"nasci para coser"

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1 PERFIL “EU NASCI PARA COSER” Aos 79 anos, Jacinta Ferreira fala com orgulho da sua carreira de costureira profissional de alfaiate. Desde pequena que o talento para a costura se fez notar nesta mulher que foi a única menina da sua escola a fazer o exame da quarta classe. Em entrevista, Jacinta confessa-se “realizada” com o caminho que escolheu e deixa um lema: “se é para fazer, é para fazer bem feito”. Jacinta Ferreira é o retrato de uma mulher bem sucedida. É com um sorriso no rosto que recorda os tempos de criança passados na aldeia de Valhascos, em Abrantes, onde nasceu. Ainda Jacinta tinha os seus sete ou oito anos e já aproveitava os tecidos que uma rapariga da terra deitava fora para fazer “roupinhas para as bonecas”. Aprendeu a coser à máquina “por conta própria”, às escondidas da mãe, e foi, aliás, por volta dessa idade, que esta a incentivou a começar a coser, mandando-a para uma costureira a quem pagava “dez escudos por mês”. Devido à “vida de ciganos”, como lhe chama entre gargalhadas, levada pelos pais, acabou por vir para Lisboa com apenas 15 anos e foi na capital portuguesa que construiu o seu sucesso profissional. No entanto, Jacinta Ferreira não deixa de lamentar não ter prosseguido os estudos além da quarta classe, cujo exame passou com distinção “no meio de rapazes, muitos deles já mais velhos, com uns dezoito anos”. A convite de uma conhecida foi parar a uma alfaiataria lisboeta que precisava de uma aprendiz de costureira: “eu nem sabia que havia raparigas a trabalhar em alfaiataria, mas fui e acabei por gostar daquilo”, conta, entusiasmada. Foi assim que, durante dois anos, Jacinta desenvolveu as suas competências naturais, merecendo até elogios por parte do patrão: “um dia, ele disse-me que, apesar de não ser muito desembaraçada, eu havia de dar uma bela costureira! Fiquei muito contente”. Por sentir que já ganhava pouco para aquilo que trabalhava, a jovem Jacinta decidiu mudar de ares e concorrer a um anúncio no jornal para uma alfaiataria sita na Avenida da Liberdade. Além de lhe abrir as portas para um futuro brilhante, esta escolha valeu-

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Perfil de Jacinta Ferreira, costureira profissional de alfaiate, realizado no âmbito da disciplina de Laboratório de Géneros Jornalísticos.

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PERFIL “EU NASCI PARA COSER” Aos 79 anos, Jacinta Ferreira fala com orgulho da sua carreira de costureira profissional de alfaiate. Desde pequena que o talento para a costura se fez notar nesta mulher que foi a única menina da sua escola a fazer o exame da quarta classe. Em entrevista, Jacinta confessa-se “realizada” com o caminho que escolheu e deixa um lema: “se é para fazer, é para fazer bem feito”.

Jacinta Ferreira é o retrato de uma mulher bem sucedida.

É com um sorriso no rosto que recorda os tempos de criança passados na aldeia de

Valhascos, em Abrantes, onde nasceu. Ainda Jacinta tinha os seus sete ou oito anos e já aproveitava os tecidos que uma rapariga da terra deitava fora para fazer “roupinhas para as bonecas”. Aprendeu a coser à máquina “por conta própria”, às escondidas da mãe, e foi, aliás, por volta dessa idade, que esta a incentivou a começar a coser, mandando-a para uma costureira a quem pagava “dez escudos por mês”. Devido à “vida de ciganos”, como lhe chama entre gargalhadas, levada pelos pais, acabou por vir para Lisboa com apenas 15 anos e foi na capital portuguesa que construiu o seu sucesso profissional. No entanto, Jacinta Ferreira não deixa de lamentar não ter prosseguido os estudos além da quarta classe, cujo exame passou com distinção “no meio de rapazes, muitos deles já mais velhos, com uns dezoito anos”. A convite de uma conhecida foi parar a uma alfaiataria lisboeta que precisava de uma aprendiz de costureira: “eu nem sabia que havia raparigas a trabalhar em alfaiataria, mas fui e acabei por gostar daquilo”, conta, entusiasmada. Foi assim que, durante dois anos, Jacinta desenvolveu as suas competências naturais, merecendo até elogios por parte do patrão: “um dia, ele disse-me que, apesar de não ser muito desembaraçada, eu havia de dar uma bela costureira! Fiquei muito contente”. Por sentir que já ganhava pouco para aquilo que trabalhava, a jovem Jacinta decidiu mudar de ares e concorrer a um anúncio no jornal para uma alfaiataria sita na Avenida da Liberdade. Além de lhe abrir as portas para um futuro brilhante, esta escolha valeu-

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lhe ainda um casamento feliz: “fui aceite e foi aí que conheci o parvo do meu marido que é alfaiate [risos], por volta de 1947”, relembra, com um olhar nostálgico.

Jacinta assume, porém, que, ao início, o marido [à esquerda] não despertou em si qualquer simpatia e que achava que ele “tinha ar de mandão”. Apesar disso, e depois de um ano e meio de namoro, acabaram por casar e abrir o seu próprio negócio. Uma primeira experiência com a compra de uma pequena alfaiataria na Rua do Poço dos Negros não correu bem devido a um “sócio mal intencionado” mas, desfeita a sociedade, o casal comprou

uma loja maior, a “Alfaiataria Ferreira”. “Mantivemos o nosso espaço durante quinze anos. Tivemos muitos funcionários,

muitos clientes famosos e muito trabalho, mas foi um sucesso”, enaltece Jacinta, sem deixar de reconhecer que, mesmo com o esforço que exigiram, estes foram “anos muito bons”. Para si, esta foi uma aposta ganha e que “sem dúvida” valeu a pena. Quando se viu forçada, pela doença do marido, a fechar a loja, Jacinta confessa ter sentido “muita tristeza” mas não esconde a felicidade que foi ter feito obras “tão lindas”, como as classifica. Do casamento de Jacinta e João nasceram dois filhos e, ao contrário do que se possa pensar, não foi a filha a revelar queda para a costura: “a minha filha não sabe coser. Curiosamente, o meu filho é que sabia, gostava e tinha muito jeito!”, realça orgulhosa, relembrando que foi o filho, com apenas cinco anos, que ensinou uma das funcionárias

da alfaiataria a coser à máquina, “numa máquina delas industriais, enormes”. No entanto, ambos vieram a optar por caminhos diferentes dos escolhidos pelos pais. Mesmo tendo em conta todas as dificuldades, Jacinta não hesita em declarar que a profissão a fez sentir “realizada” porque nasceu “para coser” e admite que gostaria de ter experimentado como profissional outras vertentes, entre elas “a decoração”. Apesar de se revelar “pouco criativa”, já fez um bocadinho de tudo: bordados, arte aplicada e até os cortinados da filha quando esta casou, aproveitando a “grande sensibilidade para fazer coisas minuciosas”. Quanto a outros hobbies, esta costureira elege a leitura como principal: “gosto de ler livros, mas apenas aqueles com os quais aprenda alguma coisa”, sustenta. A finalizar, Jacinta assume não gostar de cozinhar mas defende que “se é para fazer, é para fazer bem feito”, ideia que seguiu à risca ao longo de toda a vida. TEXTO E FOTOGRAFIAS: Catarina Ferreira

O marido e alfaiate João Ferreira acompanhou Jacinta ao longo da sua caminhada pessoal e profissional.

Jacinta guarda, ainda hoje, muitos instrumentos ligados à profissão, como este pesado ferro de engomar.