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A Coleção Comunicações pretende mostrat o amplo e sedutor leque de

horizontes e perpectivas críticas que se abre para uma jovem ciência quenão é apenas ciência social, mas que também se nutre e transita nas ciênciasda cultura bem como nas ciências da vida. Afinal, apenas sobrevivemos,

como indivíduo e como espécie, se compartilhamos tarefas, funções e

fruições, vale dizer, se desenvolvemos uma eficiente comunicação que nos

vincule a outras pessoas, a outros espaços, a outros tempos, e até a outrasdimensões de nossa subjetividade.

Conheça os títulos desta coleção no final do livro.

COLEÇÃO COMUNICAÇÕESDireção: Norval Baitello junior

/\N~

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP

F668 Flusser, Vilém (1920 - 1991).

Natural: mente: vários acessosao significado de natureza.! Vilém Flusser.­

São Paulo: Annablume, 2011. (Coleção Comunicaçóes).

164 p.: 14x21 cm.

ISBN 978-85-391-0260-0

Sumário

1. Filosofia. 2. Teoria do Conhecimento. 3. Natureza. L Título. 11.Série.

lH. Vários acessos ao signíficado de natureza.

CDU 165

CD]) 121

Caralogação elaborada For Wanda Lucia Schmidr - CRB-8-1922

Natural:mente

Vários acessos ao significado de natureza

© Edirh Flusser

1"edição, julho de 2011

ANNABLUME edirora . comunicaçãoRua M.M.D.C., 217. Buranrã

05510-021 . São Paulo. SP . Brasil

Tel. e Fax. (011) 3812-6764 - Televendas 3031-1754www.annablume.com.br

Conselho EditorialEduardo Penuda CafLizal

Norval BaiteIlo juniorMaria Odila Leite da Silva Dias

Celia Maria Marinho de AzevedoGustavo Bernardo Krause

Maria de Lourdes Se_keíf(in memoriam)Pedro Roberro Jambi

Lucrécia D'Alessio Ferrara

Caminhos (uma espécie de Introdução) 07

Vales

19

Pássaros

29

Chuva

39

O cedro no parque

45

Vacas

53

Grama

59

Dedos

67

Alua

75

Montanhas

85

A falsa primavera

95

Prados

103

Ivan AntunesVínícius Viana

Juliana BiggiCarlos ClémenVinícius Viana

Coordenação de produção:Diagramação:

Revisão:

Capa:Finalização:

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Ventos

Maravilhas

113

121

Caminhos(Uma espécie de Introdução)

Botões 129

Neblina 137

Natural: mente (uma espécie de conclusão) 147

Duas experiências estão confluindo para ignorar oredemoinho das reflexões a serem relatadas em seguida.A primeira é a última passagem do autor pelo Passo deFuorn que une o vale do Enghadin com a rede de valesalto-adigianos no encontro das fronteiras da Itália, Áus­tria e Suíça. A segunda é a visita recente que o autor fezaos menires de Carnac na Bretanha. Antes de permitir àsduas experiências confluírem, o autor deve descrevê-Ias.

O Passo de Fuorn é estrada asfaltada não muito lar­

ga, por não ser muito frequentada, já que comunica re­giões pouco habitadas. É, no entanto, mantido livre daneve durante o inverno todo, quando estradas mais im­portantes estão fechadas ao trânsito, porque não existeligação alternativa entre as regiões que une. Trata-se deestrada lateral da grande artéria que parte de Coira emdireção a Milão pelo passo de Maloia e que forma uma

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8 Natura[;menre VIJ.,ÉM FLVSSER 9

das passagens norte-sul do centro europeu. Sai daquela ar­téria em Zernez, no vale do Enghadin (não muito longede São Moritz dos milionários americanos e dos xeiquespetrolíferos, e de Sils Maria do Nietzsche zaratustriano),sobe pelo Parque Nacional do Enghadin até a altura deuns 2.300 metros, desce pelo vale do Vanosta das aldeiasladinas e castelos gados e langobardos e pelo vale do AltoAdige, nos quais se confunde com a estrada que Drususconstruiu para vencer os réticos e alcança, em Bolzano(a clássica "Pons Drusi"), a auto-estrada Munique-Romaque é, por sua vez, a Via Flaminia pela qual Germânicopenetrou em nome de Roma nas florestas teu tônicas, epela qual, em sentido contrário, o Imperador Henriqueviajou, penitente, para submeter, em Canossa, a coroa doSanto Império germânico à autoridade do Papa romano.Ao ligar, assim, transversalmente, duas artérias importan­tes, a estrada do Passo de Fuorn (nome ladino que sig­nifica, obviamente, Passagem do Forno) parece ser obrarecente de engenharia, destinada a descarregar parte dotrânsito pesado de caminhões que rolam, em cadeia inin­terrupta, entre o centroeuropeu e a península italiana.Obra de engenharia recente e ousada que exigiu a aplica­ção dos métodos mais avançados da tecnologia.

O autor viajou por ela repetidas vezes e sempre ad­mirou não apenas as majestosas vistas de cumes e geleiras,mas também a beleza da suas curvas. Destarte, o espíritohumano, munido dos instrumentos da ciência, conseguiuliteralmente perfurar os segredos da natureza e abri-Iasà contemplação, e conseguiu fazê-Ia na forma de beleza.

Até que o autor leu, em um livro de paleoantropologia,que Passo de Fuorn foi, durante incontados milênios, ocaminho das manadas de cavalos selvagens,do gado "Ur"e das renas, perseguidas pelos caçadores paleolíticos, nos­sos antepassados. O traçado da estrada atual foi "constru­ído" por tais manadas. O projeto da estrada é dos cavalos,dos touros, das renas. Apenas a sua execução atual é pro­duto de trabalho humano, como devem ter sido incontá­

veis execuções anteriores. Se projeto e ideia foram consi­derados conceitos parentes, quem teve a ideia de fazer aestrada foram os animais da tundra. Foram elesos que ou­saram. E nós, que viajamos de automóvel de Bolzano paraZarnez, estamos apenas seguindo os seus passos, exata­mente como o faziam os caçadores, nossos antepassados.

~em viaja para a Bretanha, como o fez o autorna semana passada, penetra região misteriosa por mul­tiplicidade de razões: por causa de curiosas construções,chamadas "calvários", que a caracterizam; por causa doMont-Saint-Michel, esse monstro monástico, esse Mon­

te Athos do Ocidente; por causa das lendas pseudocris­tãs dos bretões que para lá se mudaram, depois de teremsido expulsos da "grande" Bretanha pelos anglo-saxões,os quais continuam "bretonando" até hoje, quando sualíngua e cultura desapareceram na pátria inglesa há mui­to; por causa daquele curiosíssimo povo celta, chamado"o povo do mar = armoricano", que jamais foi realmentedomado nem pelos romanos, nem pelos gauleses,nempe­Ias bretões, nem pelos francos, nem, diga-se de passagem,pelos burgueses parisienses que estão construindo seus

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10 Natural:mcnte VILf:M FLUSSER 11

edifícios de apartamentos nas praias "armoricanas". (Mastambém estão sendo domados, como o está sendo o resto

do Ocidente, pela cultura de massa, de modo que passam,

atualmente, de "armoricanos" para americanos.) No en~

tanto, a região é misteriosa principalmente por causa dos

povos que antecederam os armoricanos, e dos quais pou­

co ou nada se sabe, a não ser que construíram (se é que"construir" é o termo certo), entre os anos 6000 e 4000

antes de Cristo, aqueles conjuntos incríveis de pedras em

Carnac e, do outro lado do Canal, em Stonehenge. ~e

gente era essa, que mais de 2000 anos antes da construção

da primeira pirâmide egípcia levantava absurdamente mi­

lhares de pedras pontudas e irregulares, centenas das quais

pesam um múltiplo do peso do Obelisco na Place de La

Concorde, cuja ereção exigiu o esforço máximo da téc­nica iluminista, e todo o ardor romanticamente revolu­

cionário da República Francesa? O autor não encontrou,

até agora, na literatura consultada, resposta satisfatória a

tal pergunta. Encol1trou apenas interpretações fantásti­

cas do tipo "O despertar dos mágicos", ou interpretações

banais do tipo freudiano "phallus". Tais interpretações e

outras semelhantes não satisfazem. Porque diante de toda

obra humana surge a pergunta do motivo e da finalidade

da obra. Já que é isto que distingue cultura de natureza:

as obras da cultura têm significado, são decodificáveis. Os

menires de Carnac são absurdamente misteriosos, por­

que perdemos a chave do código que lhes confere o seu

significado. Não sabemos mais por que e para que foram

elevados, e somos obrigados a "interpretá-Ios", em vez ded "1' 1 "po ermos e- os .

Os milhares de menires que cobrem a planície em

torno da aldeia de pescadores e cultivadores de ostras "be­

lonnes", chamada Carnac (nome que sugere misteriosa­

mente o Egito, e, por seu sufixo "-ac", passado que aponta

além da Idade do Bronze), parecem, à primeira vista, um

amontoado de ruínas espalhadas caoticamente, como se

um edifício de proporções transumanas tivesse ruído em

terremoto. Mas, pouco a pouco, o observador vai desco­

brindo que o que parece ser acaso caótico é, na realidade,

ordem ultracomplexa. As pedras não parecem, sob obser­

vação mais meticulosa, uma espécie de estátuas "objets

trouvés" ou "minimal art" de proporções gigantescas, mas

elementos de cercas invisíveis ou desaparecidas. E tais su­

percercas, quando mentalmente reconstituídas, passam a

delimitar centenas de caminhos que se cruzam e recruzam

em desenho geométrico altamente sofisticado. A visão

mental faz surgir um conjunto de avenidas e alamedas co­

lossais dentro do qual o menir individual passa a ser ape­

nas elemento de traçado, apesar de suas proporções gigan­

tescas. E se as próprias rochas se transformam em anões

em tal labirinto, que dizer de nós homens? Passamos a ser

formigas que correm, 'desorientadas, dentro de avenidas

e alamedas destinadas a seres de ordem de grandeza dife­

rente, que procuram apalpar, com suas antenas mentais,

os menires individuais a fim de descobrirem quais os se­

res que outrora caminhavam pelas avenidas. Sem dúvida:

os menires foram colocados nos seus devidos lugares por

gente como nós, embora com esforço e métodos dificil­

mente imagináveis. Mas o projeto da construção não

pode muito bem se ter originado na mente dessa gente.

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12 Natural:mentc VILÉM FLUSSER 13

A construção não pode ter servido a nenhuma necessi­dade sua. Tal projeto deve ter tido origem diferente, tersido "inspirado" de alguma maneira na mente dos cons­trutores. Ao construírem os "alinhamentos" de Carnac,

os povos ignorados, habitantes da Bretanha pré-egípcia,devem ter obedecido a projetos por eles próprios ignora­dos, a fim de abrirem caminhos com finalidade ignorada.

As duas experiências relatadas confluem num pon­to: o do projeto de caminhos. E as reflexões se põem agirar em torno de tal ponto em círculos rapidamente cen­trífugos, já que os termos "projeto" e "caminho" são pre­nhes de significado. Tal fuga do centro pode, no entanto,ser disciplinada, se o pensamento se agarrar a um únicoaspecto, por assim dizer concreto, do problema que sepõequando as duas experiências confluem - o problema deos projetos dos caminhos humanos não serem necessaria­mente humanos. No caso do Passo de Fuorn, o projeto

parece ter sido pré-humano e, no caso do alinhamento doCarnac, parece ter sido extra-humano. Se o pensamen­to se agarrar a este aspecto, torna-se possível a distinçãoentre dois tipos de caminho: os projetados, traçados,imaginados, programados por deliberação clara, distintae consciente, e os outros. Exemplos do primeiro tipo se­riam o Eixo Monumental de Brasília e a Transamazôni­

ca, e exemplos do segundo, o Passo de Fuorn e Camac.Tal distinção pode contribuir para o aprofundamento dacompreensão da dialética entre natureza e cultura.

Somos tentados a afirmar que a diferença entre ca­minhos conscientemente deliberados e os outros se deve

à sua idade; os caminhos antigos, os pré-históricos, seriamaqueles cujos planos e projetos caíram rio esquecimentoe, por isso, parecem a nós, observadores tardios, não te­rem sido deliberados. Os fenômenos não confirmam, noentanto, tal afirmativa. Os caminhos do sal e do âmbar

que cruzam a Europa são antiquíssimos, e revelam, no en­tanto, projetos deliberados. E o Passo de Fuom é uma das

mais recentes passagens alpinas. ~erer, pois, afirmar quequanto mais antigo um caminho, tanto menos artificiale, portanto, tanto mais "natural" será, não se sustenta. Anaturalidade ou artificialidade de um caminho não é fun­

ção da sua idade, não pode sê-Io, já que a história não ésimplesmente processo de artificialização crescente, masprocesso que retoma periodicamente às fontes naturaisdas quais brota. Outra tentativa de explicar a diferençadeve ser ensaiada.

Talvez esta: os quatro exemplos de caminhos, suge­ridos neste ensaio, podem ser reagrupados, tendo por cri­tério não seu projeto, mas a função à qual servem. O pas­so de Fuorn e a Transamazônica servem ao transporte demercadorias e de pessoas; Camac e o Eixo Monumental

servem como símbolos, transportam mensagens. É claro,o critério não é exclusivista. O Eixo Monumental é, tam­

bém, canal pelo qual funcionários dos diversos Ministé­rios se dirigem ao local de trabalho, e as alamedas de Car­nac devem ter também servido de estradas aos "druidas".E o Passo de Fuorn e a Transamazônica são também sím­

bolos de algo (o primeiro, talvez, do Mercado Comum,a segunda, certamente, do Brasil Grande). No entanto, a

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função simbólica predomina num dos dois pares, e a fun­ção econômica no outro, pois, separtirmos do critério dafunção, a diferença entre caminhos deliberadamente pro­jetados e os outros se torna mais clara.

O Passo de Fuom é estrada muito mais tecnicamen­

te elaborada que a T ransamazônica, a qual não passa, emlargos trechos, de caminhos de terra. Neste sentido, oPasso de Fuom é mais "artificial", mais "cultura" e me­

nos "natureza". No entanto, a Transamazônica se impõemuito mais à paisagem que atravessa, avança não apenasnela, mas contra ela. Devora a floresta, enquanto o Passode Fuom a salienta. Neste sentido, a Transamazônica é

muito mais artificial e cultural: representa muito mais avitória da deliberação humana sobre as condições natu­rais impostas ao homem. O código do qual o Eixo Mo­numental participa enquanto símbolo (avião que decolarumo a um futuro esplêndido, Alvorada, Brasil Grande,etc.) é muito mais denotativo, claro e distinto que o có­digo do qual participa Camac, e não apenas porque deleperdemos a chave. O código de Camac deve ter sidosempre obscuro e altamente conotativo. A mensagemdo Eixo Monumental exige, pois, leitura diferente da deCarnac: mais intelectual que intuitiva. Neste sentido, oEixo Monumental é muito mais artificial e cultural queCarnac: representa muito mais a vontade humana de darsentido ao mundo, de maneira que a artificialidade de umcaminho parece não depender da sua elaboração, nem dasua função, mas do clima existencial que o cerca. Peloscaminhos "artificiais", "culturais", os homens caminham

altivos rumo a um destino que eles próprios projetaram.Pelos caminhos misteriosos, "naturais", os homens cami­

nham seguindo os passos de seres ignorados ou vagamen­te intuídos, rumo a um destino ignorado ou vagamenteintuído. Ou, como em Camac, sem rumo aparente. E já

que há estes dois tipos de caminho, há também dois tiposde "homo viator".

No entanto, tal distinção entre caminhos "naturais"e "artificiais" sugere, à primeira vista, conceito inteira­mente insatisfatório de "arte" e de "cultura". "Cultura"

seria, de acordo com tal critério, a imposição deliberadade um significado humano ao conjunto insignificante de"natureza", e "arte" seria o método pelo qual o espíritohumano se impõe sobre a natureza. Embora muitos pos­sam efetivamente esposar tal conceito, é ele inteiramenteinsatisfatório, e a contemplação do Passo de Fuom e deCarnac o prova. Fosse satisfatório o conceito, a Transa­mazônica seriaprogresso cultural sobre o Passo de Fuorn,e o Eixo Monumental seria obra de arte mais significativaque Camac, porque na T ransamazônica e no Eixo Mo­numental o espíríto humano se impõe mais nitidamentesobre a natureza das Gerais e da Floresta. Na realidade, o

Passo de Fuom se apresenta como obra de arte ao propor­cionar vivências fortes (ao revelar "visões da realidade"),

e Carnac se apresenta como testemunho de uma culturaperdida e esquecida, mas tão significante e "válida" quan­to o é a nossa. Portanto, caminhos antinaturais não sãonecessaríamente frutos de uma arte mais "evoluída" e cul­tura não é necessariamente antinatureza.

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Os dois tipos de caminho sugerem, pelo contrário,que há dois tipos de cultura, cada qual aplicando arte dife­rente. O primeiro tipo de cultura seria produto do esfor­ço de elaborar e fazer resplandecer sempre mais a essênciada natureza, e sua arte seria o método pelo qual tal essên­cia é revelada. O Passo de Fuorn e Carnac seriam obras

desse tipo de cultura. O segundo tipo de cultura seria,efetivamente, ptoduto do esforço deliberado de imporprojetos humanos sobre a natureza e de fazer resplande­cer sempre mais a essência do espírito humano, e sua arteseria o método pelo qual tal essência é revelada. A Tran­samazônica e o Eixo Monumental seriam obras desse tipode cultura. No entanto, tal esquematização simplifica oproblema. Provavelmente, os dois tipos de cultura e artenão existem, nem jamais existiram, em estado puro. E quetoda cultura concreta e toda arte são mistura ou síntese

dos dois tipos propostos. O que torna extremamente pro­blemático não apenas querer distinguir, ontologicamen­te, entre várias culturas, mas também querer estabelecerrigorosa dialética entre cultura e natureza.

Isto implica que o "homo viator" não é um ser quepode escolher entre caminhos deliberados e caminhosmisteriosos, e que pode fazê-Ia deliberada ou espontane­amente. Implica, ao contrário, que o "homo viator" é umser que caminha ora por caminhos deliberados, ora porcaminhos misteriosos, e o faz ora deliberadamente, ora

espontaneamente, e que, na maioria das vezes, caminha,em parte deliberadamente, em parte espontaneamente,por caminhos parcialmente deliberados e parcialmente

misteriosos. Porque o Passo de Fuorn e Carnac de umlado, e a Transamazônica e o Eixo Monumental do outro,

são casos de limite ("Grenzsituationen"). A maioria doscaminhos é como a autoestrada Del Sole e a via Dutra,ou como a rue de Seune ou a rua Direita, mais ou menos

mal traçadas, e que são traçados "mal" porque o espíritohumano não conseguiu se impor de todo. É por tais cami­

nhos que caminhamos, via de regra.

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Vales

Temos várias maneiras de relacionar-nos com a na­

tureza, algumas das quais podem ser chamadas "sobrena­

turais", "teóricas" ou "perspectivas" (segundo os nossos

vários gostos). Uma de tais maneiras é encarar a natureza

como se fosse um mapa. Invertemos, sob tal visão, a rela­

ção epistemológica entre paisagem e mapa. O mapa não

mais representa a paisagem, mas agora é a paisagem que

representa o mapa. O mapa não mais serve de instrumen­

to para nos orientar na paisagem, mas agora é a paisagem

que serve de instrumento para nos orientar no mapa. A

verdade deixa de ser função da adequação do mapa à pai­

sagem, e passa a ser função da adequação da paisagem ao

mapa. Tal furioso idealismo, inculcado em nós nos giná­

sios, se exprime na sentença "o mar é azul, e as possessões

inglesas são vermelhas". Sob tal visão, vales passam a ser os

caminhos pelos quais a água corre em direção ao oceano.Visão "científica", esta?

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20 Naturalrmente VILÉM FLUSSER 21

Temos, no caso, determinado modelo. O da circu­

lação da água. Não importa aqui a origem do modelo. O

modelo prevê (no sentido de "manda" e de "profetiza")

que uma das fases do ciclo da água seja a descida da água

das serras por vales. A observação da paisagem confirma

o modelo. Ou seja: a paisagem se adapta ao modelo (ao

"mapa"). Respondeu "sim". Os vales são respostas afirma­

tivas à investigação "espiritual" (formal) do mapa. Loucu-­

ra? Sim, no sentido do "espírito" ser loucura, do homem ser

animal louco. E não, no sentido do "espírito" ser negação,

do homem ser animal que pode mudar vales construindo

represas. Para quem é engenheiro, tal visão do vale é "ade­

quada". Para quem mora no vale, essa visão é louca. Mas

será que engenheiros não podem morar nos vales? Não po­

dem. Enquanto engenheiros, moram nos mapas.

Eu não sou engenheiro e moro num vale. Ou moro?

Embora não seja engenheiro, sou, eu também, homem.Animal louco. Também eu fui expulso do paraíso, e não

apenas os engenheiros. Não posso morar no vale, ou, pelomenos, não o posso integralmente. Também eu moro,

parcialmente, no reino dos engenhos, embora os meus

engenhos não sejam os do engenheiro. Não faço, como

faz o engenheiro, "ciência da natureza". Sou, ai de mim,humanista. Minha loucura é outra. Vales, para mim,

também são caminhos. Não, por certo, da água. Mas ca­

minhos para homens. Eis porque não posso morar no vale

tão integralmente quanto nele moram, por exemplo, as

corças. Corças andam no vale, e eu ando por ele. Atraves­

so o vale (seja de lágrimas, seja de sorrisos). Homo viator.

Cavaleiro errante, judeu errante. Estrangeiro. Mas não

integralmente. Se eu ando pelo vale da sombra da mor­

te, Tu estás comigo. Como então é verde o meu vale! Noentanto, o vale é meu, e eu não sou dele. Não sou dele

porque eu também disponho de mapa, ao qual meu vale

deve responder "sim ou não", adequar-se. Meu mapa,

meu engenho, é este.

A humanidade é horda de invasores, de imigrantes.

Invade a paisagem há, provavelmente, uns 8 milhões de

anos. Em várias levas. Em busca de renas, mamutes, gra­

míneos, gado, sal, carvão, eletricidade, em suma, em buscada felicidade. De onde vem a horda, não se sabe. Prova­

velmente, é questão "falsa" esta; não há método para res­

pondê-Ia. Embora não pareça ser "falsa", já que 8 milhões

de anos não são tanto tempo, afinal de contas. Mas para

onde vai a horda, isto se sabe. Sobe. Sobe ao longo dos rios

e dos riachos em sentido contrário ao da água. Sobe pelos

vales. Os vales são as artérias pelas quais sobe o sangue dorio da humanidade. E os estreitos vales montanhosos são

os capilares. Neles, a invasão estagna. São eles represas em

sentido contrário ao do engenheiro. No meu mapa, os

primeiros são os últimos: os bandeirantes mais corajosos

que formam a ponta da lança invasora e penetram os vales

mais estreitos são lá represados para formarem os últimos

vestígios da horda. Eu moro (no sentido problemático do

termo) em um vale estreito montanhoso. Agora respon­

da "sim ou não", meu vale. Responda a minha pergunta

"perspectivista", "historicista", humanista.

Este vale aqui, no último tempo interglacial, era pro­

vavelmente habitado por homens da espécie heidelberg,

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22 Natural:menre VILÉM FL USSER 23

quando a planície lá embaixo já era habitada por homines

sapientes. ~ando a planície já era neolítica e plantavagrama, aqui ainda caçavam paleoliticamente cabras alpi­nas. ~ando a planície falava rético e usava bronze, aquiainda havia aldeias neolíticas sem divisão de trabalho.

Aqui ainda se falava rético, quando, na planície (e pelo

mundo afora), já se falava latim e grego. ~ando o médioalemão dominava o Santo Império, aqui se falava ladino.E hoje se fala alemão, quando a planície já fala italiano.Mas nos pequenos vales laterais ainda se fala ladino. E orético ainda não morreu nos pequenos aglomerados nosabismos acima de 3.000m. E existem casas camponesasconstruídas neoliticamente. E há, nos laguinhos isoladosao pé das geleiras,gente que pesca paleoliticamente. E nãohaverá, nos rostos dos montanheses, traços neanderthal eheidelberguianos? Meu vale respondeu: "sim, sou estru­turado de acordo com o teu mapa". Moro em represa dahistória da humanidade, na qual o "anterior" passa a sero "mais vale acima", e o "posterior" o "mais vale abaixo".Estratihcação contrária à da geologia, esta. Não surpre­endentemente: as "humanidades" têm mapas contráriosaos das" ciências da natureza". O tempo corre em direçãooposta nas duas disciplinas. Nas ciências da natureza cor­re rumo à entro pia; nas humanidades, rumo à informaçãocrescente. A água corre em direção oposta à do rio da hu­manidade. A estratificação histórica do meu vale se opõeà sua estratihcação geológica, como o "espírito" se opõeao mundo. Porque o mundo é passagem, e o "espírito" éaventura.

Meu vale não é interessante apenas pelo fato de eumorar nele. Pode ser generalizado. Não é assim que hm­ciona o "espírito": generalizando, classificando,projetan­do para "cima"? Isto é: esvaziando? Este meu valeconcre­to aqui pode ser generalizado para a forma vazia: "classede vales".Por isso é interessante. Pode servir de exemploconcreto da classe abstrata "vales". Inversão epistemoló­gica, portanto. Meu vale é interessante porque, feita a in­versão, permite perguntas do tipo: tradição ou progresso?No meu mapa, vales são os lugares para onde o progressoavança e onde estagna. Mas onde estagna com determi­nada estrutura. Na estrutura da "memória" no sentido

platônico, biológico, psicológico, cibernético (e talvezoutro). Vales, no meu mapa, são armazéns da informa­ção, conservas. Conservadores tradicionais, portanto. Nomeu mapa, o progresso corre morro acima para ser arma­zenado nos vales mais estreitos. No meu mapa, a meta doprogresso é ser conservado. É que meu mapa é mapa dehumanista, não de engenheiro. Por isso, o "nunc stans"do vale aparece nele como meta do "panta rhé", comoChangri Lá, em suma. Todo humanismo é utópico: visaà estreita plenitude do vale e vê na ampla vacuidade daplanície apenas estágio de percurso.

Primeira tentativa de resposta: vales são articula­dos. São estreitos e cercados de obstáculos que permitempoucas e difíceis passagens. Tal articulação os torna "or­gânicos", isto é, dificilmente mecanizáveis. Não podemser facilmente enchidos de "massas" que se movem me­canicamente. Não se pode construir neles com facilida-

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24 Natural:menre VILtM FLUSSER 25

de pirâmides faraônicas, circos máximos ou bancos de

cinquenta andares. Tais coisas não cabem bem em vales,

não por serem os vales "pequenos". As montanhas que os

cercam são muito mais altas que pirâmides, circos e ban­

cos, e a vivência do vale é de grandiosidade. Não por se­

rem "pequenos" os vales, mas por serem articulados, não

servem eles a culturas de "massa". Portanto, o progresso

massificador da planície se destina a ser articulado ("lm­

manizado") nos vales.

Segunda tentativa de resposta: vales abrigam. Todo

vale forma um universo, com sua própria fauna e flora,

um pouco diferente da do próximo vale. Com sua própria

economia e estrutura social, sua própria arquitetura, mú­

sica, suas próprias lendas. E os universos são os vales que

não se comunicam entre si, mas apenas com a planície que

é comum a todos. É neste sentido que vales abrigam: não

por isolarem do resto do mundo, mas por comunicarem

indiretamente e por grandes voltas. Isto talvez distinga

as culturas que brotam de uma rede de vales estreitos das

culturas das planícies: são "confederativas", e não "federais"

como estas. Por exemplo: as culturas grega, judia, tibetana,

tolteca e incaica, em comparação às culturas romana, meso­

potâmica, hindu, maia e chipcha. Portanto, a "civilização"

da planície destina-se a ser aculturada nos vales.

Outras respostas do mesmo gênero são possíveis e

facilmente formuláveis. Todas dirão que a história é pro­

cesso que tem vales por meta. Ou que acontecimento é

processo que tem memória por meta. Ou que progresso

é processo que tem tradição por meta. Em suma, todas

dirão que armazenar informação (negentropia) é a metada humanidade. E dirão ainda que vales (memórias, tra­

dição, negentropia) não são lugares parados, nos quais

mais nada acontece. São, pelo contrário, lugares nos quaisa informação é constantemente reagrupada e reestrutu­

rada. Falando comunicologicamente: vales são os lugares

nos quais os discursos das planícies são dialogados. Por

isso, vales são os lugares de pensadores e de poetas. DesdeHeráclito até Nietzsche. Desde Davi até Rilke. Mas não

para profetas. Profetas não habitam vales. Meu mapa nãocomporta profetas. Devo ampliá-Io.

Profetas passam pelos vales e sobem até o cume da

montanha. Dão um passo além dos habitantes do vale.

E depois voltam. Na volta, nem sequer descansam no

vale que atravessam. Dirigem-se diretamente à planície

para contar sua "nova". Contam a vista que tiveram no

cume. Para eles, o vale é canal entre planície e cume, e en­tre cume e planície: canal bivalente. Na ida, é canal entreredundância e ruído. Na volta, canal entre ruído e infor­

mação nova. Na ida, é canal entre alienação massificada e

solidão; na volta, entre solidão e engajamento. Eis o que évale em mapa projetado do cume da montanha. Não mais

represa, mas meio do caminho. Em tal mapa, quem está

no vale está no meio do caminho da sua vida. E a perguntaque se põe em tal mapa é esta: quem está no vale ainda es­

tará subindo, ou já estará descendo? Ainda será pensador

(reformulador do discurso da planície, da "prosa"), ou jáserá poeta (preparador de um novo discurso)?

Pois em tal segundo mapa (que não é mais histori­

cista, mas tão formal quanto o é o do engenheiro), a hu-

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26 Naturahmente VII.ttvl FLUSSER 27

manidade não aparece mais na forma de um rio que sobe

pelos vales, mas na forma de uma circulação que fira em

sentido contrário ao da água. Sobe pelos capilares dos va­

les estreitos, projeta gotas até os cumes, e tais gotas vol­

tam, carregadas de "novas", para vivificarem as planícies.

Tal circulação da humanidade sobe em grandes rios (as

grandes "tendências"), ramifica-se em deltas na serra (as

várias "heresias"), alcança os cumes em gotas individuais

(os grandes "heresiarcas"), que se evaporam e reconden­

sam em chuva vivificante (a "profecia"). Em consequên­

cia, são os vales, em tal segundo mapa, caminhos diferen­

tes dos que são no primeiro. Não são mais caminhos queconduzem à meta. São caminhos de iniciação para a volta.Caminhos" decisivos".

~em jamais subiu pelo vale, jamais viveu. Vegetano plano. A terceira dimensão, a do sublime, lhe falta.

Mas quem subiu pelo vale e lá ficou, tampouco viveu.Arrancou suas raízes, é verdade, desalienou-se. Mas ficou

no ar, na disponibilidade. Deve decidir-se. Subir mais

ainda, ilosar-se mais ainda naqueles cumes que Rilke cha­

mou "os do coração", os quais nem sequer águias habi­

tam. Arriscar-se à solidão da qual Unamuno diz que nela

"perdeu a sua verdade". E em tal decisão não pode esperar

por nenhum Virgílio, ou Godot, ou não importa que guia

alpinista. Ou então voltar à planície sem ter corrido o ris­

co da subida, não, por certo, para reintegrar-se, mas para

engajar-se. Porque, para quem está no vale, a integração se

tornou impossível. Épara ele, doravante, sinônimo de pro­

miscuidade. Por ter subido o vale, é apocalíptico, e jamais

poderá voltar a ser integrado. A "volta" jamais pode ser

cancelamento da "ida". ~em volta não é o mesmo, é alte­rado. Ficou informado, mesmo se não subiu até o cume. Eis

a decisão que deve tomar quem subiu pelo vale: solidão sem

garantia de volta, ou volta sem ter visto o cume.

Os que nasceram nos vales não veem os cumes.

Olham o solo que cultivam, e, raras vezes, a planície a seus

pés na qual trocam o produto do seu trabalho. Olham a

planície raras vezes, porque está, geralmente, coberta de

bruma. Por isso, os que nasceram nos vales creem que

nasceram acima das nuvens. Estão enganados. Nasceram

no meio do caminho. Como estão enganados os que l1as­

ceram na planície e dela jamais saíram. Creem que nas­

ceram debaixo do céu, quando, na realidade, nasceram

debaixo da bruma que não lhes permite ver os vales nem

os cumes. Mas quem nasceu na planície e subiu pelo vale

vê primeiro os cumes, íngremes e inacessíveis. E depois

vê o solo verdejante do vale. Mas, como é viajante, vê a

paisagem como se fosse confirmação de mapas que carre­

ga no bolso. Dois mapas. O primeiro mostra o vale como

caminho que leva à meta. O segundo mostra o vale como

epiciclo que leva à volta. O primeiro mapa foi projetado

no clima pesado da planície e visa a libertar o viajante. O

segundo mapa foi projetado no próprio vale, e visa a mu­

dar a planície e seu clima. Os dois mapas são igualmente

adequados. A paisagem, se consultada, responde "sim" a

ambos. A decisão: "qual dos dois mapas devo utilizar?"

não pode ser tomada à base dos próprios mapas. Ambos

são igualmente apropriados. Nem à base de uma compa-

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28 Natural:mente

~ 'b d" " Praçao entre os mapas, a asee um meta-mapa. or ser

"meta", não será mais apropriado. A decisão a ser tomada

deverá ser "absurda" (sem base).

E isto representa o limite da loucura que é o espí­

rito humano. É perfeitamente possível projetar mapas.

É perfeitamente possível inverter a relação entre mapa

e paisagem, e consultar, não o mapa para se orientar na

paisagem, mas a paisagem para orientar-se no mapa. Tais

loucuras são perfeitamente possíveis. Mas quando se trata

de tomar decisão, mapas não servem. Decisões autênticas

são absurdas. E o absurdo é o concreto (o não-classificá­

vel), o não-generalizável, o não-formalizável. ~ando étomada a decisão, a .loucura desaparece. A decisão se dá

no concreto. Vales são os caminhos da decisão, lugares

concretos. Lugares, nos quais se torna necessário, em

dado momento, jogar fora todos os mapas, sob pena de se

pairar no "sobrenatural", no "teórico", na "perspectiva".

Justamente por serem os vales lugares quase sobrenatu­

rais, quase teóricos, quase perspectivistas, são eles situa­

ções de limite. A decisão neles é, de acordo com Jaspers,um decifrar, e não um resolver-se. Em suma, vales são lu­

gares onde a disponibilidade pode, se assim for decidido,

passar a ser engajamento.

Pássaros

Não podemos mais vivenciar o seu voo como o vi­

venciavam os nossos antepassados: como um desejo im­

possível. Pássaros deixaram de ser aqueles entes que habi­

tam o espaço entre nós e o céu, para se transformarem em

entes que ocupam o espaço entre os nossos automóveis e

nossos aviões de passeio. Do elo entre animal e anjo pas­

saram a objetos de estudo do comportamento em grupos.

Se quisermos enquadrar a nossa vivência de pássaros na

dos nossos antepassados, deveremos dizer que para nós

todos os pássaros são o que para eles eram as galinhas: en­

tes que voam, mas precariamente. Pois tal modificação da

nossa atitude com relação aos pássaros e ao voo (provo­

cada pela aviação e astronáutica) tem efeito significativosobre a nossa visão do mundo. Perdemos uma das dimen­

sões do tradicional ideal da "liberdade" e perdemos o as­

pecto concreto da tradicional visão do "sublime".

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30 Natural:mente VrLÉM fLUSSER 31

A tentativa de intuir a visão que os nossos antepas­sados tiveram do vo é dificultada por dois fatores: pelanossa própria visão do voa e pelo mito do voa. As duasdificuldades rompem a nossa ligaçãocom a nossa tradiçãode duas formas opostas: a primeira exclui-nos da tradição,a segunda nos faz participar dela de uma maneira inteira­mente nova. Em outros termos: por termos visão diferen­te do voa dos pássaros, não podemos compreender bemcomo o viram os nossos maiores. E por participarmos domesmo mito do voa não podemos compreender como osnossos maiores adequavam a sua visão do voa ao mito.Procurarei ilustrar as duas dificuldades.

Observemos três tipos de voa de pássaro: o do fal­cão, o do beija-Ror e o da andorinha. Espontaneamente,se oferecem três modelos para captá-Ias: o falcão pairacomo um planador, o beija-flor como um helicópteroe a andorinha voa como um caça. Se formos refletir so­bre os três modelos, constataremos que sua relação comos fenômenos que captam é complexa: os três aparelhosde voa modelares são parcialmente cópias dos própriospássaros, e parcialmente resultado de um desenvolvimen­to que se tornou viável depois do abandono do pássarocomo modelo de voa. De modo que tomar aparelhos vo­adores como modelos de pássaros não é a clássicainversão"modelado-modelo", que tanto caracteriza a nossa visãodas coisas. Compreendemos os braços como alavancas,porque braços eram os modelos de alavancas, e vemosespelhos como superfícies de lagos, porque superfícies delagos eram modelos para espelhos. Mas vemos os pássaros

como aparelhos voadores, embora tais aparelhos não te­nham tido pássaros, mas equações da aerodinâmica pormodelos. Neste sentido, aviões são instrumentos menos

"naturais" que alavancas e espelhos: não têm por modelocoisas da natureza. E se captamos o voa de pássaros commodelos da aviação (e o fazemos espontaneamente) é queestamos desnaturalizando espontaneamente tal voa.

Os nossos antepassados devem ter tido outros mo­delos para captar os três tipos de voa. O falcão deve tervoado como a nuvem, o beija-flor como o beijo, a andori­nha como a flecha. (E outros modelos são sugeridos pelaliteratura, fonte da nossa compreensão da visão dos nos­sos maiores.) Mas para nós tal visão tradicional do voaé necessariamente poetizante e kitschizada, isto é, senti­

mentalmente falsa.~em diz atualmente que beija-floresbeijam flores (e não que se mantêm em voa vertical acimadas flores),está sendo insincero, porque o modelo do heli­

cóptero se impõe espontaneamente. ~erer ver o voa dospássaros como o viram os nossos maiores é querer kitschi­zar tal voa, e isto é ilustração da primeiradificuldade.

O mito do voa, tal como se manifesta em inúmeras

mitologias e em inúmeros sonhos, e tal como inspirouinúmeros sonhadores desde o alfaiate de Ulm e Leonardo

até Jules Verne e a N.A.S.A., continua ativo em nós tan­

to quanto agia em nossos maiores. Aliás, a tese de acordocom a qual mitos são "projetos" constantes, provocado­res da história, mas não superáveis por esta, parece bemfundada tanto na psicologia, quanto na sociologia. Maso mesmo mito tem para os que têm experiência com voa

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32 Natural:mcnte ViLÍ~M FLVSSER 33

impacto inteíramente diferente daquele que têm para os

nossos antepassados, para os quais voar era sonho impos­

sível. Se voamos de jato de São Paulo para Paris somos

tomados de sensação ambivalente: de uma parte, sabemos

que voamos muito "melhor" que falcões (mais alto, mais

longe e mais rapidamente), e que, portanto, a nossa rea­

lídade está superando o nosso míto. De outra parte, sen­

timos que voar em jato não é o "recado" do mito, e que

não pode ter sido isto que inspirava Ícaro. e Leonardo. Ao

ter deixado de ser sonho impossível, o mito passou a ser

sonho insonhável, mas persiste. Se uma das teses básícas

do marxismo é que os sonhos são mortos ao realizarem­

se, o lado dialétíco de tal tese é esquecido: sonhos mortos

persistem. Podemos, é claro, voar, e podemos fazê-Io "me­

lhor" que sonhava Leonardo, mas simultaneamente pre­ferimos o sonho de Leonardo à nossa realidade. E nada

adianta se chamarmos o Aeroporto de Fíumícino (essa

vulgaridade característica da nossa realidade de voas),

"Aeroporto Leonardo da Vincí".

Para os nossos antepassados, a observação do voo

do falcão, do beija-flor e da andorínha foi visão de sonho

impossível. "Se fosse passarínho e tivesse duas asas, voaria

até junto de tí", diz uma canção popular, canção que é

impossível cantar atualmente com honestidade. Os nos­

sos antepassados projetavam o mito do voa nos pássaros,

e o fazíam espontaneamente, porque os pássaros estavam

na origem do mito. Mas nós não podemos mais fazê-Io,

porque a nossa realídade do voo ultrapassou o voa dos

pássaros sem ter ultrapassado o mito, e isto é ilustração da

segunda dificuldade.

Não podemos, pois, mais vivenciar o voo dos pás­

saros como o vivenciavam os nossos antepassados. Mas

tal incapacidade nossa nos permite, paradoxalmente, ver

melhor que eles o que o voo dos pássaros significava paraI EI I d' " '" ,e es. 'es ta vez acre ltassem que voar como passaro e

ver o mundo de cima e transpor obstáculos invencÍveis.

Portanto, distância e líberdade. Mas tal tipo de "sublíma­

ção" e liberdade não nos atrai: conhecemos a sua reali­

dade. Há, no entanto, outra carga do sonho "voar como

pássaro" que os nossos antepassados sentíam sem tê-Ia

salientado claramente. A de ultrapassar a bidimensionali­

dade. O fato de sermos prisioneiros da bidimensionalida­

de não é comumente reconhecido. Temos a ilusão de queos nossos movimentos ocorrem nas três dimensões do es­

paço. Na realidade, no entanto, a nossa condição terrena

nos condena ao plano (à superfície da Terra). Apenas as

nossas mãos nos oferecem abertura para a terceira dimen­

são, para a "concepção", "apreensão" e "manipulação" de

corpos. Voar como pássaro é poder utilizar o corpo todo

como se fosse mão, poder movimentar-se inteiramente

dentro do espaço. Este é o aspecto do mito do voo que se

torna visível depois de realizados os seus aspectos "eleva­

ção" e "superação de barreiras".

Se observarmos o voo dos pássaros, estamos na pre­

sença de corpos que se movimentam livremente nas três

dimensões do espaço, e que assumem atitudes tridimen­

sionais em todos os seus gestos. Não apenas "subir" e "des­

cer" é equivalente ao "para trás", "para frente", "para a

direita" e "para a esquerda", mas "inclinar a asa" é equiva-

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34 Naturalancnte VlLl~M .rI,USSER 35

lente a "virar a esquina". Estamos na presença de seres que

devem tomar, em toda situação dada, decisões entre um

número muito maior de alternativas que seres terrenos:

as diagonais que se oferecem como caminhos de fuga ou

de ataque a pássaros não formam círculos, mas esferas. O

pássaro em voo não é, como o é o animal terrestre, centrode estrutura vital de círculos interferentes, mas de esferas

interferentes. As formações de aves em migração obede­

cem às regras da geometria tridimensional, e o "misterio­

so" sentido de orientação das aves é misterioso para nós,

porque se orienta dentro das três dimensões do espaço.

"Voar como pássaro" seria poder movimentar-se, decidir­

se, organizar-se e orientar-se na tridimensionalidade.

Os animais terrestres, e mais particularmente o ho­

mem, não são inteiramente privados da abertura em dire­

ção ao espaço aberto. Mas a "terceira" dimensão não passa

de uma série de epiciclos superpostos sobre o plano. Os

movimentos das pernas, dos pescoços e dos rabos são in­

vestidas para dentro da terceira dimensão a partir do pla­

no. E os sentidos, e mais especialmente a vista, são órgãos

que recolhem informações vindas das três dimensões so­

bre um ponto no plano. Para os animais terrestres, inclu­

sive o homem, o espaço é um oceano que banha a ilha pla­

na que habitam. Daí a semelhança entre pássaro e peixe:

ambos são habitantes do oceano-espaço. Pássaros nadam

no ar, como peixes voam na água. A diferença é que o voo

do pássaro salienta a liberdade do movimento espacial, e

o nado do peixe salienta o seu condicionamento. O mito

do peixe tem clima diferente do clima do mito do voo.

O homem distingue-se dos demais animais terres­

tres por sua posição ereta: por ser seu· corpo todo uma

investida rumo ao espaço aberto. Tal posição permite

ao homem "conquistar o espaço" a partir do plano. (O

pássaro não precisa conquistar o espaço, está nele.) Mas a

posição ereta humana não resulta na libertação do corpo

humano todo em direção ao espaço. Abriu apenas o parâ­

rnetro dos movimentos tridimensionais para várias partes

do corpo, e possibilitou às mãos a manipulação tridimen­

sional de corpos.

Mãos são órgãos especificamente humanos, torna­

dos possíveis graças à postura ereta, que se movimentam

no espaço com aproximada liberdade. Mãos vivem em cli­

ma estruturalmente semelhante ao clima no qual vivempássaros em voo. O pássaro em voo é mão voadora, mão

liberta de corpo, corpo virado mão inteiramente. O mo­

vimento da mão é apreensão, compreensão, concepção

e modificação dos corpos "em profundidade", isto é, no

espaço. O mito do voo é isto: liberdade para apreender,

compreender, conceber e modificar em profundidade.

Para os nossos antepassados, o pássaro era elo entre

animal e anjo. Não é anjo ainda, porque é sujeito aindaà atração da Terra. Levanta da Terra, concentra seu in­

teresse sobre aTerra, volta para aTerra e faz sobre ela

o seu ninho. É mão ligada ao corpo da Terra por braçoinvisível. Anjo é pássaro extraterreno. Concentra o seu

interesse sobre o espaço e mora no espaço. É mão liber­

ta de corpo. O mito do espírito-pomba. Anjo é ente queapreende, compreende, concebe e modifica "livremente":

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36 Natllral:mente VILÉ,M FLUSSER 37

o espírito puro. Mão liberta do corpo é espírito puro. O

voa do pássaro é seu modelo.

Os voas a jato de São Paulo para Paris superam osonho de Leonardo, mas não atingem a dimensão "liber­tadora" do mito do voa. São feitos da bidimensionalida­

de: ligam duas cidades em mapa plano. Os voas a jato de

Tóquio para Paris ligam as duas cidades pela rota polar e

impõem nova projeção plana do Globo. São mais "espiri­

tuais", porque demonstram o caráter projetivo do plano,mas continuam feitos do plano. Mas as experiências do

Sky-Lab apontam além do pássaro em direção do anjo. Os

astronautas que vivem em gravitação zero e passeiam peIo

espaço procuram transformar em mãos seus corpos. Uma

descrição fenomenológica das suas experiências faz faltae seria reveladora. Cassiano Ricardo tem, neste sentido,

poesia chamada "Gagarin". Mas persiste o dito marxista:os sonhos são mortos quando realizados. Virar pássaro,

virar mão, virar anjo é matar a passaridade, a manidade, a

angelicidade. Porque o sonho da liberdade e do sublime,

quando realizado, revela o condicionamento como con­

tradição da liberdade, e o cotidiano como contradição dosublime. Isto se refere tanto a astronautas ("anjos tecno­

lógicos"), quanto à sociedade comunista ("sociedade de

anjos"). Mitos são realizáveis e matáveis, mas persistirão

enquanto pesos mortos depois de realizados.

Não podemos mais vivenciar o voa dos pássaroscomo o vivenciavam os nossos antepassados: como desejo

impossível. Vivenciamos o seu voa como desejo realizável,

parcialmente já realizado, e parcialmente em vias de rea-

lização em dimensões apenas vagamente sonhadas pelos

nossos antepassados. Voa de pássaro enquanto distância,

superação de barreiras, e também enquanto espiritualiza­

ção pela tridimensionalidade. Mas ao vivenciarmos o voo

como desejo realizável, estamos desmistificando o desejosem nos libertarmos do mito. Não podemos ter mais de­

sejos impossíveis. O que nos resta é o desejo impossível

de termos desejos impossíveis. Será visão apocalíptica ou

visão integrada a nossa visão dos pássaros em voa?

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Chuva

A observação da chuva pela janela é acompanhadade sensação de aconchego. Lá fora, os elementos da na­tureza estão em jogo e sua circularidade sem propósito

gira como sempre. ~em está preso em seu círculo ficaexposto a forças incontroladas. Parte impotente do seugirar violento. Cá dentro, estão em jogo processos dife­

rentes. ~em está do lado de dentro dirige os eventos. Eisa razão da sensação do abrigo: é a sensação de quem estána história e cultura, e contempla a turbulência sem signi­ficado da natureza. As gotas que batem contra a vidraça,projetadas pela fúria do vento, mas incapazes de penetrara sala, representam a vitória da cultura contra a natureza.

~ando observo a chuva pela janela, não apenas me en­contro fora dela, mas em situação oposta a ela. Tal situ­ação caracteriza cultura: possibilidade de contemplaçãodistanciada da natureza.

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40 Natural:mente VILÉM FLVSSER 41

No entanto (e infelizmente), não é isto que temos

em mente ao falarmos em conquistas da cultura: estarmos

sentados em lugar seco e quente, contemplando a chuvafria, fumando cachimbo e ouvindo Mozart. Infelizmente,temos em mente coisas como "controle de chuva". Pre­

tendemos mudar a estrutura dos eventos da natureza.

Romper sua circularidade, fazê-Ios correr linearmente

em busca de um propósito por nós escolhido. Chuva não

mais como fase da circulação eterna da água, mas como

fase de uma deliberada irrigação do meu campo. Se a chu­

va tivesse sido vencida, não mais cairia como cai agora

("chuva de setembro, de todo setembro desde sempre"),

mas cairia como "esta chuva programada para as quatro

horas da tarde de hoje". Seria chuva histórica, porque

sujeita a programas, portanto, parte da cultura, não da

natureza. Vista da janela, tal chuva não se distinguiria da­

quela que está caindo agora, e, no entanto, estaria caindo

do lado de cá, não de lá, da janela da cultura.Isto dá calafrios. Parece ser a mesma chuva, e não o é

por ser "cultura"? Não o é, não por ser diferente, mas porter estrutura diferente? A linear da história, não a circular

da natureza? E não adiantará olhá-Ia para saber-se isto?

~e coisa terrível! Não posso distinguir entre cultura e

natureza olhando para as coisas, mas apenas aprendendo

a respeito delas. Se olho pela janela e vejo chuva, cadeiras

e árvores, não posso saber quais dessas coisas são cultura,

quais natureza. Dependo de outros para dizer-me.

Não posso aceitar isto. Se isto for verdade, não terei

mais critério próprio para não importa que engajamen-

to. A Revolução Francesa passará a ser fenômeno histó­

rico de acordo com uma explicação, e fenômeno natural

(como o é a migração das aves), de acordo com outra. Os

que nela se engajaram e por ela morreram o fizeram por

ingenuidade: não recolheram todas as explicações dispo­níveis. Não posso aceitar isso.

Voltarei a olhar a chuva pela janela para ver se ela

me diz algo a respeito. Eis o que está dizendo: aqui fora

está chovendo, lá dentro estás abrigado. Isto é a distin­

ção categórica entre natureza e cultura. Natureza é como

chuva: provoca a sensação de impotência; cultura é como

a sala: provoca sensação do abrigo. Conquistar a natureza

não é mudar sua estrutura, mas seu clima. Mas isto pro­

blematiza todo o progresso humano. Teremos conquis­

tado a natureza "essencialmente" no curso, por exemplo,dos últimos 200 anos? No sentido de termos aumentado

o terreno da sensação do "estarmos abrigados"? Estará o

homem do século 20 se sentindo mais abrigado que o doséculo 18? Será mais" culto" neste sentido? Sem dúvida, a

observação da chuva exige que redefinamos nosso engaja­mento em cultura.

Romper a circularidade dos eventos naturais, fazê­

los correrem linearmente em busca de propósito, progra­

má-Ios: este é o engajamento recomendado pelos tecno­cratas e pelo estabelecimento. Chuva, não mais circular e

boa para nada, mas chuva linear e boa para irrigar campos.

Eis o que dizem os tecnocratas: cultura é transformar algo

que é bom para nada em algo que é bom para propósito

deliberado. Cultura é injeção de "valores" no conjunto

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42 Natural~!nente VILÉM FLVSSER 43

isento de valor chamado "natureza". Coisas são naturais

(dizem os tecnocratas) quando não permitem que sejam.

julgadas "más" ou "boas". E coisas são culturais quandosão "boas". Por isso, as ciências da natureza são "isentas de

valores" (wertftei): tratam de coisas isentas de valores. E

os tecnocratas continuam: o verdadeiro engajamento em

cultura é engajamento em produção de "bens", isro é, de

coisas "boas". Os tecnocratas estão enganados e estão nos

enganando.

Na realidade, quem está "isento de valor" (wcrtjrei) é

a tecnologia. As coisas são produzidas pela técnica, estassim, não são nem más nem boas. As coisas da natureza, es­

tas são todas más, porque me condicionam e me tornam

impotente. Se não fossem más as coisas da natureza, não se

explicaria o engajamento em cultura. É sempre engajamen­to contra a natureza. As coisas da técnica são eticamente

neutras, e passam a ser boas se me abrigam, e más, se mecondicionam. Produzi-las é necessário, mas não basta. É

necessário, porque resulta em coisas potencialmente boas.

Mas não basta, porque pode resultar em coisas más se per­

dermos a consciência da cultura. Se "progresso" for, como

o afirmam os tecnocratas, um processo ao longo do qualeventos naturais são transformados em eventos lineares,

então "progresso" (e "ordem") não basta. O que urge, para

que "progresso" tenha sentido, é manter e rennar a capa­

cidade crítica dos valores (a capacidade ética, política, em

suma: liberdade). T ecnocratas não bastam.

A chuva que observo pela janela é má (e não importa

que alguns românticos o contestem). É má, porque cai em

cima de mim sem me ter consultado. É esta a razão por­

que me sinto bem ao observá-Ia: oponho-me a ela. Chu­

va transformada em irrigação programada não é nem má

nem boa (e não importa que os tecnocratas o contestem).

Não é nem má nem boa, porque o seu valor dependerá

daquilo que irriga. E será boa apenas se aquilo que irriga

for coisa que me abriga. Mas se aquilo que a chuva irriga

for coisa que me condiciona, a programação da chuva terá

produzido um mal pior que os males da natureza. T ecno­

eratas não apenas não bastam, mas podem vir a ser peri­

gosos. O "progresso", se não for controlado por crítica de

valores, pode ser mais perigoso que o imobilismo.

A chuva que observo pela janela me dá sensação boa,

porque me sinto libertado dela. Estou sentado em sala

quente e seca, posso contemplar a chuva. Posso observá­

Ia, não apenas para depois manipulá-Ia, mas também para

julgá-Ia. Estou em situação que permite juízos de valores.

Em situação de "disponibilidade" com relação à chuva.

Em situação de liberdade. Posso convidar outros para en­

trarem em minha sala, a nm de discutirmos o problemada chuva. Lá fora está chovendo, e nós cá dentro, ao abri­

go, discutindo como manipular a chuva para que seja boa.

Isto é que é cultura. Não chuva manipulada e programa­

da, mas chuva sujeita à discussão livre. No fundo, o que

é bom é apenas a liberdade. As coisas são boas apenas na

medida em que contribuem para me libertar. E isto é exa­

tamente também a medida da cultura. Tecnologia ainda

não é cultura. E tecnocracia (governo da tecnologia não

controlado) é anticultura. Em suma: cultura é tecnologiamais liberdade.

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44 Natural~mente

A chuva que observo pela janela é que me ensinaisto. Ensina que sou eu e os próximos quem confere va­lor e dá significado. Cultura não é questão de chuva (sejacontrolada e programada ou não), mas é questão da sen­sação que provoca nos que a observam pela janela. Emoutros termos: se observo a chuva pela janela, vejo que aúnica justificativa de engajamento em cultura é aumen­tar o terreno da liberdade (aumentar a sala a partir daqual observo a chuva). A chuva ensina que a dignidadehumana não se resume na luta contra a natureza. Há,

entre natureza e cultura (entre chuva e sala), uma regiãoeticamente neutra, mas potencialmente perigosa, a regiãoda programação isenta de valores. A região do estabele­cimento não-político (dos técnicos de irrigação de cam­pos). A dignidade humana exige também que tal regiãoseja apropriada. Mas na situação atual é obviamente maisfácil lutar contra a natureza que apropriar o estabeleci­mento. Em consequência, há sempre menos chuva natu­ral, sempre mais chuva programada, e sempre menos salasa partir das quais não importa que tipo de chuva possaser contemplado. Se isto continuar assim,o resultado seráeste: estaremos todos expostos sem interrupção a chuvastorrenciais programadas, mas proclamaremos aos quatroventos (que uivarão em torno de nós em coro programa­do) que estamos sendo irrigados.

o cedro no parque

Fato curioso: árvores são quase invisíveis.Toda ten­tativa de contemplá-Ias o prova, Há, entre contempladore árvore, névoa densa de múltiplas camadas. A luz do farolda intenção contempIativa é refletida por tal névoa, e a

contemplação se transforma em reflexão sorrateiramentee sem que o contemplador possa interferir nisto. Há algoem torno de árvores que, por ser nebuloso, é misterioso.Se olho peIa minha janela e procuro contemplar o cedro

que se ergue, majestoso, no centro do meu parque angevi­no, devo admitir este fato como ponto de partida que me

é imposto pela situação na qual me encontro.Por certo, árvores são parcialmente invisíveis por

razões por assim dizer físicas e biológicas, já que a suamaior parte está escondida no solo. Tal fato corriqueiroe aparentemente óbvio tende, no entanto, a ser esqueci­do por muitos daqueles pensadores que tomam árvorespor modelos de estruturas. (E árvores de fato são modelos

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46 Natural:mente VILÉM FLUSSER 47

preferidos.) Darei um único exemplo. Toda uma cosmo­

visão e filosofia do século 19 (a "biologizante") concebe

o mundo como processo que tende a se ramificar em

obediência a um "principio" que Schopenhauer chamoude "principium individuationis". O sistema darwiniano

ilustra bem tal estrutura dinâmica, para a qual a "árvore

genealógica" serviu de modelo. Tal cosmovisão e filosofia

é um historicismo que se oferece como alternativa à visão

dialética da história e surgiu, efetivamente, em oposição a

Hegel. Mas é claro e mais que óbvio que o modelo de tais

sistemas não é a árvore toda, mas apenas aquela parte da

árvore que é visível acima do solo. ~cm toma a árvoretoda por modelo de sistema, deve haver-se com estrutura

que se ramifica em duas direções opostas. De maneira quea árvore toda é modelo de sistema dialético no mais exa­

to significado do termo. Os pensadores darwinianos do

século 19 se esqueceram da parte subterrânea da árvore(o que, obviamente, em nada afeta a "verdade" dos seus

enunciados).

Mas não é tal "invisibilidade parcial" que se interpõe

entre a árvore e o seu contemplador da maneira nebulosa

mencionada. São fantasmas, ectoplasmas, espectros e cor­

pos etéreos que pairam em torno de árvores e as tornaminacessíveis. Tais divindades arbóreas habitam todas as

mitologias, inclusive a judaica e a grega, fontes inescapá­

veis da nossa visão do mundo. Mencionarei alguns desses

fantasmas. O mais próximo do contemplador e, portan­

to, o mais fácil a ser removido é o espectro do "pulmão"

que encobre a árvore enquanto fenômeno concreto. Não

vejo árvore, vejo pulmão verde, e vejo tal pulmão tanto

morfológica quanto funcionalmente. Um pouco mais

próximo da mesma árvore, mas ainda facilmente remo­

vível, está o fantasma do "abrigo". Não vejo árvore, vejo

guarda-chuva, tanto em sentido físico quanto metafórico

do termo. Outros espectros se agarram à árvore bem mais

firmemente. Por exemplo, os espectros da "fertilidade", o

d ., h 11 " d'" d"d "(111' d .o paus , o a arvore a VI a . ~an o taIS espectros

são penosamente removidos, e a essência da mesma árvo­

re parece querer revelar-se, verifica-se que ainda não é a

arvoridade que se mostra, mas alguns preconceitos ainda

mais profundos, e que talvez nem sequer tenham nome.Of' 1-"1 ,,,, ·ddato e que a re açao )omem -- arvore e carrega a e

tanta carga imemorial (e talvez consequência da "origem"

arbícola humana), que a tentativa de captar a essência da

árvore geralmente fracassa. Os preconceitos são tantos

que se recusam a ser postos entre parênteses e eliminados

provisoriamente.

Não procurarei, portanto, captar a essência do cedro

no meu parque, mas apenas um único aspecto seu. Este: o

clima estranho e estrangeiro que irradia. Já que não capta­

rei a cedridade do cedro, talvez captarei algo da estranheza

e estrangeiridade? Afinal, sou tão estranho e estrangeiro

no meu parque angevino quanto o é o cedro. Não poderátal comunhão do "estar-no-mundo" meu e do cedro for­

mar base para uma visão intuitiva? Ou estarei, desde já,

antropomorfizando o cedro? Estarei, desde já, caindo na

armadilha de um dos espectros, o "antropomórfico", que

encobrem o cedro? Na armadilha na qual caiu, e na qual

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48 Natl1ra1:mente VILÉM FLUSSER 49

morreu, o menino do "Erlenkoenig" de Goethe? Parece

ser mais prudente procurar captar a estrangeiridade do

cedro em forma de perguntas, não de afirmativas. ~emsabe, certas respostas poderão ser provocadas no próprio

cedro? Perguntas provocantes que fazem falar o cedro.

Primeira pergunta: Como sei que o cedro é estran­

geiro? Resposta: sei que aquela árvore lá é cedro, e que

cedros são plantas nativas do Líbano, não da França. Tal

resposta não serve. Não foi dada pelo cedro, mas por meus

livros escolares. Atenção, no entanto. A resposta não é in­

teiramente impertinente. "Cedros do Líbano": não signi­

fica isto o Rei Salomão e a construção do Templo? E não

há algo de tal significado em torno do cedro no parque?

Ou não passará isto de um de tais espectros?

Reformularei a primeira pergunta: Como o cedro

me diz ser ele estrangeiro? De várias maneiras. O ser ver­

de é diferente do verde em torno. A sua "Gestalt" pira­

midal e hierarquicamente escalada destoa das "Gestalten"cônicas das árvores em torno. A forma torturada dos seus

ramos, o elemento caótico nele que não obstante é inse­

rido em totalidade harmônica, os distingue radicalmente

das copas suaves em torno. Os seus pinhões monumen­

tais não têm paralelo nos frutos do parque. O seu tronco

elefantino soa como trombeta em orquestra de cordas.

Mas, principalmente, a sua presença domina o parque,

não apenas pela sua grandeza, mas também por algo que

deve ser chamado "majestade". Estas são respostas dadas

pelo próprio cedro e devem ser aceitas.

Segunda pergunta: Aceitando embora tais respostas,

como sei que significam a "estrangeiridade" do cedro?

Não significarão, pelo contrário, um aspecto da sua "ce­

dridade"? Em outros termos, não terá a presença do cedro

no seu Líbano nativo o mesmo clima que tem no parqueangevino? Se formulo a pergunta assim, o cedro se cala.

Necessariamente, porque o cedro está aqui e não no Líba­no, e não pode falar em nome de "outro cedro". Formula­

da assim, a pergunta é tipicamente insignificativa. Pequei,

ao ter formulado a pergunta assim, contra o primeiromandamento da honestidade: "Não tirarás fenômenos

do seu contexto!" A pergunta deve ser reformulada, paraser significativa.

Reformularei a segunda pergunta: As respostas queo cedro deu à primeira pergunta significam que ele se dis­

tingue do seu contexto por ser cedro ou por ser estran­

geiro? A resposta que o cedro dá a tal pergunta pode serresumida assim: Sou estrangeiro por ser cedro. Sou fiel amim mesmo, na minha cor, na minha "Gestalt", nos meus

pinhões, não me assimilo ao parque. Pois exatamente poristo mesmo domino o parque. Centralizo o parque, dou­

lhe forma e sentido. O parque é o parque que é graças a

mim: parque em torno de cedro. Não fosse eu cedro, por­tanto, estrangeiro no parque, o parque não teria sentido.Eu sou o ruído do parque que transforma a sua redundân­

cia em informação significativa. Destoo, e tal dissonância

é o núcleo da música do parque. É isto o significado das

minhas respostas: Sou estrangeiro por ser cedro, e é ape­nas com relação à minha estrangeiridade que o resto do

parque se torna nativo. "Ser estrangeiro" é, pois, no hlll­do, isto: revelar ao contexto que ele próprio não é estran­

geiro. Sou estrangeiro não em mim, mas para o parque.

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50 Natural:mente VU ..ÉM FLUSSER 51

Respostas muito problemáticas estas. Vêm formula­das em discursos dos quais conheço bem a origem. Sãoos discursos da filosofia existencial, da teoria da informa­

ção, da musicologia. Pode o cedro recorrer a tais tipos dediscurso? Perfeitamente. Com efeito, não pode, a não serrecorrer a tais tipos de discurso. Porque o cedro se dápara mim, e se lhe permito falar, é para que fale dentrodos meus discursos. Com efeito, as respostas à minha pri­meira pergunta também foram articuladas por discursomeu, embora tenham sido aparentemente mais concre­tas. Apenas o discurso de tais respostas foi o da linguagemcorriqueira. De modo que sou obrigado a aceitar tambémas respostas à minha segunda pergunta.

Provocam terceira pergunta: Se o cedro é presen­ça estranha e estrangeira no parque, porque dele destoapor sua fidelidade à cedridade, como sei que é o cedroque é estrangeiro, e não o parque? Em outros termos: seser estrangeiro é um ser relativo a outro ser, não haveráreversibilidade? O cedro é estrangeiro para o parque e oparque estrangeiro para o cedro? Uma resposta se impõeimediata e espontaneamente: sei que o cedro é estrangei­ro e o parque não é, porque o cedro é uma única árvore, eo parque são muitas. Tal resposta quantificante deve serrecusada, embora, como o são todas asquantificações, sejarazoável. Deve ser recusada, porque não fere a essência da

estrangeiridade. Foi dada, com efeito, não pelo cedro, maspelo meu raciocínio indutivo e enumerativo. Devo refor­mular minha pergunta, e dirigi-Ia, não ao cedro, mas aoparque. Por exemplo, à nogueira vizinha do cedro.

Reformularei a terceira pergunta: Como sei que anogueira (e, como ela, o parque todo), é nativa do Anju,e desta forma torna dialeticamente o cedro estrangeiro?Uma torrente de respostas jorra da nogueira. O seu verdede verão com leve suspeita de ferrugem outonal articulaa primeira metade de setembro, "na qual estamos". A suacopa cônica é elemento, mas também resumo, da "Ges­talt" da paisagem toda. A riqueza das nozes que carregaé testemunho da fertilidade onipresente do Anju e daFrança. O clima pacífico, a um tempo temperado e ricode seivavital que irradia, é o clima do ambiente todo, talcomo penetra os poros, os pulmões, as sensações, e atéos pensamentos de todos aqui presentes. O Anju todo,a França toda estão na aura da nogueira, e basta contem­plar a nogueira com suficiente paciência para descobrir aessência da França. As respostas múltiplas que a nogueiraestá dando à minha pergunta podem ser assim resumidas:Sou nativa por ser nogueira, e sou nogueira por ser nati­va, e não há nisto nenhum problema. Não preciso afirmarminha nogueiridade, nem ser fiel a ela. Isto tudo está sedando por mim, em torno de mim, e por causa de mim,com toda espontaneidade e naturalidade. E isto é, possi­velmente, um aspecto da "natureza": ser assim, esponta­neamente e sem problema. A nogueira (e o parque todo)é natureza angevina. E, em contraste com isto, o cedronão é natureza, mas cultura angevina É cultura, porque seafirma, é fiela sipróprio, e dá sentido ao parque todo. Emsuma, é estranho e estrangeiro.

Pois isto é resposta surpreendente. (Devo confessarque me surpreendeu ao ter se formulado no curso des-

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52 NaruraI:mcnte

te ensaio. Não esperava por ela.) A resposta da nogueiraprovoca redefinição dos conceitos "natureza" e "cultura"em termos diferentes dos costumeiros: Natureza como

minha circunstância espontânea e isenta de problemas, écultura como presença estranha e estrangeira na minhacircunstância, que se auto afirma e, portanto, dá sentidoà natureza. Isto precisa ser ruminado em outra oportuni­dade. O que importa, no presente contexto, é isto: Meu

conhecimento prévio (botânico ou outro) a respeito decedro e nogueira não toca o problema da estrangeiridade.Por exemplo: a nogueira pode perfeitamente ser origi­nária de florestas distantes e ter sido importada para cá,por exemplo, pelos celtas. Não obstante, é essencialmen­

te nativa. O cedro pode ter-se perfeitamente adaptado à

circunstância angevina, e pode, inclusive, vingar melhoraqui que no Líbano nativo, e vingar melhor que a próprianogueira. Não obstante, é essencialmente estrangeiro.Preconceitos não ferem essências,as quais se revelam ape­nas em contemplações como é esta do meu parque. Acabade se revelar um aspecto da essência da estrangeiridade.

Da seguinte forma: Estrangeiro (e estranho) é quemafirma seu próprio ser no mundo que o cerca. Assim, dásentido ao mundo, e de certa maneira o domina. Mas o

domina tragicamente: não se integra. O cedro é estran­geiro no meu parque. Eu sou estrangeiro na França. Ohomem é estrangeiro no mundo.

Vacas

São máquinas eficientes para a transformação deerva em leite. E têm, se comparadas com outros tiposde máquina, vantagens indiscutíveis. Por exemplo: sãoautorreprodutivas, e quando se tornam obsoletas, a sua"hardware" pode ser utilizada na forma de carne, couroe outros produtos consumíveis. Não poluem o ambiente,e até seus refugos podem ser utilizados economicamentecomo adubo, como material de construção e como com­

bustível. O seu manejo não é custoso e não requer mãode obra altamente especializada. São sistemas estrutu­ralmente muito complexos, mas, funcionalmente, extre­mamente simples. Já que se autorreproduzem, e já que,portanto, a sua construção se dá automaticamente semnecessidade de intervenção de engenheiros e desenhistas,esta complexidade estrutural é vantagem. São versáteis,já que podem ser utilizadas também como geradores deenergia e como motores para veículos lentos. Embora te-

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nham certas desvantagens funcionais (por exemplo: suareprodução exige máquinas em si antieconômicas, "tou­ros", e certos distúrbios funcionais exigem intervenção deespecialistasuniversitários, de veterinários, caros), podemser consideradas protótipos de máquinas do futuro, queserão projetadas por uma tecnologia avançada e informa­das pela ecologia. Com efeito, podemos afirmar desde jáque vacas são o triunfo de uma tecnologia que aponta ofuturo.

Se considerarmos o seu "design", a nossa admiraçãopelo inventor da vaca ainda aumenta. Embora se trate

de máquina altamente automatizada e controlada porcomputador instalado dentro da própria máquina (cé­rebro), e embora o seu funcionamento esteja garantidopor sistema cibernético de equilíbrios elétricos e quími­cos altamente refinados, a forma externa da máquina é desimplicidade e economia de elementos surpreendente ealtamente satisfatória esteticamente. A impressão que avaca deixa é a de uma obra bem integrada em si e dentrodo seu ambiente. O seu "designer" não se deixou influen­ciar por tais ou quais tendências estéticas da atualidade(embora possamos descobrir no desenho da vaca certoselementos barrocos indisfarçáveis, e embora seu desenhis­

ta traia a influência de certas tendências biologizantes doséculo passado), mas o "designer" seguiu intuição esté­tica caracteristicamente sua. Por exemplo: a mobilidadeelegante do rabo contrasta com a maciça imobilidade doresto da obra e cria tensão apenas sugerida por Calder eseus seguidores. Mas o que impressiona mais no "design"

da vaca é isto: a surpreendente gama de variações que oseu protótipo permite. O protótipo é fundamentalmen­te simples (tem sido elaborado, por exemplo, por Picassonas Tauromaquias), mas tal simplicidade mesma permiteum número grande de estereótipos diferenciados. Trata­se, no protótipo da vaca, de autêntica obra aberta. Há,entre os estereótipos, os que se adaptam a mentalidadesnacionais e até regionais (vaca suíça, holandesa, inglesa),os que se adaptam paisagisticamente (vacasdos Alpes, dosprados, das estepes), e até estereótipos baratos destinadosaos povos subdesenvolvidos (zebu, vaca centro-africana).

Isto, no entanto, não esgota a "mensagem estética"da vaca. Os estereótipos são fornecidos ao consumidoracompanhados de um "modo de usar" que equivale a umconvite de participação em jogo. O comprador de vacaspode, se assim desejar, projetar seu próprio modelo, "cru­zando raças". De maneira que a compra de vaca não con­dena o comprador a um consumo passivo, mas abre espa­ço a uma participação ativa no "jogo das vacas".De modoque finalmente a teoria dos jogos ficou absorvida signifi­cativamente pela tecnologia. Podemos vislumbrar um es­tágio futuro, no qual o progresso tecnológico não serápri­vilégio de alguns especialistas apropriados pelo aparelhoadministrativo, mas jogo do qual as "massas"participarãoativamente, variando protótipos livremente. O inventorda vaca provocou autêntica revolução tecnológica, tantoem sentido funcional quanto estético, que abre horizon­tes para um novo "estar-no-mundo" do homem do futu­ro. Conseguiu isto ao ter sintetizado os conhecimentos

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56 Natural:mcnte VIL.ÉM FLUSSER 57

mais avançados da ciência e os métodos mais refinados da

tecnologia com sensibilidade estética aguda e com visãoclara estrutural, cibernética e informada pela teoria dosjogos. Não resta dúvida: a vaca representa fundamental"decolagem".

Mas não deixa de representar também perigo e ame­aça. Na medida em que vacas se tornarem sempre maisnumerosas e baratas (processo inevitável dado o ímpetodo progresso) e outras máquinas de tipo semelhante sur­girem, ocorrerá transformação sutil, mas profunda, noambiente humano. As máquinas atuais, às quais a huma­nidade vem se adaptando em processo penoso desde a Re­volução Industrial, serão paulatinamente substituídas pormáquinas tipo "vaca".Já que tais máquinas impõem umritmo vital diferente e toda uma práxis diferente, surgiráa necessidade de readaptação que terá, necessariamente,por consequência, nova alienação individual e coletiva. A

fantasia pode prever não apenas dissolução das grandescidades e formação de pequenos aglomerados em tornode vacas (a serem chamadas, por exemplo, "aldeias"), masem consequência disto, também, a dissolução da estrutu­ra básica da sociedade e sua substituição por outra apenasimaginável. No entanto, o pior não será isto.

É conhecida a tendência humana para "espelhar-se"nos seus produtos. O processo é aproximadamente este: ohomem projeta modelos para modificar a realidade. Tais

modelos são tomados do corpo humano. Por exemplo: otear tem por modelo o dedo humano, e telégrafo o nervohumano. O modelo é realizado na forma de um produto.

Em seguida, o modelo humano por trás do produto é es­quecido, e o produto se estabelece,por sua vez, em mode­lo para o conhecimento e comportamento humano. Porexemplo: as máquinas a vapor são tomadas por modelosdo homem no século 18, asfábricas químicas no século 19e os aparelhos cibernéticos atualmente. Tal retroalimen­

tação nefasta entre o homem e seus produtos é aspectoimportante da alienação e autoalienação humana.

Pois a paulatina substituição das máquinas atuaispor máquinas tipo "vaca"poderá resultar em tal identifi­cação "homem = vaca". O homem pode não reconhecerna vaca o seu próprio projeto, pode esquecer que a vacaé resultado de sua própria manipulação da realidade em

obediência a um modelo seu, e aceitar a vaca como algode alguma forma "dado" (por exemplo: pode aceitar avaca como uma espécie de "animal", portanto, parte da"natureza"). Em tal caso, a vaca assumirá autonomia on­

tológica e epistemológica, e virará, por assim dizer portrás das costas do homem, modelo do próprio homem.Justamente por tratar-se de máquina altamente sofistica­da e antropomorfa (todas as máquinas são, aliás, antro­pomorfas, pela razão indicada), a essência "máquina" davaca pode vir a ser encoberta. Em nada adiantarão, em

tal caso, "explicações genéticas" da vaca, explicações queprovarão ser a vaca resultado de manipulação humana. Oimpacto da vaca se dará em nível existencial, no contato

diário com ela. Em tal nível, todas as "explicações"se tor­nam irrelevantes (como são irrelevantes tais "explicações"atualmente para os que têm contato diário com compu-

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58 Natural:mente

tadores). A mera presença cotidiana da vaca exercerá sua

influência "vaquificante". A fantasia se recusa a imaginar

a consequência disto.

No entanto, é preciso enfrentar o perigo. A fanta­

sia deve ser forçada. Revela a visão de uma humanidadetransformada em rebanho de vacas. Uma humanidade

que pastará e ruminará satisfeita e inconsciente, consu­

mindo erva, na qual uma elite invisível de "pastores" tem

interesse investido, e produzindo o leite para tal elite. Tal

humanidade será manipulada pela elite de maneira tão

sutil e perfeita que se tomará por livre. Isto será possível

graças à automaticidade do funcionamento da vaca. A li­berdade ilusória encobrirá a manipulação "pastoril" per­

feitamente. A vida se resumirá às funções típicas da vaca:

nascimento, consumo, ruminação, produção, lazer, re­

produção e morte. Visão paradisíaca e terrificante. ~em

sabe, ao contemplarmos a vaca, estamos contemplando ohomem do futuro?

O futuro é, no entanto, apenas virtualidade. Ainda é

tempo de agirmos. O progresso não é automático,mas resultante de vontades e liberdade humanas. O

progresso rumo à vaca pode ser ainda sustado. Não, porcerto, "reacionariamente". Não pela tentativa de negar as

vantagens óbvias da vaca e a força da imaginação criativa

que nela se manifesta. Mas pela tentativa de apropriar avaca às verdadeiras necessidades e aos verdadeiros ideais

humanos. A vaca é, sem dúvida, ameaça. Mas também de­safio. Deve ser enfrentada.

Grama

Na frente da minha casa cresce grama. Não é curioso

isto? ~ero dizer: não é curioso o verbo ao qual recorri

para dizer que há grama na frente da minha casa? Por que

não digo que na frente da minha casa crescem, também,

formigas e um gato? E por que não há verbo que descreva

a ocorrência específica de grama na frente da minha casa?

Por que não posso dizer "grameia", como digo "chove"

ou "neva"? E se digo que há gramado na frente da minha

casa, estarei afirmando algo estruturalmente idêntico às

afirmativas de que há, também, formigueiro e chuva na

frente da minha casa? Obviamente, a língua portuguesa

tem um jeito de impor sobre o meu pensamento determi­

nadas formas que me fazem captar os fenômenos do mun­

do sob aspectos determinados por tais formas. Capto a

grama como algo que cresce, e isto é o essencial da grama.

No caso das formigas e gatos, o seu crescer é captado por

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Narurabnenrc VILÉM FLUSSER 61

mim como acidente. E capto a grama como elemento deum coletivo (O gramado), que é essencialmente diferente

de coletivos tanto do tipo "formigueiro" quanto do tipo"chuva". Deposito confiança na "sabedoria" escondida na

língua: creio que a língua "sabe" por que impõe tais for­mas sobre o meu pensamento. Creio que a "essência" dagrama é reveladapara mim, enquanto "crescer" e enquan­to elemento de determinado tipo de coletivo, através dasformas da língua portuguesa. Sou obrigado a crer nisto.Do contrário, cairia em mutismo ou em excentricidades

linguísticas do tipo: "na frente da minha casa está paradoum exército de gramas". Mas, ao dizer isto, tropeço nocaminho do meu discurso. ~e excentricidade linguís­tica foi esta? O exército parado de gramas não captará,ele também, um aspecto da "essência" do meu gramado,aspecto este escondido pela língua corriqueira? E nãoterá isto a ver com o famoso "poder revelador da poesia"?Não acabo, por acaso, de dar palavra à grama, num senti­do husserliano, a saber: dar "nova" palavra à grama? Nãoacabo de ter permitido à grama articular-se, para mim, deuma maneira portuguesa relativamente nova? Não darei,a tal pergunta, nem resposta afirmativa nem negativa a es­tas alturas. Registrarei a pergunta.

N a frente da minha casa crescegrama. Como cresce,um pouco mais adiante, trigo. E como cresce, no centroda cena vista da minha janela, um cedro frondoso. "Cres­cer" será pois a forma na qual a língua capta a essênciada planta? Erro. A grama na frente da minha casa crescemuito mais como crescem os cabelos na minha cabeça, e

muito menos como cresce o cedro. A essência da grama,

revelada pela língua, não é a sua "plantidade", mas o fatode que a grama pode ser deixada crescer ou pode ser cor­tada. A essência da grama é sua cortabilidade. É espéciedo mesmo gênero ao qual pertencem também cabelose unhas. Gênero este essencialmente manipulável por

manicure. A técnica adequada à manipulação da gramaé ensinada nos salões de beleza. O crescer da grama é es­sencialmente diferente do crescer do cedro (e também do

trigo). O critério de tal diferença essencial está na práxis.O barbeiro é quase competente para a grama, não para ocedro. Mas tal diferença essencial é escondida pelo verbo

"crescer" da língua portuguesa. ~em também isto sejaregistrado.

A cortabilidade da grama (que lhe é essencial) estáligada, aparentemente, ao caráter do coletivo do qual éelemento. Coletivos do tipo gramado, cabeleira e barbasão cortáveis, coletivos do tipo trigal são colheitáveis, ecoletivos do tipo pinheiral são manipuláveis de outra ma­neira. (Para não falar em coletivos do tipo formigueiro e

família de gatos.) Mas acaso unhas não serão igualmentecortáveis, e não será isto o "essencial" das unhas? ~al éo seu coletivo, "unhal", "unhado" ou "unheiro"? Atentativa de correr ao socorro da "sabedoria" escondida

na língua portuguesa falha: a essência da grama é escon­dida pelo verbo "crescer", até se forçarmos ligação entretal verbo e o substantivo "gramado". Devemos constatarum tanto extralinguisticamente que a grama pertence,essencialmente, à classe dos fenômenos cortáveis, à qual

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62 Natural:mente VILÉM F.LUSSER 63

pertencem também o cabelo e a unha, mas não o trigo, a

formiga e o gato. (Embora tal classificação se torne possí­

vel apenas graças à língua e por intermédio da língua.) Oque surpreende é o fato de que tal classificação não coin­

cide de maneira alguma com as classificações científicasditas "objetivas".

Tais classificações objetivas (como aliás todo o dis­curso científico) tendem a encobrir a essência dos fenô­

menos que explicam. Dizem, por exemplo, que grama

e trigo são parentes próximos e parentes longínquos do

cedro, mas que seu parentesco com formigas é muitoremoto, e que sua relação com cabelos e unhas é hierar­

quicamente confusa. É que a objetividade científica é, na

realidade, resultado de determinado ponto de vista sobreo mundo, ponto de vista este tomado inconscientemen­

te por preferencial sem justificação explícita, e assumido

inconscientemente. Por certo, o ponto de vista científico

não pode ser o assumido por Deus "sub specie aeterni".Porque sob tal ponto de vista a cortabilidade se revela es­

sência de numerosos outros coletivos: dos pinheirais, dos

formigueiros e da humanidade. Somos, de tal ponto de

vista, essencialmente tão cortáveis quanto o é a grama. Se

assumirmos ponto de vista tão distanciado, não apenas

a humanidade se revelará espécie de gramado, mas toda a

biosfera espécie de musgo cortável a cobrir a superfície doplaneta T erra. Tal ponto de vista distante, no entanto, não

é nem científico nem existencialmente relevante. Apenas

distâncias mensuráveis em unidades temporais e espaciais

compatíveis com as dimensões humanas são significativas.

Pontos de vista sob os quais a diferença entre gramado e

humanidade se dilui são desumanos, portanto, pecamino­

sos. Argumento apreciável contra certas religiosidades.Grama é essencialmente cabelo da Terra, e cabelo es­

sencialmente grama do corpo. De que ponto de vista? Do

ponto de vista do barbeiro e jardineiro. Tais pontos de

vista não foram assumidos aleatoriamente, foram impos­

tos pelo fenômeno mesmo. Não podemos assumir não

importa que ponto de vista perante a grama. Não, por

exemplo, o ponto de vista do geólogo ou do banqueiro.

Embora estes pontos de vista também abranjam grama e

cabelo, não captarão o que é essencial em ambos. Para ge­

ólogos e banqueiros grama e cabelo não ocupam o centro

do interesse; para barbeiros e jardineiros ocupam. A es­

sência se revela apenas quando o fenômeno contemplado

ocupa o centro do interesse.

Grama é essencialmente cabelo da Terra. É proble­

ma, como o é não importa que fenômeno nos cerca. O

problema da grama é este: deixar crescê-Ia ou cortá-Ia. Éproblema prático, prova que grama é fenômeno concre­

to. Não se trata de explicá-Ia, trata-se de modificá-Ia. Não

é problema do tipo: "qual a distribuição dos números

primos na série natural de números?", porque provoca

práxis. Não, obviamente, de um ponto de vista objetivo,

mas do ponto de vista do jardineiro. Objetivamente, o

problema da cortabilidade da grama surgirá muito tarde

no discurso que explica a grama. Primeiro, surgirão pro­

blemas relativos a,morfologia, metabolismo, genética etc.

da grama. Prova que o ponto de vista objetivo (científi-

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64 Natural:mcnre VILÉM FLL'SSER 65

co) abstrai e desconcretiza a grama. O ponto de vista dojardineiro capta a essência da grama concreta. Mas é fatoque o jardineiro pode cortar a grama cientificamente. Aciência é uma volta longa que passa pelos labirintos daabstração para reencontrar o fenômeno concreto do qualpartiu. Tal volta enriquece a práxis (e avisão) concreta dojardineiro. Mas quando se trata de descobrir a essênciadagrama (sua cortabilidade), melhor é pôr entre parêntesestal volta.

Grama é essencialmente cabelo da Terra. A decisão

de deixá-Ia crescer ou cortá-Ia depende, em parte, da si­tuação cultural na qual nos encontramos. É, em parte,questão de moda. "Beautify America, have a hair cut"(embeleze a América, corte os cabelos), implica tam­bém: ("corte ou não teu gramado"). "The Greening ofAmerica" (O tornar verde a América) é visão da Améri­

ca do ponto de vista do jardineiro e barbeiro. Tal pontode vista pode ser descoberto, aliás, em muita especulaçãoda Nova Esquerda (Marcuse), e de uma "filosofia" inspi­rada pela ecologia. Há esteticismo implícito em muitasdessas tendências novas, porque tais tendências nascemem salões de beleza. Para a Nova Esquerda, o proletárioportador do futuro não é, aparentemente, o metalúrgico,mas o barbeiro. Será efetivamente novo tal esteticismo?

Ou não será romântico, com barbas (e gramados) lon­gas? Crítica impertinente. Tudo o que é novo tem, emcerto sentido, barba longa. "Nil novi sub sole." Mas nãoesqueçamos que a essência da barba é sua cortabilidade.Não cortar a grama, deixar crescê-Ia,está atualmente na

moda. Dizem que disto depende a própria sobrevivênciada humanidade. Abaixo o aparelho cortador de grama,porque abaixo todo aparelho! O ponto de vista do bar­beiro (ou do antibarbeiro, que é a mesma coisa) contestao ponto de vista do aparelho (o do operário e dono defábrica de automóveis e cortadores de grama). As barbaslongas de ambos os pontos de vista são, no entanto, cortá­veis. Corno é cortável a barba longa da contradição entreo ponto de vista ético da fábrica de cortadores e o ponto

de vista estético do jardineiro. ~em corta barbas assimtranscende modas (é transmoderno). Estruturalista? Sim,

mas estruturalista-barbeiro que precisa cortar sua própriabarba. Cortar a própria barba: práxis reflexiva?

Grama é essencialmente cabelo da Terra. Deixar

crescê-Ia é permitir à Terra que seja. Atitude chthonica,telúrica etc., portanto. Atitude contrária à repressão urâ­nica (espiritual) da Terra exercidapelo aparelho (de cortargrama). Cabelo é essencialmente grama do corpo. Deixarcrescê-Io é permitir ao corpo que seja. Atitude contráriaà repressão do corpo pelo aparelho. O corpo-Terra, con­junto não-histórico em revolução contra a história pro­movida pelo espírito-aparelho. Rousseau-Marx-Marcu­se? Não, fundamentalmente. Fundamentalmente: salãode beleza. Esteticismo nietzschiano em rebelião contra o

"niilismo" do judeu-cristianismo. Urge definir melhor arelação entre grama e Terra, e entre cabelo e corpo, paradescobrir fenomenologicamente a Terra por trás da gra­ma e o corpo por trás do cabelo. Grama e cabelo "cobrem"

Terra e corpo. É por culpa da grama e do cabelo que não

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66 Narural:menre

os vemos. Será grama ainda Terra (Magna Mater, úteroetc.) e será cabelo ainda corpo (conjunto de experiênciasconcretas e de gestos)? Não, porque grama e cabelo sãoessencialmente cortáveis, e Terra e corpo essencialmen­te incortáveis. Terra não é cortável, porque fundamenta.Corpo não é cortável, porque está sempre presente co­migo. Terra e corpo são incortáveis, porque não estão notempo. Daí a sua não-historicidade. Deixar crescer gramae cabelo é ainda decisão histórica (espiritual, enquadra­da no aparelho): é deixar encoberta a não-historicidadeda Terra e do corpo. Possivelmente, o método oposto émais indicado? Cortar grama e cabelo tão radicalmenteque apareça a Terra e o corpo? Fazer funcionar o aparelhoaté que ele próprio se leve ao absurdo? O barbeiro comoproletário portador do futuro, no sentido de "revelador"da concreticidade não-histórica da Terra e do corpo? Ouserá isto colaborar com o aparelho e serpor ele absorvido?

Não: é apropriar o salão de beleza.As falhas da "sabedoria da língua" com relação à gra­

ma foram devidamente registradas. É que a língua fazpar­te do aparelho cortador de grama. É possível transcendera língua e o aparelho. A visão fenomenológica o permite.Mas depois é necessário recorrer novamente à língua e aoaparelho. A visão fenomenológica o permite. Mas depoisé necessário recorrer novamente à língua e ao aparelho,para forçá-Ios a funcionarem contra si próprios e em fa­vor da essência da grama. Programa razoáveL

Dedos

Procuro observá-Ios enquanto batem as teclas damáquina de escrever para produzirem o presente texto.Tarefa dura, porque situação complexa. Devo observaros dedos enquanto escrevem texto que tem a observaçãode dedos por assunto. Mas tarefa apaixonante. Porque acomplexidade da situação se deve ao constante espelhar­se da observação no observado. Trata-se, portanto, dacomplexidade das situações reflexivas. Ao observar osdedos, reflito-me neles, e os dedos se refletem em mim,

ao serem observados. ~ando concentro meu interessesobre os dedos, encontro a mim próprio em tal centro. Eusou meus dedos e os meus dedos são eu. Eu sou deles tan­

to quanto eles são meus. Possivelmente, a co-implicaçãoentre eu e dedos sejaa essência dos dedos?

Para contornar a complexidade da situação, procu­rarei descrevê-Iaem termos simples. Estou sentado numa

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cadeira. A cadeira é produto da civilização ocidental, e,se for analisada, revelará a história do Ocidente. Encaro

uma escrivaninha. A escrivaninha pertence ao mesmoconjunto do qual a cadeira é parte. A contraposição "ca··deira -- escrivaninha" é estrutura característica de deter­

minadas situações da minha cultura. Sobre a escrivaninha

está colocada uma máquina de escrever "Olivetti". Tra­

ta-se de um instrumento para escrever levemente pa1<~o­tecnológico (produto da técnica do início do século 20).A máquina tem teclas marcadas com letras do alfabetolatino. Tais letras são modificações históricas de símbolos

que se originaram no Oriente Próximo há aproximada­mente 3.000 anos. Meus dedos batem nas tecIasem deter­

minada ordem. A ordem visaproduzir sobre uma folha

de papel inserida na máquina sentenças da língua portu­guesa. É, pois, determinada pela ordem de tal língua. OPortuguês é modificação histórica de uma hipotética falaindo-europeia. As sentenças portuguesas visadas pelosmeus dedos são articulações dos meus pensamentos. Taispensamentos foram programados pelas condições eco­nômicas, sociais, culturais, em suma, históricas, que medeterminam. Viso destacar o papel da máquina quandopronto, para que seja lido por outrem. Tal outro poderádecifrar a mensagem no papel por participar da mesmacultura da qual eu participo. De maneira que a situaçãotoda, em seus elementos e sua estrutura, é característicade determinada cultura. Meus dedos estão inseridos nela.

Mas será que isto me autoriza a considerar meus de­dos como se fossem parte integrante de tal cultura? Não

posso fazê-Io. A análise dos meus dedos não revelará ahistória do Ocidente, como o fará a análise da cadeira, da

máquina, do alfabeto, da língua portuguesa. Por certo:o gesto dos meus dedos sobre as teclas poderá, se anali­sado, revelar-se gesto historicamente determinado. Masos próprios dedos não: não são produtos da história dacultura. Tenho a forte tentação de dizer que são produtosda história da natureza. Tenho modelos muito poderosos

(por exemplo, o darwiniano), que me levam a dizer isto.E a dizer, portanto, que os meus dedos são fenômenosnaturais que foram inseridos em situação cultural, a qualdoravante transforma, informa, em suma, condiciona os

seus gestos. Cultura como violentação da natureza.Tal descrição da situação seria, no entanto, inteira­

mente desapropriada. Não captaria o seu clima. Tal climanão é o da violentação dos meus dedos por um estabe­lecimento cultural composto de aparelhos sincronizados(embora várias tendências atuais, inclusive a Nova Es­

querda, acreditassem que o seja). Não se trata, na situa­ção, de uma "desnaturação" ou "aculturação" dos meusdedos. Não se trata disto, e a observação do gesto dos de­

dos o prova. Não se movimentam maquinalmente, em­bora se movimentem dentro e sobre várias "máquinas" (a

de escrever, o alfabeto, a língua portuguesa). O seu movi­mento é deliberado, isto é, articula minha liberdade. Osdedos escolhem determinadas teclas e recusam outras, e

escolhem tais teclas criteriosamente. Éverdade que os cri­

térios são impostos sobre os dedos (pela organização doteclado, pelas regras da língua e pela estrutura dos meus

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pensamentos). Mas tais critérios tornam possíveis e dãosentido aos movimentos dos dedos, isto é, abrem um

campo de escolha. Os meus dedos são livres na situaçãodescrita. Com toda a dialética da liberdade que a análiseda situação revela. Em outros termos: a situação é cul­tural, e por isto mesmo um campo de liberdade para osmeus dedos. Para formulá-Io paradoxalmente: a cultura énatural para os dedos, e fora dela os dedos não são como"devem ser": livres.

Como são os dedos fora da cultura? Portanto, não

violentados, não apropriados pelos aparelhos estabele­cidos? ~al o movimento natural dos dedos? O seu re­

pertório é reduzido. Coçam, arranham, talvez apontem efurem. E agarram-se a objetos felpudos. Tais movimentos

são observáveis em recém-nascidos, e, por projeção, nosprimatas. São, estes sim, movimentos condicionados.

São, em tese, perfeitamente explicáveis peIas ciências danatureza. Refletem condições internas do corpo (tensõestermodinâmicas e químicas, informação genética etc.) econdições do ambiente. Em situações naturais os dedossão inteiramente determinados. A "revolução" tardia­mente romântica que visa libertar os dedos da violentaçãopelo aparelho (por exemplo pelo "princípio do prazer")visa, na realidade, a reduzi-Ios a movimentos coçadores.A verdadeira revolução não seria a retirada dos dedos do

aparelho, mas a apropriação dos aparelhos pelos dedos. Asituação descrita, na qual escrevo o presente texto, podeservirde modelo para todas as situaçõesculturais depois detal revolução apropriadora. Por issodeveser reconsiderada.

A máquina de escrever foi feita para servir de ins­trumento a meus dedos. É um prolongamento dos meusdedos. Mas é daro que a relação "máquina - dedos" nãoé simples, mas dialétíca, e por isso mesmo facilmente re­versível. Para que os dedos possam servir-se da máquina,devo aprender o manejo. Devo conhecê-Ia. Macacos po­dem bater à máquina sem conhecê-Ia, e se um milhão demacacos baterem a um milhão de máquinas durante ummilhão de anos produzirão necessariamente o presentetexto. Necessariamente, mas não deliberadamente. O co­

nhecimento da máquina é o pressuposto da liberdade. Aliberdade não é um campo intermediário entre o acasoestatístico e a necessidade. Tal campo não existe, já queo acaso estatístico se confunde com a necessidade, e o

milhão de macacos o prova. A liberdade surge por saltodialético acima do acaso e da necessidade, salto este pos­sibilitado pelo conhecimento. Sem o conhecimento, amáquina de escrever não é coisa da cultura, mas condiçãonatural, como o é para macacos. Existem muitas situa­ções, aparentemente culturais, nas quais manejamos apa­relhos como se fôssemos macacos. Porque os ignoramosparcial ou inteiramente. Em tais situações os aparelhosfuncionam, e os nossos dedos funcionam. E é contra tais

situações funcionais que as revoluções se insurgem. Paralibertar os dedos.

Para podermos conhecer a máquina de escrever, osnossos dedos devem aprender, empiricamente ou portécnicas "ad hoc" elaboradas, a manejá-Ia. Isto é, devemaprender a fazer movimentos apropriados à máquina e,

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neste sentido, serem apropriados por ela. Mas não se tratade apropríação alienante. Trata-se de processo dialético,no qual a máquina é apropriada pelos dedos ao serem osdedos apropriados por ela. Durante tal processo vão serevelando determinadas virtualidades tanto da máquinaquanto dos dedos. Aprender é isto: verificar o que podeser feito com a máquina e com os dedos. Ou melhor, o

que os dedos podem fazer com a máquina, e o que a má­quina pode provocar que os dedos façam. De maneira quemáquina e dedos passam a formar os dois horízontes de

uma relação dialética (a do escrever), na qual um horizon­te é para o outro. A máquina é para os dedos (feita paraeles), e os dedos são para a máquina (movimentam-se de

forma apropríada a ela). Mas a relação entre máquina ededos não é simétrica (sob pena da situação do escreverse tornar efetivamente alienante, como é o caso de datiló­

grafas em repartições e bancos). A relação não é simétri­

ca, porque o movimento da máquina é determinado pelomovimento dos dedos que articulam liberdade.

Tal falta de simetria não é observávelobjetivamente.Um marciano observando o processo de escrever que en­volve macacos, datilógrafas e a mim, não notará diferença.Por mais cuidadosamente que observar as três situações,constatará apenas a dialética entre acaso e necessidade,

jamais a liberdade. Esta é constatável apenas por mim,que escrevo e simultaneamente transcendo a situaçãona qual escrevo. Não a transcendo como a transcende o

marciano: distanciado. T ranscendo-a participando. Não"metafisicamente", mas engajadamente. Engajo-me na si-

tuação por meus dedos, e transcendo-a observando dedosque são meus. Sei, graças a tal transcendência, que estouescrevendo o que quero, e não, como os macacos, o queder o acaso, nem, como a datilógrafa, o que foi encomen­dado a ela. Tal saber da minha livre vontade é insofismá­

vel, embora saiba também da total determinação do meuato de escrever, e da minha decisão de fazê-Io. Trata-se

de dialética da minha consciência, e o marciano jamaispoderá constatá-Ia. Por isso, a liberdade não é explicável,e quando explicada, deixa de sê-Io. E, no entanto, o fatode eu estar escrevendo livremente épor mim constatávelconcretamente. É o fato visado por toda revolução ver­dadeira.

Os meus dedos são insofismavelmente livres na si­

tuação descrita, embora tal fato não possa ser explicado.Pelo contrário, toda explicação da situação encobrirá ofato da liberdade, ao apontar as forças que determinamo movimento dos meus dedos. Toda explicação revelaráque a situação cultural e natural na qual me encontro pormediação dos meus dedos me determina totalmente, ao

determinar o movimento dos dedos. Toda explicação é,portanto, desculpa para os defensores das situações alie­nantes. Mas, curiosamente, também para os seus contes­tadores. Os defensores dirão que a liberdade não existe,que é preconceito, e justificarão assim o poder alienantee determinado r do aparelho (seja ele tecnocrático, polí­tico ou tradicionalmente consagrado). Os contestadoresrecomendarão, é verdade, a abolição dos aparelhos deter­minadores, mas por métodos que evocam os dedos dos

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74 Natural:mente

macacos que batem, furiosamente, as teclas de máquinas

de escrever até destruí-Ias. ~erem libertar as datilógratàs

ao transformá-ias em macacos. Embora, pois, aparente­

mente haja contradição entre defensores e contestadores,

há, na realidade efetiva, colaboração entre ambos. Chim­

panzés colaboram com gorilas porque ambos concordam

que existe contradição entre o condicionamento cultural

e o natural do homem. Apenas os defensores das situa­

ções alienantes optam pelo condicionamento da cultura,

e os contestadores pelo condicionamento da natureza.

Mas tal contradição entre cultura e natureza não existe

necessariamente. A cultura pode vir a ser a natureza do

homem. Já o é, com efeito, em determinadas situações,

como a descrita. E a cultura, enquanto natureza do ho­

mem, é o campo da liberdade. Nela, os dedos podem rea­

lizar suas virtualidades. Eis o que revela a observação dos

meus dedos enquanto batem o presente texto.

A lua

Pertencia, até recentemente, à classe das coisas vi­

síveis, mas inacessíveis ao ouvido, cheito, tato ou gosto.Agora, alguns homem tocaram nela. Isto terá tornado a

Lua menos duvidosa? Descartes afirma que devemos du­

vidar dos nossos sentidos porque, entre outras razões, eles

se contradizem mutuamente. Até agora, a Lua era percebi­

da por um único sentido. Não houve contradição de sen­

tidos, portanto. Agora, tal contradição se tornou possível.Podemos, doravante, duvidar da Lua, mas de maneira di­

ferente. Por exemplo: como sabemos que alguns tocaram

nela? Por termos visto o evento na TV e por termos lido

nos jornais a respeito. Imagens na TV são duvidosas, po­

dem ser truques. Se vêm acompanhadas da inscrição "live

ftom the Moon", passam a ser, não apenas duvidosas, mas

suspeitas. ~em diz "está chovendo, e isto é a verdade",

diz menos que aquele que diz apenas "está chovendo". E

quanto aos jornais, a sua credibilidade não é absoluta. De

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76 Natural:menteVILÉM FLUSSER 77

maneira que podemos duvidar que a Lua foi tocada. Mas

tal dúvida será ainda menos razoável que a outra: a Lua

será ficção ou realidade? Menos razoável, porque é menos

razoável duvidar da cultura que da natureza. Duvidar da

natureza é razoável, se for feito metodicamente, porqueresulta nas ciências da natureza. Mas duvidar da cultura

(da TV e dos jornais) aparentemente em nada resulta.

Já que a Lua passou (conforme TV e jornais) do campo

da natureza para o da cultura, melhor é não mais duvi­

dar dela. Passou da competência dos astrônomos, poetas

e mágicos para a dos políticos, advogados e tecnocratas. E

quem pode duvidar destes? A Lua é doravante proprie­dade imobiliária (embora móvel) da NASA Pode haver

maior prova de realidade? A Lua é "real state" = estado

real, e todas as dúvidas a seu respeito cessaram. Mas, ainda

assim, há certos problemas. Relativos, não tanto à própriaLua, mas ao nosso estar-no-mundo. Problemas confusos.

Falarei em alguns dentre eles.

~ndo olho a Lua em noites claras, não vejo umsatélite da NASA. Vejo um C, ou um D ou um círculo

luminoso. Vejo "fases da Lua". A Lua muda de forma.

Aprendi que tal mudança é aparente, que a Lua mesmanão muda de forma. Por que "aparente"? A sombra da

Terra não será tão real quanto o é a Lua? O senso comum

manda que eu veja mudanças não da "Lua em si", mas da

"minha percepção da Lua". Tal senso comum não se es­

tende a povos primitivos. Tais povos veem a Lua nascen­

do, morrendo e renascendo. Vejo a lua, não apenas comos olhos, mas também com o senso comum à minha cul-

tura. Tal senso comum me manda ver "fases da Lua", mas

não (ainda), "propriedade daNASA".

Será a visão o sentido mais comum que o senso co­

mum, isto é, comum a todos os que têm olhos? Todos os

que têm olhos podem ver a Lua? Máquinas fotográficas e

formigas? Não será antropomorfismo dizer que a Lua é

vista por formigas? Se eu construir uma lente estrutural­

mente idêntica ao olho da formiga, verei a Lua? Ou have­

rá senso comum apenas aos olhos humanos, o qual manda

aos homens verem a Lua? Haverá doença de vista ociden­

tal que me manda ver "fases da Lua", e outra doença mais

geralmente humana que manda ver a Lua?

~l11do olho a Lua em noites claras não vejo saté­lite da NASA, embora saiba que o que vejo é satélite daNASA. Continuo vendo satélite natural da Terra, a mi­

nha visão não integra o meu conhecimento. Tal falta de

integração do conhecimento pela visão caracteriza deter­

minadas situações, as chamadas "crises". É ptovável que

os gregos do helenismo sabiam que a Lua é bola, mas con­

tinuavam a ver uma deusa nela. É provável que os mela­nésios saibam ser a Lua satélite da N ASA, mas continuam

vendo símbolo de fertilidade nela. Em situação de crise a

cosmovisão não consegue integrar o conhecimento.

Para ver a Lua, preciso olhá-Ia. Não preciso escutar o

vento para ouvi-lo. Posso, mas não preciso. Para ver, preci­

so gesticular com os olhos e com a cabeça. "Levar os olhos

para o céu." Preciso fazer o que cachorros fazem para ou­

vir ou cheirar: gesticulam com o nariz e os ouvidos. Seumundo deve ser diferente do nosso. Para nós, sons e chei-

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78 Natura1:mcntc VILÉM FLUSSER 79

ros são dados, mas luzes são provocadas pela atenção (ges­ticulação) que lhes damos. Para cachorros, sons e cheiros

são igualmente provocados. Vivemos em dois mundos:

um dado e outro provocado pela atenção que lhe damos.

Nisto a vista se parece com o tato: dirige-se para o fenô­

meno a ser provocado. A explicação "objetiva" que a vista

é recepção de emissões de ondas eletromagnéticas (como

o ouvido é recepção de ondas sonoras) encobre o fato que

olhos são mais parecidos com braços que com ouvidos.

Buscam, não ficam parados. Isto é importante em casoscomo o é a Lua, a qual é visível, mas não audível. Foi bus­

cada, não foi negativamente percebida.

Culturas que não levantam o seu olhar para o céu,mas concentram sua atenção no solo (as chamadas "telú­

ricas") não buscam, não "produzem" a Lua. Culturas que

passam o tempo olhando o céu (as chamadas "urânicas"),

"pró-duzem" a Lua que passa a ocupar papel importante

em tais culturas. A Lua é, neste sentido, "produto" de

determinadas culturas. Como então posso afirmar que aNASA transformou a Lua de fenômeno natural em fenô­

meno cultural (em instrumento da astronáutica) ao tê­

Ia tocado? Se a Lua sempre tem sido produto da cultura

"urânica" que é a nossa? Para responder a tal pergunta,devo olhar a Lua mais de perto.

~e significa "olhar de perto"? Pode significar

aproximar-se da Lua subindo montanha ou em foguete.

Pode significar aproximá-Ia com telescópio e truques se­

melhantes. Mas não preciso significar isto. Como a Lua

não é um dado, mas um buscado pela atenção dada a ela

"olhá-Ia de perto" pode significar olhá-Ia com maior aten­

ção para vê-Ia mais claramente. Pois se, em noites claras,

eu for olhá-Ia com tal maior atenção, verei porque a vejo

enquanto fenômeno da natureza. Não posso vê-Ia quan­

do e onde quero. Embora deva querer vê-Ia para vê-Ia,

tal querer meu é condicionado pela própria Lua. A Lua

é provocada pelo meu querer vê-Ia, mas tal querer se dá

dentro das regras de jogo da própria Lua. A Lua impõe

sobre mim suas próprias regras de jogo. Por isso, é difícil

duvidar dela e manipulá-Ia. A Lua não é minha imagina­

ção, é uma coisa da natureza.

Meu olhar provou que a Lua não é imaginação mi­

nha, mas por enquanto nada provou quanto ao seu ser

natureza ou cultura. Sim, provou-o. A lua é cabeçuda.

Impõe suas regras de jogo. Só vejo onde ela está por uma

necessidade dela própria, necessidade esta chamada "leisda natureza". As coisas da cultura não são assim cabeçu­

das. Estão onde devem estar para servir-me. Se quero ver

meus sapatos, olho na direção em que devem estar, vejo­

os e utilizo-me deles. Isto é a essência da cultura. Se quero

ver a Lua, sou obrigado a olhar na direção em que ela está

por necessidade. Isto é a essência da natureza. Por isso,

vejo a Lua enquanto fenômeno da natureza, embora saiba

que atualmente a Lua não mais está onde está por neces­

sidade, mas agora está onde deve estar para servir de pIa­

taforma para viagens rumo a Vênus. Ainda não sou capaz

de ver a utilidade da Lua. Vejo-a cabeçudamente inútil.

Vejo-a como se fosse ainda satélite natural da Terra.Mas meu olhar não deu resposta satisfatória à mi­

nha pergunta. Não perguntei porque vejo a Lua como

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80 Naturabnente VlI,f:M fiL U S S ER 81

coisa natural a despeito da NASA, mas porque a vejo as­

sim a despeito do fato de ser ela, desde sempre, produto

do aspecto "urâníco" da minha cultura. Não perguntei,

portanto, pela minha incapacidade de integrar conheci­mento novo, mas pela minha incapacidade de rememorar

origens. Devo ajudar meu olhar para provocá-Io a dar res­

posta a uma pergunta assim difícil. Por que não vejo que aLua foi originalmente provocada por minha cultura, mas

a vejo como se fosse dada? A resposta começa a articular­

se. Porque sou ambivalente quanto à minha cultura. De

um lado, admito que minha cultura é composta de coi­

sas que esperam, fielmente, serem por mim utilizadas. De

outro lado, devo admitir que não posso passar sem tais

coisas. Por isso, a Lua é o exato contrário dos meus sapa­

tos. A Lua é necessária, mas dispensável. Os sapatos são

deliberados (desnecessários), mas indispensáveis. A Lua

impõe suas regras sobre mim por sua cabeçuda necessida­

de. Os sapatos me oprimem por sua desnecessária indis­

pensabilidade. Por isso, não posso ver que a Lua foi, ori­

ginalmente, provocada por minha cultura. Por que teria

minha cultura provocado algo necessário e dispensável?

É que minha visão é deformada por um preconceito

que faz parte do senso comum da minha cultura: tudo que

é necessário e dispensável chamo "natureza", tudo que é

desnecessário e indispensável chamo "cultura". Progressoé transformar coisas necessárias e dispensáveis em desne­cessárias e indispensáveis. Natureza é anterior à cultura,

e progresso é transformar natureza em cultura. ~andoa NASA tocou a Lua e a transformou em plataforma, foi

dado mais um passo em direção ao progresso.

T aI preconceito do senso comum é logicamente

contraditório, ontologicamente falso, existencialmente

insustentável, e deve ser abandonado. E, se conseguir afas­

tá-Io, verei a Lua mais claramente. Vejo agora, surpreso,

que a Lua, longe de ser fenômeno da natureza em vias detransformar-se em cultura, é, e sem foi fenômeno da cul­

tura que está começando a transformar-se em natureza.

Eis o que é, na realidade, cultura: conjunto de coisas ne­

cessárias que se tornam progressivamente mais indispen­

sáveis. E eis o que é, na realidade, natureza: conjunto de

coisas desnecessárias e dispensáveis. Natureza é produto

tardio e luxo da cultura. O meu olhar para a Lua o prova,

da seguinte maneira:

Imaginemos por um instante que a NASA tivesserealmente transformado a Lua de natureza em cultura.

Então seria um caso excepcionalmente feliz para um "re­torno à natureza". Bastaria cortar as verbas da NASA e a

Lua voltaria a ser assunto para poetas, e escaparia à com­

petência dos tecnocratas. Porque o romantismo (a partir

de Rousseau até inclusive os hippies) é isto: cortar as ver­bas da NASA. Mas terá sido isso um "retorno"? Não, terá

sido um avanço. Antes da NASA, a Lua era produto da

cultura "urânica" ocidental que tinha por meta projetada

a sua derradeira manipulação pela NASA. Os nossos an­

tepassados neolíticos olharam para a Lua (e assim a "pró­duziram") a fim de transformá-Ia, em última instância,

em plataforma para Vênus. E é isto que estamos vendo

quando para ela olhamos, nós, os seus descendentes: sím­bolo de fertilidade, deusa, satélite natural, são várias fa-

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82 Natural:rnente VILÉM FLUSSER 83

ses do caminho rumo à plataforma. Vemos a Lua semprecomo potencial plataforma, embora não o saibamos cons­

cientemente. A NASA está em germe dentro do primeiro

olhar dirigido rumo à Lua.

Pois cortar as verbas da NASA seria um passo além

da própria NASA. Transformaria a Lua em objeto de

''1'art pour l' art", desnecessário, dispensável, e cantável

por poetas. E a um tal objeto podemos chamar "objeto denatureza" em sentido existencialmente sustentável. Tal

transformação de cultura em natureza está se dando por

todos os cantos. Nos Alpes, nas praias, nos subúrbios das

grandes cidades. Os românticos do século 18 "descobri­

ram" a natureza (isto é, a inventaram), e os românticos donosso" fin de sciec1e" a estão realizando. Um dos métodos

de tal transformação se chama "ecologia aplicada". Se tal

método for aplicado à Lua, ela virará natureza. De manei­

ra que quando formos olhar, em noites claras, a Lua, e a

virmos enquanto fenômeno da natureza, estaremos ven­

do não o passado pré-NASA. da Lua, mas o seu estado

pós-NASA. A nossa visão será profética, isto é, inspirada

pelo romantismo. E, com efeito, é isto que sempre faze­mos: olhamos a Lua romanticamente. Por isso a vemos

como se já fosse objeto da natureza, e não como sabemos

que ela é: objeto de uma cultura que visa transformá-Ia

em plataforma.

Resposta perturbadora esta. A Lua é vista como ob­

jeto de natureza, isto é, como derradeiro produto da nos­

sa cultura. Como, em tal situação, engajar-me em cultura,

se ela tende a transformar-se em sua própria traição, em

romântica natureza? Tal pergunta, no entanto, não toca a

Lua. Ela continua imperturbável em seu caminho neces­

sário e por enquanto dispensável. Perguntar assim nada

adianta. Nada adianta levar até ela os olhos. "Lifi:no your

eyes to it, for it moves impotentIy Just as you and L"

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Montanhas

~em se aproxima de uma serra a partir de uma pla­nície, quem repentinamente suspeita que aquelas formas

nebulosamente azuis que apareceram no horizonte pode­

riam ser montanhas, pode nutrir os seguintes pensamen­

tos: suspeito que tais formas no horizonte são montanhas,

e não nuvens, embora pareçam ser nuvens, porque sei que

montanhas, vistas de longe, se parecem com nuvens. Se

não o soubesse, a suspeita de montanhas não me teria

ocorrido. Dentro de alguns minutos confirmarei ou não

a suspeita: verei se tais formas são montanhas ou nuvens.

Mas suponhamos que nunca tivesse visto montanhasnem tivesse ouvido falar nela: obviamente não teria dúvi­

da que tais formas no horizonte são nuvens. E, dentro de

alguns minutos, quando tais formas se tivessem revelado

não-nuvens, que veria? Não teria eu experiência tão extra­

ordinária e violenta que sofreria choque? Choque capaz

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86 Natural:mente VILÉM FLUSSER 87

de matar-me? ~em conhece apenas planícies, para quea paisagem é sempre plana, dificilmente sobreviverá aoconfronto com algo tão intensamente extraordinário,tão gigantescamente absurdo como o são as montanhas.

A emoção que sentimos ao aproximarmo-nos de umaserra é sombra pálida e tardia do sacro terror que de­vem ter vivenciado os nossos antepassados siberianosao terem vislumbrado, pela primeira vez, a cordilheirado planalto pamiriano. (Isto é, se for correta a hipótesede nossa ascendência dos povos da estepe.) Tal terrorprimordial deve estar soterrado no fundo do nosso in­consciente coletivo.

Olhar montanhas com olhos emprestados aos nô­mades da estepe não é, no entanto, a única maneira deolhá-Ias "sem preconceito". Outra é olhá-Ias com olhosde montanhês que nunca deixou sua terra. Como vê a

montanha quem conhece todas as trilhas que sobem seuflanco, toda a sua fauna e flora? Vê ele a montanha com

as trilhas, os animais e as plantas como nós a vemos? Ouvê ele trilhas, animais e plantas inseridos em estrututageral chamada "montanha"? De modo que nós vemosmontanha coberta de determinados acidentes, e ele vêdeterminadas coisas relacionadas entre si em forma de

montanha? Pergunta irrespondível, porque não podemosemprestar os olhos nem do montanhês, nem do nômade

da estepe. Estamos condenados a olhar montanhas pelaslentes dos preconceitos da nossa cultura. Vivemos, em

consequência disso, em um mundo no qual montanhas,vistas de longe, parecem nuvens.

Admitindo que nós vemos montanhas mediantepreconceitos culturais (ocidentalmente, século vinte­mente, burguesamente etc.), será que o montanhês e onômade as veem sem preconceito (ingenuamente)? Não,por certo. O montanhês as vê (se é que as vê em sentidorigoroso) condicionado por sua cultura. E o nômade foicondicionado por sua cultura para não esperar por elas, edaí seu choque. A "visão ingênua sem preconceitos" não évisão primitiva, original, ou anterior a toda cultura. É vi­são almejada por uma elite da cultura ocidental, produtotardio de todo um milenar desenvolvimento. A ingenui­dade é um ideal de uma cultura desenganada, ideal estealcançável por métodos deliberados. Ingenuidade nãodeliberada é inimaginável e não existe (nem em crianças).

Mas continua sendo fato: quem quiser ver monta­nhas como são, e não como determinados preconceitos

nos fazemcrer que são,deveprocurar vê-Iasingenuamente.E deve procurar fazê-Io deliberadamente, isto é, olhá-Ias,não pelos olhos de supostos "primitivos", mas por olhosconstruídos especialmente para visões ingênuas nos labo­ratórios dos especialistas em fenomenologia. Em outrostermos, seprocuro "conceder a palavra às montanhas paraque me revelem o que são", estou assumindo atitude con­dicionada por um determinado estágio, altamente sofisti­cado, de minha cultura. Tal aparente contradição pareceser inevitável,e não invalida necessariamente os resultados

porventura alcançadospela visão ingênua deliberada.Suponhamos, pois, que sou um burguês do século 20

que se aproxima do Jura pela estrada de Bourg-en-Bresse,

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para vê-lo como é, e não para vê-lo como o veem os turis­tas. (Turistas sendo burgueses do século 20 que se aproxi­mam do Jura pela estrada de Bourg-en-Bresse para vê-locomo deve ser conforme determinados modelos.) Minha

tarefa será a de conseguir visão deliberadamente ingênuado Jura, e isto implica a suspensão dos preconceitos quenutro a respeito dele. Mas aí posso verificar que tais pre­conceitos não são necessariamente empecilhos para ver aessência da montanha. Podem, pelo contrário, ser media­ções poderosas para a minha visão da "montanhidade".Até quando se trata de preconceitos superficiais que pa­recem não tocar o fenômeno da montanha mesma. Com

efeito, estou verificando exatamente isto ao me aproximardo Jura pela estrada. Nutro vários preconceitos a respeitodo Jura, e alguns de tais preconceitos se referem ao nome(ao mero nome) da serra. Ao tentar pôr entre parêntesesum de tais preconceitos (tarefa modesta e aparentementefacílima), acontece o seguinte:

Lembro-me do ginásio que existe um período nahistória da Terra que se chama "jurássico" e que ocupa aépoca central da Idade Média da Terra. Suponho que talnome se deve ao fato de terem servido as rocas do Jura às

primeiras pesquisas de tal período (o qual, se não estouenganado, está ligado aos gigantescos répteis). Pois issosignifica que esta serra que estou começando a subir seformou durante tal período, e que as rochas esbranqui­çadas que começam a luzir por entre as árvores das flores­tas multicolores serviam outrora a brontossauros botar

seus ovos, e a pterodáctilos a levantar voo como fazem

atualmente os jatos em busca do aeroporto de Genebra.(Apenas, suponho, não havia época, nem o lado Leman

para ser sobrevoado, nem os Alpes, nem a Europa.) Istonão é conhecimento, é salada mal digerida de informaçãoescolar assimilada superficialmente. É preconceito. E, noentanto, como que por encanto, o preconceito saiu doslivros para penetrar o mundo concreto. Não posso fazerde conta, sem mais nem menos, que o preconceito é des­contável quando olho estas montanhas. Já que me lem­brei dele, o pterodáctilo está tão presente nelas quanto osão as folhas de outono (embora ocupe ordem de realida­

de diferente). Posso fazer duas coisas:controlar meu pre­conceito a respeito do jurássico na próxima livraria em St.Claude, e depois olhar as montanhas com conhecimento

mais correto (embora necessariamente superficial e cien­tificamente sem interesse). Não alcançarei, destarte, visãoingênua das montanhas. Ou posso tentar reduzir o meu

preconceito, não totalmente, mas para chegar até a suaessência, a qual é esta: montanhas são coisas que têm his­

tória, ou, mais exatamente, biografia. ~e acontecerá seeu for olhar estas montanhas por um preconceito assimreduzido? Isto:

~ando digo que estas montanhas aqui têm umabiografia, quero dizer que são processos que se iniciampor sua formação ("nascimento"), acabam por seu nivela­mento ("morte") e passam por estágios nos quais aciden­

tes podem modifícá-Ios. Aparecem enquanto algo novo(como gatinhos recém-nascidos e automóveis zero qui­lômetro) envelhecem, são usados e abusados (como gato

88 Narural:mcntc VILÉM FLUSS.ER 89

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90 Natu1"a1:mentc VILÉM FLUSSER 91

que perdeu um olho ou carro de segunda mã.oque passoupor acidente de trânsito), e desaparecem da superfície(como gato morto e automóvel refundido). ~ando olhoestas montanhas agora, estou vendo apenas um momentoda sua biografia. E agora, que assumo tal preconceito a seurespeito, vejo-o claramente. Os montes do Jura estã.onaflor da idade, o Massif Central pelo qual passei ontem é

anciã.odecrépito, e os Alpes do outro lado do lago (dos

quais vejo os contornos violentos) estã.oem plena puber­dade. Não se trata mais de preconceito: vejo-o nitidamen­te no fenômeno mesmo. Mas isso é importante: não o te­ria visto, se não tivessenutrido o preconceito.

Vejo também que embora a montanha sejaprocessode estrutura diacrônica semelhante à do meu carro e da

minha mão, há esta diferença: minha própria biografia

engloba a do meu carro, e é englobada pela da monta­nha. Meu carro é acidente na minha vida, e minha vidaé acidente na história da montanha. Isto doravante não é

preconceito: posso vê-Io se olhar meu carro, minha mãoe esta montanha. Vejo concretamente que o carro é maisefêmero que a mão, e a mão mais que a montanha, e vejoque tal fato nada tem a ver com o tamanho e o material dacoisa. O carro é maior que meu corpo, mas vejo que possosobrevivê-lo.O carro é feito de aço que é mais durável queo material da montanha (para nã.o falar do material do

meu corpo), masvejo que a montanha sobreviverá ao car­ro. A diferença está no ritmo das três coisas (carro, mão,montanha), e eu vejo, por mais incrível que isto seja, taldiferença. Aquilo que chamamos "vida" é processo com

ritmo específico, e é por isto que vejo que a montanhanão é coisa viva: não por não ser feita com aminoácidosou por ser grande, mas por obedecer a ritmo diferente. Sepudesse penetrar tal ritmo, teria aberto acesso à essênciada montanha. Mas não consigo fazê-Io.

Penetrar um ritmo é co-vibrar, estar em "simpatia".Tal simpatia é considerada "conhecimento" pelo pitagó­ricos. Concebiam eles o mundo como contexto de coisas

,; que vibram em vários ritmos, e conhecimento como sim­patia com todos os ritmos. Tal conhecimento era possívelgraças à matemática e à música, porque estas são as estru­turas de todos os ritmos possíveis. Se olhar a montanhacomo a olho agora, estou vendo-a pitagoricamente: estoutentando descobrir a sua essência, isto é, seu ritmo. Mas

com esta diferença: não creio mais que posso chegar atélá matematicamente. Sei que a matematização da monta­nha terá por consequência várias ciências da natureza, enão a descoberta da essência da montanha. Porque a ma­temática nã.o é a estrutura de todos os ritmos possíveis,

mas apenas a do intelecto humano. ~anto à música,nada sei a respeito da sua eficiência como método paradescobrir essências de montanhas. Pouco tem sido ela

utilizada com este propósito no curso da minha cultura.Mas suspeito que ela tem ritmo humano tanto quando amatemática, já que é parente próximo desta. Olho a mon­tanha mais ou menos como o fez Pitágoras, sinto, comoele, o ritmo da montanha. Mas perdi a convicçã.ode quetal ritmo é articulável matematicamente, e que númerossão a essência da montanha. Se perder convicções é ser

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92 Naturabmentc VILÉM :FLUSSER 93

mais ingênuo, sou mais ingênuo que ele. Estamos, ele e eu,

nos dois extremos opostos do processo chamado "história

da ciência da natureza". Ele ignorava tudo a respeito de pte­

rodáctilos, e eu ignoro tudo a respeito da essência da mon­

tanha. A história da ciência é um processo ao longo do qual

diminui o saber "essencial" e aumenta a "ingenuidade".

Não posso entrar em simpatia com a montanha. Pois

tal incapacidade minha é uma maneira pela qual a monta­

nha se revela. Revela-se coisa cujo ritmo pode ser sentido,

medido, até manipulado, mas não absorvido existencial­

mente. Isto é um aspecto da essência da montanha: ser

coisa que obedece a ritmo existencialmente incaptável.

A fé pode remover montanhas, e buldôzer pode fazer o

mesmo. Mas nada pode fazer com que capte o seu ritmo.

Está lá, parada e muda, passiva em sua beleza majestosa,

e agora que subi nela vejo que suas rochas sincronizam a

sua diacronicidade em camadas paralelas, fazendo do "an­

terior" o "mais baixo". Vejo como se desfralda sob o sol deoutubro, com chamas das cores da sua floresta. Sei e sinto

a pulsação da qual é possuída, mas não posso pulsar comela. É demasiadamente diferente do meu ritmo. É isto

que tenho em mente quando digo "montanha": ritmo in­

captável a despeito de todo conhecimento. No entanto,se não existisse o conhecimento, tal essência não se teria

revelado. Tivesse eu suspendido o conhecimento, a mon­

tanha se teria calado a respeito do seu ritmo incaptável.

Não consegui suspender meu preconceito com res­

peito a uma determinada conotação de nome "Jura". T al­

vez não quis suspendê-lo? Tive eu razão por não querer

fazê-lo? ~e responda a tal pergunta quem conseguirpenetrar mais profundamente a essência da montanha.

Tarefa perfeitamente viável por múltiplos métodos dife­

rentes do meu (todos eles deliberados). ~anto a mim,

procurarei passar algum tempo no seio da montanha.

Não enquanto nômade, nem montanhês, nem criança,

nem turista, mas enquanto quem não consegue e nem

quer suspender determinados preconceitos a respeiro do

': Jura. Enquanro quem está condenado a viver com tais

preconceiros e, às vezes, está até gostando disso. Outro

tipo de ingenuidade?

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A falsa primavera

A paisagem que vejo quando olho pela janela nãoé como deve ser, e as coisas lá fora não sabem como se

comportar. É meados de fevereiro e a paisagem deveriaestar coberta pelo manto do inverno. Os prados deveriamdormir, protegidos pela neve. Os riachos e as cachoeirasdeveriam estar aguardando, parados e congelados, a for­ça libertadora do sol de março. Os pinheiros deveriamestar carregando, altivos, a sua ornamentação de cristaisbrilhantes. As macieiras deveriam parecer mortas, comseus ramos contorcidos, nus, clamando pela ressurreiçãoem forma de flor e folha. As corças e os veados deveriamter deixado seus rastros sobre a neve, já que deveriam terdescido até o vale em busca de alimento. As únicas coisas

móveis na paisagem vistas pela minha janela deveriam seruns corvos no centro do gramado coberto de neve, unspardais no terraço buscando migalhas e o cachorro felpu-

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do do vizinho afundando desajeitadamente as patas naneve. O azul do céu matinal deveria estar contrastando

com a brancura brilhante da paisagem na transparência

de um ar a dez graus abaixo de zero. Assim deveria ser a

cena. Mas a que vejo é diferente.

O prado na frente da minha casa é de uma cor cin­

zenta de palha, mas deixa entrever em determinados lu­

gares um leve tom verde, como se estivesse acordando de

um sonho perturbado. No flanco das montanhas as ca­

choeiras descem por rochas nuas que a neve descobriu ao

ter-se retirado para alturas acima de 1.200 m. Os pinhei­

ros são verdes como o são em julho. As macieiras, quan­

do olhadas de perto, parecem cobertas de leves suspeitas

de botões e brotos. E o terraço está cheio de pássaros de

canto, de peito azul, ou vermelho, ou amarelo, ou de bico

preto e amarelo. Não conheço as espécies, mas sei que de­

veriam estar na África, e não nos Alpes. Em suma, a pai­

sagem é como deveria ser em fins de março. Não, retifico.

Se estivéssemos realmente em fins de março, o prado es­

taria todo levemente verde, e as primeiras flores estariam

brotando nele. Os insetos estariam sobrevoando o prado,

de modo que os pássaros não estariam no meu terraço,

mas caçando os insetos. E os pinheiros não seriam verdes

como em julho, mas daquele verde-claro típico da prima­

vera. O que vejo pela janela não é primavera.

Não resta dúvida, a descrição da vista da minha ja­nela é aristotélica, mas não o é intencionalmente. Minha

paisagem impõe sobre a descrição as categorias aristotéli­

cas, aparentemente superadas há tantos séculos pelo pen-

samento do Ocidente. Se digo que a paisagem não é como

deve ser, estou falando em justiça ("diké"). Se digo que as

coisas não sabem o que fazer (o prado, as cachoeiras, os

pinheiros, os pássaros, as corças), não estou antropomor­

fizando as coisas. Estou vendo-as como se fossem órgãos

de um superorganismo vivo e, neste momento, doente

("cosmos"). ~ando estou descrevendo a desordem lá

fora, estou falando em ritmo ("pathos"). Em suma, o que

estou vendo pela minha janela é "natureza" no sentido

de "physis". O que vejo é que as coisas naturais têm difi­

culdade de encontrar o seu lugar justo na natureza, que,

portanto, a situação que vejo não é natural, e, por isso, é

falsa. A situação natural, agora em meados de fevereiro, é

a situação de inverno. O que vejo é falsa primavera.

Repito: não escolhi as categorias aristotélicas inten­

cionalmente. Como poderia ter feito isto ? Tais categorias

não são as minhas. Jamais diria intencionalmente que a

paisagem não é como deveria ser em fevereiro. Nas minhas

categorias, o "dever ser" se refere à cultura, e a natureza é

isenta de valores. De modo que, para mim, a paisagem não

é como deve ser, se houve erro na plantação das macieiras.

Jamais diria eu intencionalmente que as coisas não sabem

como se comportar. Nas minhas categorias, as coisas não

"sabem". Obedecem as regras de um jogo ("leis da natu­

reza") que as determinam. Jamais diria intencionalmente

que a primavera que vejo é "falsa". Nas minhas categorias,

a falsidade é propriedade de sentenças, ou, em sentido di­

ferente, é aspecto estético de obras humanas. E, intencio­

nalmente, jamais afirmaria que a paisagem ao meu redor

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98 Natural:mentc VILÉM FLUSSER 99

sofre de alguma injustiça por ter sido perturbada a sua or­

dem. Diria que há, no caso, várias "ordens" superpostas e

interferentes. Uma de tais ordens é a da rotação da Terra

em torno do seu eixo ("inverno - primavera"). Outra é a

dos ventos, determinada, entre outros fatores, por ptoces­

sos solares. "Explicaria", intencionalmente, a situação em

meu redor por irrupção de ventos oceânicos quentes nos

vales alpinos, irrupção pouco provável, mas perfeitamen­

te possível e, em tese, previsível. Não há, pois, nas minhas

categorias de captação da situação, lugar para conceitos

"morais" como é o da justiça.

Digo mais: creio saber como surgiram as categorias

aristotélicas, porque vingaram durante a Idade Média, e

porque e como foram superadas no Renascimento. Creio

que tais categorias são resultado de determinada práxis e

determinada ideologia característica da Antiguidade tar­

dia. A saber: da práxis artesanal e da ideologia latifundiá­

ria e mercantil ateniense. Creio que tais categorias conti­

nuaram em vigor durante a Idade Média, por terem sido

adaptadas à ideologia feudal (eclesiástica), para constitu­

írem apologia da estrutura social então vigente. E creio

que tais categorias foram substituídas por outras por uma

burguesia revolucionária com práxis e ideologia diferen­

tes. De modo que creio saber que as categorias aristoté­licas reRetem um "estar-no-mundo" humano histori­

camente determinado e há muito superado, e não uma

suposta "estrutura objetiva" da realidade. E, no entanto,

recorri a elas espontaneamente ao descrever a paisagem

que me cerca.

Não posso negar que as categorias foram impostassobre mim de alguma maneira pelas coisas mesmas. Os

pássaros no meu terraço, que lutam pelas migalhas queminha mulher lá colocou, sofrem "realmente" a falta de

insetos. "Realmente" não é "natural" que as macieiras se

abram agora, já que os botões vão morrer com o próxi­mo frio que fatalmente vQltará a cobri-Ias de neve. "Real­

mente" não é "justo" que a neve se tenha retirado para tão

alto, porque com a próxima nevada se formarão lençóis

sem substrato e, portanto, avalanches. De forma que "re­almente" pássaros, macieiras e neve estão desorientados.

Estão sendo "realmente" enganados e não "deveriam fa­

zer" o que estão fazendo. Não parece ser Aristóteles quemdiz isto, mas as coisas mesmas.

É clato que posso me safar do problema epistemo­lógico que está surgindo e atravessando meu caminho e

minha garganta, de pelo menos duas maneiras. Posso di­

zer que é Aristóteles, afinal de contas, quem está falando,

e não as coisas mesmas. Porque Aristóteles mora em mim,

bem perto da superfície da minha consciência, lá dorme

sono leve, e foi despertado pelos acontecimentos lá fora.

Os ventos oceânicos que invadiram meu vale provoca­

ram em mim recaída epistemológica de mais de dois mil

anos. E posso também dizer que os pássaros, as macieiras

e a neve de fato falam nas categorias aristotélicas, porque

Aristóteles formulou tais categorias em observações su­

perficiais como a minha. Mas que pássaros, macieiras e

neve passam a falar em categorias mais" avançadas", quan­do observados mais cuidadosamente e com métodos mais

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100 Natural:mente VILÉM FLUSSER 101

refinados. De modo que as categorias nas quais falam as

coisas dependem da atenção que lhes presto. E que lhes

estou prestando, ao descrever a paisagem, atenção "super­ficial" (aristotelizante). Ambas as maneiras de me safar do

problema são igualmente "boas", e, se analisadas, talvez

sejam redutíveis uma sobre a outra. Mas não me satisfa­

zem, e o problema persiste.

Não me satisfazem porque não posso crer que a

primavera que vejo é "falsa" apenas se eu a olhar superfi­

cialmente, e passa a ser fenômeno meteorológico perfei­tamente "normal" se eu a olhar mais atentamente. Creio

que a situação em meu redor é ambas as coisas: fenômeno

meteorológico normal e falsa primavera. E que isto não

depende da atenção que lhe presto. Apenas acontece

que vejo o fenômeno meteorológico se olhar a situação

de uma das duas maneiras, e falsa primavera se a olhar da

outra. Admito que tenho várias maneiras de olhar a coi­

sa, e que meu olhar provoca diferentes aspectos na coisa.

Mas não posso admitir que tais aspectos foram postos lá

por meus olhares. Os pássaros falam linguagem expressiva

demais, e imperativa demais para eu poder admitir isto.

No presente caso são os pássaros mesmos que exigem ser

olhados aristotelicamente. Se eu me transportar mental­

mente para o Brasil, o problema se tornará possivelmentemais claro.

No Brasil, o ritmo das estações não é perfeitamente

articulado. Não há, como aqui, diferença essencial entre

meados de fevereiro e fins de março. De maneira que a

"physis" é menos dramática (a Páscoa é menos patética),

e Aristóteles é menos plausível. Mas há, no Brasil, ao con­

trário daqui, divisão dramática entre dia e noite, por não

flutuar tanto, como aqui, a duração do dia ao longo do

ano. Pois imaginemos que, em São Paulo, em determina­

da noite, o sol nasça às três horas da manhã, mas de forma

que se possa ver que se porá de novo dentro de meia hora.

Não seria acontecimento impossível no sentido rigoroso

do termo. Apenas acontecimento infinitamente menos

provável que a irrupção do vento oceânico nos vales al­

pinos. Se trataria de falsa manhã, muito mais falsa que a

falsa primavera aqui descrita, por muito menos provável,

mas de acontecimento do mesmo tipo. ~e acontece­ria? Ficaríamos todos loucos, os homens e as coisas. Em

nada adiantaria dizer que a loucura não é razoável, que

é primitiva, e que o fenômeno é perfeitamente explicá­

vel quando observado mais atentamente. ~e houve, porexemplo, interferência da estrela "Proxima Centauri" no

nosso sistema solar, muito rara, mas em tese perfeitamen­

te previsível. ~e se trata, pois, de fenômeno normal, que

confirma, e não invalida, as categorias da astronomia. Um

argumento assim não adiantaria. Ficaríamos loucos todos

a despeito dele. Porque embora o argumento seja "verda­deiro", a manhã continua sendo falsa.

No caso hipotético da falsa manhã paulista, a lingua­

gem do Sol não imporia sobre nós categorias aristotélicas

(como faz a falsa primavera), senão categorias muito mais

antigas. Categorias primordiais do tipo "Rá", e "Aton", e

"Marduk" e "Chemech". Mitos solares. Por ter rompido

o Sol na falsa manhã paulista, tais categorias mÍticas pri-

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102 Natllrahmente

mordiais, ficaríamos loucos. E por ter rompido o vento

aqui apenas categorias aristotélicas, não ficamos loucos,

apenas desnorteados. Pois todas as categorias (as míticas,as aristotélicas, as da ciência moderna, e outras) são for­

mas nossas de ver as coisas. Historicamente explicáveis

como produtos da dialética entre práxis e ideologia. Mas

nem por isto aleatoriamente impostas sobre as coisas. Pelocontrário, reveladoras de determinadas camadas nas coi­

sas. No entanto, curiosamente reveladoras. As categorias

espelham "algo" das coisas, mas o fazem, todas, de forma

aproximada. As coisas podem romper as categorias: todas.

Pode haver falsa manhã e falsa primavera, e pedras podem

cair com aceleração não geométrica, em suma: todas as

categorias podem ser "falsificadas" pelas coisas. ~andoisto se dá, ficamos desnorteados, ou enlouquecemos, ou

simplesmente elaboramos novas categorias. Igualmente

"falsificáveis". E a nossa reação às falsificações dependerá

da profundidade das camadas na nossa consciência (e nas

coisas), nas quais as categorias estão localizadas.

Não vivemos, pois, em uma, mas em muitas natu­

rezas. Na natureza captável pelas categorias da nossa ci­

ência da natureza. Na "physis" aristotélica, na natureza

cheia de deuses, na natureza criada por Deus. Todas essas

naturezas estão lá, fora da janela, mas também cá dentro.

Interferem, "realmente", uma na outra. E, por vezes, uma

delas predomina. Como, neste momento, está predomi­

nado a "physis" aristotélica por ter sido rompida na forma

da falsa primavera. Irrompeu, por ter sido rompida. E isto

não é mais uma "explicação", mas depoimento de vivên­cia concreta.

Prados

~ando os observo, recortados na massa compac­ta da floresta, formando clareiras de suave luz na som­

bra misteriosa que os cerca, não é tanto em Heidegger, o

glorificador dos prados, que penso. (Embora não tenhaa certeza se o leitor brasileiro se dá conta que "Heideg­

ger" significa" cultivador das clareiras na floresta".) Penso

mais no seb'lwdo verso das Metamorfoses, onde é descrita

a situação na Idade de Ouro: "Sponte sua sine lege fidem

rectumque colebant", isto é, "espontaneamente, sem lei,

cultivavam a fé e aquilo que é certo". Lido no seu contex­

to, e lido no ginásio, o verso impressiona pela beleza da

sua música, pela elegância das suas palavras, e pela gran­

diosidade do seu ritmo. E quanto ao seu significado se­

mântico, este parece estar ligado às últimas palavras do

verso precedente: "quae vindice nuHo" (na ausência de

juízes). Mas relembrado o verso durante a observação de

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104 Naturabnente VILJ~M FLVSSER 105

prados, a sua carga semântíca adquire dimensões novas.E é pratícamente inevitável relembrá-lo para quem tem"cultura clássica",já que se trata de verso que se gravouprofundamente na sua mente.

Relembrando o verso assim, toda palavra vai adqui­rindo uma aura de significados que penetra a visão doprado. Merece ser analisada. Mas a palavra decisiva é a úl­tima: "colebant". Duvido que sejapossível, na atualidade,traduzi-Ia adequadamente. Perdemos a vivência do verbo"colere", embora possamos ainda vivenciar dois dos seus

substantivos derivados: "cultus e "cultura". Dizer que"colere" significa "colher", ou "cultivar", ou "cultuar", ou"esperar por", é não ter compreendido o seu clima. Porcerto; o clima é de agrícultura, é estético e religioso, e ésubmisso, mas há, em tal clima, algo mais que nos escapa.Se o verso afirma que os nossos mÍtícos maiores "colhiama fé e o certo", é principalmente a esse algo que está alu­dindo. Mas o prado pode ajudar-nos a captar tal algo.

O prado ou o campo, em latim, é chamado "ager".Mas já que "ager" e "actio" são os substantivos do verbo"agere", talvez seria melhor dizer que, para os romanos,prado e campo eram "campos de ação", isto é, campos debatalha. Batalha contra que inimigo? Contra o própriocampo. A meta era dominar o campo. "Dominar", isto é,

submeter à casa ("domus"). ~em lutava no campo con­tra o campo era "dominus" (senhor da casa). Era "macho"("vir") e lutava com "machismo" ("virtus"). Em "virtude"

("virtus") de tal machismo o campo se submetia ao domí­nio ("imperium") da casa ("domus"). Tratava-se de ato·

sexual ("actio") pelo qual o campo ("ager") se tornava co­lhível (agricultura). Mas não imediatamente. Era precisoesperar para poder colher ("colere") aquilo que nasceráno campo ("natura"). Tal esperar e a esperança do senhorem sua virtude imperial e imperiosa eram "cultus". Emsuma, "colere" é a vitória, pacientemente esperada, da vir­tude dominadora e imperiosa sobre a natureza, e resultaem cultura.

O prado pacífico que observo, cercado do mistério

da floresta, vibra com o clima de tal significado do verbo"colere". É pacífico, por ser campo de batalha vitoriosa."Pax romana" é sinônimo de "Imperium romanum", em­bora tenhamos esquecido que pacifismo e imperialismose confundiam originalmente. O prado é pacífico, porquetem sido dominado pela virtude paciente há muito tem­

po. É difícil para nós captarmos, intelectualmente, queação e paixão, atividade e passividade, são os dois lados damesma atitude: da atitude que transforma natureza emcultura. Intelectualmente é difícil, mas é fácil vivencial-

.mente na contemplação do prado. O prado irradia a sín­tese pacífica de uma atividade e passividade milenar, istoé, irradia natureza domada.

As encostas da montanha, que agora carregam osprados cercados de florestas, outrora devem ter sido co­

bertas de floresta densa. Outrora, mas não sempre. Naúltima época glacial devem ter sido cobertas parcialmen­te de geleiras, e parcialmente de tundra. Nessa tundra,os nossos antepassados devem ter caçado renas e cavalos.Depois, a floresta avançava impiedosamente com o recuo

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106 Natural;mente VILÉM FLVSS.ER 107

do gelo, mas os nossos antepassados não recuaram, embo­

ra ameaçados de fome pelo desaparecimento dos animais

da tundra. Não eram animais, os nossos antepassados,

eram "domini", tinham virtude, agiam e tinha paciência,eram cultos. Não recuaram como recuaram os animais da

tundra, nem se adaptaram à floresta que avançava como

se adaptaram as espécies que agora habitam. Enfrentarama floresta, altivos e retos: "fidem rectumque colebant". E

a enfrentaram, não por terem sido obrigados a fazê-Io:

"sine lege". Enfrentaram-na por terem sido gente: "spon­

te sua". Espontaneamente, isto é, segundo a sua natureza

de homens. É, portanto, natural que tenham aberto cla­

reiras na floresta para dominá-Ia. Em virtude de terem

sido homens, é natural que nossos antepassados "esco­

lheram" = "excolebant" determinados lugares na floresta

para transformá-Ios em cultura, em prados.

Sabemos aproximadamente como agiam. Avan­

çavam contra a floresta com pedra e fogo. Mais difícil é

intuir como escolhiam. Para poder escolher determina­

do lugar em contexto dado, e para poder recusar todos os

demais lugares, é preciso estar além do contexto, vê-Io de

fora. A dificuldade que temos é a de intuir tal transcen­

dência em gente tão "primitiva" como presumimos terem

sido os nossos antepassados. É que tendemos a compará­

los com os indígenas atuais, e nem sequer avaliam,os bem

como os indígenas atuais estão no mundo. Esses indíge­

nas que vivem em nível paleolítico, como os nossos an­

tepassados dominadores da floresta, seguramente enfren­

tam a natureza pela mesma transcendência pela qual nós

a enfrentamos. Mas, assim mesmo, não exemplificam o

estar-no-mundo dos nossos maiores. Representam, pro­

vavelmente, um modo de vida regressivo, e certamente

um modo de vida ultrapassado pela maioria da huma­

nidade. Os nossos antepassados, pelo contrário, eram

vanguarda do exército do espíriro humano que avançava

contra a natureza. A pedra e o fogo eram armas por elesinventadas e elaboradas revolucionariamente, e a ideia

do prado a ser escolhido e cultivado era fruto de fantasia

revolucionária, utópica e previamente jamais imaginada.Não eram primitivos, no sentido de terem sido menos so­

fisticados na sua reflexão ou na sua práxis que as geraçõespresentes. Pelo contrário, se procurarmos intuir sua ima­

ginação, sua disciplina e seu rigor de pensamento e ação(por exemplo, se procurarmos intuir a mente do inventor

do arco), devemos concluir que suas capacidades mentaisnada deviam às da nossa mais refinada elite.

Temos provas dos Edisons entre as supostas "hor­

das" desbravadoras de prados (cerâmica, limas de pedra,

agulhas de osso). Somos obrigados a admitir os Einsteins

entre eles (os que calculavam o trajeto da flecha e o princí­

pio da cunha). Temos provas dos seus Picassos (a elegân­

cia dos ornamentos). Somos obrigados a admitir os seus

Kants (os que criticavam o princípio da cunha e a elegân­

cia dos ornamentos), e os seus Kafkas (os que procuravam

um sentido por trás de tal ação e paixão). Devemos, pois,

imaginar os diálogos em rorno das fogueiras nos prados

recém-cultivados mais como reuniões de pesquisa e re­

flexão avançadas, e menos como os "potlachs" atuais dos

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108 Natural:menteVILÉM FLUSSER 109

Índios nas Aleutas. Do contrário, não compreenderemos

a elegância, a perfeição funcional e a suavidade arrojada

dos prados nas encostas da montanha. Aquilo que OvÍ­dio chama de "fidem et rectum". E a observação do prado

permitirá também penetrar um pouco no clima religiosodos nossos antepassados. A saber: o que OvÍdio tinha em

mente ao dizer que os nossos antepassados da Idade deOuro "fidem colebant" (cultuavam a fe).

O termo "rectum" ovidiano não nos causa demasia­

da dificuldade, porque o prado prova estar no lugar certo,

correto, adequado. O critério da "retidão", que, de acordocom OvÍdio, os nossos antepassados aplicavam esponta­

neamente, é critério econômico, técnico, pragmático,

metódico, pelo qual os nossos antepassados superavam a

caça e se iniciavam na agricultura. É o critério tecnocrá­

tico que marca a passagem do paleolítico para o neolítico(da Idade de Ouro para a Idade de Prata). (Embora OvÍ­dio talvez não tenha exatamente isto em mente. Porque

"rectum", para os romanos, faz parte do trinômio "pul­chre, bene, recte" (belo, bom, correto), portanto, implica

a noção da verdade). Mas, seja como for, podemos con­

cordar com OvÍdio que o prado observado confirma queum dos critérios da escolha na transformação da natureza

em cultura foi o da adequação às metas econômicas visa­

das. A prova disso é que os prados continuam funcionan­do economicamente até os nossos dias, e que o agricultor

montanhês que os habita vive deles, e muito bem, comodeles viviam os nossos antepassados. O problema é, repi­

to, o de saber o significado do segundo critério, chamado

por OvÍdio de "fides".

Mas o prado, se consultado, dá a resposta. Embora

saibamos ser ele produto da cultura, e embora possamosdescobrir na sua "Gestalt" e nos seus mínimos detalhes a

mão e o espírito humanos, não podemos negar ser ele par­

te integrada da natureza. Digo mais: a vivência do prado,da sua erva, das suas flores, dos seus insetos e até das vacas

que nele pastam é uma das mais intensas vivências de na­

tureza que podemos ter, e deitar num prado ensolaradoé entrar em comunhão com a natureza. Tal vivência não

é facilmente explicável. Não, por exemplo, dizendo que

° prado emana o clima de natureza intensificada por ter

sido conquistado há tantos milhares de anos, e que um

bairro industrial emana o clima de antinatureza, por ser

conquista recente. Isto não explica a vivência, porque a

horta que cerca a casa camponesa no prado é igualmente

antiga, mas não nos impressiona sendo natureza. Não é a

sua idade, nem a sua localização, nem a sua flora a fauna,

nem aspectos da mesma ordem que tàzem com que o pra­do, por ser cultura, é natureza intensificada. É, o critério

de acordo com o qual foi escolhido para deixar de ser flo­

resta e passar a ser prado. A saber: ".fides".

Em virtude de serem homens, os nossos antepassa­

dos tinham ".fides", isto é, eram .fiéis a si próprios, à sua

própria natureza, e à natureza que os cercava. Eram-no es­

pontaneamente, sem dogma nem ideologia ("sine lege").

Viviam de acordo e em acordo consigo e com o mundo no

qual estavam (Idade de Ouro). Esta era a sua religiosidade

("fides''): ser fiel ao que sou e ao que me cerca. Mas tal

fidelidade não é, como tendemos a pensar, "adoração pri-

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110 Naturahmente VILÉM FLUSSER 111

mitiva da natureza". Não é um render-se ("super-stitio" àsforças da natureza. Porque tal rendição não é natural aohomem e, portanto, não é fidelidade à natureza humana.Ser fiel a sipróprio, para o homem, é ir contra a natureza,utilizar o critério do "rectum". A natureza não é como

deve ser, e deve ser retificada, e isto é atitude de fidelidade

à natureza humana. Portanto, "fidem rectumque" não écontradição, mas complemento. "Pides" é o aspecto pas­sional, paciente e passivo, "rectum" o aspecto dramático,ativista e ativo da virtude humana, pela qual a naturezaé transformada em cultura. O prado é como é (a saber:natureza intensificada) por ser articulação da fidelidade ànatureza. Ao terem transformado os nossos antepassadosa floresta em prado, provocaram nela a essência natural ea salientaram. Continuavam fiéis a ela. O prado, por sercultura (e não a despeito de ser cultura), é essencialmentenatureza. Porque foi produzido sob o critério de "fides".Sob o critério de uma religiosidade integrada.

Os nossos antepassados não eram paisagistas. Nãovisavam integrar a cultura na natureza. Não sentiam con­tradição entre cultura e natureza. Não "fidem rectumquecolebant", isto é, sintetizavam fé com tecnologia, e, aoproduzirem cultura, revelavam a essência da natureza.Não eram, como os paisagistas, alienados da natureza emprocura da superação da alienação por ação deliberada.Para eles, cultura era o que é natural ao homem e,portan­to, apropriado à natureza toda. E podemos nós, seus des­cendentes alienados, sorver ainda um pouco a sua inte­

gração característica da Idade de Ouro, ao deitarmos em

prado por elescriado há tantos milhares de anos. O pradonos permite (como permitiu a Ovídio) captar também osignificado do primeiro verso do epos: "Áurea prima satãest aetas quae vindice nullo". (No início foi semeada aIdade de Ouro, e não havia juízes.)

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Ventos

Em certas noites, o vento cerca minha casa com fú­

ria desesperada, por não poder derrubá-Ia, ou pelo menos

entrar nela por alguma janela ou porta entreaberta. Em

tais noites, minha casa se transforma naquele castelo for­

tificado que resiste aos elementos do qual trata tanta li­

teratura passada. Efetivamente, sinto-me abrigado e em

paz comigo mesmo e com o mundo, enquanto o vento

procura sacudir os alicerces da casa. Sei que o vento não

conseguirá entrar, e que nisto se distingue de ladrões e da

polícia secreta. Tenho confiança na solidez da construção

da casa (cultura), com relação à força enorme, mas cega,

dos elementos da natureza. Mas não confio na construção

quando se trata de resistir a forças menores, mas dirigidas,como o são as da cultura. Minha casa não resistirá nem à

polícia, nem a ladrões, nem muito menos a bombas. Nem

sequer a uma ordem da Prefeitura para derrubá-Ia. Mas a

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114 Natural:mentc VILÉM FLUSSER 115

diferença entre vento e polícia não pode ser a diferençaentre cegueira e ação planejada. Para mim, o vento, em­bora cego, é previsível por boletim meteorológico, mas apolícia ataca de surpresa. É que o vento obedece a umaordem cega, mas publicamente conhecida e, portanto,manejável. A polícia, os ladrões e as bombas obedecema ordem parcialmente secretas, parcialmente muito malconhecidas, e parcialmente contraditórias e, portanto,não manejáveis. A Prefeitura, que obedece a ordens apa­rentemente emanadas do público, aparentemente emiteordens públicas, e me permite aparentemente adaptar-meàs suas ordens e influir nelas, é na realidade força contraa qual toda proteção é ineficiente. É que a força do ven­to é quantificável, mas ainda não é possível dizer-se que apolícia ataca em tal lugar e momento com força oito. Asciências da cultura ainda não alcançaram e talvez jamaisalcançarão a exatidão das ciências da natureza. O terroroutrora provocado pelo furacão o é agora pela bomba.Mas o terror da bomba é profano. O sacro terror foi supe­rado pela solidez da construção da casa.

No entanto, não sepode negar que algo da sacralida­

de perdida ainda cerca o vento. ~ando uiva em torno daminha casa posso ainda vivenciar, embora palidamente(porque protegido pela casa), a tremenda mensagem queo seu uivar outrora transmitia. Nas palavras de VrchIicky:"Jeho písen stáIá, veliky jest Alá" (seu canto constante,Alá é grande). Tal mensagem se deve, quiçá, ao fato de ovento ser coisa invisível.É coisa e sei disto perfeitamente.Pode ser medido, pesado e localizado no espaço. Mas é

invisível, e isto confunde o nosso conceito de "realida­

de" que é conceito visual, não auditivo. Confunde, porexemplo, a hierarquia imposta sobre a nossa mente pelasintaxe das nossas línguas. Tal hierarquia é nítida quandose trata de coisas visíveis.Na sentença "o sol brilha", nãohá dúvida de que "sol" é o sujeito e "brilha" o predicado.Mas a sentença "o vento uiva" é reversível. "Uivo" podeser o sujeito e "venta" o predicado. O vento é essencial­mente fenômeno acústico (onda sonora). O sol, no en­tanto, emite ondas, é o substantivo das ondas. O vento é

o próprio verbo, embora substantivado. A rigor, o ventoé impredicável. Dizer que o vento uiva é dizer tautologia.

Há coisas na natureza que são visíveis, mas inaudí­veis. O sol, a lua, as estrelas, em suma, as coisas celestes.Coisas "substantivas". Por serem inaudíveis, são distan­

tes e não podemos aproximar-nos delas. Porque a vistaé sentido que nos separa das coisas, e o ouvido sentidoque nos mergulha nelas. O mundo visto é circunstância,o mundo ouvido é mundo participado. As coisas da na­tureza que são audíveis, mas invisíveis, como o furacão ea brisa, penetram por nossas narinas, bocas e poros. Sãocoisas "verbais", não "substantivas". São vozes que noschamam. Correm em sentido contrário ao das nossas

próprias vozes e podem ser incomparavelmente mais po­derosas (como vento que uiva em torno da minha casa).No entanto, são essencialmente coisas do mesmo tipo dasnossas próprias vozes. Já que tais coisas nos penetram, ejá que são essencialmente como nós, são excessivamentepróximas para serem "contempladas". Portanto, não são

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116 Natural:mente VILÉM FLUSSER 117

apenas invisíveis, são inimagináveis. A nossa relação comtais coisas é dialógica, não imaginativa. Dois limites danatureza, duas "sacralidades": o limite das coisas visíveis,mas inaudÍveis, e o das coisas audíveis, mas invisíveis. O

primeiro é "substancial", e é sacro por ser inaproximável.O segundo é "verbal", e é sacro por ser inimaginável. Oprimeiro pode ser chamado "espectral", se por "espectro"entendermos aparição silenciosa. O segundo pode serchamado "espiritual", se por "espírito" entendermos so­pro inimaginável.

Ambas as "sacralidades" estão superadas tecnica­mente, e neste sentido a humanidade ultrapassou os limi­tes da natureza. A Lua, uma das coisasvisíveis,mas inau­

dÍveis, foi, como se diz, "conquistada". De deusa passou aplataforma. E os ventos, há muito, prope1em moinhos evelas. De espíritos que sopram como querem, passaram aforças que sopram como nós queremos. E ambas as "sa­cralidades" estão superadas teoricamente por síntese pro­fanizadora. O "vento" passa a ser "energia", o "sol" passaa ser "matéria", e um passa a ser aspecto teoricamentereversível do outro. Formalmente falando, inventamos a

linguagem da matemática, na qual não há mais substan­tivos nem verbos, mas apenas funções relacionais. E taisfunções funcionam. Na forma, por exemplo, da Bomba.Por síntese teórica que funciona na práxis profanamosambas as "sacralidades", os "espectros" viraram "espíri­tos", os "espíritos" viraram "espectros", e o nosso terroré doravante profano. É o terror das equações, e é sob o"equilíbrio do terror" que vivemos doravante.

Ambas as "sacralidades" estão superadas tecnica­mente e teoricamente. Mas não existencialmente. Em

certas noites, quando vento cerca minha casa com fúriadesesperada, posso ainda ouvir a voz da "sacralidade". Adespeito da solidez da construção da casa, e a despeitodas informações teóricas das quais disponho. Por certo,a solidez e a informação disponível interferem na men­sagem do vento. Mas não podem destruí-Ia. Interferemda seguinte maneira: minha mente é produto de duastradições contraditórias e jamais satisfatoriamente sinte­tizadas. Da tradição da voz e da tradição da imagem. Domandamento, e da ideia. Do verbo, e do substantivo. Da

decisão existencial, e da metafísica especulativa. Não pos­so simplificar o dilema ao dizer que a tradição do invisívelé a judia, e a do inaudÍvel é a grega. É dilema anterior àsduas culturas fundantes da minha mente. Já na cultura

judia há elementos imaginativos, embora os profetas setenham esforçado por expurgá-Ios. E já na cultura gregahá elementos dialógicos, embora o "logos" tenda semprea idealizar-se.O dilema entre "vento" e "coisaceleste" não

é o entre "olam habá" e "topos uranikós" (o mundo quevem e o lugar celeste), mas é o dilema muito anterior en­tre o estar-no-mundo de quem ouve, e o de quem vê, dequem é chamado e se decide, e de quem tira o véu e con­templa. Tal dilema é insuperável, porque assumir umadas alternativas é amputar metade da própria mente. Eisto interfere na recepção da mensagem do vento que uivaem torno da minha causa.

Mas não pode destruí-Ia. Porque o vento uiva, istoé, fala. Portanto, não é coisa. Coisas não falam. O vento

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118 Natural:mente VILÉM l~LUSSER 119

não é um algo; é um alguém a quem devo responder, é umTu que me chama para eu ser Eu. Por ser um Tu, o ventonão pode ser imaginado, concebido, conhecido e mani­

pulado. Deve ser ouvido, recebido, reconhecido e segui­do. ~ando o vento é imaginado, concebido, conhecidoe manipulado, como é na técnica e teoria, deixa de ser

vento, e passa a ser movimento de ar, é "objetivado". E ovento não é objeto: é meu outro. Não é; existe. Por isso,

diz Buber: "Deus não é: creio n'Ele". E Angelus Silesius:"Ich Weiss, dass ohne mich Gott nicht ein Nu kann le­

ben" = sei que sem mim Deus não pode viver sequer uminstante. O vento é vento para mim, se eu lhe permitirser vento. E se não lhe permitir, será movimento de ar,

e não vento. Se não lhe permitir ser vento, será proble­ma da aerodinâmica, parcialmente já resolvido. Mas selhe permitir ser vento, será enigma. Se não lhe permitirser vento, perderá a voz, e passará a ser vibração em de­cibéis manipuláveis. Será mudo. Mas agora, nesta noiteem que cerca minha casa com fúria desesperada, o vento

fala. Porque estou disposto a ouvi-lo. Por isso, aprece quediz "Chemá Israel,JHYH elohenu JHYH ekhád" (ouça,lutador por Deus, JHYH é nosso Deus, JI-IYH é um), éprece e não afirmação indicativa. Diz: "ouça!" O ventoque cerca minha casa com fúria desesperada nada indica;

impera. Se eu lhe permitir isto. Essa é a sua mensagem.A despeito de todas as interferências ainda a recebo emnoites como esta.

Por certo, as interferências fazem com que não rece­ba mais a mensagem em forma "ortodoxa". Nem judeus,

nem cristãos, nem muçulmanos (os que afirmam que es­tão recebendo a mensagem "ortodoxalmente") poderãoadmitir ser a mensagem que eu recebo a "verdadeira".Afirmarão que a voz do vento que cerca minha casa nãoé a verdadeira voz, e que eu estou sendo supersticioso aopermitir ao vento que fale. Mas o diálogo com tais orto­doxos é, para mim, difícil. Sou incapaz de ouvir as vozesque eles afirmam que ouvem (as "verdadeiras"), e devo

admitir que desconfio, não tanto do fato de que as ou­vem, quanto da veracidade de tais vozes. Porque duvidoque sepossa eliminar as interferências teóricas e técnicas a

ponto de permitir a tais vozes que falem. Suspeito que osortodoxos fazem violência contra as interferências parapoderem ouvir, e que, em consequência, o que ouvem éfalso. Mas não insisto muito em tal desconfiança, dúvidae suspeita minha. Estou disposto, com leve inveja, a ad­mitir hipoteticamente que elesouvem o que eu não ouço.~anto a mim, devo contentar-me com o enigma que

ouço no vento que uiva em torno de minha casa. ~emsabe, trata-se, para eles e para mim, do mesmo enigma?~e deve, mas não pode, ser decifrado?

O vento uiva, nesta noite, em torno da minha casa.

Sinto-me abrigado, porque sei que, ao contrário das for­ças nefastas da cultura, ele não pode entrar casa adentro.E simultaneamente procuro permitir, a despeito disso,

que o vento me fale. ~e me penetre sem penetrar-me.É a dialética entre o conhecimento que se fecha ao objeti­var, e o reconhecimento que se abre ao permitir ao outroque seja. Situação insustentável, porque minadora tanto

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120 Natura1:menre

do conhecimento quanto do reconhecimento. Situação

característica do fim de um jogo, ou do início de um jogonovo. Perda do conhecimento da fé, e da fé no conheci­

mento. Situação na qual o visível se torna invisível, e o

audível inaudível. Situação nossa, a despeito de tanta con­

versa relativa à "audiovisualidade". É preciso que o vento

uive furiosamente, para eu ainda poder ouvi-Io um pou­

co e palidamente. Mas sei que o vento que cerca minha

casa é, objetivamente falando, movimento de um gás, e sei

que, objetivamente falando, a palavra "gás" tem a mesma

raiz etimológica que a palavra "chaos". De maneira que

sei que o que cerca minha casa não tem fundamento, em­

bora seja meteotologicamente previsível e embora obede­

ça a regras cegas. Tal saber meu da falta de fundamento

por baixo das regras que ordenam a natureza é um saber

que já é quase um reconhecimento. É uma maneira de se

perder a fé no conhecimento pelo próprio conhecimento.

Não é, por certo, uma conquista da "fé", no significado

que os ortodoxos dão ao termo. Mas não deixa de ser uma

abertura. Porque o "caos" do qual o vento me fala não é o

acaso de um movimento browniano no gás em torno da

minha casa. É o "caos" uivante. E esta é a interpretação

que dou à mensagem do uivo: "and this is alI the wisdom

Ican reap: Icame like water, and like wind Igo".

Maravilhas

Sei que uma das "provas" tradicionais da existência

de Deus é que a natureza revela determinado propósito,

isto é, deliberação criadora. Não me lembro da primeira

vez em que fui exposto a tal argumento. Mas não duvido

que isto deve ter ocorrido durante um passeio, e que deveter sido minha ama que, ao apontar uma flor maravilhosa

ou a maravilhosa cor de um pássaro, iniciou minha ten­

ra mente à metafísica e à teologia. Deve ter sido minha

ama e não minha mãe, porque amas, mais que mães, ten­

dem para o romantismo. Nem me lembro quantas vezes

e sob que formas variadas o mesmo argumento em prol

de um Deus criador do mundo me foi repetido. Deve ter

sido muitas vezes e sob formas sempre mais complexas.

Mas lembro-me, isso sim, e nitidamente, da primeira vez

quando vivenciei a falsidade de tal "prova". Devia ter

uns oito anos e meu tio me levou à pesca. Mostrou-me

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122 Natural:mcnte VILÉM FLUSSER 123

como enfiar minhocas em anzóis e a práxis da minhocana minha mão fez com que a ideologia do Deus criadordo mundo maravilhoso se tenha evaporado para mimdefinitivamente. Deve ter sido uma vivência forte, mis­

tura de nojo, dó e sentimento de culpa, mas o que deveter prevalecido foi a descoberta da estupidez brutal deum suposto criador de minhocas, peixes e pescadores. Édifícil analisar, em retrospectiva, o que se passou entãona minha mente infantil, mas lembro-me perfeitamente

que deixei de crer em Deus-criador por piedade de Deus.Como se tivesse compreendido intuitivamente que a hi­pótese de um Deus-criador do mundo é contrária a todafé em um Deus do amor e da esperança. Intuitivamentedevo ter compreendido que o Deus responsável pela mor­te da minhoca exclui o Deus ao qual recomendava todanoite "todos os adultos e todas as crianças". É daro queestou falsificando a vivência infantil ao dizer que "opteicontra o Deus dos filósofos para poder conservar o Deusexistencial", mas são estas as palavras que me ocorrem natentativa de explicar o então vivenciado.

Não sei até que ponto a experiência relatada é típica,mas deve ser muito típica, já que aos oito anos não podehaver muita originalidade. Pois se é típico para a idade deoito anos recusar a "prova" da existência de Deus pela ob­servação da natureza, várias perguntas surgem. Tais per­

guntas podem ser ordenadas em três grupos: a) perguntassociológicas, b) teológicas e c) epistemológicas. As socio­lógicas perguntarão como, por que e quando a hipótesedo Deus-criador surgiu, de que forma conseguiu resistir

às críticas dos maiores de oito anos, e como tais críticas

podem ser formuladas a despeito da pressão formidávelexercida pela ideologia sobre crianças de oito anos. As

perguntas teológicas perguntarão como a fé consegueresistir ao peso morto do dogma de um Deus-criador,

como tal dogma pode ser absorvido por uma religiosida­de "dialógica", e porque deve ser mantido a despeito dasdificuldades morais, científicas e filosóficas insuperáveis.Mas são asperguntas epistemológicas que interessam nes­te momento em que estou sentado no meu terraço enso­larado, contemplando as maravilhas da natureza. Porquefoi a contemplação de tais maravilhas que motivou a lem­brança da "prova" de Deus enquanto criador da natureza.

A cena que estou contemplando (paisagemhibernaldespertando, hesitante, sob os raios provocadores de umsol de quase primavera) está encoberta por várias cama­das "explicativas" e "interpretativas" da minha cultura:por meus preconceitos. Contemplá-Ia significa exata­mente procurar retirar, ou furar, ou tornar transparentestais camadas encobridoras, a fim de vê-Ia imediatamente.

Tarefa desesperada, porque as mediações culturais que seinterpõem entre mim e a cena são a minha maneira deestar na cena. A comunicação imediata, a "unio místi­

ca", visada pela contemplação, é meta desesperada, porser, ela própria, preconceito imposto por minha cultura.Existem métodos, técnicas, exercícios, iogas, "reduçõesfenomenológicas" etc., que afirmam poder provocar talcomunicação imediata, e tal tecnicidade, por si só, já au­toriza desconfiarmos dela. Porque parece ser contradi-

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tório querer alcançar o contato imediato mediante algo.~erer deliberar a espontaneidade. Há um sabor empíri­co e pragmático em todo misticismo que o torna amargo.No entanto, contemplar no sentido de procurar deixarde explicar e interpretar não é empresa necessariamentefrustrada; embora não conduza à comunicação imediatacom o contemplado, pode remover preconceitos. Con­templação pode ser crítica não discursiva dos discursosexplicativos e interpretativos.

As camadas que encobrem a cena por mim contem­plada são projeções da minha mente, a qual, por sua vez, é

sistema programado pela história da minha cultura. Comefeito, um método eficiente para eu me tornar conscienteda minha programação é a crítica das camadas encobrido­ras da cena. Reconheço-me nas camadas encobridoras, edigo mais: sou tais camadas, sou esta específica coberturada cena. Ao procurar removê-Ia estou, com efeito, procu­rando retirar-me a mim próprio dela,para permitir à cenaque seja ela mesma. E ao procurar retirar-me, verifico oque sou: sistema historicamente programado para captara cena. Este é o primeiro passo da contemplação: verificarque a observação da natureza é uma crítica da história dacultura.

Posso distinguir, muito nitidamente nas camadasencobridoras, os famosos três tipos: as estéticas, as éticas eas explicativas. Graças ao primeiro tipo, estou vivencian­do a cena contemplada hiper-realisticamente, expressio­nÍstica e impressionisticamente, naturalística e romanti­camente, e assim por diante. A minha vivência concreta

da cena contemplada "repete a filogênese da arte". Não,por certo, "corretamente". Cometo anacronismos. E nãoestou à altura do meu tempo. No momento, por exem­

plo, estou vivenciando a cena "classicamente", e este é oprimeiro motivo de eu maravilhar-me: por que será quea cena contemplada "separece" com cenas setecentistas?

Graças às camadas éticas, estou sendo provocadopela cena a engajar-me nela ou contra ela. Não é tão fácildescobrir a estratificação de tais camadas, como no casodas estéticas, talvez por ser a história da "razão prática"contraditória e cheia de recaídas. Mas posso, isto sim,

distinguir três formas básicas, três "modelos de compor­tamento". A cena contemplada não é como deve ser, eeu devo mudá-Ia. Ou a cena contemplada me convida a

entregar-me a ela, ou a cena contemplada não passa debastidores do palco no qual ajo. Sem dúvida, o fato deeu ter me lembrado da minhoca faz com que eu esteja,no momento, assumindo o primeiro modelo de compor­tamento. Acho cruel e revoltante a cena que vejo, vibro

com justa ira, e gostaria "remould it nearer to the heart'sdesire". Mas sei, simultaneamente, que tal atitude revo­lucionária faz parte do meu programa. E isto é o segundomotivo de eu maravilhar-me: por que será que hoje a cename chama ao combate, e ontem a mesma cena me cha­

mou à paz do gozo passivo?A lembrança das minhas minhocas provoca, na con­

templação da cena, principalmente a crítica das camadasexplicativas. O fato é que, embora tais camadas pareçamse superar mutuamente, não se cancelam. E isto é o ter-

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126 Naturahmente VILÉM FLUSSER 127

ceiro e maior dos motivos de eu maravilhar-me. Sem dú­

vida, as camadas explicativas são "progressivas", e a mais

recente explica "melhor" que as mais antigas. "Melhor",

por sintetizar dialeticamente as mais antigas. Nisto as

camadas explicativas se distinguem estruturalmente dos

dois demais tipos. Não tem sentido dizer que a camada

hiper-realista permite vivenciar "melhor" a cena que a ca­

mada classicista, nem que o modelo de comportamento

revolucionário permite agir "melhor" sobre a cena que o

modelo neutralizante. Mas tem sentido dizer que a expli­

cação da origem da vida que contemplo na cena, e que é

oferecida por Jacques Monod, é "melhor" que a explica­

ção oferecida por Darwin, e muito "melhor" que a ofere-·

cida pela tese de que "Deus é o criador da vida". Pois por

que, se assim é, tais camadas superadas não desaparecem?Por que continuam a encobrir a cena? Esta é, com efeito,

a pergunta que foi provocada pela lembrança da minho­ca: por que, já sei explicar a vida em torno de mim muito

melhor, por que a explicação "Deus" continua a atrapa­lhar minha visão da cena?

Creio que tenho a resposta a tal pergunta, mas não

estou gostando dela. A explicação da origem da vida dada

por Jacques Monod é obviamente "formal": um jogo. Ele

próprio fala em "jogo da evolução do RNA" e aponta as

suas três regras: a stérica, a da complementariedade, e a do

cooperativismo. Dadas tais regras, a vida passa a ser expli­cável enquanto processo "necessário", no sentido curioso

de ser necessário o acaso. E não apenas passa a ser explicá­

vel, como, em tese, reconstruÍvel. ~em conhece o jogo,

pode criar vida e fazer com que evolua. Em tese. Pois é

isto que caracteriza o progresso das camadas explicativas.

As mais recentes são mais formais, mais do tipo "jogo",

que as anteriores, e por isto "melhores". As anteriores são

"piores", porque dizer que Deus criou a vida nada explica,

não aponta as regras do jogo. E é por isto que as cama­

das anteriores não podem ser retiradas. Por não aponta­

rem regras, encobrem melhor a cena. Por não explicarem

"bem", funcionam melhor enquanto camadas encobrido­

raso E por encobrirem melhor, tornam a cena visível. Na

explicação do tipo Monod, a cena se torna quase invisível:

não vejo mais a vida, vejo o jogo vazio. Para ver, preciso

de mediação grossa, por exemplo, Deus. Se "refino" Deus,

não vejo maisa cena.

Não estou gostando disso nem um pouco. Então

preciso de Deus enquanto criador do mundo para poder

vê-lo, embora saiba que Deus é uma péssima explicação

do mundo? Embora saiba que se assumo o Deus-criador

não posso amá-Ia? Preciso de Deus para que o mundo não

se evapore em formas vazias e transparentes, embora saiba

que o mundo "não evaporado" é um contexto aparente

que consiste em minhocas espetadas? E mais: não apenas

preciso e exijo tal Deus, como não posso me livrar dele?

Não estou gostando disso, e este meu não-gostar é a ma­ravilha de todas as maravilhas. O mundo é maravilhoso,

porque se o "descubro" desaparece, e se deixo encoberto

passa a ser horrível. E, finalmente, porque as duas alterna­

tivas não são opções verdadeiras: sou obrigado a ambas.

Tanto ao "formalismo" quanro ao "wormlike feeling".

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128 Natural:mente

Sou obrigado tanto a "refinar Deus", quanto a crer noCriador a despeito de todas as explicações progressivasdas quais disponho.

Sei perfeitamente que a natureza, se analisada, nãorevelará um propósito Divino, mas um jogo cego entreacaso e necessidade. E sinto que, se me decidir a ver pro­pósito na natureza, este será diabólico, não Divino. E si­multaneamente sei que se me livrar do Demiurgo (coisaque não posso), a natureza desaparecerá diante dos meusolhos. Essa total confusão epistemológica, ética e estéticaé minha maneira de encarar a natureza e minha maneira

de procurar superar o abismo que me separa dela. Não éisso maravilhoso? Sim, a natureza é maravilhosa: consiste

em minhocas espetadas nas quais admiro um Criador oqual sei que não passa de projeção de uma dialética creti­na entre acaso e necessidade.

Botões

Os ramos das macieiras debaixo do meu terraçomudaram desde ontem. ~ando os vi pela última vez pa­reciam elementos de uma estrutura vazia e eram, comoconvém a elementos de estrutura, cinzentos, nus e cla­

ros. Com efeito, a horta que cerca minha casa ofereciaontem visão "estrutural" e "formal" em sentido radical

de tais termos. Era contexto composto de estruturas dotipo "árvore", isto é, de formas ramificadas. Por certo, es­

sas "árvores" eram estruturas complexas. Os ramos nãoapenas partiam do tronco em lugares geometricamentedetermináveis, para depois se bifurcarem diversas vezes e

hierarquicamente. Havia também um elemento pertur­bador da ordem. Os ramos se contorciam, pareciam re­cruzar-se em vários lugares, e alguns dos ramos eram maisfortes que outros. Mas isto não os impedia de serviremde modelos de estrutura. Pelo contrário, por terem sido

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130 Naturabnente

v,Ü. 'cem, m II

estruturas complexas, serviam melhor para serem preen­

chidas de conteúdo. Minha visão das macieiras projetava

nelas vários conteúdos. Por exemplo: esta macieira aqui

"ilustrava" a estrutura da evolução da vida, esta outra a es­

trutura da genealogia das línguas flexionais, e esta terceira

a estrutura das ciências da natureza. Este ramo aqui "re­

presentava" o ramo dos vertebrados, e este outro o ramo

das línguas latinas, e este terceiro o ramo da química inor­

gânica. E a visão da minha horta permitia, ontem, jogo

divertidíssimo da fantasia. Esta macieira aqui não servia

para Darwin, porque seus ramos tendiam a formar copa

horizontal, mas servia muito bem à genealogia da casa

dos Habsburgos. E esta outra macieira era indicada para

a genealogia linguística, porque vários ramos se entrecru­

zavam para depois se separarem, e porque o tronco era

. composto de vários sub-troncos.

Tal jogo da fantasia não é mais possíveL A razão é

que choveu durante a noite, e hoje, quando abri a janela,

vi que os ramos das macieiras mudaram. Estão cobertos de

botões que sei (embora não os veja) que serão flores bran­

cas e rosadas. Por enquanto, são botões modestos, pertur­

bações leves e apenas visíveis da superfície lisa dos ramos.

Uma espécie de doença da pele das macieiras. Mas sei que

tal doença é sintoma de saúde. As macieiras despertaram

durante a noite para o seu destino. O "virtual" neles (a

flor) irrompeu, chegou à tona. Ao "virtual" se acrescen­

tou, durante a noite, o "necessário", e passou, esta manhã,

a ser "realidade". O milagre da transfiguração operou-se

nas macieiras durante a noite. O salto ontológico do me-

ramente possível para o efetivamente real foi dado. O fu­

turo se transformou em presente. Ontem, a flor estava no

futuro das macieiras, hoje está presente.Para as macieirassoou como trombeta durante a noite: estão todas muda­

das. Tal revolução ontológica não me permite mais vê­

Ias como se fossem estruturas. Sou obrigado, doravante,a vê-Ias como se fossem tendências rumo a um destino.

Tendências rumo à flor e ao fruto. Não que seu aspecto

estrutural tenha sido eliminado. Mas está "aufgehoben".

As estruturas agora sustentam um processo. Processo quevisa à meta determinada. Maçãs, e não a casa dos Habs­

burgos ou a genealogia das línguas são doravante o "con­

teúdo" da forma das macieiras. Tal milagre (porque todo

salto ontológico, toda revolução é milagre) se chama "pri­

mavera". E não importa que se repita todos os anos. Não

importa, no "kykIos tés genéseos", que se trata de cicio. O

que importa é que se trata de geração, do surgir de algonovo. A forma da geração, do processo revolucionário,

se superpõe sobre a forma do cicio, da repetição, e este é

o milagre. O eterno retorno como vontade do poder, o

botão de todo março como revolução, Nietzsche e Marx

como irmãos gêmeos, eis como sou obrigado a "ler" as mi­nhas macieiras.

O que vejo, pois, ao olhar minha horta, não é mais

visão estrutural, mas trágica: vejo o destino. Por isso disse

que sou obrigado a "ler" as macieiras. Está escrito nelas

("maqtub") que darão flor e fruto. Assim deverão ser, não

poderão fugir de si mesmas. "So musst du sein, dir kannst

du nicht entfliehen"). ("Worte, orphisch." Goethe.)

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132 Natural~mente VILÉM FLUSSER 133

Não vejo mais estruturas, vejo Édipo na minha horta.Compreendo, ao olhar os botões, porque Édipo, ao terprocurado tragicamente fugir do seu destino, na realida­de o cumpria. Matar o pai, dormir com a mãe, e arrancaros olhos da cara é tão fatal para Édipo, como é para asmacieiras irromper em botões, dar fIor e fruto, perder as

folhas e cristalizar-se em estrutura. ~erer evitar matar opai para Édipo é como querer evitar dar fIor para as ma­cieiras. Se não tivesse matado o pai, não teria sido Édipo,e se não tivessem irrompido botões, não seriam macieiras.Mas há esta diferença entre Édipo e minhas macieiras. Ahybris, o heroÍsmo condenável e condenado, é impossívelpara as macieiras. São trágicas sem sabê-lo. São Édipos in­conscientes. A sua tragédia o é para mim, não para elas.Mas quem sabe Schopenhauer tenha razão, e a tragédiaseja o oceano comum do qual macieiras e eu brotamos, avontade trágica que é representada pelas macieiras de umlado, e por mim de outro, nesta primavera?

Mas como tudo isso é possível?Como podem os bo­

tões impor sobre mim visão trágica do mundo? O própriotermo "destino" soa estranhamente aos meus ouvidos.

Não se adapta, de forma nenhuma, à minha vivência dotempo. Não penso "finalísticamente", mas "causalmente"ou "estruturalmente". O mundo não é, para mim, tragé­dia, mas teatro do absurdo. O futuro, para mim, não é

meta fatalmente "predeterminada", ma~horizonte abertode virtualidades realizáveis.Para mim, o caminho não é a

viagem em busca da destinação ("destino"), mas viagemaventurosa sem meta ("sentido"). "Futuração", para mim,

não é a descoberta do fim (da "finalidade"), mas a pros­

pecção do possível (da "liberdade"). Viver, para mim, nãoé encontrar meu sentido, mas dar sentido. O sentimento

trágico da vida e do mundo (o fatalismo) não me é estra­nho, mas é sentimento submerso. O que domina em mimé a vivência do absurdo. Para mim, "necessidade" não é

o fim, mas a causa. Para mim a natureza não é livro es­

crito que devo ler para poder viver "corretamente". Nãosou nem órfico nem maometano. Para mim, a natureza é

conjunto sem significado, que adquire significado apenasquando eu e os meus semelhantes o transformam em cul­tura. Para mim, é isto que distingue natureza da cultura:cultura é texto legível (mundo codificado) escrito sobre ofundo natural sem significado ("wertfrei = isento de valo­res"). Como podem os botões revolver, assim, as catego­rias impostas sobre mim por minha cultura antitrágica eantifatalista?

A questão pode ser facilmente driblada, se eu re­correr à lógica formal, mas nem por isso será resolvida.Posso dizer que, formalmente, existem três grupos de"explicações": (a) as finalísticas que dizem "para", (b)as causais que dizem "por causa" e (c) as estruturais quedizem "desta forma". Por exemplo: (a) pássaros fazem

ninhos para neles guardarem ovos, (b) pássaros fazemninhos por causa dos seus instintos e (c) pássaros fazemninhos em jorma de cones. O tipo (a) de explicação é omais satisfatório, porque torna o explicado algo que temsentido. O tipo (c) é o menos satisfatório, porque explica

apenas formalmente. A história do pensamento começa

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por explicações do tipo (a), vê-se obrigada a abandoná-Ias

em favor de explicações do tipo (b), e atual e penosamen­

te está abandonando também a causalidade em prol do

formalismo. A história do pensamento é, pois, a históriade explicações que se tornam menos satisfatórias com o

correr do tempo. Mas tal erosão da satisfação (e do signi­ficado) não acontece em todos os campos com o mesmo

ritmo. Dizer que "chove para molhar a terra" é explicação

atualmente inaceitável. Mas dizer que "animais têm olhos

para ver" ofende menos. Com efeito, a biologia é menosformal que física, porque expHcações finalistas são menos

ofensivas nos fenômenos dos quais trata. Os botões im­

põem sobre mim o sentimento trágico do mundo por se­

rem fenômenos biológicos, os quais explicações finalistasnão ofendem tanto. Mas posso me livrar facilmente de tal

sentimento trágico se me lembrar que atualmente já exis­

tem explicações causais e formais para botões que tornam

o sentimento trágico sentimento anacrônico, primitivo e" d "supera o .

A questão foi, destarte, driblada, mas de nenhuma

forma resolvida. Porque a resposta introduziu o conceito

da "satisfação" sem tê-Io elaborado. Éjustamente de satis­

fação que se trata. ~ando olho os botões que irrompe­ram nas minhas macieiras, explicações causais e formais

não me satisfazem. E a satisfação é o único critério existen­

cial da verdade. É o que Heidegger chama "das stimmt" =assim está de acordo. A "Stimmung" = o clima dos botões

e da primavera é o sentimento trágico do mundo. De ma­

neira que as "explicações" finalistas e o futuro enquanto

destino são "verdadeiros" no caso. Explicar os botões e a

primavera de forma causal ou estrutural é "explain them

away", desexplicá-los. E a questão é exatamente esta: por

que os botões e a primavera impõem sobre mim o sen­

timento trágico e evocam o futuro enquanto destino, a

despeito de todas as demais explicações que passam a ser

insatisfatórias e, portanto, nada explicam?Não sou nem órfico nem maometano, e a natureza

não é para miin nem conjunto de símbolos nem livro es­

crito por Alá. Não creio que é possível "decifrar" a natu­

reza e, assim, descobrir-lhe o seu "profundo significado",

nem creio que Alá, em seu amor pela humanidade, ditou

ao seu profeta um segundo livro, o Alcorão, que permite

a leitura do primeiro livro, o da natureza. Estou conven­

cido de que a natureza é conjunto sem significado e pro­

pósito e que a dignidade humana é dar um significado hu­

mano à natureza e impor-lhe propósitos humanos. Estou,

com efeito, convencido de que humanizar a natureza é

realizá-Ia, e que, sem ser humanizada, a natureza não pas­

sa de mera virtualidade humana. Por exemplo: estou con­

vencido de que os botões que estou contemplando nada

têm de trágico, mas visam a maçãs a serem transformadas

em suco pelo qual Merano é famosa. ~e as macieiras es­tão lá porque foram plantadas por horticultores. Fazem

parte, não da natureza, mas da cultura. Têm propósito e

sentido: o propósito e o sentido que lhes foram impostos

pelos horticultores, e, no entanto, os botões lá na minha

horta falam a sua própria linguagem, insofismável. Falam

em transfiguração, propósito trans-humano e trágico, e

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136 Natural:mcnte

falam em destino. E o que dizem é verdade. Embora se­

jam cultura, continuam sendo natureza neste significado

milagroso e misterioso do termo.

De maneira que não sei dar resposta à pergunta. Souvítima de duas honestidades ou desonestidades. É deso­

nesto negar que minha horta obedece a propósitos huma­

nos, que é uma realização da bela vontade humana que

se impõe sobre a mera virtualidade natural e, assim, lhe

confere valor e significado. E é desonesto negar que mi­

nha horta dá um significado à vida dos horticultores, um

significado que estes próprios "escolheram" (embora pro­

blematicamente). Mas é igualmente desonesto negar que

os botões que irromperam durante a noite passada articu­

lam forças fundamentais, e que os sucos que pulsam nos

ramos das macieiras pulsam também, tragicamente, nas

minhas veias, e nos propelem, as macieiras e a mim, rumo

a um destino inescapável. Não sei dar resposta à pergunta,

a não ser, talvez, esta: A "hybris edipiana", o heroÍsmo trá­

gico que é a dignidade humana, é fazer hortas e sucos de

maçã, em desafio desesperado ao suco trágico e misterioso

que ilTompe em certos momentos catastróficos como o é

o dos botões na primavera.

Neblina

o boletim meteorológico, irradiado às dez horas

da noite, há vários dias começa com a mesma sentença:

"depois da dissolução de neblinas matinais persistentes ..."E, efetivamente, toda manhã, ultimamente, acordo com

aquela luz leitosa de um sol que não consegue romper os

véus que o encobrem. Infelizmente, trata-se de situação

tão carregada de literatura e de chavões que tenho gran­de dificuldade em vivenciá-Ia concretamente. A neblina

matinal está "encoberta de densa neblina ideológica" que

precisa ser removida para eu poder ver a neblina não me­

tafórica lá fora. Esse esforço de remoção mostrará que é

possível dividir a humanidade em dois tipos: os que gos­

tam, e os que não gostam da luz difusa. Os "fãs" de histó­

rias misteriosas, e os que resolvem palavras cruzadas. Os

profundos e os iluministas. Os inspirados e os desconfia­

dos. Os que estão interessados no fundo geral e universal

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138 Natural:mente VILÉM Fl,USSER 139

do qual as coisas se destacam vagamente e os que estão

interessados nas diferenças pelas quais as coisas se distin­

guem. Em suma, os metafísicos e os fenomenologistas. O

primeiro tipo procura penetrar pela neblina, o segundo

procura removê-Ia. Por que o primeiro a afirma e o segun­

do a nega. São, creio, duas atitudes fundamentalmente

opostas, e entre elas se ergue o grande diviso r de águas quedivide a humanidade. Mas se trata de atitudes, não de si­

tuações diferentes. Todos os homens, por serem homens,

estão na neblina, queiram ou não queiram.

Pois eu não quero estar nela. Embora deva confessar

que não me é estranha a atitude dos "fãs" da neblina e que

sou repetidas vezes vítima da sedução exercida pelo "mis­

tério", optei pela atitude desconfiada. Remover neblinas,

e tentar mostrar que são neblinas e não algo, me parece

ser a única atitude digna. Optei contra a profundidade e

a favor da superficialidade. Porque creio que por trás da

neblina não se esconde algo profundo, mas que a neblina

é uma ilusão que encobre superfície concreta por trás da

qual nada se esconde. Isto não é, como parece, jogo de pa­

lavras. Ao contrário dos pensadores profundos, não creio

que a meta última seja chegar até o fundo da neblina, mas

que, depois de rasgada a neblina, começa a verdadeira ta­

refa: a de tentar apreender e compreender a superfície ex­

posta. O pensamento profundo me parece ser mais super­

ficial que o pensamento que procura captar a superfície

das coisas. Creio que a profundidade germânica da pri­

meira metade do século, por exemplo, é mais superficial

que a superficialidade anglo-saxônica do mesmo tempo.

Estou com Goethe quando diz: "Man suche nichts hin­

ter den Phaenomenen. Sie selbst sind die Lehre". (Nada

procuremos por trás dos fenômenos. Eles próprios são o

ensinamento.) Por isso, procurarei remover a neblina me­

tafórica que encobre a neblina matinal, para tentar vê-Iame sua concreticidade.

Moro em uma casa de cujo terraço se desfralda pa­

norama vasto. Vale amplo cercado de várias fileiras de

picos cobertos de geleiras. A vista avança das montanhas

mais próximas para os cumes majestosos no horizonte

em torno. Mas não hoje. Hoje, vejo apenas a horta que

cerca minha casa, e adivinho, vagamente, os contornos

dos pinheiros que cercam a horta. Meu horizonte é, hoje,estreito. Mas, ao dizer isto, duas dúvidas me assaltam. A

primeira diz que, não tivesse eu visto o panorama ontem,

não saberia hoje que meu horizonte é estreito. A segun­

da dúvida diz que todos os horizontes são igualmente

amplos por serem horizontes, isto é, limites do finito em

direção ao infinito. A primeira dúvida implica que a ne­

blina é limitação apenas para quem sabe ser ela neblina. A

segunda implica que querer ampliar horizontes removen­do neblinas é tarefa absurda. Ambas as dúvidas devem ser

consideradas sob o prisma da neblina concreta que cerca

minha casa, e a segunda antes da primeira.

Há anedota que conta da conquista de Siracusa pe­

los romanos. Um centurião penetrou a casa de Arquime­

des para convidá-Ia a ser engenheiro das legiões romanas.

Arquimedes recusou afirmando que não dispunha de

tempo para isso. Os problemas do círculo o absorviam.

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140 Narurabnente VILÉM FLUSSER 141

o centurião se admirou diante de tanta alienação: comopreocupar-se com círculos, quando o Império estava con­quistando o Orbis terrarum? "Justamente", respondiaArquimedes. "Pretendo mostrar que não adianta aumen­tar a circunferência de círculos porque a relação entrecircunferência e raio é constante." Em face de alienaçãotão subversiva, o centurião não podia deixar de matarArquimedes. A anedota não pode ser arquivada comoparábola do conflito entre engajamento em história eengajamento em formas. Porque o verdadeiro problema,colocado pela anedota, é este: se o progresso, visto formal­mente, não tem sentido, se ampliar horizontes é perma­necer parado na mesma forma, que sentido tem estudarformas? Em outros termos, se os círculos de Arquimedestornavam absurdas as máquinas bélicas romanas (emboratais máquinas se baseassem neles), o que estava fazendoArquimedes? Teoria pura? Superação da política pelacontemplação das formas? Sim, mas ao contemplar asformas, acaso Arquimedes não estava, ele também, am­pliando horizontes? Isto é, continuava parado na mesmaforma?O problema da anedota é este: o argumento arqui­médico contra o centurião pode ser virado contra o pró­prio Arquimedes. Não assim: o centurião é progressista eArquimedes reacionário alienado. Isto seria o argumentodo centurião romano. Mas assim: Arquimedes é tão pro­gressista,portanto absurdo, quanto o é o centurião roma­no. Ambos avançam dissipando neblinas. Apenas nebli­nas diferentes. Se o argumento arquimédico for correto,teoria é tão absurda quanto práxis, e resta, em Siracusa ehoje, apenas cinismo ou estoicismo.

A posição cínica perante a neblina que cerca minhacasa é esta: o horizonte que vejo hoje é tão bom quan­to o que vi ontem. O horizonte do caboclo nordestinoé tão bom quando o de um estudante em Harvard. E aposição estoica perante a neblina em torno de minha casa

é esta: se aceitar o horizonte de hoje como aceitei o deontem, estarei contente com ambos. O caboclo será fe­

liz, não se procurar ampliar seu horizonte, mas se procu­rar contentar-se. As posições cínica e estoica são lógica eexistencialmente inderrubáveis hoje como em Siracusa e,neste sentido, o argumento arquimédico contra o cenru­rião e contra o próprio Arquimedes continua perfeito. Asduas posições são a verdadeira superação da política, nãopela teoria, mas pela negação de valores. Mas são posiçõesinsustentáveis eticamente hoje tanto quanto em Siracusa,e a neblina em torno da minha casa dá a prova disto. Bas­ta eu sair do terraço e caminhar rumo aos pinheiros quediviso no horizonte. O horizonte cederá aos meus passos.Ontem, quando não havia neblina, o horizonte não teriacedido. O horizonte nebuloso é eticamente (praticamen­te) removível porque cede. O horizonte de visão daranão cede. São dois horizontes diferentes. O primeiro écondição indigna, pois me limita porque o permito. . Osegundo é condição digna, porque não posso ultrapassá­Ia. Por isso, devo me engajar em horizontes claros e con­tra nebulosos. Porque apenas depois de ter removido oshorizontes nebulosos verei os verdadeiros limites que mesão impostos. ~erer remover neblinas não é, pois, etica­mente, tarefa absurda. Porque não visa à "ampliação de

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horizontes" (isto, sim, seria absurdo), mas ao encontro

dos verdadeiros horizontes não amplificáveis. "Deside­

ologizar" não é libertar (isto, sim, seria absurdo), mas é

permitir às verdadeiras condições que apareçam.

A outra dúvida provocada pela minha neblina, a que

diz que neblina o é apenas para quem já sabe tratar-se de

neblina, não pode ser desprovada pragmaticamente como

a considerada. Porque a dúvida afirma que quem não é

morador da minha casa e, portanto, sabe do panorama de

ontem, não tem motivo para caminhar rumo aos pinhei­

ros. É, por assim dizer, cínico e estoico espontâneo, e não

deliberado. Aceita a limitação da neblina, e contenta-se e

adapta-se, porque a toma por verdadeira. A dúvida afir­

ma, com efeito, que quem é vítima de ideologia não pode

saber disto, já que toma sua ideologia por conhecimentoobjetivo. Isto é conhecida tese marxista. Por isso deve, de

acordo com o marxismo, toda desideologização partir da

classe opressora (a única que sabe se tratar de ideologia).

"A burguesia é a consciência do proletariado." E, por isso,

os oprimidos resistem aos esforços de desideologização:

são cínicos e estoicos esponteneamente. Exemplo: Che

Guevara e os camponeses bolivianos. Não existisse, pois,

contradição dentro da própria classe opressora (consci­

ência dialética da ideologia), não haveria jamais motivo

para remover ideologias. Todos os "ópios" funcionariam

eternamente, porque perfeitamente.Mas a neblina concreta em torno da minha casa

permite dissipar a dúvida da seguinte maneira: embora a

neblina concreta e a metafórica sejam fenômenos seme-

lhantes (ambas encobrem a realidade), a neblina concretaé fenômeno natural, e a metafórica fenômeno da cultura.

A concreta é dada, a metafórica feita. A concreta é um en­

cobrir-se da realidade pela própria realidade, a metafórica

é deliberada cobertura da realidade por fazedores de véus

("Schleiermacher"). De modo que devemos distinguir

entre dois tipos de "mistérios": a obscuridade da realidade

mesma, e a obscuridade feita por obscurantistas. Em ou­

tros termos, mesmo se conseguíssemos remover todas as

neblinas ideológicas, ainda não encontraríamos a super­

fície resplandecente da realidade, mas neblinas concretas

como a em torno da minha casa. A indignidade dos ideó­

Iogas não é, pois, a de obscurecerem a clareza da realida­

de, mas o mistério da realidade. Os marxistas primitivos

e ingênuos (não os autênticos e sofisticados) cometem o

erro de crer que desideologizar significa já desalienar da

realidade. Tal crença é, ela própria, ideologia. Desideolo­

gizar é, pelo contrário, abrir-se para neblinas concretas. É

neste sentido que Bloch pode dizer que a verdadeira re­

ligiosidade será possível apenas depois da dissipação das

religiões estabelecidas. É, no fundo, este o seu "princípio

esperança" .A neblina concreta em torno da minha casa não é

apenas para quem viu o panorama de ontem. Emana cli­

ma diferente. O clima de ontem foi o da clareza, na qual

apareciam as diferenças. O de hoje é o da luz difusa, na

qual as diferenças são borradas. Ontem foi "natural"

distinguir e hoje é "natural" mergulhar no indistinto.

Ontem foi a razão e hoje é a intuição que é "adequada"

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144 Natural:mente YILÉM FLUSSER 145

à cena. Embora eu não queira estar na neblina, embora

prefira o panorama de ontem, não posso esquivar-me doclima de hoje. Embora queira pertencer aos desconfiados,

não posso deixar de inspirar a nebulosidade concreta queme cerca. Justamente por ter tentado remover a neblina

metafórica, sou obrigado a permitir que a neblina concre­

ta me banhe e penetre por meus poros. E este é o "ensi­

namento do fenômeno" (para falar com Goethe): o sen­

timento religioso se impõe concretamente apenas depois

da tentativa de negar e remover os véus ideológicos dasreligiões estabelecidas.

Não sei se tem sentido falar-se em "religiosidade na­tural" provocada por climas como o é o da neblina em tor­

no da minha casa. Melhor talvez seria falar "religiosidade

transcultural", religiosidade depois da decepção com asreligiões feitas. A neblina em torno da minha casa não é,

autobiograficamente falando, anterior às neblinas ideoló­

gicas que obscurecem minha visão das coisas. É posterior

a elas, e visível depois de deliberado esforço para removê­

Ias. O autêntico "homo religiosus" não é "primitivo". O

"primitivo" (se é que existe) é vítima das ideologias maisgrotescas. O autêntico "homo religiosus" é um desconfia­

do (e um decepcionado). É o que descobriu que a remo­

ção das neblinas metafóricas resulta no mergulho em ne­

blinas concretas. ~em sabe é isto a dignidade: remover

neblinas metafóricas para mergulhar em concretas? Ser

antiobscurantista para poder mergulhar no verdadeiroescuro? Mas aí deve ser confessada a terrível dificuldade

de distinguir entre a obscuridade feita e a dada. Mas deve-

mos distinguir entre elas. Apenas graças à distinção (ra­

zão), podemos mergulhar na verdadeira neblina.

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Natura!: mente(uma espécie de conclusão)

Os ensaios contidos no presente livro não exigem,se tomados cada um por si, que o leitor seja a eles intro­duzido. Devem poder sustentar-se, cada um por si, peloseu próprio peso. E na medida em que não se sustentam,falham enquanto ensaios. Considerados cada um por si,os ensaios não formam uma totalidade. Em tal nível de

leitura podem ser lidos não importa em que sequência:são tão díspares quanto o são seus temas. Sob este prisma,o presente volume é coleção de ensaios, no sentido de co­lheita sem critério de escolha. A saber: coleção ocasional,fruto do acaso. Os assuntos dos quais os ensaios tratamocorreram ao autor no curso da sua vida, e foram porele assumidos na medida em que ocorreram: casualmen­te. ~em adquiriu o hábito de permitir a todo assuntoocasional ocupar o centro do interesse, e quem o tomapor pretexto para largar um fluxo de reflexões, conhece

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148 Natural:mcntcVILÉM FLUSSER 149

o fascínio exercido não importa por que encontro com

não importa que experiência (a qual passa a ser aventura).

Conhece, pois, o motivo do presente livro. Isto explica

também organicamente a desigualdade estilística dos en­

saios presentes. Cada ensaio tem o estilo imposto sobre

ele pelo seu assunto. Mas a dialética "assunto/estilo", ou

"conteúdo/forma", ptoblematiza tal afirmativa. É certo,

o assunto se impõe sobre o estilo. Igualmente certo é que

todo assunto é assunto apenas depois de ter sido assumi­

do de uma forma ou outra. A desigualdade estilística dos

presentes ensaios é, pois, consequência do jogo dialético

pelo qual várias experiências ocasionais se impuseram so­

bre o autor e por ele foram assumidas para serem assuntos

de ensaios. De maneira que nem os assuntos nem o estilo

dos presentes ensaios exigem explicação introdutiva. São

ocasionais, frutos do acaso do viver, e o acaso não pode

nem precisa ser explicado. Ocorre "naturalmente".

Mas o presente volume permite também leitura em

nível diferente. Já que esse nível, embora implícito nos

ensaios, não é explicitado neles, o autor se vê obrigado

a fazer esta conclusão explicativa. Ei-la. Fascinado pela

riqueza inesgotável de uma experiência concreta, e pelo

poder catalisador que toda experiência tem sobre o pensa­mento, o autor escreveu, no curso dos últimos anos, toda

uma série de ensaios do tipo contido no presente volume.

Tais ensaios foram, em grande parte, publicados em vá­rias revistas brasileiras, americanas, alemãs e francesas, e

especialmente no "Suplemento Literário" d'O Estado de

S. Paulo. O que impressionou o autor, em retrospectiva,

foi o fato de que os assuntos da totalidade dos ensaios são

experiências com coisas da cultura. É como se as experiên­

cias pelas quais o autor passou ao longo desses anos todostivessem sido exclusivamente encontros com a cultura

que nos cerca. Como se a natureza não tivesse existido

para ele, ou como se tivesse sido empurrada para o hori­

zonte da sua experiência cotidiana. Duas interpretações

desse fato se ofereciam: (a) o autor é "intelectual" e per­

deu o contatb com a natureza, e (b) a sociedade tecnológi­

ca e administradora, da qual o autor participa, perdeu tal

contato. Ambas as interpretações são provavelmente cor­retas, mas não satisfazem. Deve haver razão mais radical

e menos óbvia que faz com que o autor e a sociedade não

mais vivenciem a natureza, ou o façam excepcionalmente.

E tal razão deve estar ligada a uma mutação do conceito,

da vivência e do valor designados por "natureza", muta­ção em curso atualmente.

Para descobrir tal razão, ou pelo menos se aproxi­mar dela, o autor fez duas coisas: a) reuniu dez dos en­

saios já feitos em coleção publicada em Paris e chamada

"A força do cotidiano". Os ensaios escolhidos tratam de

experiências com coisas indubitavelmente culturais, com

instrumentos, tais como: bengalas, garrafas, canetas, ócu­

los, tapetes, muros, espelhos, livros, camas e automóveis.

O propósito da escolha foi o de ilustrar o poder exercido

pelos instrumentos (pela cultura) sobre a vida cotidiana.

Ilustrar como a cultura, longe de libertar o homem da de­

terminação pelas forças da natureza, se constitui em con­

dição determinadora. Portanto, em "segunda natureza".

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150 Natural:mcnte VILÉM FLUSSER 151

Destarte, procurou o autor ilustrar como o homem da

atualidade vivencia a cultura: não como algo feito, mascomo algo dado, portanto, como natureza. O homem

atual perdeu o contato com a natureza no significado tra­dicional do termo (ou está perdendo) porque a culturaestá assumindo existencialmente o impacto da naturezano significado tradicional do termo; b) não satisfeito com

tal "prova negativa", o autor procurou abrir-se, de iníciodeliberadamente, depois sempre mais espontaneamente,a experiências tidas por naturais no significado tradicio­nal do termo. O resultado são os presentes ensaios. Opropósito inicial era a suspeita de que tais experiênciasnaturais não se distinguem em seu impacto existencialdas culturais, e que, portanto, a distinção ontológica en­tre natureza e cultura não se sustenta existencialmente

no presente contexto. De acordo com tal suspeita, a dis­tinção ontológica a ser feita atualmente seria entre expe­riências determinantes e experiências libertadoras, duascategorias ontológicas que desprezam as tradicionais de

"natureza/cultura", ou "dado/feito". Agora, ao reconsi­derar os ensaios aqui apresentados, o autor é incapaz dedizer se essa suspeita inicial foi confirmada ou refutadapela sua pesquisa.

Isto não é, na opinião do autor, necessariamente

defeito. "Ensaio" é isto: tentativa de ver em que dá umahipótese de trabalho. E o interessante do ensaio não éo resultado, a hipótese confirmada ou refutada. O inte­

ressante é o que se mostra ao longo da experiência em­preendida. A suspeita inicial pode ter sido confirmada,

refutada ou deixada aberta. O que o autor espera é que

muito aspecto por ele não suspeitado surgiu ao longo dosensaios. Porque a suspeita que era a hipótese inicial nãoera o único, nem o mais importante motivo para os pre­sentes ensaios. O fundamental motivo era, como sempre,

o fascínio exercido pelas experiências relatadas.No entanto, a suspeita inicial confere aos ensaios

certa unidade. Não apenas no sentido de tratarem de coi­sas tidas por' naturais pelo senso comum e pela tradição,mas também no sentido de eles formarem uma sequência

discursiva pela seguinte razão: no esforço de confirmarou refutar sua suspeita, o autor submetia as suas experi­ências com coisas naturais a testes sucessivos.Estabelecia,

nesses testes, várias e sucessivasnegações da posição "na­tureza". Assim, em "Chuva", procurou negar a naturezapela "cultura", no significado de "manipulação planeja-d "E "C d " , I I" h "a. .mero , procurou nega- a pe o estran o , no

significado da natureza ser "natural", e do seu oposto ser"introduzido de fora". Em "Vacas",procurou negá-Iapelo

"artificial", no significado de natureza ser espontânea, eo seu oposto ser deliberado (técnica, arte). Em "Grama",procurou negá-Ia pelo sujeito, no significado de ser a na­tureza "objeto" de um sujeito a ela oposto. Em "Dedos",procurou assumir a natureza como a "sanidade" e seuoposto como "opressão", "manipulação" ou "aparelho".Em "Lua", procurou mostrar a natureza como resultadotardio e romântico da cultura. Em "Montanhas", procu­rou elaborar os significados opostos do conceito "histó­ria" para a natureza e para a sociedade. Em "Pássaros", fez

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152 Narural:mentc VlLF:M lhJL'ssER 153

o esforço de ver a natureza como conjunto significativo, e

a opôs a um código que permite a leitura de tal significa­

do. Nos "Vales", procurou ver a natureza como palco do

drama da humanidade. Em "Prados", procurou mostrar a

natureza como testemunho dos feitos humanos, portan­to, como contexto de dados que se dão em níveis suces­

sivos. Em "Falsa Primavera", procurou opor o conceitogrego da natureza ("physis") ao conceito da ciência da na­

tureza. Em "Maravílhas", procurou fazer o mesmo com o

conceito judeu-cristão (criação), em oposição ao conceitoda ciência da natureza. Em "Ventos", tentou elaborar a

oposição entre a natureza como "hierophania", e a natu­reza como "mandalnento transcendente". Em "Botões",

procurou opor os dois climas que emanam da natureza: o

do sentimento trágico e o do absurdo. E, em "Neblina",

procurou opor a mistificação da natureza pelo espírito

ideológico ao autêntico mistério de uma realidade que seesconde ao revelar-se.

O autor se dá conta perfeitamente que não esgotou

as variantes possíveis de um jogo dialético que tem a na­

tureza por tese. Com efeito, veio a acreditar que esse jogo

é praticamente ilimitado. ~em assume a natureza comotese pode assumir praticamente tudo como antítese da

natureza. Na opinião do autor, isto problematiza a via­

bilidade do termo "Natureza". Termos tão amplos amea­

çam se tornarem vazios e isentos de significado. Está pos­sivelmente na hora de abandonarmos o termo "natureza"

em favor dos termos mais modestos e mais significativos.

Tal proposta é obviamente utópica porque o termo "na-

tureza" está tão fundamentalmente enraizado nas nossas

línguas e no nosso pensamento que continuará a atrapa­lhar nossa vivência e os nossos atos.

Mas, mais importante que a descoberta da vacuida­

de do termo "natureza" ao longo dos ensaios foi outra. Àmedida que o autor foi aplicando os seus pares dialéticos

aos fenômenos contemplados, estes se esquivavam a res­

postas. Não permitiam serem forçados a responder "sim"

ou "não" às duas alternativas propostas. A "Chuva" não

respondeu com "sim" ou "não" à pergunta: "chuva de se­

tembro é o contrário de irrigação de campo?" A "Neblina

não respondeu com"sim" ou "não" à pergunta: "neblina

matinal é o contrário de neblina ideológica deliberada?"

Os fenômenos davam respostas inesperadas ao autor,

confundiam as suas perguntas e rompiam os seus pre­conceitos. A série de ensaios precedentes obedece a testes

mais ou menos disciplinados, e é, neste sentido, sequência

discursiva. Mas quanto às conclusões oferecidas pelos en­saios, estas não formam sequências discursivas. É como se

os inícios dos ensaios tivessem sido pendurados discipli­nadamente sobre varal linear e discursivo, e como se os fi­

nais dos ensaios tivessem balançando desordenadamente

no vento que sopra das próprias experiências, cabeçudas

e indomáveis. De modo que em tal nível de leitura o pre­

sente volume se apresenta linearmente discursivo quanto

à sua intenção, e caoticamente inconclusivo quanto aos

seus resultados. ~em lê os ensaios na ordem pretendida

pelo autor verificará como tal pretensão foi desprezadapelas experiências concretas relatadas. O deliberadamen-

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154 Natural:mente VILl~M F'LUSSER 155

te planejado fracassou diante da concreticidade das coi­sas. "Naturalmente".

Com tal confissão, esta explicação poderia dar-se por

satisfeita. Mas o autor crê que deve acrescentar mais dois

apartes. O primeiro, de ordem mais ou menos teórica, é

que facilite a inserção do presente volume no contexto

das livrarias e bibliotecas, e que facilite, pois, a rotulação

do presente volume e sua colocação em estante apropria­

da. O segundo aparte, de ordem mais subjetiva, é que jus­

tifique a publicação do presente volume no contexto daliteratura brasileira da atualidade.

a) É lugar-comum dizer que ocorreu, durante a Ida­de Média tardia, uma reviravolta ou revolução no pen­

samento, na sensibilidade e na valoração do Ocidente, e,

consequentemente, uma reviravolta ou revolução na ação

e paixão, no "estar-no-mundo", dos que participam de tal

cultura. Um aspecto importante de tal reviravolta ou re­

volução é a chamada "descoberta" (ou "redescoberta") da

natureza. Uma das consequências dessa "descoberta" é o

fato curiosÍssimo de que o conhecimento científico ini­

ciou um avanço progressivo a partir do horizonte rumo

ao centro. Iniciou pela pesquisa de coisas extremamente"desinteressantes" e existencialmente distantes (astrono­

mia, mecânica), e avançou lentamente em direção a coisas

mais "humanamente significativas" (biologia, psicologia,

sociologia). A história da ciência moderna está marcada

por tal curiosíssima inversão de interesse. É como se o

conhecimento científico tivesse inicialmente suspendido

deliberadamente todos os assuntos que interessam, na es-

perança de poder pesquisá-los mais tarde, depois de ter

resolvido os problemas menos interessantes.

Não importa, no presente contexto, explicar esse

fenômeno curioso. Explicações são fáceis, desde a formal

(astronomia e mecânica são disciplinas matemátizaveis)

até a historicista (a práxis da burguesia revolucionária

revela mecanismos, e sua ideologia encobre o nível social

da realidade). O que importa é a constatação do fato de

que a física (disciplina que estuda o movimento de corpos

inanimados) se estabeleceu, absurdamente, como primei­

ro conjunto sistematizado do conhecimento moderno, e,

em consequência, como modelo de todos os conjuntos

seguintes. Pois a física se toma por "ciência da natureza",

não exatamente no significado de "physis" (embora o ter­

mo Física pareça sugeri-lo), mas porque "physis", para os

gregos, era conjunto animado de coisas animadas e inani­

madas, e "natureza", para a física, é conjunto inanimadode coisas animadas e inanimadas. Mas, em todo caso, o

progresso da ciência moderna era avanço a partir da natu­reza rumo ao homem e à sociedade.

Tal progresso está atualmente por encerrar-se. Não

apenas no sentido de ter a ciência atualmente estendido a

sua competência para abranger também o homem e a so­

ciedade e, portanto, não pode mais avançar, apenas podertornar-se mais minuciosa, mas no sentido mais radical de

ter a ciência atualmente esbarrado contra uma fronteira

insuperável. Enquanto o saber científico perambulava

por regiões extra-humanas, nas quais o homem não está

existencialmente interessado, era possível manter a ficção

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156 Nattlral:mente VILÉM FLUSSER 157

do conhecimento objetivo. Mas agora, quando o sabercientífico está penetrando regiõesnas quais o homem está.implicado (interessado), tal distinção fictícia entre o obje­to conhecÍvel e sujeito conhecedor se torna insustentável.Em tais regiões, o homem é simultaneamente objeto e su­jeito do conhecimento. Tal barreira oposta ao progressodo conhecimento científico é aspecto importante daquiloque Husserl chamou de a crise da ciência do Ocidente.Em termos que interessam no presente contexto, aquelacuriosíssima natureza da qual o progresso científico par­tiu para investir contra o homem e a sociedade, está. serevelando agora horizonte ficticiamente objetivo, e nãofundamento sólido, daquela realidade concreta na qualestamos implicados.

Tal crise da ciência (a qual pode, por sua vez, ser ex­plicada como uma das razões de uma crise geral, ou comomanifestação de revolução mais profunda, pouco impor­ta) exigeuma reformulação radical tanto dos métodos daciência quanto do interesse da ciência pelas coisas.Tal re­

formulação está ocorrendo ao nosso redor. ~anto ao in­teresse pelas coisas, este se dirige atualmente para as maispróximas e nas quais estamos mais implicados. A direção

do avanço do conhecimento está se invertendo. ~aJ1toaos métodos, estes se fundamentam sobre a inter-relaçãoentre conhecedor e conhecido, e sobre os efeitos que opróprio conhecimento tem sobre o conhecedor e o co­nhecido. Em outros termos, a ciência está se tornando

autoconsciente enquanto atividade de um homem inse­rido na realidade e interessado em modificá-Ia, e não mais

nutre a ilusão de ser disciplina pura de um homem quetranscende a realidade.

Isto significa,entre outras coisas,que a físicaestá dei­xando de ser modelo de todas as ciências, e as que tratamde fenômenos mais concretos (como a teoria da comu­

nicação) estão tendendo a se estabelecerem em modelos.Portanto, de certa maneira está recomeçando, "ab ovo", o

esforço todo de conhecer cientificamente o mundo quenos cerca. De certa maneira, somos atualmente tão igno­

rantes e ingênuos quanto o foram os pioneiros da ciên­cia moderna. E como eles estavam obrigados a carregar

nas costas o peso do aristotelismo, nós somos obrigados acarregar o fardo muito mais pesado dos" conhecimentosobjetivos" acumulados por eles.Não se trata, por certo, depeso morto. Mas de peso que deve ser "posto entre aspaspara uso futuro" (para falarmos novamente com Hus­serl), sob pena de continuarmos esbarrando, futilmente,contra a barreira da objetividade.

Essa nova ignorância e ingenuidade, às quais esta­mos condenados pela nossa crise, tem sua vantagem. Po­demos olhar o mundo que nos cerca como se ninguém

jamais o tivesse olhado. Somos todos pioneiros. E, comotais, podemos ousar tudo. Por exemplo, podemos ousarempreender catálogos das coisas que nos cercam. Já quesomos os primeiros a penetrar no campo, o critério da es­

colha para a catalogação é nosso. ~e outros venham de­pois criticar-nos; serão bem-vindos. Mas, no momento,não importa que um inventário é melhor que nenhum,desde que obedeça duas regras mencionadas: a) primeiro,

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158 Naturahmentc VILÉM FLUSSER 159

devem ser inventariadas as coisas que nos interessam, e b)

devemos admitir que o nosso interesse pelas coisas, embo­

ra imposto sobre nós por elas, as torna coisas.

O presente volume, como aquele editado em Paris,

que o procede, é tentativa de inventário no significadomencionado, uma das numerosas tentativas atualmente

em curso. Pode ser rotulado como "científico", mas não

no significado tradicional do termo. Faz parte daquele

contexto de pesquisas ("fenomenológicas", "comunico­

lógicas", pouco importa como chamá-Ias) que podem re­sultar em uma ciência do futuro. Por isso, os resultados

apresentados pelos presentes ensaios não interessam mui­

to. O que interessa é a atitude perante o mundo que neles

se manifesta. (Se é que tal atitude se manifesta neles efeti­

vamente.) O autor crê que, com todas as suas falhas, erros

e omissões, o presente livro faz parte de uma literatura

embriônica que será considerada "científica" no futuro, e

da qual autores como Husserl, Ortega, Bachelard etc. sãoos iniciadores.

O presente volume foi escrito na Europa. Mais exa­

tamente, à beira do Loire, num vale alpino, e em viagens

pela Europa. Inescapavelmente, tal fato se reRete nos en­

saios. A experiência com a "natureza", que lhes é assunto,

é experiência com natureza europeia. O autor duvida que

podia ter escrito ensaios do mesmo tipo em circunstân­

cia brasileira. Não por ser a natureza brasileira diferente

da europeia, mas por razão mais profunda. Na Europa,

a natureza é acessível, no Brasil é inimiga. Se o autor ti­vesse escrito os ensaios noBrasil, teria escrito não sobre,

mas contra a natureza. Teria sido livro diferente. Não

apenas aspectos diferentes da natureza teriam surgido à

tona, mas o próprio tema teria sido diferente. Porque o

termo "natureza" significa no Brasil experiência, valor e

conceito diferentes dos significados na Europa. Tal dife­

rença e "overlap" dos significados não é explicável apenas

por diferenças na geografia a história dos dois "mundos".

Não se trata apenas do fato de ser o clima brasileiro "mais

quente", ou 'a sociedade brasileira "mais nova". A raiz da

diferença é mais profunda, e tem a ver com os dois climas

existenciais diferentes. O europeu tende a refugiar-se na

natureza para escapar às ameaças da cultura, e tal tendên­

cia não é recente (por exemplo, devida ao romantismo e

semelhantes ideologias escapistas). Já os gregos e os roma­

nos tinham o seu bucolismo. No Brasil, que sofre cons­

tante influência europeia, tal tendência para "um retornoà natureza" não é desconhecida, mas é, como tanta outra

influência importada, pouco mais que gesto vazio. O bra­

sileiro, ao contrário do europeu, tende a aglomerar-se em

centros densamente povoados para escapar às ameaças da

natureza. Isto se manifesta de muitas formas: pela "má

distribuição" da população brasileira no território dispo­

nível, pela tendência de construir edifícios altos em cida­

des pequenas com excesso de terrenos baldios, pelas aglo­

merações em poucas praias das muitas disponíveis, pelos

clubes de campo superlotados. Tais tendências opostas

correspondem a climas existenciais diferentes. O europeu

se sente fundamentalmente ameaçado pelo seu próximo:

é o clima do "homo homini lupus". O brasileiro se sente

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160 Natural:mentc VILfM FLVSSER 161

fundamentalmente ameaçado por forças extra-humanas.Por isso, o europeu está fundamentalmente engajado namodificação da sociedade, e o brasileiro na da natureza.E por isso existe solidariedade fundamental embora nemsempre palpável na sociedade brasileira, que lhe confereaquele característico sabor de humanismo e simpatia cujafalta é tão sentida na Europa.

Pois tal diferença, que não é de antagonismo, masde "overlap" (já que também existem no Brasil tendênciaspara a identificação com a natureza, exemplificadas emGuimarães Rosa e, na Europa, tendências muito fortespara a fuga da natureza, exemplificadas nas "banlieues"parisienses) é fonte de um dos muitos mal-entendidosentre os dois mundos. O europeu não consegue captar oprofundo engajamento do brasileiro contra a sua nature­za, e toma tal engajamento por alienação, já que para eleengajamento significa sempre luta em prol de uma socie­dade mais humana. E o brasileiro não consegue captar asituação europeia, que lhe parece já inteiramente "acul­turada", sem nada mais a fazer, já que, para ele, "fazer" édomar a natureza. Tal mal-entendido é trágico, porque osdois mundos estão condenados a viver juntos e,portanto,obrigados a se comunicar significativamente.

Considerando este fato, surge a pergunta de comojustificar a publicação de um volume que trata da natu­reza europeia no contexto da literatura atual brasileira.A resposta a tal pergunta seria simples se o presente vo­lume tivesse sido escrito por um europeu. Em tal caso, ajustificativa seria a contribuição que tal volume poderia

dar à superação de mal--entendidos. Mas essenão é o caso

do presente volume. Foi escrito por quem viveu a maiorparte de sua vida no Brasil e voltou para a Europa natalcom mente e sensibilidade fortemente abrasileiradas. Por

quem, em outros termos, está engajado nas coisasbrasilei­

ras, embora tenha, por sua biografia e situação geográficaatual, certa empatia com a natureza europeia. Como sejustifica, em tal caso, a publicação do presente volume?

A resposta se liga, curiosamente, ao argumento pre­cedente que tinha a presente crise epistemológica porassunto. Um dos pontos salientados em tal parágrafo foio da necessidade de admitir o fato do conhecedor estar

implicado no conhecido. Portanto, da necessidade de ad­mitir que a "objetividade" no sentido de conhecimentode um sujeito que paira por cima do conhecido é ideal

impossível e quiçá indesejável. Tal admissão não impli­ca nem a impossibilidade nem a indesejabilidade de umdistanciamento do conhecedor com respeito ao a ser co­nhecido. Pelo contrário, admitida a "objetividade" comoideal impossível, o distanciamento passa a ser desejável,porque não pode mais ser confundido com transcendên­

cia irresponsável. Um distanciamento assim, que admiteo seu profundo empenho no conhecível, mas procura umponto de vista amplo e despreconcebido, passa a ser a ver­dadeira atitude científica pós-objetiva.

Um leitor atento dos presentes ensaios verificará oengajamento do autor nas coisasbrasileiras entre as linhas

que descrevem as experiências com a natureza europeia.O autor descreveu sobre a natureza europeia para o leitor

Page 82: NATURAL:MENTE - filosoficabiblioteca.files.wordpress.com · O autor viajou por ela repetidas vezes e sempre ad ... po dermos "1'e-1os ". ... to se agarrar a este aspecto, torna-se

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brasileiro não apenas para informá-Io, mas para dialogarcom ele, porque o autor está inteiramente desinteressado

em uma possível modificação da realidade europeia. Nãoestá inserido nela, é estranho e estrangeiro na Europa. Taldesinteresse lhe confere distância das experiências quedescreveu, mas está profundamente interessado em uma

possível modificação da realidade brasileira em diálogocom outros. Tal interesse evita que seu distanciamentose torne transcendência irresponsável. Por sua situaçãobiográfica e geográfica,portanto, o autor pode servir detestemunha brasileira dos aspectos da realidade europeiaque relatou nos presentes ensaios.E esta é a justificativa doautor de querer publicar o presente volume no Brasilagora.

A paciência do leitor à presente explicação deve es­tar esgotada a estas alturas. Há muitas outras coisas queo autor teria gostado de acrescentar, mas deve refrear suatendência de pegar o leitor pelo braço para seduzi-Io acaminhar com ele pelos campos, prados, bosques e mon­tanhas incrivelmente belos e perigosamente convidativosda Europa. Abandona, pois, tal tentativa, e entrega, semmais, o presente guia turístico nas mãos do leitor brasilei­ro. "Guia turístico", desde que por "turismo" seja enten­dido o sinônimo atualizado do termo "teoria". Turismo

ou teoria é visão interessada, mas despreconcebida da­quele ente provisório e estrangeiro no mundo chamado"homo viator".

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COLEÇAo COMUNICAÇÕESDireção: Norval Baitello junior

Títulos publicados:

Língua e realidade, de Vilérn FIusserA ficção cética, de Gustavo BernardoMimese na cultura, de Günter Gebauer e Christoph WülfA história do diabo, de Vilém FIusser

Arqueologia da mídia, de Siegfried ZielinskiBodenlos, de Vilérn Flusser

O universo da~ imagens técnicas, de Vilém FlusserA escrita, de Vilém FIusser

A época brasileira de Vilém Flusser, de Eva BatlickovaPensar entre línguas, de Rainer GuldinHomem & Mulher, uma comunicação impossível?, de Ciro Marcondes Filho

Medio~fera, de Malena Segura ContreraA dúvida, de Vilém Flusser

Filosofia da caixa preta, de Vilérn FIusserNatural:mente, de Vilém Flusser

Afilosofia da ficção de Vilém Flusser, de Gustavo Bernardo (org.)

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