nem favela nem sertao
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Pela Janela
Marrom lquido entre verdes arborescentes. O azul limpo. Distantes guas pacatas. O
vento alastra o brotar. Pios de pssaros perdidos vindos no sei de onde. Mulheres
comeam a falar. Um homem levanta, toma caf, ouve msica. Muitos ainda dormem
nesta manh de domingo.
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Nem Serto, nem Favela1
Para Andr Lus da Cunha
S a neblina no deixava rastro
Rubens Figueiredo
Pensar uma potica do cotidiano, centrada na sutileza e na delicadeza, propor
um outra forma de encenar a realidade, um antdoto tanto para um cinismo simulacral que
apenas v na proliferao de imagens uma perda geral de sentidos quanto para o
ressurgimento de um Neo-Naturalismo, que afirma o papel do artista como observador e
fotgrafo da realidade, cuja recorrncia, ao menos na literatura brasileira, j foi bem
identificada (SSSEKIND, 1979), presente hoje desde uma produo de/sobre sujeitos
perifricos como no rap passando pelo filme de Fernando Meirelles e Katia Lund (2002)
e livro de Paulo Lins Cidade de Deus at as obras de Maral Aquino, Fernando Bonassi e
Beto Brant; a literatura do entrave de Marcelo Mirisola (ver AZEVEDO, 2004,
p.28/30), hibridismos com procedimentos da esttica da ruptura modernista em Luiz
Ruffato (CHIARA, 2004, p.33), atualizados como uma esttica do excesso, da violncia e
da crueldade, considerada estratgia vitoriosa e mais eficiente em lidar com nossa poca.
O real contemporneo unidimensionalizado em duplo clich: assim como no se
pode falar no contexto internacional que no passe pela agenda ps-11 de setembro que
hipervaloriza temas como o terrorismo, de um ponto de vista conservador ou temas como
estado de exceo e sociedade do controle, de um ponto de vista mais crtico; no plano
intra-nacional, as guerras civis, os conflitos multitnicos urbanos, o narcotrfico
1 Verso reduzida deste texto foi publicada em Estudos de Cinema. SOCINE Ano VI, org. por Mariarosaria
Fabris,Wilton Garcia e Afrnio Mendes Catani, para a editora Nojosa de So Paulo em 2005
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emergem como a representao apocaltpica e desesperanada da barbrie de nossa
poca, num quadro de esvaziamento da transgresso e da revoluo.
Por que rumos o cotidiano e a delicadeza vm sendo recuperados ou no no
cinema brasileiro2? Fiel ao peso do Naturalismo em nossa tradio literria, o espao
pblico, representado pelas imagens-snteses do serto e da favela tm um forte
desdobramento, pelo menos desde o marco do Cinema Novo, estrategicamente resgatadas
por muito do chamado Cinema da Retomada, como forma de recuperar uma visibilidade
no exterior, junto a festivais e a um pblico cinfilo, conquistada pelo Cinema Novo e
nunca mais retomada nos mesmos patamares; ao mesmo tempo, tendo o desejo de
resgatar o pblico e o mercado internos. At que o resgate destas imagens-snteses,
microcosmos e alegorias3 da realidade brasileira, no mais ecoam um projeto totalizante e
certamente no possuem mais marcas utpicas na tradio dos anos 60. Mas este no
meu maior interesse no momento: mas como a partir dessa aliana, uma outra
cinematografia sustentada numa potica do cotidiano foi lanada a um segundo plano.
claro que h filmes como Eu tu eles (1998) de Andrucha Waddington, Cinema,
Aspirinas e Urubus (2005) de Marcelo Gomes e O Cu de Suely (2006) de Karin
Anouz que colocam o serto sob a marca da vida cotidiana e da intimidade (ver
2 Para uma viso mais ampla do cinema brasileiro recente, consultar Lcia Nagib (2002), Luiz Zanin
Oricchio (2003) e Daniel Caetano (2005) 3 Ismail Xavier (1997, 5/6) realiza uma leitura clssica do Cinema Novo e do Cinema Marginal, a partir da
alegoria como clave prioritria para a articulao entre o filme e a realidade brasileira e rev a conhecida
afirmao polmica de Fredric Jameson (2000, 315 e 319): os textos do Terceiro Mundo so
necessariamente alegricos e so um contraponto desistoricizao da produo ps-moderna dos pases
centrais . Para alm da conhecida resposta de Aijaz Ahmad (1992), no debate originalmente publicado em
Social Text, em 1986 e 1987, que ainda dentro de uma perspectiva marxista, procura problematizar a
afrimativa de Jameson, aqui pretendemos afirmar menos a necessidade de totalidade a partir de uma leitura
alegrica e mais a busca de estratgias transnacionais que possibilitem atravessar os textos da cultura de
uma outra forma, sem cair em leituras formalista de obras. Neste sentido, a crtica de Andra Frana (2003,
93/109) a Jameson e Ismail Xavier por suas leituras marcadas pelo conceito de totalidade converge com
minhas preocupaes, apesar de se orientar para a explorao de orientaes tericas, questes e filmes
distintos no cenrio contemporneo. Para este debate, ver ainda SHOHAT e STAM (1994, 292/4).
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MORAES, 2005), mas procuremos refazer esta outra genealogia, esta linhagem de uma
delicadeza perdida, sem parecer soar uma Bossa Nova saudosista, mas um resgate desta
sutileza to presente nas canes de Chico Buarque e Paulinho da Viola, que longe de
mero escapismo de uma realidade cruel se traduzem como altenativas ticas e estticas.
Para pensarmos apenas a partir do cinema moderno brasileiro, nesta reflexo
inicial sobre o cotidiano da intimidade, seria importante lembrar que a casa aparece
marcada pela nostalgia dos espaos senhoriais4 ou de um ambiente rural perdido,
possuindo uma longa tradio, tendo em Lavoura Arcaica de Raduan Nassar, na sua
adaptao para o cinema por Luiz Fernando Carvalho (2001), e em O Viajante (1998) de
Paulo Csar Saraceni seus ltimos frutos. O espao da casa dilacerada est presente nos
grandes momentos de Saraceni, desde sua estria em Porto das Caixas (1965), at A
Casa Assassinada (1970), toda esta trilogia sob o signo de Lcio Cardoso. O mundo
rural, arcaico diante da modernidade, com sua proximidade da natureza, por ter um outro
tempo ainda pode oferecer paisagens ricas como podemos ver em So Bernardo (1971)
de Leon Hirszman. H todo um lirismo no registro da casa, para alm da decadncia do
patriarcalismo rural. Nesta outra linhagem que estamos pretendendo articular, duas obras
deveriam ser melhor analisadas: a de David Neves, que, desde sua estria em Memria de
Helena(1969) (singular revisitao de Humberto Mauro e cujo universo bem poderia
dialogar com Uma Vida em Segredo (2000) de Suzana Amaral) at suas crnicas da
classe mdia carioca em Fulaninha (1984/5) e Jardim de Alah (1988) compe um
trajeto diferenciado dentro do Cinema Moderno. Se Glauber Rocha foi nosso Godard,
David Neves bem poderia ser nosso Truffaut. O que mais um elogio do que uma crtica.
4 Para uma anlise que faz o mesmo em relao a cineastas como Visconti, Orson Welles, Alan Resnais,
Satyajit Ray e romances de Cornelio Penna, Lucio Cardoso e Autran Dourado, ver LOPES, 1999.
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Outro diretor, originrio tambm dos anos 60, mas distante do Cinema Novo,
talvez por isto ainda mais no levado em considerao, Domingos de Oliveira vai se
apresentar cada vez mais prximo do universo carioca, realizando talvez a tentativa de
drama de costumes mais bem sucedida que encontra em Srgio Goldenberg uma
promessa (Bendito Fruto, 2004), diante do apelo fcil da comdia romntica5 que
velhos e jovens diretores tentam realizar (Bossa Nova de Bruno Barreto, 1999;
Pequeno Dicionrio Amoroso, 1996, e Amores Possveis, 2000, de Sandra Werneck;
Como ser Solteiro no Rio de Janeiro, 1997, de Rosana Svartman; Dona da Histria,
2004, de Daniel Filho, entre outros). E, se no falamos de Walter Hugo Khouri, to bem
estudado por Renato Pucci (2001), que, por seu registro, escapa deste tom menor que
perseguimos pela intensidade dramtica.
Seria o caso de olhar com cuidado a obra do argentino-brasileiro Carlos Hugo
Christensen. Poderamos ainda pensar esta outra constelao que estamos procurando
delinear como contraponto aos dilaceramentos alegricos impetrados sombra de Nelson
Rodrigues por Arnaldo Jabour que teve seus melhores frutos entre Toda Nudez ser
Castigada (1975) e Tudo Bem (1978), como bem analisou Ismail Xavier no seu
recente O Olhar e a Cena, cuja dimenso alegrica se dilui mais nos seus trabalhos dos
anos 80 (Eu te Amo, 1980 e Eu sei que Vou te Amar, 1984) bem como o dilogo de
Joaquim Pedro de Andrade com Dalton Trevisan em A Guerra Conjugal (1974), que
possui ecos em Sbado de Ugo Georgetti (1995). Podemos ainda pensar em outro
cinemanovista, Carlos Diegues, que, se por um lado ainda realiza uma tentativa, a partir
do road movie, de pensar de forma mais fluda o Brasil em Bye bye Brasil (1979), tem
em Chuvas de Vero (1977) um filme-chorinho sobre o subrbio carioca, que pela
5 Para uma boa discusso deste filo (ALMEIDA, 2005).
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delicadeza do tratamento da velhice bem pode dialogar com o Outro lado Da rua
(2004) de Marcos Bernstein (2004), mais bem sucedido do que Copacabana (2000)de
Carla Camuratti.
Entrando pelos anos 80, ao mesmo tempo em que Noites do Serto (1984) de
Carlos Alberto Prates Correia dilua o patriarcalismo rural pela delicadeza, herana do
original de Guimares Rosa, estratgia j utilizada anteriormente por Carlos Diegues em
Joana Francesa (1973); Nunca Fomos to Felizes (1984) de Murillo Salles anunciava
uma estria nesta linhagem, bem como uma alternativa ao Neon-Realismo de Wilson de
Barros, Chico Botelho e Guilherme de Almeida Prado. Caminho logo abandonado por
Murilo Salles em funo de seus projetos posteriores, que se centram em imagens da
casa, a j francamente urbana, mas totalmente atravessadas pela violncia, pelo embate
entre seus habitantes. Esta potica da violncia tem melhores resultados nos filmes de
Tata Amaral e tem emAna Carolina (Mar de Rosa,1979; Das Tripas Corao, 1982; e
Sonho da Valsa, 1986/7), uma antecessora nesta aspereza no feminino, para no falar
em filmes mais recentes como Durval Discos (2003) de Anna Muylaert.
Ainda nos anos 80, a Z produtora coloca em cena uma nova gerao vinda do Rio
Grande do Sul; a partir da trilogia Verdes Anos (1983) de Giba Assis Brasil; Me
Beija (1984) de Werner Schneman e Aqueles Dois (1985) de Srgio Amon, em
meio a vrios curtas-metragens, que apontam para seu mais talentoso representante -
Jorge Furtado s recentemente estreando em longa-metragem.
Onde a delicadeza? Teria ela desaparecido da cinematografia brasileira mais
recente, a no ser por documentrios como Edifcio Master (2002) de Eduardo
Coutinho e Nelson Freire (2003) de Joo Moreira Salles? Filmes como Dois
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Crregos (1998/9) e Alma Corsria (1992/4) de Carlos Reichembach, Corao
Iluminado (1997/8) de Hector Babenco ou O Prncipe (2003) de Ugo Georgetti
mereceriam um olhar mais atento para alm da nostalgia que os envolve, em dilogo, por
exemplo com O Fim de um Longo Dia (1992) de Terence Davies6.
J na abertura, o quadro das flores apresentado em claro e escuro em que as
ptalas aos poucos vo caindo j apresenta este singular filme sobre a memria e a
intimidade em que a pintura e a msica se somam ao cinema de forma estimulante. So
as vozes e as canes dos personagens e de filmes que conduzem a memria, a volta a
uma Inglaterra da segunda metade dos anos 50. Como muitos de sua gerao, Terence
Davies compreende a identidade pessoal como um construto (flmico) (EVERETT,
2004, P. 89), sem cair em excessos de cinefilia, afirmando a todo instante a supremacia
do afeto. O olhar terno, mas sem idealizao, como podemos ver para o apontamento do
racismo e da violncia no sistema educacional, ligando a obra de Davies a uma tradio
social sem ser realista (ver HUNT, 1999, 4), neste sentido, semelhante a forma como
Longe do Paraso (2002) de Todd Haynes revisita o mesmo perodo nos EUA. Se, para
Haynes, trata-se de uma homenagem afetiva e crtica ao melodrama; talvez para Davies,
o gnero mais prximo seja o musical, ou pelo menos um uso sofisticado de msica e
imagem como em In the Mood for Love (2000) e 2046 (2005) de Wong Kar Wai,
outros exerccios de nostalgia, que igualmente tiram uma elegncia das realidades as mais
precrias.
Em O Fim de um Longo Dia, quase nunca se dana, o tom mais
contemplativo, o protagonista janela de sua casa traduz um pouco esta posio que o
espectador assume diante das imagens que nos so apresentadas. Mais timidez do que
6 Para uma boa e abrangente viso de sua obra, ver EVERETT, 2004.
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propriamente voyeurismo de um adolescente numa famlia de adultos. H uma fluidez
dos travellings que interligam casa, rua, cinema, escola, igreja, que indeferencia tempos,
interligados pela suavidade da msica e pela transformao do cotidiano em cena,
quadro, cinema, sem que isto implique espetacularizao escapista do comum. Como em
Segredos e Mentiras (1996) de Mike Leigh, trata-se de um retrato familiar, sem a
tenso dramtica deste. A dor e a violncia to presentes no filme anterior de Davies,
Vozes Distantes (1988), encarnadas sobretudo na figura paterna, aqui se desfazem
nesta famlia construda a partir do afeto materno, aproximando-se de outras obras como
O Espelho (1974) de Tarkovski e Me e Filho (1997) de Sokurov, em que o ato de
voltar para casa, mais do que gesto filosfico na esteira do Romantismo, de encontro
afetivo, como se traduz na ltima cena do O Fim de Um longo dia, em que o solitrio
protagonista assiste a um pr de sol como se fosse um filme ou vice-versa junto com um
provvel amigo, mas reafirmando seu drama: est Bud fora dentro do mundo ou dentro
do cinema? (RADSTONE, 1999, P. 45). O filme acaba junto com um dia que bem
poderia ser uma vida inteira. A narrativa se rarefaz em situaes, flashes, canes, no
como os mergulhos na dissoluo do sujeito de As Ondas de Virginia Woolf, A morte de
Virgilio de Broch ou Ulisses da Joyce.
Ao invs disso, temos filmes de pequenos gestos e situaes, como Duas ou Trs
Que eu Sei dela (2000) de Rodrigo Garcia e O Tempo de cada um (2000) de Rebecca
Miller. Cada personagem uma nota em pequenas canes. Uma estria se inicia. Outra
acaba. A sobrevivncia dia a dia. Alguma dor. Alguma leveza. Continuamos. Ou ainda
podemos pensar no cinema de rotinas de O Cheiro da Papaia Verde (1993) e Luzes de
Vero (2000) de Tran Anh Hung, que retomam em clave menor projetos mais
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ambiciosos como Short Cuts (1993) de Robert Altman e Magnlia (1999) de Paul
Thomas Anderson, grandes filmes em que a fragmentao da cidade uma metfora para
sua construo em estilhaos de vidas privadas, na ausncia ou impossibilidade de refletir
sobre a totalidade do espao urbano.
Mas para alm de nos filmes centrados sobretudo na imagem da cidade, a casa se
encena, de forma muito fecunda, como espao para repensar os afetos e a famlia, das
vises nostlgicas de Ettore Scola em A Famlia (1987) at retratos mais
contemporneos como sexo, mentiras e videotapes (1989) de Sodebergh a Segredos e
Mentiras de Mike Leigh, em que a casa assume seu lugar como gerador de pausa e
devaneio, como defendia Gaston Bachelard em Potica do Espao.
Em A Famlia de Ettore Scola, lentamente a cmara passeia pelo corredor. O
corredor se alonga no tempo. A cada passagem de anos, vemos o corredor, aps breve
imagem que se cristaliza e se funde com a prxima imagem, antes de desaparecer no
tempo. O tempo da casa feito de festas, de retratos, mas tambm de morte, de geraes
que se sucedem. Desencontros, repeties, novos encontros.
As coisas simples muito mais do que as findas ficaro. Cada momento, cada
personagem em As Coisas Simples da Vida (2000) de Edward Yang (ver MORAES,
2006) trazem estrias, experincias, vivncias. Mesmo quando algo acaba, h uma deixa,
uma oferta para que se possa continuar. A continuidade est menos na afirmao da
famlia do que nos (des)encontros, nas (in)compreenses da prpria vida. A tentao em
estabelecer julgamentos morais se dilui pela fragilidade diante do acontecido, do que no
pode ser repetido, das possibilidades ainda no-sabidas mas que existem.
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A fotografia a grande metfora para Segredos e Mentiras, este filme-lbum de
famlia, enquanto sexo, mentiras, videotapes recupera a dimenso experimental das
relaes atravs do vdeo, sem o vis utpico e contestador dos anos 60. Tanto o filme de
Leigh como o de Soderbergh apostam na possibilidade da conversa, na valorizao do
simples e do cotidiano.
Como vimos, se formos procurar a resposta nos filmes brasileiros dos ltimos
vinte anos, h todo um lirismo no registro da casa, para alm da decadncia do
patriarcalismo rural, que parece ter desaparecido, mas que ainda parece ecoar em alguns
romances contemporneos. Caso seja possvel uma nova potica da casa e da intimidade,
talvez o cinema possa reaprender da literatura brasileira algo que j foi seu tambm,
como veremos no prximo ensaio.
Mesmo que esta simplicidade completa
Pudesse afastar todo tormento, ocultar
Esse composto perverso e vital, o eu,
Fizesse dele coisa nova num mundo
De gua clara, branco e ntido,
Ainda assim seria preciso mais, muito mais,
Mais que um mundo de neve e cheiros brancos.
Wallace Stevens
Espero que tenha ficado claro que meu interesse no cotidiano no est tanto no
informe, no grotesco, na violncia, na perverso da imagem, que s ampliam a pobreza
do mundo, nem mais na simulao, que espetaculariza o banal, mas numa certa aposta,
ingnua que seja, no olhar para as pequenas coisas, os pequenos dramas, sem cair no
Neo-Naturalismo nem em alegorias. Vislumbro esta outra possibilidade na famlia
revisitada e reconstruda pelos seus gestos mais preciosamente banais nas fotos de Luis
Humberto Pereira, nos contos de Joo Carrascoza em Dias Raros e de Paloma Vidal em
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A Duas Mos, nas fices de Michel Laub e Adriana Lisboa. Trata-se do espao do
prximo, da famlia no como perverso, encenada por Nelson Rodrigues e Todd
Solondz, nem como representaes que privilegiem o excesso, mas o resgate afetivo na
sua fragilidade. No o corpo violado mas amparado, protegido.
Procura de uma potica do cotidiano, que vislumbra no limiar o excepcional, a
transfigurao, o sublime, mas sabe que estes so apenas momentos e bom que assim
seja. Tendo vivido momentos de tanta intensidade, este homem, personagem, continua,
caminha, no se consome rapidamente, e por mais que ande, veja, viva, sofra h de ser
um homem comum, como na cano de Caetano Veloso. Haveria toda uma plataforma,
um programa, se estas palavras no fossem demasiadas, demasiado pesadas, explcitas.
As coisas, o mundo, o real. Menos contundncia. Menos. O comum como real, o que
subsiste no como impossibilidade de representao a ser buscada, nem conformismo
com o que as coisas so. Como a morte de Otaclia em Sinfonia em Branco de Adriana
Lisboa (2001: 144), que apresenta melhor e mais livremente tudo o que procurei dizer at
agora:
Otaclia lanchou com as duas filhas.
Deu boa-tarde ao marido, quando ele chegou, e perguntou como havia sido a
reunio na cooperativa, mas quando ele terminou de responder ela j no se lembrava
mais do que havia perguntado.
Colocou duas gotas do seu precioso Chanel no. 5, uma atrs de cada orelha, antes
de se deitar para descansar novamente.
Quando aquela tranqilidade indita penetrou no quarto, semi-iluminado por um
abajur fraco, ela soube que estava morrendo.
Ouviu as vozes das filhas conversando, no quarto ao lado, o quarto de Maria Ins.
Depois ouviu um pouco menos, e sentiu uma vertigem que a fez pensar num navio em
alto-mar em meio a uma tempestade. Depois tambm a vertigem passou, e ela abriu os
olhos, e sorriu porque, na verdade, tudo era to simples.
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