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Sobre o conceito de crise na teoria marxista e as crises financeiras de 2007-8 e da dívida pública na Europa.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINACentro de Filosofia e Cincias HumanasDepartamento de Sociologia e Cincia PolticaPrograma de Ps-Graduao em Sociologia Poltica

Neoliberalismo e hegemonia financeira: a crise financeira de 2007-8 e a crise da dvida pblica na Zona do Euro

Joo Gabriel Vieira [email protected]

Artigo realizado para a disciplina Anlise Sociopoltica do Sistema Financeiro no Capitalismo Contemporneo, nvel mestrado, ministrada pelo Prof. Ary Cesar Minella, como requisito para a obteno de conceito.

1 Semestre de 2014

1. Introduo: as crises do ponto de vista marxista

Do ponto de vista da teoria marxista, as crises econmicas no decorrem apenas de mecanismos estritamente econmicos, embora suas condies estejam inscritas na prpria lgica do desenvolvimento do capitalismo de modo geral (enquanto possibilidade formal ou abstrata), e, mais especificamente, nas caractersticas prprias de cada perodo de acumulao do capital. Como o capital antes de tudo uma relao social, as crises econmicas so, tambm, resultantes de escolhas e decises polticas, as quais, como tal, esto atravessadas por relaes de antagonismo, dependncia e conflito entre as classes sociais. Isso significa que as crises econmicas no so de algum modo extrnsecas lgica de funcionamento do capitalismo e, portanto, fenmenos anmalos em relao ao seu funcionamento timo ou ideal; e que tampouco so fenmenos puramente mecnicos que independem dos sujeitos.Alm disso, as crises constituem-se em momentos de reestruturao no padro de acumulao e de disputadas de hegemonia, e no apenas uma correo de curso ou flutuaes cclicas inerentes ao sistema. No apenas a taxa de lucro restabelecida no processo, mas novas bases de acumulao so criadas atravs da reconfigurao dos elementos constituintes do modo de produo capitalista em mbito global, o que tem implicaes sociais e polticas que extrapolam a esfera econmica strict sensu. luz desse referencial terico, a premissa bsica, portanto, deve ser de que fenmenos conjunturais, ou, mais especificamente, as crises financeiras das ltimas dcadas, tais como as que iremos analisar aqui, so apenas compreensveis de uma perspectiva bem mais longa (BRENNER, 2003, p.13). Ou seja, s so compreensveis a partir de uma perspectiva histrica que abarque os ciclos longos de transformao do modo de produo capitalista. Portanto, temos que distinguir, na histria do capitalismo, certos momentos em que numerosos fatores desembocam num novo conjunto de relaes internacionais e internas, que formam um sistema e que modelam a vida social (CHESNAIS, 1996, p.14). A fase que nos interessa aqui a que tem incio em meados da dcada de 1970, a qual Chesnais (idem) chama de mundializao financeira do capital, e que, do ponto de vista ideolgico e poltico, convencionou-se chamar de neoliberalismo.Assim, a crise econmica de 2007-8 e a subsequente crise das dvidas pblicas de alguns pases da zona do euro devem ser vistas contra o pano de fundo do estgio atual de desenvolvimento do capitalismo, com suas caractersticas e processos de desenvolvimento especficos.So as contradies do capitalismo contemporneo que provocaram a atual crise estrutural no processo de acumulao do capital. E o capitalismo contemporneo, a lgica de seu processo de acumulao, , por sua vez, consequncia das formas como ele prprio saiu de sua ltima antes desta crise estrutural. (CARCANHOLO, 2011, p.73)A crise estrutural anterior, qual se refere o autor, data dos anos 1970, quando o padro de acumulao iniciado aps o fim da II Guerra Mundial se esgota. O modo como tal crise foi superada ou, em outros termos tambm marxistas: como as suas contradies foram deslocadas deu a forma do padro de acumulao que se estende at os dias de hoje. A hiptese com que geralmente operam os tericos marxistas que a persistncia dessa crise e a velocidade cada vez mais rpida com que giram os ciclos econmicos, marcados por crises financeiras progressivamente mais graves, sugerem o esgotamento do ciclo iniciado em meados da dcada de 1970.Em consonncia com essas premissas, antes de analisar as crises em questo, o primeiro passo caracterizar a atual fase de acumulao do capital a fim de compreender como se desenvolveram as condies para que tais crises ocorressem. Na prxima seo iremos, portanto, recuperar algumas teorias sobre o neoliberalismo e a financeirizao do capitalismo contemporneo.

2. Neoliberalismo e hegemonia financeira

O neoliberalismo surgiu em meados da dcada de 1940 como uma reafirmao dos valores liberais neoclssicos e como uma reao terica ao Estado de bem-estar e perspectiva econmica keynesiana, que, quela poca, firmava-se como modelo poltico-econmico dominante do capitalismo ps II Guerra. Como esse modelo renderia frutos nunca antes vistos, sustentando taxas de crescimento econmico altssimas e praticamente no exibindo nenhuma crise importante at meados da dcada de 1970, o neoliberalismo permaneceu no ostracismo e desacreditado enquanto teoria econmica. Entre 1940 e 1970, o receiturio anticclico aplicado pela interveno do Estado, concebido no apenas como regulador dos mercados mas tambm como investidor de peso, hegemonizou a poltica econmica mundial. Eram os 30 anos gloriosos, que Harvey (2008) chama de liberalismo embutido:Nos pases capitalistas avanados, a poltica redistributiva (incluindo algum grau de integrao poltica do poder sindical da classe trabalhadora e apoio negociao coletiva), os controles sobre a livre mobilidade do capital (algum grau de represso financeira particularmente por meio de controle do capital), a ampliao dos gastos pblicos e a criao do Estado de bem-estar social, as intervenes ativas do Estado na economia, e algum grau de planejamento do desenvolvimento caminharam lado a lado com taxas de crescimento relativamente elevadas. O ciclo de negcios foi controlado com sucesso mediante a aplicao de polticas fiscais e monetrias keynesianas. [...] O Estado transformou-se na verdade num campo de fora que internacionalizou relaes de classe. Instituies da classe trabalhadora como sindicatos e partidos polticos de esquerda tiveram uma influncia bastante concreta no aparato de Estado. (idem, p.21)Somente com o esgotamento desse modelo, perto do final dos anos 1960, as propostas neoliberais foram recuperadas do exlio intelectual e poltico e aos poucos comearam a ser testadas e aplicadas. Os meios como isso se deu empiricamente foram bastante complexos e contraditrios, prenhes de desvios e variaes diversas, mas o fato que nos anos 1990 o neoliberalismo j havia se consolidado como a nova ortodoxia poltico-econmica simbolizada no Consenso de Washington. Mas mais importante do que explicar o processo compreend-lo. A questo : por que o neoliberalismo se mostrou to atrativo para substituir o keynesianismo falido?O princpio central do neoliberalismo a ideia de que o mercado possui uma racionalidade intrnseca que, se deixada operar sozinha, sem interferncia, leva ao funcionamento perfeito da economia, alocando recursos de forma tima. Da sua condenao de toda e qualquer interferncia estatal. Importa notar, entretanto, que o neoliberalismo no um corpus terico unvoco e coerente, muito menos as experincias prticas que ele deu origem. Mas, para os nossos fins histricos aqui, pode-se abstrair essa questo a fim de operar apenas com alguns seus elementos tpico-ideais. Ser-nos-ia, outrossim, impossvel enunciar aqui ponto a ponto toda a teoria econmica neoliberal. Interessa-nos, sobretudo, apreender a dimenso de classe do projeto neoliberal.Dentre as explicaes que os neoliberais ofereceram para a recesso e estagflao que tomou conta da economia mundial na dcada de 1970, uma delas apontava para o excessivo poder que a classe trabalhadora, por meio dos sindicatos e por causa da situao de pleno emprego, havia obtido face aos capitalistas, onerando as empresas, reduzindo a taxa de lucro e pressionando para baixo o investimento. Ou seja, Um dos principais obstculos para o contnuo acmulo de capital [...] na dcada de 1960 foi o trabalho (HARVEY, 2011, p.20). Assim, uma das medidas para retomar o crescimento deveria ser, na viso dos neoliberais, destruir a capacidade de barganha dos trabalhadores, reduzindo o poder os sindicatos e criando um desemprego estrutural a fim de deprimir os salrios. Uma vez que as razes da crise estavam localizadas no poder nefasto dos sindicatos:O remdio, ento, era claro: manter um Estado forte, sim, em sua capacidade de romper o poder dos sindicatos e no controle do dinheiro, mas parco em todos os gastos sociais e nas intervenes econmicas. A estabilidade monetria deveria ser a meta suprema de qualquer governo. Para isso seria necessria uma disciplina oramentria, com a conteno dos gastos com bem-estar, e a restaurao da taxa natural de desemprego, ou seja, a criao de um exrcito de reserva de trabalho para quebrar os sindicatos. Ademais, reformas fiscais eram imprescindveis, para incentivar os agentes econmicos. Em outras palavras, isso significava redues de impostos sobre os rendimentos mais altos e sobre as rendas. [...] Desta forma, uma nova e saudvel desigualdade iria voltar a dinamizar as economias avanadas [...]. (ANDERSON, 1995, p.11)Sob esse ngulo, fica claro que mais do que uma teoria econmica cientfica em sentido estrito, podemos definir o neoliberalismo como uma configurao de poder particular dentro do capitalismo [...]. [...] esse perodo pode ser descrito como uma nova hegemonia financeira (DUMENIL; LEVY, 2007, p.2):Podemos, portanto, interpretar a neoliberalizao seja como um projeto utpico de realizar um plano terico de reorganizao do capitalismo internacional ou como um projeto poltico de restabelecimento das condies de acumulao do capital e de restaurao do poder das elites econmicas. Defenderei a seguir a ideia de que o segundo desses objetivos na prtica predominou. A neoliberalizao no foi muito eficaz na revitalizao da acumulao do capital global, mas teve notvel sucesso na restaurao ou, em alguns casos (a Rssia e a China, por exemplo) na criao do poder de uma elite econmica. (HARVEY, 2008, p.27)Em suma:Economicamente, o neoliberalismo fracassou, no conseguindo nenhuma revitalizao bsica do capitalismo avanado. Socialmente, ao contrrio, o neoliberalismo conseguiu muitos dos seus objetivos, criando sociedades marcadamente mais desiguais [...]. (ANDERSON, 1995, p.23)Se o neoliberalismo foi incapaz de criar riqueza e renda, foi no entanto capaz de redistribu-la de forma a concentr-la ainda mais nas mos de uma elite capitalista, um tipo de acumulao que Harvey (2008, p.171) chamou de acumulao por espoliao. Segundo ele (idem, pp.172-8), a acumulao por espoliao vale dizer, o neoliberalismo apresenta quatro caractersticas: 1) privatizao e mercadifizao; 2) financializao; 3) administrao e manipulao de crises; e 4) redistribuies via Estado. Aqui, interessa-nos apenas a segunda dessas caractersticas, qual acrescentamos uma quinta: o endividamento pblico e privado (tanto empresarial quanto familiar). Segundo Guttman e Plihon (2008, p.581), o que caracteriza o novo sistema econmico desenvolvido a partir dos anos 1970 uma economia de endividamento conduzida pelas finanas:[...] h trs foras inter-relacionadas por trs dessa alterao fundamental no modus operandi do capitalismo: a dependncia aumentada do endividamento em todos os ramos de atividades econmicas, a facilitao de tal financiamento via endividamento pela inovao financeira, e a globalizao financeira como a fora mais transcendental na internacionalizao do capital.A financializao , no entendimento de Chesnais (1996, p.14), a caracterstica central que define e especifica o capitalismo contemporneo a partir da dcada de 1970: O estilo de acumulao dado pelas novas formas de centralizao de gigantescos capitais financeiros [...]. Ou seja: [...] a esfera financeira que comanda, cada vez mais, a repartio e a destinao social dessa riqueza (idem, p.15). Com a desregulamentao financeira, a proliferao de novos instrumentos financeiros e a crescente liquidez dos capitais, a especulao financeira tornou-se muito mais atrativa do que a inverso produtiva, de modo que o centro de gravidade da acumulao do capital deslocou-se da indstria para os servios e, mais especificamente, para as finanas.Cada vez mais liberta das restries e barreiras regulatrias que at ento limitavam seu campo de ao, a atividade financeira pde florescer como nunca antes, chegando a ocupar todos os espaos. Uma onda de inovaes ocorreu nos servios financeiros para produzir no apenas interligaes globais bem mais sofisticadas como tambm novos tipos de mercados financeiros baseados na securitizao, nos derivativos e em todo tipo de negociao de futuros. Em suma, a neoliberalizao significou a financializao de tudo. Isso aprofundou o domnio das finanas sobre todas as outras reas da economia, assim como sobre o aparato de Estado [...]. (HARVEY, 2008, p.41)A financializao somada ao endividamento pblico e familiar uma consequncia prtica da reduo da arrecadao fiscal e da demanda agregada implicada na poltica econmica neoliberal, que tiveram de ser substitudas pela expanso do crdito constituem duas das principais caractersticas do capitalismo financeirizado. Segundo Foster e Magdoff (2008), A dvida do setor financeiro como percentagem do PIB se elevou pela primeira vez do nvel rasteiro nos anos 60 e 70, acelerou a partir dos anos 80 e disparou depois de meados dos anos 90. Foi ela a principal incentivo para o crescimento econmico do perodo: Este aumento do peso da dvida acumulada, como percentagem do PIB, estimulou fortemente a economia, especialmente o setor financeiro, o que alimentou enormes lucros financeiros e marcou a financeirizao crescente do capitalismo (idem); e traduziu-se num crescimento explosivo dos lucros financeiros em comparao com os no financeiros, e numa abissal disparidade entre os estoques globais de capital real e capital fictcio.Portanto, quando analisamos o neoliberalismo, enquanto modelo de acumulao do capital, temos que manter em mente a centralidade das finanas ou, mais especificamente, do capital fictcio, agigantado ao ponto de tornar-se disfuncional para a acumulao (CARCANHOLO, 2011, p.75) e do endividamento como motor desse modelo. Ambos esses processos encontram-se no cerne das crises recentes que analisaremos em seguida: a crise imobiliria de 2007-8 e a crise da dvida pblica da zona do euro.

3. Crises imobiliria e da dvida pblica

luz desse quadro histrico, o primeiro ponto que devemos ter em mente que essas crises no so fenmenos isolados, nem suas causas principais so diretas e imediatas. Antes, constituem consequncias de desequilbrios gerados pelas transformaes na estrutura econmica global do capitalismo ps-1970. Em comparao com o perodo anterior, crises financeiras (ao contrrio das crises de superproduo) praticamente inexistiam. medida que o indutor de crescimento econmico se deslocava para a capital fictcio, as crises financeiras tornaram-se cada vez mais comuns e mais intensas, at atingir seu pico nos anos de 2007-8. Portanto, segundo Harvey (2011, p.13), essa crise deve ser vista como o auge de um padro de crises financeiras que se tornaram mais frequentes e mais profundas ao longo dos anos, desde a ltima grande crise do capitalismo nos anos 1970 e incio dos anos 1980. Lordon (2007), lista a principais delas:Desde que ela [a nova arquitetura financeira internacional] se imps, tem sido difcil passar mais de trs anos seguidos sem um incidente de envergadura [...]: 187, quebra dos mercados de aes; 1990, quebra dos junk bonds (ttulos podres) e crise das savings and loans (instituies financeiras de poupana e emprstimos) norte-americanas; 1994, crise de debntures norte-americanos; 1997, primeira fase da crise financeira internacional (Tailndia, Coria, Hong Kong); 1998, segunda fase (Rssia, Brasil); 2001-2003, estouro da bolha da Internet.Portanto, embora o epicentro da crise de 2007-8 tenha se localizado no mercado hipotecrio subprime nos EUA, s foi possvel propagar-se to rpida e intensamente pelos quatro cantos do globo por causa dos canais criados nas ltimas trs dcadas de mundializao financeira do capitalismo, bem como a estreita integrao entre os mercados financeiros globalizados.Entre as causas diretamente implicadas na inflao da bolha imobiliria nos EUA, esto as polticas monetrias do FED e o incentivo dado ao investimento imobilirio como forma de superar a bolha das chamadas empresas de alta tecnologia pontocom, que estourou em 2001. Com a saturao e queda deste mercado, os capitais em excesso de liquidez migrariam para o setor imobilirio e sustentariam um boom especulativo que inflaria uma nova bolha. Segundo Chesnais (2007a), 2001 o ano que v as autoridades monetrias norte-americanas adotarem a ampliao do crdito hipotecrio, como resposta crise da bolsa de aes de alta tecnologia. Mas as razes do problema remontam, como viemos reiterando, a processos mais amplos e antigos:Toda la etapa de la liberalizacin y globalizacin financiera de las dcadas de los ochenta y los noventa estuvo basada en acumulacin de capital ficticio, sobre todo en manos de Fondos de inversin, Fondos de pensiones, Fondos financieros Y la gran novedad desde finales o mediados de los aos 90y a todo lo largo de la primera dcada del siglo XXI fue, en los Estados Unidos y en Gran Bretaa en particular, el empuje extraordinario que se dio a la creacin de capital ficticio en la forma de crdito. De crdito a empresas, pero tambin y sobre todo de crditos a los hogares, crditos al consumo y ms que nada crditos hipotecarios. [] a todo lo que ya dije, se aadi el hecho de que durante los dos ltimos aos los prstamos se hacan a hogares que no tenan la menor posibilidad de pagar. Y adems, todo eso se combino con las nuevas tcnicas financieras [], permitindose as que los bancos vendieran bonos en condiciones tales que nadie poda saber exactamente qu estaba comprando hasta el fuerte estallido de los subprime en 2007. (CHESNAIS, 2008)As vrias causas diretas implicadas e a srie de eventos que produziram e desencadearam a crise de 2007-8 so complexas demais para ser tratadas aqui. Podemos, no entanto, nos valer da valiosa sntese de Lordon (2008):A crise dos mercados de crdito que castiga a economia norte-americana oferece uma viso quase ideal das relaes fatais da especulao desenfreada. Como em uma parada, desfilam novamente as toxinas gerais do mundo financeiro, sempre as mesmas e numa ordem absolutamente idntica: 1. as tendncias "Ponzi" da especulao; 2. a lassido das avaliaes de riscos na fase de alta do ciclo financeiro; 3. a vulnerabilidade estrutural a uma pequena mudana de ambiente e o efeito catalizador de um enfraquecimento pontual do sistema, que precipita a reviravolta; 4. a reviso instantnea das estimativas; 5. o contgio de outros setores do mercado; 6. o choque dos bancos excessivamente expostos; 7. a ameaa de um acidente sistmico, ou seja, de um colapso global, seguido de uma recesso generalizada por estrangulamento do crdito e um pedido de socorro aos bancos centrais feito por todos os fanticos da livre iniciativa privada.Vale ressaltar aqui o primeiro e o segundo pontos. As bolhas especulativas se baseiam na hiptese impossvel de que sempre haver novos investimentos para sustentar os ganhos do que investiram antes. Enquanto a liquidez e o crdito eram excessivos, os juros baixos, e os instrumentos de securitizao davam a impresso de minimizar os riscos e, portanto, incentivavam o risco moral (ponto dois: lassido das avaliaes na fase de alta), cada vez mais camadas da populao de fato ingressavam no mercado imobilirio (os chamados subprimes, isto , pessoas que no tinham condies de pagar por suas hipotecas), ou os que nele j estavam auferiam cada vez maiores rendas com suas hipotecas atreladas a imveis sobrevalorizados. Mas uma vez que ocorreu uma pequena mudana no ambiente (o aumento da taxa bsica de juros pelo FED), a vulnerabilidade estrutural do sistema precipitou a queda. Como os produtos financeiros esto completamente articulados e espraiados pelo sistema, o contgio rapidamente espalhou-se pelos bancos e investidores, levando ao choque de confiana e ao colapso global do sistema.O ponto culminante da crise a restrio do crdito e a recesso. Uma vez que o dnamo da economia o capital financeiro, tanto ao fornecer crdito para investimentos produtivos quanto para o consumo familiar, a destruio de ativos financeiros afeta diretamente o que os marxistas chamam de economia real, reduzindo a demanda, derrubando a produo e gerando desemprego. O que se segue um ciclo vicioso que s pode ser rompido fazendo o crdito fluir novamente para irrigar a economia. O problema que os resgates trilionrios dados aos bancos pelos bancos centrais pouco so utilizados neste sentido. Ao invs de fomentar a produo, o emprego e consumo, as receitas pblicas so usadas para concentrar e centralizar ainda mais o capital financeiro nas mos de instituies cada vez mais grandes demais para falir.O termo socorro nacional impreciso. Os contribuintes esto simplesmente socorrendo os bancos, a classe capitalista, perdoando-lhe dvidas e transgresses, somente isso. O dinheiro vai para os bancos, mas at agora nos EUA no para os proprietrios que foram despejados ou a populao em geral. Os bancos esto usando o dinheiro, no para emprstimos [isto , para religar o circuito do crdito], mas para reduzir o desnvel dvida-capital e comprar outros bancos. Eles esto ocupados em consolidar seu poder. (HARVEY, 2011, p.33)Assim, alm das pessoas diretamente afetadas pela inadimplncia e pelo desemprego, a sociedade em geral quem arca com o prejuzo via transferncia de receita pelo Estado. neste ponto que entra a crise da dvida pblica em alguns pases da zona do euro.A crise da dvida pblica em vrios pases da zona do euro comeou logo aps a crise de 2007-8, j em 2009, quando alguns deles se viram com dificuldades ou efetivamente impossibilitados de cumprir com o servio de suas dvidas. Embora as razes dessa crise remontem formao da zona do euro especialmente os desequilbrios comerciais entre os pases membros, e a ortodoxia da poltica fiscal imposta formalmente pela unio monetria (LAPAVITSAS et all, 2010) , sua causa imediata foi o choque do crdito decorrente do pnico gerado pelas perdas da crise financeira global e debacle geral das instituies financeiras, o que impossibilitou aos Estados tomarem emprstimos nos mercados de crditos.The integration of peripheral countries in the eurozone has been precarious as well as rebounding in favour of Germany. The sovereign debt crisis has its roots in this underlying reality rather than in public profligacy in peripheral countries. When the crisis of 2007 2009 hit the eurozone, the structural weaknesses of monetary union emerged violently, taking the form of a public debt crisis for [] peripheral countries. (LAPAVITSAS et all, 2010, p.324)Como esses pases sustentavam altos nveis de endividamento em relao ao PIB, diante do risco de bancarrota, seus ttulos se tornaram pouco atrativos. Noutras palavras, esses pases com enormes passivos se viram impossibilitados de obter recursos financeiros a fim de cumprir com suas obrigaes:For the euro periphery, the 2008 global financial crisis triggered a major reassessment among investors of the sustainability of rapid credit growth and large external deficits. In turn, this took the form of significant private sector capital outflows, the tightening of credit conditions, and a shuddering halt in construction activity, with national banking systems grappling with the twin problems of rising estimates of loan losses and a liquidity squeeze in funding markets. In turn, the combined impact of domestic recessions, banking-sector distress, and the decline in risk appetite among international investors would fuel the conditions for a sovereign debt crisis. (LANE, 2012, p.54)As tentativas de resolver o problema e evitar um default, que se imagina ser generalizado dado a interdependncia dos bancos nos pases da zona do euro, no questionaram os dogmas neoliberais. Com efeito, a crise se mostrou um momento oportuno para reafirmar esses dogmas. Assim, como condio para os resgates por parte do BCE (Banco Central Europeu) e do FMI (Fundo Monetrio Internacional), foram impostas polticas fiscais ortodoxas muito duras (isto , medidas de austeridade), resultaram numa forte recesso. Alguns pases, como Grcia, Espanha e Portugal, viram seu PIB encolher abruptamente, ao mesmo tempo em que as taxas de desemprego se elevam a nveis inditos ao longo de todo o ps II Guerra. E, o que pior, com a reduo nos gastos sociais, e um verdadeiro desmonte do que havia sobrado do Estado de bem-estar, a crise econmica se traduziu numa terrvel crise social.A Grcia representa um caso particularmente dramtico e ilustrativo no que concerne ineficincia de tais polticas. Embora j exibisse uma elevada razo de endividamento por PIB, resultado do dinheiro fcil e barato disposio dos pases da euro zona, a crise financeira global tornou impossvel Grcia rolar sua dvida. Ela foi, ento, o primeiro pas a ser socorrido pela troika, em meados de 2010. Mas, desde ento, as condies durssimas de austeridade impostas em troca do resgate, bem como as reformas estruturais, no fizeram seno afundar o pas numa severa recesso sem, com isto, reduzir o endividamento (FEATHERSTONE, 2011). O que tais medidas tm assegurado, afinal, a transferncia de recursos pblicos para o sistema bancrio.

4. Consideraes finais

Apesar da interveno estatal na crise, com compras de instituies financeiras, emprstimos e polticas monetrias, a conduo dessas crises deixa muito claro como os dogmas neoliberais do capitalismo financeirizado continuam inquestionveis. Por trs de tudo isso, encontra-se a mxima: privatizar os lucros, socializar as perdas. As causas da debacle financeira no esto sendo tratadas, ao contrrio: alm de as tentativas de retomar o crescimento terem dado resultados pfios, prepara-se o terreno para a prxima crise, uma vez que a desregulamentao financeira e a concentrao de capital se aprofundam como resultado desta. Isso segue a receita tpica das crises financeiras nesta fase do capitalismo: a crise atual tambm fora preparada pela crise antecedente (a bolha pontocom de 2001-3). O problema a velocidade e intensidade com que as crises financeiras tm se sucedido. Se a crise de 2007-8 foi a mais terrvel desde o crash de 1929, assustador imaginar o que vir depois dela se reformas profundas e estruturais no forem feitas no mercado financeiro. Tudo indica para o fato de que o capitalismo se encontra no limitar de uma fase nova, e as sadas encontradas para essa crise daro a tnica da fase seguinte. Capitais em excesso sero destrudos, as elites econmicas reconfigurar-se-o, mas a lgica central do modo de acumulao provavelmente seguir intacta. Tudo aponta para a permanncia das polticas neoliberais, uma vez que nenhum outro modelo se apresenta como substituto.

Referncias bibliogrficas

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