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NÉMESIS A CAÇA AO CRIMINOSO MAIS PROCURADO DO BRASIL

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NÉMESISA CAÇA AO CRIMINOSO MAIS

PROCURADO DO BRASIL

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MISHA GLENNY

NÉMESISA caça ao criminoso mais procurado do Brasil

Tradução deRAQUEL DUTRA LOPES

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In memoriam

Sasha Glenny1992-2014

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O Brasil, esse país lindo, tem o recorde mais feio do mundo. Estamos emprimeiro lugar no ranking da violência homicida. De cada dez pessoas

assassinadas no mundo, uma é brasileira. Isto resulta em mais de 56 000 mortesviolentas todos os anos. Na maioria, são jovens negros, mortos por armas de

fogo. O Brasil é também um dos maiores consumidores de drogas do mundo e aGuerra às Drogas tem sido particularmente dolorosa aqui. Cerca de cinquentapor cento dos homicídios ocorridos nas ruas do Brasil estão relacionados com a

Guerra às Drogas.

Ilona Szabó de Carvalho, Instituto Igarapé, TED Talk,outubro de 2014, Rio de Janeiro

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ÍNDICE

PREFÁCIO ................................................................................. 19PRÓLOGO: A DETENÇÃO I 9-10 de novembro de 2011 .............. 25

PRIMEIRA PARTE: PROTAGONISTA

CAPÍTULO 1: EDUARDA Dezembro de 1999-Junho de 2000 ....... 35CAPÍTULO 2: FAVELA 1960-1976 ............................................... 47CAPÍTULO 3: COCAÍNA 1979-1989 ............................................. 63CAPÍTULO 4. CORPOS 1980-1987 ............................................... 75CAPÍTULO 5: COLAPSO MORAL 1989-1999 ................................. 89CAPÍTULO 6: MORRO ACIMA Junho de 2000 ............................... 99

SEGUNDA PARTE: HÚBRIS

CAPÍTULO 1: CHACINA 1993 ...................................................... 103CAPÍTULO 2: ORLANDO JOGADOR 1994 ...................................... 111CAPÍTULO 3: A LEI DE LULU 1999-2004 .................................... 123CAPÍTULO 4: FRATURA 2001-2004 ............................................. 137CAPÍTULO 5: A PAIXÃO DA ROCINHA Abril de 2004 ................... 149

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CAPÍTULO 6: A BALADA DO HOMEM MAGRO Abril de 2004 ........ 159CAPÍTULO 7: MORREU O REI 2004 ............................................. 169CAPÍTULO 8: BEM-TE-VI 2004-2005 ........................................... 175

TERCEIRA PARTE: NÉMESIS

CAPÍTULO 1: A GRANDE MUDANÇA 1994-2004 .......................... 187CAPÍTULO 2: UMA AJUDINHA 2006-2007 .................................... 195CAPÍTULO 3: CUIDAR DO NEGÓCIO 2004-2007 ........................... 207CAPÍTULO 4: NÃO ESTAMOS SOZINHOS 2007 .............................. 217CAPÍTULO 5: TEMPO DE EXPANSÃO 2007 ................................... 225CAPÍTULO 6: A NOIVA DE NEM 2004-2006 ................................ 231CAPÍTULO 7: NÉMESIS 1997-2009 .............................................. 239CAPÍTULO 8: A BATALHA PELO RIO 2006-2008 .......................... 245CAPÍTULO 9: A IDADE DE OURO DA ROCINHA 2007-2009 ........... 253CAPÍTULO 10: POLÍTICA 2008-2010 ........................................... 263CAPÍTULO 11: O HOTEL INTERCONTINENTAL Agosto de 2010 .... 269

QUARTA PARTE: CATARSE

CAPÍTULO 1: PRIMEIRO CONTACTO Setembro de 2010 ............... 281CAPÍTULO 2: A CONQUISTA DO COMPLEXO DO ALEMÃO

Novembro de 2010 ......................................................... 287CAPÍTULO 3: CONFISSÕES Janeiro-Abril de 2011 ........................ 297CAPÍTULO 4: LUANA E ANDRESSA 9 de maio de 2011 ................. 305CAPÍTULO 5: A DETENÇÃO II 3-9 de novembro de 2011 ........... 315

EPÍLOGO .................................................................................. 333APÊNDICE As Principais Forças de Segurança

no Rio de Janeiro .............................................................. 351

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GLOSSÁRIO ............................................................................... 355LISTA DE ILUSTRAÇÕES .............................................................. 357AGRADECIMENTOS .................................................................... 359NOTAS ..................................................................................... 363ÍNDICE REMISSIVO .................................................................... 369

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O C E A N O A T L Â N T I C O

S U L

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PREFÁCIO

Aterrar em Campo Grande pela primeira vez foi uma experiên-cia estranha. A capital do estado de Mato Grosso do Sul está a cercade quatrocentos quilómetros a leste do ponto onde o Brasil, o Para-guai e a Bolívia se tocam. Dista também aproximadamente o mes-mo, para sul, do Pantanal, a maior planície húmida tropical do mundo.A primeira impressão que tive foi a de que aquele local em quase nadase parecia com o Brasil.

Com pouco mais de um século, a cidade de Campo Grande foiconstruída segundo um sistema reticular, com avenidas largas e ruasperpendiculares ladeadas por árvores em abundância. Fiquei impres-sionado com a quantidade de lojas com montras largas e compridas.Talhantes exibiam literalmente dezenas de carcaças magras de bovi-nos. Um armazém da John Deere alardeava filas e filas de tratores.A cidade assemelhava-se mais ao Texas rural dos anos sessenta doque ao sensual Rio de Janeiro e à industriosa São Paulo.

Nos limites austeramente definidos da cidade, de súbito edifí-cios espaçosos davam lugar a um solo tão rubro que parecia que aterra tinha sido pintada. O contraste com o verde carregado da vege-tação transformava toda a área numa paisagem de caricatura.

Precisamente onde tudo se tornava verde e vermelho, virei numcruzamento não assinalado, saindo da circunvalação. Tive de evitar

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uns barris de petróleo colocados numa estrada de terra batida antesde chegar a um portão de rede. Dali, via-se a maior parte da peniten-ciária federal de segurança máxima. O design de linhas limpas e mo-dernas dos muros e das torres de vigia foi algo que me abalou deimediato. Os edifícios tinham acabamentos em tons suaves de ver-melho e amarelo.

Depois de o primeiro portão se abrir automaticamente, tive deultrapassar um último obstáculo — armadilhas antitanque. O Brasiltem uma longa tradição de motins prisionais e o governo de CampoGrande não estava disposto a correr riscos. Sendo um de quatro es-tabelecimentos especiais espalhados por este enorme país, o presídiofoi construído para os criminosos considerados mais perigosos.Campo Grande não se assemelha às cidades mais famosas do Brasil,e este presídio é diferente da maioria das suas prisões.

Em primeiro lugar, os guardas prisionais eram consistentemen-te afáveis e cordiais. Alguns falavam inglês bastante bem, um talentoraro no interior brasileiro. Dentro das limitações do seu dever, todosse esforçaram por me prestar auxílio.

Não havia ali qualquer indício da sordidez, da sobrelotação e daviolência latentes comummente associadas ao sistema prisional.O estabelecimento de Campo Grande tem um ar de ordem e previsi-bilidade. Não é um regime complacente para os reclusos, mas não hárelatos de abusos dos direitos humanos ou queixas de violência arbi-trária. Nos quatro estabelecimentos de segurança máxima, nunca umprisioneiro foi vítima de um ataque homicida por parte de outros re-clusos, nem alguma vez houve um motim bem-sucedido. Na maioriadas outras prisões brasileiras, tais ocorrências são corriqueiras.

A notoriedade dos prisioneiros é o principal motivo para a ad-ministração invulgarmente eficiente do presídio. Antigamente, osgrandes assaltantes de banco e líderes de cartéis de droga continua-vam alegremente a trabalhar depois de serem encarcerados. Em es-tabelecimentos regionais e municipais, o suborno de guardas malremunerados é prática comum, para que estes finjam não ver

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telemóveis, drogas, consolas de jogos de vídeo e televisões ilegal-mente introduzidos, bem como mulheres levadas para terem rela-ções sexuais com os reclusos.

Em Campo Grande, a única forma de os presidiários poderemfazer chegar mensagens ao exterior, à exceção das cartas rigorosa-mente monitorizadas, é através dos advogados ou dos familiares quetenham autorização para os visitar. Isto constitui um desafio, até pa-ra os criminosos mais organizados.

Depois de deixar os meus pertences num cacifo, fizeram-mepassar por uma série de controlos de segurança e verificações bio-métricas. Permitiram-me que mantivesse o relógio, os óculos e, porautorização especial dos tribunais, um gravador digital, mas absolu-tamente nada mais. Estes objetos foram verificados e reverificadosantes de dois agentes federais me acompanharem até uma sala retan-gular com cerca de três metros por seis.

À esquerda encontrava-se uma secretária com um computadore uma câmara de vídeo. A parede à direita estava coberta por umpainel com as palavras «Departamento Penitenciário Nacional» escri-tas em letras grandes. A sala era usada para a participação remota deprisioneiros em julgamentos, onde quer que tivessem lugar — Riode Janeiro, São Paulo, Manaus ou Recife.

À minha frente, encontrava-se o homem que eu tinha ido visi-tar — Antônio Francisco Bonfim Lopes. Até à sua detenção em no-vembro de 2011, fora o homem mais procurado do Rio de Janeiro,se não de todo o Brasil. O país conhecia-o não pelo nome de batis-mo, mas antes pela alcunha, «Nem da Rocinha».

Eu tinha ouvido falar dele pela primeira vez em 2007, quandoparticipei numa de várias visitas guiadas disponíveis para se conhecera Rocinha, a maior favela do Brasil e, possivelmente, de toda a Amé-rica do Sul. Há quase mil destas aglomerações à volta do Rio de Ja-neiro, mas a Rocinha é única, por se encontrar mesmo no meio dostrês bairros mais ricos do Rio. Quando lá fui pela primeira vez, já era

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um destino turístico popular. Era possível ir de monovolume pelavia principal, a Estrada da Gávea, e parar para observar os barracõesapinhados de cores garridas em que vivem cerca dos cem mil ha-bitantes da favela. A uma breve visita guiada e um encontro orga-nizado por uma ONG local seguiu-se a compra de um quadro sim-ples para compensar de alguma maneira a economia desesperada dafavela.

Um dos meus guias explicou-me então que o homem que man-dava na Rocinha se chamava Nem. Disse-me, com toda a sincerida-de, que Nem, o chefe do grupo de traficantes da zona, «é o homemque mantém a paz aqui na Rocinha».

Fui recordado de Nem quatro anos depois, quando ele foi deti-do por volta da meia-noite a poucos quilómetros da Rocinha. As cir-cunstâncias da sua detenção foram dramáticas. Comecei a investigare fiquei surpreendido ao descobrir que, antes de ser preso, tinhaconcedido algumas entrevistas a jornalistas brasileiros. Os órgãos decomunicação social descreviam-no frequentemente como um assas-sino implacável que envenenara as vidas de inúmeros jovens a queminiciara no mundo da droga. As entrevistas deixavam entrever umaversão bastante diferente. As respostas de Nem eram fundamenta-das e sugeriam que ele compreendia a fundo a importância política esocial do papel que desempenhava, equivalente ao de um presidente,primeiro-ministro e empresário mais poderoso de uma cidade de ta-manho médio.

Assim, no inverno brasileiro de 2012, escrevi-lhe para a prisão,apresentando-me e requerendo que me recebesse. Então, oito mesesdepois, ali estava eu em Campo Grande: à minha frente, tinha Nem,Inimigo Público n.o 1. É claro que as regras da penitenciária meproibiam de encetar qualquer contacto físico com ele; nem sequerpude dar-lhe um aperto de mão. Dadas as circunstâncias, o nossocumprimento inicial foi bastante contido.

Ele estava a usar a T-shirt azul e as calças de algodão que consti-tuíam a farda da prisão. Quando se levantou para ser escoltado para

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I Em português no original. (N. da T.)

fora da sala, vi que era alto e magro — calculei que medisse cerca de1,85 m. Tinha a pele morena, com um rosto distintamente estreito eum queixo um tudo nada recolhido. Com o cabelo curto, os caracóiscaracterísticos das duas imagens dele que mais circulavam na Inter-net não se viam. O mais cativante eram os seus olhos negros comopiche, tão escuros que as íris e as pupilas pareciam fundir-se. Percebide imediato que aqueles olhos eram a principal fonte do seu caris-ma físico: capazes de nos olharem para a alma, sem nada darem emtroca.

Tratou-me sempre com a forma respeitosa o senhor.I Pouco fa-miliarizado, ao início, com as nuances da língua portuguesa, eu cha-mava-lhe apenas Antônio.

A dada altura durante a nossa reunião, deixei cair a caneta. En-quanto a apanhava, reparei que ele tinha as pernas acorrentadas àmesa de aço que, por sua vez, estava aparafusada ao chão. Tambémrecusou uma chávena de café ou um copo de água, já que teria deexpor as mãos, algemadas, que mantinha debaixo do tampo da mesa(em reuniões seguintes, tiraram-lhe as algemas). Parecia sentir-se hu-milhado por se encontrar naquela situação.

Mostrou-se, não obstante, perfeitamente disposto a falar da suavida, tanto pessoal como profissional. Então, como agora, encontra-va-se em prisão preventiva, pelo que havia certos temas que não co-mentaria, por estarem relacionados com processos criminais aindaem curso.

Ao longo dos dois anos seguintes, visitá-lo-ia dez vezes. Nasprimeiras duas ocasiões, a reunião durou duas horas; nas outras, três.Entrevistar um recluso numa prisão é sempre bizarro. Mas estes en-contros foram particularmente estranhos. Desenvolvi uma relaçãointensa com Antônio — sempre nas circunstâncias mais insólitas

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e talvez, em parte, por causa disso. Gradualmente, começámos a con-versar acerca de questões profundas e íntimas, sendo possível quenem com a família ele tivesse abordado algumas delas. Falámos dedrogas, de violência, de liderança, de fé, de família e de sobrevivên-cia num mundo hostil.

O que se segue é a história de Nem. Embora o seu testemunhoseja fundamental para este relato, como é óbvio não me vali somen-te da sua versão. Falei com familiares, amigos, polícias que o investi-garam, políticos que negociaram com ele, jornalistas que escreveramacerca dele e advogados que o representaram. Esta é, creio, uma his-tória que revela muito acerca da natureza do Brasil contemporâneo— os seus lados positivos e negativos. Mas também nos fala de co-mo os homens e as mulheres sobrevivem, e até prosperam, nas con-dições mais adversas. Como caminham na linha ténue que separa avida da morte.