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Narrativas Memorialísticas em “Central do Brasil”... - Santos Revista Diálogos set. /out. 2018 N.º 20 269 NARRATIVAS MEMORIALÍSTICAS EM CENTRAL DO BRASIL” (1998), DE WALTER SALLES: O TRABALHO EM SALA DE AULA Deividy Ferreira dos Santos (UCAM) 1 d.o.i. 10.13115/2236-1499v2n20p269 Resumo: As narrativas memorialísticas têm, atualmente, assumido significativa importância no campo das ciências da linguagem, de maneira geral, principalmente às relacionadas ao campo literário. Essa centralidade e significativa importância devem, dentre outros fatores, à funcionalidade que as mesmas têm-se encontradas no ambiente escolar. Assim sendo, o trabalho com o gênero textual “narrativa” permite auferir da responsabilidade que é levar alguns gêneros para o trabalho em sala de aula, isso devido ao fato de que os gêneros principalmente aqueles da esfera cotidiana aproximam o leitor das atividades de leitura e de interpretação textual. O trabalho em sala de aula a partir de filmes, por exemplo, tem sido bastante sugestivo e aceito, o que positivamente tem gerado discussões que são aceitas no meio escolar. Seguindo esse mesmo direcionamento, este trabalho tem por objetivo apresentar como tem sido e quais os desafios que se tem de trabalhar com o gênero textual “narrativa” em sala de aula, a partir, também, de uma análise fílmica. Muito se tem discutido a respeito de como trabalhar textos nas escolas, por este não ser uma tarefa fácil. Encontra-se nas salas de aulas uma forte resistência, da parte dos alunos, em relação à leitura e à produção de textos. Para muitos estudantes, a ação de expressar suas ideias por meio da oralidade é algo considerado totalmente natural, no entanto, o ato de reproduzir essas ideias de modo escrito representa um trabalho árduo que requer aprendizagem e prática na escrita. Sabemos, pois, que trabalhar com a interdisciplinaridade, é fundamental para o processo de ensino e de aprendizagem dos alunos, mas, infelizmente, muitos não têm dado a devida atenção como se deveria. Este estudo, 1 Pós-Graduando (Especialização) em Ensino de Língua Portuguesa (UCAM), Graduação em Letras com ênfase em Licenciatura em Língua Portuguesa e suas Literaturas (UPE). Atualmente é professor da EREM Henrique Justino de Melo, Tutor a distância no curso de Pós-Graduação (Especialização) em Letras na modalidade EAD pela Universidade de Pernambuco UPE/UAB (Bolsista CAPES) e membro efetivo da Equipe Técnica da Revista de Estudos Linguísticos, Literários, Culturais e da Contemporaneidade (UPE - campus Garanhuns).

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Narrativas Memorialísticas em “Central do Brasil”... - Santos

Revista Diálogos – set. /out. – 2018 – N.º 20 269

NARRATIVAS MEMORIALÍSTICAS EM “CENTRAL DO

BRASIL” (1998), DE WALTER SALLES: O TRABALHO

EM SALA DE AULA

Deividy Ferreira dos Santos (UCAM)1

d.o.i. 10.13115/2236-1499v2n20p269

Resumo: As narrativas memorialísticas têm, atualmente, assumido

significativa importância no campo das ciências da linguagem, de

maneira geral, principalmente às relacionadas ao campo literário. Essa

centralidade e significativa importância devem, dentre outros fatores, à

funcionalidade que as mesmas têm-se encontradas no ambiente escolar.

Assim sendo, o trabalho com o gênero textual “narrativa” permite

auferir da responsabilidade que é levar alguns gêneros para o trabalho

em sala de aula, isso devido ao fato de que os gêneros principalmente

aqueles da esfera cotidiana aproximam o leitor das atividades de leitura

e de interpretação textual. O trabalho em sala de aula a partir de filmes,

por exemplo, tem sido bastante sugestivo e aceito, o que positivamente

tem gerado discussões que são aceitas no meio escolar. Seguindo esse

mesmo direcionamento, este trabalho tem por objetivo apresentar como

tem sido e quais os desafios que se tem de trabalhar com o gênero

textual “narrativa” em sala de aula, a partir, também, de uma análise

fílmica. Muito se tem discutido a respeito de como trabalhar textos nas

escolas, por este não ser uma tarefa fácil. Encontra-se nas salas de aulas

uma forte resistência, da parte dos alunos, em relação à leitura e à

produção de textos. Para muitos estudantes, a ação de expressar suas

ideias por meio da oralidade é algo considerado totalmente natural, no

entanto, o ato de reproduzir essas ideias de modo escrito representa um

trabalho árduo que requer aprendizagem e prática na escrita. Sabemos,

pois, que trabalhar com a interdisciplinaridade, é fundamental para o

processo de ensino e de aprendizagem dos alunos, mas, infelizmente,

muitos não têm dado a devida atenção como se deveria. Este estudo,

1 Pós-Graduando (Especialização) em Ensino de Língua Portuguesa (UCAM),

Graduação em Letras com ênfase em Licenciatura em Língua Portuguesa e

suas Literaturas (UPE). Atualmente é professor da EREM Henrique Justino de

Melo, Tutor a distância no curso de Pós-Graduação (Especialização) em Letras

na modalidade EAD pela Universidade de Pernambuco UPE/UAB (Bolsista

CAPES) e membro efetivo da Equipe Técnica da Revista de Estudos

Linguísticos, Literários, Culturais e da Contemporaneidade (UPE - campus

Garanhuns).

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entre outras razões, procura à luz de uma abordagem sistêmica de

análise mostrar o quão é rico o trabalho em sala de aula por meio das

narrativas literárias, proporcionando estratégias didáticas e

metodológicas adequadas e eficazes ao contexto escolar. Por outro lado,

mostraremos, neste estudo, que o gênero textual “filme” pode ser um

suporte muito eficiente para se trabalhar narrativas. Pensando nessa

ideia, selecionamos como corpus o filme brasileiro “Central do Brasil”

(1998) do cineasta Walter Salles. A metodologia empreendida se dará

da seguinte forma: selecionamos algumas cenas do filme supracitado e

trabalhamos essas com os alunos, em seguida, foi pedido que os

mesmos produzissem narrativas a partir de suas análises interpretativas.

O estudo, portanto, mostra que as narrativas apresentadas, neste

trabalho, como “memorialísticas” são importantes para que o aluno

desperte a capacidade crítica de leitura e de interpretação textual e que

é um recurso facilitador no processo de ensino e de aprendizagem.

Palavras-chave: Narrativas Memorialísticas, Ensino, Central do Brasil,

filme.

Resumen: Las narraciones memorialísticas tienen, actualmente,

asumido significativa importancia en el campo de las ciencias del

lenguaje, de manera general, principalmente a las relacionadas al

campo literario. Esta centralidad y significativa importancia deben,

entre otros factores, a la funcionalidad que las mismas se han

encontrado en el ambiente escolar. Por lo tanto, el trabajo con el género

textual "narrativa" permite obtener de la responsabilidad que es llevar

algunos géneros para el trabajo en el aula, debido al hecho de que los

géneros principalmente aquellos de la esfera cotidiana acercan al lector

de las actividades de lectura y de lectura de interpretación textual. El

trabajo en el aula a partir de películas, por ejemplo, ha sido bastante

sugestivo y aceptado, lo que positivamente ha generado discusiones que

son aceptadas en el medio escolar. Siguiendo ese mismo

direccionamiento, este trabajo tiene por objetivo presentar como ha sido

y cuáles los desafíos que se tienen de trabajar con el género textual

"narrativa" en el aula, a partir, también, de un análisis fílmico. Se ha

discutido mucho sobre cómo trabajar textos en las escuelas, por no ser

una tarea fácil. Se encuentra en las aulas una fuerte resistencia, por

parte de los alumnos, en relación a la lectura ya la producción de textos.

Para muchos estudiantes, la acción de expresar sus ideas por medio de

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la oralidad es algo considerado totalmente natural, sin embargo, el acto

de reproducir esas ideas de modo escrito representa un trabajo arduo

que requiere aprendizaje y práctica en la escritura. Sabemos, pues, que

trabajar con la interdisciplinaridad, es fundamental para el proceso de

enseñanza y aprendizaje de los alumnos, pero, desgraciadamente,

muchos no han dado la debida atención como se debería. Este estudio,

entre otras razones, busca a la luz de un enfoque sistémico de análisis

para mostrar cuán rico es el trabajo en el aula a través de las narrativas

literarias, proporcionando estrategias didácticas y metodológicas

adecuadas y eficaces al contexto escolar. Por otro lado, mostraremos,

en este estudio, que el género textual "película" puede ser un soporte

muy eficiente para trabajar narrativas. Pensando en esa idea,

seleccionamos como corpus la película brasileña "Central do Brasil"

(1998) del cineasta Walter Salles. La metodología emprendida se dará

de la siguiente forma: seleccionamos algunas escenas de la película

arriba mencionada y trabajamos éstas con los alumnos, a continuación,

se les pidió que los mismos produjeran narrativas a partir de sus análisis

interpretativos. El estudio, por lo tanto, muestra que las narrativas

presentadas, en este trabajo, como "memorialísticas" son importantes

para que el alumno despierte la capacidad crítica de lectura y de

interpretación textual y que es un recurso facilitador en el proceso de

enseñanza y de aprendizaje.

Palabras-clave: Narrativas Memorialísticas, Enseñanza, Central de

Brasil, película.

DISCUTINDO QUESTÕES INICIAIS

O trabalho em sala de aula, nos dias atuais, tem assumido

significativa importância e é necessária a inserção dessa prática

no currículo das escolas brasileiras, para que assim possamos

construir cidadãos de bem e preocupados com o mundo e o

espaço institucional aos quais eles estão imersos. Sabemos, pois,

que esse trabalho não é fácil, uma vez que requer

responsabilidade e compromisso de todos os agentes sociais que

fazem parte desse mercado de trabalho e nem sempre percebemos

essa preocupação por parte desses membros.

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Temos visto com bastante frequência nas escolas

brasileiras que o trabalho do professor em sala de aula tem

passado por inúmeros retrocessos, sejam esses politizados ou até

mesmo pela falta de reconhecimento do trabalho do professor.

Muitas vezes o profissional em sala de aula não tem sua

autoestima elevada e isso compromete negativamente no

processo de ensino e de aprendizagem tanto dele como do aluno.

À guisa de exemplificação, muitos dos problemas educacionais

existentes hoje em cenário mundial, deve-se, dentre outros

fatores, de algum modo às relações conflitivas entre professor-

aluno, aluno-professor, aluno-aluno e aluno-equipe gestora.

Neste sentido, o risco de abandono escolar e o índice alto

de reprovações tornam-se um fator agravante que tende a piorar,

à medida que o tempo passa. Este estudo busca, portanto, mostrar

como tem sido e quais os desafios que se tem de trabalhar com o

gênero textual “narrativa” em sala de aula, a partir, também, de

uma análise fílmica. Por outro lado, mostraremos, neste estudo,

que o gênero textual “filme” pode ser um suporte muito eficiente

para se trabalhar narrativas. Pensando nessa ideia, selecionamos

como corpus deste estudo o filme brasileiro “Central do Brasil”

(1998) do cineasta Walter Salles. A metodologia empreendida se

dará da seguinte forma: selecionamos algumas cenas do filme

supracitado e trabalhamos essas com os alunos, em seguida, foi

pedido que os mesmos produzissem textos narrativos a partir de

suas análises interpretativas.

Selecionamos o gênero “narração”, com o objetivo de

auxiliar os discentes a conhecer a estrutura, as características e a

finalidade do gênero narrativo. É relevante salientar que a escolha

da metodologia empreendida não ocorreu de forma aleatória; pelo

contrário, buscamos partir das reais necessidades dos alunos,

principalmente no que corresponde à compreensão do referido

gênero e à prática da produção textual. Trabalhamos com o texto

em foco, buscando discutir os propósitos comunicativos, as

características do gênero, a definição, as funcionalidades e a sua

produção e também com o filme, mostrando o quanto ele é atual e

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o quanto suas histórias memorialísticas podem tecer narrativas

interessantes no processo textual.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O GÊNERO TEXTUAL

“NARRATIVA”

O ato de narrar é uma qualidade da característica humana.

O homem, em sua singularidade e enquanto sujeito social e

pensante realiza-se do ato de narrar o tempo inteiro, ao passo que,

segundo o grande estudioso brasileiro Antônio Cândido (1987), o

homem necessita fabular. E ele realiza essa fabulação

cotidianamente através das memórias e das narrações. As

memórias são acionadas ao seu consciente a partir do momento

que o homem tem a capacidade de raciocinar e à medida que ele

raciocina registros são gerados e ele passa a transmitir essas

sensações, muitas vezes, por meio das narrativas, sejam elas orais

ou escritas.

Assim sendo, concordemos com Reales e Confortin

(2011), quando eles afirmam que: Narrar faz parte da vida dos homens. Poderíamos

dizer que é uma atividade fundamental da vida,

posto que, através da narração, é possível

organizar as experiências e torná-las

comunicáveis. Contar histórias é uma atividade

praticada por todos. Por esse motivo, todos nós

sabemos produzir discursos narrativos, tendo

noção dos elementos que constituem um relato.

Muitas pessoas, alguma vez, já praticaram algum

tipo de narrativa escrita em cartas ou diários

pessoais. A narrativa, então, não se concretiza

apenas no plano literário, podendo estar presente

na comunicação oral ou escrita de qualquer pessoa

em qualquer época. Do mesmo modo, a narrativa

encontra-se em diversas situações

comunicacionais tais como a imprensa ou os livros

de história. No plano estético, a narrativa se dá em

diversos modos expressivos tais como o cinema

ou as histórias em quadrinhos, havendo a junção

entre o verbal e não verbal. Desse modo, a

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narrativa literária é uma possibilidade dentro da

diversidade de ocorrências em que podem ser as

narrativas (REALES; CONFORTIN, 2011, p. 09).

Partindo desta perspectiva, o presente trabalho pretende

fazer um estudo sobre o gênero textual “narrativa” em sala de

aula a partir de uma análise fílmica, como já exposto, com vistas

a mostrar que a prática de ensino de gêneros textuais e/ou

literários torna-se necessária, à medida que os gêneros constituem

sujeitos e os moldam para a compreensão e/ou reconhecimento de

suas vivências sociais. Seguindo esse mesmo raciocínio, vejamos

o que nos apresenta Barthes (1985), quando ele nos assevera que:

...a narrativa está presente em todos os tempos, em

todos os lugares, em todas as sociedades; a

narrativa começa com a própria história da

humanidade; não há, nunca houve em lugar

nenhum povo algum sem narrativa; todas as

classes, todos os grupos humanos têm as suas

narrativas, muitas vezes essas narrativas são

apreciadas em comum por homens de culturas

diferentes, até mesmo opostas: a narrativa zomba

da boa e da má literatura: internacional, trans-

histórica, transcultural, a narrativa está sempre

presente, como a vida (BARTHES, 1985, p. 245).

Como podemos auferir da referida citação e ainda

segundo Barthes (1985), narrar é uma característica fundamental

à condição humana. Somos narradores de nossas próprias

histórias e vivências o tempo todo. Narramos o que lemos, o que

ouvimos, o que presenciamos e o que assistimos e tudo isso

interligado a nossa capacidade de pensar e de raciocinar

mutuamente, pois, de acordo com Pellegrine (2003, p. 64),

“Quem narra, por sua vez, escolhe o momento em que uma

informação é dada e por meio de que canal isso é feito”.

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NARRATIVA LITERÁRIA: UM ESPAÇO PLURAL

O texto narrativo é considerado por muitos como um texto

de fácil compreensão e que agrada a todos, de maneira geral. O

lúdico, nesse sentido, tem ganhado espaço nesse mundo da

simbologia, do imagístico e do narrativo. As narrativas literárias

contam determinadas histórias, sejam elas do universo do

romance, do suspense, do terror, da magia e os efeitos que esse

tipo de história tem sobre a mente das crianças, dos jovens, dos

adultos e dos estudantes, de maneira geral, vai depender da

captação que esses atores sociais têm sobre a história contada.

Assim, ainda segundo Reale e Confortin (2011):

As narrativas literárias são textos de caráter

ficcional que contam uma história de uma

determinada maneira, ou seja, de acordo com

certas práticas artísticas, e que se oferecem à

interpretação daqueles que as lerão de acordo com

sua época. As narrativas literárias não têm o

compromisso de refletir a realidade. Elas criam

uma “realidade” através da organização dos fatos

dentro do enredo, por meio de estratégias

narrativas que garantem a coerência interna da

obra e de acordo com as tendências literárias de

cada época, chegando, muitas vezes, a provocar

uma profunda renovação estética. Segundo a

teoria da representação, toda a narrativa ficcional é

composta de enunciados que representam os fatos

ou conteúdos narrados de acordo com estratégias

discursivas que mantêm ou não uma relação de

contiguidade com a realidade e com os modos de

outros discursos narrarem essa realidade (REALE;

CONFORTIN, 2011, p. 10).

As narrativas literárias não têm o papel de representarem a

realidade por meio de suas histórias; pelo contrário, essas, na

maioria das vezes, refletem momentos do cotidiano que pode

ocasionalmente, por coincidência, remeter a algum fato real, mas

é importante deixar claro que não é uma constância. Levando em

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consideração o trabalho realizado em sala de aula a partir do livro

didático de Língua Portuguesa, notamos que, em sua grande

totalidade, os exemplos de narrativas que vêm expostas no livro

são principalmente histórias voltadas aos romances infantis, de

personagens caricaturais, de um amor idealizado entre

determinados personagens, de terror, de mistério, de suspense e

etc, mas são poucas as histórias que trazem traços reais.

Neste sentido, de acordo com Reale e Confortin (2011):

Numa narrativa, é fundamental observar o que se

conta e como se conta. Ou seja, para efeitos de

análise, devemos distinguir dois planos

fundamentais: o da história e o do discurso,

planos, no entanto, organicamente articulados na

narração. No plano da história, observaremos o

que se conta; no plano do discurso, como se

contam os fatos narrados (REALE; CONFORTIN,

2011, p. 10). (Grifos dos autores).

Assim, na tabela, a seguir, vejamos que a narrativa está

estruturada sobre cinco elementos principais:

Elementos na narrativa

(i) Enredo; (ii) personagens; (iii) tempo; (iv) espaço; (v)

narrador.

Gêneros literários

(i) Épico: é o gênero narrativo ou de ficção que se

estrutura sobre uma história;

(ii) Lírico: é o gênero ao qual pertence à poesia lírica;

(iii) Dramático: é o gênero teatral, isto é, aquele que

engloba o texto de teatro, uma vez que o espetáculo

em si foge à alçada da literatura.

Fonte: REALE; CONFORTIN, 2011.

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De acordo com os autores, os gêneros literários são

organizados de acordo com a materialidade linguística a qual eles

pertencem dentro do texto. Quando apresentado esses tipos de

gêneros literários em sala de aula, muitas vezes são discutidas

apenas as características de cada um e, no final, é exemplificado

com apenas um exemplo, pelo menos essa é a noção trazida e

apresentada pelo livro didático de Língua Portuguesa. E os

autores seguem nos dizendo que:

O conceito de que o texto é à base do ensino e

aprendizagem de Língua Portuguesa vem sendo

aceita no Brasil há muitos anos. Durante muito

tempo, esta abordagem textual foi aplicada ao

ensino de maneiras diferentes. A princípio, a ideia

era tomar o texto como objeto de ensino, no

entanto, o texto em sala de aula foi usado para

outras funções (REALE; CONFORTIN, 2011, p.

11).

Essa ideia é um assunto sério a se questionar, pois, como

os próprios estudiosos nos trazem, deveria ser de que o texto

fosse a base, o alicerce para o ensino e a aprendizagem de Língua

Portuguesa, no entanto, nos dias atuais, o texto tem sido tomado

como uma prática desordenada, ou seja, o texto é trabalhado

como pretexto para o ensino de Língua Portuguesa, o que

eventualmente é um grande equívoco, ao passo que assim não se

ensina e nem se aprende nada. Desse modo, “Muitos educadores

não abordam o texto na sua dimensão textual-discursiva, ou seja,

não possuem uma concepção sóciointeracionista de linguagem

centrada na problemática da interlocução” (BRANDÃO, 2001, p.

17).

A CONTRIBUIÇÃO DOS TEXTOS NARRATIVOS PARA

O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA

A narrativa é um dos gêneros textuais mais trabalhados

em sala de aula desde cedo, nas séries iniciais, por trazer uma

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proposta mais lúdica, promovendo leituras prazerosas e ao

mesmo tempo desenvolvendo o pensamento crítico dos alunos e a

progressão da escrita. Nos dias atuais, é perceptível que no ensino

básico existem muitos alunos com dificuldades tanto na escrita

como na leitura, bem como na interpretação de textos que por

muitas vezes trata-se de um problema que perpetua ao longo da

vida escolar desses alunos.

No ambiente escolar se faz necessário à intervenção do

professor em busca de formas de promover leituras, de modo a

obter resultados positivos, não se preocupando apenas no fazer da

leitura e sim na escolha do material a ser lido, com o cuidado de

escolher textos que realmente venham a se identificar melhor

com cada turma.

Textos narrativos são uma das ferramentas que o professor

pode utilizar para alcançar seus objetivos, desde que o tipo da

narrativa se enquadre com determinadas turmas. Através dos

textos narrativos o leitor consegue ver a história de vários

ângulos, de modo que o mesmo sinta-se parte da história. Assim,

o professor deve se atentar ao comportamento dos alunos diante

de uma leitura, de uma narrativa e, em seguida, trabalhar a

deficiência, a dificuldade dos alunos.

Através dos nossos objetivos traçados e das nossas

possibilidades, trabalhamos o gênero textual de modo

interdisciplinar. Como corpus narrativo, empreendemos nossas

análises a partir da utilização do filme brasileiro “Central do

Brasil” (1998), de Walter Salles. Para tanto, selecionamos

algumas imagens do filme e pedimos à elaboração de textos

narrativos com base na análise interpretativa das imagens. A

escolha das cenas, por exemplo, deve-se ao fato de que essas são

envolventes no desenrolar dos fatos do enredo e que por isso

podem gerar discussões “narrativas” calorosas.

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Narrativas Memorialísticas em “Central do Brasil”... - Santos

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“CENTRAL DO BRASIL” (1998), DE WALTER SALLES:

NOTAS INTRODUTÓRIAS

O filme brasileiro “Central do Brasil” foi produzido no

ano de 1998, pelo cineasta também brasileiro Walter Salles e a

história contada são vivências reais vividas pelo cineasta. O

roteiro é escrito por Marcos Bernstein e João Emanuel Carneiro.

Em linhas gerais – e não muito exaustivo – o filme conta a

história de “Dora (Fernanda Montenegro), que é uma mulher que

trabalha na estação Central do Brasil escrevendo cartas para

pessoas analfabetas; uma das suas clientes, Ana, aparece com o

filho Josué (Vinícius de Oliveira) pedindo que escrevesse uma

carta para o seu marido dizendo que Josué quer visitá-lo um dia.

Saindo da estação, Ana morre atropelada por um ônibus e Josué,

de apenas 9 anos e sem ter para onde ir, se vê forçado a morar na

estação. Com pena do garoto, Dora decide ajudá-lo e levá-lo até o

seu pai que mora no sertão nordestino. No meio desta viagem

pelo Brasil eles encontram obstáculos e descobertas, enquanto o

filme revela como é a vida de pessoas que migram pelo país na

tentativa de conseguir melhor qualidade de vida ou poder reaver

os seus parentes deixados para trás.

O filme mostra a realidade do Brasil no final do século

XX, caracterizando principalmente as condições de vida no

subúrbio de uma cidade grande em um país subdesenvolvido. A

massa de migrantes nordestinos, que desde o início do século

abandona o sertão em busca de melhores oportunidades na

cidade, aumentou o contingente de miseráveis nos centros

urbanos, que os trata como descartáveis, entregando-os ao tráfico

e assalto, como alternativa para sobrevivência.

O crescimento econômico dos últimos 20 anos não

repercutiu igualmente nas diversas classes sociais, sendo que as

consequências negativas desse processo atingiram duramente

grande parte da população, geralmente a mais pobre e mais

sofrida. A crescente concentração de riqueza, o salário mínimo

vergonhoso, o desemprego, o aumento da pobreza e da miséria, a

falta de saneamento básico e de assistência à saúde, fazem parte

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Narrativas Memorialísticas em “Central do Brasil”... - Santos

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das situações trágicas vividas na carne pela população mais

pobre, com a qual nos deparamos em nosso cotidiano.”2

ANÁLISE DO CORPUS: CENAS DE “CENTRAL DO

BRASIL” POR UM OLHAR NARRATIVO

Nesta parte do trabalho, nos propomos apresentar como se

deu o processo de análise e de interpretação das imagens colhidas

no filme. Adiantamos que as análises aqui apresentadas são

percepções sensoriais e visuais e que muitas vezes não tece

análises complexas em sua profundidade. As cenas praticamente

giram em torno das personagens Dora e Josué por estas serem as

protagonistas do filme. Vejamos, a seguir. Imagens 01

Fonte: imagens do filme “Central do Brasil”

Essas imagens representam o momento em que a

personagem de Ana e do Josué, seu filho, vão até a estação

Central do Brasil, localizada no Rio de Janeiro, para que Dora,

interpretada pela Fernanda Montenegro, que atua no filme como

uma escrevedora de cartas, escreva uma carta para o pai de Josué,

o qual ele imprime uma grande saga a procura do mesmo ao

decorrer do filme. É importante ressaltar as características

psicossociais de Dora para que possamos compreender,

futuramente, algumas de suas atitudes comportamentais.

2 Informação colhida do site de pesquisa Wikipedia. Acessar o link para essas e

outras informações: https://pt.wikipedia.org/wiki/Central_do_Brasil_(filme)

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Narrativas Memorialísticas em “Central do Brasil”... - Santos

Revista Diálogos – set. /out. – 2018 – N.º 20 281

Dora é uma mulher humilde, rústica e de classe social

baixa que trabalha e mora perto à Central do Brasil. Sua tarefa

cotidianamente é escrever cartas de pessoas analfabetas para seus

parentes. Dora apresenta um lado moral, digamos assim, afetado,

pois, em outras palavras, ela não se reconhece e não tem

autoestima, a mesma age, no filme, como uma

pessoa/personagem sem escrúpulos, ao passo que na verdade as

pessoas que a procuram com a finalidade de pedir a ela que

escreva cartas para serem enviadas a seus parentes, normalmente

são de pessoas que logicamente não sabem escrever e que

confiam plenamente na boa vontade e na boa índole da

personagem, mas não é isso que acontece. Ora, Dora não envia

carta alguma, ela simplesmente engana a todos dizendo que

colocará a carta no correio, mas ela não o faz e na verdade as

cartas são direcionadas a sua gaveta própria em sua casa. Ela, na

verdade, rouba os clientes e se beneficia da boa vontade deles,

porque seu sustento é gerado através das cartas que ela escreve.

Ana, no entanto, é uma dessas clientes que procura Dora,

a fim de pedir para que ela escreva uma carta direcionando ao pai

de Josué, o qual ela não vê a certo tempo e ao qual ele nem sabe

da existência do filho. E Dora escreve a carta e como podemos

perceber através da aparência de Ana e de Josué nas imagens

logo acima, o descontentamento de ambos em não saber do

paradeiro do suposto pai do garoto. A partir dali, dessa escrita

dessa carta que Dora promete colocar no correio, é como se um

sentimento de compaixão pelo próximo despertasse em Dora,

mas mesmo assim nessa primeira carta ela não chega a colocar no

correio. Em outro dia, Ana volta com Josué à Central do Brasil

pedindo informações sobre a carta anterior que Dora havia

escrito, pois Ana gostaria de rasgar ela e queria que Dora

escrevesse outra e assim foi feito: foi rasgado e uma nova carta

foi escrita.

Após a conclusão da escrita da carta, Ana retira um lenço

de sua bolsa e deixa sobre a mesa de Dora e vai embora e acaba

esquecendo, mais na frente, já na pista da praça central, Ana é

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atropelada por um ônibus e morre no local, deixando Josué

bastante triste por agora não ter nem mãe e nem pai, mas o garoto

não se intimida diante da situação e o que desperta nele o

sentimento de querer continuar seu caminho mesmo sem a mãe é

a convicção de que ele encontrará seu pai e assim ele será muito

feliz ao lado, também, de seus irmãos. Dora, por conseguinte, ao

vê o lenço da acidenta se solidariza com a morte e com o garoto.

Esse é o primeiro indício que a personagem nos apresenta de que

está se redimindo, já que sofreu bastante nessa vida e que por isso

age grosseiramente, sem pensar nas consequências que seus atos

podem lhe causar.

Diante do exposto e das imagens apresentadas,

trabalhamos com a produção de narrações memorialísticas, ou

seja, solicitamos que os alunos, através da leitura crítica de

imagens, desenvolvessem um texto narrativo contando às

memórias que foram acionadas à sua mente ao se depararem com

aquelas cenas. É importante ressaltar que os alunos assistiram ao

filme por completo, mas o corpus de análise foi gerado a partir da

seleção de algumas imagens. O diferencial seria perceber como

que os alunos aceitariam a proposta de narrarem textos visuais,

porque acreditamos que contar a história do filme como um todo

seria bastante fácil para eles, mas criarem um texto narrativo de

memórias a partir da escolha de certas imagens, seria o

diferencial na capacidade interpretativa deles. O resultado dessa

atividade foi surpreendente, porque eles mostraram que são

capazes de compreenderem um texto visual e a partir dele criarem

suas próprias narrativas. Imagens 02

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Fonte: imagens do filme “Central do Brasil”

Nessas outras imagens do filme, trabalhamos com a

confecção de narrativas que correspondem aos aspectos sociais e

psicológicos dos personagens em cena. Como podemos

depreender, são momentos em que o despertar pela

sentimentalidade ao próximo já chegou ao coração de Dora e

agora ela empreende uma suga junto ao Josué pelo sertão

nordestino a procura do pai do garoto. A mulher que no início era

carrasca, durona consigo e com o seu próximo, agora se sente

liberta, dona de si mesma e não mede esforços para ajudar o

garotinho que tanto sonha encontrar seu pai.

É importante que os alunos percebam o quanto essas

imagens nos trazem de ensinamentos e de reflexões e que

obviamente todas têm conteúdos muito interessantes para tecerem

boas narrativas. Na confecção dos textos, tivemos a preocupação

de atentar os estudantes para as cores, pois estas nos dizem

muitas coisas. Os alunos tiveram a sensibilidade de perceberem

na feição dos personagens o quanto eles estavam tristes, cansados

e apáticos, mas ao mesmo tempo com aquela garra e o brilho nos

olhos de que algo bom estava a caminho, como podemos

interpretar através da análise da última imagem, por exemplo.

As imagens expostas nos retratam alguns acontecimentos:

a viagem pelo Brasil a fora a procura do pai, a curiosidade em

saber que possivelmente poderia ter encontrado o pai, o momento

de cansaço de um dia de luta, de procura, de um bem-estar em

comum e o momento em que Josué vai a procura do pai em uma

determinada casa, uma vez que o endereço remetia àquela

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moradia. Mas, infelizmente, ainda não foi o momento. O homem

que ali pertencia não era o pai de Josué, mas o conhecia e isso fez

diferença. Não está nas imagens expostas, mas os alunos fizeram

menção ao momento em que o homem diz que não é o “Jesus”, o

pai do garoto, e Josué se entristece ao ouvir aquilo, essa memória

obtida pelos alunos foi bastante interessante e foi muito bem

aproveitada em suas narrativas, porque eles lembraram de

acontecimentos que não estavam expostos nas imagens. Imagens 03

Fonte: imagens do filme “Central do Brasil”

Este é o momento de reconhecimento e do sentimento

exposto de Dora pelo garotinho Josué, como podemos auferir. As

imagens, o cenário, o carinho feito, as faces e as cores nos

remetem a muitas memórias. Dora encontrou em Josué a sua

forma de começar a enxergar o mundo – que era escuro para ela –

agora com mais brancura; Josué, para ela, é um filho que ela não

teve e ela não cansa de demonstrar esse sentimento pelo garoto e

a maior prova disso é quando ela larga tudo no Rio de Janeiro e

se “joga” como um rio que deságua no mar, no Brasil, com Josué

a procura de seu pai, enfrentando todas as intempéries que a vida

lhes proporciona. E com Josué, por sua vez, não poderia ser

diferente. Ele vê a Dora como uma segunda mãe, foi difícil para

ambos demostrarem o sentimento que os mesmos demonstravam

um pelo outro, mas conseguiram.

Essas imagens são de uma segunda tentativa de Dora e de

Josué de procurarem pelo seu pai, mas é o ápice do momento de

descoberta de sentimentos nutridos um pelo outro. Dora e Josué

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dão uma pausa, talvez pelo fato de estarem cansados da

caminhada e se dedicam um ao outro: o amor fraterno. Temas

fraternos de respeito, amor ao próximo, descoberta de

sentimentos, à aceitação aos sentimentos, amor de mãe e amor de

filho foram temas recorrentes nas narrações propostas pelos

alunos. Muitos chegaram até a relatar em seus textos o quanto

essas imagens os emocionaram, relataram que se colocaram no

lugar do personagem mirim, Josué, e tiveram a percepção de

sentir na pele o que é não ter mais sua mãe e passar a nutrir um

sentimento de mãe por uma pessoa que eles nunca viram na vida.

Essa proposta a partir desses temas já elencados rendeu muitos

textos narrativos interessantes. Imagens 04

Fonte: imagens do filme “Central do Brasil”

O trabalho realizado a partir da leitura dessas imagens

surgiu a partir de diversas temáticas, a saber: o (possível?)

reencontro com o pai, é chegada a hora, a carta e em família.

Esses são os momentos que antecedem o final do filme, que é

quando Dora e Josué chegam a uma localidade onde prenuncia a

presença do pai do garoto. Chegando lá, a personagem da Dora

procura por “Jesus” e quem as recebe é “Isaías”, filho de “Jesus”

e irmão de Josué; ele, no início, fica surpreso pela visita, já que

atesta que seu pai não costuma receber visitas e os convidam para

entrar.

Chegando a casa, Isaías apresenta seu outro irmão o

“Moisés”, que aparentemente não se sente satisfeito com a

presença de Dora e nem de Josué. Dora, finalmente, explica a que

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veio e se diz está ali à procura do pai de Josué que se chama

“Jesus” e que a mãe do menino, Ana, faleceu no Rio de Janeiro.

Percebe-se que Isaías fica muito comovido ao saber de toda sua

história e já se emociona ao saber que Josué é seu irmão. Dora

pergunta pela presença de “Jesus” e a resposta que é dada é que

ele é um bêbado e que sumiu no mundo e que até hoje não se tem

notícias de seu paradeiro. Josué se entristece e se achega a Dora

como que quisesse dizer que não vai encontrar seu pai mais.

Josué curioso como é, observa na parede um retrato de sua

mãe e de seu pai, é o primeiro registro que ele vê da existência do

mesmo. Uma carta que estava com os rapazes é apresentada a

Dora e Isaías pede que ela leia em voz alta para que todos possam

ter conhecimento do que se trata. Segundo eles essa carta nunca

foi aberta e nem lida. Dora lê e na carta não tem menção ao

Josué, mas Dora rapidamente insere o nome de Josué à leitura,

como uma forma de fazer com que ele se sinta como parte

integrante daquela família.

Os textos narrativos dos alunos foram de encontro a essas

ideias, mostraram com criticidade como é a sensação de não se

inserir em determinada família e da busca incansável pela procura

de um pai, a sensação de quebra e de decepção em saber que seu

pai não era aquilo que ele idolatrava. As narrações relataram

também acontecimentos de testemunhos reais, ou seja, os alunos

extrapolaram a leitura das imagens do filme e levaram para a

realidade pessoal da qual eles têm conhecimento. Foi um aspecto

interessante, pois, mostrou capacidade de inferir e de selecionar

acontecimentos, informações outras de outros suportes fora o

filme em questão.

Foi questionada, também, a presença do irmão “Moisés”

que nada se alegrou em saber da existência de outro irmão. Os

alunos relataram que a falta do pai, a raiva que ele tem do pai faz

com que ele feche seus olhos para tudo que de alguma forma

possa está relacionado/ligado a ele, como a presença do irmão.

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Imagens 05

Fonte: imagens do filme “Central do Brasil”

Este é praticamente os momentos finais dessa grande saga

que é contada no filme “Central do Brasil”. Essas imagens são

dos últimos momentos juntos entre Dora e Josué. Na primeira

imagem é um diálogo entre mãe e filho e filho e mãe, digamos

assim, um diálogo que ao decorrer deste trabalho nós podemos

perceber que é de afeto, de compaixão, de respeito, de

solidariedade e de um reconhecimento. Esses temas foram

abordados mais uma vez pelos alunos nas narrativas.

Este é o momento em que Dora e Josué dialogam após a

conversa que eles tiveram com os irmãos de Josué. É importante

ressaltar que após a conversa entre todos, os demais personagens

foram dormir e Dora e Josué ficaram conversando, foram os

últimos momentos deles até a partida definitiva de Dora. A

segunda imagem representa o momento da partida de Dora em

que Josué a procura e a não encontra mais, foi um momento

difícil para Josué à partida de Dora, já que ele nutriu um

sentimento fraterno pela personagem. Imagem 06

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Fonte: imagens do filme “Central do Brasil”

Chegamos aos momentos finais dessa grande história que

é contada e que contamos aos poucos neste trabalho. E essas

últimas imagens do filme têm esse objetivo. Já dizia a célebre

frase: “uma imagem vale mais que mil palavras” e é verdade.

Essas imagens nos dizem muito mais que palavras escritas. Esses

são os momentos definitivamente da partida de Dora. Após a

conversa que os personagens tiveram todos foram dormir e na

calada da noite Dora levantou-se, olhou fixamente para Josué

dormindo juntos de seus irmãos.

Nesse momento, ela pegou as cartas – a de seu pai e a de

sua mãe – e as deixou em cima de uma mesinha, em seguida, foi

ao banheiro e vestiu um vestido azul florido, que por sinal foi

presente de Josué para ela, um presente que representa mais que

um símbolo de afeto, é o amor demonstrado por Josué a Dora,

essa que agora ele a tem como sua mãe e como que quisesse dizer

que queria ela sempre ao seu lado e bem bonita, porque de fato

ela é bonita. O presente de Josué tem essa significação.

Pois bem, ela vestiu o vestido, se olhou no espelho e foi

mais uma vez olhar o Josué que dormia silenciosamente. Abriu a

porta e deu uma pausa, nesse momento a câmera foca bem a sua

face que não é surpresa, estava bastante emocionada, chorando

por ter que partir e deixar Josué. A explicação dela não ter se

despedido do Josué é o fato da saudade, ela tinha a consciência de

que seria difícil, mas do que já foi, ter que se despedir dele e de

saber que não vai mais ter a presença física dele ao seu lado, isso

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sem falar no que o Josué diria a ela que, óbvio, não seria também

uma aceitação fácil.

Dora caminha em direção à rua e pega o ônibus que

passava bem na frente. É importante frisar que o trabalho de

direção e de interpretação foi construído impecavelmente,

pensando nas emoções do telespectador. Em alguns instantes,

Josué acorda e sente a falta de Dora e a procura pela casa e não a

encontra e sem pensar duas vezes abre a porta e corre, corre em

busca e na convicção de encontrar Dora ainda pelas ruas da

cidade, mas, infelizmente, Dora já está a viajar dentro do ônibus.

Josué retorna a casa onde estava e chora bastante pela ausência

daquela que por muitos dias foi sua mãe. O desejo dele seria o de

nunca mais se separar de Dora.

As imagens do filme se voltam agora para Dora, dentro do

ônibus, que muito emocionada está a escrever uma carta a Josué e

as cenas finais dessa linda e impecavelmente história está

registrada nessas imagens logo acima. Portanto, o filme foi um

divisor de águas para o cinema brasileiro ao contar essa história

simples, mas envolvente, de uma maneira tão generosa. Dora

achou que seria melhor que Josué ficasse ao lado de seus irmãos,

que seria melhor para ele, mas ela pede, na carta, que ele não a

esqueça, assim como ela não o esquecerá e que o sentimento que

eles construíram juntos ficará para sempre e que poderão ser

recordados através do retratinho que tiraram juntos. Finalizamos

essa análise com a apresentação da carta escrita por Dora a Josué.

O trabalho com o gênero textual “narrativo”, a partir da

análise dessas imagens, foi como já era de se esperar bastante

significante. Os alunos conseguiram desenvolver textos sólidos e

consistentes, procurando fazer menção aos sentimentos e a

emoção que as imagens pediam; por outro lado, fizeram críticas

construtivas ao final do enredo, desenvolvendo argumentos de,

por exemplo, o porquê de Dora ter partido se ela gostava do

menino e o porquê de não ter levado ele com ela. Após a escrita

dos textos, discutimos essas questões e procuramos apresentar

caminhos que poderiam explicar o motivo dela ter feito essa

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escolha, acreditamos que a interpretação desse final vai de acordo

com a concepção de cada um, da maneira como cada um se

sensibiliza e entende o lado maternal e de mulher de Dora. A Carta de Dora

Antonio Pinto e Jaques Morelenbaun

Josué,

Faz muito tempo que eu não mando uma carta pra alguém. Agora eu

tô mandando essa carta pra você.

Você tem razão. Seu pai ainda vai aparecer e, com certeza, ele é tudo

aquilo que você diz que ele é.

Eu lembro do meu pai me levando na locomotiva que ele dirigia. Ele

deixou eu, uma menininha, dar o apito do trem a viagem inteira.

Quando você estiver cruzando as estradas no seu caminhão enorme,

espero que você lembre que fui eu a primeira pessoa a te fazer botar a

mão no volante.

Também vai ser melhor pra você ficar aí com seus irmãos. Você

merece muito, muito mais do que eu tenho pra te dar.

No dia que você quiser lembrar de mim, dá uma olhada no retratinho

que a gente tirou junto.

Eu digo isso porque tenho medo que um dia você também me

esqueça.

Tenho saudade do meu pai, tenho saudade de tudo.

Dora

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse estudo foi de fundamental e necessária importância

para a inserção do trabalho com o gênero textual “narrativo” e da

análise fílmica em sala de aula. O estudo permitiu apresentar um

recorte diferenciado de como se trabalhar textos narrativos em

sala de aula. Tendo em vista que as aulas de Língua Portuguesa,

especificamente as de leitura e interpretação de textos, são

taxadas como cansativas e pouco construtivas, muitas vezes pelos

fatores já apresentados e discutidos no início deste estudo, então

pensando nessa ideia, o trabalho de escrita narrativa permitiu que

os alunos saíssem de suas zonas de acomodamento de apenas

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produzirem textos orais e passarem a produzir textos escritos com

o auxílio das narrativas.

Os objetivos traçados e esperados foram conquistados,

pois podemos perceber que um filme pode sim ser trabalhado em

sala de aula, o que diferencia e faz a diferença é a maneira como

o professor trabalha o filme em sala de aula. Levar uma obra

fílmica para o contexto escolar é desafiador, uma vez que se não

bem trabalhado pode levar o aluno à dispersão e ele começa a vê

aquele momento como um “passa tempo” como apenas um “sair

das aulas tradicionais”. Essa ideia deve ser quebrada desde as

séries iniciais com os nossos alunos. O trabalho com o filme pode

ser e deve ser pensado como uma metodologia que vai além do

ensino tradicional. Um bom filme pode ter a mesma finalidade de

uma aula qualquer, o que fará o trabalho com o filme uma aula

boa, é como o docente trabalhará ele. Leitura de imagens,

também, seguindo esse mesmo direcionamento, é um facilitador

no processo de ensino e de aprendizagem de nossos alunos e isso

percebemos através desse trabalho realizado com imagens

fílmicas.

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