negócios, contratos e a administração fiscal nas minas ... · esse alvará, que é seguido por...

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Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 1 Negócios, contratos e a administração fiscal nas Minas Gerais: os conflitos de jurisdição e os poderes locais (1780-1815) Cláudia Maria das Graças CHAVES Universidade Federal de Ouro Preto [email protected] É bastante conhecida a afirmação de Fernão Cardim no final do século XVI em seu Tratados da Terra e Gente do Brasil 1 , sobre a América ser um espaço distinto, “um outro Portugal”. Dizia não ser referir ao clima mais temperado e mais sadio, nem à falta de comodidades das habitações, nem às distâncias que dificultavam o comércio, mas sim a um abundante território que propiciava as mais diversas ocupações e produções. A distinção de Portugal era perceptível e as diferenças espaciais se acentuam para administração portuguesa à medida que a colonização interiozava e adentrava os territórios americanos. No século XVIII é reconhecido no Império português um contexto de medidas de centralização político- administrativa e de unificação jurisprudencial paulatina. Esse processo, no entanto, depende de um conjunto de ponderáveis que não nos permitem pensar o modelo deste Estado como centralizado. O Poder real coexistiria com outros poderes como o poder da Igreja, de conselhos, de instituições, famílias, etc. Ainda que dispusesse de prerrogativas sobre os estados e seus domínios, as demais esferas de poder também o detinham. A Igreja, por exemplo, detinha outras importantes prerrogativas sobre os fiéis e suas famílias 2 . Não existiria nenhuma forma de domínio ou conhecimento sobre a população que não passasse pelo controle do clero que possuía os registros batismais, de matrimônio e testamentos. Os registros paroquiais eram, sem o efetivo controle do Estado, algumas das poucas fontes de dados para o controle do espaço. Hespanha diz que as decisões políticas tinham, muitas vezes, que se sujeitar às normas religiosas 3 . Poderíamos dizer que os aspectos materiais e morais dão ampla vantagem ao poder clerical, mas consideramos relevante também pensar no poder legal e na manutenção de direitos canônicos após as reformas pombalinas. Analisamos aqui, alguns dos aspectos desse 1 Fernão CARDIM. Tratados da Terra e Gente do Brasil. Rio de Janeiro: J. Leite, 1925. pp.106 segs. 2 António Manuel HESPANHA. As estruturas políticas em Portugal na época moderna. UNL, 2003. www.unl.pt acessado em 11/04/2011. 3 Idem.

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Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 1

Negócios, contratos e a administração fiscal nas Minas Gerais: os conflitos

de jurisdição e os poderes locais (1780-1815)

Cláudia Maria das Graças CHAVES

Universidade Federal de Ouro Preto

[email protected]

É bastante conhecida a afirmação de Fernão Cardim no final do século XVI em seu

Tratados da Terra e Gente do Brasil1, sobre a América ser um espaço distinto, “um outro

Portugal”. Dizia não ser referir ao clima mais temperado e mais sadio, nem à falta de

comodidades das habitações, nem às distâncias que dificultavam o comércio, mas sim a um

abundante território que propiciava as mais diversas ocupações e produções. A distinção de

Portugal era perceptível e as diferenças espaciais se acentuam para administração portuguesa

à medida que a colonização interiozava e adentrava os territórios americanos. No século

XVIII é reconhecido no Império português um contexto de medidas de centralização político-

administrativa e de unificação jurisprudencial paulatina.

Esse processo, no entanto, depende de um conjunto de ponderáveis que não nos

permitem pensar o modelo deste Estado como centralizado. O Poder real coexistiria com

outros poderes como o poder da Igreja, de conselhos, de instituições, famílias, etc. Ainda que

dispusesse de prerrogativas sobre os estados e seus domínios, as demais esferas de poder

também o detinham. A Igreja, por exemplo, detinha outras importantes prerrogativas sobre os

fiéis e suas famílias2. Não existiria nenhuma forma de domínio ou conhecimento sobre a

população que não passasse pelo controle do clero que possuía os registros batismais, de

matrimônio e testamentos. Os registros paroquiais eram, sem o efetivo controle do Estado,

algumas das poucas fontes de dados para o controle do espaço. Hespanha diz que as decisões

políticas tinham, muitas vezes, que se sujeitar às normas religiosas3.

Poderíamos dizer que os aspectos materiais e morais dão ampla vantagem ao poder

clerical, mas consideramos relevante também pensar no poder legal e na manutenção de

direitos canônicos após as reformas pombalinas. Analisamos aqui, alguns dos aspectos desse

1 Fernão CARDIM. Tratados da Terra e Gente do Brasil. Rio de Janeiro: J. Leite, 1925. pp.106 segs.

2 António Manuel HESPANHA. As estruturas políticas em Portugal na época moderna. UNL, 2003.

www.unl.pt acessado em 11/04/2011. 3 Idem.

Cláudia Maria das Graças Chaves

2 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011

reformismo nas áreas periféricas do império português, ou mais particularmente na América

portuguesa.

A discussão sobre a ausência de normas e/ou estratégias coloniais levava, é claro, à

discussão sobre o princípio de uma normatização ou formação de código colonial por parte da

metrópole ou mesmo da aplicação dos códigos ou ordenações do reino em todo o império sem

a intermediação do espaço. Segundo Hespanha era um princípio do direito comum europeu o

dar preferência às normas particulares e depois as normas gerais (como lei ou doutrina

jurídica)4. Assim, as normas jurídicas puderam ser criadas dentro do império e isso era

compreendido como parte das funções do governo ultramarino. As recentes discussões

historiográficas acerca das dinâmicas políticas da monarquia portuguesa nos finais do Antigo

Regime, no entanto, observam os enfoques coloniais. Entre o final do século XVII e o início

do século XIX o Estado português teve que se preocupar com sua posição política e suas

alianças européias para a defesa e fortalecimento do seu império5 e isso implicava fortalecer

também seu espaço colonial.

Ana Cristina Nogueira da Silva diz que a organização de territórios no século XVIII

viria a se materializar a partir das reformas pombalinas na década de 1770 com a idéia de

uniformização de jurisdições administrativas, entre outras providências6. Essa ação, que

poderia ser considerada como idéia voluntarista de reforma e racionalização, viria a se opor a

uma “ordem natural” de constituição dos territórios e dos poderes com suas respectivas

divisões populacionais e administrativas vigentes no Antigo Regime. Para a autora, até o

século XVIII dominava em Portugal a percepção de mundo fundado em uma ordem natural e

não pautado pela vontade humana. Essa ordem natural estabelecia as bases para o respeito e a

tradição. O direito comum ditava o princípio de que a jurisdição deveria aderir ao território, e

não o contrário7. Assim, um mesmo território poderia ser administrado por mais de um poder

e ser fracionado de forma distinta. Segundo Ana Cristina as divisões jurisdicionais poderiam

ter características sui generis tais como: a) a irregularidade e desigualdade das circunscrições

em termos de superfície e população; b) descontinuidade geográfica e diversidade de estatutos

jurídico-políticos das unidades territoriais e; c) sobreposição das circunscrições

administrativas, fiscais e judiciais. Esses poderes deveriam coexistir com o poder da coroa.

Além disso, os poderem senhoriais e eclesiásticos deveriam, por sua vez, dar origem às suas

4 Idem.

5 Ver: Valentim ALEXANDRE. Os Sentidos do Império: A questão nacional e questão colonial na crise do

Antigo Regime Português. Lisboa:Afrontamento, 1993. 6 Ana Cristina Nogueria da SILVA. O Modelo Espacial do Estado Moderno. Lisboa: Estampa, 1998. pp. 72.

7 Ana Cristina Nogueria da SILVA. Cit. pp. 51

Negócios, contratos e a administração fiscal nas Minas Gerais: os conflitos de jurisdição e os poderes locais (1780-1815)

Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 3

próprias circunscrições8. A autora destaca que a ausência de um projeto global de divisão de

território neste modelo não havia suscitado até fins do século XVIII grandes reflexões sobre a

necessidade de reformá-lo. A imposição de novas divisões administrativas, centralidade

jurisdicional e “racionalidade” seriam na verdade a adesão aos pressupostos políticos que

indicavam as reformas administrativas empreendidas por outras monarquias européias. Essa

adesão poderia ser considerada tardia se fossemos pensar pela lógica de um amplo e

inexorável movimento ilustrado na política européia desde o início do século XVIII9. No

entanto, poderíamos discutir as implicações dessa “racionalidade” tanto para o reino de

Portugal quanto para o seu império que ainda era um dos maiores das dinastias européias.

Vejamos o exemplo das reformas pombalinas aplicadas à administração fazendária

após a criação do Erário Régio e a atuação de seus magistrados na Capitania de Minas Gerais.

Para nos determos nos registros ou postos fiscais, alfândegas onde se deveriam registrar todo

ouro que entrasse ou saísse da região das minas, pagar os Direitos de Entradas, e demais

tributos relativos à circulação de mercadorias e ou pessoas. Interessa-nos aqui a relação entre

contratadores e a administração fazendária no período estudado, isto é, 1780 a 1815.

Importante, no entanto, compreender um breve histórico desse processo. A primeira

tentativa de controle fiscal relativo aos “desvios” e contrabandos na região das minas foi

converter o direito de cobrança das entradas, reservado às Câmaras, em Contrato Real a partir

do ano de 1718. Eles ficariam à cargo de contradores, os quais deveriam registrar em livros o

balanço da movimentação mercantil que passava pelos postos fiscais pelos quais seriam

responsáveis. Para isso dispunham dos Fiéis, funcionários régios e de destacamentos militares

– tropas de dragões - para a segurança das passagens. Esses postos muitas vezes eram as

únicas fronteiras que delimitavam as áreas geográficas da região das minas e, por isso,

poderiam ter a sua posição alterada, dependendo da conveniência. Entretanto, a extensão do

território e os constantes conflitos levam à emancipação da Capitania das minas do ouro em

1720. No que concernia aos contratos, a tendência foi a sua unificação a partir de 1727 e, a

partir de 1728, os mesmos passaram a ser realizados no Conselho Ultramarino. No que dizia

respeito às jurisdições territoriais a questão continuava muito mais complicada.

Nesse período, o caso dos descobertos de São Matheus são bastante ilustrativos. Em

fins da década de 1720 disputavam a sua jurisdição as Capitanias de Minas e da Bahia. Os

moradores solicitavam o pertencimento à Comarca de Ilhéus até 1765, mas em consulta ao

Conselho Ultramarino, o Vice-Rei inclinava-se por Minas devido à lucratividade dos

8 Ana Cristina Nogueria da SILVA. Cit. pp. 511

9 Franco VENTURI. Utopia e Reforma no Iluminismo. São Paulo: Edusc, 2003.

Cláudia Maria das Graças Chaves

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negócios. A jurisdição se estabeleceria em termos fiscais. O Conde de Assumar admitia em

seu discurso que acima de qualquer interesse privado, estavam os interesses da Real

Fazenda10

. O conflito que se seguiu nas décadas seguintes só foi resolvido em 1757 com a

definitiva transferência de Minas Novas para a jurisdição da Capitania de Minas Gerais, bem

como a criação dos postos fiscais de Minas Novas, Itacambira, Suaçui, e Rio Pardo.

Esse caso, apesar da distinção do período que pretendemos abordar em nossa pesquisa,

ilustra bem o que queremos demonstrar. Os contornos geográficos, administrativos, e os

negócios que se estabeleceram na Comarca do Serro Frio, ao longo da primeira metade do

século XVIII, passaram por uma longa batalha de jurisdição e, parte expressiva das decisões,

foi tomada no Conselho Ultramarino tendo em vista os interesses fiscais. Na segunda metade

do século XVIII temos, a princípio, um cenário diferente. Do ponto de vista institucional

foram grandes as modificações, bem como as formas de regulamentação dos contratos.

Entretanto, o que parecia organizar e racionalizar a confusão da máquina fazendária, não

resiste ao intrincado jogo de excepcionalidades.

Nas Minas o Alvará de 3 de dezembro de 1750 que reinstituía as casas de fundição e

acabava com a cobrança da capitação, ordenava a cobrança das entradas impondo maior rigor

com controle da Real Fazenda. Na prática um número maior de postos fiscais foi criado a

partir dessa data. Além disso, o conjunto de livros existentes a partir desse período foi

incomparavelmente maior do que o das décadas passadas. Isso tinha uma justificativa: o

referido Alvará determinava expressamente esse controle não apenas no Registro, mas nas

saídas no Rio de Janeiro e Bahia, como nas entradas em Lisboa. De acordo com a lei, o

comércio em grosso nas minas poderia ser feito em barras, enquanto o miúdo seria feito com

ouro em pó a ser recolhido nos Registros. Esse Alvará, que é seguido por uma série de

decretos para a regulamentação da atividade dos contratadores (1752, 53), antecede em uma

década a grande obra de centralização da reforma pombalina na administração fiscal11

.

O Alvará de 22 de dezembro de 1761 extinguiu a Casa dos Contos e criou o Erário

Régio como forma de manter o máximo controle sobre as rendas do Estado, pelo menos era

esse o objetivo. Baseando-se em experiências administrativas similares na Europa, o Erário

Régio foi estruturado a partir de quatro contadorias: a primeira relativa à Corte e à

Estremadura ficaria responsável pela entrada dos valores repassados por todos os

corregedores, provedores, juízes, almoxarifes, tesoureiros, recebedores, contratadores das

10

Ver: Thiago Luiz MAGALHAES. A fronteira fiscal norte da Capitania de Minas Gerais: 1720-1765. Belo

Horizonte: UFMG, 2009. (Dissertação de Mestrado). 11

Ver: Francisco António REBELO [1751]. Erário Régio. Edição fac-símile. (Org. por Tarquínio de Oliveira).

Brasília: ESAF, 1976.

Negócios, contratos e a administração fiscal nas Minas Gerais: os conflitos de jurisdição e os poderes locais (1780-1815)

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rendas e direitos Reais da Corte e Estremadura; a segunda deveria receber os direitos e rendas

das correições, provedorias, tesourarias, recebedorias e contratos das províncias do Reino e

das Ilhas dos Açores e Madeira; a terceira ficaria por conta do recebimento das rendas das

provedorias, das recebedorias e dos contratos da África Ocidental, do Maranhão e das

Comarcas do território pertencentes à relação da Bahia; finalmente a quarta ficava com a

entrada dos produtos das provedorias, tesourarias, recebedorias e contratos do território e

governos pertencentes ao Rio de Janeiro, África Oriental e Ásia.

Quando observamos essa divisão imaginamos à princípio que todas as arrecadações da

Capitania de Minas estavam vinculadas à quarta contadoria, uma vez que a criação do

Tribunal da Relação do Rio de Janeiro em 1751 chama para àquela competência a jurisdição

das comarcas de Minas Gerais. Entretanto, não é bem assim que estão divididos os livros das

contadorias, e os Registros do extremo norte ficaram ao encargo da Relação da Bahia.

De acordo com Alzira Teixeira L. Moreira12

, as adaptações às necessidades da Casa de

Bragança foram aos poucos criando novas reformulações. Primeiro foi a criação da Tesouraria

Geral das Tropas, que para desonerar as contadorias do Reino, passou para as contadorias do

ultramar. Depois foram criados cofres de correntes – independentes – em cada contadoria,

seguido do cofre de confiscados – com bens seqüestrados. Na contadoria da Bahia foi criada a

Casa das Senhoras Rainhas, bem como as rubricas de retiradas para o serviço Real para o qual

não se “dará conta”. Os valores do subsídio voluntário – cobrado em toda a atividade

mercantil fixa e volante - passou para o controle da contadoria da Bahia a partir de 1780, isto

é para a Relação da Bahia e controle de seus desembargadores. Assim como esses “cofres

especiais” outros não especificados aqui foram criados e muito contribuíram para tornar o

sistema de cobrança do Erário Régio um verdadeiro emaranhado, complexo e pesado.

Exatamente o oposto do que se pretendia. Além disso, como apresentamos em nossa hipótese,

o poder econômico ficava cada vez mais sob controle de determinados grupos, dentro e fora

da administração, que concentravam cargos administrativos importantes ou se beneficiavam

diretamente de seu poder. Essa situação só foi modificada com a transferência da Corte e a

extinção das chamadas contadorias do ultramar.

Aqui apresentamos um exemplo da administração fazendária, através do estudo do

Desembargador da Bahia e Intendente do Ouro em Vila Rica, Inácio José de Sousa Rebelo.

Em nossa pesquisa, acompanhamos a trajetória Juiz de Fora e Desembargador e sua atividade

na administração fazendária tem nos ajudado a entender algumas práticas do mercado

12

Alzira T. L. MOREIRA. Inventário do Fundo Geral do Erário Régio: Arquivo do Tribunal de Contas. Liboa:

Tip. Minerva, 1977. Introdução.

Cláudia Maria das Graças Chaves

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colonial. Bacharel, formado pela Universidade de Coimbra, tornou-se Juiz de Fora e Juiz dos

órfãos da Cidade de Mariana e seu termo inicialmente entre os anos de 1776 a 1789. Inácio

José de Sousa Rebelo também foi Juiz de Fora em Vila Rica em 1814, mas nesse intervalo foi

Intendente do Ouro e Desembargador da Relação da Bahia. E em 1822 aparece solicitando

aposentadoria para o cargo de Desembargador de Agravos da Casa de Suplicação. Também

foi nomeado Ouvidor de Angola em 1800. É longa a ficha de ofícios e solicitações feitas por

Rebelo em 1820 para “aposentadorias” e “reconduções” de cargos. Em 1811 ele envia a

seguinte solicitação para a mesa do Paço:

Diz o Bacharel Ignacio Jose de Souza Rebello, Intendente do Ouro de Vila Rica, com

predicamento de primeiro Banco, que tendo servido a VAR por mais de doze anos no lugar de

Juiz de Fora de Mariana com zelo e interesse da Real Fazenda, como na administração da

justiça aqueles povos, servindo ainda de Procurador da Real Fazenda, como consta dos

documentos juntos ; como também se ter prestado com o maior donativo para as despesas e

necessidades do Estado, e sem ter ainda aquele despacho que a Carta Regia prometia, como

faz vez dos documentos; e ter exercido o lugar de intendente com zelo e maior trabalho nas

permutas, como VAR pode ser presente pelo informe do Governador e Capitão General que se

acha nessa Corte: Pelo que desejava que VAR houvesse de reconduzi-lo no lugar de

Intendente do Ouro de Vila Rica, fazendo o lugar de Desembargador da Bahia a que está a

caber, ou naquele lugar que haja de substituir o Intendente13

.

Ao que sabemos Rebelo não só foi reconduzido ao cargo de Intendente do Ouro em

Vila Rica como desejava, as também continuou com o cargo de Desembargador da Relação

da Bahia. Além disso, assumiu em 1814, o posto de Juiz de Fora em Vila Rica. Curiosamente

esse posto seria um degrau na ascensão dos magistrados e não um cargo a ser assumido após a

condição de Desembargador, sobretudo da Relação da Bahia.

O interesse pela sua atuação não foi fortuita, pois sua atuação como intendente do

Ouro e Procurador da Fazenda fez com que tivesse atuação decisiva sobre a jurisdição das

comarcas centrais das Minas. Diversas vezes ele foi chamado a atuar como Desembargador

do Conselho Ultramarino na Emissão de pareceres em conflitos jurisdicionais. No testamento

conjunto feito após o falecimento de sua esposa em 182814

, d. Antônia Constança da Rocha -

Filha do Coronel de Regimento de Cavalaria Ligeira Auxiliar, Antonio Gonçalves Torres –

soubemos que ele havia nascido em Monção, no Minho, “filho de Francisco de Sousa Costa e

sua mulher” e não tinha deixado filhos. Era Cavaleiro da Ordem de Cristo e irmão da Ordem

Terceira de São Francisco nas Minas. Pelo seu inventário, sabemos de informações muito

13

C-133,011 Fundo Minas Gerais. Seção de Manuscritos. Biblioteca Nacional. 14

Inventário e Testamento de Inácio J. S. Rebelo e esposa Antonia Constância da Rocha. Cx: 133 Auto 2695 2°

ofício- 1830. Arquivo da Casa Setecentista, Mariana-MG.

Negócios, contratos e a administração fiscal nas Minas Gerais: os conflitos de jurisdição e os poderes locais (1780-1815)

Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 7

importantes acerca de suas relações de parentesco e de sua fortuna. Deixou para seu sobrinho

Manoel Inácio de Mello e Sousa, o futuro Barão do Pontal, sua casa na Rua Direita em

Mariana e solicitou doar seu patrimônio calculado em 55 contos de réis. Deixava três ações

que possuía no Banco do Brasil para as sobrinhas e declarava que havia dado cartas de

liberdade a duas “senhorinhas” e uma a outra crioula havia dado liberdade, mas ainda não

havia dado carta e a outros dois crioulos também. Além disso, somente deixava estipulada

uma quantia para auxiliar na construção de um hospital. Nada mais podemos dizer ainda

sobre sua fortuna, que não devia ser pequena devido a sua posição social naquela sociedade.

Sobre sua atuação política, o que podemos dizer inicialmente é que possuía fortes

amizades políticas, a começar pelo Governador d. Rodrigo José de Meneses, que foi

considerado o mais ilustrado administrador das Minas e o que mais se interessou pela

expansão de suas bases territoriais. Parecia também gozar de um bom prestígio junto a d. João

VI a partir da transferência da Corte, tanto pelos cargos consolidados, quanto pela indicação

de seu sobrinho para o cargo de Ouvidor para a Comarca do Rio das Mortes. Manoel Inácio

de Mello e Sousa era Português, como o tio, também formado em Coimbra, e recém chegado

em Minas. Em 1821 já presidiu a primeira Junta Governativa da Província e pouco depois

tornou-se efetivamente Presidente da Província.

Rebelo era Juiz de Fora em Vila Rica em 1816, quando o Brasil foi elevado à condição

de Reino Unido à Portugal e Algarves e a referida Câmara se apressou em enviar as

felicitações a d. João VI, dizendo que a partir daquele momento o dia 16 de dezembro entraria

para o calendário comemorativo daquela casa. Embora o Ofício tenha sido escrito pelo

Capitão-Mor Antônio Eulálio Brandão, o nome de Inácio Rebelo encabeçava e lista dos

signatários15

. Tal como fazia o contratador João Rodrigues de Macedo, temos indicação de

estudantes encaminhados por Rebelo para a Universidade de Coimbra. Um deles, foi Luis

José Godóes Torres, formado em medicina, o qual prescreveu tratamentos e licença para o

Desembargador cuidar de sua saúde em terras mais quentes e se ausentar de Ouro Preto16

.

Sabia bem criar laços de compromissos. Rebelo foi casado com d. Antonia do Gualaxo e,

segundo Caio Boschi, havia uma estreita relação entre d. Antonia, o contratador João

Rodrigues de Macedo e o Intendente o intendente que se retirara das Minas, o Dr. José João

Teixeira Coelho antes da chegada do Dr. Inácio Rebelo. Segundo Boschi, d. Antonia se casou

quando já era viúva e “tinha idade superior a quarenta anos”. Boschi diz que em 1779

15

Correio Braziliense, v. 17, 1816, p. 555. 16

BN, Seção de Manuscritos. I-10,16;014,n001.

Cláudia Maria das Graças Chaves

8 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011

Rodrigues de Macedo fazia remessa de uma frasqueira por intermédio de d. Antônia à

Teixeira Coelho. Nessa época, já casada com Inácio Rebelo. Segundo correspondências de

Macedo, Antônia do Gualaxo gozava de certa intimidade com o Intendente, o qual possuía

diversos negócios com o contratador. Com o seu retorno para Portugal e o imediato

casamento de d. Antônia com Rebelo parece que há certa inferência do autor sobre uma

pareceria de negócios entre os três. É possível que existissem laços mais fortes entre Rebelo e

Teixeira Coelho, pois ambos nasceram na mesma vila em Portugal e percorreram os mesmos

caminhos, isto é, Rebelo parecia seguir exatamente a trilha deixada por Teixeira Coelho,

exceto pelo fato que ele efetivamente se casara em terras coloniais e não planejava retornar ao

reino.

Particularmente nos interessou o volume de correspondências no acervo da Casa dos

Contos em que sua ação como Desembargador da Real Fazenda aparece mais claramente. Ele

escreveu diversas instruções a Ouvidores, Juízes de fora, intendentes e contratadores sobre a

cobrança do subsídio voluntário, um dos “cofres especiais” que ficou a cargo da contadoria da

relação da Bahia. O subsídio, instituído como temporário a partir do terremoto em Lisboa,

acabou tornando-se permanente e incidia diretamente sobre a atividade comercial. Nos

Registros cobrava-se pelas cargas (escravos, gado vacum, cavalar, vinho, aguardente) e nas

vilas e arraiais, cobra-se pelas lojas e vendas mensalmente.

Como Intendente do Ouro em Vila Rica e responsável pela arrecadação do Subsídio

voluntário, Rebelo tinha forte atuação nos postos fiscais, bem como possuía influência sobre

os administradores dos Registros das entradas. Suas correspondências demonstram o vasto

alcance de sua atuação, entretanto, interessa-nos aqui uma região que particularmente se

transformava no final do século XVIII, o sul da capitania. Nessa região ele passou a atuar

mais freqüentemente devido a um novo conflito de jurisdição e que afetava uma comarca em

franca expansão, a Comarca do Rio das Mortes.

Como dissemos acima, consideramos bastante curioso o retorno à condição de Juiz de

Fora por parte de Sousa Rebelo, no entanto é exatamente através desse posto que temos uma

das mais interessantes defesas das jurisdições territoriais da Capitania. Em 181417

Rebelo

fazia a defesa da criação da Freguesia de Franca em Minas e argumentava sobre as razões

dessa nova freguesia não pertencer à Capitania de São Paulo. No Início do documento

lembrava que todo o território do sul da Capitania das Minas havia passado por mudanças

pelas quais ele havia se empenhado - as primeiras freguesias de Baependi, Pouso Alto,

17

II-36,06,028 Fundo Minas Gerais. Seçao de Manuscritos. Biblioteca Nacional.

Negócios, contratos e a administração fiscal nas Minas Gerais: os conflitos de jurisdição e os poderes locais (1780-1815)

Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 9

Aiuruoca, Baixa do Funil, Jacui, Cabo Verde vincular-se-iam à nova Vila da Campanha da

Princesa, conforme determinação do Conselho Ultramarino e não à Vila de São João Del Rei.

Lembrava também que Jacuí e Baependi haviam se tornado Vilas também de acordo Alvará

de 1814. Jacuí, que antes havia sido um julgado, tinha sido uma reivindicação dos moradores

e administradores logo após a criação de Campanha, devido a sua extensão foi elevada à

condição de Vila. Isso acabou criando a necessidade de definir o seu termo, dotando assim a

condição de freguesia à Franca e termo de Jacuí. Defendia o seu pertencimento à Capitania de

Minas pelo seguinte argumento:

Sempre que alguns novos colonos penetram e cultivam os matos virgens infestados de gentios,

ficam sendo fregueses da mesma freguesia por onde entravam, assim muitos se foram

estendendo os termos das vilas que pertenciam aquelas freguesias e, por conseqüência as

capitanias. E por essa mesma razão deve a nova freguesia de Franca ser do termo de Jacui e

desta Capitania. Veja-se no mapa de população incluso, onde quase todos a quem se declara a

naturalidade são das freguesias desta Capitania e da Comarca do Rio das Mortes que

certamente por entrarem aqueles matos não os foram penetrando pela Capitania de São Paulo.

É interessante observamos aqui a lógica centrífuga. As Minas se expandem e existe

um “direito” dado aos colonos fregueses da mesma freguesia que dela partem, cultivassem e

protegessem a terra.

Além disso, ele alegava que havia uns mapas e documentos autênticos que

demonstravam que Franca ficava aquém do Rio Pardo e que os Oficiais do Regimento de

linha atestavam que essa era a divisão das capitanias e por isso sempre utilizaram esse

princípio para patrulhar o território. Enfim, não havia precisão, mas uma boa lógica de

argumentação.

No caminho “velho” ou caminho das Minas pela Capitania de São Paulo, foram

instalados os seguintes Registros: Capivari, Itajubá, Jacuí, Jaguarí, Mandu, Ouro Fino, Picu,

Rio Grande, Sapucaí e Sapucaí Mirim. O Registro do Capivari ficava situado no antigo

caminho que ligava Guaratinguetá da Capitania de São Paulo à Vila de São João Del Rei. Na

segunda metade do século XVIII teria existido um arraial de Capivari no chamado caminho

do Picu e daí o nome do Registro. Os Registros de Itajubá, Jacuí, Jaguarí e Mandu são todos

da segunda metade do século XVIII e todos de regiões limítrofes com a Capitania de São

Paulo. Como Registro de fronteira com a Capitania de São Paulo, Jacuí demonstra bem a

diversidade dos produtos “importados” que entravam pela passagem. Eram eles: açúcar, aço,

ferro, cobre, chumbo, enxofre, vinho, escravo, cavalos além de secos e molhados que não

temos como distinguir a não ser como comestíveis e não comestíveis.

Cláudia Maria das Graças Chaves

10 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011

Nos demais Registros da região a composição de produtos era bem semelhante.

Mandu funcionou até a década de 1770 e foi tranferido para o Jaguari e funcionavam

respectivamente nos atuais municípios Pouso Alegre e Camanducaia. O Registro do Ouro

Fino começou a funcionar na década de 1760 na região onde hoje seria o município

homônimo do sul de Minas. Segundo Waldemar de Almeida Barbosa, a Capela de São

Francisco de Paula de Ouro Fino foi elevada à condição de freguesia pela autoridade

arquidiocesana de São Paulo em 1749, mas no ano seguinte as autoridades civis e

eclesiásticas da capitania mineira apelaram ao Rei e tomaram posse do arraial de Ouro Fino.

Em 1765 a freguesia passou ao bispado de Mariana. Isso não resolveu definitivamente os

problemas de limites na região, como veremos a criação da Vila de Campanha da Princesa

redefinirá melhor os contornos dos limites entre as duas capitanias e as áreas de influencia

política dos arraiais da região que ainda estavam vinculados à Vila de São João del Rei. A

disputa em torno da freguesia de Ouro Fino desdobrou ainda numa retomada de sua posse

pela Diocese de São Paulo em 1775. Isso levou à mudança no posicionamento do Registro em

1777 para a “Ponte Nova” do Rio Jaguarí próximo hoje do atual município de Bragança

Paulista. No ano seguinte uma nova mudança restitui o Registro dentro dos limites da

Capitania mineira.

No ano de 1779 o novo contrato já indicava a mudança administrativa e política do

Registro.

Aos vinte três dias do mês de outubro de mil e setecentos e setenta e nove tomei conta da

Administração deste registro de Ouro Fino do Capitão Domingos Pereira do Amaral Coutinho

por ordem do caixa e administrador do Real contratato o capitão João Rodrigues de Macedo e

para constar fiz este termo e assino 23/10/1779

Jose do Carmo Saraiva

Diogo de Vasconcelos descreve da seguinte maneira esses conflitos: “O governo de

Minas não proibia a entrada dos paulistas, nem lhes negava o direito de lavrarem suas terras.

O que não queria era que um pedaço do nosso território se separasse também do encargo das

cem arrobas”. Para a cobrança dos quintos e das entradas nas Minas seria fundamental manter

as fronteiras expandidas.

O Registro do Picu situava-se como os demais em complexas regiões fronteiriças e,

por essa mesma razão sua instituição é tardia. A definição sobre o domínio da região e o seu

pertencimento se reporta à criação da Vila Nova da Campanha da Princesa no final do século

Negócios, contratos e a administração fiscal nas Minas Gerais: os conflitos de jurisdição e os poderes locais (1780-1815)

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XVIII, mais precisamente 1799. Antes de prosseguir, podemos dizer que o mesmo pode ser

dito para os Registros de Rio Grande, Sapucaí e Sapucaí Mirim. A região compreendida por

esses registros estavam política e geograficamente se desmembrando da influência da Vila de

São João del Rei, mais próxima à região mineradora central e distante dos interesses dos

criadores de gado, produtores de fumo e de algodão da região do sul de Minas. Estes se

vinculavam, tanto politicamente, quanto geograficamente aos moradores das vilas de São

Paulo e seus caminhos, como era o caso de Picu. Para Marcos de Andrade18

, essa região do

sul de Minas ganhou tão grande destaque econômico e político ao final do século XVIII e

início do século XIX que a construção de uma estrada para ligá-la à Corte no Rio de Janeiro

tornou-se imprescindível. Os proprietários tomaram para si próprios a tarefa de construí-la. O

caminho seguia pelo arraial de Três Corações, atravessando a Serra da Mantiqueira, o arraial

de São Tomé das Letras, Vila de Airuoca, Resende, Rio Preto, Vila da Posse (Barra Mansa),

Venda Grande e São Cristóvão até a Corte do Rio de Janeiro. Todo o percurso seria de 64

léguas19

.

O Registro de Itajubá entre os anos de 1765 a 1783 registrou 1670 entradas totalizando

um volume de mais de 14 contos de alfândega. Sua movimentação assemelha-se mais a do

Jacuí pela natureza dos produtos importados que entraram e pelo fato de não ser freqüentado

apenas por produtores/ mercadores das regiões próximas transportando produtos de

abastecimento. Apesar da aguardente e rapadura ter uma presença expressiva, são os produtos

importados de metais, escravos e sal que representam o maior volume das alfândegas. Além

disso, o Registro tem como característica entradas com grandes volumes de mercadorias

diversas que entraram aqui como outros. Trata-se da dificuldade de inserir numa mesma

entrada as denominações de todos os produtos que entram numa mesma carregação e em

pequenas quantidades. Nesse caso, elas foram todas anotadas nos campos de observação.

18

Marcos Ferreira ANDRADE. Elites Regionais e a formação do Estado Imperial Brasileiro. Rio de Janeiro:

Arquivo Nacional: 2008. pp. 152. 19

Idem. p.155.

Cláudia Maria das Graças Chaves

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Registro de Itajubá de 1765-1783 – Nº de Entradas

Produto Entrada

aguardente e rapadura 102

aguardente 237

aguardente, café e rapadura 14

aguardente, molhado e seco 30

aguardente, rapadura e açúcar 24

aguardente, rapadura e sal 93

aguardente, rapadura e seco 8

sal 333

Escravo 159

escravo e seco 7

gado cavalar 21

Molhado 161

sal e escravo 24

metais (aço, ferro, cobre, chumbo) e ferramentas 38

sal, seco, metais (aço, ferro, cobre, chumbo) e ferramentas 40

escravo, sal, seco metais e ferramentas 11

vinho, aguardente, rapadura, sal, e seco 19

vinho, metais e ferramentas 17

fardos e caixas, metais e ferramentas 4

outros* 328

Esse livro de registro também informa as localidades de destino. Aqui neste caso como

podemos observar são todas as localidades da Comarca do Rio das Mortes o que pode indicar

realmente o destino final ou entreposto para re-distribuição das mercadorias. Entretanto,

parece-nos mais provável ser o destino final das mercadorias introduzidas pelo fato de ser um

momento de expansão territorial e político da região.

Negócios, contratos e a administração fiscal nas Minas Gerais: os conflitos de jurisdição e os poderes locais (1780-1815)

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Destinos Entradas

Vilas

Campanha da Princesa 741

Sabará 3

São João Del Rei 5

Localidades

Cabo Verde 5

Caldas 35

Camanducaia 5

Campanha 12

Itajubá 735

Mandu 11

Pouso Alegre 112

Santa Catarina 91

São Gonçalo 69

Toda a modificação geográfica e econômica da Capitania nesse período está

indissociavelmente ligada à atividade mercantil e à produção rural, bem como a definição

política dependia de um intrincado jogo entre a Real Fazenda e os principais da terra.

Procurar entender parte dessa trama, é o objetivo principal desse projeto.

José João Teixeira Coelho em Instrução para o Governo da Capitania de Minas

Gerais, editado em 1782 analisava alguns aspectos interessantes que já apresentamos aqui.

Como já dissemos anteriormente temos fortes suspeitas dos vínculos estabelecidos entre

Teixeira Coelho e Sousa Rebelo, mas ainda não temos dados suficientes para comprovar essa

relação. Por essa razão a memória de Coelho e o seu contexto de produção tornaram-se mais

importantes. Acentua-se em sua Instrução a idéia de que o território minerador precisava ser

melhor administrado e fiscalizado, além disso, a mineração era apenas uma parte da economia

da região. Assim sendo dissociava a idéia de rebeldia e insubordinação dos mineiros à de

contrabandos ao Erário Régio20

. Afinado com o pensamento pragmático e racionalista dos

administradores reformistas, Teixeira Coelho redigiu sua memória afinado com todos os

modelos prescritos pela Real Academia de Ciências de Lisboa. O pragmatismo e tecnicismo

20

Ver: Caio BOSCHI. Estudo Crítico. In: Instrução para o Governo da Capitania de Minas Gerais. José João

Teixeira Coelho. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 2007. (Coleção Mineriana). p. 36. Ana Rosa Cloclet

Silva. Minas no contexto da “acomodação”: as relações de poder, as práticas políticas e as tessituras das

identidades. Revista Aulas: Dossiê Identidades Nacionais, n. 2, p.9, 2006.

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aliado à experiência daquele que se propunha a instruir e apresentar propostas a problemas

concretos de uma dada realidade, era isso que se requeria de um memorialista. Teixeira

Coelho possuía vasta experiência, havia começado como a “esmagadora maioria de letrados

dava início a sua carreira”, tornou-se Juiz de Fora em Vila do Conde no Minho21

. Caio

Boschi diz que ao ser nomeado para a Intendência do Ouro em Vila Rica demonstrou grande

distinção, pois significava um cargo nuclear da administração imperial. Cargo que ele ocupou

durante onze anos e que mais tarde foi ocupado por Inácio Rebelo – cargo de grande prestígio,

mesmo no pós-Inconfidência mineira.

Como Intendente do Ouro e Procurador da Real Fazenda, Coelho teve liberdade para

reformular a partir das determinações atribuídas ao seu cargo com a criação do Erário Régio,

a estrutura fiscal da Capitania. Isso lhe conferia não apenas grande poder, mas também

prestígio entre a elite local. É exatamente esse o nosso maior interesse na obra e atividade de

Teixeira Coelho. Boschi diz que havia um aparente paradoxo entre uma concepção fazendária

racionalista no sentido de combater os descaminhos e, ao mesmo tempo abrir caminhos para

uma elite local conduzir o processo político e econômico que se revelava principalmente nas

arrematações de contratos22

. Dessa maneira, os homens de negócio portugueses entendidos

por Kenneth Maxwell como “imigrantes”, precisavam aprofundar e enraizar seus negócios de

maneira inseparável do ambiente e dos bons da terra23

. Lembrando também uma observação

de Russell-Wood que se aplica muito bem, tanto ao Dr. Teixeira Coelho quanto a Sousa

Rebelo, havia uma “inevitável correlação entre o prestígio pessoal e a posição na sociedade,

inerentes ao cargo desempenhado” características intrínsecas aos funcionários da

administração fazendária24

.

Apesar de toda a inserção de Teixeira Coelho na sociedade mineradora, ele não

permanece na América e retorna ao Reino para seguir sua carreira, como, aliás, faziam

tradicionalmente os magistrados no auge da sua vida profissional25

. De maneira diferente,

Sousa Rebelo permanece e se insere de maneira mais vigorosa. Ainda que tenha deixado bens

em Portugal não parecia ter desejo de retornar à terra natal, pois manifestou a vontade de ser

21

Caio BOSCHI. Cit. pp. 93. O interessante é que Boschi diz que Coelho vem rapidamente para o Ultramar

antes de passar por outras esferas da magistratura no Reino, o fato de ter sido indicado para Intendente nas Minas

quer dizer que o cursus honorum foi quebrado e ele desvencilhou-se rapidamente das ligações com a Casa de

Bragança. O que dizer então de Inácio Rebelo? 22

Caio BOSCHI. Cit. pp 107. 23

Caio BOSCHI. Cit. pp 107 Apud. Kennedy Maxwell. A devassa da Devassa: A Inconfidência Mineira: Brasil

Portugal (1750-1808). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 114. 24

J. R. A. Russel-Wood. A dinâmica Social: Governantes e agentes. In: Francisco Bethencourth e Kirti Chauduri

(Org.). História da Expansão Portuguesa. V. 3. Lisboa: Circulo de Leitores, 1998, pp. 183. 25

J. R. A. Russel-Wood. Cit. pp. 182

Negócios, contratos e a administração fiscal nas Minas Gerais: os conflitos de jurisdição e os poderes locais (1780-1815)

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enterrado na Capela da Ordem Terceira de São Francisco. É claro que os tempos eram outros

e ele se revelou um árduo defensor do projeto do império Luso-brasileiro. No tocante à

carreira de magistrado seu percurso foi quase tradicional. Como dissemos, estranhamos o fato

de ter solicitado retornar à função de Juiz de Fora, mas como era de se imaginar ascendeu à

função máxima de Desembargador da Casa de Suplicação, tendo antes passado pela Relação

da Bahia. Sendo uma exceção à regra como podemos entender pelos estudos de Russel-Wood

e de Schwartz, Souza Rebelo optou pelo envolvimento emocional e financeiro com a terra

local.

Mesmo para os que escolhiam prosseguir ao serviço do Rei existiam mecanismos sociais

insidiosos, mas poderosos que exerciam uma pressão integradora sobre o funcionário da

Coroa, tal como a escolha do local para a residência, o orgulho pela posse de uma propriedade,

o prestígio social associado à eleição para a Santa Casa da Misericórdia, para uma Ordem

Terceira ou para a Irmandade do Santíssimo Sacramento ou até a honra altamente pessoal que

era concedida a um funcionário da Coroa quando lhe pediam que fosse padrinho de um recém-

nascido. Nada disso era proibido, nem sequer para os membros da magistratura, pela Coroa.

Para esses funcionários, mas em particular para os Juízes da Coroa que ignoravam as

proibições reais de confraternização e que casavam com mulheres locais que tinham uma

família ou que entravam em sociedades comerciais, era inevitável que os seus investimentos

emocionais e financeiros na localidade tivessem algum impacto sobre as capacidades de

decisão26

.

Estas palavras parecem ter sido escritas para Rebelo. Possuía casa na principal rua da

cidade de Mariana, a Rua Direita. Casa que deixou de herança para o seu sobrinho, o futuro

Barão do Pontal e que foi sempre descrita como a mais bela e bem ornada casa da Cidade, a

única com rendilhado em pedra sabão. As generosas contribuições que fazia, inclusive para a

futura construção de um hospital em Vila Rica certamente devido ao seu prestígio na Santa

Casa de Misericórdia. O pertencimento à Ordem Terceira de São Francisco, destinada aos

mais ricos e influentes membros da sociedade local, e que atraiam os reinóis que queriam se

integrar numa Ordem protetora. Consideradas importantes instituições hierárquicas do Antigo

Regime, as Ordens Terceiras possuíam a prerrogativa de ser detentora dos privilégios

canônicos (como as ordens mendicantes) e seus membros eram reconhecidos pela alta

distinção27

. Ainda que não tenhamos informações precisas, sabemos que indiretamente que

Rebelo apadrinhou crianças na Cidade de Mariana. Casou-se com uma natural da terra, como

26

J. R. A. Russel-Wood . Cit.pp. 187. E, também, Stuart Schwartz. Sovereignty and Society in Colonial Brazil.

The High Court of Bahia and its judges, 1609-1751. Berkeley: California University Press, 1973. 27

Ver: Caio Cesar BOSCHI. Os Leigos e o Poder (Irmandades Leigas e Política Colonizadora em Minas

Gerais).São Paulo: Ática, 1986.

Cláudia Maria das Graças Chaves

16 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011

já dissemos a d. Antônia do Gualaxo, ainda que tenha recebido autorização do Conselho

Ultramarino para o matrimônio28

.

Essa caracterização tem sido fundamental para nossa compreensão dos agentes

fazendários e a organização mercantil no território americano num contexto em que se

buscava a centralização administrativa, sobretudo que se apostava na atuação mais rigorosa

dos magistrados e dos “negociantes estatais”29

. Neste ponto gostaria de citar ainda o trabalho

apresentado por Alexandre Mendes Cunha sobre o “cameralismo” como uma prática

administrativa bem sucedida. Este autor nos diz que apesar de ser difícil precisar o

“cameralismo” é imprescindível estudá-lo no contexto da centralização administrativa

portuguesa. O termo deriva da expressão alemã Cameralwissenschaft e da ação “gute Polizei”

ou da própria “ciência de polícia em si” (Polizeiwissenschaft), mas não é facilmente

traduzido, ou pelo menos não pode ser traduzido com o sentido que o termo “polícia” adquire

contemporaneamente30

. Segundo Alexandre a influência do pensamento político e econômico

alemão influenciou a atuação da administração pombalina. O Erário Régio foi um ótimo

exemplo da prática do “cameralismo”. A Real Fazenda tomando para si o exercício e

vigilância das rendas do Estado. Contaria para isso com um corpo técnico altamente

especializado e um grupo de negociantes, poderia se dizer, devotado. Em suas próprias

palavras:

A política pombalina partia assim da convicção de que o estado poderia se beneficiar com a

recorrência a certos elementos da prática mercantil, mas ao mesmo tempo, de que, à realidade

presente do império português, essa atividade só poderia desenvolver plenamente suas

potencialidade e conduzir os esperados pomos dourados aos cofres reais com o reforço da ação

do Estado. (...) Mais que isto, uma qualificação importante da especificidade do Erário Régio

em Portugal pode ser percebida na largueza de suas capacidades na organização contábil-

administrativa das rendas, não só do Reino mas no Império português como um todo, posto

que desde o momento de sua criação lhe são submetidas todas as contas da monarquia de

forma integrada, reino e colônias, integradas dentro das quatro contadorias em uma estratégia

de subdivisão fiscal e não necessariamente de contigüidade geográfica. O caminho efetivo da

centralização na administração das finanças e da fiscalidade em Portugal é assim o da

28

Ainda que não tenha sido possível empreender toda a pesquisa de arquivo, sabermos que foi feita a consulta

ao Conselho e ao que tudo indica foi aprovado o matrimônio. AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 123,

Doc.: 79. 29

Ver: Nuno MADUREIRA. Mercados e Privilégios. Lisboa: Ed. Estampa, 1997. 30

Ver: Alexandre Mendes CUNHA. O lugar do cameralismo no pensamento económico português: reflexões

sobre sua influência na centralização das finanças do Reino na segunda metade do século XVIII. V Encuentro

Iberico de Historia del Pensamiento Econmico. Madrid, 2007. O autor lembra que Sérgio B. De Holanda em

seu famoso artigo “Sobre uma doença infantil da historiografia” de 1973 já citava esse problema de tradução. p.

12.

Negócios, contratos e a administração fiscal nas Minas Gerais: os conflitos de jurisdição e os poderes locais (1780-1815)

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centralização das estruturas de administração direta dos tributos e rendas do Estado, ao qual se

alinham as instâncias políticas e do contencioso jurídico, e não o contrário31

.

Ora, se levássemos a termo toda essa eficácia e devoção, teríamos um sistema perfeito.

Sabemos a extensão dos territórios, o conjunto de excepcionalidades criadas nas contadorias,

o acúmulo de cargos com a conseqüente concentração de poderes e círculos de amizades que

colocavam à prova a eficiência, determinação e interesses de seus funcionários. Além disso,

os conflitos de jurisdição territorial, comuns na dinâmica da organização fiscal, impunham

suas próprias demandas. Tornava-se, portanto difícil acreditar numa solução lógica e coerente

que, como diz Alexandre Cunha, levaria a um caminho de centralização que alinhava

perfeitamente em seu percurso as instâncias políticas e de litígio jurídico. Por outro lado,

também não é possível dizer que não houvesse controle por parte do Erário Régio e de seus

funcionários, bem como da consciência dos grandes negociantes dos benefícios e

contrapartidas de um aparato burocrático que lhes dessem garantias, como foi o caso da Junta

de Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação que, em 1788, é elevada à condição de

tribunal.

31

Alexandre Mendes CUNHA. Cit. pp. 18-20.