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Page 1: Nem Deus, Nem Senhorarquivojosemariobranco.fcsh.unl.pt/sites/arquivo... · (letra e música: José Mário Branco) Se do Império os mortos vais contar São tantas as parcelas p’ra
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Nem Deus, Nem Senhor

Se do Império

Poder

As Contas de Deus

Canção dos Despedidos

Onofre

Eram Mais de Cem

O Papão do Anão

A Vida Rompeu

Do que Um Homem é Capaz

Cantos dos Torna-Viagem

Fado em Dó Maior

Pão-Pão

Amor Gigante

Tenho Dó das Estrelas

Elogio de Caeiro

01.

02.

03.

04.

05.

06.

07.

08.

09.

10.

11.

12.

13.

14.

15.

16.

Page 3: Nem Deus, Nem Senhorarquivojosemariobranco.fcsh.unl.pt/sites/arquivo... · (letra e música: José Mário Branco) Se do Império os mortos vais contar São tantas as parcelas p’ra

(letra e música: José Mário Branco)

A luz é tão cegaQue nunca se entregaSó se deixa verNuma razão de serSem sequer entenderOs olhos que a vão receber

E o rasto que ficaÉ uma coisa antigaQue a gente tem p’ra darE só pode encontrarQuando morrer a procurar

Salvo pelo amorSó se pode ser salvo pelo amorDo sentido perdido ganhador

Não tem Deus nem SenhorEsta dorAnda à solta por aíQue eu bem a viAi, se eu pudesse pararSe eu vos pudesse contar

Salvo pelo amorNão existe derrota para a dorCom o seu capital triturador

Não tem Deus nem SenhorÉ simplesmente dorQue é o que faz questão de serSem entenderQue a vida toda surgiuDe um Sol que nunca se viuNem sei se existe

Page 4: Nem Deus, Nem Senhorarquivojosemariobranco.fcsh.unl.pt/sites/arquivo... · (letra e música: José Mário Branco) Se do Império os mortos vais contar São tantas as parcelas p’ra

(letra e música: José Mário Branco)

Se do Império os mortos vais contarSão tantas as parcelas p’ra somarQualquer pequena história ao virar da esquinaGuatemala, Indonésia, ArgentinaDjenine e Hiroshima

Para bem contar, não contes pelos dedosNenhuma conta conta a dorQue essas contas contarãoAí nessa rua a seguir à tuaSangue, lágrimas - e medos

Tem cuidadoSe do Império os mortos vais contarMelhor será saber recomeçarQue os mortos do Império vão voltar

Se do Império os mortos vais contarTerás milhões de vidas p’ra somarA grande história escrita ao virar da esquinaVietname, Curdistão, FilipinasAngola e Palestina

Para bem contar, preciso é ter coragemE deitar contas ao horrorQue essas contas contarãoE a conta continua a seguir à tuaFome, cárcere - pilhagem

Sê pacienteSe do Império os mortos vais contarMelhor será saber recomeçarQue os mortos do Império vão voltar

São mortos distantesEm tudo semelhantesA esses outros mortos que estão vivosEm tímidas vidasAlmas cativasMas prometidas

Page 5: Nem Deus, Nem Senhorarquivojosemariobranco.fcsh.unl.pt/sites/arquivo... · (letra e música: José Mário Branco) Se do Império os mortos vais contar São tantas as parcelas p’ra

Os vivosSão o regresso dos mortosQue os impérios dãoÀ revolução

(letra e música: José Mário Branco)

1.Um heróiÀ mesuraDa sua estaturaVai sempre à procuraOnd' inda ninguém foi

Um heróiNão descuraUm ou outro dói-dóiUma dura aventuraNão mata mas mói

Caso venha a ser precisoArriscar qualquer coisinhaNa operaçãoUm herói no seu juízoLeva sempre uma pilinhaEm cada mão

Com a cobertura da instituiçãoMais aquilo do Deus-Pátria-CanhãoUm herói nunca se cortaMeio olho-vivo, meio mão-mortaA portaNão importa

(refrão)

Page 6: Nem Deus, Nem Senhorarquivojosemariobranco.fcsh.unl.pt/sites/arquivo... · (letra e música: José Mário Branco) Se do Império os mortos vais contar São tantas as parcelas p’ra

2.Um heróiFaçanhudoÉ de tudo capazFaz ao peixe miúdoO que mais ninguém faz

Um heróiCatrapásSalta dos quadradinhosPuxa os cordelinhosE eles vêm atrásCom algum equipamentoAssegura a quadraturaDa operaçãoE o simbólico instrumentoÉ uma armadura duraEm cada mão

Um herói é o garante, o bastãoDessa coisa do Deus-Pátria-CanhãoNunca teme, nunca se cortaCome peixinhos da hortaMulher mortaNão aborta

(refrão)

Refrão:PoderQuem o tem, tem ascendentePoderQuem o tem, faz-se valenteBem usadoMal usadoO poder é prepotente

AssimDiz o povo amiúdeAssimHerói era toda a genteMais val' rico e com saúdeDo que pobre e doente

Page 7: Nem Deus, Nem Senhorarquivojosemariobranco.fcsh.unl.pt/sites/arquivo... · (letra e música: José Mário Branco) Se do Império os mortos vais contar São tantas as parcelas p’ra

(letra e música: José Mário Branco)

Folhas de calendário sãoAlmas em busca de água e pãoQuanto mais o tempo passaMenos a desgraçaTem valor

Que buscas tu, ó meu irmãoIndustrial da opressãoCada letra do teu nomeÉ um ano de fomeE de dor

Contas e contas se fazem num diaAi quantas contas se fazem num diaCorpos caídosVidas aos bocadosTapados dos ladosPor cima e por baixoE eu, ou vou ou rachoO que eu não fariaCom as contas de um só diaSe eu fosse DeusSe Deus não fosse eu

Alguém que acorde esse paísQue pegue fogo aos alibisDe quem pensa que o dinheiroSe gasta primeiroQue o amor

Como se pode ser felizSabendo a dor que não se dizCada minuto da horaAlguém vai emboraOu pior

Contas e contas se fazem num dia...

Como se Deus não fosses tu.

Page 8: Nem Deus, Nem Senhorarquivojosemariobranco.fcsh.unl.pt/sites/arquivo... · (letra e música: José Mário Branco) Se do Império os mortos vais contar São tantas as parcelas p’ra

(letra e música: José Mário Branco)

Somos explorados no trabalho, e não sóTambém somos o lixoLixo na tê-vê, quem lá está e quem vêLixo no jornal, voz do seu capitalEstamos entregues aos bichosE o lixo produz mais lixo

E o tempo a passarE eu a cantarEu também faço parte do lixo

Há quem viva bem do nosso mal-viverNós somos lixoSomos só lixoJá não há gente, há só lixoDispensável, descartável, reciclávelE agora parem um minuto p’ra pensar

Há que humanizar a humanidade, e não sóHá que varrer o lixoO do Capital, que é o lixo globalLixo do Estado, que é o seu braço armadoO mundo é de quem mandaE o resto é propaganda

Tudo é publicidadeMas a liberdadeÉ escolher entre ser ou estar

Tens a boca cheia de palavras lindasP’ra ti sou lixoSomos só lixoNós não somos gente, somos lixoDispensável, descartável, reciclávelMas vou parar mais um minuto p’ra pensar

Page 9: Nem Deus, Nem Senhorarquivojosemariobranco.fcsh.unl.pt/sites/arquivo... · (letra e música: José Mário Branco) Se do Império os mortos vais contar São tantas as parcelas p’ra

Vamos a casaAo fim do diaSó p’ra regenerar a mais-valiaGanhar forças, fazer filhosCada um no seu caixoteE amanhã tomar o botePara o paraíso dos cadilhos

Quem é o lixoEles são o lixo do corpo e da almaComo é que se pode ter calmaP’ra varrer este monturoDos escombros do futuro

(música e letra: José Mário Branco)

“Onofre”: nome português para “on-off”

Quando o espectro de Goebbels me ensombrae me agride com maisGuerra mediáticaE a sua matilha se maquilhaQuando essa escolha cuidada de coisas reaisficcionadas, iguaisSem lei nem gramáticaFaz de cada Homem uma ilhaQuando vem a maré negra dessa matilhaobscenaE para sobreviver há que sair de cenaResta só a solução de premir o botãoQuem sofreQuem sofreQuem sempre sofre é o Onofre

Page 10: Nem Deus, Nem Senhorarquivojosemariobranco.fcsh.unl.pt/sites/arquivo... · (letra e música: José Mário Branco) Se do Império os mortos vais contar São tantas as parcelas p’ra

Quando a voz do Grande Irmão mostrasempre outra cara escondendoA paz totalitáriaNo negócio do seu matadouroQuando propagandeando a janela do mundosó abre p’ra dentroE é sempre o cenárioEm que o sangue valoriza o ouroOs jornalistas clonados facturam a desgraçaNem no amor nem na dor a caravana passaVou vomitar e então carrego no botãoO OnofreO OnofreTriste poder de quem sofre

Quando p’ra tanto poder parece que já nadapodemos fazerP’ra nos mantermos vivosE eles tão seguros da vitóriaQuando agressivos, banais, sorridentes,coprófagos fartos de serPlurais digestivosAté resistir é uma históriaSó o Onofre me diz que o dono inda sou euQue esse terrível poder ninguém o elegeuE logo a alma da mão carrega no botãoOnofreOnofreÉs o segredo do cofre

Page 11: Nem Deus, Nem Senhorarquivojosemariobranco.fcsh.unl.pt/sites/arquivo... · (letra e música: José Mário Branco) Se do Império os mortos vais contar São tantas as parcelas p’ra

(música e letra: José Mário Branco)

Refrão:Eram mais de cemEram mais de milNão os contei bemUm milhão de lil- iputianos pr'aí

Os homens pequenosQuando são demaisNão fazem por menosTornam-se fatais - vão por mim que o vivi

1.Como é que um freguês duma freguesiaqualquerVê o seu destinoFazer o pinoSem saber ler - nem 'screver

Homem avisado sempre ouviu alguém dizerCada naufrágioÉ um presságioDo que vai a- contecer

2.Vá-se lá saber o que é que esta gente me querEste lugarTão singularAi quem me val' - a valer

Há sempre um lugar que falta a gente conhecerAi se eu souberaComo isto eraNunca viera - aqui ter

Page 12: Nem Deus, Nem Senhorarquivojosemariobranco.fcsh.unl.pt/sites/arquivo... · (letra e música: José Mário Branco) Se do Império os mortos vais contar São tantas as parcelas p’ra

3.Preso assim que nem é modo d' alguém presoserPequenos fiosNós corrediosQue assim me estão - a prender

Já 'stá tecida uma teia para me tecerCabeça e pésOs dedos dezJá não me po- sso mexer

(letra e música: José Mário Branco)

O papão do anãoÉ o anão do próprio anãoO pior p'rò anãoÉ ter um irmão menorÉ ter um irmão maiorÉ ter um irmão...

Só de costas o anão é parecidoCom o menino que pode ter sido

Os anões não se medem aos palmosEu sou o melhorEu sou o maiorQuero serHei-de ser sempre o mais pequeninoEstreitinhoManeirinhoQue há-de haver

Propriamente ser anão não custa putoO que custa é manter esse estatuto

Page 13: Nem Deus, Nem Senhorarquivojosemariobranco.fcsh.unl.pt/sites/arquivo... · (letra e música: José Mário Branco) Se do Império os mortos vais contar São tantas as parcelas p’ra

(poema: Nuno Júdice, segundo Raúl Brandão;música: José Mário Branco)

A vida rompeuOnde tudo era breuE embora fosse morrerA morteComeçou a reverdecerA morteComeçou a reverdecer

O papão do anãoÉ o anão do próprio anãoO pior p'rò anãoÉ ter um irmão menorÉ ter um irmão maiorÉ ter um irmão melhorO pior p'rò anãoÉ ter um irmão...

Ser anão não é coisa do corpoÉ forma do espírito morto

São anões p’ra quem tudo são palmosEu sou o melhorEu sou o maiorQuero ser sempre o mais pequeninoEstreitinhoMirradinhoQue há-de haver

Propriamente ser anão não é defeitoÉ gostar de ser pequeno sem proveito

O papão do anão (…)

Page 14: Nem Deus, Nem Senhorarquivojosemariobranco.fcsh.unl.pt/sites/arquivo... · (letra e música: José Mário Branco) Se do Império os mortos vais contar São tantas as parcelas p’ra

Eram dois mendigosE amavam-se de amorDemorou Deus a olhá-los

CORO: Demorou Deus a olhá-los

Demoraram os carrascosA levá-losA levá-los

A vida rompeuOnde tudo era breu

Toda a terra fermentou

E embora fosse morrerA morte

Vozes, ventos e murmúrios

Eram dois mendigosE amavam-se de amor

Deu água a fonte que secou

Demorou Deus a olhá-losA morte

Vozes, ventos e murmúrios

Passou a noite absortoNo negrume opaco da noiteSóis, núvens, avesUm deus mortoNo negrume opaco da noite

Page 15: Nem Deus, Nem Senhorarquivojosemariobranco.fcsh.unl.pt/sites/arquivo... · (letra e música: José Mário Branco) Se do Império os mortos vais contar São tantas as parcelas p’ra

(letra e música: José Mário Branco)

1.Do que um homem é capazAs coisas que ele fazP'ra chegar aonde querÉ capaz de dar a vidaP'ra levar de vencidaUma razão de viver

2.A vida é como uma estradaQue vai sendo traçadaSem nunca arrepiar caminhoE quem pensa estar paradoVai no sentido erradoA caminhar sozinho

3.Vejo gente cuja vidaVai sendo consumidaPor miragens de poderAgarrados a alguns ossosNo meio dos destroçosDo que nunca hão-de fazer

4.Vão poluindo o percursoCo' as sobras do discursoQue lhes serviu pr' abrir caminhoÀ custa das nossas utopiasUsurpam regaliasP'ra consumir sozinho

5.Com políticas concretasImpõem essas metasQue nos entram casa dentroComo a TrilateralCo' a treta liberalE as virtudes do centro

Page 16: Nem Deus, Nem Senhorarquivojosemariobranco.fcsh.unl.pt/sites/arquivo... · (letra e música: José Mário Branco) Se do Império os mortos vais contar São tantas as parcelas p’ra

5.Com políticas concretasImpõem essas metasQue nos entram casa dentroComo a TrilateralCo' a treta liberalE as virtudes do centro

6.No lugar da consciênciaA lei da concorrênciaPisando tudo p'lo caminhoP'ra castrar a juventudeMascaram de virtudeO querer vencer sozinho

7.Ficam cínicos, brutaisDescendo cada vez maisP'ra subir cada vez menosQuanto mais o mal se expandeMais acham que ser grandeÉ lixar os mais pequenos

8.Quem escolhe ser assimQuando chegar ao fimVai ver que errou o seu caminhoQuando a vida é hipotecadaNo fim não sobra nadaE acaba-se sozinho

9.Mesmo sendo os poderososTão fracos e gulososQue precisam do poderMesmo havendo tanta genteP'ra quem é indif'rentePassar a vida a morrer

10Há princípios e valoresHá sonhos e há amoresQue sempre irão abrir caminhoE quem viver abraçadoÀ vida que há ao ladoNão vai morrer sozinhoE quem morrer abraçadoÀ vida que há ao ladoNão vai viver sozinho

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(letra e música: José Mário Branco)

Melodia 1 (solistas, depois coro adulto misto)

1. Foi no sulco da viagemJá sem armas nem bagagemNem os brazões da equipagemFoi ao voltar

Pátria moratóriaNo coração da HistóriaQue consumiste a glóriaNum jantar

2. Foi como se PortugalP'ra seu bem e p'ra seu malAndasse em busca dum finalP'ra começar

Ávida violênciaReverso de inocênciaSal da inconsciênciaQue há no mar

3. Império tão pequeninoDe portulano caprinoBolsos de sina e de sinoEm cada mão

Pátria imagináriaDe consistência váriaAfirmação diáriaDo teu não

4. As malas dos portuguesesSão como os olhos das rezesQue se mastigam três vezesEm cada chão

Cândida ignorânciaGrande desimportânciaOs frutos da errânciaJá lá vão

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Melodia 2 (solistas, depois coro adulto misto)

1. Ai Senhora dos Navegantes me valeiDe África, do sal e do mar só eu sobreiFoi p'ra me encontrar que amanhã já me perdiLonge vai o tempo em que eu já não estouaqui

2. Ai Senhora dos Talvez-Muitos-Mais-SinaisSocorrei estes desperdícios coloniaisFoi na noite fria que o dia me cegouInda agora fui, inda agora cá não estou

3. Ai Senhora dos Esquecidos me lembraiO caminho que p'ra lá vem e p'ra cá vaiEtecetra e tal, Portugal é nós no marInda agora vim e estou longe de chegar

4. Ai Senhora dos Meus Iguais que eu subtraíFoi pataca a mim e não foi pataca a tiSe é tão grande a alma na palma do meu serAlgum dia eu vou finalmente acontecer

Melodia 3 (coro infantil +JMB)

1. Porque não tentar outro ponto de vistaA história dos outros, quem a contaráSe qualquer colónia sem colonialistaSão os que já estavam lá

2. Tentemos então ver a coisa ao contrárioDo ponto de vista de quem não chegouPois se eu fosse um preto chamado Zé MárioEu não era quem eu sou

3. Os navegadores chegaram cá a casaE foi tudo novo p’ra eles e p’ra mimA cruz e a espada e os olhos em brasaPorque me trataste assim ?

4. Não é culpa nossa se quem p’ra cá veioNão se incomodou ao saber do horrorA História não olha a quem fica no meioE o que foi é de quem fôr

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(letra e música: José Mário Branco)

1.Qualquer sítio do mundoTem o seu portuguêsOu antigo portuguêsOu resto de português

O resto desse resto portuguêsÉ que faz a vezDo todo português

Abismo vagabundoChamado PortugalViaduto naturalEntre a Índia e o quintal

É tão longe de Portugal a PortugalDói mas não faz malÉ o mal de Portugal

(refrão)

2.Arrisco quase tudoE quase pela certaQuando a sorte nos apertaPerder é quase ganhar

Eu sempre que abalei à descobertaDeixei a porta abertaPara quem quisesse entrar

Por isso apareçoOnde menos se esperaTaberneiro de quimeraMarinheiro sempre à mão

O ir-e-vir é que me dilaceraMas o futuro que já eraVai pagando a redenção

(refrão)

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3.Talvez eu chegue um diaAo fim desta viagemFicando aqui na paragemA andar p’ra cá e p’ra lá

Se a camioneta nunca mais chegarEu não vou parar de andarE alguma coisa virá

A vida é assim feitaQue tudo o que pareceÉ mesmo aquilo que aconteceOu parece acontecer

Certo, certo, é que ao fim deste carrilHá-de haver algum um BrasilPara eu me refazer

(refrão)

Refrão:

Por aíMais ou menosO que eu viJá te viOstrogodos sarracenosInda agora os conheci

Saio da cascaÉ já aliFico à rascaNa borrascaPortugal agora é aquiQuem não pode, desenrasca

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(letra e música: José Mário Branco)

1.

Pé de milhoPé da portaPai p'ra filhoPão-pão

A culturaMesmo àgri-Dura, duraPão-pão

Dois lados tem o espelhoO da mão, o do umbigoUma coisa é ser velhoOutra é ser antigo

2.

Pedra a pedraAno a anoSe não medraPão-pão

Um que nasceUm que morreO tempo faz-sePão-pão

Dois lados tem o espelhoO da paz, o do perigoUma coisa é ser velhoOutra é ser antigo

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3.

Gota a gotaChove a chuvaAbarrotaPão-pão

O rebanhoPela encostaVerde brancoPão-pão

Dois lados tem o espelhoO já-está, o não-consigoUma coisa é ser velhoOutra é ser antigo

4.

CastanheiroCentenárioChão e cheiroPão-pão

PensamentosPorque há tempoSedimentosPão-pão

Dois lados tem o espelhoO vizinho, o amigoUma coisa é ser velhoOutra é ser antigo

Page 23: Nem Deus, Nem Senhorarquivojosemariobranco.fcsh.unl.pt/sites/arquivo... · (letra e música: José Mário Branco) Se do Império os mortos vais contar São tantas as parcelas p’ra

(letra e música: José Mário Branco)

Um mundo à justa medidaNunca houveNem sei se haveráContam-se histórias da vidaTão estranhasTão cruéis que sei láComo a de certa donzelaQue era extensamente bela

Tão grande e tão amadaPor quem - nadaEra ao pé dela

Tão grande e tão amadaE cortejadaPor quem - nadaEra ao pé dela

(refrão)

A menina desta históriaEra grandeMuito grande atéGrandeza contraditóriaMas que poucoEsse louco era ao péPensando não ser bastanteSentir um amor gigante

Assim cantava o ditoPequenitoSeu amante

Mais que um canto era um gritoO do ditoPequenitoSeu amante

(refrão)

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As histórias de gigantesEra dantesQue acabavam bemHoje escolhe-se o amanteConsoanteSe o tamanho convém

Refrão:Não vejo poder amar-teNa desejada proporçãoEmbora não sei por que arteCaibas de pé no meu coraçãoMenina giganteQue 'stás tão distanteAqui mesmo dianteDe mim

Percorro pressurosamenteA longa rota do teu corpoSem conseguir, por mais que tenteChegar ao fim-de-ti antes de mortoMenina colossoQue eu quero e não possoPorque é que assim troçoDe mim

(Poema: Fernando Pessoa)

Tenho dó das estrelasLuzindo há tanto tempoHá tanto tempo…Tenho dó delas.

Não haverá um cansaçoDas coisas,De todas as coisas,Como das pernas ou de um braço ?

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Um cansaço de existir,De ser,Só de ser,O ser triste brilhar ou sorrir…

Não haverá, enfim,Para as coisas que são,Não a morte, mas sim(Uma) outra espécie de fim,Ou uma grande razão –Qualquer coisa assimComo um perdão ?

(letra e música: José Mário Branco)

Olhar p'ra tudo como um movimentoCerto, elegante comprometimentoCom a cor, com a normaCom a vez, com o tempoO tempo justo para a formaO tempo justo para dentroE só falar para dizer

Viver unido, unido com a terraSem ter sequer qualquer uso p'rà guerraProduzir, repartirDescansar a seguirO olhar incrível de um cavaloSageza, amor, tudo a habitá-loE ser igual dar ou receber

Cantar nitidamente a naturezaSer cantar, ser só simples certezaComo o vivo, o primeiroComo a voz de CaeiroDesconhecer o fel da falaOu conhecendo-o, ignorá-laE tudo o que é, acontecer

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José Mário Branco

Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”

Canção 01

Nem Deus nem Senhor (letra e música: José Mário Branco)

A luz é tão cega

Que nunca se entrega

Só se deixa ver

Numa razão de ser

Sem sequer entender

Os olhos que a vão receber

E o rasto que fica

É uma coisa antiga

Que a gente tem p’ra dar

E só pode encontrar

Quando morrer a procurar

Salvo pelo amor

Só se pode ser salvo pelo amor

Do sentido perdido ganhador

Não tem Deus nem Senhor

Esta dor

Anda à solta por aí

Que eu bem a vi

Ai, se eu pudesse parar

Se eu vos pudesse contar

Salvo pelo amor

Não existe derrota para a dor

Com o seu capital triturador

Não tem Deus nem Senhor

É simplesmente dor

Que é o que faz questão de ser

Sem entender

Que a vida toda surgiu

De um Sol que nunca se viu

Nem sei se existe

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José Mário Branco

Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”

Canção 02

Do que um homem é capaz (letra e música: José Mário Branco)

1.

Do que um homem é capaz

As coisas que ele faz

P'ra chegar aonde quer

É capaz de dar a vida

P'ra levar de vencida

Uma razão de viver

A vida é como uma estrada

Que vai sendo traçada

Sem nunca arrepiar caminho

E quem pensa estar parado

Vai no sentido errado

A caminhar sozinho

2.

Vejo gente cuja vida

Vai sendo consumida

Por miragens de poder

Agarrados a alguns ossos

No meio dos destroços

Do que nunca hão-de fazer

Vão poluindo o percurso

Co' as sobras do discurso

Que lhes serviu pr' abrir caminho

À custa das nossas utopias

Usurpam regalias

P'ra consumir sozinho

3.

Com políticas concretas

Impõem essas metas

Que nos entram casa dentro

Como a Trilateral

Co' a treta liberal

E as virtudes do centro

No lugar da consciência

A lei da concorrência

Pisando tudo p'lo caminho

P'ra castrar a juventude

Mascaram de virtude

O querer vencer sozinho

4.

Ficam cínicos, brutais

Descendo cada vez mais

P'ra subir cada vez menos

Quanto mais o mal se expande

Mais acham que ser grande

É lixar os mais pequenos

Quem escolhe ser assim

Quando chegar ao fim

Vai ver que errou o seu caminho

Quando a vida é hipotecada

No fim não sobra nada

E acaba-se sozinho

5.

Mesmo sendo os poderosos

Tão fracos e gulosos

Que precisam do poder

Mesmo havendo tanta gente

P'ra quem é indif'rente

Passar a vida a morrer

Há princípios e valores

Há sonhos e há amores

Que sempre irão abrir caminho

E quem viver abraçado

À vida que há ao lado

Não vai morrer sozinho

E quem morrer abraçado

À vida que há ao lado

Não vai viver sozinho

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José Mário Branco

Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”

Canção 03

As contas de Deus (letra e música: José Mário Branco)

Folhas de calendário são

Almas em busca de água e pão

Quanto mais o tempo passa

Menos a desgraça

Tem valor

Que buscas tu, ó meu irmão

Industrial da opressão

Cada letra do teu nome

É um ano de fome

E de dor

Contas e contas se fazem num dia

Ai quantas contas se fazem num dia

Corpos caídos

Vidas aos bocados

Tapados dos lados

Por cima e por baixo

E eu, ou vou ou racho

O que eu não faria

Com as contas de um só dia

Se eu fosse Deus

Se Deus não fosse eu

Alguém que acorde esse país

Que pegue fogo aos alibis

De quem pensa que o dinheiro

Se gasta primeiro

Que o amor

Como se pode ser feliz

Sabendo a dor que não se diz

Cada minuto da hora

Alguém vai embora

Ou pior

Contas e contas se fazem num dia

……

Como se Deus não fosses tu…

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José Mário Branco

Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”

Canção 04

Poder (letra e música: José Mário Branco)

1.

Um herói

À mesura

Da sua estatura

Vai sempre à procura

Ond' inda ninguém foi

Um herói

Não descura

Um ou outro dói-dói

Uma dura aventura

Não mata mas mói

2.

Um herói

Façanhudo

É de tudo capaz

Faz ao peixe miúdo

O que mais ninguém faz

Um herói

Catrapás

Salta dos quadradinhos

Puxa os cordelinhos

E eles vêm atrás

Caso venha a ser preciso

Arriscar qualquer coisinha

Na operação

Um herói no seu juizo

Leva sempre uma pilinha

Em cada mão

Com a cobertura da instituição

Mais aquilo do Deus-Pátria-Canhão

Um herói nunca se corta

Meio olho-vivo, meio mão-morta

A porta

Não importa

Com algum equipamento

Assegura a quadratura

Da operação

E o simbólico instrumento

É uma armadura dura

Em cada mão

Um herói é o garante, o bastão

Dessa coisa do Deus-Pátria-Canhão

Nunca teme, nunca se corta

Come peixinhos da horta

Mulher morta

Não aborta

Poder

Quem o tem, tem ascendente

Poder

Quem o tem, faz-se valente

Bem usado

Mal usado

O poder é prepotente

Assim

Diz o povo amiúde

Assim

Herói era toda a gente

Mais val' rico e com saúde

Do que pobre e doente

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José Mário Branco

Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”

Canção 05

Canção dos despedidos (letra e música: José Mário Branco)

1 Somos explorados no trabalho, e não só

Também somos o lixo

Lixo na tê-vê, quem lá está e quem vê

Lixo no jornal, voz do seu capital

Estamos entregues aos bichos

E o lixo produz mais lixo

E o tempo a passar

E eu a cantar

Eu também faço parte do lixo

Há quem viva bem do nosso mal-viver

Nós somos lixo

Somos só lixo

Já não há gente, há só lixo

Dispensável, descartável, reciclável

E agora parem um minuto p’ra pensar

2 Há que humanizar a humanidade, e não só

Há que varrer o lixo

O do Capital, que é o lixo global

O lixo do Estado, que é o seu braço armado

O mundo é de quem manda

E o resto é propaganda

Tudo é publicidade

Mas a liberdade

É escolher entre ser ou estar

Tens a boca cheia de palavras lindas

P’ra ti sou lixo

Somos só lixo

Nós não somos gente, somos lixo

Dispensável, descartável, reciclável

Mas vou parar mais um minuto p’ra pensar

3 Vamos a casa

Ao fim do dia

Só p’ra regenerar a mais-valia

Ganhar forças, fazer filhos

Cada um no seu caixote

E amanhã tomar o bote

Para o paraíso dos cadilhos

Quem é o lixo

Eles são o lixo do corpo e da alma

Como é que se pode ter calma

P’ra varrer este monturo

Dos escombros do futuro

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José Mário Branco

Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”

Canção 06

Onofre (música e letra: José Mário Branco)

“Onofre”: nome português para o botão “on-off”

Quando o espectro de Goebbels me ensombra e me agride com mais

Guerra mediática

E a sua matilha se maquilha

Quando essa escolha cuidada de coisas reais ficcionadas, iguais

Sem lei nem gramática

Faz de cada Homem uma ilha

Quando vem a maré negra dessa matilha obscena

E para sobreviver há que sair de cena

Resta só a solução de premir o botão

Quem sofre

Quem sofre

Quem sempre sofre é o Onofre

Quando a voz do Grande Irmão mostra sempre outra cara escondendo

A paz totalitária

No negócio do seu matadouro

Quando propagandeando a janela do mundo só abre p’ra dentro

E é sempre o cenário

Em que o sangue valoriza o ouro

Os jornalistas clonados facturam a desgraça

Nem no amor nem na dor a caravana passa

Vou vomitar e então carrego no botão

O Onofre

O Onofre

Triste poder de quem sofre

Quando p’ra tanto poder parece que já nada podemos fazer

P’ra nos mantermos vivos

E eles tão seguros da vitória

Quando agressivos, banais, sorridentes, coprófagos fartos de ser

Plurais digestivos

Até resistir é uma história

Só o Onofre me diz que o dono inda sou eu

Que esse terrível poder ninguém o elegeu

E logo a alma da mão carrega no botão

Onofre

Onofre

És o segredo do cofre

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José Mário Branco

Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”

Canção 07

Eram mais de cem (letra e música: José Mário Branco)

Refrão:

Eram mais de cem

Eram mais de mil

Não os contei bem

Um milhão de lil- iputianos pr'aí

Os homens pequenos

Quando são demais

Não fazem por menos

Tornam-se fatais - vão por mim que o vivi

1.

Como é que um freguês duma freguesia qualquer

Vê o seu destino

Fazer o pino

Sem saber ler - nem 'screver

Homem avisado sempre ouviu alguém dizer

Cada naufrágio

É um preságio

Do que vai a- contecer

2.

Vá-se lá saber o que é que esta gente me quer

Este lugar

Tão singular

Ai quem me val' - a valer

Há sempre um lugar que falta a gente conhecer

Ai se eu soubera

Como isto era

Nunca viera - aqui ter

3.

Preso assim que nem é modo d' alguém preso ser

Pequenos fios

Nós corredios

Que assim me estão - a prender

Já 'stá tecida uma teia para me tecer

Cabeça e pés

Os dedos dez

Já não me po- sso mexer

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José Mário Branco

Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”

Canção 08

O papão do anão (letra e música: José Mário Branco)

O papão do anão

É o anão do próprio anão

O pior p'rò anão

É ter um irmão menor

É ter um irmão maior

É ter um irmão...

Só de costas o anão é parecido

Com o menino que pode ter sido

Os anões não se medem aos palmos

Eu sou o melhor

Eu sou o maior

Quero ser

Hei-de ser sempre o mais pequenino

Estreitinho

Maneirinho

Que há-de haver

Propriamente ser anão não custa puto

O que custa é manter esse estatuto

O papão do anão

É o anão do próprio anão

O pior p'rò anão

É ter um irmão menor

É ter um irmão maior

É ter um irmão melhor

O pior p'rò anão

É ter um irmão...

Ser anão não é coisa do corpo

É forma do espírito morto

São anões p’ra quem tudo são palmos

Eu sou o melhor

Eu sou o maior

Quero ser sempre o mais pequenino

Estreitinho

Mirradinho

Que há-de haver

Propriamente ser anão não é defeito

É gostar de ser pequeno sem proveito

O papão do anão (…)

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Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”

Canção 09

Canto dos Torna-Viagem (letra e música: José Mário Branco)

Ao Fausto Melodia 1 (JMB, depois coro adulto misto)

1. Foi no sulco da viagem

Já sem armas nem bagagem

Nem os brazões da equipagem

Foi ao voltar

Pátria moratória

No coração da História

Que consumiste a glória

Num jantar

2. Foi como se Portugal

P'ra seu bem e p'ra seu mal

Andasse em busca dum final

P'ra começar

Ávida violência

Reverso de inocência

Sal da inconsciência

Que há no mar

3. Império tão pequenino

De portulano caprino

Bolsos de sina e de sino

Em cada mão

Pátria imaginária

De consistência vária

Afirmação diária

Do teu não

4. As malas dos portugueses

São como os olhos das rezes

Que se mastigam três vezes

Em cada chão

Cândida ignorância

Grande desimportância

Os frutos da errância

Já lá vão

Melodia 2 (Fausto, depois coro adulto misto)

1. Ai Senhora dos Navegantes me valei

De África, do sal e do mar só eu sobrei

Foi p'ra me encontrar que amanhã já me perdi

Longe vai o tempo em que eu já não estou aqui

3. Ai Senhora dos Esquecidos me lembrai

O caminho que p'ra lá vem e p'ra cá vai

Etecetra e tal, Portugal é nós no mar

Inda agora vim e estou longe de chegar

2. Ai Senhora dos Talvez-Muitos-Mais-Sinais

Socorrei estes desperdícios coloniais

Foi na noite fria que o dia me cegou

Inda agora fui, inda agora cá não estou

4. Ai Senhora dos Meus Iguais que eu subtraí

Foi pataca a mim e não foi pataca a ti

Se é tão grande a alma na palma do meu ser

Algum dia eu vou finalmente acontecer

Melodia 3 (coro infantil +JMB)

1. Porque não tentar outro ponto de vista

A história dos outros, quem a contará

Se qualquer colónia sem colonialista

São os que já estavam lá

3. Os navegadores chegaram cá a casa

E foi tudo novo p’ra eles e p’ra mim

A cruz e a espada e os olhos em brasa

Porque me trataste assim ?

2. Tentemos então ver a coisa ao contrário

Do ponto de vista de quem não chegou

Pois se eu fosse um preto chamado Zé Mário

Eu não era quem eu sou

4. Não é culpa nossa se quem p’ra cá veio

Não se incomodou ao saber do horror

A História não olha a quem fica no meio

E o que foi é de quem fôr

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José Mário Branco

Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”

Canção 10

Pão-pão (letra e música: José Mário Branco)

1.

Pé de milho

Pé da porta

Pai p'ra filho

Pão-pão

A cultura

Mesmo àgri-

Dura, dura

Pão-pão

3.

Gota a gota

Chove a chuva

Abarrota

Pão-pão

O rebanho

Pela encosta

Verde branco

Pão-pão

Dois lados tem o espelho

O da mão, o do umbigo

Uma coisa é ser velho

Outra é ser antigo

Dois lados tem o espelho

O já-está, o não-consigo

Uma coisa é ser velho

Outra é ser antigo

2.

Pedra a pedra

Ano a ano

Se não medra

Pão-pão

Um que nasce

Um que morre

O tempo faz-se

Pão-pão

4.

Castanheiro

Centenário

Chão e cheiro

Pão-pão

Pensamentos

Porque há tempo

Sedimentos

Pão-pão

Dois lados tem o espelho

O da paz, o do perigo

Uma coisa é ser velho

Outra é ser antigo

Dois lados tem o espelho

O vizinho, o amigo

Uma coisa é ser velho

Outra é ser antigo

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Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”

Canção 11

Fado em dó maior (letra e música: José Mário Branco)

1.

Qualquer sítio do mundo

Tem o seu português

Ou antigo português

Ou resto de português

O resto desse resto português

É que faz a vez

Do todo português

Abismo vagabundo

Chamado Portugal

Viaduto natural

Entre a Índia e o quintal

É tão longe de Portugal a Portugal

Dói mas não faz mal

É o mal de Portugal

(ao refrão)

2.

Arrisco quase tudo

E quase pela certa

Quando a sorte nos aperta

Perder é quase ganhar

Eu sempre que abalei à descoberta

Deixei a porta aberta

Para quem quisesse entrar

Por isso apareço

Onde menos se espera

Taberneiro de quimera

Marinheiro sempre à mão

O ir-e-vir é que me dilacera

Mas o futuro que já era

Vai pagando a redenção

(ao refrão)

3.

Talvez eu chegue um dia

Ao fim desta viagem

Ficando aqui na paragem

A andar p’ra cá e p’ra lá

Se a camioneta nunca mais chegar

Eu não vou parar de andar

E alguma coisa virá

A vida é assim feita

Que tudo o que parece

É mesmo aquilo que acontece

Ou parece acontecer

Certo, certo, é que ao fim deste carril

Há-de haver algum um Brasil

Para eu me refazer

(ao refrão)

Refrão:

Por aí

Mais ou menos

O que eu vi

Já te vi

Ostrogodos sarracenos

Inda agora os conheci

Saio da casca

É já ali

Fico à rasca

Na borrasca

Portugal agora é aqui

Quem não pode, desenrasca

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Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”

Canção 12

Amor gigante (letra e música: José Mário Branco)

Um mundo à justa medida

Nunca houve

Nem sei se haverá

Contam-se histórias da vida

Tão estranhas

Tão cruéis que sei lá

Como a de certa donzela

Que era extensamente bela

Tão grande e tão amada

Por quem - nada

Era ao pé dela

Tão grande e tão amada

E cortejada

Por quem - nada

Era ao pé dela

Refrão:

Não vejo poder amar-te

Na desejada proporção

Embora não sei por que arte

Caibas de pé no meu coração

Menina gigante

Que 'stás tão distante

Aqui mesmo diante

De mim

Percorro pressurosamente

A longa rota do teu corpo

Sem conseguir, por mais que tente

Chegar ao fim-de-ti antes de morto

Menina colosso

Que eu quero e não posso

Porque é que assim troço

De mim

A menina desta história

Era grande

Muito grande até

Grandeza contraditória

Mas que pouco

Esse louco era ao pé

Pensando não ser bastante

Sentir um amor gigante

Assim cantava o dito

Pequenito

Seu amante

Mais que um canto era um grito

O do dito

Pequenito

Seu amante

Ao refrão

As histórias de gigantes

Era dantes

Que acabavam bem

Hoje escolhe-se o amante

Consoante

Se o tamanho convém

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Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”

Canção 13

A vida rompeu (da peça “A morte do palhaço”)

(poema: Nuno Júdice, segundo Raúl Brandão; música: José Mário Branco)

A vida rompeu

Onde tudo era breu

E embora fosse morrer

A morte

Começou a reverdecer

A morte

Começou a reverdecer

Eram dois mendigos

E amavam-se de amor

Demorou Deus a olhá-los

CORO: Demorou Deus a olhá-los

Demoraram os carrascos

A levá-los

A levá-los

A vida rompeu

Onde tudo era breu

Toda a terra fermentou

E embora fosse morrer

A morte

Vozes, ventos e murmúrios

Eram dois mendigos

E amavam-se de amor

Deu água a fonte que secou

Demorou Deus a olhá-los

A morte

Vozes, ventos e murmúrios

Passou a noite absorto

No negrume opaco da noite

Sóis, núvens, aves

Um deus morto

No negrume opaco da noite

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Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”

Canção 14

Se do Império (letra e música: José Mário Branco)

1. Se do Império os mortos vais contar

São tantas as parcelas p’ra somar

Qualquer pequena história ao virar da esquina

Guatemala, Indonésia, Argentina

Djenine e Hiroshima

Para bem contar, não contes pelos dedos

Nenhuma conta conta a dor

Que essas contas contarão

Aí nessa rua a seguir à tua

Sangue, lágrimas - e medos

Tem cuidado

Se do Império os mortos vais contar

Melhor será saber recomeçar

Que os mortos do Império vão voltar

2. Se do Império os mortos vais contar

Terás milhões de vidas p’ra somar

A grande história escrita ao virar da esquina

Vietname, Curdistão, Filipinas

Angola e Palestina

Para bem contar, preciso é ter coragem

E deitar contas ao horror

Que essas contas contarão

E a conta continua a seguir à tua

Fome, cárcere - pilhagem

Sê paciente

Se do Império os mortos vais contar

Melhor será saber recomeçar

Que os mortos do Império vão voltar

3. São mortos distantes

Em tudo semelhantes

A esses outros mortos que estão vivos

Em tímidas vidas

Almas cativas

Mas prometidas

Os vivos

São o regresso dos mortos

Que os impérios dão

À revolução

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Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”

Canção 15

Tenho dó das estrelas (Fernando Pessoa / J.M. Branco)

Tenho dó das estrelas

Luzindo há tanto tempo

Há tanto tempo…

Tenho dó delas.

Não haverá um cansaço

Das coisas,

De todas as coisas,

Como das pernas ou de um braço ?

Um cansaço de existir,

De ser,

Só de ser,

O ser triste brilhar ou sorrir…

Não haverá, enfim,

Para as coisas que são,

Não a morte, mas sim

(Uma) outra espécie de fim,

Ou uma grande razão –

Qualquer coisa assim

Como um perdão ?

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Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”

Canção 16

Elogio de Caeiro (letra e música: José Mário Branco)

ao Zé Peixoto

Olhar p'ra tudo como um movimento

Certo, elegante comprometimento

Com a cor, com a norma

Com a vez, com o tempo

O tempo justo para a forma

O tempo justo para dentro

E só falar para dizer

Viver unido, unido com a terra

Sem ter sequer qualquer uso p'rà guerra

Produzir, repartir

Descansar a seguir

O olhar incrível de um cavalo

Sageza, amor, tudo a habitá-lo

E ser igual dar ou receber

Cantar nitidamente a natureza

Ser cantar, ser só simples certeza

Como o vivo, o primeiro

Como a voz de Caeiro

Desconhecer o fel da fala

Ou conhecendo-o, ignorá-la

E tudo o que é, acontecer