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Narrativas Memorialísticas em “Central do Brasil”... - Santos
Revista Diálogos – set. /out. – 2018 – N.º 20 269
NARRATIVAS MEMORIALÍSTICAS EM “CENTRAL DO
BRASIL” (1998), DE WALTER SALLES: O TRABALHO
EM SALA DE AULA
Deividy Ferreira dos Santos (UCAM)1
d.o.i. 10.13115/2236-1499v2n20p269
Resumo: As narrativas memorialísticas têm, atualmente, assumido
significativa importância no campo das ciências da linguagem, de
maneira geral, principalmente às relacionadas ao campo literário. Essa
centralidade e significativa importância devem, dentre outros fatores, à
funcionalidade que as mesmas têm-se encontradas no ambiente escolar.
Assim sendo, o trabalho com o gênero textual “narrativa” permite
auferir da responsabilidade que é levar alguns gêneros para o trabalho
em sala de aula, isso devido ao fato de que os gêneros principalmente
aqueles da esfera cotidiana aproximam o leitor das atividades de leitura
e de interpretação textual. O trabalho em sala de aula a partir de filmes,
por exemplo, tem sido bastante sugestivo e aceito, o que positivamente
tem gerado discussões que são aceitas no meio escolar. Seguindo esse
mesmo direcionamento, este trabalho tem por objetivo apresentar como
tem sido e quais os desafios que se tem de trabalhar com o gênero
textual “narrativa” em sala de aula, a partir, também, de uma análise
fílmica. Muito se tem discutido a respeito de como trabalhar textos nas
escolas, por este não ser uma tarefa fácil. Encontra-se nas salas de aulas
uma forte resistência, da parte dos alunos, em relação à leitura e à
produção de textos. Para muitos estudantes, a ação de expressar suas
ideias por meio da oralidade é algo considerado totalmente natural, no
entanto, o ato de reproduzir essas ideias de modo escrito representa um
trabalho árduo que requer aprendizagem e prática na escrita. Sabemos,
pois, que trabalhar com a interdisciplinaridade, é fundamental para o
processo de ensino e de aprendizagem dos alunos, mas, infelizmente,
muitos não têm dado a devida atenção como se deveria. Este estudo,
1 Pós-Graduando (Especialização) em Ensino de Língua Portuguesa (UCAM),
Graduação em Letras com ênfase em Licenciatura em Língua Portuguesa e
suas Literaturas (UPE). Atualmente é professor da EREM Henrique Justino de
Melo, Tutor a distância no curso de Pós-Graduação (Especialização) em Letras
na modalidade EAD pela Universidade de Pernambuco UPE/UAB (Bolsista
CAPES) e membro efetivo da Equipe Técnica da Revista de Estudos
Linguísticos, Literários, Culturais e da Contemporaneidade (UPE - campus
Garanhuns).
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entre outras razões, procura à luz de uma abordagem sistêmica de
análise mostrar o quão é rico o trabalho em sala de aula por meio das
narrativas literárias, proporcionando estratégias didáticas e
metodológicas adequadas e eficazes ao contexto escolar. Por outro lado,
mostraremos, neste estudo, que o gênero textual “filme” pode ser um
suporte muito eficiente para se trabalhar narrativas. Pensando nessa
ideia, selecionamos como corpus o filme brasileiro “Central do Brasil”
(1998) do cineasta Walter Salles. A metodologia empreendida se dará
da seguinte forma: selecionamos algumas cenas do filme supracitado e
trabalhamos essas com os alunos, em seguida, foi pedido que os
mesmos produzissem narrativas a partir de suas análises interpretativas.
O estudo, portanto, mostra que as narrativas apresentadas, neste
trabalho, como “memorialísticas” são importantes para que o aluno
desperte a capacidade crítica de leitura e de interpretação textual e que
é um recurso facilitador no processo de ensino e de aprendizagem.
Palavras-chave: Narrativas Memorialísticas, Ensino, Central do Brasil,
filme.
Resumen: Las narraciones memorialísticas tienen, actualmente,
asumido significativa importancia en el campo de las ciencias del
lenguaje, de manera general, principalmente a las relacionadas al
campo literario. Esta centralidad y significativa importancia deben,
entre otros factores, a la funcionalidad que las mismas se han
encontrado en el ambiente escolar. Por lo tanto, el trabajo con el género
textual "narrativa" permite obtener de la responsabilidad que es llevar
algunos géneros para el trabajo en el aula, debido al hecho de que los
géneros principalmente aquellos de la esfera cotidiana acercan al lector
de las actividades de lectura y de lectura de interpretación textual. El
trabajo en el aula a partir de películas, por ejemplo, ha sido bastante
sugestivo y aceptado, lo que positivamente ha generado discusiones que
son aceptadas en el medio escolar. Siguiendo ese mismo
direccionamiento, este trabajo tiene por objetivo presentar como ha sido
y cuáles los desafíos que se tienen de trabajar con el género textual
"narrativa" en el aula, a partir, también, de un análisis fílmico. Se ha
discutido mucho sobre cómo trabajar textos en las escuelas, por no ser
una tarea fácil. Se encuentra en las aulas una fuerte resistencia, por
parte de los alumnos, en relación a la lectura ya la producción de textos.
Para muchos estudiantes, la acción de expresar sus ideas por medio de
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la oralidad es algo considerado totalmente natural, sin embargo, el acto
de reproducir esas ideas de modo escrito representa un trabajo arduo
que requiere aprendizaje y práctica en la escritura. Sabemos, pues, que
trabajar con la interdisciplinaridad, es fundamental para el proceso de
enseñanza y aprendizaje de los alumnos, pero, desgraciadamente,
muchos no han dado la debida atención como se debería. Este estudio,
entre otras razones, busca a la luz de un enfoque sistémico de análisis
para mostrar cuán rico es el trabajo en el aula a través de las narrativas
literarias, proporcionando estrategias didácticas y metodológicas
adecuadas y eficaces al contexto escolar. Por otro lado, mostraremos,
en este estudio, que el género textual "película" puede ser un soporte
muy eficiente para trabajar narrativas. Pensando en esa idea,
seleccionamos como corpus la película brasileña "Central do Brasil"
(1998) del cineasta Walter Salles. La metodología emprendida se dará
de la siguiente forma: seleccionamos algunas escenas de la película
arriba mencionada y trabajamos éstas con los alumnos, a continuación,
se les pidió que los mismos produjeran narrativas a partir de sus análisis
interpretativos. El estudio, por lo tanto, muestra que las narrativas
presentadas, en este trabajo, como "memorialísticas" son importantes
para que el alumno despierte la capacidad crítica de lectura y de
interpretación textual y que es un recurso facilitador en el proceso de
enseñanza y de aprendizaje.
Palabras-clave: Narrativas Memorialísticas, Enseñanza, Central de
Brasil, película.
DISCUTINDO QUESTÕES INICIAIS
O trabalho em sala de aula, nos dias atuais, tem assumido
significativa importância e é necessária a inserção dessa prática
no currículo das escolas brasileiras, para que assim possamos
construir cidadãos de bem e preocupados com o mundo e o
espaço institucional aos quais eles estão imersos. Sabemos, pois,
que esse trabalho não é fácil, uma vez que requer
responsabilidade e compromisso de todos os agentes sociais que
fazem parte desse mercado de trabalho e nem sempre percebemos
essa preocupação por parte desses membros.
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Temos visto com bastante frequência nas escolas
brasileiras que o trabalho do professor em sala de aula tem
passado por inúmeros retrocessos, sejam esses politizados ou até
mesmo pela falta de reconhecimento do trabalho do professor.
Muitas vezes o profissional em sala de aula não tem sua
autoestima elevada e isso compromete negativamente no
processo de ensino e de aprendizagem tanto dele como do aluno.
À guisa de exemplificação, muitos dos problemas educacionais
existentes hoje em cenário mundial, deve-se, dentre outros
fatores, de algum modo às relações conflitivas entre professor-
aluno, aluno-professor, aluno-aluno e aluno-equipe gestora.
Neste sentido, o risco de abandono escolar e o índice alto
de reprovações tornam-se um fator agravante que tende a piorar,
à medida que o tempo passa. Este estudo busca, portanto, mostrar
como tem sido e quais os desafios que se tem de trabalhar com o
gênero textual “narrativa” em sala de aula, a partir, também, de
uma análise fílmica. Por outro lado, mostraremos, neste estudo,
que o gênero textual “filme” pode ser um suporte muito eficiente
para se trabalhar narrativas. Pensando nessa ideia, selecionamos
como corpus deste estudo o filme brasileiro “Central do Brasil”
(1998) do cineasta Walter Salles. A metodologia empreendida se
dará da seguinte forma: selecionamos algumas cenas do filme
supracitado e trabalhamos essas com os alunos, em seguida, foi
pedido que os mesmos produzissem textos narrativos a partir de
suas análises interpretativas.
Selecionamos o gênero “narração”, com o objetivo de
auxiliar os discentes a conhecer a estrutura, as características e a
finalidade do gênero narrativo. É relevante salientar que a escolha
da metodologia empreendida não ocorreu de forma aleatória; pelo
contrário, buscamos partir das reais necessidades dos alunos,
principalmente no que corresponde à compreensão do referido
gênero e à prática da produção textual. Trabalhamos com o texto
em foco, buscando discutir os propósitos comunicativos, as
características do gênero, a definição, as funcionalidades e a sua
produção e também com o filme, mostrando o quanto ele é atual e
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o quanto suas histórias memorialísticas podem tecer narrativas
interessantes no processo textual.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O GÊNERO TEXTUAL
“NARRATIVA”
O ato de narrar é uma qualidade da característica humana.
O homem, em sua singularidade e enquanto sujeito social e
pensante realiza-se do ato de narrar o tempo inteiro, ao passo que,
segundo o grande estudioso brasileiro Antônio Cândido (1987), o
homem necessita fabular. E ele realiza essa fabulação
cotidianamente através das memórias e das narrações. As
memórias são acionadas ao seu consciente a partir do momento
que o homem tem a capacidade de raciocinar e à medida que ele
raciocina registros são gerados e ele passa a transmitir essas
sensações, muitas vezes, por meio das narrativas, sejam elas orais
ou escritas.
Assim sendo, concordemos com Reales e Confortin
(2011), quando eles afirmam que: Narrar faz parte da vida dos homens. Poderíamos
dizer que é uma atividade fundamental da vida,
posto que, através da narração, é possível
organizar as experiências e torná-las
comunicáveis. Contar histórias é uma atividade
praticada por todos. Por esse motivo, todos nós
sabemos produzir discursos narrativos, tendo
noção dos elementos que constituem um relato.
Muitas pessoas, alguma vez, já praticaram algum
tipo de narrativa escrita em cartas ou diários
pessoais. A narrativa, então, não se concretiza
apenas no plano literário, podendo estar presente
na comunicação oral ou escrita de qualquer pessoa
em qualquer época. Do mesmo modo, a narrativa
encontra-se em diversas situações
comunicacionais tais como a imprensa ou os livros
de história. No plano estético, a narrativa se dá em
diversos modos expressivos tais como o cinema
ou as histórias em quadrinhos, havendo a junção
entre o verbal e não verbal. Desse modo, a
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narrativa literária é uma possibilidade dentro da
diversidade de ocorrências em que podem ser as
narrativas (REALES; CONFORTIN, 2011, p. 09).
Partindo desta perspectiva, o presente trabalho pretende
fazer um estudo sobre o gênero textual “narrativa” em sala de
aula a partir de uma análise fílmica, como já exposto, com vistas
a mostrar que a prática de ensino de gêneros textuais e/ou
literários torna-se necessária, à medida que os gêneros constituem
sujeitos e os moldam para a compreensão e/ou reconhecimento de
suas vivências sociais. Seguindo esse mesmo raciocínio, vejamos
o que nos apresenta Barthes (1985), quando ele nos assevera que:
...a narrativa está presente em todos os tempos, em
todos os lugares, em todas as sociedades; a
narrativa começa com a própria história da
humanidade; não há, nunca houve em lugar
nenhum povo algum sem narrativa; todas as
classes, todos os grupos humanos têm as suas
narrativas, muitas vezes essas narrativas são
apreciadas em comum por homens de culturas
diferentes, até mesmo opostas: a narrativa zomba
da boa e da má literatura: internacional, trans-
histórica, transcultural, a narrativa está sempre
presente, como a vida (BARTHES, 1985, p. 245).
Como podemos auferir da referida citação e ainda
segundo Barthes (1985), narrar é uma característica fundamental
à condição humana. Somos narradores de nossas próprias
histórias e vivências o tempo todo. Narramos o que lemos, o que
ouvimos, o que presenciamos e o que assistimos e tudo isso
interligado a nossa capacidade de pensar e de raciocinar
mutuamente, pois, de acordo com Pellegrine (2003, p. 64),
“Quem narra, por sua vez, escolhe o momento em que uma
informação é dada e por meio de que canal isso é feito”.
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NARRATIVA LITERÁRIA: UM ESPAÇO PLURAL
O texto narrativo é considerado por muitos como um texto
de fácil compreensão e que agrada a todos, de maneira geral. O
lúdico, nesse sentido, tem ganhado espaço nesse mundo da
simbologia, do imagístico e do narrativo. As narrativas literárias
contam determinadas histórias, sejam elas do universo do
romance, do suspense, do terror, da magia e os efeitos que esse
tipo de história tem sobre a mente das crianças, dos jovens, dos
adultos e dos estudantes, de maneira geral, vai depender da
captação que esses atores sociais têm sobre a história contada.
Assim, ainda segundo Reale e Confortin (2011):
As narrativas literárias são textos de caráter
ficcional que contam uma história de uma
determinada maneira, ou seja, de acordo com
certas práticas artísticas, e que se oferecem à
interpretação daqueles que as lerão de acordo com
sua época. As narrativas literárias não têm o
compromisso de refletir a realidade. Elas criam
uma “realidade” através da organização dos fatos
dentro do enredo, por meio de estratégias
narrativas que garantem a coerência interna da
obra e de acordo com as tendências literárias de
cada época, chegando, muitas vezes, a provocar
uma profunda renovação estética. Segundo a
teoria da representação, toda a narrativa ficcional é
composta de enunciados que representam os fatos
ou conteúdos narrados de acordo com estratégias
discursivas que mantêm ou não uma relação de
contiguidade com a realidade e com os modos de
outros discursos narrarem essa realidade (REALE;
CONFORTIN, 2011, p. 10).
As narrativas literárias não têm o papel de representarem a
realidade por meio de suas histórias; pelo contrário, essas, na
maioria das vezes, refletem momentos do cotidiano que pode
ocasionalmente, por coincidência, remeter a algum fato real, mas
é importante deixar claro que não é uma constância. Levando em
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consideração o trabalho realizado em sala de aula a partir do livro
didático de Língua Portuguesa, notamos que, em sua grande
totalidade, os exemplos de narrativas que vêm expostas no livro
são principalmente histórias voltadas aos romances infantis, de
personagens caricaturais, de um amor idealizado entre
determinados personagens, de terror, de mistério, de suspense e
etc, mas são poucas as histórias que trazem traços reais.
Neste sentido, de acordo com Reale e Confortin (2011):
Numa narrativa, é fundamental observar o que se
conta e como se conta. Ou seja, para efeitos de
análise, devemos distinguir dois planos
fundamentais: o da história e o do discurso,
planos, no entanto, organicamente articulados na
narração. No plano da história, observaremos o
que se conta; no plano do discurso, como se
contam os fatos narrados (REALE; CONFORTIN,
2011, p. 10). (Grifos dos autores).
Assim, na tabela, a seguir, vejamos que a narrativa está
estruturada sobre cinco elementos principais:
Elementos na narrativa
(i) Enredo; (ii) personagens; (iii) tempo; (iv) espaço; (v)
narrador.
Gêneros literários
(i) Épico: é o gênero narrativo ou de ficção que se
estrutura sobre uma história;
(ii) Lírico: é o gênero ao qual pertence à poesia lírica;
(iii) Dramático: é o gênero teatral, isto é, aquele que
engloba o texto de teatro, uma vez que o espetáculo
em si foge à alçada da literatura.
Fonte: REALE; CONFORTIN, 2011.
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De acordo com os autores, os gêneros literários são
organizados de acordo com a materialidade linguística a qual eles
pertencem dentro do texto. Quando apresentado esses tipos de
gêneros literários em sala de aula, muitas vezes são discutidas
apenas as características de cada um e, no final, é exemplificado
com apenas um exemplo, pelo menos essa é a noção trazida e
apresentada pelo livro didático de Língua Portuguesa. E os
autores seguem nos dizendo que:
O conceito de que o texto é à base do ensino e
aprendizagem de Língua Portuguesa vem sendo
aceita no Brasil há muitos anos. Durante muito
tempo, esta abordagem textual foi aplicada ao
ensino de maneiras diferentes. A princípio, a ideia
era tomar o texto como objeto de ensino, no
entanto, o texto em sala de aula foi usado para
outras funções (REALE; CONFORTIN, 2011, p.
11).
Essa ideia é um assunto sério a se questionar, pois, como
os próprios estudiosos nos trazem, deveria ser de que o texto
fosse a base, o alicerce para o ensino e a aprendizagem de Língua
Portuguesa, no entanto, nos dias atuais, o texto tem sido tomado
como uma prática desordenada, ou seja, o texto é trabalhado
como pretexto para o ensino de Língua Portuguesa, o que
eventualmente é um grande equívoco, ao passo que assim não se
ensina e nem se aprende nada. Desse modo, “Muitos educadores
não abordam o texto na sua dimensão textual-discursiva, ou seja,
não possuem uma concepção sóciointeracionista de linguagem
centrada na problemática da interlocução” (BRANDÃO, 2001, p.
17).
A CONTRIBUIÇÃO DOS TEXTOS NARRATIVOS PARA
O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA
A narrativa é um dos gêneros textuais mais trabalhados
em sala de aula desde cedo, nas séries iniciais, por trazer uma
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proposta mais lúdica, promovendo leituras prazerosas e ao
mesmo tempo desenvolvendo o pensamento crítico dos alunos e a
progressão da escrita. Nos dias atuais, é perceptível que no ensino
básico existem muitos alunos com dificuldades tanto na escrita
como na leitura, bem como na interpretação de textos que por
muitas vezes trata-se de um problema que perpetua ao longo da
vida escolar desses alunos.
No ambiente escolar se faz necessário à intervenção do
professor em busca de formas de promover leituras, de modo a
obter resultados positivos, não se preocupando apenas no fazer da
leitura e sim na escolha do material a ser lido, com o cuidado de
escolher textos que realmente venham a se identificar melhor
com cada turma.
Textos narrativos são uma das ferramentas que o professor
pode utilizar para alcançar seus objetivos, desde que o tipo da
narrativa se enquadre com determinadas turmas. Através dos
textos narrativos o leitor consegue ver a história de vários
ângulos, de modo que o mesmo sinta-se parte da história. Assim,
o professor deve se atentar ao comportamento dos alunos diante
de uma leitura, de uma narrativa e, em seguida, trabalhar a
deficiência, a dificuldade dos alunos.
Através dos nossos objetivos traçados e das nossas
possibilidades, trabalhamos o gênero textual de modo
interdisciplinar. Como corpus narrativo, empreendemos nossas
análises a partir da utilização do filme brasileiro “Central do
Brasil” (1998), de Walter Salles. Para tanto, selecionamos
algumas imagens do filme e pedimos à elaboração de textos
narrativos com base na análise interpretativa das imagens. A
escolha das cenas, por exemplo, deve-se ao fato de que essas são
envolventes no desenrolar dos fatos do enredo e que por isso
podem gerar discussões “narrativas” calorosas.
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“CENTRAL DO BRASIL” (1998), DE WALTER SALLES:
NOTAS INTRODUTÓRIAS
O filme brasileiro “Central do Brasil” foi produzido no
ano de 1998, pelo cineasta também brasileiro Walter Salles e a
história contada são vivências reais vividas pelo cineasta. O
roteiro é escrito por Marcos Bernstein e João Emanuel Carneiro.
Em linhas gerais – e não muito exaustivo – o filme conta a
história de “Dora (Fernanda Montenegro), que é uma mulher que
trabalha na estação Central do Brasil escrevendo cartas para
pessoas analfabetas; uma das suas clientes, Ana, aparece com o
filho Josué (Vinícius de Oliveira) pedindo que escrevesse uma
carta para o seu marido dizendo que Josué quer visitá-lo um dia.
Saindo da estação, Ana morre atropelada por um ônibus e Josué,
de apenas 9 anos e sem ter para onde ir, se vê forçado a morar na
estação. Com pena do garoto, Dora decide ajudá-lo e levá-lo até o
seu pai que mora no sertão nordestino. No meio desta viagem
pelo Brasil eles encontram obstáculos e descobertas, enquanto o
filme revela como é a vida de pessoas que migram pelo país na
tentativa de conseguir melhor qualidade de vida ou poder reaver
os seus parentes deixados para trás.
O filme mostra a realidade do Brasil no final do século
XX, caracterizando principalmente as condições de vida no
subúrbio de uma cidade grande em um país subdesenvolvido. A
massa de migrantes nordestinos, que desde o início do século
abandona o sertão em busca de melhores oportunidades na
cidade, aumentou o contingente de miseráveis nos centros
urbanos, que os trata como descartáveis, entregando-os ao tráfico
e assalto, como alternativa para sobrevivência.
O crescimento econômico dos últimos 20 anos não
repercutiu igualmente nas diversas classes sociais, sendo que as
consequências negativas desse processo atingiram duramente
grande parte da população, geralmente a mais pobre e mais
sofrida. A crescente concentração de riqueza, o salário mínimo
vergonhoso, o desemprego, o aumento da pobreza e da miséria, a
falta de saneamento básico e de assistência à saúde, fazem parte
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das situações trágicas vividas na carne pela população mais
pobre, com a qual nos deparamos em nosso cotidiano.”2
ANÁLISE DO CORPUS: CENAS DE “CENTRAL DO
BRASIL” POR UM OLHAR NARRATIVO
Nesta parte do trabalho, nos propomos apresentar como se
deu o processo de análise e de interpretação das imagens colhidas
no filme. Adiantamos que as análises aqui apresentadas são
percepções sensoriais e visuais e que muitas vezes não tece
análises complexas em sua profundidade. As cenas praticamente
giram em torno das personagens Dora e Josué por estas serem as
protagonistas do filme. Vejamos, a seguir. Imagens 01
Fonte: imagens do filme “Central do Brasil”
Essas imagens representam o momento em que a
personagem de Ana e do Josué, seu filho, vão até a estação
Central do Brasil, localizada no Rio de Janeiro, para que Dora,
interpretada pela Fernanda Montenegro, que atua no filme como
uma escrevedora de cartas, escreva uma carta para o pai de Josué,
o qual ele imprime uma grande saga a procura do mesmo ao
decorrer do filme. É importante ressaltar as características
psicossociais de Dora para que possamos compreender,
futuramente, algumas de suas atitudes comportamentais.
2 Informação colhida do site de pesquisa Wikipedia. Acessar o link para essas e
outras informações: https://pt.wikipedia.org/wiki/Central_do_Brasil_(filme)
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Dora é uma mulher humilde, rústica e de classe social
baixa que trabalha e mora perto à Central do Brasil. Sua tarefa
cotidianamente é escrever cartas de pessoas analfabetas para seus
parentes. Dora apresenta um lado moral, digamos assim, afetado,
pois, em outras palavras, ela não se reconhece e não tem
autoestima, a mesma age, no filme, como uma
pessoa/personagem sem escrúpulos, ao passo que na verdade as
pessoas que a procuram com a finalidade de pedir a ela que
escreva cartas para serem enviadas a seus parentes, normalmente
são de pessoas que logicamente não sabem escrever e que
confiam plenamente na boa vontade e na boa índole da
personagem, mas não é isso que acontece. Ora, Dora não envia
carta alguma, ela simplesmente engana a todos dizendo que
colocará a carta no correio, mas ela não o faz e na verdade as
cartas são direcionadas a sua gaveta própria em sua casa. Ela, na
verdade, rouba os clientes e se beneficia da boa vontade deles,
porque seu sustento é gerado através das cartas que ela escreve.
Ana, no entanto, é uma dessas clientes que procura Dora,
a fim de pedir para que ela escreva uma carta direcionando ao pai
de Josué, o qual ela não vê a certo tempo e ao qual ele nem sabe
da existência do filho. E Dora escreve a carta e como podemos
perceber através da aparência de Ana e de Josué nas imagens
logo acima, o descontentamento de ambos em não saber do
paradeiro do suposto pai do garoto. A partir dali, dessa escrita
dessa carta que Dora promete colocar no correio, é como se um
sentimento de compaixão pelo próximo despertasse em Dora,
mas mesmo assim nessa primeira carta ela não chega a colocar no
correio. Em outro dia, Ana volta com Josué à Central do Brasil
pedindo informações sobre a carta anterior que Dora havia
escrito, pois Ana gostaria de rasgar ela e queria que Dora
escrevesse outra e assim foi feito: foi rasgado e uma nova carta
foi escrita.
Após a conclusão da escrita da carta, Ana retira um lenço
de sua bolsa e deixa sobre a mesa de Dora e vai embora e acaba
esquecendo, mais na frente, já na pista da praça central, Ana é
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atropelada por um ônibus e morre no local, deixando Josué
bastante triste por agora não ter nem mãe e nem pai, mas o garoto
não se intimida diante da situação e o que desperta nele o
sentimento de querer continuar seu caminho mesmo sem a mãe é
a convicção de que ele encontrará seu pai e assim ele será muito
feliz ao lado, também, de seus irmãos. Dora, por conseguinte, ao
vê o lenço da acidenta se solidariza com a morte e com o garoto.
Esse é o primeiro indício que a personagem nos apresenta de que
está se redimindo, já que sofreu bastante nessa vida e que por isso
age grosseiramente, sem pensar nas consequências que seus atos
podem lhe causar.
Diante do exposto e das imagens apresentadas,
trabalhamos com a produção de narrações memorialísticas, ou
seja, solicitamos que os alunos, através da leitura crítica de
imagens, desenvolvessem um texto narrativo contando às
memórias que foram acionadas à sua mente ao se depararem com
aquelas cenas. É importante ressaltar que os alunos assistiram ao
filme por completo, mas o corpus de análise foi gerado a partir da
seleção de algumas imagens. O diferencial seria perceber como
que os alunos aceitariam a proposta de narrarem textos visuais,
porque acreditamos que contar a história do filme como um todo
seria bastante fácil para eles, mas criarem um texto narrativo de
memórias a partir da escolha de certas imagens, seria o
diferencial na capacidade interpretativa deles. O resultado dessa
atividade foi surpreendente, porque eles mostraram que são
capazes de compreenderem um texto visual e a partir dele criarem
suas próprias narrativas. Imagens 02
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Fonte: imagens do filme “Central do Brasil”
Nessas outras imagens do filme, trabalhamos com a
confecção de narrativas que correspondem aos aspectos sociais e
psicológicos dos personagens em cena. Como podemos
depreender, são momentos em que o despertar pela
sentimentalidade ao próximo já chegou ao coração de Dora e
agora ela empreende uma suga junto ao Josué pelo sertão
nordestino a procura do pai do garoto. A mulher que no início era
carrasca, durona consigo e com o seu próximo, agora se sente
liberta, dona de si mesma e não mede esforços para ajudar o
garotinho que tanto sonha encontrar seu pai.
É importante que os alunos percebam o quanto essas
imagens nos trazem de ensinamentos e de reflexões e que
obviamente todas têm conteúdos muito interessantes para tecerem
boas narrativas. Na confecção dos textos, tivemos a preocupação
de atentar os estudantes para as cores, pois estas nos dizem
muitas coisas. Os alunos tiveram a sensibilidade de perceberem
na feição dos personagens o quanto eles estavam tristes, cansados
e apáticos, mas ao mesmo tempo com aquela garra e o brilho nos
olhos de que algo bom estava a caminho, como podemos
interpretar através da análise da última imagem, por exemplo.
As imagens expostas nos retratam alguns acontecimentos:
a viagem pelo Brasil a fora a procura do pai, a curiosidade em
saber que possivelmente poderia ter encontrado o pai, o momento
de cansaço de um dia de luta, de procura, de um bem-estar em
comum e o momento em que Josué vai a procura do pai em uma
determinada casa, uma vez que o endereço remetia àquela
Narrativas Memorialísticas em “Central do Brasil”... - Santos
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moradia. Mas, infelizmente, ainda não foi o momento. O homem
que ali pertencia não era o pai de Josué, mas o conhecia e isso fez
diferença. Não está nas imagens expostas, mas os alunos fizeram
menção ao momento em que o homem diz que não é o “Jesus”, o
pai do garoto, e Josué se entristece ao ouvir aquilo, essa memória
obtida pelos alunos foi bastante interessante e foi muito bem
aproveitada em suas narrativas, porque eles lembraram de
acontecimentos que não estavam expostos nas imagens. Imagens 03
Fonte: imagens do filme “Central do Brasil”
Este é o momento de reconhecimento e do sentimento
exposto de Dora pelo garotinho Josué, como podemos auferir. As
imagens, o cenário, o carinho feito, as faces e as cores nos
remetem a muitas memórias. Dora encontrou em Josué a sua
forma de começar a enxergar o mundo – que era escuro para ela –
agora com mais brancura; Josué, para ela, é um filho que ela não
teve e ela não cansa de demonstrar esse sentimento pelo garoto e
a maior prova disso é quando ela larga tudo no Rio de Janeiro e
se “joga” como um rio que deságua no mar, no Brasil, com Josué
a procura de seu pai, enfrentando todas as intempéries que a vida
lhes proporciona. E com Josué, por sua vez, não poderia ser
diferente. Ele vê a Dora como uma segunda mãe, foi difícil para
ambos demostrarem o sentimento que os mesmos demonstravam
um pelo outro, mas conseguiram.
Essas imagens são de uma segunda tentativa de Dora e de
Josué de procurarem pelo seu pai, mas é o ápice do momento de
descoberta de sentimentos nutridos um pelo outro. Dora e Josué
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dão uma pausa, talvez pelo fato de estarem cansados da
caminhada e se dedicam um ao outro: o amor fraterno. Temas
fraternos de respeito, amor ao próximo, descoberta de
sentimentos, à aceitação aos sentimentos, amor de mãe e amor de
filho foram temas recorrentes nas narrações propostas pelos
alunos. Muitos chegaram até a relatar em seus textos o quanto
essas imagens os emocionaram, relataram que se colocaram no
lugar do personagem mirim, Josué, e tiveram a percepção de
sentir na pele o que é não ter mais sua mãe e passar a nutrir um
sentimento de mãe por uma pessoa que eles nunca viram na vida.
Essa proposta a partir desses temas já elencados rendeu muitos
textos narrativos interessantes. Imagens 04
Fonte: imagens do filme “Central do Brasil”
O trabalho realizado a partir da leitura dessas imagens
surgiu a partir de diversas temáticas, a saber: o (possível?)
reencontro com o pai, é chegada a hora, a carta e em família.
Esses são os momentos que antecedem o final do filme, que é
quando Dora e Josué chegam a uma localidade onde prenuncia a
presença do pai do garoto. Chegando lá, a personagem da Dora
procura por “Jesus” e quem as recebe é “Isaías”, filho de “Jesus”
e irmão de Josué; ele, no início, fica surpreso pela visita, já que
atesta que seu pai não costuma receber visitas e os convidam para
entrar.
Chegando a casa, Isaías apresenta seu outro irmão o
“Moisés”, que aparentemente não se sente satisfeito com a
presença de Dora e nem de Josué. Dora, finalmente, explica a que
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veio e se diz está ali à procura do pai de Josué que se chama
“Jesus” e que a mãe do menino, Ana, faleceu no Rio de Janeiro.
Percebe-se que Isaías fica muito comovido ao saber de toda sua
história e já se emociona ao saber que Josué é seu irmão. Dora
pergunta pela presença de “Jesus” e a resposta que é dada é que
ele é um bêbado e que sumiu no mundo e que até hoje não se tem
notícias de seu paradeiro. Josué se entristece e se achega a Dora
como que quisesse dizer que não vai encontrar seu pai mais.
Josué curioso como é, observa na parede um retrato de sua
mãe e de seu pai, é o primeiro registro que ele vê da existência do
mesmo. Uma carta que estava com os rapazes é apresentada a
Dora e Isaías pede que ela leia em voz alta para que todos possam
ter conhecimento do que se trata. Segundo eles essa carta nunca
foi aberta e nem lida. Dora lê e na carta não tem menção ao
Josué, mas Dora rapidamente insere o nome de Josué à leitura,
como uma forma de fazer com que ele se sinta como parte
integrante daquela família.
Os textos narrativos dos alunos foram de encontro a essas
ideias, mostraram com criticidade como é a sensação de não se
inserir em determinada família e da busca incansável pela procura
de um pai, a sensação de quebra e de decepção em saber que seu
pai não era aquilo que ele idolatrava. As narrações relataram
também acontecimentos de testemunhos reais, ou seja, os alunos
extrapolaram a leitura das imagens do filme e levaram para a
realidade pessoal da qual eles têm conhecimento. Foi um aspecto
interessante, pois, mostrou capacidade de inferir e de selecionar
acontecimentos, informações outras de outros suportes fora o
filme em questão.
Foi questionada, também, a presença do irmão “Moisés”
que nada se alegrou em saber da existência de outro irmão. Os
alunos relataram que a falta do pai, a raiva que ele tem do pai faz
com que ele feche seus olhos para tudo que de alguma forma
possa está relacionado/ligado a ele, como a presença do irmão.
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Imagens 05
Fonte: imagens do filme “Central do Brasil”
Este é praticamente os momentos finais dessa grande saga
que é contada no filme “Central do Brasil”. Essas imagens são
dos últimos momentos juntos entre Dora e Josué. Na primeira
imagem é um diálogo entre mãe e filho e filho e mãe, digamos
assim, um diálogo que ao decorrer deste trabalho nós podemos
perceber que é de afeto, de compaixão, de respeito, de
solidariedade e de um reconhecimento. Esses temas foram
abordados mais uma vez pelos alunos nas narrativas.
Este é o momento em que Dora e Josué dialogam após a
conversa que eles tiveram com os irmãos de Josué. É importante
ressaltar que após a conversa entre todos, os demais personagens
foram dormir e Dora e Josué ficaram conversando, foram os
últimos momentos deles até a partida definitiva de Dora. A
segunda imagem representa o momento da partida de Dora em
que Josué a procura e a não encontra mais, foi um momento
difícil para Josué à partida de Dora, já que ele nutriu um
sentimento fraterno pela personagem. Imagem 06
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Fonte: imagens do filme “Central do Brasil”
Chegamos aos momentos finais dessa grande história que
é contada e que contamos aos poucos neste trabalho. E essas
últimas imagens do filme têm esse objetivo. Já dizia a célebre
frase: “uma imagem vale mais que mil palavras” e é verdade.
Essas imagens nos dizem muito mais que palavras escritas. Esses
são os momentos definitivamente da partida de Dora. Após a
conversa que os personagens tiveram todos foram dormir e na
calada da noite Dora levantou-se, olhou fixamente para Josué
dormindo juntos de seus irmãos.
Nesse momento, ela pegou as cartas – a de seu pai e a de
sua mãe – e as deixou em cima de uma mesinha, em seguida, foi
ao banheiro e vestiu um vestido azul florido, que por sinal foi
presente de Josué para ela, um presente que representa mais que
um símbolo de afeto, é o amor demonstrado por Josué a Dora,
essa que agora ele a tem como sua mãe e como que quisesse dizer
que queria ela sempre ao seu lado e bem bonita, porque de fato
ela é bonita. O presente de Josué tem essa significação.
Pois bem, ela vestiu o vestido, se olhou no espelho e foi
mais uma vez olhar o Josué que dormia silenciosamente. Abriu a
porta e deu uma pausa, nesse momento a câmera foca bem a sua
face que não é surpresa, estava bastante emocionada, chorando
por ter que partir e deixar Josué. A explicação dela não ter se
despedido do Josué é o fato da saudade, ela tinha a consciência de
que seria difícil, mas do que já foi, ter que se despedir dele e de
saber que não vai mais ter a presença física dele ao seu lado, isso
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sem falar no que o Josué diria a ela que, óbvio, não seria também
uma aceitação fácil.
Dora caminha em direção à rua e pega o ônibus que
passava bem na frente. É importante frisar que o trabalho de
direção e de interpretação foi construído impecavelmente,
pensando nas emoções do telespectador. Em alguns instantes,
Josué acorda e sente a falta de Dora e a procura pela casa e não a
encontra e sem pensar duas vezes abre a porta e corre, corre em
busca e na convicção de encontrar Dora ainda pelas ruas da
cidade, mas, infelizmente, Dora já está a viajar dentro do ônibus.
Josué retorna a casa onde estava e chora bastante pela ausência
daquela que por muitos dias foi sua mãe. O desejo dele seria o de
nunca mais se separar de Dora.
As imagens do filme se voltam agora para Dora, dentro do
ônibus, que muito emocionada está a escrever uma carta a Josué e
as cenas finais dessa linda e impecavelmente história está
registrada nessas imagens logo acima. Portanto, o filme foi um
divisor de águas para o cinema brasileiro ao contar essa história
simples, mas envolvente, de uma maneira tão generosa. Dora
achou que seria melhor que Josué ficasse ao lado de seus irmãos,
que seria melhor para ele, mas ela pede, na carta, que ele não a
esqueça, assim como ela não o esquecerá e que o sentimento que
eles construíram juntos ficará para sempre e que poderão ser
recordados através do retratinho que tiraram juntos. Finalizamos
essa análise com a apresentação da carta escrita por Dora a Josué.
O trabalho com o gênero textual “narrativo”, a partir da
análise dessas imagens, foi como já era de se esperar bastante
significante. Os alunos conseguiram desenvolver textos sólidos e
consistentes, procurando fazer menção aos sentimentos e a
emoção que as imagens pediam; por outro lado, fizeram críticas
construtivas ao final do enredo, desenvolvendo argumentos de,
por exemplo, o porquê de Dora ter partido se ela gostava do
menino e o porquê de não ter levado ele com ela. Após a escrita
dos textos, discutimos essas questões e procuramos apresentar
caminhos que poderiam explicar o motivo dela ter feito essa
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escolha, acreditamos que a interpretação desse final vai de acordo
com a concepção de cada um, da maneira como cada um se
sensibiliza e entende o lado maternal e de mulher de Dora. A Carta de Dora
Antonio Pinto e Jaques Morelenbaun
Josué,
Faz muito tempo que eu não mando uma carta pra alguém. Agora eu
tô mandando essa carta pra você.
Você tem razão. Seu pai ainda vai aparecer e, com certeza, ele é tudo
aquilo que você diz que ele é.
Eu lembro do meu pai me levando na locomotiva que ele dirigia. Ele
deixou eu, uma menininha, dar o apito do trem a viagem inteira.
Quando você estiver cruzando as estradas no seu caminhão enorme,
espero que você lembre que fui eu a primeira pessoa a te fazer botar a
mão no volante.
Também vai ser melhor pra você ficar aí com seus irmãos. Você
merece muito, muito mais do que eu tenho pra te dar.
No dia que você quiser lembrar de mim, dá uma olhada no retratinho
que a gente tirou junto.
Eu digo isso porque tenho medo que um dia você também me
esqueça.
Tenho saudade do meu pai, tenho saudade de tudo.
Dora
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse estudo foi de fundamental e necessária importância
para a inserção do trabalho com o gênero textual “narrativo” e da
análise fílmica em sala de aula. O estudo permitiu apresentar um
recorte diferenciado de como se trabalhar textos narrativos em
sala de aula. Tendo em vista que as aulas de Língua Portuguesa,
especificamente as de leitura e interpretação de textos, são
taxadas como cansativas e pouco construtivas, muitas vezes pelos
fatores já apresentados e discutidos no início deste estudo, então
pensando nessa ideia, o trabalho de escrita narrativa permitiu que
os alunos saíssem de suas zonas de acomodamento de apenas
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produzirem textos orais e passarem a produzir textos escritos com
o auxílio das narrativas.
Os objetivos traçados e esperados foram conquistados,
pois podemos perceber que um filme pode sim ser trabalhado em
sala de aula, o que diferencia e faz a diferença é a maneira como
o professor trabalha o filme em sala de aula. Levar uma obra
fílmica para o contexto escolar é desafiador, uma vez que se não
bem trabalhado pode levar o aluno à dispersão e ele começa a vê
aquele momento como um “passa tempo” como apenas um “sair
das aulas tradicionais”. Essa ideia deve ser quebrada desde as
séries iniciais com os nossos alunos. O trabalho com o filme pode
ser e deve ser pensado como uma metodologia que vai além do
ensino tradicional. Um bom filme pode ter a mesma finalidade de
uma aula qualquer, o que fará o trabalho com o filme uma aula
boa, é como o docente trabalhará ele. Leitura de imagens,
também, seguindo esse mesmo direcionamento, é um facilitador
no processo de ensino e de aprendizagem de nossos alunos e isso
percebemos através desse trabalho realizado com imagens
fílmicas.
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LEITE, L. C. M. O foco narrativo. 4ª edição. São Paulo: Editora
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REALES, L.; CONFORTIN, R. de S. Introdução aos estudos da
narrativa. Florianópolis: LLE/CCE/UFSC, 2008.
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p. 569-596, jul/dez/2006.