ondas rolavam emtumulto.

“Ó, da frente! Içai a barquilha!”Dois marinheiros se apresentaram. O dourado taitiano e o grisalho de Man.

“Segura o carretel, um de vós, e eu içarei.”Encaminharam-se para o extremo da popa, a barlavento, onde o convés, pela

força oblíqua do vento, estava agora quase imerso no mar cremoso que corria aolado.

O homem de Man pegou o carretel e segurou-o no alto, pegando nasextremidades do fuso, em torno do qual girava a bobina da linha, e assim semanteve, com a barquilha angular pendurada, até que Ahab se aproximou.

Ahab estava de pé diante dele e já desenrolava cerca de trinta ou quarentavoltas para fazer um rolo preliminar e atirá-lo ao mar, quando o velho de Man,que olhava atento tanto para ele como para a linha, encontrou coragem parafalar.

“Senhor, eu não confio nela; esta linha parece-me muito gasta, tanto calor eumidade estragaram-na.”

“Há-de segurar, respeitável senhor. Tanto calor e umidade estragaram-te?Pareces segurar bem. Ou, talvez mais verdadeiro, a vida é que te segura; não tu a

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ela.”“Seguro a bobina, senhor. Mas como o meu capitão quiser. Co’estes cabelos

grisalhos não vale a pena discutir, especialmente c’um superior que nuncaadmite nada.”

“Que é isso? Eis um professor remendado do Colégio de granito da RainhaNatureza; mas parece-me subserviente demais. Onde nasceste?”

“Na pequena ilha rochosa de Man, senhor.”“Excelente! Descobriste o mundo assim?”“Não sei, senhor, mas nasci lá.”“Na ilha de Man, hein? Bem, de certo modo, é bom. Eis um homem de Man;

um nascido em Man, na outrora independente Man, e agora desguarnecida dehomens; e que foi sugada – por quê? Içai o carretel! O muro, a muralha defronta-se por fim com todas as cabeças inquiridoras. Para cima! Assim.”

A barquilha foi erguida. Os rolos soltos esticaram-se depressa em umacomprida linha que se arrastou à popa, e, instantaneamente, o carretel começoua rodopiar. Em resposta, subindo e descendo aos trancos pelo rolar das ondas, aresistência da tração da barquilha fez com que o velho do carretel cambaleassede modo estranho.

“Segura firme!”Zás! A linha demasiado esticada partiu-se, formando uma longa grinalda; a

barquilha de reboque desapareceu.“Eu quebro o quadrante, a trovoada desregula as agulhas e agora o insensato

oceano parte a linha da barquilha. Mas Ahab tudo pode remediar. Puxa aqui,taitiano; enrola aqui, homem de Man. E olha, dize ao carpinteiro que faça outrabarquilha e tu, conserta a linha. Cuidai disso.”

“Lá vai ele agora; para ele nada aconteceu; mas para mim o eixo pareceusoltar-se do meio do mundo. Puxa aqui, puxa aqui, taitiano! Essas linhasdesenrolam-se depressa e inteiras; mas voltam lentas e quebradas. Ah, Pip? Vemajudar; ei, Pip!”

“Pip? A quem chamas de Pip? Pip pulou do navio baleeiro. Pip desapareceu.Vamos ver se não o pescaste ali, pescador. Está difícil de puxar; acho que ele estásegurando. Sacode-o, Tahiti! Sacode-o fora; não rebocamos covardes para cá. Oh!ali está o braço dele rompendo a água. Uma machadinha! Uma machadinha!Corta – não rebocamos covardes para cá. Capitão Ahab! Senhor, senhor! Eis Pip,tentando subir a bordo de novo.”

“Cala-te, maluco”, gritou o homem de Man, pegando-o pelo braço. “Cai fora dotombadilho!”

“O maior idiota sempre ralha com o menor”, murmurou Ahab, adiantando-se.

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“Tirai as mãos de cima dessa santidade! Onde disseste que Pip está, rapaz?”“Ali à popa, senhor, à popa! Olha, olha!”“E quem és tu, rapaz? Não vejo meu reflexo nas pupilas vazias dos teus olhos.

Oh, Deus! Que o homem deva ser um crivo para as almas imortais atravessarem!Quem és, rapaz?”

“O sineiro, senhor; o pregoeiro do navio; ding, dong, ding! Pip! Pip! Pip!Recompensa por Pip! Cem libras de argila – cinco pés de altura – aparência decovarde – mais facilmente reconhecível por isso! Ding, dong, ding! Quem viu Pip,o covarde?”

“Não deve haver corações acima da linha da neve. Oh, vós, céus congelados!Olhai aqui para baixo. Vós gerastes essa criança sem sorte e a abandonastes, vós,libertinos da criação. Aqui, rapaz; a cabine de Ahab doravante será a casa de Pip,enquanto Ahab viver. Tocas o meu centro mais íntimo, rapaz; estás preso a mimcom as cordas feitas com as fibras do meu coração. Vem, vamos descer.”

“Que é isto? Eis a pele de tubarão de veludo”, olhando atentamente para a mãode Ahab e apalpando-a. “Ah, bem, tivesse o pobre Pip tocado uma coisa tão boacomo essa, talvez nunca tivesse se perdido! Isto me parece, senhor, um guarda-mancebos; algo a que as almas fracas podem se agarrar. Oh, senhor, que o velhoPerth venha cá e rebite juntas essas duas mãos; a preta com a branca, pois eu nãoquero mais deixá-la.”

“Ó, rapaz, nem eu te deixarei, a menos que vá te arrastar para horrores pioresdos que estes aqui. Vem, pois, para a minha cabine. Olhai! Vós que acreditais nosdeuses de toda a bondade e nos homens de toda maldade, olhai! Vede os deusesoniscientes esquecidos do homem que sofre; e o homem, embora idiota e semsaber o que faz, cheio das doçuras do amor e da gratidão. Vem! Sinto-me maisorgulhoso, levando-te pela tua mão negra, do que se segurasse a de umimperador!”

“Lá se vão dois malucos agora”, murmurou o velho de Man. “Um demente pelaforça e outro pela fraqueza. Mas eis a ponta da linha partida – toda encharcada.Consertá-la, hein? Acho que seria melhor arrumar uma nova. Vou falar com osenhor Stubb a respeito.”

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126 A BÓIA DESALVAMENTO

Rumando agora para sudeste, de acordo com o aço aplainado deAhab, e com sua rota determinada apenas pela barquilha e pela

linha de Ahab; o Pequod seguiu seu caminho em direção ao Equador. Realizandouma travessia tão longa por mares tão pouco freqüentados, sem anunciar naviose, antes, impelido por imutáveis alísios sobre ondas monotonamente gentis; tudoisso se parecia com a estranha calmaria que serve de prelúdio para uma cenatumultuosa e desesperada.

Por fim, quando o navio se aproximava da periferia, digamos assim, da regiãode pesca Equatorial e, nas profundas trevas que precedem a aurora, navegava nasimediações de um grupo de ilhotas rochosas; os homens da vigília – entãoencabeçados por Flask – foram surpreendidos por um grito tão plangentementeselvagem e sobrenatural – como os gemidos semi-articulados dos fantasmas dosInocentes assassinados por Herodes – que todos a um só tempo despertaram deseus devaneios e em instantes se puseram de pé, sentados ou reclinados, todospasmos escutando, como o escravo Romano da escultura, tanto quanto aquelegrito selvagem durou. A parcela Cristã ou civilizada da tripulação disse que eramsereias, e estremeceu; mas os arpoadores pagãos permaneceram impassíveis. Noentanto, o homem grisalho de Man – o marinheiro mais velho de todos –afirmava que aqueles arrebatadores sons selvagens que ouvíramos eram vozes dehomens recém-lançados ao mar.

Embaixo, na rede, Ahab não soube disso até que chegasse o amanhecercinzento, quando veio ao convés; o caso lhe foi então transmitido por Flask, nãosem o acompanhamento de insinuações de sentido sombrio. Ahab lançou um risoamarelo e assim deu por explicado o prodígio.

Aquelas ilhas rochosas por onde o navio passara eram a pousada de um grandenúmero de focas, e alguns filhotes que tinham perdido a mãe, ou mesmo mãesque tinham perdido suas crias, deviam ter emergido perto do navio e seguiramem sua companhia, chorando e soluçando com uma espécie de gemido humano.Mas isso só abalou ainda mais alguns dos homens, pois a maioria dos marinheiroscompartilha de um sentimento deveras supersticioso em relação às focas,originado não apenas por suas vozes características quando em apuros, mastambém devido ao olhar humano de suas cabeças redondas e rostos quaseinteligentes, vistas a emergir furtivamente da água ao lado do navio. No mar, emcertas ocasiões, focas foram mais de uma vez confundidas com homens.

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Mas os pressentimentos da tripulação estavam destinados a receber naquelamanhã a mais plausível confirmação na sorte de um de seus membros. Ao nascerdo sol, esse homem saiu de sua rede para o topo do mastro da proa; e, fosseporque ele ainda não estivesse bem acordado do sono (pois os marinheiros àsvezes sobem aos mastros em um estado de transição), e que assim fosse, poisnada se soube; todavia, fosse qual fosse o motivo, ele não estava há muito tempoem seu poleiro, quando se ouviu um grito – um grito e uma agitação – e, olhandopara cima, viram um fantasma cadente no ar; e, olhando para baixo, umapequena confusão de bolhas brancas em meio ao mar azul.

A bóia de salvamento – um barril estreito e comprido – foi jogada da popa,onde sempre esteve pendurada em obediência a uma mola engenhosa; contudo,sem marinheiros que se prontificassem a tratá-la, e tendo o sol durante muitotempo castigado o barril, este encolhera de tal modo que foi se enchendo aospoucos e a madeira ressequida absorveu água por todos os poros; e o rígido barrilguarnecido de tachas foi com o marinheiro ao fundo, como que para servir-lhede travesseiro, se bem que, de fato, um bem duro.

E assim, foi o primeiro homem do Pequod a subir no mastro para procurar aBaleia Branca, nas águas particulares da Baleia Branca; tal homem foi engolidopelas profundezas. Mas poucos, talvez, pensaram desse modo naquela ocasião.Contudo, não ficaram aflitos com o acontecimento, pelo menos não comopresságio; pois não o consideraram um anúncio da desgraça futura, mas aconsumação de uma fatalidade já antecipada. Declararam conhecer agora a razãodos gritos selvagens ouvidos na noite anterior. No entanto, mais uma vez, o velhode Man discordou.

A bóia de salvamento perdida tinha de ser substituída; Starbuck foi destacadopara cuidar do assunto; mas, como não se conseguia encontrar nenhum barrilsuficientemente leve, e como, na ânsia febril do que parecia ser o desenlacepróximo da viagem, todos se impacientavam com qualquer trabalho que não serelacionasse com esse objetivo final, qualquer que este fosse; por isso tudo, iriamdeixar a popa do navio sem salva-vidas, quando Queequeg, com sinais einsinuações estranhas, sugeriu qualquer coisa a respeito do seu caixão.

“Um caixão como bóia de salvamento!”, exclamou Starbuck, sobressaltado.“Muito estranho, na minha opinião”, disse Stubb.“Vai ficar muito bom”, disse Flask, “o carpinteiro aqui pode arrumá-lo com

facilidade.”“Trazei-o; já que não há outra coisa”, disse Starbuck depois de uma pausa

melancólica. “Prepara-o, carpinteiro; não olhes assim para mim – o caixão, eudisse. Ouviste? Prepara-o!”

“E devo pregar a tampa, senhor?”, gesticulando como se tivesse um martelo na

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mão.“Sim.”“E devo calafetar as fendas, senhor?”, gesticulando como se tivesse um

calafetador.“Sim.”“E devo cobrir as mesmas com piche, senhor?”, gesticulando como se tivesse

um balde de piche.“Basta! Que te leva a isso? Faze do caixão uma bóia de salvamento e nada mais.

Senhor Stubb, senhor Flask – vinde comigo.”“Vai-se embora zangado. Tudo junto, ele pode suportar; nas partes, empaca.

Não gosto disso. Faço uma perna para o capitão Ahab, e ele a usa como umcavalheiro; mas faço uma chapeleira para Queequeg, e ele não quer pôr a cabeçadentro dela. Todo o trabalho que tive com o caixão foi inútil? E agora dão ordensde fazer dele uma bóia de salvamento. É como virar um casaco velho; virar acarne do outro lado. Não gosto deste trabalho de remendos – não gosto nadadisso; é indigno; não é para mim. Que os moleques funileiros façam aquelasemendas porcas; nós somos melhores do que eles. Gosto de fazer apenastrabalhos limpos, virgens, bem pensados, matemáticos, uma coisa quecorretamente começa no começo, que a metade está no meio e que acaba naconclusão; não o trabalho de um remendão, que no meio já está acabando ecomeça pelo fim. É um hábito de velhas senhoras pedir trabalhos de remendão.Senhor! Que afeição sentem as velhas senhoras por esses funileiros! Conheço umasenhora de sessenta e cinco anos que fugiu certa vez com um jovem funileirocareca. Esse é o motivo pelo qual eu nunca trabalhei para as velhas viúvassolitárias em terra, quando tinha a minha oficina em Vineyard; poderia terpassado pelas suas solitárias cabeças de velhas a idéia de fugir comigo. Mas, puxavida! No entanto, não há no mar outra crista que a crista da onda. Deixa-me ver.Pregar a tampa; calafetar as fendas; cobrir com piche; reforçar direito e pendurarcom a mola na popa do navio. Alguma vez já fizeram essas coisas com umcaixão? Há velhos carpinteiros supersticiosos que prefeririam ser amarrados aocordame a fazer um serviço desses. Mas eu sou feito do abeto nodoso deAroostook; não arredo pé. Com um caixão na garupa! Navegar com uma padiolade cemitério! Mas não importa. Nós, que trabalhamos com a madeira, fazemosestrados de camas nupciais e mesas de jogos, assim como caixões e ataúdes.Trabalhamos por mês, por serviço, ou por proveito; não nos cabe perguntar oporquê ou o para quê de nosso trabalho, a menos que seja algo parecido comremendão, e aí tentamos se possível escapar. Humpf! Farei o serviço agora, comcalma. Vou colocar – vejamos – quantos são na tripulação, contando todos?Esqueci. De qualquer modo, vou colocar trinta cordas de salvamento separadas,

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cada uma com três pés de comprimento, penduradas em volta do caixão. Então,se o casco for a pique, haverá trinta sujeitos vivos lutando por um caixão, umespetáculo que não se vê com muita freqüência debaixo do sol! Vamos, martelo,calafetador, balde de piche e espicha! Vamos lá!”

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127 O CONVÉS

[O caixão sobre duas selhas de corda, entre a bancada do torno e a escotilhaaberta; o Carpinteiro calafeta as fendas; um fio de estopa torcida lentamente sedesenrola de um grande rolo, colocado no peitilho do seu casaco. – Ahab vemdevagar do passadiço do camarote e escuta Pip, que o segue.]

“Para trás, garoto; voltarei para perto de ti logo mais. Ele se vai!Nem esta mão obedece melhor ao meu humor do que esse menino. – A navecentral de uma igreja! O que é isto?”

“Uma bóia de salvamento, senhor. Ordens do senhor Starbuck. Oh, atenção,senhor! Cuidado com a escotilha!”

“Obrigado, marinheiro. Teu caixão está próximo ao túmulo.”“Senhor? A escotilha? Oh! É mesmo, senhor, é mesmo.”“Não és tu o artesão de pernas? Vê, este coto não veio da tua oficina?”“Acredito que sim, senhor; a ponteira agüenta bem, senhor?”“Bastante bem. Mas não és também o agente funerário?”“Sim, senhor; arranjei essa coisa aqui para o caixão de Queequeg, mas agora

me mandaram transformá-la noutra coisa.”“Dize-me, então; não és um consumado velho tratante, sabe-tudo, intrometido,

monopolizador e pagão, que um dia fazes pernas, no dia seguinte caixões paracolocá-las dentro e depois bóias de salvamento desses mesmos caixões? És tãosem princípios como os deuses ou tanto quanto um pau-pra-toda-obra.”

“Mas não tenho outras intenções, senhor. Faço o que faço.”“Os deuses de novo. Escuta aqui, nunca cantas ao trabalhar num caixão? Os

Titãs, dizem, cantarolavam ao cavar as crateras dos vulcões e na peça de teatro; eo coveiro, de pá na mão, canta na peça. Nunca o fazes?”

“Cantar, senhor? Se eu canto? Oh, senhor, isso me é indiferente; mas a razãode o coveiro cantar deve ser porque não havia música alguma em sua pá. Mas omeu macete de calafetar tem muita música. Ouça!”

“Sim, e isso porque a tampa é uma caixa de ressonância; e o que fazem todasas caixas de ressonância é isso – não há nada embaixo. Contudo, um caixão comum corpo dentro soa parecido, carpinteiro. Nunca ajudaste a conduzir um esquifee ouviste o caixão esbarrar no portão do cemitério ao entrar?”

“Pela minha fé, senhor, eu…”“Fé? O que é isso?”

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“Ora, senhor, fé é apenas um tipo de exclamação – só isso, senhor.”“Hum, hum; continua.”“Eu ia dizer, senhor, que…”“És um bicho-da-seda? Fias a tua própria mortalha com o fio que sai de ti?

Olha o teu peito! Despacha-te! E tira essas armadilhas daqui.”“Ele foi à popa. Dessa vez foi repentino; mas as tempestades são repentinas nas

latitudes quentes. Ouvi dizer que a Ilha de Albemarle, uma das Galápagos, écortada bem ao meio pelo Equador. Parece-me que algum tipo de Equadortambém corta esse velho bem ao meio. Está sempre debaixo da Linha – que calorcausticante, vou te contar! Está olhando para cá – Vamos, estopa; depressa. Lávamos nós. Esse macete de madeira é a cortiça, e eu sou o professor deharmônica de vidro – toc, toc!”

[Ahab consigo mesmo.]“Que espetáculo! Que barulho! O pica-pau de cabeça grisalha batendo na

árvore oca! Os cegos e os surdos podem ser invejados agora. Vê! Aquela coisa seapóia em duas selhas de corda, cheias de cabos de reboque. Um piadistamalicioso, aquele sujeito. Rattat! Assim se fazem os segundos da existência! Oh!Quão imateriais são todos os materiais! Que há de real, senão os pensamentosimponderáveis? Eis ali, agora, o próprio símbolo temido da morte implacável,que por mero acaso se torna o signo expressivo da ajuda e da esperança para avida mais exposta ao perigo. Uma bóia de salvamento de um caixão! Irá maisalém? Pode ser que, em certo sentido espiritual, o caixão seja, afinal, apenas umconservador da imortalidade! Pensarei nisso. Mas não. Tão longe fui no ladoescuro da terra que o seu outro lado, aquele iluminado pela teoria, me pareceapenas um incerto crepúsculo. Não cessarás nunca, Carpinteiro, de fazer essebarulho desgraçado? Descerei; que eu não veja mais essa coisa aqui quandovoltar! E agora, Pip, conversemos sobre isso; eu absorvo de ti maravilhosasfilosofias! Algumas correntes desconhecidas de mundos desconhecidos devemcorrer em ti!”

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128 O PEQUOD ENCONTRA O RACHEL

No dia seguinte avistaram um grande navio, o Rachel, que navegava em direçãoao Pequod, com todas as vergas apinhadas de homens. Na ocasião, o Pequodcortava a água a uma boa velocidade; mas quando o estrangeiro de asas largaspassou por perto, a barlavento, todas as velas orgulhosas murcharam ao mesmotempo, como bexigas estouradas, e toda a vida fugiu do casco atingido.

“Más notícias; ele traz más notícias”, resmungou o velho de Man. Mas, antesque o comandante, com a trombeta na boca, ficasse de pé no seu bote; antes quetivesse podido fazer uma saudação esperançosa, ouviu-se a voz de Ahab.

“Viste a Baleia Branca?”“Sim, ontem. Viste um bote à deriva?”Coibindo a alegria, Ahab respondeu negativamente a essa pergunta inesperada;

e teria de boa vontade subido a bordo do navio estrangeiro, se não houvesse vistoo próprio capitão que, freando o vogar de sua embarcação, lhe descia o costado.Umas poucas remadas decididas, e o croque de seu bote se fixou na amarra doPequod, e ele saltou ao convés. De pronto, Ahab reconheceu-o, por se tratar deum conhecido de Nantucket. Mas não trocaram as saudações formais.

“Onde estava ela? – não estava morta! – não estava morta!”, gritou Ahab,aproximando-se mais. “Como foi isso?”

Parece que pelo fim da tarde do dia anterior, enquanto três botes do navioestrangeiro empenhavam forças contra um bando de baleias, que os levaram aumas quatro ou cinco milhas de distância do navio; e enquanto eles corriam abarlavento sempre na veloz perseguição, a cabeça e a corcova branca de MobyDick subitamente irromperam da água azul, não muito longe, a sotavento; depoisdisso, o quarto bote equipado – o de reserva – foi imediatamente arriado para acaçada. Depois de uma corrida rápida a favor do vento, esse quarto bote – aquilha mais veloz de todas – parecia ter conseguido arpoála – pelo menos, tantoquanto podia julgar o homem do topo do mastro. À distância, ele viu o botereduzido a um pontinho; e então um rápido vislumbre de água brancaborbulhante; e, após isso, nada mais; donde se concluiu que a baleia atingidadeveria ter arrastado indefinidamente os seus perseguidores, comofreqüentemente ocorre. Houve certa apreensão, mas não alarme total, até aquelemomento. Os sinais de chamada foram dispostos no cordame; veio a escuridão; e,

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forçados a recolher os três botes distantes a barlavento – antes de sair em buscado quarto, precisamente na direção contrária –, o navio não só teve de deixar obote à sua sorte até quase meia-noite, como também, naquele momento,aumentar a distância entre eles. Mas assim que o resto da tripulação se encontroua bordo em segurança, ele navegou a todo o pano – cutelo sobre cutelo – atrás daembarcação desaparecida; fazendo subir o fogo em seus fornos para servir defarol; e com todos os homens, no topo dos mastros, de sobreaviso. Mas, emborativesse navegado uma distância suficiente para chegar ao suposto lugar onde osausentes haviam sido vistos pela última vez; embora tivesse parado para arriarseus botes sobressalentes e remar nas cercanias; e, não encontrando nada, voltassede novo a velejar; e de novo a parar e a arriar os botes; e embora tivessecontinuado assim até o raiar do dia; mesmo assim não se viu nem o menor sinalda quilha desaparecida.

Terminada a história, o Capitão estrangeiro revelou seu objetivo ao abordar oPequod. Desejava que outro navio se juntasse ao seu na busca; com os dois naviosnavegando umas quatro ou cinco milhas de distância um do outro, em linhasparalelas, percorreriam, digamos assim, um duplo horizonte.

“Aposto qualquer coisa”, segredou Stubb a Flask, “que alguém daquele botedesaparecido levou o melhor paletó do Capitão; talvez o relógio – ele está ansiosodemais por reavê-lo. Quem já ouviu falar de dois piedosos navios baleeiroscruzando à procura de um bote perdido em plena estação de pesca? Olhe, Flask,olhe só como está pálido – pálido até nas íris dos olhos – veja – não foi o paletó –deve ter sido –”

“Meu filho, meu próprio filho está com eles. Pelo amor de Deus – eu imploro,eu suplico” – exclamou o Capitão estrangeiro a Ahab, que até aquele momentorecebera o pedido com frieza. “Deixe-me fretar o seu navio só por quarenta e oitohoras – pagarei de boa vontade, pagarei tudo – se não houver outro meio – só porquarenta e oito horas – só isso – você precisa – oh, precisa e vai fazer isso.”

“O filho dele!”, exclamou Stubb, “oh, é o filho dele que está perdido! Retiro opaletó e o relógio – o que diz Ahab? Temos de salvar o menino.”

“Afogou-se c’os outros ontem à noite”, disse o velho marinheiro de Man, de péatrás deles; “eu ouvi; todos vocês ouviram os espíritos deles.”

Ora, como logo se revelou, o que tornara esse incidente do Rachel ainda maistriste era a circunstância de não apenas um dos filhos do Capitão pertencer àtripulação do bote perdido; mas a de que, além daquele, entre os membros dastripulações dos outros botes, ao mesmo tempo, separado do navio durante asnegras vicissitudes da caça, houvera antes outro filho; como em relação aoprimeiro, durante algum tempo o desgraçado pai atingira o fundo da mais cruelperplexidade; da qual só o arrancou a decisão de seu primeiro imediato, que

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adotou instintivamente o procedimento habitual de um baleeiro nessasemergências, isto é, o de, quando entre vários botes dispersos em perigo, sempreescolher o grupo majoritário. No entanto, o capitão, por qualquer razãodesconhecida de temperamento, abstivera-se de mencionar tudo isso, até que,forçado pela frieza de Ahab, aludiu a este filho ainda desaparecido; um rapaznovo, de apenas doze anos, cujo pai, com a séria mas inconseqüente coragem doamor paternal de um nativo de Nantucket, procurara iniciá-lo tão cedo nosperigos e maravilhas de uma profissão que era o destino de toda a sua raça desdetempos imemoriais. Não raro sucede que capitães de Nantucket mandem umfilho de tão tenra idade para longe deles, para uma prolongada viagem de três ouquatro anos a bordo de outro navio que não o seu; para que seu primeiroconhecimento do ofício de baleeiro não seja enfraquecido por qualquermanifestação fortuita da parcialidade natural, mas inoportuna, ou cuidado epreocupação indevidos por parte do pai.

Enquanto isso, o estrangeiro continuava a suplicar aquele favor a Ahab; e Ahabmantinha-se firme como uma bigorna, recebendo todos os golpes sem o menorestremecimento.

“Não irei embora”, disse o estrangeiro, “antes de me dizeres sim. Faz por mimo que gostaria que eu fizesse por ti num caso semelhante. Pois tu também tensum filho, capitão Ahab – embora ainda seja uma criança e esteja neste momentono aconchego do lar – um filho também de tua velhice – sim, sim, tu tecompadeces, percebo – corram, corram, marinheiros, agora, e preparem-se paraprender as vergas.”

“Basta!”, exclamou Ahab – “Não toqueis num único fio de corda!”; e com umavoz que ao prolongar-se moldava cada palavra – “Capitão Gardiner, não o farei.Neste exato momento já estou perdendo tempo. Adeus, adeus! Deus te abençoe,homem, e que eu possa me perdoar, mas tenho de ir embora. Senhor Starbuck,olha o relógio da bitácula e dentro de três minutos a partir de agora diz a todosos estrangeiros que saiam: depois em frente de novo, e que o navio siga o rumode antes.”

Voltando-se depressa, evitando seu olhar, desceu para a cabine, deixando ocapitão estrangeiro petrificado com essa recusa total e incondicional à sua súplicafervorosa. Porém, saindo do torpor, Gardiner dirigiu-se ligeiro e em silêncio parao costado; mais do que desceu, jogou-se ao bote e voltou ao seu navio.

Logo os rastros dos dois navios se afastaram um do outro; e, enquanto o navioestrangeiro permaneceu à vista, esteve a guinar de lá para cá em direção a todasas manchas escuras do mar, por menores que fossem. Suas vergas eram braceadasde um lado para o outro; a estibordo e a bombordo, ele continuava a manobrar;ora enfrentava o mar contrário; ora deixava-se empurrar por ele; mas o tempo

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todo os mastros e vergas apinhados de homens, como três altas cerejeiras quandoos meninos estão colhendo seus cachos por entre os galhos.

Porém, por seu trajeto hesitante, por sua marcha tortuosa e angustiada, vocêvia com clareza que aquele navio que tanto chorava às borrifadas continuava semconforto. Rachel, chorava por seus filhos, pois estes já não existiam.

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129 A CABINE

[Ahab faz moção de ir ao convés; Pip pega-lhe na mão paraacompanhá-lo.]“Rapaz, rapaz, digo-te que não deves acompanhar Ahab agora. Aproxima-se ahora em que Ahab não quereria te afastar dele, e no entanto não te poderiamanter com ele. Há algo em ti, pobre rapaz, que sinto ser remédio para a minhadoença. O semelhante cura o semelhante; e para esta caçada minha doença éminha mais desejada saúde. Fica aqui embaixo, onde te servirão como se fosses ocapitão. Sim, rapaz, hás de sentar-te aqui, na minha própria cadeira pregada;mais um parafuso nela, eis o que serás.”

“Não, não, não! O senhor não tem um corpo inteiro, senhor; sirva-se de mimcomo se fosse a sua perna perdida; marche sobre mim, senhor; não peço mais doque isso, assim me torno parte sua.”

“Oh! A despeito dos milhões de canalhas, isso faz de mim um fanático daindestrutível fidelidade do homem! – e um negro! e louco! – mas parece-me queaquele ‘semelhante cura semelhante’ também a ele se aplica; ele está tão razoávelde novo.”

“Contaram-me, senhor, que certa vez Stubb abandonou o pobre Pip, cujosossos afogados agora estão brancos, apesar de todo o negro de sua pele em vida.Mas eu nunca o abandonarei, senhor, como Stubb fez com ele. Senhor, tenho desegui-lo.”

“Se continuas a falar assim, o propósito de Ahab emborcará. Digo-te, não. Nãopode ser!”

“Oh, bondoso mestre, mestre, mestre!”“Chora assim, e eu te mato! Cautela, pois Ahab também é louco. Escuta, e

ouvirás muitas vezes o meu pé de marfim no convés, e saberás que lá estou. Eagora, deixo-te. A tua mão! – Feito! És fiel, rapaz, como a circunferência ao seucentro. Assim: Deus te abençoe para todo o sempre; e, se chegarmos a tanto, queDeus te defenda sempre, aconteça o que acontecer.”

[Ahab sai; Pip dá um passo à frente.]“Ele esteve aqui há um momento; estou no seu ar – mas estou sozinho. Oh,

estivesse o pobre Pip aqui, eu poderia suportar, mas ele desapareceu. Pip! Pip!Ding, dong, ding! Quem viu o Pip? Ele deve estar aí em cima; vamos tentar aporta. O quê? Nem fechadura, nem ferrolho, nem tranca; e mesmo assim nãoabre. Deve ser o feitiço; ele disse para eu ficar aqui: sim, e disse que essa cadeira

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pregada era minha. Então, vou sentar-me, contra a trave, no meio do navio, todaa quilha e os três mastros diante de mim. Aqui, dizem nossos velhos marinheiros,nos seus negros navios de setenta e quatro canhões grandes almirantes sentam-seà mesa e presidem as fileiras de capitães e tenentes. Ah! O que é isso? Dragonas!Dragonas! As dragonas vêm aos montes! Passem os licoreiros; estou alegre em vê-los; encham os copos, monsieurs! Que sensação estranha, quando um meninonegro recepciona homens brancos com galões dourados nos casacos! – Monsieurs,viram um certo Pip? – um rapazinho preto, cinco pés de altura, um tipodesprezível e covarde! Certa feita pulou de um bote baleeiro; – viram-no? Não!Pois bem, encham os seus copos, capitães, e bebamos à humilhação de todos oscovardes! Não digo nomes. À sua humilhação! Ponham um pé em cima da mesa.À sua humilhação! – Silêncio! Lá em cima, ouço marfim – Oh, senhor, senhor!Fico deprimido quando você caminha sobre mim. Mas aqui ficarei, ainda queesta popa atinja os rochedos; e eles a arrombem; e as ostras venham se juntar amim.”

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130 O CHAPÉU

E agora, que em tempo e lugar apropriados, depois de umcruzeiro inicial tão largo e prolongado, Ahab – atravessadas todas as outras zonasde caça – parecia ter encurralado seu inimigo em um beco oceânico, para alimatá-lo da maneira mais segura; agora que ele se encontrava nas mesmas latitudee longitude onde sua ferida torturante lhe fora imposta; agora que havia faladocom uma embarcação que de fato enfrentara Moby Dick no dia anterior – e agoraque todos os encontros sucessivos com vários navios concorriam para mostrar demodos diversos a indiferença demoníaca com que a Baleia Branca destruía seusperseguidores, cautos ou incautos; era nesse momento que algo surdia nos olhosdo velho, algo cuja visão era insuportável às almas fracas. Como a semprefirmada estrela polar, que durante os seis meses da longa noite ártica mantém oolhar penetrante, presente e central; também o propósito de Ahab resplandeciafixamente sobre a sempiterna meia-noite da melancólica tripulação. Ele osdominava tanto que todos os presságios, dúvidas, receios e temores preferiamesconder-se em suas almas, sem deixar despontar uma única haste ou folha.

Nesse intervalo pressago, também os humores, forçados ou naturais,desapareceram. Stubb não tentou provocar sorrisos; e Starbuck não tentoureprimi-los. Igualmente, alegria e tristeza, esperança e medo pareciam reduzidosà mais fina poeira e triturados, àquela altura, no almofariz da alma de aço deAhab. Como máquinas, moviam-se em silêncio pelo convés, sempre cientes deque o olhar do velho déspota estava sobre eles.

Mas se você o examinasse profundamente em suas horas mais secretas esigilosas; quando ele supunha que nenhum olhar, exceto um, estivesse sobre ele;você então teria visto que, assim como o olhar de Ahab infundia medo natripulação, o olhar inescrutável do Parse amedrontava Ahab; ou, de algum modo,por vezes parecia afetá-lo de forma arrebatadora. Tal era a estranheza, nova emovediça, que passava a envolver o esguio Fedallah naquele momento; e tais osestremecimentos, incessantes, que o agitavam; que os marinheiros começaram aolhar desconfiados; um tanto indecisos, como parecia, quanto à substância deque era investido, se de fato mortal, ou antes uma sombra trêmula lançada aoconvés pelo corpo de algum ser invisível. E aquela sombra estava sempre a pairarpor ali. Pois nem mesmo à noite Fedallah parecia dormir ou descer. Podiapermanecer imóvel durante horas; mas nunca sentado ou recostado; seus olhossombrios, porém fantásticos, diziam claramente – Nós, os dois vigias, jamais

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descansamos.E em nenhum momento, de noite ou de dia, podiam os marinheiros ir ao

convés sem ver Ahab diante deles; fosse de pé no buraco de apoio, fossecaminhando pelas tábuas entre dois limites invariáveis – o mastro grande e amezena; ou então viam-no de pé na escotilha da cabine –, seu pé vivo à frente porsobre o convés, como se prestes a dar um passo; o chapéu descido pesadamentesobre os olhos; de tal modo que, apesar de sua imobilidade, apesar dos dias enoites que se somavam, sem que tivesse se recostado à rede; assim, escondidoatrás do chapéu caído, eles não saberiam dizer sem equívocos se, em certasocasiões, seus olhos estavam realmente fechados: ou se continuavam a examiná-los; não importava, ainda que assim ficasse na escotilha durante uma horaseguida e a imperceptível umidade noturna se acumulasse em gotas de orvalhosobre a capa e o chapéu talhados em pedra. A roupa que a noite molhara, o soldo dia seguinte secaria; e assim, dia após dia, noite após noite; não saiu mais doconvés; quando queria alguma coisa da cabine, mandava buscar.

Comia também ao ar livre; isto é, suas duas únicas refeições – café-da-manhã ealmoço: nunca tocava no jantar; nem fazia a barba; que crescia escura eretorcida, como as raízes desenterradas das árvores arrancadas pelo vento, quecontinuam a crescer em vão na base nua, embora o verdor de cima haja perecido.Embora sua vida toda tivesse se limitado à vigília no convés; e embora a místicavigília do Parse, como a sua, não conhecesse interrupção; ainda assim, os doispareciam nunca falar um com o outro, a não ser que, a longos intervalos, algumassunto sem importância se fizesse necessário. Embora uma magia poderosaparecesse unir secretamente a dupla; para o público, a tripulação aterrorizada,eles pareciam separados como dois mastros. Só por acaso durante o dia trocavamuma palavra; durante a noite, ambos eram mudos, pelo menos no que diziarespeito ao mais leve intercâmbio verbal. Por vezes, durante longas horas, semuma única saudação, permaneciam separados sob a luz das estrelas; Ahab em suaescotilha, o Parse perto do mastro grande; mas olhando fixamente um para ooutro; como se no Parse Ahab visse sua sombra projetada, e o Parse, em Ahab, suamatéria abandonada.

E, de certo modo, Ahab – ensimesmado consigo mesmo, como dia após dia,hora após hora e instante após instante se apresentava a seus subordinados –parecia um senhor independente; e o Parse, apenas seu escravo. Ainda assim,ambos pareciam sob um único jugo, com um tirano invisível a conduzi-los; asombra magra ladeando a viga sólida. Pois, fosse o Parse o que fosse, o sólidoAhab era todo viga e quilha. À primeira luz mais tênue da alvorada, sua voz deaço era ouvida à popa – “Tripular os topos de mastro!” – e durante todo o dia,

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para além do pôr-do-sol e do crepúsculo, ouvia-se a toda hora, ao soar o sino dopiloto, a mesma voz – “O que vedes? – Atenção! Atenção!”.

Mas, no rolar de três ou quatro dias, depois do encontro com o Rachel embusca de seus filhos; e sem jato que houvesse avistado; o velho monomaníacopareceu desconfiar da fidelidade de sua tripulação; pelo menos, de quase todos,exceção feita aos arpoadores pagãos; pareceu até mesmo se perguntar se Stubb eFlask não estariam fechando voluntariamente os olhos àquilo que ele procurava.Mas, se essas eram realmente suas suspeitas, absteve-se sagazmente de exprimi-lasem palavras, embora seus atos parecessem sugeri-las.

“Serei eu mesmo o primeiro a avistar a baleia”, disse ele. “Sim! Ahab tem deganhar o dobrão!”, e com as próprias mãos arrumou um ninho de bolinasencestadas; e mandando um marinheiro subir com um cadernal de uma sóroldana para prendê-lo no topo do mastro grande, pegou as duas pontas do cabopassado pela roldana; e, atando uma ao cesto, preparou um pino para a outraponta, de modo que a amurada a segurasse. Feito isso, ainda com a ponta dacorda na mão; e colocando-se ao lado do pino olhou toda a tripulação,transitando de um homem para o outro; demorando o olhar em Daggoo,Queequeg e Tashtego; mas evitando Fedallah; e depois, assentando seus olhosfirmes e decididos no primeiro imediato, disse – “Pega a corda, senhor – entrego-a em tuas mãos, Starbuck”. Em seguida, ajeitou-se no cesto e deu ordens para queo içassem até o topo, sendo Starbuck quem afinal amarrou a corda; e depoisficou perto dela. E assim, com uma mão agarrada ao mastaréu, Ahab observouamplamente o mar por milhas e milhas – para frente, para trás, de um lado e deoutro –, por todo o vasto horizonte circular dominado de tamanha altura.

Quando trabalha com as mãos em algum lugar alto e isolado do cordame, quepode não ter apoio para os pés, o marinheiro é içado até esse ponto e ali mantidopor uma corda; nessas circunstâncias, a extremidade presa ao convés fica sob oscuidados especiais de um homem encarregado de vigiá-la. Pois em tal floresta decabos movediços, cujas várias relações diferentes nem sempre podem serinfalivelmente reconhecidas no alto pelo que se vê delas do convés; e quando asextremidades dessas cordas no convés vão de poucos em poucos minutos sendodesfeitas de suas amarrações, seria apenas uma fatalidade natural, se, desprovidode um vigia constante, o marinheiro içado, por algum descuido da tripulação,ficasse a esmo e caísse subitamente ao mar. Por isso, o procedimento de Ahabnesse caso não era inusitado; a única coisa estranha era ter escolhido Starbuck,praticamente o único homem que alguma vez ousara opor-se a Ahab com algopróximo do grau mais leve da firmeza – um daqueles também de cuja fidelidadena vigilância ele parecia duvidar um pouco –, era estranho que fosse ele ohomem escolhido para vigiar a corda; entregando livremente a vida inteira nas

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mãos de uma pessoa em quem, a princípio, tão pouco confiava.Ora, da primeira vez que Ahab foi içado; mal se passaram dez minutos;

quando um desses falcões marinhos selvagens, de bico vermelho, que tão amiúdevoam de maneira incômoda à volta do topo dos mastros guarnecidos dosbaleeiros naquelas latitudes; um daqueles pássaros aproximou-se aos gritos erodopios de sua cabeça, num emaranhado de círculos indiscerníveis e muitorápidos. Depois disparou a mil pés de altura, reto no ar; e então, descendo emespirais, reapareceu de novo a redemoinhar em torno de sua cabeça.

Mas, com os olhos fitos no horizonte escuro e distante, Ahab parecia nãoprestar atenção ao pássaro selvagem; nem, de fato, qualquer outro prestariamuita atenção a isso, pois não se tratava de uma circunstância incomum; noentanto, naquele momento, até o olhar menos atento parecia atribuir algum tipode significado ardiloso a quase toda a cena.

“Seu chapéu, seu chapéu, senhor!”, subitamente alertou o marinheiroSiciliano, que, postado no topo do mastro de mezena, ficava logo atrás de Ahab,embora um tanto mais abaixo e com um profundo redemoinho a separá-los.

Mas a asa negra já estava diante dos olhos do velho; o longo bico curvado emsua cabeça: com um grito, o falcão negro arremessou-se para longe com seutroféu.

Uma águia voou três vezes em volta da cabeça de Tarquínio, retirando-lhe ocapacete para substituí-lo e, com isso, Tanaquil, a esposa dele, declarou queTarquínio seria o rei de Roma. Mas foi apenas porque o capacete voltou ao seulugar que o presságio foi considerado bom. O chapéu de Ahab não lhe foi jamaisrestituído; o falcão selvagem voou e voou com ele; para muito longe da proa: edesapareceu, afinal; enquanto, no ponto do desaparecimento, se discerniavagamente uma minúscula mancha preta, descendo ao mar daquelas imensasalturas.

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131 O PEQUOD ENCONTRA O DELÍCIA

O ansioso Pequod continuava a navegar; os dias e as ondas rolantes passavam; ocaixão salva-vidas ainda seguia em seu leve balanço; e outro navio, ao qualdesgraçadamente haviam dado o equivocado nome de Delícia, foi avistado. Àmedida que se aproximava, todos os olhos se voltaram às grandes vigas,chamadas tesouras, que em certos navios baleeiros cruzam o tombadilho à alturade oito ou nove pés; servindo para levar botes sobressalentes, desaparelhados ouestragados.

Nas tesouras do navio estrangeiro distinguiam-se as vigas brancas e destroçadase algumas tábuas lascadas do que fora um bote baleeiro; mas através dosdestroços agora se podia ver tudo, como se vê através do esqueletoembranquecido, descarnado e meio desarticulado de um cavalo.

“Viste a Baleia Branca?”“Olha!”, respondeu o capitão de faces encovadas, nas grades da popa; e com a

trombeta apontou para os destroços.“Mataste-a?”“Ainda não foi forjado o arpão que há de fazê-lo”, respondeu o outro, olhando

triste para uma rede arredondada no convés, cujos lados recolhidos algunsmarinheiros calados se ocupavam em costurar juntos.

“Não foi forjado!”, e, arrancando o ferro forjado por Perth da forquilha, Ahabbrandiu-o exclamando – “Olha, ó, de Nantucket; aqui nesta mão eu seguro amorte dela! Temperadas em sangue e pelo raio foram estas farpas; e juro temperá-las pela terceira vez naquele lugar quente atrás da barbatana, onde a BaleiaBranca mais sente sua vida maldita!”

“Então que Deus te proteja, velho – vês aquilo?”, e apontou para a rede –“sepultarei apenas um dos cinco homens fortes, que ainda ontem estavam vivos,mas foram mortos antes do anoitecer. Apenas esse eu sepulto; o resto foisepultado antes de morrer; estás navegando sobre seus túmulos.” Então, virando-se para a tripulação – “Estais prontos aí? Colocai a prancha na amurada e içai ocorpo; assim – oh! Deus!”, adiantando-se em direção à rede com as mãoslevantadas – “que a ressurreição e a vida…”

“Preparar, para frente! Leme a barlavento!”, exclamou Ahab, como um raio,dirigindo-se aos seus homens.

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Porém, o impulso súbito do Pequod não foi suficientemente rápido paraescapar ao barulho produzido pelo cadáver caindo ao mar; nem suficientementerápido, de fato, para evitar que algumas bolhas lhe borrifassem o casco, numbatismo fantasmagórico.

Enquanto Ahab se afastava do triste Delícia, o estranho salva-vidas pendurado àpopa do Pequod ganhou um relevo insólito.

“Ah! Ali! Olhai ali, homens!”, gritou uma voz agourenta, em seu rastro. “Emvão, ó, forasteiros, fugis de nosso triste funeral; virais para nós vossas grades depopa para mostrar-nos o vosso caixão!”

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132 A SINFONIA

O dia era claro, azul de aço. Ar e mar, os firmamentos mal sepodiam distinguir em meio ao tom cerúleo, que tudo impregnava; apenas a brisa,meditativa, era transparentemente pura e suave, como um semblante de mulher,enquanto o oceano viril, masculino, se erguia em longas ondulações, largas elentas, como o peito de Sansão durante o sono.

De lá, de cá, pelas alturas, deslizavam níveas as asas de pequenos pássarosimaculados; eram doces pensamentos da brisa feminina; mas, de um lado, deoutro, pelas profundezas de um azul sem fundo, corriam os gigantescos Leviatãs,os peixes-espada e os tubarões; e tais eram os pensamentos vigorosos, tensos emortíferos do másculo oceano.

Mas, ainda que contrastantes por dentro, por fora havia apenas um contrastede tons e traços; os dois pareciam um só; apenas o sexo, assim digamos, era o queos distinguia.

Nas alturas, como um czar, rei majestoso, o sol parecia oferecer a brisa gentil aesse ousado mar agitado; tal como a noiva ao noivo. E na linha anelada dohorizonte um movimento suave e trêmulo – visto especialmente aqui no Equador– revelava a fé latejante e apaixonada, os temores amorosos, com que a pobrenoiva entregava o peito.

Atado e retorcido; nodoso e vincado de rugas; terrivelmente tenaz e obstinado;os olhos luzindo feito brasas, que permanecem luzindo nas cinzas da ruína; ovacilante Ahab avançava na claridade da manhã; erguendo o elmo destruído deseu rosto para a bela tez de menina do céu.

Ó, imortal infância e inocência celestial! Invisíveis criaturas aladas que sedivertem à nossa volta! Doce infância do ar e do céu! Quão esquecidos estáveis daaflição que estrangulava Ahab! Mas dessa maneira vi as pequenas Míriam e Marta,duendes de olhos risonhos, saltando distraídas em volta de seu velho pai;divertindo-se com um círculo de cachos de cabelo chamuscados que cresciam àbeira do vulcão extinto de seu cérebro.

Atravessando devagar o convés, saído de sua escotilha, Ahab debruçou-se sobrea amurada e observou como sua sombra na água afundava mais e mais sob suacontemplação, ainda que mais e mais se esforçasse em penetrar a profundeza.Mas os suaves aromas daquela brisa encantada pareciam dispersar afinal, por ummomento, a coisa cancrosa que assomava em sua alma. Aquela brisa alegre,aprazível, aquele céu cativante, por fim o arrebataram e afagaram; a vida

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madrasta, por tanto tempo cruel – proibitiva –, agora lançava os braços afetuososem torno de seu pescoço obstinado e parecia soluçar de felicidade sobre ele,como se sobre alguém que, apesar da teimosia e dos erros, ela ainda pudesse decoração salvar e abençoar. Sob o chapéu desabado, Ahab deixou cair uma lágrimano mar; o Pacífico inteiro não continha a riqueza daquela gota minúscula.

Starbuck viu o velho; viu como se apoiava pesadamente sobre a amurada; epareceu escutar, em seu próprio coração fiel, o soluço desmedido, arrancado aoíntimo da serenidade que os cercava. Atento para não tocá-lo, não se permitindonotar, aproximou-se dele e ali ficou parado.

Ahab virou-se.“Starbuck!”“Senhor.”“Oh, Starbuck! O vento está calmo, calmo, e o céu parece calmo. Num dia

como este – com este mesmo candor – ferrei minha primeira baleia – um jovemarpoador de dezoito anos! Quarenta – quarenta – quarenta anos atrás! – atrás!Quarenta anos contínuos de caça! Quarenta anos de privações, perigos etormentas! Quarenta anos no oceano implacável! Há quarenta anos Ahababandonou a terra tranqüila, há quarenta anos, para guerrear nos horrores dasprofundezas! Sim, isso, Starbuck, desses quarenta anos não passei três em terra.Quando penso na vida que levei; na desolada solidão que tem sido; na muralha,na cidadela do isolamento de um Capitão, que admite pouco acesso à simpatiados verdes campos de fora – oh, fadiga! opressão! Escravidão de uma costa daGuiné, eis o comando solitário! – quando penso nisso tudo; antes eu apenassuspeitava, não era capaz de perceber com tanta clareza – e como, por quarentaanos, comi da ração seca e salgada – símbolo adequado para o seco alimento deminha alma! – quando todos os dias o mais pobre dos homens da terra tem àmão os frutos frescos e o pão fresco do mundo, em vez de minhas crostasemboloradas – distante, oceanos inteiros distante da esposa-menina com a qualme casei depois dos cinqüenta anos; e velejei para o cabo Horn no dia seguinte,deixando apenas um vestígio meu no travesseiro nupcial – esposa? esposa? – antesviúva de um marido vivo! Sim, enviuvei a pobre moça quando a desposei,Starbuck; e depois, a loucura, o frenesi, o sangue fervendo e o rosto queimando,com os quais, em mil descidas, o velho Ahab, espumando, perseguiufuriosamente sua presa – mais demônio do que um homem! – Sim, sim! Queidiota, durante quarenta anos – Idiota – Um velho idiota, isso é o que Ahab temsido! Por que essa porfia da caça? Por que o braço cansado e esgotado no remo,no ferro e na lança? Quanto mais rico ou melhor está Ahab agora? Olha. Ah,Starbuck! Não é penoso que, com este fardo pesado que carrego, uma pobreperna me tenha sido arrancada? Aqui, põe esse velho cabelo de lado; ele me cega

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de ver minhas próprias lágrimas. Mechas tão grisalhas só crescem das cinzas! Maspareço muito velho, muito, muito velho, Starbuck? Sinto-me muito fraco,curvado, corcunda, como se eu fosse Adão cambaleando sob os séculosacumulados desde o Paraíso. Deus! Deus! Deus! – Parte o meu coração! – Destroçao meu cérebro! – Escárnio! Escárnio! Escárnio amargo e mordaz dos cabelosgrisalhos, já vivi o suficiente para tê-los; e, assim, parecer e sentir-meintoleravelmente velho? Mais perto! Vem mais perto de mim, Starbuck; deixa-mecontemplar um olho humano; é melhor do que contemplar o mar ou o céu;melhor do que contemplar Deus. Em nome da terra verdejante; em nome dalareira acesa! Esse é o espelho mágico, homem; vejo a minha esposa e o meufilho em teu olho. Não, não; fica a bordo, a bordo! – não desças ao mar quandoeu for; quando o estigmatizado Ahab der caça a Moby Dick. Tal risco não deve serteu. Não, não! Não, pela casa longínqua que vejo em teu olho!”

“Oh, meu Capitão! Meu Capitão! Nobre alma! Grande e velho coração, afinal!Por que deveria alguém dar caça a esse peixe maldito! Vem comigo! Fujamosdestas águas mortíferas! Voltemos para casa! Starbuck também tem esposa e filho– esposa e filho de sua fraterna, afetuosa e brejeira juventude; como os teus,senhor, são a esposa e o filho da tua terna, nostálgica e paterna velhice! Embora!Vamos embora! – deixa-me alterar a rota agora mesmo! Com que alegria, comque regozijo, ó, meu Capitão, aproaríamos para ver a velha Nantucket outra vez!Acredito, senhor, que há dias límpidos e azuis como este também emNantucket.”

“Sim, há, claro que há. Já os vi – certos dias de verão, pela manhã. Quase aesta hora – sim, é hora da sesta agora – o menino acorda alegre; senta-se na cama;e a mãe lhe fala de mim, do velho canibal que sou, de como estou longe sobre asprofundezas, mas que ainda voltarei para brincar com ele.”

“É a minha Mary, a minha própria Mary! Ela prometeu que meu filho serialevado todas as manhãs à colina para ser o primeiro a avistar a vela de seu pai!Sim, sim! Basta! Está decidido! Rumo a Nantucket! Vem, meu capitão, estuda arota e vamos embora! Olha, olha! O rosto do menino na janela! A mão do meninona colina!”

Mas o olhar de Ahab afastou-se; como uma árvore arruinada, tremeu, deixandocair sua última maçã, apodrecida, no chão.

“Que coisa é essa, que coisa sem nome, inescrutável, sobrenatural é essa; quefraudulento e secreto senhor e mestre, cruel e impiedoso imperador me domina;que contra todos os afetos e desejos naturais eu me sinta empurrado epressionado e forçado o tempo todo; imprudentemente pronto àquilo que nomeu próprio coração natural jamais ousei e ousaria? É Ahab, Ahab? Sou eu, Deus,ou quem é que ergue esse braço? Mas se o grande sol não se move por si; se é

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como um garoto perdido no céu; se nem uma simples estrela se mexe, salvo poruma força invisível; como pode então esse pequeno coração bater; esse pequenocérebro pensar pensamentos, a não ser que Deus o faça bater, faça-o pensar, faça-o viver, e não eu? Céus! Homem, somos postos a girar e girar neste mundo, comoaquele molinete, e o Destino é a alavanca. E o tempo todo, oh! Eis o céusorridente, eis o oceano inquieto! Olha! Vê aquela albacora! Quem a fez perseguire apanhar aquele peixe-voador? Para onde vão os assassinos, homem? A quemcabe condenar, quando o próprio juiz é levado ao tribunal? Mas o vento estácalmo, calmo, e o céu parece calmo; e a brisa está perfumada agora, como sesoprasse de uma campina longínqua; estiveram cortando feno em algum lugarnas encostas dos Andes, Starbuck, e os ceifeiros dormem agora sobre o fenorecém-cortado. Dormem? Sim, por mais que labutemos, todos afinal dormiremosno campo. Dormiremos? Sim, e criaremos ferrugem no verdor; como no anopassado as foices deixadas esquecidas em meio ao trigo quase todo ceifado –Starbuck!”

Porém, lívido como um cadáver, em seu desespero, o Imediato havia seretirado.

Ahab atravessou o convés para olhar do outro lado; mas se assustou diante dedois olhos fixos refletidos na água. Fedallah, imóvel, estava debruçado sobre amesma amurada.

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133 A CAÇADA – PRIMEIRO DIA

Naquela noite, durante a vigília da meia-noite, quando o velho – como era porvezes seu costume – se afastou da escotilha onde se inclinava e seguiu para seuburaco de sustentação, lançou o rosto para a frente de súbito, farejando a brisamarítima como faria um cão de bordo sagaz, ao aproximar-se de uma ilhaselvagem. Declarou que alguma baleia devia estar por perto. Em breve aquelecheiro peculiar, por vezes exalado a grande distância pelo cachalote vivo, tornava-se perceptível a toda a vigília; e nenhum marinheiro se surpreendeu quando,depois de inspecionar a bússola e a grimpa, e de verificar com a precisão possívela direção do cheiro, Ahab ordenou rapidamente que a rota do navio fosselevemente alterada e as velas reduzidas.

A extrema prudência com que ditara esses movimentos foi suficientementeprovada ao amanhecer, mediante a aparição, bem perpendicular à proa, de umalonga faixa lustrosa no mar, acetinada como óleo, e que lembrava, pelas pregasplissadas das águas que a bordejavam, a lisa superfície, como que metálica, dealguma veloz racha de maré na foz de um rio profundo e veloz.

“Aos topos de mastro! Chamai todos os marinheiros!”Tonitruando no convés do castelo de proa, com as extremidades de três

alavancas agrupadas, Daggoo acordou os que dormiam com tal estrondo de JuízoFinal, que eles pareceram evaporar da escotilha, tão depressa apareceram com asroupas na mão.

“Que vedes?”, gritou Ahab, levando o rosto ao céu.“Nada, nada, senhor!”, foi o grito que veio de cima como resposta.“Içar os joanetes! – Cutelos! Em cima, embaixo e dos dois lados!”Com todas as velas desfraldadas, ele desprendeu a corda de segurança,

destinada a suspendê-lo até a gávea do mastaréu do sobrejoanete; e em poucosmomentos estavam a içá-lo para lá, quando, a dois terços do caminho para cima,enquanto olhava para o espaço vazio entre a gávea do mastro grande e a vela dejoanete, ele alteou um grito de gaivota no ar: “Lá ela sopra! – lá ela sopra! Umacorcova como uma colina de neve! É Moby Dick!”

Incendiados pelo grito que parecia ter sido proferido simultaneamente pelostrês vigias, os marinheiros do convés correram ao cordame para ver a famosabaleia que perseguiam há tanto tempo. Ahab ocupara agora seu poleiro de

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destino, alguns pés acima dos demais vigias, com Tashtego logo abaixo dele, notopo do mastaréu de joanete, de modo que a cabeça do Índio estava quase nomesmo nível do calcanhar de Ahab. Dessa altura, a baleia foi vista mais ou menosuma milha adiante, a cada oscilação do mar revelando sua enorme corcovareluzente e soprando regularmente seu jato silencioso no ar. Para os crédulosmarujos parecia o mesmo sopro silencioso que se vira tempos atrás à luz do luarno Atlântico e no Índico.

“E nenhum de vós a viu antes?”, gritou Ahab, chamando os homensempoleirados à sua volta.

“Eu a vi quase no mesmo instante que o Capitão Ahab a viu, senhor, e gritei”,disse Tashtego.

“Não foi ao mesmo tempo; não foi – não, o dobrão é meu, o Destino reservouo dobrão para mim. Para mim apenas; nenhum de vós poderia ter avistado aBaleia Branca primeiro. Lá ela sopra! Lá ela sopra! – lá ela sopra! Ali, outra vez! –ali, outra vez!”, ele gritou com entoações longas, prolongadas e metódicas, aocompasso dos prolongados jatos visíveis da baleia. “Vai mergulhar! Ferrar oscutelos! Arriar os joanetes! Preparar três botes. Senhor Starbuck, não te esqueças,fica a bordo e cuida do navio. Timão ali! Virar de ló, virar um ponto de ló! Assim;firme, homem, firme! Lá está a cauda! Não, não; apenas água preta! Todos osbotes estão prontos? Todos a postos, todos a postos! Desce-me, senhor Starbuck;mais baixo, mais baixo – rápido, mais rápido!”, e deslizou pelo ar até o convés.

“Ele segue direto a sotavento, senhor”, gritou Stubb, “bem à nossa frente; nãopode ter visto o navio ainda.”

“Cala-te, homem! A postos para bracear! Leme a sotavento! – Bracear! A todo opano! – a todo o pano! Assim, está bem! Os botes, os botes!”

Logo todos os botes, menos o de Starbuck, foram arriados; todas as velascolocadas – todos os remos postos em manejo; agitando a água, disparandovelozmente a sotavento; com Ahab à cabeça do assalto. Um pálido clarão mortaliluminou os olhos encovados de Fedallah; um movimento horrível contorceu-lhea boca.

Como silenciosas conchas de náutilo, suas proas leves apressavam-se através domar; mas apenas lentamente se aproximavam do inimigo. E à medida que seaproximavam o oceano tornava-se cada vez mais liso; parecia desenrolar umtapete sobre as ondas; parecia uma pradaria ao meio-dia, tão serenamente seestendia. Finalmente, o caçador ofegante chegou tão perto de sua aparentementeincauta presa, que toda a sua deslumbrante corcova se fez visível, deslizando pelomar como uma coisa isolada, sempre envolta num anel da mais fina, felpuda eesverdeada espuma. Ele viu intricadas e imensas rugas da cabeça que se projetavamais à frente. Adiante, distante nas águas suaves do tapete turco, seguia a

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fulgurante sombra branca da imensa fronte leitosa, com um jovial murmúrio demúsica acompanhando o vulto; e, atrás, as águas azuis corriam entrelaçadas parao vale movente de seu rastro vigoroso; e, pelos flancos, bolhas cintilantes surgiame dançavam em seu caminho. Mas essas eram estouradas pelas garras ligeiras decentenas de aves alegres que ora cobriam a água de suave plumagem, oraseguiam em seu bater intermitente de asas; e, como o mastro de bandeira queassoma do casco pintado de um galeão, a comprida haste partida de uma lançarecente se projetava do dorso da baleia branca; e, de vez em quando, uma dasaves da nuvem de garras ligeiras, que pairava e voava de um lado para o outropor sobre o peixe como um dossel, pousava silenciosa e balançava na haste daslongas penas da cauda a tremular como pendões.

Uma alegria tranqüila – uma gigantesca suavidade de repouso na velocidadetomou conta da baleia que deslizava. Nem o touro branco Júpiter nadando paralonge com a Europa raptada; ela, agarrada a seus graciosos chifres; e ele, comadoráveis olhos maliciosos, obliquamente dirigidos à donzela; fugindo com umasuave e encantadora rapidez direto para a alcova nupcial em Creta; nem Jove,nem aquela grande majestade Suprema! sobrepujava a gloriosa Baleia Branca, quetão divinamente nadava.

De cada flanco macio – a par com as ondas partidas, que mal a banhavam,logo refluíam para longe –, de cada flanco iluminado, a baleia esparzia encantos.Não é de admirar que houvesse entre os caçadores alguns que, indizivelmenteatraídos e seduzidos por toda aquela serenidade, tivessem se aventurado a atacá-la; mas fatalmente descobriam que tal quietude era apenas a vestimenta dostornados. Porém, tranqüila, sedutoramente tranqüila, ó, baleia!, continuas adeslizar para os que te vêem pela primeira vez, pouco importando quantos, dessamesma maneira, possas ter iludido e destruído antes.

E assim, através da serena tranqüilidade do mar tropical, por entre ondas cujosaplausos foram suspensos por um excessivo enlevo, Moby Dick avançava, sempreocultando os terrores abundantes de seu corpo submerso, escondendo totalmentea abominável contorção de sua mandíbula. Mas, de repente, sua parte dianteiraergueu-se lentamente na água; por um instante, todo o corpo marmóreo formouum enorme arco, como a Ponte Natural de Virginia e, à guisa de advertência,agitando os estandartes da cauda no ar, o grande deus se revelou, mergulhou esumiu da vista. Pairando em repouso e fazendo encolher de súbito as asas, asbrancas aves marinhas refrearam-se ansiosas sobre a piscina agitada que a baleiadeixara.

Com os remos arvorados, as pás para baixo, as escotas de suas velas frouxas, ostrês botes flutuavam em silêncio, aguardando o reaparecimento de Moby Dick.

“Uma hora”, disse Ahab, cravado em pé na popa de seu bote; e olhou para

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além do lugar da baleia, em direção aos sombrios espaços azuis e ao vazio vasto esedutor a sotavento. Foi apenas um instante; pois de novo os seus olhospareceram revolver-se em sua cabeça, enquanto percorria o círculo de água. Abrisa refrescou; o mar começou a intumescer-se.

“Os pássaros! – os pássaros!”, gritou Tashtego.Em longa fila Indiana, como garças levantando vôo, as aves brancas voavam

agora todas em direção ao bote de Ahab; quando, a uma distância de poucasjardas, começaram a se alvoroçar sobre a água, dando voltas e mais voltas comalegres gritos expectantes. Seus olhos eram mais aguçados que os do homem;Ahab não percebia nenhum sinal no oceano. Mas subitamente, examinando oabismo com mais minúcia, viu surgindo das profundezas uma intensa manchabranca, não maior do que uma doninha branca, ascendendo com prodigiosaceleridade e ganhando volume à medida que subia, até que se virou, e entãoapareceram distintamente duas longas e arqueadas fileiras de dentes brancos,brilhantes, emersas do fundo indistinto. Eram a boca aberta e as volutas damandíbula de Moby Dick; seu corpo imenso, à sombra, ainda um tanto mescladoao azul do mar. A boca cintilante se escancarou abaixo do bote como ummausoléu de mármore de portões abertos; e, dando uma longa e oblíqua vogacom seu remo-piloto, Ahab fez girar a embarcação, afastando-a da terrívelaparição. Então, chamando Fedallah para trocar de posição com ele,encaminhou-se para a proa e, tomando o arpão de Perth, ordenou à tripulaçãoque pegasse nos remos e se preparasse para recuar.

Ora, em virtude dessa rotação do barco sobre seu eixo, a proa, porantecipação, ficou de frente para a cabeça da baleia enquanto ainda estavasubmersa. Mas, como se percebesse o estratagema, Moby Dick, com a malignainteligência a ele atribuída, transplantou-se lateralmente, por assim dizer, numinstante, arremessando perpendicularmente a cabeça franzida por debaixo dobote.

De ponta a ponta; através de cada tábua e cada viga, o bote vibrou por uminstante; estando a baleia sobre o próprio dorso, como um tubarão pronto paramorder, lenta e sensivelmente levando a proa para dentro de sua boca, de talmodo que a voluta da mandíbula, comprida e estreita, se fez em arco no ar, e umdos dentes agarrou-se a uma toleteira. O branco madrepérola, azulado, de dentroda mandíbula estava a seis polegadas da cabeça de Ahab, e a uma altura aindamaior. Nessa posição, a Baleia Branca sacudia agora o cedro leve como um gatocruel sacode tranqüilamente um rato. Sem espanto nos olhos, Fedallah observoua cena e cruzou os braços; mas a tripulação amarelo-tigrina tropeçava por cimadas próprias cabeças para chegar ao extremo da popa.

E aqui, no momento em que as elásticas amuradas do bote eram rachadas por

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dentro e por fora, enquanto a baleia se distraía com a embarcação daquelamaneira diabólica; e uma vez que, com seu corpo submerso abaixo do bote, elanão pudesse ser fustigada pela proa, pois esta estava quase que, por assim dizer,dentro dela; e uma vez que os demais botes involuntariamente pararam, como seestivessem diante de uma crise impossível de enfrentar, então coube aomonomaníaco Ahab, furioso com a provocativa proximidade de seu inimigo, queo colocou vivo e sem recursos entre as próprias mandíbulas que tanto odiava;enfurecido com tudo isso, coube a ele agarrar o longo osso com suas própriasmãos e forçá-lo loucamente a soltá-lo de seu afinco. Enquanto ele assim lutava emvão, a mandíbula fugiu-lhe das mãos; as frágeis amuradas envergaram, ruíram earrebentaram, quando ambas as mandíbulas, como uma enorme tesoura,deslizando à ré, cortaram a embarcação em duas, e se fecharam rapidamente nomar, a meio caminho dos dois destroços. Estes flutuaram lateralmente, as partesrompidas sob a água, e a tripulação na popa destroçada agarrando-se à amurada eesforçando-se em alcançar os remos para atá-los de través.

Naquele momento inicial, antes que o bote fosse destroçado, Ahab, o primeiroa perceber a intenção da baleia, pela maneira astuta com que levantara a cabeça,movimento que afrouxou seu controle por instantes; naquele momento, sua mãofez um último esforço para impulsionar o bote para longe do alcance da mordida.Mas, deslizando ainda mais para dentro da boca da baleia e caindo para o lado aodeslizar, o bote puxou-lhe a mão do maxilar; cuspiu-o para fora quando ele seinclinava para puxar; e assim ele caiu de cara na água.

Afastando-se de sua presa em meio à espuma, Moby Dick estava agora a umacerta distância, arremetendo verticalmente a oblonga cabeça branca para cima epara baixo nos vagalhões; e ao mesmo tempo revolvendo lentamente todo o seucorpo esguio; de tal modo que enquanto a enorme fronte enrugada se levantava –cerca de vinte ou mais pés acima da água –, os vagalhões que agora seavolumavam, com todas as demais ondas confluentes, quebravam-se contra eledeslumbrantes; alanceando vingativo as águas estilhaçadas ainda mais para o alto.{a} Assim, numa tempestade, as vagas meio estorvadas do Canal da Manchaapenas recuam da base do Eddystone, para recobrir triunfantes o cimo com suasurriada.

Mas, logo retomando sua posição horizontal, Moby Dick pôs-se a nadarvelozmente ao redor da náufraga tripulação; agitando de lado a água em seurastro vingador, como se estivesse preparando outro assalto ainda mais mortal. Avisão do bote destroçado parecia enlouquecê-lo, como o sangue das uvas e dasamoras lançadas aos elefantes de Antíoco no livro dos Macabeus. Enquanto isso,Ahab, quase sufocado pela espuma da cauda insolente da baleia e mutiladodemais para nadar – muito embora pudesse se manter boiando mesmo no meio

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de um redemoinho como aquele; a cabeça do impotente Ahab foi vista, comouma bolha sem rumo que o menor choque acidental podia estourar. Da popa empedaços, Fedallah observava-o com calma e sem curiosidade; a tripulaçãoagarrada à outra extremidade à deriva não podia socorrê-lo; era mais do quesuficiente para eles a segurança de si mesmos. Pois tão redondamente pavorosoera o aspecto da Baleia Branca, e tão planetariamente rápidas eram as voltas cadavez mais constritas que fazia, que ela parecia investir horizontalmente contraeles. E embora os outros botes, sãos e salvos, ainda rondassem por perto; eles nãose atreviam a remar até o redemoinho para o ataque, temerosos de que essepudesse ser o sinal para o imediato aniquilamento dos náufragos em perigo, Ahabe todos; nesse caso, nem eles teriam esperança de escapar. Com olhos diligentes,então, permaneceram do lado de fora da zona de terror, cujo centro se tornaraentão a cabeça do velho.

Nesse meio-tempo, desde o início tudo fora avistado dos topos de mastro donavio; e, cruzando as vergas, o navio dirigira-se para a cena; estava tão pertoagora que Ahab os chamou da água; – “Navegai para…”, porém, naquelemomento uma onda vinda de Moby Dick encobriu-o, submergindo-o então. Mas,lutando para se libertar e emergindo por acaso numa crista alta, gritou, “Navegaipara a baleia! – Afugentai-a!”.

A proa do Pequod foi apontada; e, rompendo o círculo encantado, o navioefetivamente afastou a Baleia Branca de sua vítima. Enquanto ela se afastava, osbotes acorreram para o salvamento.

Arrastado para dentro do bote de Stubb com os olhos cegos e injetados, com abranca salmoura acumulando-se nas rugas; a longa tensão da força física de Ahabentrou em colapso e, impotente, ele se rendeu à sina de seu corpo: por algumtempo, permaneceu deitado todo moído no fundo do bote de Stubb, como setivesse sido pisado por manadas de elefantes. De seu interior saíam lamentosinomináveis, como ruídos de ravinas desoladas.

Mas a intensidade de sua prostração física não fez mais do que abreviá-la. Empouco mais do que um instante, grandes corações por vezes condensam numaúnica dor aguda a soma total das dores superficiais suavemente difusas em vidasinteiras de homens mais fracos. E assim, tais corações, embora breves em cadasofrimento; ainda assim, caso os deuses o decretem, agregam durante a vida todauma era de infortúnios, toda feita de intensidades instantâneas; pois, mesmo emseus centros não assinalados, essas nobres naturezas englobam circunferênciasinteiras de almas inferiores.

“O arpão”, disse Ahab, soerguendo-se e apoiando-se pesadamente num braçodobrado – “está a salvo?”

“Sim, senhor, pois não foi arremessado; está ali”, disse Stubb mostrando-o.

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“Colocai-o à minha frente – estão faltando homens?”“Um, dois, três, quatro, cinco – havia cinco remos e aqui estão cinco homens.”“Isso é bom – ajuda-me, homem; quero ficar de pé. Assim, assim, já a vejo! Ali!

Ali! Continua a ir para sotavento; que sopro alto! – tira as mãos de mim! A seivaeterna corre pelos ossos de Ahab de novo! Desfraldar velas; aos remos; ao leme!”

Sucede com freqüência, quando um bote se perde, que sua tripulaçãorecolhida por outro bote ajude no trabalho deste; e a caçada continua com o quese chama de bancadas duplas. Assim foi então. Mas a força adicional do bote nãose igualava à força adicional da baleia, pois ela parecia ter triplicado a bancada desuas barbatanas; nadando a uma velocidade que demonstrava claramente que, seagora, naquelas circunstâncias, continuasse, a caçada seria indefinidamenteprolongada, se não desesperançada; tampouco poderia uma tripulação suportarpor um tão longo tempo um tal esforço constante e intenso nos remos; coisasomente tolerável no caso de uma breve vicissitude. O próprio navio, como sóiacontecer, oferecia o meio mais promissor de chegar à presa. Em conseqüência,os botes encaminharam-se para ele e logo foram suspensos pelos guindastes – asduas partes do bote destroçado tendo sido previamente recolhidas –, e depois,içando tudo para o costado, e acumulando as velas ao alto e desdobrando-as decada lado com os cutelos, como as asas articuladas de um albatroz; o Pequodcorreu a sotavento no rastro de Moby Dick. Com os já bem conhecidos emetódicos intervalos, o sopro reluzente do cachalote foi regularmente anunciadopelos topos de mastro guarnecidos; e, quando reportavam que ele haviasubmergido, Ahab marcava o tempo, e, caminhando pelo convés, o relógio dabitácula à mão, logo que o último segundo do tempo previsto expirava, ouvia-se asua voz – “De quem é o dobrão agora? Estais a vê-lo?”, e se a resposta fosse “Não,senhor!”, imediatamente ordenava que o içassem para seu poleiro. Desse modopassou-se o dia; Ahab, ora no alto e imóvel; ora caminhando impacientementepelo convés.

Enquanto assim caminhava, sem dizer palavra, exceto para gritar aos homensno alto, ou para ordenar que içassem uma vela ainda mais alto, ou para que outrafosse desfraldada – andando assim de um lado para outro, debaixo de seu chapéucaído, a cada volta passava por seu próprio bote destroçado, largado notombadilho, e lá estava em posição invertida; proa quebrada contra popaarrebentada. Por fim, parou diante dele; e, assim como num céu já carregadonovos bandos de nuvens flutuam sobrepostos aos primeiros, também ao rosto dovelho se sobrepôs uma melancolia suplementar.

Stubb viu-o parar; e talvez querendo demonstrar, não por vaidade, sua própriacoragem intacta e assim manter um lugar de honra no espírito de seu Capitão,adiantou-se, e, olhando para os destroços, exclamou – “O cardo que o asno

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recusou; picou-lhe demais a boca, senhor; ha! ha!”.“Que coisa desalmada é essa que ri diante de uma ruína? Homem, homem! Se

eu não soubesse que és corajoso como o fogo intrépido (e tão mecânico), seriacapaz de jurar que és um covarde. Nem gemidos nem risos devem ser ouvidosdiante da ruína.”

“Sim, senhor”, disse Starbuck aproximando-se, “é uma visão solene; umaugúrio, um mau augúrio.”

“Augúrio? Augúrio? – um dicionário! Se os deuses pensam em falar direto como homem, eles honestamente falarão sem rodeios; não acenarão com a cabeça,nem farão insinuações obscuras de velhas senhoras – Ide! Vós sois os dois pólosopostos da mesma coisa; Starbuck é Stubb ao contrário, e Stubb é Starbuck; e vóssois toda a humanidade; e Ahab está sozinho entre milhões de pessoas na terra,sem deuses nem homens por vizinhos! Frio, frio – estou tremendo! –, comoassim? Ó, de cima! Estais a vê-la? Avisai a cada sopro, mesmo que sopre dez vezespor segundo!”

O dia estava quase no fim; apenas a bainha de sua veste dourada aindafarfalhava. Em breve, estaria quase escuro, mas os vigias ainda permaneciam nospostos.

“Já não se pode ver o sopro agora, senhor – muito escuro”, gritou uma voz doar.

“Para onde apontava na última aparição?”“Como antes, senhor – direto para sotavento.”“Bom! Irá mais devagar, agora que é noite. Abaixa os sobrejoanetes e os cutelos

de joanete, senhor Starbuck. Não devemos ultrapassá-la antes da manhã; ela estáfazendo uma travessia agora e talvez pare um pouco. Timoneiro! Mantém-no devento em popa! Ó, de cima! Descei! – Senhor Stubb, manda um marinheiro novopara o topo do mastro de proa e cuida para que sempre esteja guarnecido até demanhã.” Em seguida, indo na direção do dobrão no mastro grande – “Homens,esse ouro é meu, pois eu o mereci; mas eu o deixarei aqui até que a Baleia Brancaesteja morta; e depois, aquele de vós que primeiro a avistar no dia em que formorta, esse ouro será desse homem; e se nesse dia eu a anunciar de novo, então,dez vezes o seu valor será dividido entre vós todos! Ide agora! – O convés é vosso,senhor.”

E dizendo isso colocou-se a meio caminho da escotilha e, baixando o chapéu,ali se manteve até a alvorada, exceto quando se levantava, de tempo em tempo,para ver como passava a noite.

{a} Esse movimento é característico do cachalote. Recebe o nome de alancear por ser semelhante aobalancear preliminar da lança baleeira, no exercício chamado alancear, previamente descrito. Com esse

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movimento a baleia deve ver melhor e com maior abrangência quaisquer objetos à sua volta. [N. A.]

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134 A CAÇADA – SEGUNDO DIA

Ao romper do dia, os três topos de mastro estavam de novo pontualmenteguarnecidos.

“Estais a vê-la?”, gritou Ahab, depois de deixar passar um pouco de tempo paraa luz se espalhar.

“Não se vê nada, senhor.”“Todos os marinheiros no convés, e navegar a todo o pano! Ela vai mais rápido

do que eu imaginava – os joanetes! –, sim, deveriam ter ficado desfraldadosdurante a noite. Mas não importa – é só um descanso antes da corrida.”

Diga-se de passagem que essa pertinaz perseguição de uma baleia emparticular, ininterrupta durante o dia e a noite, e ao longo da noite adentrando odia, não é uma coisa sem precedentes na pesca dos Mares do Sul. Pois tal é aadmirável perícia, a previdente experiência e a invencível confiança adquiridapor alguns grandes gênios naturais dentre os comandantes de Nantucket; que apartir da simples observação de uma baleia quando avistada pela última vez,poderão, em certas circunstâncias, antecipar com bastante precisão tanto adireção na qual ela continuará a nadar, fora do alcance dos olhos, durante algumtempo, quanto, com igual precisão, sua provável velocidade durante esse período.E, nesses casos, de certo modo como o piloto, quando prestes a perder de vista acosta, cujo contorno geral ele conhece bem e à qual deseja regressar em breve,mas num ponto mais distante; assim como esse piloto mantém sua bússola à mãoe toma a posição precisa do cabo no momento visível, para chegar com maiorcerteza ao invisível promontório remoto, a ser eventualmente visitado: assimtambém age o caçador, perto da bússola, com a baleia; pois, depois de serperseguida e assinalada com diligência durante várias horas à luz do dia, então,quando a noite oculta o peixe, o futuro rastro da criatura na escuridão é quase tãocerto para o espírito sagaz do caçador quanto o é a costa para o piloto. Assim,para a espantosa perícia do caçador, a efemeridade proverbial de algo escrito naágua, um rastro, é, para todos os fins desejados, quase tão digno de confiançaquanto a terra firme. E assim como o poderoso Leviatã de ferro das modernasferrovias é tão bem conhecido em todo seu percurso que, de relógio na mão, oshomens medem sua progressão como os médicos o fazem com os pulsos dosbebês; e afirmam com facilidade que o trem na ida ou o trem na volta chegará

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em tal ou qual estação a tal ou qual hora; quase do mesmo modo, há ocasiões emque os nativos de Nantucket cronometram esse outro Leviatã das profundezas,segundo os humores observados em sua velocidade; e dizem a si mesmos dali aquantas horas tal baleia terá percorrido duzentas milhas, ou estará prestes achegar a esse ou àquele grau de latitude ou longitude. Mas, para que ao fim e aocabo logre tal precisão, o vento e o mar precisam ser aliados do baleeiro; pois deque serviria ao marinheiro a favor ou contra o vento a perícia que lhe asseguraque estará exatamente a noventa e três léguas e um quarto do porto? Dessasafirmações podem-se inferir muitas sutis questões colaterais relacionadas à caçade baleias.

O navio deu uma arrancada; deixando no mar um sulco semelhante ao deuma bala de canhão extraviada, quando se torna uma relha de arado e revira umcampo plano.

“Pelo sal e pelo cânhamo!”, gritou Stubb. “Mas esse movimento veloz doconvés dá arrepio nas pernas e pontadas no coração do sujeito. Este navio e eusomos dois bravos camaradas! – Ha! Ha! Que alguém me pegue e me atire decostas para o mar – pelos carvalhos! Minha espinha é uma quilha. Ha! Ha!Marchamos neste passo que não deixa poeira para trás!”

“Lá ela sopra! – ela sopra! – ela sopra! – bem à frente!”, foi o grito do topo domastro.

“Sim, sim”, gritou Stubb, “eu sabia – você não pode escapar –, sopre eestilhace o seu jato, ó, baleia! O próprio demônio enfurecido está no seu encalço!Sopre a sua trombeta – inche seus pulmões! –, Ahab há de conter seu sangue,como um moleiro fecha sua comporta no riacho!”

E Stubb falava por quase toda a tripulação. O frenesi da caça, a essa altura,borbulhava neles, como vinho velho que torna a fermentar. Quaisquer quefossem os pálidos temores e pressentimentos que alguns deles pudessem tersentido antes; estes foram não só afastados em razão do crescente pavor quesentiam de Ahab, mas também dispersados e afugentados para todos os lados,como as tímidas lebres da pradaria debandando diante da arremetida do bisão. Amão do Destino lhes arrebatara as almas; e em razão dos emocionantes perigosdo dia anterior; da tortura do suspense da noite passada; da maneira resoluta,intrépida, cega e imprudente com que a embarcação furiosa arfava em direção aoalvo célere; por todas essas coisas, seus corações corriam desenfreados como bolasnuma pista. O vento estufava as grandes velas e precipitava o navio com invisíveise irresistíveis braços; isso parecia o símbolo daquela força oculta que osescravizava àquela carreira.

Eram um só homem, não trinta. Pois como o único navio que os conduzia atodos; embora formado de elementos todos contrastantes – madeira de carvalho,

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bordo e pinho; ferro, piche e cânhamo –, todas essas coisas se combinavam numúnico casco concreto, que percorria sua rota, equilibrado e dirigido pelacomprida quilha central; assim também as individualidades da tripulação, acoragem de um homem, o medo de outro; culpados e inocentes, todas asvariedades fundiam-se na unidade e dirigiam-se ao objetivo fatal que Ahab, seuúnico senhor e quilha, lhes apontava.

O cordame vivia. Os topos de mastro, como os cimos de altas palmeiras,estavam inteiramente tufados de braços e pernas. Presos a uma verga com umamão, alguns estendiam a outra, agitando-a impacientes; outros, protegendo osolhos da fulgurante luz do sol, sentavam-se bem longe das vergas balouçantes;todos os mastros estavam cheios de mortais, prontos e a postos para o seudestino. Ah! Como se empenharam através daquele azul infinito em procurar acoisa que os poderia destruir!

“Por que não a anunciais, se a estais vendo?”, gritou Ahab, quando, depois deum lapso de alguns minutos desde o primeiro anúncio, não se escutou mais nada.“Içai-me, homens; fostes enganados; não é Moby Dick que solta um único jatodesse modo e depois desaparece.”

E assim era; em sua impetuosa ansiedade, os homens haviam confundidoqualquer outra coisa com o jato da baleia, como logo em seguida se comprovou;pois mal Ahab chegara a seu poleiro; mal a corda fora amarrada à cavilha noconvés, ele deu o tom à orquestra, que fez vibrar o ar como descargascombinadas de rifles. Ouviu-se o “Ó, lá” triunfal de trinta pulmões de couro debode quando – muito mais próximo ao navio do que o local do jato imaginário, amenos de uma milha – Moby Dick em carne e osso assomou aos olhos! Pois não épor quaisquer sopros tranqüilos e indolentes; nem pelo esguicho pacífico da fontemística de sua cabeça que a Baleia Branca agora revela sua proximidade; maspelo fenômeno muito mais grandioso do salto. Irrompendo das longínquasprofundezas no ápice de sua velocidade, o Cachalote expõe toda a suacorpulência no elemento puro do ar e, fazendo surgir uma montanha dedeslumbrante espuma, revela a sua posição a uma distância de sete milhas oumais. Em tais momentos, as ondas que promove, em estilhas furiosas, parecemsua crina; em alguns casos, o salto é seu modo de desafiar.

“Lá ela salta! Lá ela salta!”, foi o grito quando, em suas incomensuráveisbravatas, a Baleia Branca lançou-se ao Céu como um salmão. Vista assim tão derepente, no puro azul do mar, e realçada pela orla ainda mais azul dofirmamento, a surriada que a baleia ergueu, naquele momento, brilhou eresplandeceu insuportavelmente como uma geleira; e lá ficou aos poucos sedesfazendo da primeira fulgurante intensidade, chegando à fosca nebulosidadede uma chuva que avança sobre o vale.

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“Sim, dá o teu último salto até o sol, Moby Dick!”, gritou Ahab. “Tua hora eteu arpão estão próximos! – Todos para baixo e fica só um homem à proa. Osbotes! – Todos a postos!”

Deixando de lado as aborrecidas escadas de cordame dos brandais, os homens,feito estrelas cadentes, deslizaram para o convés por patarrases e adriças isolados;enquanto Ahab, com menos velocidade, mas ainda assim depressa, foi arriado deseu poleiro.

“Descei!”, gritou assim que chegou ao seu bote – um de reserva, aparelhado natarde anterior. “Senhor Starbuck, o navio é teu – afasta-te dos botes, masmantém-te próximo. Todos para baixo!”

Como para neles incutir um ligeiro terror, sendo desta vez o primeiro a atacar,Moby Dick deu meia-volta e avançou sobre as três tripulações. O bote de Ahabestava no centro; e, incitando os homens, disse-lhes que pegaria a baleia cabeça acabeça – ou seja, remaria direto para sua fronte –, algo não pouco comum; pois,dentro de um certo limite, tal manobra exclui a investida possível pela visãolateral da baleia. Mas antes que chegassem a esse limite próximo, e enquanto ostrês botes ainda estavam tão visíveis quanto os três mastros do navio aos seusolhos; a Baleia Branca, espumando seu rastro a uma velocidade raivosa e, comoque num instante, arremetendo contra os botes com as mandíbulas abertas euma cauda fustigante, armou uma batalha terrível por todos os lados; e, sem seimportar com os ferros arremessados contra si de todos os botes, parecia tercomo único propósito aniquilar cada uma das tábuas de que os botes eram feitos.Mas habilmente manobrados, rodopiando incessantemente como cavalostreinados no campo de batalha; os botes esquivaram-se por um momento;embora, por vezes, apenas pela espessura de uma tábua; enquanto, durante otempo todo, o grito de guerra sobrenatural de Ahab reduzia todos os outros gritosa fiapos.

Mas, afinal, em suas indistinguíveis evoluções, a Baleia Branca tanto cruzou erecruzou e de mil modos emaranhou-se no seio das três ostaxas que agora aprendiam, que estas se encurtaram e, por si próprias, rebocaram os botes zelososna direção dos ferros nela cravados; muito embora a baleia, por um momento, seafastasse um pouco, como se fosse voltar ao combate com uma arremetida aindamais terrível. Aproveitando a oportunidade, Ahab a princípio soltou mais aostaxa: e depois puxou-a e sacudiu-a depressa mais uma vez – com a esperança dedesemaranhar alguns nós – quando, vejam! – um espetáculo mais feroz do que osdentes dos tubarões prontos para o combate!

Presos e retorcidos – enroscados nos labirintos da ostaxa, os arpões e as lançassoltos, com todas as suas farpas e pontas encrespadas, vieram cintilando eensangüentados de encontro às castanhas de ferro da proa do bote de Ahab. Só

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havia uma coisa a fazer. Pegando a faca do bote, cortou por dentro – de lado alado – e depois por fora – os feixes de aço; puxou a ostaxa que passava por trás,levou-a para dentro do bote, para o remador da proa e, em seguida, rasgandoduas vezes a corda perto das castanhas – deixou cair os feixes de açointerceptados no mar; e tudo foi preso novamente. Naquele instante, a BaleiaBranca fez um súbito ataque aos emaranhados remanescentes das demais ostaxas;fazendo isso, arrastou irresistivelmente para sua cauda os botes de Stubb e Flask,mais implicados; fê-los colidir um contra o outro, como duas conchas que rolamna praia batida pelas ondas, e, então, mergulhando nas profundezas do mar,desapareceu num fervilhante redemoinho, no qual, por algum tempo, osfragmentos do perfumado cedro dos destroços dançavam em círculos, como asraspas de noz-moscada numa tigela de ponche misturado às pressas.

Enquanto as duas tripulações ainda rodopiavam nas águas, procurandoagarrar-se às selhas de corda, aos remos e outros equipamentos flutuantes,enquanto o pequeno Flask emergia e afundava feito bobo, como um frasco vazio,jogando as pernas ao ar, para fugir às terríveis mandíbulas dos tubarões; e Stubbgritava ansioso que o recolhessem; e enquanto a ostaxa do velho, agora rompida,permitia que ele a jogasse naquela lagoa cremosa para salvar quem pudesse; –naquela simultaneidade tremenda de milhares de perigos concretos – o boteainda ileso de Ahab parecia ser puxado para o Céu por fios invisíveis – quando,como uma flecha, disparando perpendicularmente do mar, a Baleia Brancaimprimiu sua imensa fronte contra o fundo do bote e fê-lo rodopiar várias vezesno ar; até que o bote caiu – amurada para baixo – e Ahab e seus homens lutarampara sair de baixo dele, como focas de uma caverna à beira-mar.

O primeiro ímpeto da baleia emergente – alterando-lhe a direção ao chegar àsuperfície – lançou-a involuntariamente a uma pequena distância do centro dadestruição que causara; e, dando-lhe as costas, ela ficou por um momentotateando com a cauda de um lado para o outro; e, cada vez que um remo errante,um pedaço de tábua, o menor fragmento ou lasca dos botes lhe tocava a pele, suacauda rapidamente se retraía e aparecia de lado, castigando o mar. Mas logo,como se estivesse afinal satisfeita com a conclusão de seu trabalho, deu impulso àsua fronte rugosa através do oceano, e arrastando consigo as linhas emaranhadasprosseguiu em sua rota a sotavento com a velocidade metódica de um viajante.

Como antes, tendo toda a luta sob vigia, o navio zeloso de novo acudiu emsocorro e, arriando um bote, apanhou marinheiros, selhas, remos e o que mais,flutuando, pudesse ser resgatado e conduziu-os em segurança para o convés.Alguns ombros, pulsos e calcanhares torcidos; lívidas contusões; arpões e lançasentortados; cordas com nós inextricáveis; remos e tábuas despedaçados; tudo issoestava ali; mas nenhum dano fatal, nem mesmo grave, parecia ter ocorrido a

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ninguém. Como Fedallah no dia anterior, Ahab foi encontrado agarradopenosamente a uma metade de seu bote, que de todo modo acabou lhepropiciando uma bóia bastante confortável; e não o prostrou como no acidentedo dia anterior.

Mas, quando socorrido a bordo, todos os olhos se fixaram nele; em vez de semanter em pé sozinho, estava como pendurado ao ombro de Starbuck, que foraentão o primeiro a assisti-lo. Sua perna de marfim fora despedaçada, restandoapenas uma pequena lasca pontiaguda.

“Sim, sim, Starbuck, é bom um apoio de vez em quando, para quem quer quese apóie; quisera o velho Ahab ter se apoiado mais vezes do que se apoiou.”

“A ponteira não agüentou, senhor”, disse o carpinteiro, aproximando-se agora;“fiz um bom trabalho com essa perna.”

“Mas, espero, nenhum osso quebrado, senhor”, disse Stubb com sincerapreocupação.

“Sim! E todo quebrado em pedaços, Stubb! – Olha para isto – Mas mesmo comum osso quebrado, o velho Ahab está intacto; e não considero meus ossos vivosmais meus do que esse osso morto que se perdeu. Nem baleia branca, nemhomem, nem demônio algum pode sequer roçar o velho Ahab em seu ser real einacessível. Haverá algum prumo que possa tocar o longínquo fundo, algummastro que possa roçar o longínquo teto? – Ó, de cima! Que direção?”

“A sotavento, senhor.”“Leme a barlavento, então; a todo o pano, guardiões do navio! Descei o resto

dos botes de reserva e equipai-os – vá, senhor Starbuck, reúna a tripulação dosbotes.”

“Deixa-me primeiro ajudá-lo ir até a amurada, senhor.”“Oh, oh, oh! Como esta lasca me fere agora! Maldito destino! Que o capitão de

alma inconquistável tenha um imediato tão miserável!”“Senhor?”“Meu corpo, homem, não tu. Dá-me qualquer coisa que sirva de bengala –

isso, essa lança partida servirá. Reúne os homens. Estou certo de que ainda não ovi. Pelos céus, não pode ser! – desaparecido? – rápido! Chama-os.”

O pensamento ocorrido ao velho era real. Ao reunir a companhia, o Parse nãoestava lá.

“O Parse!”, gritou Stubb – “deve ter ficado preso…”“Que o vômito negro te sufoque! – correi, todos vós de cima, de baixo, das

cabines, do castelo de proa – encontrai-o – não se foi – não se foi!”Mas depressa voltaram com a notícia de que o Parse não fora encontrado em

nenhum lugar.

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“Sim, sim”, disse Stubb – “ficou preso no emaranhado de sua ostaxa – pareceu-me vê-lo ser arrastado para o fundo.”

“Minha ostaxa! Minha ostaxa? Embora? – embora? O que significa estapalavra? – Que sino fúnebre ressoa nela, que faz o velho Ahab tremer como sefosse um campanário? O arpão também! – Remexei na lixeira ali – Está aí? – Oferro forjado, homens, da baleia branca – não, não, não – Tolo maldito! Esta mãoo lançou! – Está no peixe! – Ó, de cima! Não a percais de vista – Depressa! – Todosos marinheiros para aparelhar os botes – Juntai os remos – Arpoadores! Os ferros,os ferros! – Içai os sobrejoanetes mais alto – Um puxão em todas as escotas! – Ó,do leme! Assim! Assim por toda a tua vida! Farei dez vezes a volta aoincomensurável mundo; sim, e mergulharei todas as vezes, mas ainda hei dematá-la!”

“Grande Deus! Mostrai-vos por um instante apenas!”, exclamou Starbuck;“nunca, nunca a capturarás, velho – Em nome de Jesus, basta! É pior do que aloucura do demônio. Dois dias de caçada; duas vezes reduzido a destroços; tuaprópria perna de novo arrancada de ti; tua sombra maldita desaparecida – todosos bons anjos te saraivando de avisos: – o que mais queres? Continuaremos aperseguir esse peixe assassino até que ele afunde o último homem? Seremosdragados por ele até o fundo do mar? Seremos arrastados por ele até o mundodos infernos? Oh, oh! – É uma impiedade e uma blasfêmia continuar a caçá-lo!”

“Starbuck, nos últimos tempos tenho me sentido estranhamente impelido a ti;desde a hora em que nós dois vimos – sabes o quê, nos olhos um do outro. Mas,neste assunto da baleia, seja o teu rosto para mim como a palma desta mão – umespaço em branco, sem lábios e sem feições. Ahab é para sempre Ahab, homem!Esta cena toda é um decreto imutável. Foi ensaiada por ti e por mim um bilhãode anos antes de este oceano se mover. Tolo! Sou o tenente das Parcas; ajo sobsuas ordens. E vê, lacaio, se obedeces às minhas! – Ficai à minha volta, homens.Vedes um velho reduzido a um coto; apoiado a uma lança partida; escorado porum pé só. É Ahab – a sua parte corpórea; mas a alma de Ahab é uma centopéiaque se move sobre centenas de pernas. Sinto-me fatigado, meio retorcido, comoas cordas que rebocam fragatas desmastreadas numa tormenta; tal pode ser meuaspecto. Mas antes de arrebentar ouvireis meu estalar; e, até ouvirdes isso, sabeique o cabo de Ahab continua a rebocar seu propósito. Acreditais, homens, emcoisas chamadas augúrios? Então ride alto e pedi bis! Pois, antes de afundar, ascoisas que afundam sobem à tona duas vezes; depois sobem de novo, paraafundar para sempre. Assim também Moby Dick – durante dois dias subiu –,amanhã será o terceiro. Sim, homens, subirá mais uma vez – mas apenas parasoprar seu último jato! Senti-vos valentes, homens, valentes?”

“Como o intrépido fogo”, gritou Stubb.

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“E igualmente maquinais”, murmurou Ahab. Então, enquanto os homensforam à proa, continuou a murmurar: – “As coisas chamadas augúrios! E ontemeu disse o mesmo a Starbuck ali, em relação a meu bote quebrado. Oh! Com quecoragem procuro expulsar do coração dos outros aquilo que está tão aferrado aomeu! – o Parse – o Parse! – se foi, se foi? E ele deveria ir primeiro: – mas deveriaser visto de novo antes de eu morrer – Como assim? – eis um enigma agora quepoderia desconcertar todos os advogados apoiados pelos fantasmas de toda alinhagem dos juízes: – como o bico de um falcão, fere-me o cérebro. Porém, euhei de, eu hei de decifrá-lo!”

Quando desceu a escuridão, a baleia ainda era avistada a sotavento.Assim, mais uma vez as velas foram encurtadas e tudo se passou quase como

na noite anterior; apenas o barulho dos martelos e o zumbido da pedra de amolarse ouviram até quase o amanhecer, enquanto os homens trabalhavam à luz daslamparinas no completo e cuidadoso aparelhamento dos botes de reserva eafiavam as novas armas para o dia seguinte. Entretanto, da quilha quebrada daembarcação destroçada de Ahab, o carpinteiro fez-lhe outra perna; enquanto,como na noite anterior, o chapéu desabado de Ahab descansou imóvel em suaescotilha; seu olhar secreto, heliotrópico, procurava com antecedência oquadrante; devidamente dirigido ao oriente, à espera do primeiro raio de sol.

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135 A CAÇADA – TERCEIRO DIA

A manhã do terceiro dia alvorece clara e calma, e mais uma vez o solitáriomarujo noturno, no topo do mastro de proa, rendeu-se a bandos de vigiasdiurnos, que juncaram todos os mastros e quase todas as vergas.

“Estais a vê-la?”, gritou Ahab, mas a baleia ainda não aparecia à vista.“Em seu rastro infalível, no entanto; apenas segui o rastro. Ó, do leme; firme,

como estás e tens sido. Que lindo dia outra vez! Fosse este um mundo recém-criado, planejado para casa de veraneio dos anjos, e esta a manhã em que as suasportas se abriam, um dia mais esplêndido não teria raiado neste mundo; eis umassunto para pensar, tivesse Ahab tempo para pensar; mas Ahab nunca pensa;apenas sente, sente, sente; isso já é bastante tormentoso para um mortal! Pensar éaudácia. Só Deus tem esse direito e privilégio. Pensar é, ou deveria ser, coisaserena e tranqüila; e os nossos pobres corações palpitam e os nossos pobrescérebros pulsam demais para isso. E, no entanto, por vezes, achei que o meucérebro estava muito calmo – uma calma gelada, assim este velho crânio estala,como um copo cujo conteúdo se fez gelo e o despedaçou. E estes cabelos aindaestão crescendo agora; crescendo neste instante e é o calor que os faz crescer;mas não!, é como aquela relva vulgar que cresceria em qualquer parte, entre asfissuras de terra do gelo da Groenlândia ou na lava do Vesúvio. Como o ventoimpetuoso os sopra; fustiga-os em mim, do mesmo modo que os farrapos dasvelas rasgadas açoitam o navio balouçante ao qual se agarram. Um vento perversoque antes, sem dúvida, soprou em celas e corredores de prisões e enfermarias dehospitais e, depois de os ter arejado, vem aqui soprar tão inocente quanto umcordeiro. Basta! – Está maculado. Se eu fosse o vento, não sopraria mais nestemundo tão vil e miserável. Eu rastejaria para qualquer lugar, qualquer caverna, edela faria meu retiro. E, no entanto, que coisa tão nobre e heróica é o vento!Quem já o subjugou? Em todas as lutas, dá o último e mais amargo golpe. Correide lança em punho contra ele e apenas o atravessareis. Ha! Um vento covarde queaçoita homens totalmente nus, mas não quer receber um único golpe. MesmoAhab é mais corajoso – mais nobre do que isso. Que o vento agora tivesse umcorpo; contudo, todas as coisas que mais exasperam e ultrajam o homem mortal,todas são incorpóreas, mas incorpóreas como objetos e não como agentes. Háuma diferença muito especial, muito hábil, oh, muito perniciosa! E, no entanto,

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repito e juro agora, há algo de glorioso e misericordioso no vento. Esses calorososAlísios, ao menos, que sopram sempre para a frente nos céus límpidos com umabrandura firme e inabalável; e não se desviam de seu alvo, por mais que asdesprezíveis correntes marítimas possam mudar de rumo e virar de bordo, e osmais poderosos Mississippis da terra possam adelgaçar-se em seus desvios, semsaber ao certo aonde ir por fim. E pelos eternos Pólos! Esses mesmos Alísios queimpelem o meu bom navio sempre para frente; esses Alísios, ou alguma coisaparecida – alguma coisa igualmente imutável e decidida impele a quilha daminha alma! Vamos então! Ó, de cima! Que vedes?”

“Nada, senhor.”“Nada! E é quase meio-dia! É o dobrão a pedir esmola! Olhai para o sol! Sim,

sim, deve ser isso. Já lhe passei à frente. Como posso estar-lhe à frente? Sim, é eleque está me perseguindo agora e não eu a ele – isso é mau; mas, também, eudeveria ter desconfiado. Idiota! As ostaxas – os arpões que ele arrasta. Sim, sim,ultrapassei-o ontem à noite. Meia-volta! Meia-volta! Descei todos, salvo os gajeiroshabituais. Homens, bracejai!”

Arrumando como o fez, o vento de algum modo soprava no tombadilho doPequod, de modo que, apontado em direção contrária, o navio bracejadonavegava contra a brisa, enquanto esta revolvia o creme de seu próprio rastrobranco.

“Contra o vento ele agora navega em direção à mandíbula escancarada”,murmurou para si Starbuck, enquanto enrolava a escora recém-puxada da vergamestra na amurada. “Que Deus nos guarde, mas já sinto os meus ossos úmidos edentro de mim molhar-me a carne. Receio que esteja desobedecendo ao meuDeus ao obedecer a ele!”

“A postos para içar-me!”, gritou Ahab, avançando para o cesto de cânhamo.“Devemos encontrá-lo em breve.”

“Sim, sim, senhor”, e sem demora Starbuck fez cumprir a ordem de Ahab emais uma vez Ahab balançou no alto.

Passou-se uma hora inteira; adornada pela folha de ouro dos séculos. O próprioTempo agora segurava a respiração de tanta expectativa. Mas, por fim, a uns trêspontos da proa a sotavento, Ahab avistou de novo o jato e, no mesmo instante,dos três topos de mastro, surgiram três gritos como que expelidos por línguas defogo.

“Frente a frente, volto a encontrar-te pela terceira vez, Moby Dick! Ó, doconvés! – bracejar mais; levai-o para o olho do vento. Ainda está muito longe paradescer, senhor Starbuck. As velas tremem! Cuida do timoneiro com um pilão!Isso, isso; ele corre, e preciso descer. Mas deixa-me dar mais uma bela olhadadaqui de cima para o mar; há tempo para isso. Um espetáculo tão antigo e, no

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entanto, de certa forma, tão novo; sim, e não mudou nada desde que o vi pelaprimeira vez quando garoto das dunas de Nantucket! O mesmo! – O mesmo! – Omesmo para Noé e para mim. Há borrifadas leves a sotavento. Adoráveissotaventos! Devem levar a algum lugar – a algo mais do que a terra comum, commais louros que os loureiros. Sotavento! A baleia branca vai para esse lado; olhaentão para barlavento; a melhor região, não fosse a mais dolorosa. Mas adeus,adeus, velho topo de mastro! Que é isto? – verde? Sim, minúsculos musgos nestasfissuras contorcidas. Nenhum verdor do tempo marca a cabeça de Ahab! Eis adiferença entre a velhice do homem e da matéria. Mas, sim, velho mastro, nósdois envelhecemos juntos; mas em bom estado estão, contudo, os nossos cascos,não é, meu navio? Sim, uma perna a menos, nada mais. Pelos céus, esta madeiramorta tem o melhor da minha carne viva em todos os sentidos. Não posso mecomparar; e vi navios feitos de árvores mortas durarem mais do que as vidas dehomens feitos da mais vital matéria de pais bem vivos. Foi isso que ele disse? Eledeveria ir antes de mim, o meu piloto; e, no entanto, ser visto de novo? Masonde? Terei olhos no fundo do mar, caso eu desça aquelas intermináveis escadas?E durante a noite toda me afastei dele, onde quer que tenha afundado. Sim, sim,como tantos outros, disseste a verdade atroz a teu respeito, ó, Parse; mas, quantoa Ahab, não acertaste o alvo. Adeus, topo de mastro – fica de olho na baleia,durante a minha ausência. Amanhã conversaremos; não, esta noite, quando abaleia branca estiver estendida aí, amarrada pela cabeça e pela cauda.”

Deu a ordem; e, sempre olhando à sua volta, desceu firme cortando o ar azulaté o convés.

No tempo devido os botes foram arriados; mas, estando de pé na popa de suachalupa, Ahab ainda pairou sobre o ponto de descida, acenou para o imediato, –que segurava um dos cabos da talha no convés – e pediu-lhe que parasse.

“Starbuck!”“Senhor?”“Pela terceira vez o navio da minha alma parte nesta viagem, Starbuck.”“Sim, senhor; tal é o teu desejo.”“Alguns navios zarpam de seus portos e desaparecem para sempre, Starbuck!”“É verdade, senhor; a mais triste das verdades.”“Certos homens morrem na vazante; outros, na maré baixa; outros, na maré

alta; – e eu me sinto agora como uma onda que fosse somente sua cristacrespada, Starbuck. Estou velho – dá-me um aperto de mão, homem.”

Suas mãos se encontraram; seus olhos se uniram; as lágrimas de Starbuckeram a cola.

“Oh, meu capitão, meu capitão! – nobre coração – não vai – não vai! Vê, é um

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homem valente que chora; como é grande a agonia da persuasão!”“Arriar!” – gritou Ahab, repelindo o braço do oficial. “Tripulação a postos!”Num instante o bote estava remando bem abaixo da popa.“Tubarões ! Tubarões!”, gritou uma voz da janela baixa da cabine. “Ó, mestre,

meu mestre, volta!”Mas Ahab nada ouviu; pois ele próprio estava gritando naquele momento; e o

navio partiu.Porém a voz dizia a verdade; pois, mal se afastara do navio, numerosos

tubarões, que pareciam surgir das águas escuras embaixo do casco, mordiscavammaliciosamente as pás dos remos, toda vez que estas mergulhavam na água; e,dessa forma, acompanharam o bote com suas mordidas. Não era raro isso sucederaos botes baleeiros naquelas águas infestadas deles; os tubarões, por vezes,seguindo em seu encalço da mesma forma presciente como os abutres pairamsobre as bandeiras dos regimentos em marcha no Oriente. Mas aqueles eram osprimeiros tubarões vistos pelo Pequod desde que a Baleia Branca fora avistadapela primeira vez; e fosse porque a tripulação de Ahab era de bárbaros de coramarela tigrina e, portanto, sua carne mais almiscarada aos sentidos dos tubarões– uma coisa que se sabe que os afeta –, fosse lá o que fosse, eles pareciam seguiraquele bote sem molestar os outros.

“Coração de aço temperado!”, murmurou Starbuck olhando para o costado eseguindo com os olhos o bote que desaparecia, “pode ainda permanecer valentediante de tal espetáculo? – abaixar a tua quilha entre os vorazes tubarões e serseguido por eles de boca escancarada na caça; sendo este o terceiro e crítico dia?– Pois, quando se passam três dias a fio em uma perseguição contínua e intensa;esteja certo de ser o primeiro a manhã, o segundo a tarde, e o terceiro a noite e ofim da empreitada – seja qual for este fim. Oh! Meu Deus! O que é isso que meaterroriza e me deixa tão mortalmente calmo, embora na expectativa – preso aotopo de um estremecimento! As coisas do futuro flutuam diante de mim, comoesboços vazios e esqueletos; todo o passado está de certa forma obscuro. Mary,menina! Desapareces em glórias desbotadas atrás de mim. Menino! Parece-me verapenas os teus olhos, que se tornaram maravilhosamente azuis. Os mais estranhosproblemas da vida parecem se esclarecer; apenas nuvens pairam entre eles – seráo fim da minha jornada se aproximando? Minhas pernas estão fracas, como as dealguém que caminhou o dia inteiro. Sente o teu coração – Ainda bate? – Mexe-te,Starbuck! Afugenta-os – Vamos, vamos! Fala em voz alta! – Ó, do mastro! Estaisvendo a mão do meu filho na colina? – Louco – ó, de cima! – Não percais os botesde vista – Observai a baleia! Ei! De novo! – Enxotai o falcão! Vê! Está dandobicadas – está rasgando a veleta!”, apontando para a bandeira vermelhatremulando no mastro grande. “Ha! Ele a está levando embora! – Onde está o

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velho agora? Estás vendo esse espetáculo, ó, Ahab! – Tremor, tremor!”Os botes não tinham ido muito longe, quando, por um sinal do topo de mastro

– um braço apontado para baixo –, Ahab soube que a baleia mergulhara; mas,querendo ficar perto dela na próxima subida, conservou seu curso em relação aocostado do navio; a tripulação enfeitiçada observava o mais profundo silêncio,enquanto as ondas de proa seguiam martelando contra a proa oposta.

“Fincai, fincai os vossos pregos, ó, ondas! Fincai até a cabeça! Mas bateis numacoisa sem tampa; nem caixão, nem carro fúnebre podem ser meus: – apenascânhamo pode me matar! Ha, ha!”

De repente, as águas à sua volta começaram a engrossar aos poucos emgrandes círculos; depois, agitaram-se depressa, como se escorregassem dosflancos de um bloco de gelo submerso, que emergisse rapidamente à superfície.Então um estrondo surdo; um murmúrio subterrâneo; e todos prenderam arespiração; quando, enosada de cordas penduradas, de arpões e de lanças, umaimensa forma se atirou ao comprido, mas obliquamente, no mar. Envolta numfino véu de névoa, pairou por um instante no arco-íris do ar; e então afundou devolta no abismo. Atiradas a trinta pés de altura, as águas cintilaram por uminstante como feixes de fontes; depois se desfizeram numa chuva de flocos,deixando o círculo da superfície cremoso como leite fresco em volta do tronco demármore da baleia.

“Avançar!”, gritou Ahab aos remadores e os botes lançaram-se ao ataque; mas,enfurecido pelos ferros da véspera que lhe corroíam a carne, Moby Dick pareciapossuído, ao mesmo tempo, por todos os anjos caídos do céu. Os largos feixes detendões ligados que se espalhavam em sua imensa fronte branca sob a peletransparente pareciam entrelaçados; quando apareciam de frente, sacudindo acauda em meio aos botes; e, mais uma vez, desferiu mangualadas que osafastaram uns dos outros; fazendo tombar na água os ferros e as lanças dos botesdos dois imediatos, estraçalhando um lado da parte superior das suas proas, masdeixando o de Ahab quase sem um arranhão.

Enquanto Daggoo e Tashtego seguravam as tábuas quebradas; e enquanto abaleia se afastava, voltava e mostrava um flanco inteiro ao passar por eles;naquele momento, ouviu-se um grito. Amarrado ao redor do dorso do peixe;enlaçado nas múltiplas voltas em que, na noite anterior, a baleia enrolara asostaxas ao seu redor; viu-se o corpo meio dilacerado do Parse; os seus trajesnegros reduzidos a farrapos, os seus olhos arregalados fixos e inteiros sobre ovelho Ahab.

O arpão caiu da sua mão.“Enganado, enganado!”, inspirando uma longa respiração. “Sim, Parse! Vejo-te

de novo – Sim, e tu vais antes; e então esse, esse é o carro fúnebre que

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prometeste. Mas eu me agarro até a última letra da tua palavra. Onde está osegundo carro fúnebre? Ao navio, oficiais! Esses botes estão inutilizados;consertai-os depressa, se possível, e voltai para junto de mim; se não, basta queseja Ahab a morrer – Sentados, homens! Ao primeiro que apenas tentar pular dobote onde estou, eu o arpoarei. Já não sois outros homens, mas os meus braços epernas; portanto, obedecei-me – Onde está a baleia? Mergulhou de novo?”

Mas ele olhava muito próximo ao bote; pois, como se estivesse decidido a fugircom o cadáver que levava, e como se o local específico do último encontro fossesó um estágio de sua viagem a sotavento, Moby Dick agora nadavatranqüilamente para a frente; e tinha quase ultrapassado o navio – que até entãonavegava na direção contrária, embora naquele momento detivesse sua marcha.Parecia nadar com a velocidade máxima, concentrado agora apenas em seguir emseu próprio caminho sem desvios pelo mar.

“Oh, Ahab!”, gritou Starbuck, “Não é tarde demais, mesmo agora, no terceirodia, para desistir. Vê! Moby Dick não te procura. És tu, na tua loucura, és tu, queo procuras!”

Armando a vela para o vento que surgia, o bote solitário foi rapidamenteimpelido para sotavento, tanto por remos como por velas. E quando, por fim,Ahab deslizava próximo à embarcação, tão próximo que podia ver o rosto deStarbuck debruçado na amurada, disse-lhe que virasse a embarcação e o seguisse,não muito depressa, a uma distância judiciosa. Olhando para cima, viu Tashtego,Queequeg e Daggoo subindo ansiosos nos três topos de mastro; enquanto osremadores balançavam nos dois botes arrebentados que acabavam de ser içadospara o costado e se ocupavam em consertá-los. Um depois do outro, através dasvigias, à medida que passava célere, viu num relance Stubb e Flask ocupados noconvés em meio a feixes de novos ferros e lanças. Enquanto via tudo isso;enquanto ouvia os martelos nos botes despedaçados; outros martelos bemdiferentes pareciam cravar um prego em seu coração. Mas voltou ao combate. Evendo que a veleta, ou bandeira, não estava mais no topo do mastro grande,gritou para Tashtego, que acabara de chegar ao alto, que descesse de novo e fossebuscar outra bandeira, martelo e pregos para pregá-la ao mastro.

Fosse porque estava exaurida pelos três dias da caça contínua, bem como pelaresistência imposta a seu avanço pelo estorvo que carregava atado a si; fosseporque trazia consigo falsidade e malícia latentes; fosse qual fosse a verdade, amarcha da Baleia Branca começou então a diminuir, como parecia, em relação aobote que tão rapidamente se aproximava; embora, a bem da verdade, sua últimacorrida não tivesse sido tão prolongada quanto a anterior. E enquanto Ahabdeslizava sobre as ondas os implacáveis tubarões continuavam a acompanhá-lo; eatingiam tão pertinazes o bote; e mordiam tão ferrenhos os remos agitados, que

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as pás ficavam recortadas, mastigadas, soltando pequenas lascas no mar a cadavez que entravam na água.

“Não prestem atenção! Esses dentes só dão novos toletes aos remos. Força! Asmandíbulas dos tubarões são melhor apoio do que a água cedente.”

“Mas a cada mordida, senhor, as pás finas tornam-se cada vez menores!”“Durarão o tempo suficiente! Força! – Mas quem sabe” – murmurou – “se esses

tubarões nadam para se refestelar com a baleia ou com Ahab? – Mas, força! Sim,toda a força, agora – estamos nos aproximando. O leme! Tomai o leme; deixai-mepassar”, e, ao dizer isso, dois remadores ajudaram-no a ir para a proa do boteainda em movimento.

Por fim, quando a embarcação se projetou para um lado, correndo paralela aoflanco da Baleia Branca, esta pareceu estranhamente alheia ao seu avanço – comoa baleia às vezes faz – e Ahab ia bem dentro da vaporosa montanha de névoa,que, saindo do jato da baleia, envolvia em espirais a rocha de sua corcovaerodida; ela estava muito próxima a ele; quando, com o corpo arqueado para tráse os dois braços esticados para cima para equilibrar-se, ele arremessou seu ferrocruel e sua maldição ainda mais cruel na odiada baleia. Quando aço e maldiçãose afundaram na sua carne, como se dragados por um pântano, Moby Dickcontorceu-se de lado; com espasmos rolou o flanco mais próximo contra a proa e,sem o arrombar, tão subitamente fez o bote virar que, não fosse pela parteelevada da amurada à qual estava agarrado, Ahab teria sido jogado mais uma vezao mar. Sucedeu que os três remadores – que não previram o instante preciso doarremesso e estavam despreparados, portanto, para seus efeitos – foram atiradospara fora; mas tão logo caíram, num instante dois deles agarraram-se de novo àamurada e, erguidos ao nível do bote pela crista de uma onda, atiraram-se paradentro dele; enquanto o terceiro homem, caindo desamparado à ré, aindaflutuava e nadava.

Quase no mesmo instante, com uma poderosa decisão de imediata e absolutarapidez, a Baleia Branca disparou pelo oceano tumultuado. Mas quando Ahabordenou que o timoneiro tomasse novas voltas da ostaxa e as segurasse; então,deu o comando para que a tripulação voltasse aos bancos e rebocasse o bote emdireção a seu alvo; no instante em que a ostaxa traiçoeira sentiu a dupla tensão eesforço, ela se partiu no vazio!

“Que coisa se quebra em mim? Um tendão se parte! – está inteiro outra vez;remos, remos! Jogai-vos sobre ela!”

Ouvindo o ímpeto tremendo do bote singrando o mar, a baleia deu uma voltamostrando a sua fronte branca para defender-se; mas, nessa evolução, vendo ocasco negro do navio que se aproximava; aparentemente percebendo nele aorigem de todas as suas perseguições; concluindo – talvez – que se tratava de um

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maior e mais nobre inimigo; de súbito se lançou contra a proa que avançava,arrumando as mandíbulas em meio ao furioso dilúvio de espuma.

Ahab cambaleou; a mão lhe bateu na testa. “Estou ficando cego; marinheiros!Estendei as mãos à minha frente para que eu possa tatear o meu caminho. Énoite?”

“A baleia! O navio!”, gritaram os remadores, encolhendo-se.“Remos! Remos! Inclina-te até as tuas profundezas, ó, mar, antes que seja tarde

demais, para que Ahab possa deslizar esta última, última vez, em direção a seualvo! Eu vejo: o navio! o navio! Continuai, meus homens! Não quereis salvar omeu navio?”

Mas, enquanto os remadores vogavam violentamente o bote através do marque os fustigava, duas tábuas da extremidade da proa, antes atingidas pela baleia,estouraram e quase num instante o bote, momentaneamente incapacitado, ficouquase ao nível das ondas; com sua tripulação, que, quase submersa, patinhava,tentando bravamente obstruir o vão e baldear a água que jorrava.

Enquanto isso, por um breve momento de atenção, o martelo de Tashtegoficou suspenso em sua mão no topo do mastro; e a bandeira vermelha,envolvendo-o parcialmente como um manto, desprendeu-se dele então como seupróprio coração que levantasse vôo; enquanto Starbuck e Stubb, de pé sob ogurupés, viam ao mesmo tempo que ele o monstro em sua carreira.

“A baleia, a baleia! Leme a barlavento, leme a barlavento! Ah, todos vós,amáveis forças do ar, abraçai-me com força! Que Starbuck não morra, se tem demorrer, em um ataque de desmaio, como uma mulher. Leme a barlavento, repito– seus idiotas, a mandíbula! a mandíbula! Será esse o fim de todas as minhasveementes preces? Da fidelidade de toda uma vida? Ó, Ahab, Ahab, vê teutrabalho. Firme! Timoneiro, firme. Não, não! Leme a barlavento de novo! Ela sevira para nos enfrentar! Oh, a sua fronte implacável vem em direção a alguémcujo dever lhe diz que não pode fugir. Meu Deus, fica perto de mim agora!”

“Não perto de mim, mas embaixo de mim, seja quem for que agora ajudaráStubb; pois Stubb também está preso aqui. Rio loucamente de você, baleia queagora se ri! Quem alguma vez ajudou Stubb, ou manteve Stubb acordado, a nãoser os próprios olhos esbugalhados de Stubb? E agora Stubb se deita num colchãoque é macio demais; se apenas fosse empalhado com gravetos! Rio loucamente devocê, baleia que agora se ri! E olhem aqui, sol, lua e estrelas! Vocês são osassassinos do melhor companheiro que já espirrou a própria alma. Apesar detudo eu beberia vocês, se apenas me passassem a taça! Oh, oh! Oh, oh! Você,baleia que ri! Mas logo terá o suficiente para engolir! Por que não foge, ó, Ahab?Por mim, tiro os sapatos e a jaqueta; que Stubb morra de calças! Mas é umamorte muito bolorenta e salgada – Cerejas! Cerejas! Cerejas! Oh, Flask! Uma só

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cereja vermelha antes de morrermos!”“Cerejas? Quem me dera estar no lugar onde crescem. Oh, Stubb, espero que a

minha pobre mãe tenha recebido uma parte do meu pagamento por isso; senão,receberá poucos cobres, agora que a viagem terminou.”

Na proa do navio quase todos os homens do mar permaneciam agora imóveis;martelos, pedaços de tábua, lanças e arpões, todos mecanicamente presos àsmãos, como se tivessem abandonado suas variadas tarefas; todos os olharesenfeitiçados recaíam sobre a baleia que, de um lado para outro movendoestranhamente sua predestinada cabeça, lançava à frente, na corrida, uma imensafaixa de espuma que se espalhava em semicírculo. Desforra, célere vingança eeterna malícia distribuíam-se por suas formas e, apesar de tudo o que o homemmortal pudesse fazer, o sólido contraforte branco de sua fronte chocou-se contra aproa a estibordo do navio, fazendo cambalear homens e pranchas. Alguns caíramde cara. Como borlas deslocadas, as cabeças dos arpoadores no alto tremeramsobre seus pescoços taurinos. Pela fenda ouviram a água jorrar, como as correntesdas montanhas nas ravinas.

“O navio! O carro fúnebre! – o segundo carro fúnebre!”, gritou Ahab do bote;“a madeira só podia ser americana!”

Mergulhando por baixo do navio que afundava, a baleia correu trêmula aolongo da quilha; virando-se debaixo da água, contudo, voltou depressa àsuperfície, longe da proa, a bombordo, mas a poucas jardas do bote de Ahab,onde, por um momento, ficou imóvel.

“Retiro meu corpo do sol. Ó, Tashtego! Deixa-me ouvir o teu martelo. Ó, vós,três insubjugáveis espiráculos meus; tu, quilha intacta; e casco temente a Deussomente; tu, convés sólido, leme altivo e proa apontada ao Pólo – navio de mortegloriosa! Deves então morrer, e sem mim? É-me negado o último caro orgulhodos mais insignificantes capitães naufragados? Ó, morte solitária para uma vidasolitária! Ó, sinto agora que a minha maior grandeza está na minha maior dor. Ei,ei!, dos confins mais distantes despejai, ó, vós, intrépidas ondas de toda a minhavida pregressa, e coroai esse enorme vagalhão da minha morte! Em direção a tieu me jogo, baleia que tudo destrói, mas nada conquista; luto contigo até o fim;apunhalo-te do coração do inferno; em nome do ódio, cuspo-te o meu últimosuspiro. Que todos os caixões e os carros fúnebres afundem num charco! E, já quenenhum pode ser meu, que eu te arraste em pedaços enquanto prossigo em teuencalço, embora amarrado a ti, maldita baleia! Assim! Entrego a lança!”

O arpão foi arremessado; a baleia atingida avançou; com uma rapidezinflamada, a linha correu pela ranhura – emaranhou-se. Ahab curvou-se parasoltá-la; e soltou-a; mas a volta volante apanhou-o pelo pescoço e em silêncio,como os Turcos mudos estrangulam suas vítimas, foi atirado para fora do bote,

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antes que a tripulação percebesse que havia morrido. No instante seguinte, opesado nó corredio da ponta final da linha voou da selha vazia, derrubou umremador e, batendo no mar, desapareceu nas profundezas.

Por um instante a tripulação do bote permaneceu imóvel, em transe; depoiscaiu em si. “O navio? Grande Deus, onde está o navio?” Logo, através daatmosfera fosca e confusa, viram seu fantasma desvanecer-se, como nas brumasda Fata Morgana; apenas a parte superior dos mastros fora da água; enquanto,presos por encantamento, ou fidelidade, ou destino aos seus poleiros outroraelevados, os arpoadores pagãos mantinham sua vigilância náufraga sobre ooceano. E então círculos concêntricos envolveram o bote solitário e toda a suatripulação e cada remo flutuante e cada haste de lança e, levando a girar as coisasvivas e as inanimadas em volta de um único vórtice, fizeram desaparecer até amenor lasca do Pequod.

Mas – enquanto os últimos turbilhões se derramavam misturados sobre acabeça submersa do Índio no topo do mastro, deixando ainda visíveis algumaspolegadas do mastaréu ereto, junto com as longas jardas da bandeira, queondulava calmamente, por irônica coincidência, sobre as ondas destruidoras quequase a tocavam – naquele instante, um braço vermelho e um martelo pairavamerguidos no ar, em posição de pregar com firmeza a bandeira à verga queafundava. Um falcão marinho que ofensivamente seguira o mastro grande nadescida de sua morada natural entre as estrelas, bicando a bandeira e molestandoTashtego; ocorreu então que o tal pássaro interpôs a grande asa esvoaçante entreo martelo e a madeira; e, sentindo ao mesmo tempo aquela emoção etérea, oselvagem logo abaixo, submerso, no momento de sua morte, ali fincou estático omartelo; e assim, a ave do céu, com seu gralhar de arcanjo e seu bico imperialarremetido para o alto e todas as suas formas cativas, envolto pela bandeira deAhab, afundou com o navio, que, como Satã, não quis descer até o inferno semarrastar consigo uma parte vigorosa do céu, que assim lhe servisse de elmo.

Pequenas aves voavam agora gritando sobre o golfo ainda escancarado; umarebentação branca se abateu contra os seus lados íngremes; e então tudo desaboue o grande sudário do mar voltou a rolar como rolava há cinco mil anos.

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EPÍLOGO

“E só eu escapei para te contar.”Jó

O drama terminou. Por que então alguém se adianta? – Porque umsobreviveu ao naufrágio.

Sucedeu que, depois do desaparecimento do Parse, fui eu quem as Parcasescolheram para tomar o lugar do homem da proa do bote de Ahab, quando estehomem ocupou o posto vago; o mesmo homem que, quando, no último dia, ostrês marinheiros foram atirados para fora do bote balouçante, foi lançado à popa.Assim, flutuando à margem da cena seguinte, e com a mais absoluta perspectivadela, quando a sucção meio enfraquecida do navio afundado me atingiu, fuilentamente arrastado em direção ao vórtice que se fechava. Quando o alcancei,tinha se transformado em um charco cremoso. Dando voltas e mais voltas,aproximando-me cada vez mais da bolha negra, em forma de botão, do eixodaquele círculo vagaroso, como um novo Ixião eu girei. Até que, ao chegar aocentro vital, a bolha negra explodiu; e então, libertado pela mola engenhosa, eirrompendo com muita força, em razão de seu grande poder de flutuação, ocaixão salva-vidas surgiu longitudinalmente no mar, caiu e flutuou ao meu lado.Mantido à tona pelo caixão, por quase um dia e uma noite inteiros, flutuei sobreum calmo e fúnebre oceano. Os tubarões inofensivos deslizavam como setivessem cadeados nas bocas; os falcões selvagens voavam com os bicosembainhados. No segundo dia, uma vela aproximou-se mais e mais e recolheu-me afinal. Era Rachel, errante, que retrocedendo para procurar seus filhosperdidos, apenas encontrava um outro órfão.

FINIS

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FORTUNA CRÍTICA

SELEÇÃO, TRADUÇÃO E NOTAS BRUNO GAMBAROTTO

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MOBY DICK OU A BALEIAEVERT DUYCKINCK

Todos os leitores norte-americanos provavelmente atentaram à notícia de um casorecente da pesca baleeira que bem poderia abalar o pensamento, visto o quantonos deixou boquiabertos, não tivesse ele paralelo com outro bem conhecido –aquele do Essex de Nantucket, que ainda recebe o crivo de testemunhas vivas. Lê-se em uma narrativa publicada no Panama Herald (um jornal norte-americanodaquela região, ela própria uma das maravilhas de nosso tempo!), registrada talcomo saída dos próprios lábios do capitão da embarcação, John S. Deblois, que onavio Ann Alexander, de New Bedford, tendo deixado aquele porto em junho doano passado em direção às costumeiras complicações do serviço no Cabo Horn, eperdido um marujo de New Hampshire, àquelas alturas lançado para fora doconvés em uma tempestade, havia entrado em sua zona de caça no Pacífico e norecente mês de agosto navegava a uns poucos graus do Equador – um santuáriobem conhecido da baleia….

(Uma descrição detalhada do naufrágio do Ann Alexander, assaltado por umabaleia, será aqui omitida.)

Por uma singular coincidência, essa aventura extrema é, em muitos de seusdetalhes, a mesma catástrofe do novo livro do Sr. Melville, que é uma retomadahistórico-natural, filosófica e romântica do ser, dos hábitos, das maneiras e idéiasdo grande cachalote; de seus santuários e de suas origens; de suas associaçõescom o mundo das profundezas e com os não menos fantásticos indivíduos egrupos de indivíduos que o caçam através dos oceanos. Nada desse porte haviasido escrito antes a respeito da baleia; pois nenhum homem que tenha de uma sóvez presenciado tais lutas e pesado tão cuidadosamente tudo o que havia sidodito sobre o assunto, com iguais poderes de reflexão e percepção, tentara escreveralgo a respeito – uma vez que os trabalhos de Scoresby cobrem um ramodiferente e inferior da história. Para a mente popular, este livro de HermanMelville, a respeito do Leviatã das profundezas, é uma descoberta da HistóriaNatural que se assemelha, em geografia, ao que Colombo nos revelou com aAmérica. Qualquer um que leia este livro com a atenção que merece e, então,converse com os amigos e conhecidos mais bem informados que ainda não oleram, perceberá a extensão e a variedade do tratamento; enquanto homens deciência deverão admitir a originalidade de observação e especulação.

Um furioso e resoluto cachalote, tal como o que perseguiu e destruiu o AnnAlexander, é o herói, Moby Dick, do livro do Sr. Melville. O espírito de vingançacom que é caçado, que para o Capitão Deblois fora o incidente de um único

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porém memorável dia, é a paixão e a idéia que movem o Capitão Ahab doPequod por anos através de todos os mares do mundo. Junto com a açãomelodramática e o desenvolvimento espiritual do caráter de Ahab, estão incluídasuma investigação minuciosa e completa e uma descrição da baleia e de sua pesca.Eis uma descrição sucinta do volumoso e multifacetado livro.

Ele começa, após uma dedicatória a Nathaniel Hawthorne, com floreiospreliminares à maneira de Carlyle e de um “Doctor Etymology”, seguidos de umacentena ou mais de citações do “Velho Burton”, passagens de um caráter exóticoe conciso, de Jó e rei Alfredo a Miriam Coffin; em oposição ao velho estilo deScott, Cooper e outros, que distribuem tais floreios no início dos capítulos. Aquieles formam arranjo indeterminado, como a graça sobre o barril de porco deFranklin, e podem ser tomados como um tipo de angostura, um aperitivo queprovoca e faz crescer a imaginação, agitando-a em direção aos curiosos, chistosose sublimes tratados e reflexões que virão a seguir.

Antes de entrarmos em alto mar, transcorre algum tempo desde o primeirocapítulo; mas esse tempo é muito satisfatoriamente ocupado com algumasestranhíssimas, românticas e, sobretudo, bem-humoradas aventuras em NewBedford e Nantucket. Uma cena na Estalagem do Jato, localizada naquelaprimeira cidade, uma noite na cama com um ilhéu do Pacífico, e por fim umaaventura no oceano com um francês, envolvendo algumas baleias mortas noPacífico, levam o leitor a risadas dignas de Smollet. Talvez seja o caso deintroduzirmos esta última de uma vez. O Pequod, navio com que o leitor zarpade Nantucket, um dia encontra um baleeiro francês em circunstâncias peculiares,em calmaria, com duas carcaças de baleias presas a seu costado, que adesafortunada tripulação pescou, mortas em conflitos anteriores no oceano. OImediato, Stubb, subira a bordo da embarcação buscando informações para oCapitão Ahab, a respeito de Moby Dick, e retorna para obter âmbar-gris, umproduto encontrado no animal doente…

Uma dificuldade na avaliação deste livro, comum a um ou dois outros do Sr.Melville, advém do caráter duplo sob o qual eles se apresentam. Por um lado, sãoficções românticas; por outro, afirmações sobre fatos absolutos. Quando a isto sesoma o fato de que o romance se faz veículo de opinião e sátira através de umvéu alegórico mais ou menos opaco, como particularmente na metade final deMardi, e em certa medida neste mesmo volume, a dificuldade crítica aumentaconsideravelmente. Torna-se praticamente impossível submeter tais livros a umaclassificação distintiva de fato, ficção ou ensaio. Algo semelhante pode ser vistonos contos alemães de Jean Paul, com uma mistura de algo doutoral de Southey.Sob essas influências combinadas de observação pessoal, fidelidade presente à

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verdade local na descrição, um gosto pela leitura e pelo sentimento, um prazerda analogia chistosa, familiar e remota, uma ousadia inconseqüente nasespeculações, um descaso circunstancial com o gosto e o bem dizer, um retornoao refinado e eloqüente, este volume de Moby Dick pode ser dito o mais notávelprato do mar – uma caldeirada intelectual de romance, filosofia, história natural,boa escrita, bons sentimentos, más palavras –, mas, acima de tudo, a despeito dasincertezas todas, e a despeito do próprio autor, predominam suas agudasfaculdades perceptivas, presentes na intensa narração.

Há, evidentemente, dois, senão três livros em Moby Dick arrolados num só. OPrimeiro Livro podemos descrever como uma completa e exaustiva investigação,admiravelmente elaborada, do grande Cachalote. A informação é minuciosa,brilhantemente ilustrada, como deveria ser – a própria baleia generosamenteilumina a página noturna em que suas memórias são escritas – tem suaspassagens objetivas, seus toques de humor, suas exóticas sugestões, seus casosgeralmente pitorescos e ocasionalmente sublimes. Tudo isso é dado da maneiramais prazerosa em “A Baleia”. O Segundo Livro é o romance de Capitão Ahab,Queequeg, Tashtego, Pip & Companhia, que se faz de personagens mais oumenos espirituosas falando e agindo de modo estranho à conversa geral e comumdos conveses baleeiros. Eles são, no geral, gente muito séria, e parecem bastanteinteressados na problemática geral do universo. São antes de tudo caracteresarrebatadores, da cepa romântica espiritual do Drama alemão; realidades quejazem de algum modo ao fundo, recobertas por todos os tipos de incidentes eexpressões poéticas. Como uma espécie de melodrama alemão, com CapitãoAhab na condição de Fausto do convés, e Queequeg e a tripulação no castelo deproa como indicadores de uma noite de Walpurgis, o livro tem pontos fortes,ainda que aqui, quanto a seus limites, espaço e tratamento de palco pudessemmelhorá-lo. Moby Dick, sob esta perspectiva, torna-se um tipo de peixe moralista,um leviatã metafísico, uma página do Ductor Dubitantium,{a} de fato, na figurapouco conhecida da Senhora Malaprop, “uma alegoria nos bancos do Nilo”.{b}

Depois de persegui-lo ao lado dessa melancólica companhia por umas centenasde milhas quadradas, em latitude e longitude, começamos a ter uma vaga idéiada associação entre pesca baleeira e lamentação e de por que a gordura{c} épopularmente sinônimo de lágrimas.

O intenso Capitão Ahab é exaustivamente descrito; algo mais dele poderia,pensamos nós, ser deixado à imaginação do leitor. O sentido desse tipo de escritasó pode vir a existir através da consciência pessoal do leitor, do que ela traz aolivro; e tudo isso é suscitado por uma nuance ou sugestão dramática. Sesoubéssemos mais de Hamlet ou Macbeth como Melville nos faz saber de Ahab,ficaríamos cansados de sua companhia sublime. Ainda assim, Ahab tem uma

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concepção arrebatadora, firmemente presa ao convés selvagem do Pequod – umaalma sombria e louca armando-se de todo o engenho das referências materiaisem um conflito a uma só vez natural e sobrenatural, aos seus olhos, com o maisperigoso monstro da Terra, encarnação, em linhas de associação mentalfirmemente construídas, do mais profundo mal moral do mundo. A perseguição aMoby Dick, assim, entrelaça os perigos literais da pescaria – um problema de fé edestino – à trágica solução que Ahab procura, em meio ao selvagem cenário dopalco oceânico. Para este fim, a heterogênea tripulação, o ar, o céu, o mar e seushabitantes são totalmente idealizados. É uma nobre e louvável concepção; emuito embora nossa comiseração não esteja de acordo sempre com a seqüênciade pensamento, nós poderíamos precaver o leitor contra a condenação rápida ouprecipitada desta parte do livro.

O Terceiro Livro, que ocupa mais ou menos um quarto do volume, é de viésmoralizante, meio ensaio, meio rapsódia, no qual muito refinamento e sutileza, enão pouco sentimento poético, são mesclados a curiosas idéias e especulaçõesousadas e extravagantes. Este livro deve ser levado em conta num certo sentidodramático; sendo o narrador, onisciente entre os personagens do Pequod, umcerto Ishmael, cujos humores podem ser entendidos como contrários a tudo oque esteja em terra, como sua mão está contra tudo no mar. Essa negação, dignade um pirata, de credos e opiniões, do presunçoso indiferentismo de Emerson, oudo estilo descontrolado de Carlyle são, não diremos perigosas nesses casos, poishá várias forças em curso que se reúnem numa mais poderosa e violentainvestida, mas são despropositadas e incômodas. Não nos agrada ver violadas edesfiguradas, o que, sob qualquer ponto de vista, devem ser para o mundo asmais sagradas associações da vida.

Clamamos por transparência nessa questão. Aqui está Ishmael, contando ahistória do volume, ajoelhando-se, no segundo livro, com um canibal diante deum pedaço de madeira na lareira de uma taverna de New Bedford, num espíritode amigável e transcendente caridade, que nesse sentido vai bem; mas por quedesalojar do céu, com insolência, os “há muito amimalhados Gabriel, Miguel eRafael”. Certamente Ishmael, que é um letrado, poderia ter falado com respeitosobre o Arcanjo Gabriel, considerando, se não a Bíblia (que deveria ser exigida dasescolas), ao menos um John Milton, autor do Paraíso Perdido.

Nem é justo investir contra os horrores do clero que, ainda que hábil emdisfarçar suas máculas, pelo menos procura agenciar um remédio para os malesdo mundo, e atribuir a existência da consciência a “dispepsias hereditárias,nutridas por Ramadãs” – e ao mesmo tempo seguir nos petrificando comhorrores imaginários e todo o tipo de sugestões sombrias pelo mundo afora. Éfato curioso que não haja mais gente biliosa no mundo, mais inteiramente repleta

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de desânimo e tremores, do que algumas dessas mesmas pessoas que estãoconstantemente investindo contra a religiosa melancolia do clero.

O mesmo vale para a consistência de Ishmael – que, se era o objetivo do autorexibir as dolorosas contradições da atuação arrogante e inquieta de uma mentejogada daqui para lá como uma chama no redemoinho, é, em certo grau, umbem-sucedido arranjo de opiniões, sem garantir junto a nós, contudo, muitaadmiração pelo resultado.

Com isso chegamos ao fim do que relutantemente nos compele a objetar nestevolume. Com muito maior prazer, reconhecemos a agudeza da observação, ofrescor da percepção, com os quais o autor nos traz, diretamente dasprofundezas, “coisas ainda não tentadas em prosa ou rima”, as estranhasinfluências de suas cenas oceânicas, a imaginação saliente que as conecta com oque é passado e distante, o mundo dos livros e a vida da experiência – certamentetraços de sentimento viril. Estas são as poderosas forças com as quais o Sr.Melville luta em seu livro. Seria uma grande glória submetê-las aos mais elevadosusos da ficção. Ainda é uma grande honra – entre a multidão de mediocridadesbem-sucedidas que se amontoam em nosso mercado editorial e nada sabem dosimpulsos divinos – estar em companhia desses mais nobres espíritos emquaisquer termos.

Publicada em duas partes (Volume 9, 15.11.1851; Volume 10, 22.11.1851) pelaLiterary World, revista de Nova York editada pelos irmãos Duyckinck, aresenha seguiria, em linhas gerais, a opinião dos primeiros críticos, tantoingleses como norte-americanos, apontando pontos positivos e negativos, comeventual reconhecimento da grandeza da obra. Destaca-se pela menção atemas e problemas que no futuro se fariam presentes na fortuna crítica dolivro.

Extraído de PARKER, Hershel (org.). The Recognition of Herman Melville:Selected Criticism since 1846. Ann Harbor: The University of Michigan Press,1967.

{a} Jeremy Taylor. Ductor dubitantium, or the rule of conscience in all her general measures; serving as agreat instrument for the determination of cases of conscience. In four books. Londres, 1660.

{b} Personagem de peça de Richard Brinsley Sheridan, The Rivals (1775), a Senhora Malaprop – corruptela demal à propos, ou “inapropriado” – tornou-se popularmente conhecida pelo absurdo de suas frases eexpressões de efeito cômico, como “She’s as headstrong as an allegory [em vez de “an alligator”,crocodilo] on the banks of the Nile” (citada por Duyckinck) ou “He is the very pineapple [em vez de“pinnacle”, cúmulo] of politeness”.

{c} “Why blubber is popularly synonymous with tears”: Blubber significa tanto gordura (como a que se retirada baleia) quanto choro.

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MOBY DICKD.H. LAWRENCE

MOBY DICK, ou a Baleia Branca.Uma caçada. A última grande caçada.Em nome de quê?Em nome de Moby Dick, o imenso cachalote; que é velho, grisalho,

monstruoso, e nada sozinho; que, tendo estado muitas vezes sob ataque, éinominavelmente terrível em sua ira; e branco como a neve.

É claro que ele é um símbolo.De quê?Duvido que mesmo Melville soubesse com precisão. Isso é o melhor de tudo.Ele tem o sangue quente, ele inspira amor. Ele é o Leviatã solitário, não da

espécie de Hobbes. Ou é?Ele tem o sangue quente e inspira amor. Os ilhéus dos Mares do Sul, os

Polinésios e Malaios, adoradores de tubarões, ou crocodilos, ou que teceram àexaustão imagens distorcidas de gaivotas, por que eles jamais adoraram a baleia?Ela é muito grande!

Porque a baleia não é má. Ela não morde. E seus deuses têm de morder.Ela não é um dragão. Ela é o Leviatã. Ela nunca se movimenta em espirais

como o Dragão do Sol chinês. Ela não é uma serpente das águas. Ela tem osangue quente, é um mamífero. E é caçada, muito caçada.

É um grande livro.A princípio você se cansa por causa do estilo. Soa como jornalismo. Parece

falso. Você acha que Melville está querendo fazê-lo acreditar em algo. Não vai dar.E Melville é realmente um pouco sentencioso; cioso e consciente de si,

querendo ele mesmo acreditar em algo. E aí não é fácil entrar no ritmo de umapeça de profundo misticismo quando você só quer acompanhar uma história.

Ninguém pode ser mais bobalhão, mais sem graça e sentenciosamente de maugosto do que Melville, mesmo em um grande livro como Moby Dick. Ele reza eprega porque não está seguro de si. E ele prega, muitas vezes, de um modo muitoamador.

O artista era muito maior do que o homem. O homem é, antes, um chato daNova Inglaterra, do tipo eticamente transcendentalista e místico: Emerson,Longfellow, Hawthorne etc. Muito cansativo, a estupidez solene até no humor.Tão desgraçadamente au grand sérieux, você sente como se dissesse: Bom Deus,em que isso me interessa? Se a vida é uma farsa, ou um desastre, ou sei lá o quê,

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o que me importa? Deixe a vida ser o que é. Me dê uma bebida, é isso o quequero agorinha mesmo.

Da minha parte, a vida é feita de muitas coisas que não me importam. Não éde meu interesse desvendá-la. Neste momento, ela é uma xícara de chá. Pelamanhã, era losna e fel. Passe-me o açúcar.

Há quem se aborreça com o grand sérieux. Existe algo de falso nisso. E essealgo é Melville. Oh, querido, quando a estupidez solene guincha, guincha queguincha!

Mas ele era um artista grande e profundo, mesmo que antes fosse um homemsentencioso. Era um americano de verdade, um que sempre sentia seu públicodiante de si. Mas quando ele deixa de ser americano, quando esquece todo opúblico, e nos oferece sua mais completa percepção de mundo, aí então ele émaravilhoso, seu livro impõe um silêncio na alma, um temor reverente.

Em seu íntimo “humano”, Melville é quase um morto. Isto é, ele dificilmentevai reagir ao contato humano; ou apenas em um plano ideal; ou apenas por uminstante. Seu íntimo humano, emocional quase já não existe. Ele é abstrato,autoanalítico e alienado de si. E está muito mais interessado nos estranhosdeslizares e colisões da Matéria do que nas coisas que os homens fazem. Nesteponto, ele é como [Richard Henry] Dana. Seu negócio está nos elementosmateriais. Seu drama está neles. Ele foi um futurista muito antes do futurismoencontrar suas tintas. O pleno e evidente deslizar dos elementos. E a almahumana experimentando tudo isso. Muitas vezes, isso vai além dos limites:psiquiatria. Quase falso. E tão grande.

É a velha coisa de sempre em todos os americanos. Eles ficam com seuscapotes ideais e fora de moda, e seus ultrapassados chapéus de seda, enquantofazem as coisas mais impossíveis. Ali está: você vê Melville abraçado na cama porum ilhéu dos Mares do Sul, e oferecendo solenemente a oferenda chamuscada aseu pequeno ídolo selvagem, e seu capote ideal só esconde sua gola e nos impedede ver seu peito nu enquanto ele faz seus salamaleques, enquanto o tempo inteiroseu ético chapéu de seda está corretamente postado sobre sua fronte. Isso é tãotipicamente americano: fazer as coisas mais impossíveis sem tirar suas vestesespirituais. Seus ideais são como a armadura que enferrujou e nunca mais sedesmonta. E enquanto isso em Melville seu conhecimento corporal tem a nudezdo movimento, uma vida ágil por entre os elementos desolados. Pois com umasensibilidade física e vibracional completa, como uma antena, ele capta os efeitosdo além-mundo. E também registra, quase além da dor ou do prazer, astransições extremas da alma isolada e muito distante, a alma que agora estásozinha, sem nenhum contato humano real.

Os primeiros dias em New Bedford introduzem o único ser humano que

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realmente aparece no livro, mais especificamente, Ishmael, o “Eu” do livro. Eentão seu camarada do momento, Queequeg, o tatuado e poderoso arpoador dosMares do Sul, que Melville ama como Dana ama Hope. O surgimento docompanheiro de quarto de Ishmael é divertido e inesquecível. Mas logo a seguiros dois juram um “casamento”, na linguagem dos selvagens. Pois Queequeg abriumais uma vez as comportas do amor e da relação humana em Ishmael.

Durante um tempo fiquei sentado ali naquele aposento solitário; o fogo baixo,num estágio intermediário após sua primeira intensidade ter aquecido o ar,apenas brilhando para ser olhado; as sombras e os fantasmas noturnos sejuntando nos vãos das janelas, observando-nos, silenciosa e solitária dupla; atempestade bramindo lá fora em ondas solenes; comecei a ter consciência desentimentos estranhos. Senti algo derretendo em mim. Meu coraçãodespedaçado e minhas mãos enlouquecidas já não se rebelavam contra omundo lupino. Este selvagem conciliador o redimira. Lá estava ele sentado, suaindiferença era de uma natureza que não conhecia nem a hipocrisia civilizada,nem a fraude mais branda. Era um selvagem; um espetáculo dentre osespetáculos; contudo, comecei a me sentir misteriosamente atraído por ele.

Então eles fumam juntos, e estão agarrados um ao braço do outro. A amizade éfinalmente selada quando Ishmael oferece o sacrifício ao pequeno ídolo deQueequeg, Yojo.

Eu era um bom Cristão; nascido e logo trazido ao seio da infalível IgrejaPresbiteriana. Como então poderia me unir a esse idólatra selvagem naadoração de seu pedaço de madeira? Mas o que é a adoração?, pensei. Vocêentão supõe, Ishmael, que o magnânimo Deus do céu e da terra – e até dospagãos – pode sentir ciúmes de um pedaço insignificante de madeira preta?Impossível! Mas o que é a adoração? – fazer o desejo de Deus – isso é adorar. Equal é o desejo de Deus? – fazer ao semelhante o que desejo que façam a mim– esse é o desejo de Deus.

– Que soa como Benjamin Franklin e é, irremediavelmente, teologia barata. Mas éa verdadeira lógica americana.

Ora, Queequeg é meu semelhante. E o que gostaria que Queequeg fizesse pormim? Ora, unir-se a mim em meu rito Presbiteriano de adoração. Portanto, eudevo unir-me a ele, logo, devo tornar-me um idólatra. Assim, acendi as aparas;ajudei a pôr o idolozinho inocente de pé; ofereci-lhe biscoito queimado comQueequeg; fiz uns dois ou três salamaleques diante dele; beijei seu nariz;

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terminadas essas cerimônias, nos despimos e fomos para a cama, em paz comas nossas consciências e em paz com o mundo todo. Mas não adormecemossem antes papear um pouco.

Não sei por quê; mas não há lugar mais propício para confidências entreamigos do que uma cama. Marido e mulher, dizem, ali abrem até o fundo daalma um para o outro; e alguns casais idosos muitas vezes ficam deitadosconversando sobre os velhos tempos até o amanhecer. E assim, na lua-de-melde nosso coração, eu e Queequeg ficamos deitados – um casal aconchegante eamoroso.

Você poderia pensar que essa relação significa alguma coisa para Ishmael. Masnão. Queequeg é esquecido como jornal velho. As coisas humanas são emoçõesou diversões momentâneas para o americano Ishmael. Ishmael, o caçado. Masmuito mais Ishmael, o caçador. O que é um Queequeg? O que é uma esposa? Abaleia branca precisa ser caçada até o fim. Queequeg precisa ser apenas“CONHECIDO”, e então lançado ao esquecimento.

E o que, em nome da fortuna, é a baleia branca?Em algum lugar Ishmael diz amar os olhos de Queequeg: “seus olhos grandes

e profundos, de um negro vívido e audaz”. Sem dúvida como Poe, ele quisencontrar a “pista” para eles. E só.

Os dois homens viajam de New Bedford para Nantucket, e então se alistam nonavio baleeiro Quacre, o Pequod. Tudo isso é estranhamente fantástico,fantasmagórico. A viagem da alma. E no entanto, curiosamente também umaverdadeira viagem baleeira. Nós seguimos pelos mares afora com este estranhonavio e sua incrível tripulação. Perto dela, os Argonautas eram quase comoovelhas. E veja que Ulisses saiu derrotando as Circes e superando as rameirasmaldosas das ilhas. Mas a tripulação do Pequod é formada por um bando demaníacos que caçam fanaticamente uma solitária e inofensiva baleia branca.

Como uma história da alma, deixa qualquer um nervoso. Como um conto demarinheiro, é maravilhoso: há sempre algo um pouco exagerado nos contos demarinheiro. Deveria haver. E então, mais uma vez, sobrepõe-se à experiência dohomem do mar um sonoro misticismo – o que dá nos nervos. E mais uma vez,como uma revelação do destino do livro, ele é profundo demais mesmo paralamentos. Profundo para além do sentimento.

Você ainda está um pouco antes de poder ver o capitão, Ahab: o misteriosoQuacre. Oh, esse é um navio de um Quacre temente a Deus.

Ahab, o capitão. O capitão da alma.Sou o senhor de meu destino,

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Sou o capitão de minha alma!

Ahab!“Oh capitão, meu capitão, nossa temida viagem se completou.”O macilento Ahab, Quacre, sujeito misterioso, aparece somente depois de

alguns dias no mar. Existe um segredo sobre ele. O quê?Oh, ele é um sujeito portentoso. Ele manca de uma perna de mármore, feita

de mármore do mar. Moby Dick, a grande baleia branca, arrancou a perna deAhab na altura do joelho, quando Ahab a atacava.

Pois muito bem. Que tivesse arrancado as duas pernas e um pouquinho mais.Mas Ahab não pensa assim. Ahab é agora um monomaníaco. Moby Dick é sua

monomania. Moby Dick precisa MORRER, ou Ahab não poderá mais viver. Ahab éateu por causa disso.

Tudo bem.Esse Pequod, navio da alma americana, tem três imediatos.1) Starbuck: Quacre, de Nantucket, um bom e responsável homem de razão,

precavido, intrépido, o que se chama de um homem sem iniciativa. No fundo,medroso.

2) Stubb: “Destemido como fogo, e mecânico”. Insiste em ser desleixado eengraçadinho em qualquer ocasião. Precisa sentir medo, também.

3) Flask: Determinado, obstinado, sem imaginação. Para ele “a imensa baleiaera apenas uma espécie de camundongo grande ou rato d’água”.

Aqui você tem: um capitão monomaníaco e seus três imediatos, trêsesplêndidos homens do mar, admiráveis baleeiros, homens de primeira linha emseu trabalho.

América!É quase como o Sr. Wilson e sua admirável e “eficiente” comitiva na

Conferência da Paz. Exceto pelo fato de que os homens do Pequod não levavamsuas mulheres a bordo.

Um capitão da alma maníaco, e três eminentes e presentes imediatos.América!E então a tripulação. Renegados, náufragos, canibais: Ishmael, Quacres.América!Três arpoadores gigantes para fustigar a grande baleia branca.1) Queequeg, o ilhéu dos Mares do Sul, todo tatuado, grande e poderoso.2) Tashtego, o pele-vermelha da costa, onde os índios encontram o mar.3) Daggoo, o negro imenso e preto.

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Aqui você os encontra, três raças selvagens, sob a bandeira americana, ocapitão maníaco, com seus grandes e astutos arpoadores, prontos para fustigar abaleia branca.

E apenas depois de muitos dias em alto mar a tripulação do bote de Ahabaparece no navio. Estranhos, silenciosos, sigilosos e vestidos de preto, malaios,parses adoradores do fogo. Esses são os homens do bote de Ahab, quando esse élançado em busca daquela baleia.

O que você acha do navio Pequod, o navio da alma de um americano?Muitas raças, muitos povos, muitas nações, sob as Listras e Estrelas.

Submetidos com muitas listras.Vendo as estrelas às vezes.E em um navio louco, sob um capitão louco, em uma louca e fanática viagem.Em nome de quê?Em nome de Moby Dick, a grande baleia branca.Mas esplendidamente conduzidos. Três esplêndidos imediatos. A coisa toda

envolta em praticidade, eminentemente prática em seu trabalho. Indústriaamericana!

E toda essa prontidão a serviço de uma caçada louca, louca.Melville tenta conservá-lo como um navio baleeiro de verdade, em uma

cruzada de verdade, a despeito de todos os fanáticos. Uma viagem maravilhosa,maravilhosa. E uma beleza que só é superada pelo horrendo arrastar-se do autorem águas místicas. Ele quer manter a profundidade metafísica. E ele vai maisfundo do que a metafísica. É um livro extraordinariamente belo, com umsignificado terrível, e surpresas desagradáveis.

É interessante comparar Melville com Dana, a respeito do albatroz – Melville éum pouco sentencioso.

Lembro-me do primeiro albatroz que vi. Foi durante uma longa tormenta, naságuas turbulentas dos mares antárticos. Do meu turno da manhã, embaixo,subi para o convés nublado; e lá, projetado no convés principal, vi uma coisamagnífica, em suas penugens de brancura imaculada, e com um bico aduncoe sublime como um nariz romano. De vez em quando arquejava suas grandesasas de arcanjo, como se cobrisse uma arca sacrossanta. Fantásticas palpitaçõese vibrações agitavam-no. Ainda que o corpo não estivesse ferido, soltava gritos,como o espectro de um rei em angústia sobrenatural. Em seus olhos estranhose inexpressivos pensei ver segredos que chegavam até Deus. Como Abraãodiante dos anjos, inclinei-me; aquela coisa branca era tão branca, suas asas tãovastas, e naquelas águas de perpétuo exílio, eu perdera as memórias que

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trouxera a reboque de tradições e cidades. […] Afirmo, então, que em suabrancura maravilhosa se esconde principalmente o segredo do feitiço […]

O albatroz de Melville é um prisioneiro, pego por uma isca em um gancho.Bom, eu também já vi um albatroz: ele também nos seguia nas águas

próximas à Antártida, sul da Austrália. E no inverno do Sul. E o navio, um P.&O.,quase vazio. E a tripulação indígena tremendo.

O pássaro com suas longas, longas asas nos seguindo, e então nos deixando.Ninguém sabe até que experimenta, quão ermas, quão solitárias são as águas doSul. E as aparições rápidas da costa australiana.

Isso faz com que sintamos que nosso dia é apenas um dia. Que na escuridão danoite outros dias se agitam fecundos logo à frente, quando nós nos desprendemosda existência.

Quem sabe quão totalmente nós havemos de nos desprender.Mas Melville mantém seu discurso sobre a “brancura”. O grande abstrato o

fascina. O abstrato onde terminamos, e deixamos de ser. Branco ou preto. Nossobranco, fim abstrato!

Então de novo é maravilhoso estar no mar com o Pequod, sem um grão deterra por perto.

Era uma tarde nublada e opressiva; os homens passeavam lentamente peloconvés, ou olhavam distraidamente para as águas plúmbeas. Queequeg e euestávamos ocupados em tecer tranqüilamente o que se chama de esteira-espada, para servir de amarra suplementar para o nosso bote. Tão calma eabsorta e ainda de certo modo auspiciosa a cena se apresentava, e pairavatamanho encantamento de sonho no ar, que todo marinheiro, em silêncio,parecia dissolver-se em seu próprio eu invisível.

No meio deste silêncio agourento veio o primeiro aviso: “Lá ela sopra! Ali! Ali! Ali!Ela sopra! Ela sopra!”. E então vem a primeira perseguição, uma maravilhosapassagem de verdadeira escrita marítima, o mar, e todos seres do mar na caçada,criaturas marinhas caçadas. Não há praticamente nenhum torrão de terra – puromovimento marinho.

“Avancem, homens”, sussurrou Starbuck, puxando ainda mais para a popa aescota da vela; “ainda temos tempo para matar um peixe antes da tempestade.Veja mais água branca ali! – Mais perto! Continuem!”

Logo em seguida dois gritos sucessivos vindos de ambos os lados indicaramque os outros botes haviam sido rápidos; porém mal foram ouvidos, e

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Starbuck disse com um sussurro que estalou como um relâmpago: “Levante!”,e Queequeg, com seu arpão na mão, ficou de pé.

Embora nenhum dos remadores pudesse ver de frente o perigo mortal quese encontrava logo adiante, pela fisionomia tensa e pelo olhar fixo do imediatona popa do bote, todos sabiam que o momento crítico havia chegado; tambémescutaram um ruído enorme que parecia de cinqüenta elefantes chafurdandona lama. Enquanto isso o bote continuava a atravessar a neblina, com as ondasa se agitar e silvar à nossa volta, como serpentes furiosas de cabeças levantadas.

“Ali está a corcova. Ali, ali! Dá-lhe!”, sussurrou Starbuck.Um som breve e apressado partiu do bote; era a seta de ferro de Queequeg.

Então, fundindo-se numa mesma comoção veio um ataque invisível da popa,enquanto a proa parecia bater num rochedo; a vela fechou-se e caiu; um jatode vapor escaldante ergueu-se ali perto; alguma coisa debaixo de nós rolou e sevirou como um terremoto. Toda a tripulação ficou um pouco sufocada quandofoi temerariamente jogada no branco do creme coalhado da tormenta.Tormenta, baleia, e arpão se haviam mesclado; e a baleia, meramentearranhada pelo ferro, escapava.

Melville é um mestre do movimento físico caótico e violento; ele conseguemanter uma caçada selvagem inteira sem uma falha sequer. Ele é como queperfeito em criar quietude. O navio está cruzando o Carrol Ground, ao sul deSanta Helena.

Foi quando deslizávamos por essas últimas águas que, numa noite calma eenluarada, quando todas as ondas rolavam como pergaminhos de prata e coma sua agitação suave faziam o que parecia ser um silêncio prateado e nãosolidão: foi nessa noite silenciosa que um sopro de prata, bem distante dasbolhas brancas da proa, foi avistado.

Então há a descrição do brit.

Rumando a nordeste das ilhas Crozet enredamo-nos em vastas pradarias debrit, a minúscula, amarela substância de que a Baleia Franca fartamente senutre. Por léguas e mais léguas, aquilo ondulou à nossa volta, de modo queparecíamos estar navegando através de ilimitados campos de trigo maduro edourado.

No segundo dia, avistamos um grande número de Baleias Francas, as quais,a salvo de serem atacadas por um navio de pesca de Cachalotes como oPequod, boquiabertas nadavam indolentemente através do brit, que, aderindo

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às bordas fibrosas das impressionantes venezianas que têm nas bocas, eraassim separado da água que lhes escapava pelos lábios.

Como ceifeiros matutinos, que lado a lado avançam suas foices, lenta etempestuosamente, através da relva sempre úmida das campinas alagadiças;assim também esses monstros nadavam, fazendo um som estranho, de capim,de corte; e deixando atrás de si um sem-fim de gavelas azuis no mar amarelo.

Mas era apenas o barulho que faziam ao atravessar o brit que lembrava aceifa. Vistas dos topos dos mastros, especialmente quando faziam uma pausa eficavam estáticas por algum tempo, suas imensas formas negras se pareciammais com massas rochosas sem vida do que qualquer outra coisa.

Essa bela passagem nos conduz à aparição da lula.

Atravessando lentamente as pradarias de brit, o Pequod ainda seguia a suaviagem a nordeste, rumo à ilha de Java; uma brisa suave impelindo a quilha,de tal modo que na serenidade circundante seus três mastros altos e afiladosbalançassem brandamente, como três brandas palmeiras numa planície. E,com longos intervalos na noite prateada, o jato solitário e encantador ainda seavistava.

Mas numa manhã azul e transparente, quando uma tranqüilidade quasesobrenatural se espalhava por sobre o mar, embora desacompanhada de umaestanque calmaria; quando a clareira longamente polida do sol sobre as águasparecia um dedo de ouro, impondo-lhes algum segredo; quando as ondas dechinelos sussurravam juntas enquanto corriam suavemente; neste profundosossego da esfera visível, um estranho espectro foi visto por Daggoo do topo domastro principal.

Na distância, um grande vulto branco ergueu-se preguiçosamente, eerguendo-se cada vez mais, e destacando-se do azul, enfim cintilou diante danossa proa como um trenó, que viesse descendo a neve da colina. Assimfaiscante por um momento, também lentamente baixou, e submergiu. Entãomais uma vez ergueu-se, e cintilou em silêncio. Não parecia uma baleia; masserá que é Moby Dick?, pensou Daggoo.

Os botes desceram e foram lançados à cena.

[…] no mesmo ponto em que afundara, lentamente ressurgiu. Quaseesquecendo por ora os pensamentos sobre Moby Dick, então contemplamos omais maravilhoso fenômeno que os mares secretos já revelaram até ali aoshomens. Um imenso vulto carnudo, com centenas de metros de comprimento

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e de largura, de reluzente coloração leitosa, flutuava na água, com inúmerostentáculos compridos irradiando do centro, e se enrolavam e contorciam feitoum ninho de anacondas, como que cegamente dispostos a apanhar algumdesgraçado objeto ao seu alcance. Não tinha rosto ou face perceptível; nenhumindício concebível de sensação ou instinto; mas ondulava ali sobre as ondas,uma aparição sobrenatural, amorfa e fortuita da vida.

Quando aquilo, com um som baixo e aspirado, desapareceu novamente […]

Os capítulos seguintes, com seu relato de caçadas de baleia, a morte, o estripar, ocorte, são registros de coisas que acontecem. Então vem o estranho caso doencontro com o Jeroboão, um navio baleeiro encontrado em alto-mar, cujatripulação inteira se apresentava sob a dominação de um fanático religioso, umdos marinheiros do navio. Há descrições detalhadas da própria extração doespermacete da cabeça de um cachalote. Demorando-se na pequenez do cérebrode um cachalote, Melville observa significativamente: “pois acredito que muitodo caráter de um homem estará simbolizado em sua coluna. Eu sentiria mais suacoluna do que seu crânio, desconhecido”. E sobre a baleia, ele acrescenta:

“Pois, vista sob essa luz, a maravilhosa pequenez proporcional do cérebro dabaleia é mais do que compensada pela maravilhosa magnitude proporcional desua espinha”.

E em meio à correria de terríveis e assustadoras caçadas, chegam a nósmomentos de pura beleza.

Enquanto os três botes permaneciam ali naquele mar que rolava suavemente,contemplando o seu eterno meio-dia azul; e como nenhum gemido oubramido de qualquer espécie, não, nem mesmo uma ondulação ou bolhasubia de suas profundezas; qual homem terrestre teria imaginado que, sobaquele silêncio e tranqüilidade, se contorcia e se retorcia em agonia o maiormonstro marinho?!

Talvez o mais estupendo capítulo seja o chamado A Grande Armada, no início dovolume III. O Pequod navegava por entre o Estreito de Sonda nas proximidades deJava quando se vê sobre um enorme bando de cachalotes.

Às claras, dos dois lados da proa, a uma distância de duas ou três milhas, eformando um grande semicírculo que abrangia metade da linha do horizonte,uma corrente de sopros contínuos de baleias brincava no alto e resplandecia aocéu do meio-dia.

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Perseguindo o grande bando, passado o Estreito de Sonda, eles própriosperseguidos por piratas de Java, os baleeiros avançam em alta velocidade. Entãoos botes descem. Por fim, aquele curioso estado de irresolução inerte acometia asbaleias, quando elas estavam, como dizem os homens do mar, sarapantadas. Emvez de imitar um imenso esquadrão e avançar, elas nadavam violentamente de lápra cá, vagalhões de baleias, sem sair do lugar. O bote de Starbuck, que corriapara uma baleia, é arrastado para dentro desse ruidoso caos causado pelo Leviatã.Em louca carreira o bote parece se comprimir através das águas agitadas pelosmonstros, até que é levado a um ponto de calmaria no centro daquele bandovasto, louco e terrível. Ali reina uma calmaria pura e brilhante. Ali as fêmeasnadam em paz, e as baleias mais jovens vêm ao bote para cheirá-lo docilmente,como cachorros. E ali os atônitos homens do mar assistem ao amor dessesadmiráveis monstros, mamíferos, aqui excitados nas profundezas do mar:

Muito abaixo desse maravilhoso mundo da superfície, um outro universoainda mais estranho se descortinava diante de nós quando olhávamos pelocostado. Pois, suspensas naqueles subterrâneos aquáticos, flutuavam formas debaleias que amamentavam seus filhotes, e outras que, pelo tamanho imensoda cintura, pareciam que em breve se tornariam mães. O lago, conformesugeri, até uma profundidade considerável, era extraordinariamentetransparente; e como os bebês humanos quando mamam olham calma efixamente para longe do peito, como se levassem duas vidas diferentes aomesmo tempo; e, conquanto sorvam alimento mortal, ainda assim se deleitamespiritualmente com alguma reminiscência extraterrena; assim também osbebês dessas baleias pareciam olhar na nossa direção, mas não para nós, comose não passássemos de pedaços de sargaço aos seus olhos recém-nascidos.Flutuando ao lado deles, as mães também pareciam calmamente nos observar.[…]

Alguns dos segredos mais sutis dos mares pareceram se nos revelar nesselago encantado. Nós vimos os amores do jovem Leviatã nas profundezas.

E assim, embora cercadas por círculos justapostos de consternação e terror,essas inescrutáveis criaturas do centro se dedicavam livre e desimpedidamenteàs mais pacíficas atenções; sim, serenamente se regalavam em flertes edeleites.

Há algo de realmente espantoso nessas caçadas de baleia, quase sobre-humano ouinumano, maior do que a vida, mais admirável do que os feitos humanos. Omesmo acontece no capítulo sobre o âmbar-gris: é tão curioso, tão real, etambém tão sobrenatural. E de novo no capítulo chamado A Batina, certamente a

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mais antiga peça de falicismo em toda a literatura mundial.Depois disso vem o fantástico registro da Refinaria, quando o navio é

transformado em uma fuliginosa e oleosa fábrica no meio do oceano, e o óleo éextraído da gordura. Na noite da fornada vermelha queimando no convés,Melville encontra sua surpreendente experiência de reversão. Ele está no leme,mas se virou para observar o fogo: quando subitamente ele sente o navio seafastando rapidamente dele, numa mística reversão.

A minha impressão mais forte era de que, por mais rápida e impetuosa quefosse aquela coisa na qual eu estava, ela não estava se dirigindo a um porto àfrente, mas que fugia de todos os portos que deixava para trás. Uma sensaçãoviolenta e desnorteante, como de morte, invadiu-me. As minhas mãos seagarraram convulsivamente ao leme, mas tive a impressão enlouquecida deque o leme, por algum encantamento, estava invertido. Meu Deus! O que hácomigo?, pensei.

Essa experiência de sonho é uma experiência real da alma. Ele termina com umaadvertência a todos os homens, que não admirem o fogo vermelho quando suavermelhidão faz com que todas as coisas fiquem como que desencarnadas.Parece-lhe que seu admirar-se no fogo evocava este horror da reversão, odesmanchar-se.

Talvez lhe parecesse. Ele era nascido na água.Depois de algum trabalho insalubre no navio, Queequeg caiu em febre e ficou

a ponto de morrer.

Como definhou e definhou naqueles poucos dias vagarosos, até que lheparecia restar pouco mais do que osso e tatuagem. Mas, enquanto todo o restodefinhava e os ossos da face ficavam mais salientes, os olhos, no entanto,pareciam ficar cada vez maiores; adquiriram um fulgor de estranhatranqüilidade; e plácidos, porém penetrantes, olhavam para você do fundo dadoença, um testemunho maravilhoso da saúde imortal que tinha e não podiamorrer, nem enfraquecer. E, como os círculos na água que, à medida queenfraquecem, expandem; seus olhos davam voltas e mais voltas como os anéisda Eternidade. Um terror sem nome dominava quem quer que se sentasse aolado do selvagem enfermiço […]

Mas Queequeg não morre – e o Pequod emerge dos Estreitos do Oriente noPacífico sem fim. “Para qualquer Feiticeiro, andarilho e pensativo, este plácidoPacífico, uma vez contemplado, deve se tornar para sempre seu mar de adoção.

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Agita-se em meio às águas mais centrais do mundo.”Nesse Pacífico as lutas se seguem:

Caía o fim da tarde; e quando todas as lanças do rubro combate se foram; eflutuando no maravilhoso crepúsculo de céu e mar, sol e baleia pereciampacificamente juntos; então, tal doçura e tal melancolia, tal voluta de oraçõeshavia, subindo pelo ar róseo espiraladas, que era como se de muito longe, dosverdejantes e castos vales profundos das ilhas de Manila, a brisa da terraEspanhola, vertida em insolente sopro náutico, tivesse ido ao mar, carregadadesses cânticos vesperais.

Mais uma vez calmo, mas apenas para chegar a uma melancolia maisprofunda, Ahab, que se afastara da baleia, assistia com atenção à sua agoniafinal, sentado em seu bote agora tranqüilo. Pois aquele estranho espetáculoque se observa em todos os cachalotes agonizantes – o movimento da cabeçavoltando-se na direção do sol e morrer assim –, aquele estranho espetáculo,contemplado num tão plácido entardecer, de certo modo proporcionava aAhab um maravilhamento até então desconhecido.

“Ele sempre se volta para aquela direção – quão lento, e no entanto firme, éseu semblante venerando e vocativo, na eminência de seus últimos eagonizantes movimentos. Também ele adora o fogo […]”

Assim, Ahab realiza seu solilóquio: e assim a baleia de sangue quente setransforma pela primeira vez no sol, que a fazia surgir das águas.

Mas como vemos no capítulo seguinte, é o trovão de fogo que Ahab realmenteadora: aquele fogo vivo que se espalha e do qual ele carrega a marca, dos pés àcabeça; é a tempestade, a elétrica tempestade do Pequod, quando os santelmosqueimam em altas e afiladas chamas de palidez sobrenatural sobre o mastro, equando o compasso se inverte. Depois disso tudo é fatalidade. A própria vidaparece misticamente invertida. Nessas caçadas a Moby Dick não há nada excetoloucura e possessão. O Capitão Ahab se movimenta de mãos dadas com seu pobree imbecil negrinho, Pip, que havia enlouquecido de modo tão cruel, abandonadoa nadar sozinho no vasto mar. É a criança imbecilizada do sol de mãos dadas como monomaníaco do Norte, capitão e senhor.

A viagem rola adiante. Eles encontram um navio, depois outro. É sempre arotina ordinária, embora tudo seja uma tensão de pura loucura e horror, o terrorda última luta que se aproxima.

De lá, de cá, pelas alturas, deslizavam níveas as asas de pequenos pássarosimaculados; eram doces pensamentos da brisa feminina; mas, de um lado, de

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outro, pelas profundezas de um azul sem fundo, corriam os gigantescosLeviatãs, os peixes-espada e os tubarões; e tais eram os pensamentos vigorosos,tensos e mortíferos do másculo oceano.

Nesse dia Ahab confessa sua preocupação, a preocupação de seu fardo. “Mas eupareço muito velho, muito, mas muito velho, Starbuck? Eu me sintomortalmente fraco, e curvado, e corcunda, como se eu fosse Adão cambaleandopara além dos séculos cravados desde o Paraíso.” É o Getsêmane de Ahab, antesda última luta: o Getsêmane da alma humana procurando sua última grandeconquista pessoal, a última realização da consciência expandida – infinitaconsciência.

Por fim eles avistam a baleia. Ahab a vê de seu cesto preso à gávea – “Dessaaltura a baleia era vista agora um milha ou mais adiante, toda a superfície do marrevelando sua alta e brilhante corcova, e regularmente espirrando seu jatosilencioso no ar”.

Os botes descem, para chegar perto da baleia branca.

Finalmente, o caçador ofegante chegou tão perto de sua aparentementeincauta presa, que toda a sua deslumbrante corcova se fez visível, deslizandopelo mar como uma coisa isolada, sempre envolta num anel da mais fina,felpuda e esverdeada espuma. Ele viu intricadas e imensas rugas da cabeça quese projetava mais à frente. Adiante, distante nas águas suaves do tapete turco,seguia a fulgurante sombra branca da imensa fronte leitosa, com um jovialmurmúrio de música acompanhando o vulto; e, atrás, as águas azuis corriamentrelaçadas para o vale movente de seu rastro vigoroso; e, pelos flancos,bolhas cintilantes surgiam e dançavam em seu caminho. Mas essas eramestouradas pelas garras ligeiras de centenas de aves alegres que ora cobriam aágua de suave plumagem, ora seguiam em seu bater intermitente de asas; e,como o mastro de bandeira que assoma do casco pintado de um galeão, acomprida haste partida de uma lança recente se projetava do dorso da baleiabranca; e, de vez em quando, uma das aves da nuvem de garras ligeiras, quepairava e voava de um lado para o outro por sobre o peixe como um dossel,pousava silenciosa e balançava na haste das longas penas da cauda a tremularcomo pendões.

Uma alegria tranqüila – uma gigantesca suavidade de repouso na velocidadetomou conta da baleia que deslizava.

A luta com a baleia é tão maravilhosa e tão terrível que precisa ser citada à partedo livro. Ela dura três dias. A visão horrenda, no terceiro dia, do corpo mutilado

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do Parse, perdido no dia anterior, visto agora preso aos flancos da baleia brancapelo emaranhado das linhas de arpão, tem a mística dos pesadelos. A terrívelbaleia enfurecida se vira contra o navio, símbolo desse nosso mundo civilizado.Ela o golpeia com uma terrível colisão. E uns poucos minutos depois, do últimodos valentes botes baleeiros chega um grito:

“O navio? Grande Deus, onde está o navio?” Logo, através da atmosfera fosca econfusa, viram seu fantasma desvanecer-se, como nas brumas da FataMorgana; apenas a parte superior dos mastros fora da água; enquanto, presospor encantamento, ou fidelidade, ou destino aos seus poleiros outroraelevados, os arpoadores pagãos mantinham sua vigilância náufraga sobre ooceano. E então círculos concêntricos envolveram o bote solitário e toda a suatripulação e cada remo flutuante e cada haste de lança e, levando a girar ascoisas vivas e as inanimadas em volta de um único vórtice, fizeramdesaparecer até a menor lasca do Pequod.

O pássaro do céu, a águia, o pássaro de São João, o Pássaro vermelho indígena, oamericano, cai junto ao navio, atingido pelo martelo de Tashtego, o martelo doÍndio Americano. A águia do espírito. Afunda!

Pequenas aves voavam agora gritando sobre o golfo ainda escancarado; umarebentação branca se abateu contra os seus lados íngremes; e então tudodesabou e o grande sudário do mar voltou a rolar como rolava há cinco milanos.

Assim termina um dos mais estranhos e mais maravilhosos livros do mundo,encerrando seu mistério e seu tortuoso simbolismo. É um épico do mar tal comonenhum outro homem realizou; e é um livro de simbolismo esotérico deprofundo significado, e de considerável aborrecimento.

Mas é um extraordinário livro, um livro muito extraordinário, o maior livromarítimo já escrito. Ele se move com terror e reverência na alma.

A terrível fatalidade.Fatalidade.Perdição.Perdição! Perdição! Perdição! Alguma coisa parece murmurar nas próprias

árvores negras da América. Perdição!Perdição de quê?Perdição de nosso dia branco. Nós estamos perdidos, perdidos. E a perdição

está na América. A perdição de nosso dia branco.

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Ah, claro, se meu dia está perdido, e eu perdido com o meu dia, existe umacoisa maior do que eu que me leva à perdição, e assim eu aceito minha perdiçãocomo sinal da grandeza que é maior do que eu.

Melville sabia. Ele sabia que sua raça estava perdida. Sua alma branca, perdida.Sua grande época branca, perdida. Ele próprio, perdido. O idealista, perdido. Oespírito, perdido.

A reversão. “Ela não estava se dirigindo a um porto à frente, mas fugia detodos os portos que deixava para trás.”

Esse nosso grande medo! Nossa civilização se afastando rapidamente a ré detodos os portos.

A última e horrível caçada. A Baleia Branca.O que é então Moby Dick? Ele é o mais profundo sangue da raça branca; é

nossa mais profunda natureza sangüínea.E ele é caçado, caçado, caçado pelo fanatismo maníaco de nossa consciência

mental branca. Nós queremos caçá-lo até o fim. Para sujeitá-lo à nossa vontade. Enessa caçada maníaca e consciente de nós mesmos tomamos raças escuras eclaras para nos ajudar, vermelhas, amarelas e negras, do leste e do oeste, Quacrese adoradores de fogo, nós as tomamos todas para nos ajudar em nossa horrível emaníaca caçada que é nossa perdição e nosso suicídio.

O último ser fálico do homem branco. Caçado na morte da consciênciaimediata e da vontade ideal. Nosso ser de sangue sujeito à nossa vontade. Nossaconsciência de sangue minada por uma consciência ideal ou mente parasitária.

Moby Dick, nascido do mar, o sangue quente. Caçado por monomaníacos daidéia.

Oh Deus, oh Deus, o que vem a seguir, quando o Pequod afunda?Ele naufraga na guerra, e nós todos somos vestígios de naufrágios.Agora o que vem depois?Quem sabe? Quien sabe, quien sabe, señor?Nem espanhóis, nem anglo-saxões tem a resposta.O Pequod caiu. E o Pequod era o navio da alma branca americana. Ele

afundou, levando consigo seu negro e seu índio e seu polinésio, asiático e quacree bons homens de negócio ianques e Ishmael: ele os afundou todos.

Boom! Como diria Vachel Lindsay.Para usar as palavras de Jesus, ESTÁ ACABADO.Consummatum est!Mas Moby Dick foi publicado em 1851. Se a Grande Baleia Branca afundou o

navio da Grande Alma Branca em 1851, o que tem acontecido desde então?Efeitos pós-morte, presumidamente.

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Porque, nos primeiros séculos, Jesus era Cetus, a Baleia. E os cristãos eram ospequenos peixes. Jesus, o Redentor, era Cetus, o Leviatã. E todos os cristãos seuspequenos peixes.

Para seu estudo, Lawrence utilizou a primeira edição inglesa de Moby Dick,publicada por Richard Bentley sob o título The Whale em 1851 e dividida emtrês volumes. A nota curiosa dessa edição é que ela omitia – à revelia do autor– o “Epílogo”, em que Ishmael explica como sobreviveu ao naufrágio. Naépoca de sua publicação na Inglaterra, tal ausência rendeu algumas críticas àverossimilhança do volume. Lawrence não chega a comentá-las; entretanto, ostrechos que cita muitas vezes não coincidem com o texto estabelecido, ora porinversões no corpo da frase, ora por pequenas omissões de frase.

Extraído de Studies in Classic American Literature (1923).

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UMA LÍNGUA ELEVADA, CORAJOSA E ALTIVAF.O. MATTHIESSEN

À época da morte de Melville, Richard Henry Stoddard, um de seus poucosdefensores professos, sentiu-se obrigado a declarar que “seu vocabulário eraamplo, fluente e eloqüente, porém excessivo, pouco preciso e não-literário”.Algumas justas aplicações podem ser encontradas para todos os cinco primeirosadjetivos, especialmente para o quarto e o quinto, no que diz respeito a Pierre;mas a reposta do leitor moderno ao último diria que o Melville de Mardi, e, emcertos momentos, mesmo o de Moby Dick, poderia facilmente encarnar oliterário. As opiniões convencionais de Stoddard se traem em sua observaçãosubseqüente, a de que “os primeiros livros de Melville o fizeram famoso entreseus compatriotas, que, menos literários em seus gostos e exigências do que nopresente, eram facilmente cativados por histórias da vida no mar”. Na verdade,Melville sentira-se constrangido justamente por essas exigências vulgares. EmWhite Jacket, por exemplo, diz ele que seu propósito era de ser um cronista davida marinha apenas tal como esta se apresentava, o cronista daquilo que poderiadesaparecer, “sem omitir ou inventar coisa alguma”. No entanto, percebeu querapidamente alcançara os limites que lhe foram impostos. Quando quisapresentar a cena de um açoite, o epíteto abusivo do capitão teve de ser omitido,mediante a nota “eu nunca vira a frase aqui utilizada escrita ou impressa e nãome agradaria ser a primeira pessoa a apresentá-la ao público”. Sua própriamodéstia compartilhou dos tabus de seu tempo mais uma vez quando ele veio adar provas da vida diária dos marinheiros, pois circundava o assunto comremotas alusões ao Édipo e ao Cenci de Shelley e com a observação de que “ospecados pelos quais as cidades da planície foram subjugadas ainda pairam emalgumas dessas Gomorras amuradas das profundezas”.

Mais fundamental do que essas evasivas é o fato de que Melville nunca sesentiu impelido ao tipo de disciplina que logo se fez presente em Flaubert em seudesejo de sacrificar tudo em nome de encontrar a palavra que evocasse o própriogesto e olhar. Melville tinha um bom ouvido para ritmos de fala: em sua críticade Etchings of a Whale Cruising, de Ross Browne, sua própria lembrança dobordão de um imediato, “Força, força, seus paspalhos apanhadores de feno”,prenunciou a criação de Stubb e Flask. Mas mesmo em Moby Dick eleapresentava uma preocupação intermitente com o que hoje seria uma grandeinquietação para muitos escritores: basear a fala de seus homens comuns tantoquanto possível na expressão norte-americana. Seu mais profundo interesse eraoutro, como ele mesmo já havia dito em White Jacket: “mergulhar na alma dos

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homens”, mesmo se isso significasse “trazer à tona a lama do fundo”. Em Mardiele tentara isso pelas técnicas empregadas no demônio de Babalanja, mas nãohavia ainda desenvolvido uma controlada elevação da dicção que pudesse fazer oleitor aceitar a falta de verossimilhança. Em White Jacket, ele sentiu-se entre doisobjetivos. Não era um mestre do realismo, nem de uma realidade intensificada. Onível geral de escrita honesta, porém rígida, que também caracterizara seusprimeiros livros, pode ser brevemente visto pela descrição de um marinheiromorrendo: “eu não poderia deixar de pensar, enquanto o contemplava, se odestino deste homem não fora apressado por seu confinamento nessa fornalhacalorenta do porão; ou se muitos homens doentes ao meu redor não teriammelhorado, caso lhes fosse permitido balançar em sua rede nas arejadasdependências do convés, abertas aos ‘portholes’, mas reservadas ao passeio dosoficiais”. Os defeitos quase não precisam ser trabalhados. O estilo é detrabalhador, mas sua falta de vivacidade advém mais do convencional do que dafrase idiomática (“se lhe fosse permitido”) e de uma dicção ainda influenciada(“acelerado por seu confinamento”) por meras normas formais de correção.

Melville sugere como teria encontrado o caminho para a liberdade de discursode que ele precisava em uma nota de um de seus poemas de guerra, “Lee noCapitólio”. Tentando apresentar não o que o General teria realmente dito quandolevado ao Comitê da Reconstrução do Congresso, em 1866, mas o que poderia seimaginar que teriam sido seus mais profundos sentimentos naquela ocasião,Melville estava consciente de que havia tomado “uma liberdade poética”. “Se portal liberdade precauções precisam ser tomadas, os discursos na história antiga,para não falar dos que constam das peças históricas de Shakespeare, talvez nãopudessem ser citados sem constrangimento.”

Sua liberação em Moby Dick pelo agenciamento de Shakespeare era quase umreflexo inconsciente. Diferentemente de Emerson, ele não discutiu as origens e anatureza da linguagem. O grande filólogo Jacob Grimm chegara, como Renan opercebera, à mitologia através da investigação da fala. Palavras e fábulas setornaram finalmente inseparáveis para ele, que procurou sua fonte comum nosmais primitivos e mais profundos instintos da raça, em sua maneira de sentir eimaginar. Podese dizer de Melville que ele intuitivamente captou essa conexão.Em seu esforço de prover a indústria baleeira de uma mitologia que se adequasseà atividade fundamental do homem em sua luta para subjugar a natureza, eleveio a tomar posse da primitiva energia latente nas palavras. Chegou até mesmo aperceber nas passagens oníricas de Mardi que o significado tem algo mais do queum só nível de sentido, que o arranjo das palavras em estruturas de som e ritmo ohabilitava a criar sentimentos e tons que não poderiam ser incluídos emsentenças lógicas ou científicas. Mas ele não encontrou uma pista valiosa para o

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modo de expressar a vida oculta dos homens, que havia se tornado sua obsessão,até ter encontrado a vitalidade sem par da linguagem de Shakespeare.

Nós já observamos que outras forças além de Shakespeare condicionaram sualiberação. Thomas Browne o ensinara que as propriedades musicais da prosapoderiam ajudar a aumentar a riqueza simbólica. A retórica de Carlyle pode tê-loconduzido a obscuridades, mas pode também ter auxiliado na redescobertadaquilo que os dramaturgos elisabetanos já conheciam, que a retórica nãoimplica necessariamente um mero formalismo árido, mas que pode ser elaboradade modo a concentrar uma grande carga de emoção. Mas sua possessão deShakespeare veio bem depois de todas as outras influências, e, se Melville tivessesido um homem de menos vigor, isto poderia ter servido para reduzi-lo ao níveldas dezenas de imitadores do século XIX dos maneirismos do dramaturgo. O quena verdade nós encontramos é algo muito diferente: um homem de 30 anosdespertando para sua própria força através do desafio da mais abundanteimaginação na história. Como Melville refletiu com mais criatividade sobreShakespeare do que qualquer outro americano o fizera, é instigante tentarcompreender o que as peças significaram para ele, da evidência superficial deecos verbais até as profundas transformações em toda a sua técnica anterior.

O fraseado de Shakespeare o hipnotizara a tal ponto que muitas vezes eleparece reproduzi-lo involuntariamente, mesmo quando não há ponto de alusão,como era o caso do “coração de tigre”. Em outras ocasiões ele tirou proveito deum efeito burlesco: ao omitir de suas considerações espécimes duvidosos debaleia, como a Baleia-vieira ou a Baleia-cabeça-de-pudim, afirma que “malconsegue evitar a suspeita de que sejam meros sons, cheios de leviatanismo, masque nada significam”. Ele chegou perto do sentimento da passagem originalquando encontrou um equivalente para o cavador de túmulos no carpinteiro donavio, que trabalhava em uma nova perna para Ahab, que havia quebrado aanterior pulando em seu bote. Melville marcara a resposta de Hamlet à exigênciado Rei por Polônio: “But, indeed, if you find him not within this month, youshall nose him as you go up the stairs into the lobby”. Agora ele transferia aquilopara a situação em que o carpinteiro, espirrando enquanto trabalha, já que “oosso cria pó”, escuta de Ahab: “Que isso te sirva de lição, portanto; e, quandoestiveres morto, não deixes que te enterrem sob o nariz dos vivos.”

Você consegue traçar essas variações caleidoscópicas das fontesshakespearianas ao longo desse livro, já que, avisado delas, você as encontra emquase todas as páginas. Mesmo a observação inicial de Ishmael sobre não ter“nenhum dinheiro no bolso” provavelmente ecoa Otelo. “O jato fantasma”, a cenaem que a baleia é vista misteriosamente à luz do luar, e que, incidentalmente, foium dos episódios em que a senhora Hawthorne leu um significado alegórico que

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Melville disse não procurar, parece dever algo de sua encantada atmosfera aoúltimo ato de O Mercador de Veneza, se você puder julgar a partir do efeito que éconstruído sobre a frase, “foi nessa noite silenciosa que um sopro de prata […] foiavistado”. O fim de Otelo é mais importante para o relato do ataque precedentede Moby Dick a Ahab; mas, como exemplo do modo pelo qual a imaginação deMelville instintivamente reformula suas impressões para conformá-las a suaspróprias necessidades, que seja notado que

Where a malignant and turban’d TurkBeat a Venetian and traduced the state,{a}

é alterado para: “Nenhum Turco de turbante, nenhum Veneziano ou Malaiomercenário o teria atingido com tanta malícia.”. Em tais níveis, em que o materialemprestado entra na formação do próprio pensamento de Melville, asreminiscências verbais começam a se tornar significativas. O que ele sugere aochamar a tripulação de “Uma verdadeira delegação de Anacharsis Clootz” é aindamais acentuado quando se soma ao fato de que eles irão “deixar os agravos domundo no tribunal do qual poucos regressam”. A alusão sutil ao “riacho” deHamlet, do qual “nenhum viajante retorna” serve para aumentar nossaassombrada incerteza do que jaz sob elas.

O mais importante efeito do uso da linguagem shakespeariana foi dar aMelville um conjunto de vocabulário para expressar paixões muito além do queele teria sido antes capaz de expressar. As vozes de muitos personagens servempara intensificar a de Ahab. Nesse sentido, enquanto ele fala com o ferreiro sobreforjar seu arpão, ele acha o velho tão calmo, sanamente lamentoso, e diz:“impaciento-me diante de toda desgraça que não seja louca”. Isso parece ter sidotrabalhado sobre os humores da violenta entrada de Laerte, “aquela gota desangue que, calma, me proclama bastardo”; ou desde que seja notado que “Ahabpossui aquilo que é sangrento em sua mente”, isso provavelmente o vincula aindamais ao “Que meus pensamentos sejam de sangue, ou nada valerão”, de Hamlet.As frases sucessivas, com suas insistentes repetições, “Devias acabar louco,ferreiro; fala, por que não enlouqueces?”, foi elaborada sobre as cadências deLear. Finalmente, enquanto Ahab toma a afirmação do ferreiro, de que ele podeaplainar todas as fendas, e passar sua mão sobre sua própria testa marcada, eexige “Tu não podes aplainar essa marca?”, Melville mescla algo da angústia deLady Macbeth diante das exigências de seu marido ao médico, “Tu não podescurar uma mente doente?”.

Na perspectiva do poder de Shakespeare sobre ele, não é surpreendente queem “O Tombadilho”, na primeira declaração longa de Ahab para a tripulação,

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Melville desemboque às vezes no que são virtualmente versos brancos, quepodem ser impressos dessa forma:

Mas presta atenção, Starbuck, aquilo que se diz quando enfurecido,logo se desdiz. Há homens cujas palavras iradasconstituem um pequeno insulto.Não quis te encolerizar. Deixa estar. Vê!Olha ali em baixo, todos aqueles rostos Turcos,bronzeados, com manchas – quadros vivos,a respirar, pintados pelo sol. Os leopardos Pagãos –criaturas sem pensamento e sem culto, que vivem,que procuram e que não dão razões pela vida tórrida que levam!{b}

Essa divisão em versos foi feita sem alteração de uma sílaba, e ainda que hajaalgumas seqüências desajeitadas, não existe negação da fonte essencial. Estetampouco é um caso solitário. O primeiro monólogo de Ahab começa da seguinteforma:

Deixo uma esteira inquieta e branca;águas pálidas; faces mais pálidas, por onde navego.Os vagalhões invejosos crescem pelos flancos para cobrirminha trilha; e que assim seja; mas primeiro eu passo{c}.

A meditação de Starbuck abre o capítulo seguinte:

Minha alma foi mais do que desafiada; foi subjugada;e por um louco! Oh, tormento insuportável […]

O perigo de tal impulso inconsciente ao verso é sempre evidente. Como seondulasse e quebrasse em prosa grandiloqüente, isso parece nunca ter pertencidoao falante, e ter sido, na melhor das hipóteses, um truque de titereiro. A fraquezaé similar naquelas falas de Ahab em que este faz declarada alusão a uma série depersonagens shakespearianas. A soma das partes não constrói um todo melhor;cada um chama a atenção para si e interfere na unidade do desenvolvimento deAhab.

Emerson pensara sobre o problema. Escrevendo em seu diário em 1838 sobre aexperiência de ter relido Lear e Hamlet em dias sucessivos, ele não se sentiuobrigado a assumir suas maneiras e a clamar pelo surgimento de um filósofo-poeta. Estava perdidamente encantado pelo “perfeito domínio” da estrutura

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arquitetônica desses conjuntos. No entanto, ele sempre se confrontou com aquestão da literatura derivativa de seu próprio país, já que sabia que, a despeitode toda a sua admiração, ele não poderia construir “nada comparável” a umacena sequer. “Sentado para produzir um equivalente disso, eu instantaneamentecairia em retórica verborrágica.”

Que aí Melville tivesse caído em muitas ocasiões, isso pode raramente sernegado. Ainda assim, Moby Dick não se tornou outro Prince of Parthia. Aprimeira tragédia composta por um americano, Thomas Godfrey, um jovem daFiladélfia, em 1759, prefigura as convenções românticas que ainda vigoram notempo de Melville. Ele estabelece a cena em um lugar cuja vida o autor nãoconhece, no início da era Cristã. Ele atravessa temas contemporâneos, dos quaisGodfrey, como um oficial da milícia prestes a se engajar na expedição do FortDuquese, estava para se tornar mais conhecedor. Mas se ele tivesse escrito suatragédia depois de ter sido plantador de tabaco na Carolina do Norte – onde elemorreria de insolação aos 27 anos – é improvável que tivesse conseguido trazersua poesia para mais perto de casa. Pois ela retoma o debate entre amor e honrade onde Dryden o deixou e faz de seus versos um pastiche de citações conhecidasde Shakespeare e de outras, não tão conhecidas, de Beaumont e Fletcher. Nostempos de Boker, este modo havia sido mais sutilmente assimilado, mas oproblema central permanecia não resolvido. Emerson chegou a sugerir umaresposta para o problema em seu diário em 1843:

Não escreva modernidades antigas como o Péricles de Landor ou a Ifigênia deGoethe. […] ou Lay of the Last Ministrel de Scott. São jóias passadas. Seriamelhor que você tomasse a matéria antiga onde a forma é meramenteincidental, como nas peças de Shakespeare, e o tratamento e o diálogo sãosimples, e mais modernos. Mas não se acostume a tanto. Pois em tais coisasnão há verdade; nenhum homem viverá ou morrerá por elas. O caminho paraescrever está em lançar seu corpo no alvo quando suas flechas já se foram,como Cupido em Anacreonte. As falas de Shakespeare em Lear estão nopróprio dialeto de 1843.

Não importando se a linguagem de Shakespeare nos pareça tudo menos“simples”, o sentimento de Melville, de que tais palavras falavam a elediretamente da vida como ele a conhecia, o conduziu a uma resposta quase física.O primeiro resultado poderia ter sido que ele começou a escrever falas elevadas ecorrentes sob o total feitiço do dramaturgo. Mas elas não permaneceram meraafetação, já que ele era capaz de “lançar seu próprio corpo no alvo”. O peso desua experiência dava suporte ao que ele queria com as palavras. Ele sabia o que

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estava fazendo no modo como preparava o leitor para a improbabilidade dadicção de Ahab. Ele disse que havia um certo tipo, entre os valentes Quacres deNantucket, de homens que, batizados com os “nomes das Escrituras – um hábitobastante comum na ilha”, tinham na infância se embebido dos “tratamentosdramáticos de ‘tu’ e ‘vós’, do idioma Quacre”. Tais homens eramsubstancialmente escolados na “ousada aventura sem limites” da caça baleeira;eram guiados, “pela quietude e reclusão de muitas e longas noites de vigília naságuas mais remotas”, a pensar “independentemente e sem tradições”. Mais ainda– e aqui há um fator que opera claramente sobre Melville tanto quanto sobreAhab – eles recebem “frescas todas as impressões suaves ou selvagens da naturezade seu próprio seio virgem, confiante e voluntarioso” e vieram, “por meio delasprincipalmente, mas com o auxílio de certas vantagens acidentais, a línguaelevada, corajosa e altiva”{d}.

No caso de Melville, o acaso de ter lido Shakespeare fora um agentecatalisador, indispensável para liberar seus trabalhos da limitada referência àexpressão das profundas forças da natureza. O Bobo de Lear o ensinou aquilo queStarbuck tinha a dizer sobre o pobre Pip, que mesmo as exaltadas palavras de umlunático poderiam penetrar os mistérios do céu. Mas Melville chegou à plenaposse de sua própria linguagem não quando parecia seguir Shakespeare, masquando ele entendeu a verdade da passagem de Um conto de inverno, que “Aprópria arte é natureza”, quando, escrevendo a partir de sua energia primária, elepôde encerrar a descrição de seu herói em linguagem que sugeria a deShakespeare, mas não a imitava: “Mas Ahab, meu Capitão de Nantucket, ainda semove diante de mim com toda sua austeridade e cólera; e, nesse episódio de Reise Imperadores, não devo ocultar que tenho de me satisfazer com um velho epobre pescador de baleias como ele; por isso, toda a pompa e circunstânciamajestática me são negadas. Ó, Ahab! Aquilo que é grandioso em ti deve serarrancado aos céus, pescado nas profundezas e representado no ar incorpóreo!”.{e}

frase final parece particularmente shakespeariana em sua riqueza imaginativa,mas suas palavras-chave aparecem apenas uma vez cada nas peças, “featured” emMuch Ado (“How wise, how noble, Young, how rarely featured”){f} e “unbodied”em Troilus and Cressida (“And that unbodied figure of the thought/That gaven’tsurmised shape”), e a nenhum desses usos Melville deve sua leve combinação. Aligação cerrada de “dived” (mergulhar) e “plucked” (arrancar, trazer) éprovavelmente dependente de sua presença em Hotspur:

By heaven methinks it were an easy leap,To pluck bright honour from the pale-fac’d moon,Or dive into the bottom of the deep,

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Where fathom-line could never touch the ground,And pluck up drowned honour by the locks.{g}

Mas Melville adaptou esses verbos de ação tão inteiramente a seu próprio uso queeles se tornaram sua propriedade tanto quanto de Shakespeare.

Ao conduzir-se através de sua concepção de herói trágico que não deve serdependente nem de classe ou costume, Melville demonstrou seu entendimentoda arte “que a natureza produz” e cumpriu com o princípio orgânico deEmerson. Sua prática da tragédia, ainda que tenha ganhado força a partir deShakespeare, tem real liberdade; ela não se baseia inteiramente em Shakespeare,mas sobre o homem e a natureza tal como Melville os conhecia. Ademais, eleestava capacitado para lidar, em suas melhores cenas, com um tipo de dicção quepoderia, como Lawrence notou, transmitir algo “quase super-humano ouinumano, maior do que a vida”. Essa qualidade pode ser ilustrada por fim nalinguagem de “A Grande Armada” ou de “A Refinaria” ou da caçada final, ou dadeclaração de Ishmael sobre o que a baleia branca significava para ele. Um maisbreve exemplo de como Melville teria aprendido sob a tutela de Shakespeare adominar, às vezes, uma fala dramática que não recai em verso, mas se elaborasobre uma variedade magnífica e fluente de linguagem, é o desafio que Ahablança ao fogo:

Ó, tu, espírito translúcido de fogo translúcido, que outrora nestes mares, comoum Persa, adorei, até que no ato sacramental fui por ti tão queimado, queainda hoje guardo a cicatriz; agora te conheço, tu, espírito translúcido, e agorasei que teu culto é desafiar-te. Amor e veneração não te fazem benevolente; emesmo pelo ódio tu sabes apenas matar; e tudo destróis. Não é um tolodestemido que ora te enfrenta. Reconheço o teu poder sem lugar ou palavra;mas até o derradeiro alento desta minha vida de terremotos contestarei tuadominação incondicional e absoluta sobre mim. Em meio a essa personificaçãodo impessoal, há uma personalidade aqui. Embora eu seja, no máximo,somente um pormenor; de onde quer que eu tenha vindo; para onde quer queeu vá; enquanto viver neste mundo, a personalidade régia vive dentro de mime tem consciência de seus régios direitos. Mas guerra é dor, e o ódio,infelicidade. Vem na tua mais baixa forma de amor e eu estarei de joelhos parabeijar-te; mas em tua mais suprema, vem como simples força divina; e emboralances esquadras de mundos carregados, há qualquer coisa aqui dentro quepermanece indiferente. Ó, tu, espírito translúcido, do teu fogo me fizeste, ecomo um verdadeiro filho do fogo eu o exalo de volta a ti.{h}

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O completo significado dessa fala só pode ser apreendido em seu contexto dotumultuoso e súbito aparecimento da tempestade e em relação aos laçosdemoníacos que unem Ahab ao Parse adorador do fogo. Mesmo nesse contextonão é de modo algum claro o que Melville pretende exatamente ao fazer Ahablembrar o fogo como seu pai e dizer prontamente: “Mas és apenas o meu paiardente; a minha doce mãe, eu não conheço. Ah, cruel! Que fizeste com ela? Eis omeu enigma”{i} Imerso nas forças primitivas em Moby Dick, Melville logoaprende que – enquanto ele faz Ishmael indicar o que concerne ao “grandedemônio imperceptível dos mares da vida”{j} – há níveis subterrâneos maisprofundos do que o entendimento pode entender ou sondar. Mas quaisquer quesejam as radiações de intuição latentes nessas palavras, elas emanam do centro deum pensamento articulado. Aqui, se o preconceito de Emerson contra o romanceo tivesse permitido ver, estava a prova de que o dialeto da América do século XIX

poderia atingir altos níveis dramáticos. Isso não significa que algum americanoum dia tenha falado dessa forma, não mais do que os elisabetanos como Lear;contudo, isso significa que as progressões da prosa de Melville são agora baseadasem um sentido de ritmo de fala, e não do verso de alguém. A dicção elaboradanão pode nos levar a pensar que as palavras foram escolhidas de maneiradescuidada, ou apenas porque soavam bem. Pois elas foram combinadas em umaretórica vital e assim firmavam a defesa de uma das principais doutrinas dotempo, o esplendor da personalidade única. O encontro de forças é tremendo: o“poder superior, sem lugar”, um símbolo do mistério inescrutável que Ahab tantoodeia, é colocado contra sua própria integridade, que não admitirá a intrusão denada que “não seja íntegro” e que glorifica ambas em sua magnificência “régia” ena terrível violência de sua “vida em terremoto”. As fontes do homem isolado, suacoragem e sua desconcertante indiferença a tudo que esteja fora dele, forampoucas vezes tão altamente exaltadas.

As fontes verbais demonstram que Melville agora dominou o maduro segredode Shakespeare, de como elaborar o drama pela própria linguagem. Ele aprendeua fiar-se em mais e mais verbos de ação, que emprestam sua pressão dinâmica amovimento e significado. Uma tensão altamente efetiva é posta por contrasteentre “tu impulsionaste navios inteiramente carregados de mundos” e “há algoaqui que ainda permanece indiferente”. A compulsão para arrebatar o peitoexercida pela última sentença sugere como o drama é totalmente inerente àspalavras. Melville também ganhou algo da energia verbal dos compostos (“full-freighted”); e algo também do sentido acelerado de vida que advém de fazerparte de uma voz atuar como outra – por exemplo, “terremoto” (“earthquake”)como um adjetivo, ou a construção de “sem lugar” (“placeless”), um adjetivo apartir de um substantivo.

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Mas o amadurecimento do poder de Melville não poderia ser pensado apenasem relação ao drama. Isso é tão aparente em sua narrativa quanto pode sersugerido muito brevemente por uma de muitas de suas alusões bíblicas, que faznão com solenidade, mas com elevado humor. Ele estava terminando o capítulosobre “A Cauda”: “Por mais que a disseque, não consigo ir além da superfície dasua pele; não a conheço, e jamais a conhecerei. Mas se dessa baleia nada sei nemsobre a cauda, como compreender sua cabeça? Ainda mais, como compreender oseu rosto, se rosto ela não o tem? Tu me verás pelas costas, a minha cauda, elaparece dizer, porém a minha face não se verá. Mas não consigo ver direito o seutraseiro, e por mais que haja indícios de um rosto, digo e repito, ela não o tem”.

O efeito burlesco é de engrandecer mais do que de diminuir o tema, não deblasfemar Jeová, mas de conferir grandeza à baleia. A certeza interior de Melvillenão era tal que ela livrava sua linguagem das constrições que limitaram WhiteJacket. Estivesse ou não consciente de simbolizar o sexo nas energias elementaresdo fogo ou na baleia branca, quando ele quis lidar com o assunto diretamente,não se serviu de sugestões preventivas e tratou com muita simplicidade acamaradagem whitmaniana entre Ishmael e Queequeg. Em “A Batina” eletambém escreveu um capítulo sobre o falo heróico da baleia.

Obra fundamental da crítica literária norte-americana, nela aparece pelaprimeira vez a formulação “Renascimento Americano”, para se referir àsprincipais obras publicadas entre 1850 e 1855.

Extraído do capítulo “The Revenger’s Tragedy”, de American Renaissance: Artand Expression in the Age of Emerson and Whitman, 1941.

{a} Otelo, Ato 5, Cena 2: “Quando um malígno turco de turbante/Derrota um veneziano e difama o Estado”.{b} Cf. Capítulo 36. Na tradução, perdeu-se o efeito dos “versos brancos”, assim como nos próximos dois

exemplos.{c} Cf. Capítulo 37.{d} Cf. Capítulo 16, “O Navio”, p. 93.{e} Cf. Capítulo 33, “O Specksynder”, p. 165.{f} Muito barulho por nada, Ato 3, Cena 1, fala de Hero a Úrsula: “Quão sábio, quão nobre, Jovem, de tão raros

traços”.{g} Henrique IV, Ato 1, Cena 3: “Pelo céu parecia-me que fosse um fácil obstáculo/Agarrar a honra reluzente

da lua de pálidas faces,/Ou mergulhar a ré das profundezas/Onde a sonda nunca poderia tocar o chão/Etrazer a honra afogada pelas madeixas”.

{h} Cf. Capítulo 119, “Os Círios”, p. 524.{i} Cf. idem, p. 524.{j} Cf. Capítulo 41, “Moby Dick”, p. 209.

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APÊNDICE

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YOUNG, James D. “The Nine Gams of the Pequod”, American Literature 15 (Jan. 1954), pp. 449-463.ZOELLNER, Robert. The salt-sea mastodon; a reading of Moby Dick. Berkeley: University of California Press,

1973.

NO BRASIL

EDIÇÕES DE MOBY DICK

Moby Dick, a fera do marTradução Monteiro Lobato e Adalberto RochsteinerColeção Paratodos, vol. 4São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1935

Moby Dick, a fera do marDesenhos Louis ZanskyEdição Maravilhosa n. 4Rio de Janeiro: Ebal, 1948

Moby Dick, ou a baleiaTradução Berenice XavierPrefácio Rachel de QueirozColeção Fogos Cruzados. Rio de Janeiro: José Olympio, 1950Coleção Fogos Cruzados. Rio de Janeiro: Ediouro, 1967Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982São Paulo: Publifolha, 1998

Moby DickRio de Janeiro: Ebal, 1957(Dell Publishing)Cinemin n. 65

Moby DickTradução José Maria MachadoSão Paulo: Clube do Livro, 1957

Moby DickRio de Janeiro: Ebal, 1958Álbum Gigante n. 42

Moby Dick, a fera do marAdaptação Maria Teresa GiacomoSão Paulo: Melhoramentos, 1962

Moby DickAdaptação F. da Silva RamosRio de Janeiro: Record, 1962

Moby DickTradução Francisco Manuel da Rocha FilhoRio de Janeiro: Bruguera, 1966

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Moby DickRio de Janeiro: Ebal, 1967(Gilberton World Wide Publications)Maravilhas da Edição Maravilhosa n. 7

Moby DickRecontado por Carlos Heitor ConyColeção Elefante. Rio de Janeiro: Ediouro, 1970

Moby Dick, ou a baleiaTradução Péricles Eugênio da Silva RamosSão Paulo: Abril Cultural, 1972

Moby Dick, a fera do marAdaptação Francisco Manuel da Rocha FilhoSão Paulo: Editora Abril, 1972

Moby DickAdaptação Irwin ShapiroTradução Mauro Campos SilvaSão Paulo: Hemus, s.d.

Moby Dick, a baleia brancaAdaptação Werner ZotzSão Paulo: Scipione, 1985

Moby DickTraduzido do espanhol por Yone QuartimSão Paulo: Tempo Cultural, 1989

Moby DickArte Bill SienkiewiczAdaptação Bill Sienkiewicz e Dan ChichesterClassics IllustratedSão Paulo: Editora Abril, 1990

Moby DickCondensação Maria GuerneSão Paulo: Verbo, 1996

Moby DickAdaptação Luiz Antonio AguiarClássicos IlustradosSão Paulo: Melhoramentos, 1997

A Baleia BrancaAdaptação e arte Will EisnerTradução Carlos SussekindSão Paulo: Cia. das Letras, 1998

Moby DickAdaptação Ana Carolina Vieira Rodriguez

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São Paulo: Rideel, 2002

EDIÇÕES BRASILEIRAS DE OUTRAS OBRAS DE HERMAN MELVILLE

Typee (1846)Mares do sul. Trad. José Maria Machado e Jacob Penteado. São Paulo: Clube do Livro, 1967Taipi, paraíso de canibais. Trad. Henrique de Araujo Mesquita. Porto Alegre: L&PM, 1984

Bartleby (1854)“Prefiro não fazer”, in 7 Novelas Clássicas. Trad. Márcio Cotrim. Rio de Janeiro, Lidador, 1963“Bartleby”, in Contos de Herman Melville. Trad. Olívia Krähenbühl. São Paulo: Cultrix, 1969. São Paulo:

Círculo do Livro, 1987Bartleby: o escrivão. Trad. A. B. Pinheiro Lemos. Rio de Janeiro: Record, 1984Bartleby o escriturário. Trad. Luis Lima. Rio de Janeiro: Rocco, 1986Bartleby, o escrivão. Trad. Irene Hirsch. São Paulo: Cosac Naify, 2005

Benito Cereno (1854)“Benito Cereno”, in Os dramas do mar. Trad. Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Saraiva, 1952. Rio de

Janeiro: Ediouro, 1966“Benito Cereno”, in Contos de Herman Melville. Trad. Olívia Krähenbühl. São Paulo: Cultrix, 1969. São

Paulo: Círculo do Livro, 1987Benito Cereno. Trad. Sandro Pivatto. Rio de Janeiro: Bruguera, 1971Benito Cereno. Trad. Daniel Piza. Rio de Janeiro: Imago, 1993“Benito Cereno”, in América, clássicos do conto norte-americano. Trad. Celso Paciornik. São Paulo:

Iluminuras, 2001

The Confidence Man (1857)O vigarista: seus truques. Trad. Eliane Sabino. São Paulo: Ed. 34, 1992

Billy Budd (1924)“Billy Budd”, in Os dramas do mar. Trad. Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Saraiva, 1952. Rio de Janeiro:

Ediouro, 1966“Billy Budd”, in Novelas Norte-Americanas. Trad. Eurico Dowens. São Paulo: Cultrix, 1965Billy Budd. Trad. Pedro Porto Careiro Ramires. Rio de Janeiro: Bruguera, 1971Billy Budd. Trad. Alexandre Hubner. São Paulo: Cosac Naify, 2003Billy Budd, marinheiro. Trad. Cássia Zanon. Porto Alegre: L&PM, 2005

The Lightning Rod-man“O homem do pára-raios”, in Contos de Herman Melville. Trad. Olívia Krähenbühl. São Paulo: Cultrix,

1969. São Paulo: Círculo do Livro, 1987

The Piazza“O terraço”, in Contos de Herman Melville. Trad. Olívia Krähenbühl. São Paulo: Cultrix, 1969. São Paulo:

Círculo do Livro, 1987

The Story of Town Ho“A história de Town Ho”. Trad. Guilherme Figueiredo, in Os norte-americanos antigos e modernos, org.

Vinícius de Morais, Leitura, 1945. Reproduzido in Obras Primas do Conto Norte-Americano, org. SergioMilliet, Martins, 1945 Reeditado in Contos norte-americanos, org. Vinícius de Morais, Ediouro, 2004.

BIBLIOGRAFIA SELECIONADA SOBRE HERMAN MELVILLE NO BRASIL

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BLAIR, Walter; Hornberger, Theodore e STEWART, Randall. “Herman Melville (1819-1891)”. In Breve históriada literatura americana. Trad. Márcio Cotrim. Rio de Janeiro: Lidador, 1967.

BROOKS, Van Wyck. A época de Melville e Whitman. Trad. Alberto da Costa e Silva e Luis Carlos doNascimento Silva. Rio de Janeiro: Revista Branca, 1954.

DAGHLIAN, C. “A arte retórica de Herman Melville”. São Paulo: Crop, v. 8, 2002.———. “Alusões e Situações Retóricas em Moby Dick”. São José do Rio Preto: Mimesis, v. 2, 1976.———. “Intra-retórica e Extra-retórica em Moby Dick.”. São José do Rio Preto: Mimesis, v. 1, 1975.DICKINSON, Thomas Herbert. “Herman Melville”. In História da literatura norte-americana dos inícios a

1930. Trad. Rolmes Barbosa. São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1948.HILLWAY, Tyrus. Herman Melville. Trad. Marcio Cotrim. Rio de Janeiro: Lidador, 1967.HIRSCH, I.. “Ficção oitocentista em tradução”. São Paulo: Via Atlântica, v. 6, 2004.———. “Translations of Herman Melville in Brazil”. São Paulo: Crop, v. 6, 2001.———. “Notas sobre adaptações de Moby Dick”. Transit Circle, v. 1, 1998.———. “A Baleia Traduzida”. Cadernos de Literatura Em Tradução, v. 1, 1997.———. “The Brazilian Whale”. In: The Ungraspable Phantom – essays on Moby Dick. Kent: Kent University

Press, 2006.———. “Ilustrações de Moby Dick”. In: VI Encontro Nacional de Tradutores, 1996, Fortaleza. Anais do VI

Encontro de Tradutores. São Paulo: Humanitas, 1998.———. “Traduções de Moby Dick”. Atibaia: Anais do XXIX SENAPULLI, 1997.HORNBERGER, Theodore. “Deus e o indivíduo, em Moby Dick, por Herman Melville”. In Os Estados Unidos

através de sua literatura. Trad. Berenice Xavier. Os Cadernos de Cultura, 53. Rio de Janeiro: Ministério daEducação e Saúde, 1953.

HOWARD, Leon. “Herman Melville”. Trad. Pestana Martins. Escritores norte-americanos. São Paulo: Martins,1963.

IVO, Ledo “Na companhia de Melville”. In: Moby Dick, Clássicos Francisco Alves, 1982.MEYER, Augusto. “Moby Dick”. In: Preto e Branco. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1956.NABUCO, Carolina. “Aventuras no mar”. In: Retratos dos Estados Unidos à luz de sua literatura. Rio de

Janeiro: José Olympio, 1967.NUNES, Cassiano. In: Billy Budd. São Paulo: Cultrix, 1965.PHELPS, Leland R. e MCCULLOGH, Kathleen. Melville’s Foreign Reputation: a research guide. Boston: GK.

Hall, 1983. Plataforma LattesQUEIROZ, Rachel de. In: Moby Dick. Rio de Janeiro: José Olympio, 1950.SCHMIDT, Alfonso. In: Moby Dick. São Paulo: Clube do Livro, 1957.SENDER, Ramon. “O poeta caçador de baleias”. A Tribuna, São Paulo, 28 de agosto de 1960.SILVEIRA, Brenno. “Herman Melville”. In: Pequena história da literatura norte-americana. São Paulo:

Livraria Martins, 1943.SODRÉ, Alita. “A obra prima de Melville”. Belo Horizonte: Kriterion, n.61-62, 1962.VAN DOREN, Carl. “Herman Melville”. In: O romance Americano 1789-1939. Trad. Neil R. da Silva. Belo

Horizonte: Itália, 1960.ZABEL, Morton Dauwen. “Herman Melville”. In: A literatura dos Estados Unidos. Trad. Célia Neves. Rio de

Janeiro: Agir, 1947.

ALGUMAS TESES E DISSERTAÇÕES SOBRE MOBY DICK NO BRASIL

CALOR, Viviane Cristine. De Nantucket ao Hades: Uma Interpretação Mitológica em Moby Dick. Dissertaçãode Mestrado em Estudos Lingüísticos e Literários em Inglês, Universidade de São Paulo, 2003

DAGHLIAN, C. Melville e as Técnicas de Persuasão em Moby Dick. Tese de Doutoramento, Universidade deSão Paulo, 1972.

HIRSCH, I. A baleia multiplicada: traduções, adaptações e ilustrações de Moby Dick. Dissertação deMestrado. Universidade de São Paulo, 1998.

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GLOSSÁRIO NÁUTICO

ABITAS cada uma das peças para segurar as voltas das amarras de um mastroADRIÇA cabo ou corda que se utiliza para içar velas, vergas, bandeiras, roupa etc.ADUCHA cada uma das voltas de cabo ou amarra, quando enroladoAMANTILHO cabo que se prende na ponta das vergas para mantê-las em posição horizontal ou para

movimentá-las no sentido vertical e que serve para agüentar e içar, em sentido vertical (pau de surriola,retranca, lança, pau-de-carga etc.)

BARLAVENTO lado da embarcação que recebe ou colhe o vento favorável à sua navegaçãoBARQUILHA aparelho usado para medir a velocidade dos navios; fica imerso e preso ao navio por uma linhaBITÁCULA coluna de madeira ou caixa que contém as bússolas da embarcaçãoBOLINAS cada um dos cabos de sustentação das velas, destinados a orientá-las, de modo a receberem o

vento obliquamenteBOMBAS aparelho destinado a esgota a água que se introduz no navio.BOTES pequenas embarcações presas ao costado do navio e lançadas ao mar pela tripulação para dar caça às

baleias.BRAÇA medida de comprimento anglo-saxônica equivalente a 2 jardas (1,829 m) ou seis pésBRANDAL cabo que vem ou passa da enxárcia dos mastaréus pelas gáveas, e se fixa ao redor dos ovéns da

enxárcia grande (brandal grande) ou vem das pontas dos mastaréus e se fixa no costado do navio (brandalpequeno).

BUJARRONA a maior das velas de proa, de forma triangularBUZINAS peças de forma elíptica de ferro ou outro metal, fixadas na borda, para servirem de guia aos cabos

de amarração dos navios.CABRESTANTE dispositivo mecânico, impulsionado manualmente, destinado a levantar e deslocar grandes

cargas.CADERNAIS caixa elíptica, de madeira ou metal, parte do poleame de laborar, com dois ou mais gornes

(aberturas), dentro da qual trabalham duas ou mais roldanas em um só eixo.CALABROTE cabo de bitola mais fina que a do calabre que servia de amarraCANDELIÇA talha para içar objetos levesCARLINGA gola metálica colocada no convés ou numa coberta, onde se apóia o pé de um mastro; nos navios

de madeira é o entalhe feito na sobrequeilha para o mesmo fim.CASTANHAS peças de madeira ou ferro, fixadas por meio de abas ou orelhas e com abertura destinada a

sustentar um cabo, pau de toldo, haste etc.CASTELO DE PROA parte do convés do navio mais elevada do que o restante.CAVERNA cada uma das peças curvas que, fixadas perpendicularmente à quilha, dão a forma ao casco da

embarcaçãoCAVILHA DE ARGANÉU peça metálica de forma circular ou, menos comumente, triangular ou em oito, em

que se engatam talhas, amarras, correntes ou espias; argolaCONVÉS a parte da coberta do navio compreendia entre o mastro de traquete e o grande.CURVATÁO peça do gurupés, em cujo vão assenta a gáveaESCOTA (de barlavento e de sotavento) cabo fixo à vela para manobra desta.ESCOTILHA abertura nos navios que põe em comunicação entre si as cobertas, o convés e o porão.ESPEQUE estaca para cordas.GIO cada uma das peças de madeira horizontais que formam as cavernas da popaGURUPÉS mastro colocado na extremidade da proa do navio e que forma um ângulo de 36° com o plano do

horizonte.LAIS cabos empregados na manobra do leme.LEME aparelho situado na parte traseira do barco e que serve para lhe dar direção.MASTARÉU nome genérico por que se designa cada um dos suplementos dos mastros. Um mastro pode ter

um ou mais mastaréus colocados uns sobre os outros.

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MASTRO DE MEZENA mastro de ré, que fica mais próximo da popa, nas embarcações de três mastros.MASTRO DO TRAQUETE o que está a ré da roda da proa, a uma quinta parte do comprimento do navio.MASTRO PRINCIPAL OU GRANDE o mastro mais elevado do navio.MOLINETE espécie de cabrestante horizontal, que se coloca à proa dos navios pequenos para suspender as

proas.OSTAXA cabo de gravata ou manilha de quatro polegadas de grossura e 180 metros de comprimento, ligado

à vioneira (cabo ligado ao arpão).OVÉM cada um dos cabos que sustentam mastros e mastaréus para os bordos e para a ré, formando as

enxárciasPAINEL DE POPA a parte chata da popa do navio, que fica por cima da curvatura da roda da proa.PATARRÁS cabo ou corrente que segura o pau de surriola, gurupés e outros paus a bordo, impedindo seu

movimento horizontalPOSTO DA ARPOEIRA pequeno poste localizado na proa do bote baleeiro em que o arpoador se apóia para

arremessar seus ferros.RETRANCA peça de madeira ou metal que num topo se apóia ao mastro no sentido proa-popa e no outro se

fixa o punha da escota da vela.SARILHO cilindro horizontal móvel, acionado por manivela ou motor, em volta do qual se enrolam cordas ou

cabos de aço, para levantar grandes pesosSELHA tina onde se acondiciona um cabo ou cordaSOBREQUILHA peça ou conjunto de peças de madeira ou ferro que se estendem de popa a proa da

embarcação, a fim de fortalecer as cavernasSOTAVENTO lado ou bordo contrário àquele de onde sopra o ventoTOLETEIRA designação comum às peças de madeira ou de metal, em forma de U, nas quais se encaixa o

remoTOMBADILHO parte mais elevada no navio que vai do mastro de mezena até à popa.VERGA peça de madeira ou metal onde é ligada a parte superior da vela.

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GURUPÉS

MASTRO DO TRAQUETE

A GIBA D SOBREJOANETE DE PROA

B BUJARRONA E ALTA DE PROA

C ESTAI F JOANETE DE PROA

G MESTRA DE PROA

H TRAQUETE

MASTRO GRANDE OU PRINCIPAL

MASTRO DE MEZENA

I SOBREJOANETE DO MASTRO GRANDE N MEZENA DO SOBREJOANETE

J ALTA DO MASTRO GRANDE O MEZENA DO JOANETE

K GRANDE DO JOANETE P ALTA DE MEZENA

L MESTRA Q MEZENA

M GRANDE

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CRÉDITOS DE IMAGENS{+}

CAPA: Ilustração de Hare Lanz a partir de gravura de Barry Moser (1979).PP. 1, 10-11, 25, 595, 629: Detalhes de ilustrações reproduzidas na Harper’s New Monthly Magazine, v. 49, n.

293, out. 1874. Cortesia da Cornell University Library, Making of America Digital Collection.PP. 6-7, 648-653: ilustrações de Hare Lanz.

+ A numeração dos links, corresponde à paginação da edição impressa do mesmo título.Optamos por mantê-la apenas como referência, já que ela na verdade varia conforme a plataformadigital de leitura que se utilize.

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© Cosac Naify, 2013

Coordenação editorial ALEXANDRE BARBOSA DE SOUZAProjeto gráfico original LUCIANA FACCHINIRevisão CECILIA GIANNETTI, FLÁVIA ROCHA, RAUL DREWNICK, NELSON FONSECA NETOAdaptação e coordenação digital ANTONIO HERMIDA 1ª edição eletrônica, 2013

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Melville, Herman [1819-1891]Moby Dick, ou, A baleia: Herman MelvilleTítulo original: Moby Dick [1851]

Tradução: Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de SouzaTradução dos apêndices: Bruno GambarottoSão Paulo: Cosac Naify, 2013.

BibliografiaISBN 978-85-405-0449-31. Literatura norte-americana I. Título. II. Título: A baleia.

Índice para catálogo sistemático:1. Literatura norte-americana 028.5

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COSAC NAIFYRua General Jardim, 770, 2º andar01223-010 São Paulo SPTel. [55 11] 3218 1444Fax. [55 11] 3257 8164www.cosacnaify.com.br

Atendimento ao professor [55 11] 3218 1473

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FONTE Swift e Gotham

PRODUÇÃO DIGITAL EquireTech