natÁlia correia

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NATÁLIA CORREIA Ponta Delgada, 1923-1993 Nasceu na ilha em Ponta Delgada, ilha de São Miguel em 1923 e faleceu em Lisboa em 1993. Personalidade intelectual versátil, dedicou-se a vários géneros, além de marcar a sua presença na política e na imprensa. Sua produção abrange a poesia, o romance, o teatro, o ensaio, memórias, relatos de viagem, organização de antologias e colaboração em vários jornais e revistas. Embora tenha começado pela literatura infantil (A Grande Aventura de um Pequeno Herói, 1945) e pelo romance (Anoiteceu no Bairro, 1946) foi na poesia que encontrou a expressão mais depurada de seu temperamento a um só tempo lírico e irónico, características acentuadas a partir de Dimensão Encontrada (1957) e em suas obras dramáticas. Dentro dessa linha, que a tendência surrealista da poesia portuguesa pós-1950 vem sublinhar, compôs grande parte de sua obra poética, revelando um discurso lírico insólito e singular a oscilar entre a linguagem alegórica e a voz interventora. Estão neste caso, por exemplo, Passaporte (1958), o longo poema Cântico do País Emerso (1961) e mais tarde Mátria e Maçãs de Orestes (1970). Em seu livro Poemas a Rebate, publicado em 1975, chama, na introdução, ao conjunto de seus “poemas indóceis” de “pentagrama de indignação”. Indignação constante é o que não falta á obra de Natália Correia seja motivada pela censura que a amordaçou por longo tempo, seja por uma insurreição natural a todos os engodos ideológicos da organização social. A capacidade de abranger, contudo, várias expressões líricas, bem como sentimentos e visões aparentemente opostos, entre a subjectividade romântica e a objectividade realista, levaram-na à composição, nos dois últimos anos, de Sonetos Românticos (1991, Grande prémio da Poesia APE/CTT), na poesia, e ao romance As Núpcias (1992). No primeiro, parece voltar à primeira fase de sua expressão em virtude da abstraccão do objecto lírico, não obstante, agora, mais intelectualizada, beirando certo misticismo da criação poética, da escrita, da expressão verbal. Por isso, define o soneto como “misterioso nó que em sacra escrita / cimos e abismos une”. Abismos, que enfim, de onde sempre procurou garimpar a sua “aurífera” poesia. in Mulheres nas Letras, Mulheres dos Livros Nuvens correndo num rio Nuvens correndo num rio Quem sabe onde vão parar? Fantasma do meu navio Não corras, vai devagar! Vais por caminhos de bruma Que são caminhos de olvido. Não queiras, ó meu navio, Ser um navio perdido.

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Page 1: NATÁLIA CORREIA

NATÁLIA CORREIAPonta Delgada, 1923-1993

Nasceu na ilha em Ponta Delgada, ilha de São Miguel em 1923 e faleceu em Lisboa em 1993. Personalidade intelectual versátil, dedicou-se a vários géneros, além de marcar a sua presença na política e na imprensa. Sua produção abrange a poesia, o romance, o teatro, o ensaio, memórias, relatos de viagem, organização de antologias e colaboração em vários jornais e revistas. Embora tenha começado pela literatura infantil (A Grande Aventura de um Pequeno Herói, 1945) e pelo romance (Anoiteceu no Bairro, 1946) foi na poesia que encontrou a expressão mais depurada de seu temperamento a um só tempo lírico e irónico, características acentuadas a partir de Dimensão Encontrada (1957) e em suas obras dramáticas. Dentro dessa linha, que a tendência surrealista da poesia portuguesa pós-1950 vem sublinhar, compôs grande parte de sua obra poética, revelando um discurso lírico insólito e singular a oscilar entre a linguagem alegórica e a voz interventora. Estão neste caso, por exemplo, Passaporte (1958), o longo poema Cântico do País Emerso (1961) e mais tarde Mátria e Maçãs de Orestes (1970). Em seu livro Poemas a Rebate, publicado em 1975, chama, na introdução, ao conjunto de seus “poemas indóceis” de “pentagrama de indignação”. Indignação constante é o que não falta á obra de Natália Correia seja motivada pela censura que a amordaçou por longo tempo, seja por uma insurreição natural a todos os engodos ideológicos da organização social. A capacidade de abranger, contudo, várias expressões líricas, bem como sentimentos e visões aparentemente opostos, entre a subjectividade romântica e a objectividade realista, levaram-na à composição, nos dois últimos anos, de Sonetos Românticos (1991, Grande prémio da Poesia APE/CTT), na poesia, e ao romance As Núpcias (1992). No primeiro, parece voltar à primeira fase de sua expressão em virtude da abstraccão do objecto lírico, não obstante, agora, mais intelectualizada, beirando certo misticismo da criação poética, da escrita, da expressão verbal. Por isso, define o soneto como “misterioso nó que em sacra escrita / cimos e abismos une”. Abismos, que enfim, de onde sempre procurou garimpar a sua “aurífera” poesia.

in Mulheres nas Letras, Mulheres dos Livros

Nuvens correndo num rio

Nuvens correndo num rioQuem sabe onde vão parar?Fantasma do meu navioNão corras, vai devagar!

Vais por caminhos de brumaQue são caminhos de olvido.Não queiras, ó meu navio,Ser um navio perdido.

Sonhos içados ao ventoQuerem estrelas varejar!Velas do meu pensamentoAonde me quereis levar?

Não corras, ó meu navioNavega mais devagar,Que nuvens correndo em rio,Quem sabe onde vão parar?

Que este destino em que venhoÉ uma troça tão triste;Um navio que não tenhoNum rio que não existe.

Natália Correia

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NATÁLIA CORREIAMãe Ilha

Nessa manhã as garças não voaram

E dos confins da luz um deus chamou.

Docemente teus cílios se fecharam

Sobre o olhar onde tudo começou.

A terra uivou. Todas as cores mudaram

O mar emudeceu. O ar parou.

Escuros véus de pranto o sol taparam

De azáleas lívidas a ilha se cercou.

A que pélago o esquife te levava?

Não ao termo. A não chorar os mortos.

Teu sumo espiritual florido ensina.

E se o mundo em ti principiava,

No teu mistério entre astros absortos,

Suavemente, ó mãe, tudo termina.

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Biografia de Natália Correia

A 13 de Setembro de 1923 nascia nos Açores, na ilha de São Miguel, a escritora e mulher que viria a dar um dos maiores contributos para a cultura portuguesa do século XX, Natália Correia. Ainda de tenra idade foi para Lisboa na companhia de sua mãe e irmã.

O Liceu Filipa de Lencastre foi o local onde estudou e a Rádio Clube Português foi onde deu início à sua vida profissional como jornalista.

Cedo aqueles que a rodeavam se aperceberam que estavam perante uma mulher com forte personalidade que sabia quais os objectivos que almejava alcançar e que metas cortar. Observando o que os seus conhecidos e amigos diziam a seu respeito percebe-se que estão de pleno acordo em relação ao seu perfil: diziam e dizem que foi uma mulher de personalidade vincada, que onde quer que estivesse era o centro das atenções. Dominadora, encantadora, provocatória, irreverente, afectiva, lutadora, etc., são alguns dos adjectivos que mais se utilizam para caracterizar esse grande símbolo da cultura portuguesa do século XX.

Defensora da liberdade e da cultura, desenvolveu uma intensa actividade como escritora, poetisa e ensaísta, também entrou e marcou o mundo da política, lutou contra o fascismo e mais tarde ( já caminhando para o fim da vida) tornou-se deputada pelo PSD e pelo PRD. Nesta fase da sua vida ficou célebre não só pela sua actividade literária, mas sobretudo pelos seus discursos acesos e apaixonados proferidos no Parlamento.

A sua casa, nas décadas de 50 e 60, funcionava como um dos maiores salões particulares onde se reuniam as grandes figuras da cultura portuguesa. Mais precisamente, nos anos 50 a sua moradia, um quinto andar por cima da pastelaria Smart em Lisboa, foi um dos locais conhecidos pela resistência que oferecia ao regime de António de Oliveira Salazar. As reuniões tendiam sempre a criticar e combater o fascismo. É, portanto, nesse contexto que Natália Correia vê alguns dos seus livros apreendidos pela PIDE, por ser reconhecida anti-salazarista e também pelo próprio teor dos referidos livros – como se sabe Natália era audaz e dizia exactamente aquilo que pensava.

Desde 1972 que O Botequim, que viria a ser um dos centros de conspiração em prol da liberdade, era a animada tertúlia de Natália. Aí discutia-se política, arte, filosofia, literatura, cantava-se, bebia-se, comia-se a altas horas, namorava-se, faziam-se e desfaziam-se casamentos.

A partir de certa altura Natália Correia evoluiu politicamente no sentido do PPD, mas segundo o Dr. Mário Soares esta nunca foi anti-socialista, mas sim fiel aos ideais do socialismo democrático. Nas eleições intercalares de 2 de Dezembro de 1979 para a Assembleia da República, foi eleita deputada pelo Partido Social Democrata (círculo de Lisboa), tendo sido reeleita em 5 de Dezembro de 1980.

No âmbito da sua actividade política sempre primou por defender a cultura e o património, que como dizia é o que nos torna únicos e diferentes do resto do

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mundo. A luta pela integração e emancipação da mulher na sociedade portuguesa era também parte relevante do seu pensamento político.

No que respeita à sua vida particular propriamente dita, Natália desenvolveu uma relação amorosa com Dórdio de Guimarães, também ele poeta. Este foi uma figura eminentemente presente na vida daquela que aqui se trata, ainda que brevemente. Dórdio dedicou a sua vida a Natália, há mesmo que afirme que a venerava para além de a amar, foi ele que a acompanhou até aos últimos dias da sua vida. Foi também o seu único herdeiro, em 1997 deixou por testamento público ao Governo Regional dos Açores o seguinte: recheio da casa de Natália para um futuro Museu; Pinacoteca e escultura de ambos; biblioteca (10.164 obras da colecção de Natália e 2.283 da colecção de Dórdio Guimarães); manuscritos e originais de ambos, desde que já publicados e acervo da exposição Homenagem Nacional a Natália Correia. Estes bens estão presentemente depositados na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada.

Em 1976, recebeu do Centre International de Poésie Néo-Latine e do Comité des Prix Petrarque de Poésie Néo-Latine o prémio literário La Fleur de Laure que anualmente consagrava uma poetisa de língua romântica.

Podemos ainda dizer que a obra de Natália está traduzida para várias línguas, o que prova o seu valor e reconhecimento também a nível internacional, e que obteve o Grande Prémio da Poesia de 1991 da Associação Portuguesa de Escritores. Foi ainda galardoada com a Grande Ordem de Santiago e a Grande Ordem da Liberdade.

A 16 de Março de 1993 morria Natália Correia, um dos grandes ícones portugueses.

Obras:

As Grandes Aventuras de um Pequeno Herói, 1945; Anoiteceu no Bairro, 1946; Rio de Nuvens, 1947; Poesia, 1955; Dimensão Encontrada, 1957; Passaporte, 1958; Comunicação, 1959; Cântico do País Emerso, 1961; A Questão Académica de 1907, 1964; O Homúnculo, 1965; Antologia de Poesia Erótica e Satírica, 1966; O Vinho e a Lira, 1966; O Encoberto, 1969; Matria, 1969; Cantares dos Trovadores Galaico-Portugueses, 1970; Trovas de D. Dinis, 1970; As Maçãs de Orestes, 1970; A Madona, 1971; A Mosca Iluminada, 1972;

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A Mulher, 1973; O Surrealismo na Poesia Portuguesa, 1973; O Anjo do Ocidente à Entrada do Ferro, 1973; Uma Estátua para Herodes, 1974; Poemas a Rebater, 1975; Epístola aos Iamitas, 1976; Não Percas a Rosa, 1978; A Pécora, Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente, 1982 (teatro)