negociacão e hibrismo cultural no espaço missioneiro do guairá

Upload: ione-castilho

Post on 29-Feb-2016

215 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

negociacão e Hibrismo Cultural

TRANSCRIPT

  • IHS. Antiguos jesutas en Iberoamrica ISSN vol. 1 n 1 2013

    Negociaco e hibrismo cultural no espao missioneiro do Guair pelos escritos de Antonio Ruiz de Montoya (1609-1632)

    Washington Roberto Almeida Soares*

    Erneldo Schallenberger Resumo O artigo tem por objetivo analisar o processo civilizador empregado pelos jesutas nas misses do Guair entre os anos de 1609 e 1632, tendo como referncia terica central o conceito de negociao cultural, assim como concebido por Homi Bhabha (2010). De acordo com a nossa hiptese, a introduo da cultura eurocrist entre os Guarani se deu mediante intensa negociao cultural entre as partes envolvidas. As fontes que alimentam a nossa abordagem contemplam, sobretudo, os escritos do padre jesuta Antonio Ruiz de Montoya. Palavras Chave: Misses jesuticas, Negociao cultural, Hibridismo Cultural. Abstract The work aims to analyze the civilizing process employed by the Jesuits in the missions of Guair between the years 1609 and 1632, with reference to the central theoretical concept of cultural negotiation, as conceived by Homi Bhabha. According to our hypothesis, the introduction of the euro Christian culture among the Guarani took place through intense cultural negotiation between the parties involved. The sources that feed our approach include, in particular, the writings of Father Antonio Ruiz de Montoya, one of the pioneers of reductional experience in the region. Key words: Jesuit Missions, Cultural Negotiation, Cultural Hybridism.

    Recibido: 10 de julio de 2013

    Evaluado: 31 de julio de 2013

    * Mestre em Sociedade, Cultura e Fronteiras UNIOESTE PR. Doutor em Histria, com Ps-Doutorado em Histria Cultura e Poder; Docente permanente dos Programas de Ps-Graduao em Sociedade, Cultura e Fronteiras; Desenvolvimento Regional e Agronegcio; e Cincias Sociais UNIOESTE PR. Membro do Comit de Cincias Humanas, Sociais e Jurdicas da Fundao Araucria PR. Lder do Grupo de Pesquisa UNIOESTE/CNPq Cultura, Fronteiras e Desenvolvimento Regional.

    112 Washington R. Almeida Soares y Erneldo Schallenberger. Negociaco e hibrismo...: 112-131.

  • IHS. Antiguos jesutas en Iberoamrica ISSN vol. 1 n 1 2013

    Introduo

    Para melhor situar a nossa proposta de anlise, aceitamos a complexidade1 do fenmeno missioneiro. Tomamos como referncia o processo de negociao cultural que permeou o contato entre nativos e jesutas, entre culturas dspares, que promoveram o incio de um processo de hibridao cultural, num universo especfico onde o (...) local que favorece a troca e a hibridao a fronteira2 e onde o trabalho fronteirio da cultura exige um encontro com o novo que no seja parte de um continuum de passado e presente. Ele cria uma idia do novo como ato insurgente de traduo cultural3.

    possvel perceber nos escritos de Montoya que, no caso das redues do Guair4, a troca cultural obedeceu a uma lgica que tinha no seu horizonte a transformao das prticas culturais Guarani e a imposio das prticas culturais eurocrists.

    Vivi todo o tempo indicado na Provncia do Paraguai e por assim dizer no deserto, em busca de feras, de ndios brbaros, atravessando campos e transpondo selvas ou montes em sua busca para agreg-los ao aprisco da Santa Igreja e ao servio de Sua Majestade. [...] j foram reduzidos por nosso esforo ou indstria a povoaes grandes e transformados de gente rstica em cristos civilizados com a contnua pregao do Evangelho5.

    Eis a meta do projeto jesutico. tendo em mente este projeto que devemos direcionar o olhar sobre o processo de negociao cultural que se desenrolou nas misses do Guair.

    Analisar o processo de construo de pontes de comunicao intercultural nos ajudar a compreender o cotidiano missioneiro no Guair, porque os contatos culturais entre os personagens envolvidos na realidade guairenha foram conflitivos e exigiram uma negociao cultural que levasse em considerao smbolos, vivncias e prticas culturais distintas. Posto isto, negamos a eficcia completa do processo aculturador jesutico. Afirmamos que houve um processo de negociao que resultou em uma incipiente hibridao cultural. Este hibridismo pode ser detectado nos escritos de Montoya que expressam certa apropriao e representao das prticas culturais Guarani, e, logo, do reconhecimento de sua identidade.

    A representao da diferena no deve ser lida apressadamente como reflexo de traos culturais ou tnicos preestabelecidos, inscritos na lpide fixa da tradio. A articulao social da diferena da minoria uma negociao complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformao histrica6.

    1 Por complexidade seguimos o conceito tecido por Morin (1999/2000:38 apud Vasconcelos, 2009:62), que afirma a interdependncia de todos os campos da esfera social. 2 Burke, 2010: 72. 3 Bhabha, 2010: 27. 4 Schallenberger, 2006. 5 Montoya, 1997: 18. Grifos nossos. 6 Bhabha, 2001: 21.

    113 Washington R. Almeida Soares y Erneldo Schallenberger. Negociaco e hibrismo...: 112-131.

  • IHS. Antiguos jesutas en Iberoamrica ISSN vol. 1 n 1 2013

    Misses do Guair: fronteiras culturais e pontes de comunicao intercultural

    Entendendo que as misses foram experimentos na regio e que no se

    consolidaram ali enquanto projeto de mudana social, o Guair foi um grande laboratrio de organizao societria na bacia do Prata. As identidades pr-estabelecidas, tanto pelos colonos quanto pelos nativos, foram postas em cheque; o mundo como era concebido, pelos personagens envolvidos, foi posto prova; logo, percebemos que a situao de contato que caracterizou o Guair foi experincia para uma nova formao sociocultural, caracterstica da bacia platina.

    A primeira estratgia europia para a efetiva insero das populaes indgenas da bacia do Prata no sistema colonial ibrico se deu por meio da encomienda. A situao de contato suscitou conflitos quando o tratamento dispensado pelos colonos reduziu os nativos condies degradantes de existncia, sobretudo pela destruio do seus espaos de vivncia.

    O segundo passo foi o projeto reducional, com objetivos de transformao sociocultural das populaes e a sua posterior insero no circuito de explorao colonial. Nesse estgio se imps um processo de negociao cultural entre os atores sociais em contato (jesutas e nativos). O esteretipo de gentio, imposto, no levou em considerao identidade autoatribuda das populaes da regio, logo no promoveu uma integrao pacfica7.

    Enquanto gentio, o nativo esteve merc do projeto civilizador cristo8. Posto que a identidade seja sempre relacional e se firma na alteridade A diferena sustentada pela excluso [...]9. A tipificao dos nativos como gentio da terra os exclui, inicialmente, da comunidade civil crist catlica. E para a Companhia de Jesus no se concebe a existncia do gentio sem a sua converso. Eis a sua misso no Guair.

    Tomando a situao guairenha como conflituosa e que comportou um projeto de transformao social exterior s populaes nativas, com todas as suas implicaes socioculturais, entendemos que as identificaes fixas foram postas prova, posto que tentassem enquadrar nos velhos esquemas de organizao social da realidade uma situao absolutamente nova. A situao exigiu um esforo de traduo cultural de ambas as partes envolvidas. O Guair se tornou um lugar intersticial entre a concepo de mundo guarani e a ibrica. Concebido assim, possvel concordar, parcialmente, com Homi Bhabha quando afirma que: Essa passagem intersticial entre identificaes fixas abre a possibilidade de um hibridismo cultural [...]10.

    A essa idia somamos a afirmao de que as identidades no so fixas e o pressuposto de que as fronteiras tnicas11 se movem de acordo com as estratgias desenvolvidas pelos atores sociais para cada situao.

    7 Analisando o discurso colonial, Homi Bhabha afirma que [...] o esteretipo, que a sua principal estratgia discursiva, uma forma de conhecimento e identificao que vacila entre o no lugar, j conhecido, e algo que deve ser ansiosamente repetido [...].. (Bhabha, 2010:73). 8 Inicialmente, a noo de gentio era uma explicao a respeito do Outro o ndio segundo paradigmas de origem judaico-crist consagrados pela Cristandade ocidental. [...] O conceito de gentio implica no conceito de converso, pois na tica do jesuta impossvel conceber o gentio sem a converso. (Quevedo, 2002:51-52). 9 Woodward, 2005: 09. 10 Bhabha, 2001: 22. 11 Barth, 1998: 188.

    114 Washington R. Almeida Soares y Erneldo Schallenberger. Negociaco e hibrismo...: 112-131.

  • IHS. Antiguos jesutas en Iberoamrica ISSN vol. 1 n 1 2013

    Levando em conta que o encontro entre essas culturas/formaes sociais

    envolveu um projeto de transformao sociocultural por parte dos europeus, podemos deduzir que para as populaes nativas restaram em grande parte as opes de resistncia ou de acomodao. Mesmo que a imposio cultural desse a tnica no processo colonizador, no conveniente minimizar a contribuio cultural dos nativos, expressa, de certa forma, atravs de um fenmeno de aculturao inversa12. Como demonstrao do que Burke chamou de aculturao inversa e Bhabha de negociao cultural, a lngua guarani se impe como exemplo mximo, na medida em que a penetrao no universo cultural dos nativos se fez necessria, no entendimento dos religiosos.

    As diferenas culturais devem ser analisadas no como um contedo em si, mas sim num processo de negociao. possvel estabelecer, assim, um elo com Poutignat e Streiff-Fenart (1998:82) quando afirmam que na pesquisa cientfica direcionada para as questes da etnicidade, [...] a anlise se desloca do contedo cultural do grupo tnico para a anlise da emergncia e da manuteno das categorias tnicas tais como elas se constroem nas relaes intergrupos.

    A primeira fronteira a ser ultrapassada pelos jesutas foi o idioma. Aqui oportuno apontar o processo de interao entre as partes envolvidas: foi o jesuta que tomou o primeiro passo no que diz respeito ao estabelecimento de formas de intercomunicao cultural. O religioso traduziu no s a cultura crist para o guarani, mas tambm interpretou a cultura guarani sob a tica sociocultural crist.

    Mais uma vez necessrio chamar a ateno ao papel de tradutores culturais desempenhado pelos religiosos e por Montoya em particular. Ignorar este fato pode levar a uma falta de ateno no que toca ao processo de composio das fontes histricas (Burke, 2010:97). Entre as dificuldades enfrentadas pelos evangelizadores, esto [...] as formas em que deveriam ser traduzidos os conceitos filosficos e religiosos do cristianismo.13. Neste ponto possvel apontar o processo de traduo cultural desenvolvidos por ambas as partes.

    Os jesutas enfrentaram muitos problemas na converso dos nativos ao cristianismo,

    Os ndios ofereciam uma dupla resistncia ao trabalho missionrio: por um lado, desconfiavam tratar-se de uma nova estratgia de dominao dos brancos e, por outro, atravs da ao de seus lderes messinicos, contestavam a liderana dos padres14.

    A relao entre os nativos e o espao era o pilar material mais importante da cultura guarani15. Partindo dessa premissa, apontamos para a importncia da anlise da reorganizao sociocultural e espacial qual foram submetidos os indgenas nas redues.

    O projeto reducional surgiu como soluo para a situao em que se encontravam os indgenas do Guair, pois o contato com a populao europia se mostrou desastroso. Se num primeiro momento havia a predisposio religiosa de preparar o indgena para a sua integrao ao sistema colonial, o que faria dos inacianos

    12 Burke, 2010: 66. 13 Magalhes, 1989: 49. 14 Schallenberger, 1997: 179. 15 Schallenberger, 2006: 42.

    115 Washington R. Almeida Soares y Erneldo Schallenberger. Negociaco e hibrismo...: 112-131.

  • IHS. Antiguos jesutas en Iberoamrica ISSN vol. 1 n 1 2013

    intermedirios no processo de insero dos Guarani na nova configurao social, com o passar do tempo as relaes entre jesutas e colonos se deterioraram.

    Em um informe sobre a fundao de redues no Guair, o padre Joseph Cataldino aponta para a necessidade da converso dos nativos F catlica e do trabalho de introduo dos costumes europeus entre eles, para que sejam integrados sociedade crist colonial e protegidos dos interesses dos colonos16.

    Durante o processo de expanso das fronteiras coloniais para o Guair, os indgenas tiveram as suas antigas estruturas sociais desrespeitadas e a sua fora de trabalho foi direcionada para os interesses dos colonizadores (assuncenhos e vicentinos). Como resultado v-se a diminuio da populao por conta dos contatos biolgicos e socioculturais entre nativos e colonos.

    Contra essa situao de super-explorao da mo de obra, que degradava os ndios (batizados ou no), surgiu a soluo crist para a regio. A situao de contato entre colonos e nativos, desfavorvel a estes, pode ser percebida nos escritos do padre Montoya17 Esta vem a ser a peste que segue o Evangelho, pois, atrs da liberdade que os ndios alcanam pelo batismo, logo entra a servido e o cativeiro, que j no inveno diablica, mas humana.. Esta frase exemplifica bem o que foi a situao de frico intertnica entre europeus e indgenas, e como ela foi interpretada de acordo com a tica religiosa18.

    A reduo, enquanto projeto, objetivava trazer o nativo para o grmio da Igreja Catlica e tir-lo do estado de selvageria, tornando-o um sdito pleno da Coroa espanhola e membro da sociedade civil crist e protegendo-o da sanha do colonialismo luso-espanhol. Essa afirmao facilmente detectada nos escritos do jesuta Antnio Ruiz de Montoya, principalmente na sua obra Conquista Espiritual. A batalha dos jesutas se deu contra os colonos e contra as lideranas nativas (que lutaram contra o desaparecimento do modo de ser indgena). De acordo com a estratgia jesuta, era necessrio cooptar as lideranas indgenas e fazer delas instrumentos de penetrao na sociedade guarani e, a partir da, por meio da sua influncia e argumentao, trazer para si o centro de gravidade das mudanas sociais que intentavam implantar. Misso atribulada e que custou a vida de alguns padres.

    No que diz respeito eficcia do evangelho, percebe-se certa resistncia em relao introduo do catolicismo. Montoya sentia dificuldade no s para o anncio da palavra crist, mas, tambm, para legitim-la perante o indgena; segundo o religioso, no tanto pela dificuldade do nativo, mas, sobretudo, pelo mau comportamento de espanhis e portugueses19.

    Para que a evangelizao pudesse ser feita de forma mais eficaz, do ponto de vista jesutico, o projeto reducional e a segregao tnica se impunha. A construo social desse novo personagem o ndio reduzido exigia, no palco da atuao das foras divinas, a sua separao do mundo deturpado que os maus cristos ofereciam como exemplo, na perspectiva da moral crist.

    16 Corteso, 1951: 150. 17 Montoya, 1997: 40. 18 [...] as relaes entre ndios e no ndios seriam estudadas em termos de conflito nas relaes sociais observveis e de dissenso em suas representaes, ao contrrio dos estudos aculturativos [...] conduzidos para a observao dos sistemas em equilbrio e de consenso. (Oliveira, 2006: 60). 19 Montoya, 1997: 46.

    116 Washington R. Almeida Soares y Erneldo Schallenberger. Negociaco e hibrismo...: 112-131.

  • IHS. Antiguos jesutas en Iberoamrica ISSN vol. 1 n 1 2013

    Na Instruo para o Guair o padre Diego de Torres define as estratgias a serem seguidas pelos jesutas no processo de instalao das misses. Nela h especificaes que definem no s as tticas de evangelizao, como tambm aspectos prticos da organizao espacial das redues e por fim as relaes que jesutas deveriam ter com os colonos. Apesar da opo preferencial pelos ndios, o provincial no dispensava ateno ao projeto colonizador e nem negava a necessidade da presena espanhola para controle social dos nativos20.

    Como afirmou Peter Burke21 [...] o hibridismo muitas vezes, seno sempre, um processo e no um estado [...]. Partindo dessa premissa, apontamos para o carter analtico e no comparativo do nosso estudo. No acreditamos ser possvel comparar os efeitos da introduo de novas prticas culturais e nem medir, com eficcia, os resultados obtidos nas redues do Guair. A curta durao (1609-1632) da empreitada jesutica no nos permite extrapolar qualquer afirmao sobre o processo de acomodao dos Guarani em relao cultura eurocrist. O que possvel analisar aqui de como a introduo de novos padres culturais e de uma nova estrutura social repercutiu na vida da populao reduzida.

    A ao missionria dos jesutas na Amrica, e de modo especial no Guair, desencadeou, de modo geral, um processo histrico de remodelao das territorialidades dos povos nativos e de suas prticas culturais, promovendo uma organizao territorial que combinava elementos da cultura eurocrist com a guarani. A regio do Guair, enquanto unidade de referncia, que expressa elementos constitutivos de uma possvel identidade, passou a ser uma fronteira de misso. Seguindo as indicaes de Wachtel, possvel dizer que, apesar das diferentes formas de conquista e de colonizao, o que houve na Amrica foi uma desestruturao social22.

    A desestruturao social das tribos indgenas que habitavam o Guair foi o efeito mais visvel do projeto civilizador europeu na regio. O desrespeito ao modo de ser dos Guarani e a sua desestabilizao espacial foram, sem dvida, aes que abalaram irremediavelmente suas bases societrias e culturais.

    A discusso aqui proposta no pensa o processo civilizador cristo como via de mo nica. O conhecimento dos Guarani pode no ter representado para os jesutas nada alm de informaes necessrias para a sobrevivncia em um ambiente desconhecido, mas nem por isso, deve ser minimizado em termos de importncia. Da lngua alimentao, os conhecimentos acerca do meio ambiente, necessrios acomodao humana, e outras prticas culturais foram apropriadas por parte dos colonos e dos religiosos, ainda que, em nvel discursivo, fossem rebaixadas categorias de mera selvageria, aproximaram as fronteiras da barbrie com as da civilizao. Deste modo, o exemplo de como Montoya se apropria daquilo que nativo e de como utiliza, muitas vezes, as prticas culturais (a exemplo da alimentao), representa um reconhecimento de uma alteridade que se situava ora nas fronteiras da barbrie e ora da civilizao, de acordo com as convenincias derivadas do destino dos seus escritos. Esta ambigidade de sentido refletida nos escritos do religioso refora nosso argumento de que a negociao cultural foi importante no s no cotidiano missioneiro, mas se imps como necessria para superar limites e tornar possvel a interveno religiosa.

    20 Rabuske, 1975. 21 Burke, 2010: 50. 22 [...]desestruturao, [...] Wachtel entende o rompimento dos vnculos entre diferentes partes do sistema social tradicional. Instituies e costumes tradicionais sobreviveram conquista; a antiga estrutura, entretanto, desintegrou-se. (Wachtel apud Burke, 2002:216).

    117 Washington R. Almeida Soares y Erneldo Schallenberger. Negociaco e hibrismo...: 112-131.

  • IHS. Antiguos jesutas en Iberoamrica ISSN vol. 1 n 1 2013

    Tirados do seu estado natural, os nativos foram levados, pela reduo, a produzir

    um novo espao de convivncia e de recriao de prticas e representaes socioculturais, onde o antigo espao envolto em smbolos e crenas mitolgicas deu luar ao espao sagrado e racionalizado, do que resultou um conjunto de relaes scio-ambientais e culturais que instituram um [novo] sistema social23.

    A afirmao da necessidade do improviso e da flexibilidade quando dos tratos com os Guarani demonstra a negociao cultural entre as partes envolvidas no projeto reducional, pois como afirma Montoya (1997:184) [...] em cristandade nova usa Deus mtodos novos, se bem que antigos, e ainda de guas de irrigao necessrias, para que plantas tenras, como as dos ndios, cresam em virtude e aumentem em graa.

    A tentativa dos jesutas de trazer para a sua rbita de influncia as lideranas indgenas pode ser apontada como primeira ttica de negociao cultural, posto que, na poca dos primeiros contatos, seria necessrio estabelecer, tambm, o primeiro elo intersubjetivo entre as partes envolvidas. Cooptadas as lideranas, o projeto missioneiro seria guiado espiritualmente pelos religiosos; a manuteno da importncia social do cacique se daria como ponto de encontro entre os interesses dos nativos e dos inacianos. Com esse arranjo feito, as medidas tomadas pelos jesutas teriam que ser aprovadas socialmente. O projeto de transformao cultural, no fundo, dependia mais da aceitao dos nativos dos benefcios propostos pelos religiosos em relao converso do que do poder de coero religiosa, pelo menos no primeiro momento.

    A manuteno da importncia social dos caciques representa um processo de negociao cultural e poltica. Surgiu, assim, uma nova distribuio do poder poltico nas misses, pois A organizao poltica das Misses americanas [...] foi sempre um amlgama de elementos transicionais, pois as tribos cristianizadas iniciaram um fenmeno irreversvel de aculturao24. Concordamos que a organizao poltica feita de elementos amalgamados transicionais; entendemos, no entanto, que o resultado final foi uma aculturao completa; antes, afirmamos que a mescla desses elementos fez surgir uma organizao poltica e social hbrida.

    Outro efeito sociocultural do processo civilizador foi a desconstruo do espao simblico guarani. A nova modelao espacial da reduo dos nativos em povoados missioneiros deveria obedecer, primeiramente, fixao dos povos em um local que provesse a sobrevivncia humana. De acordo com as Instrues do Guair, redigidas pelo padre Diego de Torres em 1609 e em 1610, as redues deveriam ser fundadas em locais que garantissem a subsistncia dos nativos e que tornassem essas redues auto-suficientes25.

    Para que a evangelizao criasse razes na sociedade guarani, o cotidiano dos indgenas deveria ser reorganizado conforme o modelo europeu. No primeiro momento a sedentarizao tornou-se um imperativo e, depois, a reorganizao do cotidiano guarani de acordo com a concepo jesuta tambm se fez necessria. Quando estas duas etapas foram vencidas, o projeto jesuta tomou mais solidez na regio.

    A reorganizao da relao homem-espao dos ndios ressignificou o espao vivido26, que aos poucos deixou de ser guarani e passou a ser um espao hbrido, um

    23 Schallenberger, 1997: 137. 24 Kern, 1982: 37. 25 Rabuske, 1975: 174 e 181. 26 Schallenberger, 2006: 66.

    118 Washington R. Almeida Soares y Erneldo Schallenberger. Negociaco e hibrismo...: 112-131.

  • IHS. Antiguos jesutas en Iberoamrica ISSN vol. 1 n 1 2013

    entre-lugar27, no s cristo e no s guarani.

    O modo de vida guarani, baseado na circulao em seu territrio simblico28, deveria ser erradicado. O carter errante da cultura guarani chamou a ateno de Montoya, que via nesse trao um exemplo de barbrie [...] gente bestial e [que] no conhece morada fixa29. A prpria definio de reduo de Montoya aponta para a necessidade de fixar os nativos em um local apropriado para, a partir da, iniciar o processo de converso religiosa. E essa mesma definio j aponta a negociao e o hibridismo do espao social30.

    Os religiosos, aps a reduo dos indgenas, atuaram no s na converso, mas tambm na busca para o alvio da crise surgida da desestruturao social. Essa atuao buscou a reconstruo do espao do guarani, permeando-o com hbitos e prticas da moral crist catlica. nesse contexto que podemos perceber como se deu a negociao cultural entre as partes envolvidas no processo. Como afirmou Schallenberger31. O espao missioneiro resultou de um jogo de alianas em constante negociao entre ndios, missionrios, encomendeiros e coroa..

    A fundao das redues obedeceu no somente lgica da sobrevivncia, que estimulava a fixao em locais propcios ao novo estilo de vida, mas, antes disso, a fundao dependeu da relao de foras entre os caciques (e suas parcialidades) cooptadas, que mantiveram na medida do possvel a territorialidade anterior reduo.

    As territorialidades primitivas representaram ponto importante para a reduo dos nativos. Montoya afirma que:

    Llegu a un pueblo donde raramente ha entrado espaol por ser apartado y los indios algo fieros, guerreros y valientes. Cuadrme el sitio y mucho ms el Cacique principal el cual tiene cinco hijos todos Caciques con pueblo aparte cada uno, el cual como supo que yo haba puesto al Tayaoba en paz con sus enemigos y que haban hecho pueblo grande me rog que si vena a hacer pueblo, me quedase all que le juntara mucha gente porque deseaba tener paz con Tayaoba cuyo enemigo haba sido mucho tiempo haca32.

    Outro exemplo de manuteno de instituies sociais anteriores conquista que permaneceram presentes foi o Tekoha guarani, espao sagrado onde relaes sociais e as prticas culturais encontraram expresso coletiva. A manuteno deste espao ou a sua recriao nas redues se fez acompanhar de um intenso processo de negociao cultural, e o Tekoha agora, no mais aquele do pr-contato, uma vez que passou a se configurar a partir de uma combinao de elementos simblicos guaranis e cristos, e representa um entre-lugar.

    A separao das famlias extensas em famlias nucleares atingiu diretamente a organizao social dos Guarani. Com a reestruturao da organizao familiar, organizou-se, tambm, o espao onde essas famlias morariam e, por isso,

    Nas misses, a casa da famlia-extensa da tradio guarani foi adaptada aos novos padres de moral estabelecidos pelos padres, sendo subdividida em

    27 Bhabha, 2010: 27. 28 Schmitz, 2007; Schallenberger, 2006. 29 Montoya, 1997: 211. 30 Idem: 19. 31 Schallenberger, 2006: 51. 32 Rebes, 2001: 231.

    119 Washington R. Almeida Soares y Erneldo Schallenberger. Negociaco e hibrismo...: 112-131.

  • IHS. Antiguos jesutas en Iberoamrica ISSN vol. 1 n 1 2013

    cmodos, que passaram a ser utilizados, cada um, para apenas uma famlia, evitando a poligamia33.

    Para garantir o sustento dos Guarani reduzidos foi necessria a sedentarizao do nativo e a introduo de novas relaes de trabalho, baseadas nos moldes europeus e a diviso do espao agrcola em unidades de produo familiar e coletiva, esta para a produo de excedentes. As relaes dos nativos com o meio-ambiente, que viam a natureza como grande provedora, foram substitudas por relaes de trabalho sistemticas e disciplinadas, de acordo com o modelo eurocristo. A imprevidncia indgena, detectada pelos jesutas e associada disperso territorial guarani, levou os inacianos a construrem um espao preferencialmente autossuficiente.

    A esfera do trabalho entre os nativos no se via separada das outras esferas da vida social. O trabalho entre os Guarani reproduzia o dom e estreitava os laos de reciprocidade entre os indivduos. Surge, ento, a dificuldade de se delimitarem fronteiras definitivas e impermeveis entre o econmico e o social, o poltico e o simblico34. Analisando as relaes de produo na sociedade guarani, possvel perceber seguindo ainda as indicaes do autor que Em relao aos Guarani, no existem dvidas de que a famlia-grande constitua, originalmente, a comunidade de produo, de consumo e de vida religiosa.35. Sendo a famlia grande o ncleo produtor, o destino e a quantidade da produo objetivavam suprir as necessidades daquele ncleo. A no produo de excedentes agrcolas entre os nativos fez com que se disseminasse a ideia, entre os religiosos e depois foi vulgarmente aceita, de que os Guarani eram imprevidentes e que por isso no possuam organizao econmica36. No que diz respeito garantia da sobrevivncia dos ndios, os jesutas reorganizaram as relaes de trabalho, aproveitando as antigas prticas dos Guarani e introduzindo novas prticas reguladas pela racionalidade europeia. Ora rotulados como imprevidentes, ora tendo as suas qualidades ressaltadas, os nativos reduzidos no Guair foram expostos a um processo de reorganizao do significado social do trabalho. O trabalho era um aspecto importante na sociedade guarani, posto que reproduzisse o dom e a economia da reciprocidade 37 38. Porm, com a introduo do modelo de trabalho que obedecia lgica jesutica, a evangelizao do guarani objetivava inseri-lo na sociedade civil enquanto produtor e reprodutor da economia colonial, mesmo que pautasse a sua atividade no comunitarismo cristo39.

    Na esfera do trabalho, a violncia simblica40 e a negociao entre jesutas e nativos, andaram juntas, assim analisaremos a reorganizao do trabalho e a sua ressignificao social. Antes da colonizao, o trabalho na sociedade guarani no

    33 Custdio, s/d: 17. 34 Souza, 2002: 220. 35 Ibid:224; Schallenberger, 1989: 12. 36 Colao, 2005; Souza, 2002. 37 Na reciprocidade esto embutidas trs obrigaes: a de dar, a de receber e a de retribuir. Este sistema de prestaes e contraprestaes uma forma de contrato em que no s o indivduo, mas todos se obrigam mutuamente, caracterizando a responsabilidade coletiva. (Colao, 2005:27). 38 Meli, 1996; Souza, 2002; Colao, 2005; Martins, 2010; Schallenberger, 2006. 39 Schallenberger, 1989: 16. 40 Violncia simblica [...] refere-se imposio da cultura da classe dominante aos grupos dominados e, em particular, ao processo pela qual esses grupos subordinados so forados a reconhecer a cultura dominante como legtima e a prpria cultura como ilegtima. (Bourdieu Apud Burke, 2002:122).

    120 Washington R. Almeida Soares y Erneldo Schallenberger. Negociaco e hibrismo...: 112-131.

  • IHS. Antiguos jesutas en Iberoamrica ISSN vol. 1 n 1 2013

    obedecia ao ritmo produtivo dos moldes europeus, pois as necessidades das tribos nativas eram outras. Se comparado ao trabalho da sociedade europeia no havia um ritmo disciplinado (devido ausncia de rotina), uma vez que no havia, tampouco, as mesmas necessidades da Espanha.

    A diviso do trabalho se dava pelo sexo e pela idade e no tinha como objetivo a produo de excedentes para comercializao. Havia, tambm, o trabalho em grupo, comunitrio, chamado de potir; estas atividades estreitavam os laos de parentesco e de amizade41.

    Rompido o ritmo e a lgica simblica da produo guarani, classificou-se de forma negativa a organizao econmica dos nativos. Outro ponto que os religiosos no se deram conta foi o de que, com o avano do colonialismo, o territrio para o sustento dos Guarani diminuiu consideravelmente.

    Escrevendo diretamente ao rei de Espanha, Montoya defende a regularizao das encomiendas, para que estas sejam justas com os nativos, para que eles trabalhem de forma digna e recebam pagamentos de forma adequada, mesmo porque, o religioso afirma que isso seria bom para o arrecadamento dos tributos reais. Para o jesuta regular, o trabalho entre os nativos uma questo ligada no s economia, mas tambm edificao moral42. Podemos detectar, assim, a representao que Montoya faz do ritmo de trabalho dos indgenas, que podem tender preguia. Porm o religioso ignorou o fato de que [...] no existe uma diviso social entre classe ociosa e classe trabalhadora; tambm no existe uma diviso temporal entre tempo produtivo (trabalho) e tempo recreativo (lazer).43.

    O excedente produtivo e econmico do sistema guarani permitia a [...] hospitalidade generosa, a ajuda solidria e a organizao de grandes festas. (Martins Apud Colao, 2005:69). Esse fato comprovado pelo prprio jesuta: Al presente tienen mucha comida ayudados de su natural que son dados a tener chcaras y nada perezosos en cultivarlas. Qued maravillado de ver tantas chcaras y tan llenas, con lo cual luce el pueblo y asisten en l.44.

    Assim como j apontamos anteriormente, a representao do indgena feita por Montoya obedece ocasio em que exposta e a quem se destina a mensagem. Pois, de acordo com a concepo europia de trabalho, os religiosos,

    Influenciados pelo discurso da glorificao do trabalho como condio para a salvao espiritual e da condenao da preguia e do cio, os jesutas implantaram nas misses nova dimenso do trabalho, utilizada como estratgia para a modificao da cultura guarani45.

    Dessa maneira, os inacianos passaram a adaptar a forma como se organizava o trabalho na sociedade guarani, condenando tudo aquilo que no se assemelhava ao modelo europeu. De acordo com esta premissa, o trabalho nas misses foi um grande veculo de mudana cultural, no s porque possibilitou a insero do nativo no sistema de produo colonial, mas acima de tudo, porque o trabalho era socialmente importante para os Guarani.

    41 Meli, 1996; Schaden, 1974:38; Soares, 1997. 42 Montoya, 1997: 195. 43 Ramos Apud Colao, 2005: 68. 44 Rebes, 2001: 215. 45 Colao, 2005: 176.

    121 Washington R. Almeida Soares y Erneldo Schallenberger. Negociaco e hibrismo...: 112-131.

  • IHS. Antiguos jesutas en Iberoamrica ISSN vol. 1 n 1 2013

    Quando os jesutas introduzem uma diviso racional do trabalho, juntamente

    com um novo ritmo de produo, no alteram apenas a quantidade de bens produzidos, mas, tambm, as relaes sociais que giravam em torno do trabalho na sociedade guarani, ou seja, introduzem um novo significado sociocultural para o trabalho. Criam novas necessidades a serem supridas; estas por sua vez advindas da reorganizao social dos Guarani. Apesar de remodelarem algumas relaes sociais ligadas ao trabalho, os religiosos mantm elementos das prticas guaranis, principalmente no tocante ao trabalho coletivo exercido no Tupamba e nas edificaes da reduo.

    importante termos em mente, quando da anlise da esfera do trabalho nas fontes histricas, que Para os jesutas, o trabalho uma forma de manter a disciplina, ou seja, a utilizao da mo de obra indgena uma necessidade para que o ndio se insira nas concepes crists.46.

    No momento em que se d a introduo deste novo modelo de trabalho, h, tambm, resistncia por parte dos nativos. Resistncia essa que no pode ser medida com algum tipo de escala, mas que pode ser percebida atravs das constantes queixas dos religiosos em relao preguia e incapacidade do indgena de se adaptar ao ritmo de trabalho do europeu. Este tipo de entendimento por parte dos religiosos refora ainda mais o discurso da incapacidade indgena de autogoverno.

    Cria-se, assim, um novo sistema de produo, hierrquico, autoritrio e coercitivo, totalmente diverso do Guarani47 [...] Aquele indivduo que no se enquadrasse no padro de comportamento de trabalhador disciplinado era rechaado, vindo a receber sano moral e fsica [Para tanto] [...] desenvolveu-se um aparato de vigilncia e de coao a fim de desestimular e repreender qualquer atitude de vadiagem ou indisciplina48.

    A introduo do gado nas redues ajudou na manuteno de uma dieta minimamente adequada s novas propores da empreitada missioneira. Outra mudana estratgica implementada na relao entre os Guarani e o meio-ambiente foi a introduo da agricultura extensiva. Se as prticas horticultoras no estavam presentes em todas as parcialidades indgenas da regio, agora elas seriam indispensveis para a manuteno da vida dos povos reduzidos e para o projeto de mudana cultural49.

    Tendo sido curta, a experincia no Guair sugere uma fase de acomodao e no de estruturao econmica. Portanto, O trabalho missionrio foi uma das primeiras formas de tutela indgena na Amrica [...] A tutela laica ou religiosa fundamentou-se no discurso de humanizar o ndio para integr-lo civilizao [...]50.

    Com a reduo dos nativos e o surgimento de novas necessidades sociais, surgiu o trabalhador especializado. A reorganizao do trabalho afetou diretamente a relao que os Guarani tinham com o seu espao, que foi revestido de uma nova simbologia. O sagrado guarani foi substitudo pelo sagrado cristo e pela racionalidade do tempo cristo. Certamente esse processo de mudana de postura em relao ao espao afetou diretamente a identidade sociocultural do nativo, que estava diretamente ligada ao Tekoha, ao espao de vivncia e convivncia. O guarani anterior reduo deu origem a

    46 Costa e Menezes, 2002: 228. 47 Martins Apud Colao, 2005: 136. 48 Colao, 2005: 136-137. 49 Schallenberger, 1997: 132. 50 Lima Apud Colao, 2005: 96-97.

    122 Washington R. Almeida Soares y Erneldo Schallenberger. Negociaco e hibrismo...: 112-131.

  • IHS. Antiguos jesutas en Iberoamrica ISSN vol. 1 n 1 2013

    um guarani hbrido, que no o mesmo de antes do contato e que tambm no mais um gentio (aos olhos dos jesutas), mas agora um guarani reduzido. A introduo de um novo modelo de trabalho implicou na reorganizao da diviso social do trabalho entre os Guarani e, por conseqncia, na introduo de novas relaes sociais. O trabalho disciplinado teve a sua parcela de responsabilidade na constituio de uma nova configurao social, pois,

    A manuteno do conceito de propriedade familiar, abamba, para promover a subsistncia da famlia, e a definio da propriedade comum, tupamba, para suprir os encargos tributrios, manter o culto, assegurar a vida e o desenvolvimento da reduo e atender os pobres, rfos e vivas, implicou na remodelao do antigo modo de ser dos ndios51.

    O trabalho que antes era comunitrio, o potir, e ligado esfera mtica passa agora para a esfera de uma nova sacralidade. As novas relaes homem-natureza mudam de lgica e passam a ser desvinculadas do universo mtico guarani; a me-terra que antes era a bondosa provedora, agora se torna cativa do trabalho humano, assim como os ndios se tornaram cativos da nova estrutura socioeconmica. O trabalho seria agora sistemtico e dedicado a suprir as necessidades da misso e a cumprir o papel moralizador e catalisador da vida crist.

    O trabalho coletivo foi importante para os ndios e para as redues. Para os ndios, manteve o sentido da coeso social do grupo que continuou se identificando, em outro contexto, a partir dos elementos inerentes produo da vida material, embora com sentido diverso. Para as redues significava a produo de excedentes para manter todas as funes e o aparato reducional. Nele se imprimiram relaes de cooperao que no eram comuns vida anterior, pois passaram a ser concebidas a partir de uma nova racionalidade, sendo que antes o trabalho era desenvolvido a partir das necessidades que emanavam das demandas do grupo.

    A nova configurao social e simblica do Tekoha, ainda em fase de acomodao, pode ser percebida na seguinte afirmao de Montoya em sua carta nua de 1616, endereada ao provincial da Companhia de Jesus,

    Aqu [em Loreto] tengo una escuela de cuatrocientos muchachos y es juicio de Dios, el acudirlos. Cargado de todo el pueblo esta cuaresma a confesarse, trabajar hasta caer todo va bueno, Gloria al Seor!. Mucho fervor y deseo del bien eterno que tienen estos naturales, acuden a misa todos los das y me han pedido, diga misa muy de maana, para oirla antes de ir a las chcaras y as lo hago52.

    Nesta afirmao possvel detectar como religio e trabalho estiveram imbricados no processo de introduo de novas prticas socioculturais. O rito cristo, praticado antes da faina do dia, no s refora o seu papel moralizador como tambm demonstra como o hibridismo cultural se configurou na rotina reducional. Analisando a afirmao de Montoya podemos perceber que a reciprocidade guarani pr-contato ganhou novos contornos, que foram modelados com elementos do comunitarismo cristo. A sacralidade do trabalho manteve-se, porm trajando novas roupas, que no so nem guaranis e nem crists, so algo hbrido. A produo em grande escala nas redues estava ligada s novas necessidades da vida sedentria, mas nem por isso o trabalho perdeu a sua sacralidade. O que parece, que o trabalho

    51 Schallenberger, 2006: 70-71. 52 Rebes, 2001: 170-171.

    123 Washington R. Almeida Soares y Erneldo Schallenberger. Negociaco e hibrismo...: 112-131.

  • IHS. Antiguos jesutas en Iberoamrica ISSN vol. 1 n 1 2013

    coletivo continuou com a funo de prover as necessidades do grupo, mas, gerenciado pelos jesutas, agrega-se a ele o suporte das novas funes emanadas da reduo e a gerao de excedentes para o comrcio. Em relao ao trabalho coletivo, podemos afirmar que a mudana estrutural se deu no modo de produo e no seu objetivo final, porm as relaes de produo mantiveram prticas anteriores a reduo, apesar da introduo de novas tecnologias. inovadora a definio de novas funes sociais a serem desempenhadas por cada parcela da comunidade.

    Como a religio permeava todas as atividades, Schaden53 adverte que: [...] o principal obstculo aculturao Guaran o extraordinrio apego ao sistema religioso tribal. No nosso raciocnio seguimos a perspectiva de Moacyr Flores (1981:40) que afirma que o sobrenatural acompanha o guarani por toda a sua vida.

    Para promover o seu intento de converso, os jesutas introduziram no seio das comunidades recm-formadas prticas religiosas crists catlicas. A primeira prtica catequtica empregada pelos jesutas na provncia do Guair fora o batismo do gentio. Instituio importante para o cristianismo, o batizado, assim como muitos ritos de passagem em diversas religies, tem a funo simblica de garantir [...] o acesso vida espiritual [e] implica sempre a morte para condio profana, seguida de um novo nascimento.54. [Sobre as almas dos nativos] A estas, embora entenebrecidas pela gentilidade e pelos pecados, eu trazia algo que as houvesse de tomar brancas. Era a gua do batismo e neste a verdadeira crena em um s Deus, Criador Universal.55. Assim, a primeira fronteira a ser ultrapassada pelo indgena rumo ao estado de civilizao, segundo a concepo jesuta, era a da religio.

    Depois de ministrado o batismo, Montoya e os outros jesutas creram que a primeira barreira contra a gentilidade dos ndios fora destruda; porm, como nos aponta a documentao produzida pelo jesuta, as dificuldades para a converso dos Guarani foram muito maiores e contaram com fatores internos e externos ao processo evangelizador cristo. Neste caso, o batismo no suprimiu a necessidade de negociao para a fixao dos nativos junto s misses.

    A imposio de uma nova religio, inseparvel de uma nova cultura, no se mostrou uma tarefa simples. O abandono forado de um modo de ser milenar desenvolvido pelos povos Guarani ao longo da sua experincia histrica e da sua relao religiosa com o meio ambiente no se deu sem resistncia. O processo de mudana cultural se viu contestado por movimentos messinicos, liderados pelos chamados feiticeiros verdadeiros porta-vozes do estado de crise em que se encontravam os povos nativos , que conclamavam a insurreio contra o inimigo europeu56 e mobilizava parcelas da populao nativa. A leitura mais lcida da situao de contato e de frico intertnica foi feita pelos chamados feiticeiros. A violncia simblica praticada pelos jesutas pode ser facilmente detectada quando analisamos a introduo da nova religio entre os ndios reduzidos.

    A presena de lideranas nativas em muito perturbaram o processo civilizador jesutico. Os chamados feiticeiros se mostraram obstculos no processo reducional e sempre que descritos por Montoya ganham contornos demonacos. Sigamos com o exemplo de um cacique e mago chamado Taubici, [...] que quer dizer diabos em fila

    53 Schaden, 1974: 136. 54 Eliade, 1992: 96. 55 Montoya, 1997: 124. 56 Montoya, 1997: 53.

    124 Washington R. Almeida Soares y Erneldo Schallenberger. Negociaco e hibrismo...: 112-131.

  • IHS. Antiguos jesutas en Iberoamrica ISSN vol. 1 n 1 2013

    ou fileira de demnios57. Descrito na Conquista Espiritual, na parte em que os jesutas estavam travando os primeiros contatos com os nativos, Taubici representado como um aliado do demnio. Ao descrever suas prticas religiosas, Montoya58 registra que:

    Quando ele queria falar com o demnio, mandava que todos sassem da sua casa e no ficassem em volta [...] Ficavam, no entanto, em sua companhia quatro mancebas mais queridas. Ordenava descobrir alguma parte do telhado de sua casa, e era l por onde houvesse de entrar o mau esprito. Sobrevinham ento a esse miservel determinados desmaios, e as mulheres o ajudavam, segurando-lhe os braos e a cabea, ao passo que ele fazia trejeitos e meneios ferozes. Com tais aes e embustes feitos, publicava ele depois no poucas mentiras relativas a coisas futuras, de que s vezes se seguiam efeitos, sendo que as tirava do demnio por suas conjeturas.

    No excerto anterior podemos perceber que Montoya descreve um ritual que toma por divinatrio e atribui a ele uma valorao negativa, desqualificando-o enquanto ritual religioso. At o nome do feiticeiro demonaco. O no reconhecimento das prticas religiosas dos Guarani suas crenas e rituais , que tinham outros significados, abriu espao para a qualificao deste feiticeiro como feroz, que nos remete ao mundo da selvageria e da barbrie, oposto ao civilizado cristo. A representao do ritual guarani feita como um espelho negativo do culto cristo, pois enquanto este vai direo de Deus, aquele se dirige diretamente ao Diabo.

    A crena guarani no adotava o demnio enquanto entidade religiosa, logo, no o inseria em sua ritualstica. Montoya, ignorando este fato, julga os rituais guaranis de acordo com a lgica crist. Neste ponto devemos nos deter novamente para melhor compreender o conflito descrito pelo jesuta. Primeiramente, Taubici representado como um amigo do demnio, o que no excluiu a ajuda que prestou aos jesutas contra alguns ndios que queriam matar os religiosos. Segundo, o mesmo feiticeiro previu e acertou segundo Montoya a morte de alguns ladres que rondavam a reduo de Loreto. Por ltimo, e somente depois de Taubici ignorar a admoestao do P. Simo Maceta, abandonando a reduo de Loreto durante a festa de Corpus Christi levando consigo alguns indgenas (inclusive cristos), que chega a punio. Esta veio pouco tempo depois, pois o feiticeiro foi morto por rivais, e, de acordo com o entendimento do jesuta, a punio estava diretamente ligada ao descaso com a festa crist59.

    A situao exposta no pargrafo anterior pode ser lida como mais um conflito em que lideranas so disputadas e entendimentos acerca do sagrado so confrontados. Eliminando o religioso do discurso de Montoya possvel interpretar a arenga entre Taubici e os religiosos como uma disputa pela liderana da populao, pois se o feiticeiro no conseguiu pr fim reduo, to pouco deixou de levar consigo alguns seguidores. Como a liderana religiosa entre os Guarani era conquistada pelo carisma pessoal60, vemos neste particular que a disputa girava em torno deste ponto. Por outro lado, importante destacar o confronto entre duas religiosidades diferentes. Enquanto Montoya toma o ritual praticado por Taubici como diablico, cabe a ns enquanto historiadores, questionar essa apropriao. Como j dito, o Diabo no faz parte do imaginrio guarani. O ponto central dessa apropriao de Montoya a reza tal qual era

    57 Montoya, 1997: 51. 58 Ibdem. 59 Ibdem: 52. 60 Schaden, 1974:105.

    125 Washington R. Almeida Soares y Erneldo Schallenberger. Negociaco e hibrismo...: 112-131.

  • IHS. Antiguos jesutas en Iberoamrica ISSN vol. 1 n 1 2013

    praticada pelos nativos. Egon Schaden61 aponta para uma prtica chamada de porahi entre os Guarani do sculo XX que em muito se assemelha ao ritual descrito por Montoya.

    Descontando a distncia espao-temporal que separa as duas prticas, acreditamos que seja possvel traar um paralelo entre ambas sem prejuzos impostos pelo anacronismo. Portanto, o que emerge do confronto entre a representao feita por Montoya pela descrio do ritual ligado ao porahi uma situao de conflito que envolve dois entendimentos e duas prticas ligadas religio.

    Eliminando o fantstico da narrativa possvel detectar algumas das estratgias de negociao cultural na tentativa erradicar antigas prticas culturais e introduzir novas. Estas se direcionavam preferencialmente s crianas62.

    Durante o processo de introduo de novas prticas culturais foi necessria a imposio de uma nova rotina, em que a religio desempenharia o papel de protagonista no controle social sobre os mais velhos e sobre o comportamento das crianas. E foram estas mesmas crianas que, muitas vezes, atuaram diretamente como agentes do aparato de controle social desenvolvido pelos jesutas63.

    A educao das crianas foi importante porque, segundo Montoya, muitos religiosos se queixavam da dificuldade em conquistar os mais velhos e apontavam para a catequese dos mais novos como uma soluo de longo prazo [...] empregando sobre tudo ateno juventude, para que ela no se criasse com os ranos paternos64.

    Se a religiosidade guarani era essencialmente individual, no se podem negligenciar as prticas religiosas coletivas, igualmente combatidas pelos jesutas. Neste ponto, o exemplo mximo se mostra com a antropofagia, ritual de um significado social e cultural importante, pelo qual os Guarani no devoram a carne do morto simplesmente e sim as suas qualidades65. Os escritos de Montoya o classificam como abominvel e as representaes dele so seguidas de adjetivos ligados selvageria, gentilidade e barbrie. Portanto, alm do seu significado religioso, a antropofagia tinha tambm importncia enquanto ritual que assegurava a coeso social do grupo, fortalecendo os laos de reconhecimento e identidade, contrapondo-os s parcialidades rivais.

    Sobre os ritos ligados antropofagia, no conseguimos detectar em nenhum dos escritos do religioso qualquer sinal que indicasse uma negociao cultural. Baseados nisto, podemos afirmar que esse costume no foi tolerado nas redues.

    Outro ponto importante para a religiosidade coletiva dos Guarani eram as festas regadas a bebidas alcolicas66. Vejamos o exemplo dado por Montoya, em carta nua de 1628, quando fala sobre os costumes dos Gualachos de celebrar a guerra.

    Es esta gente muy guerrera y ejercitada en matar principalmente en tiempo de borracheras a que son muy dados por haberles dado la naturaleza mucha miel por los montes y es sin duda cierto en habiendo bebidas haber muertes porque all se refrescan las pasadas y sin borrachera tambin se matan

    61 Schaden, 1974: 118-119. 62 Montoya, 1997: 59. 63 Colao, 2005: 148. 64 Montoya, 1997: 212. 65 Flores, 1981: 40; Ramos, 2001: 81. 66 Ramos, 2001: 83.

    126 Washington R. Almeida Soares y Erneldo Schallenberger. Negociaco e hibrismo...: 112-131.

  • IHS. Antiguos jesutas en Iberoamrica ISSN vol. 1 n 1 2013

    matando tanto nmero de los contrarios cuantos fueron sus muertos y as nunca deja de haber muertes e inquietudes67.

    possvel perceber que, apesar da reduo, a prtica da bebida ritual teve de ser erradicada aos poucos, mediante negociao, tendo sida substituda pela erva-mate.

    A distribuio de uma poro de erva-mate diariamente s famlias, alm de diminuir o poder do xam, pois o mate era anteriormente bebida tipicamente ritual, fomentava a reunio de pessoas sem a presena de bebidas alcolicas, ressignificando, ento, duplamente o costume anterior68.

    Seguindo as orientaes de Carlo Ginzburg, no devemos deixar escapar os pequenos indcios que podem se bem manuseados compor um quadro, ainda que fragmentado, de como a prtica do batismo foi apropriada pelos nativos. Para tanto, tomemos o exemplo do cacique Miguel Artiguaye. Este cacique se apropriou de parte da ritualstica catlica para conduzir um ritual religioso. Devemos nos ater ao fato de que este ndio era batizado segundo Montoya e que, pensamos, poderia saber minimamente o significado desta prtica. Porm, independente disso, o ndio insistia na prtica da idolatria e da poligamia, segundo o religioso. Montoya69 afirmou que: Chegamos a batizar oito crianas, filhos seus e safra daquele ano. Todos se tornaram no pouco felizes, porque morreram em seguida a seu batismo.. Na seqncia o religioso afirma que No gostava ele de que aos enfermos e desejosos deveras de serem lavados pelas guas do batismo [...]70.

    Tomando em conta a afirmao de Egon Schaden71 de que entre os Guarani subexiste a crena que as doenas so advindas de prticas mgicas, acreditamos ser lcito apontar que Miguel Artiguaye estivesse se voltando contra o batismo por achar que este seria um ritual de induo de doenas, j que oito dos seus filhos batizados morreram. Para tentar compor um quadro que nos informe que alguns nativos entenderam que a prtica batismal estava ligada s doenas que ceifavam milhares de vidas naquela poca, avanaremos um pouco alm do nosso corte temporal.

    Antonio Montoya descreve na Conquista Espiritual um episdio ligado ao feiticeiro conhecido como Yeguacapor, responsvel pela morte do jesuta Cristvo de Mendoza em 1635, apontando que:

    No lhe faltaram herdeiros em seus embustes e magias. Construram eles igrejas, nelas colocaram plpitos, faziam as suas prticas e chegavam a batizar. Era esta a frmula de seu batismo: Eu te desbatizo! E com isso lavavam todo o corpo dos batizandos. As prticas endereavam-se descrdito da f e da religio crist, ameaando aos que a recebessem e aos que, tendo a recebido, no a detestassem, pois seriam devorados pelos tigres.

    Nos casos descritos acima, vemos alguns conflitos advindos do processo reducional. No que diz respeito s prticas de cura, enquanto os indgenas depositavam nos pajs a confiana na cura das doenas, os jesutas depositam essa confiana em

    67 Rebes, 2001: 233. 68 Ramos, 2001: 84. Nota de rodap. 69 Montoya, 1997: 61. 70 Idem. 71 Schaden, 1974: 124.

    127 Washington R. Almeida Soares y Erneldo Schallenberger. Negociaco e hibrismo...: 112-131.

  • IHS. Antiguos jesutas en Iberoamrica ISSN vol. 1 n 1 2013

    Deus. Quanto importncia dos pajs na sociedade guarani, seguiremos a anlise de Moacyr Flores acerca do seu papel social.

    Os pajs e os curandeiros tinham ascendncia sobre os amerndios, pois praticavam exorcismos sobre espritos, controlavam as foras naturais, aliviavam as doenas e traziam a morte. Guardies da tradio, os feiticeiros transmitiam os mitos e crenas que davam coeso ao grupo tribal, explicando as causas desconhecidas dos fenmenos naturais e educando a juventude72.

    A diferena entre os pajs e os religiosos que estes tinham conhecimentos mais aprofundados de prticas medicinais do que os nativos, portanto, [...] os jesutas s podero triunfar sobre essa vil canalha aparecendo como xams de uma categoria superior73, e como afirma Moacyr Flores74: Os inacianos, [foram] recebidos pelos ndios como poderosos feiticeiros porque curavam, rezavam e falavam de Deus, tratavam os pajs como seguidores do esprito mal, proibindo magias e rituais indgenas..

    No que diz respeito sua imposio como centro de gravitao das mudanas socioculturais, os religiosos encontraram nos pajs adversrios implacveis. A aceitao da presena dos jesutas esteve diretamente ligada aos interesses imediatos, ou no, dos nativos, pois estes buscavam algum que lhes defendesse da sanha do colonialismo luso-espanhol.

    Nota conclusiva

    Os processos de negociao cultural e reconfigurao social fizeram do jesuta o mediador das transformaes culturais, isso no excluiu, porm, a possibilidade de que os nativos vissem nele um remdio para os seus males e no necessariamente o portador de uma religio verdadeira. Para tanto, o religioso era responsvel pela liderana poltica e espiritual, e para que essa funo fosse desempenhada com o mximo de eficincia possvel era necessria a eliminao de lideranas rivais. Sendo assim, os caciques foram preferencialmente cooptados pelos religiosos, enquanto os pajs foram afastados do convvio social, atravs de mecanismos de negociao e, ao mesmo tempo, de imposio.

    Retornando ao caso de Miguel Artiguaye, Antonio Ruiz de Montoya relata um episdio em que o cacique se revolta contra a imposio da nova configurao cultural. Depois de descrever a ascendncia social deste cacique em relao aos ndios de Loreto, Montoya lhe confere atributos selvagens, referindo-se ao seu comportamento e s suas prticas demonacas. Miguel Artiguaye se colocava como lder religioso dos nativos e protestava contra a proibio da poligamia, mas no conseguia arrebanhar a todos, pois muitos ndios no o seguiram por temor a autoridade de outro grande cacique, chamado Roque Maracan75.

    A distino do duplo papel do cacique implica no reconhecimento de sua liderana social e na condenao de suas funes religiosas. O reconhecimento da liderana, o combate feitiaria, a imposio de contedos, smbolos e sinais do cristianismo, a ressignificao da linguagem guarani, a introduo de novas tecnologias de trabalho e produo, a reorganizao da estrutura familiar e a organizao do espao

    72 Flores, 1981: 39. 73 Haubert, 1990: 138. 74 Flores, 1981: 39. 75 Montoya, 1997: 59-62.

    128 Washington R. Almeida Soares y Erneldo Schallenberger. Negociaco e hibrismo...: 112-131.

  • IHS. Antiguos jesutas en Iberoamrica ISSN vol. 1 n 1 2013

    reducional, entre outras dimenses, implicaram num amplo e complexo processo de negociao cultural, sem que isto tenha significado assimilao ou aculturao. No curto espao de tempo que guaranis e jesutas interagiram no Guair se viu surgir, sem se consolidar territorialmente, a experincia reducional. Nesta experincia foram construdas as primeiras pontes de comunicao intersubjetiva entre os atores sociais das partes envolvidas, e nela tambm se mostra um incipiente hibridismo cultural (cultura missioneira).

    A experincia reducional iniciada no Guair certamente representou para os nativos a desestruturao do seu modo de ser; para os religiosos um incessante trabalho de negociao cultural para manter unida aquela multido de ndios sob a sua tutela.

    Referncias

    Bhabha, H. K. (2010), O local da cultura. Belo Horizonte, Ed. UFMG. Burke, P. (2010), Hibridismo cultural. So Leopoldo, RS, Editora UNISINOS. Burke, P. (2002), Histria e teoria social. So Paulo, Editora UNESP. Colao, T. L. (2005), Incapacidade indgena: tutela religiosa e violao do direito

    guarani pr-colonial nas misses jesuticas. Curitiba, Juru. Corteso, J. (1951), Jesutas e bandeirantes no Guair. (1549-1640), Rio de Janeiro,

    Biblioteca Nacional. Costa, F. L.; Menezes, S. L. (2002), Algumas consideraes sobre a ocupao europia

    na regio do Guair nos sculos XVI e XVII. Acta Scientiarim. 24, (1): 223-232.

    Custdio. L. A. B. Misses jesuticas: arquitetura e urbanismo. Porto Alegre, Memorial do Rio Grande do Sul Caderno de Histria, n 21. Disponvel em: http://www.memorial.rs.gov.br/cadernos/missoes.pdf

    Eliade, M. (1992), O sagrado e o profano. So Paulo, Martins Fontes. Elias, N. (1994), O processo civilizador. (V 1). Uma Histria dos Costumes. Rio de

    Janeiro, Jorge Zahar. Flores, M. (1981), Magia indgena: conflito com a apologtica dos jesutas sobre o

    cristianismo. Anais do IV Simpsio Nacional de Estudos Missioneiros. A populao missioneira: fatores adversos e favorveis s redues. Santa Rosa, RS, Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras Dom Bosco, pp. 38-44.

    Ginzburg, C. (1989), Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e histria. So Paulo, Companhia das Letras.

    Haubert, M. (1990), ndios e Jesutas no tempo das misses. So Paulo: Companhia das Letras, Crculo do Livro.

    Kern, A. A. (1982), Misses: uma utopia poltica. Porto Alegre, Mercado Aberto. Magalhes, E. DAlmeida (1989), Colonizao, Evangelizao e Lngua. Anais de

    VIII Simpsio Nacional de Estudos Missioneiros. Santa Rosa, Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras Dom Bosco, pp. 48-59.

    Martins, J. de Souza (2009), Fronteira: a degradao do Outro nos confins do humano. So Paulo, Contexto.

    Martins, M. C. B. (2010), As sociedades indgenas e a economia do dom: o caso dos Guaranis. Cadernos IHU Ideias. 138 (8): 03-27.

    129 Washington R. Almeida Soares y Erneldo Schallenberger. Negociaco e hibrismo...: 112-131.

  • IHS. Antiguos jesutas en Iberoamrica ISSN vol. 1 n 1 2013

    Meli, B. (1996), Potir: las formas del trabajo entre los Guaran antiguos reducidos

    y modernos, Revista Complutense de Histria de Amrica. 22. Montoya, A. Ruiz de (1997), Conquista Espiritual feita pelos religiosos da Companhia

    de Jesus nas Provncias do Paraguai, Paran, Uruguai e Tape, Porto Alegre, Martins Livreiro.

    Oliveira, R. C. de Oliveira (2006), Caminhos da identidade: Ensaios sobre etnicidade e multiculturalismo. So Paulo, Editora UNESP; Braslia, Paralelo 15.

    Pompa, C. (2001), Religio como traduo: Missionrios, Tupi e Tapuia no Brasil Colonial. Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas.

    Poutignat, P.; Streiff-Fenart, J. (1998), Teorias da etnicidade. Seguido de Grupos tnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. So Paulo, Editora da UNESP.

    Quevedo, J. (2000), Guerreiros e Jesutas na Utopia do Prata. Bauru, SP, EDUSC. Rabuske, A. O modelo educacional das redues jesuticas guaranis. Anais do IV

    Simpsio Nacional de Estudos Missioneiros. A populao missioneira: fatores adversos e favorveis s redues. Santa Rosa, RS, Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras Dom Bosco, IV: 58-79.

    Rabuske, A. A carta-magna das redues do Paraguai. Anais do I Simpsio Nacional de Estudos Missioneiros: A experincia reducional no Sul do Brasil. Santa Rosa, Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras Dom Bosco, pp. 171-187.

    Ramos, A. D. (2001), Entre a graa e a ameaa um estudo das representaes de Deus nas Cartas nuas da Provncia Jesutica do Paraguai (1609-1637). Dissertao. UNISINOS.

    Rebes, M. I. A. (2001), Antonio Ruiz de Montoya testemunha do seu tempo: Documentos para a Histria da Amrica. Dissertao, UNISINOS.

    Schaden, E. (1974), Aspectos fundamentais da cultura Guarani. So Paulo, EPU, Ed. da Universidade de So Paulo.

    Schaden, E. (1981), A religio guarani e o cristianismo. Contribuio ao estudo de um processo histrico de comunicao intercultural. Anais do IV Simpsio Nacional de Estudos Missioneiros. A populao missioneira: fatores adversos e favorveis s redues. Santa Rosa, RS, Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras Dom Bosco, pp. 13-37.

    Schallenberger, E. (1997), A integrao do Prata no sistema colonial: colonialismo interno e misses jesuticas no Guair. Toledo: Editora Toledo.

    Schallenberger, E. (1989), Misses: trabalho e evangelizao. Anais de VIII Simpsio Nacional de Estudos Missioneiros. Santa Rosa, Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras Dom Bosco, pp. 09-19.

    Schallenberger, E. (2006), O Guair e o espao missioneiro: ndio e jesutas no tempo das misses rio-platenses. Cascavel, PR, Coluna do Saber.

    Schmitz, P. I. (2007), ndios guaranis, kaingang e xokleng: territrios indgenas e fronteiras. In: Moreira, L. F. V. (Coord.). Instituies, Fronteiras e Poltica na Histria Sul-Americana. Curitiba, Juru.

    Soares, A. L. (1997), Guarani: organizao social e arqueologia. Porto Alegre, EDIPUCRS.

    Souza, J. O. Catafesto de (2002), O sistema econmico nas sociedades indgenas Guarani pr-coloniais. Horizontes Antropolgicos, 18(8):211-253.

    130 Washington R. Almeida Soares y Erneldo Schallenberger. Negociaco e hibrismo...: 112-131.

  • IHS. Antiguos jesutas en Iberoamrica ISSN vol. 1 n 1 2013

    Torres, L. H. (2007), Misses Jesutico-Guaranis: Entre o tempo medieval e moderno.

    Biblos, 21: 215-224. Vasconcelos, E. M. (2009), Complexidade e pesquisa interdisciplinar: epistemologia e

    metodologia operativa. Petrpolis, RJ, Vozes. Woodward, K. Identidade e diferena: uma introduo terica e conceitual. In: Silva,

    T. T. (org.). Identidade e diferena. Petrpolis, RJ Vozes, pp. 7-72.

    131 Washington R. Almeida Soares y Erneldo Schallenberger. Negociaco e hibrismo...: 112-131.

    Referncias