narrativa da violência em dois filmes colombianos

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Diana Paola Gómez Mateus QUANTO DURA O TERROR? A NARRATIVA DA VIOLÊNCIA EM DOIS FILMES COLOMBIANOS São Paulo 2012

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Narrativa Da Violência Em Dois Filmes Colombianos

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  • Diana Paola Gmez Mateus

    QUANTO DURA O TERROR?

    A NARRATIVA DA VIOLNCIA EM DOIS FILMES COLOMBIANOS

    So Paulo

    2012

  • Universidade de So Paulo

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

    Departamento de Antropologia

    Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social

    Dissertao de Mestrado

    QUANTO DURA O TERROR?

    A NARRATIVA DA VIOLNCIA EM DOIS FILMES COLOMBIANOS

    Aluna: Diana Paola Gmez Mateus

    No. USP: 7261745

    Orientadora: Profa. Dra. Rose Satiko Gitirana Hikiji

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Antropologia Social do

    Departamento de Antropologia da Faculdade de

    Filosofia, Letras e Cincias Humanas da

    Universidade de So Paulo, como requisito parcial

    para a obteno do ttulo de Mestre em

    Antropologia.

    So Paulo

    2012

  • Catalogao-na-publicao

    Biblioteca Florestan Fernandes da FFLCH-USP

    GMEZ Mateus, Diana Paola

    Quanto dura o terror? A narrativa da violncia em dois filmes colombianos

    Orientao Profa. Dra. Rose Satiko Gitirana Hikiji. So Paulo, 2012 159f

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em

    Antropologia Social do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia,

    Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo.

    1. Antropologia do cinema. 2. Cinema colombiano. 3.Experincia. 4. Narrativa do

    terror.

  • Diana Paola Gmez Mateus

    Quanto dura o terror? A narrativa da violncia em dois filmes colombianos.

    Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social

    do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da

    Universidade de So Paulo, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em

    Antropologia.

    Aprovado em:

    So Paulo, _________________

    Banca examinadora

    Nome:__________________________ Instituio:__________________________

    Julgamento:______________________ Assinatura:__________________________

    Nome:__________________________ Instituio:__________________________

    Julgamento:______________________ Assinatura:__________________________

    Nome:__________________________ Instituio:__________________________

    Julgamento:______________________ Assinatura:__________________________

  • Agradecimentos

    A Rose Satiko Gitirana Hikiji, orientadora generosa, que com rigor e dedicao me animou

    neste projeto de vida e de pesquisa.

    A CAPES, Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Ensino Superior pelo

    financiamento desta pesquisa.

    Ao Departamento de Antropologia e ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social

    da USP.

    Ao Prof. Dr. John C. Dawsey e Prof. Dr. Eduardo Morettin pelas excelentes contribuies no

    exame de qualificao.

    Aos professores que com suas aulas inspiraram temas da pesquisa, Jlio Assis Simes, Renato

    Sztutman, Beatriz Perrone-Moiss, Ismail Xavier, Esther Imperio Hamburger e Sylvia Caiuby

    Novaes. queles que leram o projeto e discutiram a proposta em diferentes momentos, Csar

    Augusto Ayala, Magdalena Peuela Uricoechea e, especialmente a Myriam Jimeno que

    realizou uma leitura crtica do texto e orientou o desenvolvimento do mesmo.

    Aos colegas do Grupo de Antropologia Visual (GRAVI), do Ncleo de Antropologia da

    Performance e do Drama (NAPEDRA), do Ncleo de Antropologia do Direito (NADIR) e do

    Ncleo de Antropologia Urbana (NAU) pelo apoio, leituras, debates e desvios.

    Ao Grupo de Etnologia Indgena (GEU-NAU), Jos Agnello Andrade, Yuri Bassichetto

    Tambucci, Flvia Belletati e Ana Sert e ao Professor Dr. Jos Guilherme Cantor Magnani

    pela experincia de produo do vdeo Memorial Indgena que me permitiu explorar o campo

    da realizao audiovisual.

    Aos colegas do grupo de orientados de Rose Satiko Gitirana Hikiji, pois suas leituras e

    comentrios enriqueceram o trabalho de escrita.

    s Comisses Editoriais da Revista Cadernos de Campo, pelos excelentes anos de trabalho.

    A Ciro Guerra e Vassilis Stathoulopoulos, pelos filmes! Pela ateno recebida durante as

    entrevistas.

    A Bruna Triana que, perspicaz e carinhosa, leu e revisou cada uma das linhas desta pesquisa.

    A ela devo um agradecimento especial pela dedicao com este trabalho, pelas ideias

    inteligentes e pelas tardes de cinefilia.

    A Camila Mainardi, Denise Pimenta e Ana Fiori, pela leitura crtica e atenciosa, os

    comentrios e as sugestes instigantes e eloquentes.

    A Enrico Spaggiari, Kelen Pessuto e Rosenilton Oliveira, sem cuja ajuda este texto seria

    ilegvel.

  • A Corporacin Cultural El Barco, pelos anos de cinefilia na cidade de Bogot.

    A Marina Barbosa, Milena Estorniolo, Raphael Sabaini, Michele Escoura, Rodrigo Chiquetto,

    Leonardo Bertolossi, Ana Flvia Bdue, Claudia M. Quijano, Alejandra Rada, Jaime Orjuela,

    Enrique Ramrez e Anderson Borba, pela amizade e apoio, to importante quando se est

    longe da terra natal.

    A Tatiana Mendoza, Lorena Surez, Adriana Marcela Gmez, amigas e irm sem cuja

    presena, palavras, fotografias e conversaes esta viagem no teria sido possvel.

    A Maia e sua famlia, Henry A. Cruz, Tatiana Meza, Juan Pablo Pinto M., Fernando Lpez

    Vega e Hctor Garca Botero pelos filmes, os reclamos e as discusses. A Beto Villada e ao

    teatro Varasanta pelas perguntas instigantes, ainda sem resposta, e pelas as encenaes de um

    pas que sente e sofre, que dana e luta, que cria e resiste.

    A Luz e Wolfram Krieger, pelo apoio e por me impulsionarem a caminhar neste caminho.

    Aos meus pais, Belkyz Mateus e Fernando Gmez pelo carinho e apoio, sem cujos conselhos

    e amor este projeto no teria sido realizado.

    A famlia, sempre presente, alegrando cada um dos meus dias.

    E a quem embora no tenha sido citado nesta pequena lista, coloriu esta dissertao com

    perguntas, comentrios, conversaes, passeios, imagens, risos e companhia.

    Diana Paola Gmez Mateus

  • Resumo

    O foco desta dissertao a construo narrativa audiovisual da violncia. A partir de

    discusses feitas na antropologia sobre narrativa, mimesis e violncia se quer pensar a

    respeito de formas de narrar a experincia da violncia poltica e o conflito armado

    colombiano. O objeto que ser analisado so filmes colombianos, dois especificamente: La

    sombra del caminante (Ciro Guerra, 2004) e PVC-1 (Spiros Stathoulopoulos, 2007). Obras

    audiovisuais que se apropriam da tecnologia digital e fazem uso criativo dos recursos

    cinematogrficos para se colocar diante das imagens sobre violncia e discutir temas como a

    verdade e a memria, o tempo e o medo, o intimo e do cotidiano. So formas flmicas que

    instigam uma discusso sobre as narraes que a sociedade colombiana constri para contar o

    terror de dcadas de violncia poltica e conflito armado onde atores margem da lei,

    sociedade civil e governo se encontram e se constroem.

    O procedimento metodolgico empregado nesta dissertao , em um primeiro momento, o da

    anlise flmica, um modelo terico definido no campo dos estudos de cinema, que prope um

    estudo do filme nos seus mltiplos componentes e atendendo aos espaos e dinmicas nas

    quais este se insere. Deste modo, em um segundo momento, indagarei a propsito das

    narrativas do terror, sendo o terror ato, espao e cultura, uma situao que se torna estvel

    pela instabilidade que o caracteriza: a experincia da violncia, da perda (de parentes, de um

    lugar de origem, de um passado), do deslocamento forado, da tortura. Esta uma tentativa de

    pensar sobre a mediao do cinema para comunicar efetivamente tal experincia de terror, um

    fenmeno cuja narrao se coloca nas margens do dizvel. Neste sentido, o cinema articularia

    o inarticulvel e narraria o inenarrvel, incorporando experincias do terror na memria

    coletiva.

    Palavras chave

    Antropologia do cinema, cinema colombiano, experincia, narrativa do terror.

  • Resumen

    El objetivo de esta disertacin es la construccin narrativa audiovisual de la violencia. A partir

    de las discusiones realizadas en la antropologa sobre narrativa, mimesis y violencia se

    pretende pensar sobre las formas de narrar la experiencia de la violencia poltica y del

    conflicto armado colombiano. El objeto de estudio son filmes colombianos, dos

    especficamente: La sombra del caminante (Ciro Guerra, 2004) e PVC-1 (Spiros

    Stathoulopoulos, 2007). Audiovisuales que se apropian de la tecnologa digital y utilizan

    creativamente los recursos cinematogrficos para posicionarse frente a las imgenes de la

    violencia y discutir temas como la verdad y la memoria, el tiempo y el miedo, lo cotidiano y

    lo intimo. Son obras que instigan una discusin sobre las narraciones que la sociedad

    colombiana construye para contar el terror de dcadas de violencia poltica y conflicto armado

    donde actores al margen de la ley, sociedad civil y gobierno se encuentran y se construyen.

    El procedimiento metodolgico empleado en esta disertacin es en un primer momento, el del

    anlisis flmico. Un modelo terico definido en el campo de los estudios de cine, que propone

    un estudio de los mltiplos componentes del filme, atendiendo a los espacios y dinmicas en

    los que este juega algn papel. En seguida, indagar a propsito de las narrativas del terror,

    siendo el terror acto, espacio y cultura, una situacin que se estabiliza gracias a la

    inestabilidad que lo caracteriza: la experiencia de la violencia, de la prdida (de familiares, de

    un lugar de origen, de un pasado), del desplazamiento forzado, de la tortura.

    Este es un intento de pensar sobre la mediacin del cine para comunicar efectivamente tal

    experiencia de terror, un fenmeno cuya narracin se encuentra en las mrgenes del habla. En

    este sentido, el cine articulara lo inarticulable y narrara lo inenarrable, incorporando la

    experiencia del terror en la memoria colectiva.

    Palabras clave

    Antropologa del cine, cine colombiano, experiencia, narrativas del terror.

  • Abstract

    This dissertation's main focus is the audiovisual narrative construction of violence. Taking

    account of the anthropological debates on narrative, mimesis and violence; I pretend to think

    about the ways in which the experience of the Colombian political violence and armed

    conflict is narrated. The object are Colombian films, two mainly, La sombra del caminante

    (Ciro Guerra, 2004) and PVC-1 (Spiros Stathoulopoulos, 2007). Films, which use digital

    technology and implement creatively cinematographic resources to take place before images

    of violence and discuss topics such as truth and memory, time and fear, the everyday and the

    intimate. These are oeuvres that instigate a debate about the narratives that the Colombian

    society elaborates to tell the terror of decades of political violence and armed conflict where

    actors at the margins of law, civil society and govern meet and build themselves.

    The methodological procedure employed in this dissertation is in a first moment, film

    analysis. A theoretical model defined in the area of cinema studies which proposes a study of

    the film's multiple components and the many ways and places in which a film plays part.

    Thus, in a second moment, I'll inquire about narratives of terror, being that terror is an act, a

    space and a culture, a situation that stabilizes itself thanks to its instability: the experience of

    violence, of loss (of relatives, of a place of origin, of a past), of forced displacement, of

    torture.

    This is a proposal to think about the mediation of cinema to communicate effectively such

    experiences of terror, a phenomenon whose narration is on the margins of the speakable. In

    this sense, cinema would articulate and narrate what is not; and would introduce the

    experiences of terror in the collective memory.

    Keywords

    Anthropology of cinema, Colombian cinema, experience, narratives of terror.

  • Sumrio

    IntroduoOs materiais para a construo 12

    1. Notas sobre cinema colombiano 262. Cinema quadro a quadro e com elipses 29

    Captulo ISombra do passado, sombra do presente 44

    Captulo IIQuanto dura o terror? 95

    1. Plano-sequncia 1042. O espectador na tela 1113. O conhecimento venenosoImagens da tortura e os limites do mostrvel 1204. RewindReflexo sobre o tempo nervoso 127

    Consideraes finaisAftermath(balano, ponderao, sequela...) 133

    Referncias 145

  • Introduo

    Osmateriaisdaconstruo

  • noite, um homem bate porta. Outro abre, surpreso, e olha para o homem que foivisit-lo, um sujeito grave, de culos redondos e pretos. O visitante que descobre seussentimentos de amizade, sente-se obrigado a contar um segredo. No quarto do anfitrio, ovisitante abre uma caixa preta, ela contm uma fita de VHS. Como no h um aparelho deteleviso no quarto, vo no aposento da dona da penso. Ali na escurido e em silncio, odois assistem nica prova que existe do passado infame deste sujeito estranho (La sombradel caminante, Ciro Guerra, 2004).

    Aps a invaso, os xingamentos e os golpes, o silncio invade a sala da casa. Ascrianas no cho, ps e mos atados, silenciadas com um pano na boca. O homem ajoelhado,com as mos atadas nas costas e a mulher com um artefato no pescoo que se parece com umcolar feito de tubos de PVC. Pouco a pouco voltam a respirar e a falar, se abraam echoram. O homem descobre uma fita cassete em um bolso preto, tenta reproduzi-la noaparelho de som, mas este no funciona, procura, ento, o gravador porttil da filha.Escutam a ameaa dos invasores e tomam conhecimento de que o colar uma bomba (PVC-1, Spiros Stathoulopoulos, 2007)

    Duas fitas, uma que libera o segredo de um passado silenciado e outra que agride opresente. Dois filmes e duas formas de contar e mostrar a dor, experincias de sofrimento e demedo. So mediaes narrativas e audiovisuais do terror, um caminho possvel para pensar arespeito da violncia. Um caminho que tambm um desvio, uma lente para observar omundo ou, enfim, uma imagem que faz ver e conhecer a partir de um certo enfoque. Portanto, distanciamento e exigncia de encontrar ou redefinir palavras para estudar e escrever sobreo sofrimento causado pela violncia.

    As indagaes pessoais em torno da violncia na Colmbia, meu pas, me levaram aestudar relatos de vtimas produzidos por um programa de televiso, durante a graduao naUniversidad de los Andes (Bogot). A preocupao me levou a estudar as questes ligadas imagem, o visvel e o invisvel, as estratgias narrativas e a construo da memria doconflito. Com algumas questes na cabea e uma mochila de 10kg nas costas, cheguei em SoPaulo no ano de 2009 com o propsito de realizar na Universidade de So Paulo o mestradoem Antropologia Social. E se entrar na Universidade foi um processo difcil, depois entendique seria o comeo de um trabalho complicado: me distanciar do meu pas e de seus

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  • problemas para, precisamente, falar do pas e de seus problemas. Um distanciamento fsico eclimtico [das montanhas andinas e do frio s terras baixas e quentes do Brasil], lingustico ecultural: como falar sobre um assunto que no conhecido nos seus detalhes e no utilizar orepertrio de palavras e imagens do senso comum para facilitar o processo de comunicao?Como traduzir, do espanhol ao portugus, palavras e sentidos que me eram familiares e quecomeavam a revelar o quanto eu no sabia, o quanto eu tinha normalizado uma histria queutilizava referncias, metforas e explicaes j feitas bvias pelo seu uso excessivo e semreflexo? A partir desse momento, falar da violncia na Colmbia, exigia mais do que estudaros textos histricos, sociolgicos, antropolgicos, ou mesmo, econmicos, pois o primeiroproblema a resolver era de vocabulrio, para poder realizar um trabalho de crtica e traduo,de estranhar o cotidiano, de questionar o familiar e de ds-objetivar a violncia.

    Estudar filmes no contexto do mestrado, a partir de elementos da anlise flmica e emdilogo com as teorias antropolgicas, foi o caminho que escolhi para abordar questes quetinham surgido no meu trabalho anterior e enfrentar o desafio proposto. Uma estratgiainspirada no meu trabalho no Cineclube El Barco, na cidade de Bogot, porque l durantecinco anos de exibies e debates, vi como as pessoas que assistiam s sesses partiam dosfilmes para falar sobre o pas, a notcia do dia ou questes histricas e at ntimas relativas violncia. O mais interessante que o filme, independente de sua nacionalidade, s vezes erauma metfora, outras era uma premonio ou, inclusive, uma proposta de soluo ao presente,que nos mostrava situaes complexas, difceis de entender e que, por vezes, nos entristeciam.Os filmes despertavam reaes nas pessoas, isto me motivou a estudar seriamente a imagem esua relao com narrao e memria. Os filmes como caminhos e desvios, aproximaes edistanciamentos necessrios para que, como diria Taussig (1986), o terror no se volte contrans.

    O foco desta dissertao a construo audiovisual e narrativa da violncia. O objetivo pensar a propsito de uma forma especfica (a flmica) de narrar uma experincia (a daviolncia poltica colombiana), para refletir sobre as consequncias, elaboraes,transformaes e influncias do conflito armado colombiano na elaborao de narrativas doterror, as formas de feitura da verdade e da cultura (Taussig, 1986). O trabalho se prope a seruma contribuio pesquisa sobre o conflito colombiano, a partir de uma perspectiva que une

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  • antropologia e cinema, uma vez que o problema reclama a ateno de uma variedade deperspectivas para dar conta da interao da multiplicidade de agentes e eventos que decidem opresente e o desenvolvimento desse processo. tambm um trabalho que dialoga com adiscusso da antropologia visual, em particular no que toca construo do cinema de ficocomo objeto de pesquisa da antropologia e discusso de categorias como experincia ememria na sua relao com a imagem.

    A questo principal ser abordada a partir da anlise de dois filmes colombianos, asaber: La sombra del caminante do diretor Ciro Guerra, lanado em 2004, e o filme PVC-1,dirigido por Spiros Stathoulopoulos, lanado no ano de 2007 nos Estados Unidos e em 2008na Colmbia1. Estes filmes, as primeiras obras dos diretores, foram produzidos de formaindependente sem apoio do estado nem da empresa privada e circularam em importantesfestivais internacionais, como o de La Habana em Cuba, San Sebastin na Espanha, Cannes2na Frana e o de Tessalnica na Grcia. A despeito do entusiasmo manifestado pela crtica decinema publicada em jornais, entre eles o de maior circulao no pas, El Tiempo, os filmestiveram um pblico muito pequeno (uma mdia de sete mil espectadores, segundoinformaes obtidas no site de Proimagenes3). A crtica especializada de cinema (textospublicados principalmente na Revista Kinetoscopio4) avaliou estes filmes como sendo obrasde autor, caminhos possveis para uma cinematografia colombiana5, e com propostas estticas1 Em entrevista com o produtor executivo do filme, Vassilis Stathoulopoulos, realizada na cidade de Bogot no

    dia 20 de janeiro de 2011, foi discutido este assunto. O produtor afirmou que esta foi uma deciso comercial,para impedir a venda imediata do filme em circuitos piratas.

    2 Os filmes colombianos tem tido uma pequena participao no Festival de Cannes desde 1964, ano daapresentao do curta-metragem de Francisco Norden, Las murallas de Cartagena. Depois, em 1984, olonga-metragem de Norden, Cndores no entierran todos los dias, participou na seleo de Un certainregard. Em 1990, o longa-metragem Rodrigo D, no futuro participou da seleo de filmes em competio;em 1998, outro filme, La vendedora de Rosas, do mesmo diretor, participou na seleo de competio.Outros curtas-metragens e coprodues colombianas participaram do Festival. Ver web site oficial doFestival: http://www.festival-cannes.fr Acessado em 02/2012.

    3 No web site Proimagenes, a entidade encarregada de lidar com o cinema na Colmbia, consta que no ano de2005 foram produzidos 9 filmes com um total de 1.979.106 espectadores de cinema colombiano: La sombradel caminante teve 7.834 espectadores; Rosario Tijeras, do diretor Emilio Mall, teve o maior nmero deespectadores, com 1.053.030. No ano de 2008, quando foi lanado o filme PVC-1, o qual teve 6.860espectadores, foram lanados 14 filmes colombianos e houve um total de 2.217.753 espectadores de cinemacolombiano. Isto a partir de um levantamento feito nas principais cidades: Barranquilla, Bogot, Cali eMedelln, sendo que a cidade de Bogot a que mais com bilheteria. Para mais informaes ver:www.proimagenes.com.co. Acessado em 02/2012.

    4 Kinetoscopio uma revista editada pelo centro Colombo Americano de Medelln. a publicao peridicaatual mais importante da Colmbia em matria de cinema.

    5 O nascimento da cinematografia colombiana tem sido decretado toda vez que algum filme tem boabilheteria, favorvel acolhida em festivais ou importante para a crtica. Mas um momento que no temcontinuidade. Muitos diretores afirmam que to difcil fazer o segundo filme quanto o primeiro, porquesempre se comea do zero. Assim, apesar de bons filmes serem lanados por vezes simultaneamente, novemos uma produo consolidada.

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  • consistentes em meio aos filmes sobre drogas e corrupo, imagens tpicas do cinema feito naColmbia. Esta resposta ao filme de Ciro Guerra importante de ressaltar, pois este foi umtrabalho realizado quando o diretor ainda era estudante de cinema na Universidad Nacional deBogot. A equipe composta pelos colegas de estudo do diretor; apenas os atores, que vm doteatro, e o produtor, Jaime Osrio, que participa da montagem final do filme, no pertencemao mundo estudantil. Diferentemente, o filme de Spiros, foi realizado com um interesse de serexibido e distribudo comercialmente e em importantes festivais de cinema.

    Neste trabalho, os filmes no sero estudados a partir da perspectiva do consumo, daindstria do cinema, mas sim como produtos de uma cultura, uma sociedade e uma histria. Oque motiva tal posio a ideia de que os filmes instigam uma discusso importante sobre asformas que a sociedade colombiana utiliza para se narrar, para contar o terror de mais decinco dcadas de violncia poltica e conflito armado onde atores armados margem da lei,sociedade civil e governo se encontram e se elaboram.

    Primeiramente, a denominao violncia poltica, utilizada para identificar a situaocolombiana, precisa ser esclarecida, ainda que brevemente. Segundo Melo (1998), essaviolncia no o resultado de uma nica fora, mas sim produto de uma srie muito complexade elementos difceis de identificar e isolar,

    Ideologizaes e justificaes, de estratgias ou formas de se exercer, deinstrumentaes ou de organizaes ad hoc para exerc-la [] Um elevadonmero de manifestaes: motins, greves, rebelio, insurreio, revoluo,represso, golpe de Estado, etc. Um elevado nmero de maneiras de se exercer:resistncia, luta armada, guerrilha, terrorismo, ao de milcia urbana,controle social, perseguio policial, e para alguns ou vrios tericos pertencema este mesmo gnero de fenmenos as guerras, os diversos tipos de guerras. Hmltiplas instrumentaes: clulas, bandas, organizaes guerrilheiras, seitas,organizaes paramilitares de partido, corpos policiais, exrcitos (Arstegui1994, p. 37, traduo minha6, grifos no original).

    So muitos os nomes dados s aes violentas e aos diversos atores, porm nenhumdeles resume a complexidade do fenmeno, ainda que assinale, para cada caso, algumas dassuas caractersticas. As guerrilhas foram assim definidas por Palacios (2001):

    A guerrilha colombiana combina uma ideologia marxista-leninista, uma

    6 Todas as tradues deste trabalho so minhas.

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  • concepo jacobina da poltica (em duas verses, a verso estalinista e agrarianadas FARC e a guevarista da pequena burguesia universitria do ELN) e umaconcepo autoritria da sociedade e do Estado, com as tradies clientelistasprprias da cultura camponesa e as percepes subjetivas de excluso social dejovens rurais e camponeses, reforados recentemente pela sua capacidade deinsero nas economias da coca e da papoula (ibid., p. 34, traduo minha).

    De acordo com o socilogo francs Daniel Pcaut (1987), as FARC-EP configuram-secomo um ator coletivo, no uma simples fora criminosa. Um ator poltico que nasce nocontexto das lutas campesinas e das demandas pela reforma agrria (Gott, 1970) e propediscusses sobre a ordem do Estado colombiano; considera-se a si mesma uma fora do povocolombiano que entende suas demandas e luta pela sua libertao.

    So vrias as anlises sobre a guerrilha e suas transformaes em mais de quatrodcadas de existncia (Pcaut, 2010). Ela teve suas origens em 1964, mas em 1966 que searticula a um projeto poltico orientado conquista do poder (Pizarro, 1989). A partir dessemomento comea uma atuao tpica de guerra de guerrilhas7, na qual violncia e atospolticos so realizados de forma simultnea. O recurso ao financiamento do narcotrfico(Echanda, 2000) mudou o cenrio do conflito e se intensificaram as operaes violentas(Rabasa e Chalk, 2001). Hoje em dia, aps uma violenta campanha militar liderada pelopresidente Uribe Vlez, as guerrilhas encontram-se diminudas (Pizarro, 2005), porm suaexistncia no est em questo, e ainda sob a premissa da luta agrria se fazem visveis nocampo poltico por meio de comunicados8, sequestros e ataques a povoados e infraestrutura.Vale a pena mencionar que no ano de 2012, o atual presidente colombiano Juan ManuelSantos, graas interveno de vrios setores da populao e organizaes de direitoshumanos e com a participao de Cuba e Venezuela, retoma o processo de negociao.

    estratgia insurgente se ope uma contrainsurgente9, liderada pelos gruposparamilitares10. Estes esto organizados margem das foras militares com o objetivo deguardar a ordem e a segurana das elites econmicas e polticas (Franco, 2009). Surgem, em

    7 Uma descrio detalhada desta forma de operao encontra-se no livro La guerra de guerrillas, de ErnestoChe Guevara, publicado em Cuba no ano de 1960. Em geral, baseia-se em uma organizao de grupospequenos, comandados por uma estrutura central, com o uso tcnicas mveis (invaso, ambushes, etc.) e desurpresa. Cria-se um estado de incerteza no inimigo e precisa de uma estrutura de base que apoie oscombatentes, tanto em simpatia como em materiais para a guerra (armas, roupas, etc) e abrigo (Guevara,1960).

    8 Os comunicados, assim como a histria e material audiovisuais, fotogrfico e sonoro das FARC, estodisponveis no web site oficial da guerrilha: www.farc-ep.co. Acessado em 08/2012.

    9 Existe um arquivo com um grande nmero de referncias bibliogrficas sobre a teoria contrainsurgente nosite: http://wikileaks.org/wiki/Counterinsurgency. Acessado em 08/2012.

    10 Para uma caracterizao das foras paramilitares colombianas ver, Quijano (2010).

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  • parte, como uma forma de preencher os vazios estratgicos que as foras militares noconseguiam atender para atacar as guerrilhas e se fortalecem durante os processos denegociao de paz que comeam durante o governo do presidente Virgilio Barco (1986-1990)e se estendem at o governo do presidente Andrs Pastrana (1998-2002), como uma forma deprotesto contra tais processos (Gonzles et al, 2002). Os paramilitares, organizados sob onome AUC (Autodefensas Unidas de Colombia), se estabilizaram em 1997 aps a separaodesta faco das ACCU (Autodefensas Campesinas de Crdoba y Urab), mas esse tipo deestrutura existia no pas desde a dcada de 1980, com os grupos MAS (Muerte aSecuestradores), com algumas diferenas. Os paramilitares so grupos armados organizadospara realizar operaes de limpeza poltica e consolidao militar, anteriores ao domnio deuma rea (Romero, 2003, p. 38); enquanto as estruturas que os precederam eramdenominadas autodefesas: agrupaes organizadas para se defender de um agressor e mantero controle de um territrio, sem pretenses de expanso (Loc, cit.). Hoje em dia se temdemonstrado que as AUC tm vnculos com estruturas de governo, configurando assim o quese chama de parapoltica (ibid.).

    Por vezes esta violncia parece datar de tempos muito antigos, como se cada novaconfigurao fosse s uma atualizao de um tipo de violncia original; esta viso pessimistacontrasta com outra, que afirma a existncia de violncias cada uma com condiesespecficas; o que no exclui a questo de ser um conflito muito antigo e alimentado pormotivos polticos (Camacho, 1990). Uma primeira manifestao de violncia organizada achamada La Violencia, entre os anos 1945 e 1965, caracterizada por ser um enfrentamentoentre as elites em nome de partidos polticos e que em algumas regies teve expressesligadas ao vandalismo e ao banditismo de grupos adstritos a setores sociais que operaramaes para efetuar a excluso dos outros (Snchez, 2004). Esta oposio binria fechou asportas a manifestaes polticas alternativas e expresses de tolerncia poltica pensados apartir do poder (Ayala, 1996, p. 46) o que impediu ao Estado de reconhecer as diferenas eestabeleceu uma situao de conflito permanente (Op. cit.).

    A violncia contempornea, identificada j na dcada de 196011, pode ser entendidacomo a de uma guerra irregular (Franco, 2009) que descrita em cinco pontos principais

    11 Nesta dcada o lder campons de esquerda, Manuel Marulanda Vlez (Tirofijo), organiza um grupo depessoas sob o nome de FARC (Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia) e define como modo deoperao o de guerrilha, configurando assim a forma contempornea da violncia no pas (Gott 1970,Gonzles et. al 2002).

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  • (Thompson apud Franco, 2009, p. 500): 1) no envolve unicamente o uso da fora; 2) asoperaes de combate no so a caracterstica principal; 3) o objetivo das partes ganhar asimpatia da populao civil; 4) cada conflito diferente e requer um conjunto deprocedimentos operacionais; e 5) as atividades paramilitares esto ligadas s consideraespolticas, sendo as foras militares menos importantes. Para alm desta descrio, o socilogofrancs Pcaut (1987, 1997 e 2010) afirma que esta lgica de violncia a forma pela qual oEstado colombiano tem se construdo, sendo a outra cara da ordem e no a suacontraposio.

    Esta breve descrio e anlise sobre o contexto da violncia poltica colombiana nopoderia deixar de lado a questo do narcotrfico, cujo papel central para a economiacolombiana faz deste negcio uma atividade que marcou o desenvolvimento de polticas degoverno nos ltimos anos, assim como definiu a natureza da relao da Colmbia com osEstados Unidos, a Unio Europeia e os pases vizinhos. Thoumi (2002) identifica trsmomentos no desenvolvimento do narcotrfico. O primeiro comeou na metade da dcada de1960 com a produo e venda de maconha; uma estrutura relativamente simples que nadcada de 1970 decaiu para dar lugar produo de cocana, um negcio mais rentvel do queo da maconha. Foi nesta poca que se desenvolveram e fortaleceram os grandes cartis dadroga e que o lucro atingiu a economia do pas, elevando-a. A partir de 1986 o cultivo da cocapartilhou territrio com o da papoula, sem que o ltimo atingisse negativamente o primeiro. Aeconomia do narcotrfico gerou tantos ganhos como perdas e hoje vemos as consequnciasdisto no mbito social: pobreza, violncia e criminalidade nas cidades; e na poltica:financiamento de campanhas presidenciais, assassinato de lderes polticos.

    Diversas perspectivas e anlises concordam com a ideia de que a longa durao desseconflito e as diversas manifestaes que tm tido ao longo do seu desenvolvimentocontriburam construo de uma narrativa nacional onde prevalece a presena da violnciano s como pano de fundo de outras questes, mas como a prpria narrativa (Jaramillo,2007). Geoffrey Kantaris (2008) faz uma periodizao do cinema colombiano, segundo a qualos filmes produzidos nessas etapas acompanham, ressaltam, ecoam e at criticam o momentohistrico sublinhando a violncia no qual estes estariam sendo produzidos. MichaelTaussig (1986) afirma que as sesses de yag no Putumayo colombiano so, em vriossentidos, formas de se apropriar da memria do terror produzido pelos distintos momentos deviolncia (a colnia, a economia da borracha, o conflito armado) na regio, e de inseri-la em

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  • uma estrutura por meio da qual as pessoas construiriam formas de viver no presente. Estaelaborao de narrativas para explicar as irrupes da violncia na vida cotidiana, utilizamelementos de diversas origens muitas vezes verdadeiros exemplos de montagem, como mostrao trabalho de Alejandro Castillejo (2005) sobre o deslocamento forado. O antroplogoargumenta que as testemunhas das vtimas da violncia de deslocamento forado na Colmbiamarcam o antes e o depois do evento, estabelecendo uma relao de passado bom,presente ruim atravs da organizao dos distintos momentos do deslocamento e o uso demetforas do mal para qualificar os agentes da violncia e identificar os motivos dessesatos.

    ***

    No desenvolvimento do trabalho, a questo da elaborao flmica da violncia serpensada a partir da ideia de narrativa, entendida aqui como uma construo possvel darealidade, ou seja, o filme pensado como uma proposta de realidade, que ilumina espaos,permite leituras e abordagens, e que desembocaria em vises renovadas do cotidiano. Talaproximao ser explorada em duas partes: a primeira, a partir do filme La sombra delcaminante e a segunda a partir do filme PVC-1. O primeiro filme conta uma histria depessoas que, por causa da violncia, so obrigadas a se deslocar do campo cidade e l setornam seres marginais que deambulam pelas ruas de Bogot. O filme faz um convite arepensar o que se tem por certo sobre o tema do deslocamento forado e a pobreza naColmbia, por meio de procedimentos estticos e narrativos que permitem rever as ruas dacidade e seus habitantes, e, sobretudo, apresenta personagens complexos e absurdos,impossveis, mas verossmeis.

    La sombra del caminante apresenta duas personagens que se encontram na capitalcolombiana e criam uma relao de ajuda e amizade, marcada pelo silncio e por um passadoque no possvel esquecer nem ignorar, mas que no pode ser dito se no em momentos eespaos especiais. Filmado na cidade de Bogot no ano de 2002, mostra uma cidade fria eagressiva, porm potica e lugar de chegada e encontro de tantas pessoas e histriasdiferentes.

    A segunda parte tratar do filme PVC-1, que coloca a questo do tempo em perspectiva.

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  • Partindo da ideia de que um filme uma elaborao possvel da realidade, este pode no smostrar personagens ou paisagens, mas elaborar o tempo. A montagem a forma pela qual otempo flmico produzido, muitas vezes com o intuito de fazer dele uma imitao do temporeal. J PVC-1 um filme feito em um nico plano-sequncia (ou seja, sem cortes), que aquielabora o tempo ntimo. A discusso que o filme prope sobre a narrao do tempo nervoso,aquele que desconhecido, irrepresentvel, a durao do terror. Se o filme no um convite reflexo, uma obra que obriga o espectador a sentir o medo alheio.

    PVC-1 narra a histria de extorso que sofre a famlia de Ofelia, uma mulher do campo,esposa de Simn e me de duas filhas e um filho. Para forar o pagamento de uma somaexorbitante de dinheiro, a famlia ameaada com um colar bomba que colocado nopescoo de Ofelia. A interveno do Estado intil e a bomba explode. Com este filme emplano-sequncia (sem cortes), Spiros Stathoulopoulos apresenta uma elaborao dramtica dotempo e se prope um desafio tcnico importante. O longa pe em cena um fato real, bemconhecido na Colmbia graas s imagens de jornalistas que foram publicadas em jornais erevistas no ano de 2002. Porm, a anlise no ir debater a questo da verossimilhana destarepresentao12; o foco a construo narrativa e audiovisual do filme de um eventodramtico.

    Este um trabalho que se prope a pensar com o filme, deixar o filme ocupar o lugarprincipal e no o lugar de ilustrao, comentrio ou representao, de permitir que o filmeseja entendido de forma complexa e no reduzido a uma histria. No ser abordado o temada recepo, ou seja, a compreenso do que acontece depois da projeo do filme, com otempo, na sua circulao e exibio. O foco do trabalho a experincia que o filme oferece ea ateno sobre os filmes em si. Portanto, no procedimento metodolgico sero utilizadasalgumas das ferramentas de anlise discutidas por pesquisadoras e pesquisadores, tericos ediretores de cinema. Principalmente na linha de Jacques Aumont (1983, 1988, 1996, 1998),um estudioso francs de cinema que tem se perguntado como, porqu e qual o objetivo daanlise flmica, produzindo assim uma proposta coerente que atende as questes estticas einterpretativas dos filmes.

    Aumont (1988) defende uma posio segundo a qual analisar um filme dissociar a

    12 Este um termo problemtico. Eu o utilizarei no sentido mais amplo de formas de reproduo, sendoprivilegiados os termos de elaborao ou construo no sentido de processos criativos que do lugar a umaimagem. Na maioria das citaes que trago discusso aparece a palavra representao, de forma ambgua,algumas vezes como reproduo, outras como elaborao criativa.

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  • forma flmica13 da histria contada; um processo sistemtico, crtico e cinfilo que tem comoobjetivo mostrar os elementos fundamentais da construo do filme e aproxim-los dosdiscursos sobre cinema. Desta forma, a anlise parte da soluo a certo problema flmico queoferece a imagem, sendo que a imagem entendida como algo que diz, que significa porela mesma e no como um lugar onde os sinais de uma enciclopdia qualquer podem seridentificados (Aumont, 1996). De modo que a reflexo sobre a experincia que o filmeoferece seguir estes aspectos: a elaborao de uma situao que pode ser qualificada comoinenarrvel, a desfigurao para pensar a expresso de uma verdade, a tatilidade do olhar, orosto, a identificao e a interpelao do espectador pela imagem na tela, a questo do temposensvel e a elaborao do medo pelo filme.

    Outro componente digno de ateno a diegese, ou seja, tudo que diz respeito ao filme,o mundo real do filme. O termo indica que existe uma espacialidade e uma temporalidadeprprias ao filme, que permite uma variedade (limitada e virtual) de posturas, posies,atitudes, comportamentos e relaes entre as personagens e destas com o ambiente (Aumont,1988). um mundo que faz sentido em si mesmo, um tipo de realidade elaborada commateriais flmicos. um termo que serve para pensar o lugar que o espectador pode ocupardentro do filme e se colocar em relao a ele. Por outro lado, a diegese pode ser pensadacomo a histria que o espectador conta depois de assistir o filme, aquilo que permaneceu namemria, unido ao que poderia ser chamado de uma primeira interpretao dessas imagens.Isto porque quem narra situa-se diante das imagens, organiza-as, comenta-as. Ou, em outraspalavras, a descrio do filme, o que, segundo Aumont, o passo inicial da anlise flmica.Pode-se dizer que o mundo do filme na tela e na cabea do espectador. Aquele mundo daslinhas em cursiva deste trabalho. Trata-se da posio de antroploga-espectadora que ocupareinesta pesquisa, uma forma especfica de reescrever e explicar os elementos dos filmes, comoafirma Hikiji (1998).

    Neste mundo diegtico o espectador inserido, suas emoes so atingidas emodeladas. Aumont (1983) pesquisador-espectador, afirma que a forma de encenao dosobjetos um convite reflexo sobre o imaginrio da realidade e a realidade da imagem,pensar sobre a presena vivida (diante a tela) e a ausncia real (do que est na tela). Ointeresse , sobretudo, pelos espaos que a imagem constri para interpelar o intelecto e as13 Por forma flmica entende-se o elemento estruturante da forma cinematogrfica, de sua gramtica de base.

    Pode ser uma operao tcnica ou plstica, sempre est acompanhada de determinaes e significaes. Oclose- up, o travelling, a voz off, so formas flmicas. o que d forma matria-prima do cinema, a luz.

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  • emoes do espectador, como, por exemplo, o uso dos olhares, dos rostos e do tempoarticulados e elaborados por meio de um tipo de montagem. Elementos que modelam umasrie de associaes para a plateia. Ou, segundo Ismail Xavier ([1983] 2003), um tipo deexperincia que o cinema oferece: atraente pela imagem e o som, a imagem mobiliza afetos e instncia de celebrao de valores e reconhecimentos ideolgicos mais talvez do quemanifestao de conscincia crtica (ibid., p. 10). Surgem duas perguntas: que tipo deassociaes podemos nos permitir diante de um filme? Que tipo de experincia La sombra delcaminante oferece? Qual a proposta de experincia de PVC-1?

    Em outro plano, a anlise pode refletir sobre o contexto que produziu o filme e ascondies materiais e psicolgicas que este modela e que so aceitas socialmente. Umtrabalho que tem por objetivo formar o pblico, a crtica, a cinefilia e aproximar a anlise dosdiscursos sobre cinema (Aumont, 1988). Neste sentido, a leitura de crtica de cinema emlivros e revistas, assim como de reflexes sobre cinema colombiano, fundamental paraestabelecer um panorama diante do qual posso me posicionar como pesquisadora e entenderos filmes que so o objeto de estudo. No se trata de estabelecer uma histria do cinemacolombiano ou uma anlise da crtica cinematogrfica colombiana. um ponto de partida que elaborarei em breve para me aproximar dos filmes e uma referncia permanente parano perder de vista o campo no qual se inserem os filmes aqui analisados. Os demais assuntosreferentes produo do filme, como mercado, custos de produo ou bilheteria, no seroabordados, se no tangencialmente.

    Alm disso, a anlise ainda apresenta algumas ferramentas para considerar a capacidadede inveno da imagem, sua fora de significar, de criar, de expressar, fazer pensar e concebero valor da imagem no processo pelo qual ela volta ao mundo e o reflete de forma distinta, omultiplica ou at o imagina. Imagem que no natural e nem espelho; resultado de umaelaborao intelectual e plstica que tem a capacidade de devolver olhares diferentes sobre oreal. Enfim, uma forma de se apropriar do visvel que impe uma resposta sensorial eintelectual (Aumont, 1996) e que, concomitantemente, uma forma cuja organizao daimagem/som diz respeito a objetivos socioculturais do momento em que produzido umfilme (Xavier, 2005). Desta forma podemos j repensar o cinema colombiano, qualificado poralguns crticos (ver Osrio, 2010) como essencialmente violento ou que s mostra a violncia,porque o pas violento.

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  • Cada anlise flmica responde a todos ou a alguns destes objetivos, e seus resultadosdependem inteiramente do filme, j que o ponto de partida e o horizonte. De modo que noexiste uma metodologia definida e sim caminhos possveis para desenvolver tal anlise.Sendo tambm uma forma de escrita ou de transcrio, de deslocamento no sentido de que uma passagem do visual para o escrito este trabalho permite pensar no problema da escritana antropologia, das possveis solues para dar conta de uma dimenso alheia ao texto: amultiplicidade plstica do filme. tambm um desafio de produo de interpretaespertinentes e pontos de vista renovadores e instigantes sobre a obra sem, portanto, imporsentidos, nem reduzir o filme histria narrada ou tentar um exerccio de transcrio literal.Trata-se de observar, decompor e recompor o filme de forma que os problemas que a obracoloca e os interesses da pesquisa se encontrem no texto (Vanoye e Goliot-Let [1992] 1994).

    Apesar da anlise flmica poder ser um fim em si mesmo, neste trabalho ela oprocedimento pelo qual indagarei a propsito das narrativas do terror. O terror, no sentidodescrito por Michael Taussig (1986), um estado social e fisiolgico que serve para mediar asrelaes entre diferentes grupos sociais na modernidade. a maneira pela qual objetivosprticos (por exemplo, a organizao da mo de obra) so realizados e uma forma dedominao que mantm a hegemonia. Ato, espao, cultura; o terror se refere a uma situaoque se torna estvel pela prpria instabilidade que o caracteriza, pois ao no ser unicamenteuma coisa material (armas, corpos) nem uma situao especfica (guerra, tortura), s reconhecido em certos instantes nas suas manifestaes e consequncias e pelas palavras dequem o experimentou (ou, pela apropriao/circulao estratgica destas palavras), criandodesta maneira ordem e dominao pelo medo. Ruptura e excesso de significado que seesconde nas aproximaes que o imitam (certo tipo de jornalismo) tanto quanto naquelas quepretendem racionaliz-lo (estatstica ou anlises normativas). De modo que o autor chama aateno sobre a mediao do terror pela narrativa, ou, em outras palavras, a elaborao doterror em narrativas (literatura, fotografia, filmes ou jornais) a partir das palavras e imagensde quem tem tido a experincia do terror e decide cont-la. Narrativa que organiza, articula,circula e faz conhecer o terror.

    Os dois filmes que aqui interessam elaboram um tipo particular de narrativa do terror naColmbia. Dois elementos elaboram esta questo: narrativa e mimesis. O primeiro serelaciona com as formas de comunicar e intercambiar experincias e construir histriascoletivas, o segundo com o tipo de conhecimento que surge da imitao e do contato. Os dois

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  • esto vinculados ao campo audiovisual, no sentido de que a narrativa pode ser consideradacomo a organizao particular dos recursos flmicos e literrios que um filme, e a qualidademimtica se relaciona com a natureza de registro do real da imagem flmica, cuja visualizaope em contato o aqum (espectador na sala de cinema ou na sala de casa) com o alm (asimagens na tela, desconhecidas, novas, longnquas no tempo e no espao). Ento, o propsitode entender o tipo de experincia que o filme oferece vai em direo ao conhecimento dealgumas das narrativas do terror que esto sendo elaboradas pelo cinema colombianocontemporneo para pensar as formas de narrar, os limites da narrao e os problemas quecoloca a experincia dramtica tanto expresso como descrio e anlise.

    A questo da narrativa um tema complexo e muito discutido pelas disciplinas sociais ehumanas. Assim sendo, especificarei o uso do termo no trabalho. Walter Benjamin ([1936]2010) considera que a narrativa uma forma de comunicar que tem a faculdade deintercambiar experincias e construir narraes coletivas; uma forma que se diferencia dainformao porque no lida com dados e fatos, pelo contrrio, a narrativa no explica, livrepara interpretar a histria e com isso, atingir amplitude e atualidade. O narrador, ao narrar,arranca o ouvinte do seu lugar, faz com que ele se esquea de si mesmo, entre em contato como narrado e adquira o dom de narrar. Em termos especficos ao audiovisual, podemos pensarem diegese, elaborao do mundo real que surge do exerccio de articular elementos prpriosao relato e ao flmico. E que permite pensar, como afirma Arias (2010), que a dimensopoltica do cinema se encontra na elaborao do espao do possvel e no apenas narepresentao de fatos, personagens ou eventos polticos. A narrativa flmica como umaelaborao de uma realidade possvel onde o contato com o outro e a experincia dodesconhecido (o terror) vivel ( proposta, desencadeada, animada, alimentada).

    Vale a pena insistir na questo do contato, ou, antes, da mimesis. A faculdade mimtica explorada por Michael Taussig (1993) para refletir a propsito da nossa capacidade de imitare criar modelos, fundamental ao conhecimento e naturalizao das identidades. A cpiamimtica tem o poder e o carter do original, uma imitao que compulso por tornar-seoutro. Unio que sutura a natureza e o palpvel, e executa a conexo do corpo de quempercebe com aquilo que percebido para distanciar e liberar. A capacidade mimtica envolveo processo histrico de justapor o antigo e o novo que d poder sobre o que copiado e levadentro a alteridade, graas tarefa de possesso assim efetuada. Este fenmeno interessantehoje devido ao interesse no conhecimento sensvel, um tipo de aprendizagem que, pela

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  • aderncia pele das coisas por meio da copia realista, desconcerta.A faculdade mimtica uma forma de organizar o mundo, de se relacionar com ele, dar-

    lhe sentido. As cmeras, aparelhos mimticos modernos, renovam e radicalizam estafaculdade. O uso da cmera (o cinematgrafo) a favor do narrativo (cinema), entendido apartir desta perspectiva, indica a apropriao do visvel e sua organizao segundo as leis damontagem. Para o filsofo alemo Walter Benjamin ([1935/1936] 2010) este processo poderiachegar a liberar o olhar dos limites do espao de vida humano, porque lhe apresentariadimenses desconhecidas do mundo cotidiano e exercitaria o espectador nas novas formas depercepo. Como as personagens de Ciro, que so verossmeis e absurdos, ou o tempo irrealde Stathoulopoulos, que mostra o sentimento no momento de crise. Neste sentido, a cmeratransforma o exterior em seu objeto e o oferece ao olhar para ser incorporado nessa novaforma de percepo e na qual o cinema educa a viso humana. A agncia da cmera e docinema para tal liberao e renovao no ser tema de discusso no presente trabalho, o queinteressa explorar aqui a organizao do visvel e do invisvel pelo cinema.

    A imagem cpia do original, forma radical de mimesis, efetuada por aparelhosmimticos, que como tal detm o poder e o carter do original no porque seja idntica defato, mas porque ela produto de um processo entendido como reprodutor de cpias fiis.Oferece-se ao olhar e satisfaz desejos de observao e apropriao, no da sua matria (afotografia), mas daquilo de que uma imagem. No sendo suficiente, a imagem emmovimento no s oferece uma imagem de alguma coisa, oferece seu movimento (umamimesis do seu movimento), oferece o poder sobre a vida do objeto da imagem ao mesmotempo em que se prope a atingir a percepo do espectador. Se aceitarmos esta ideia de cpiae contato para pensar a imagem em movimento do cinema, podemos comear a indagar apropsito dos filmes que sero objeto deste trabalho em relao s questes da experinciaque eles oferecem no sentido especfico da narrativa do terror. O que acontece quando aimagem nos pe em contato com o terror? E quando ela prope um contato com essedesconhecido e quase ausente universo da dor?

    Taussig convida a pensar nas narrativas do terror como agentes na construo doprprio terror. Ns conhecemos o terror por meio da narrao (todo tipo de narrao) e ocinema nos d imagens para pensar no terror; nos fornece rostos, lugares, nomes queidentificam e participam do processo mais amplo de construo do discurso e da histria do

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  • terror14. A tarefa revisar as formas de produo de verdade e do medo, sendo que oproblema no o que permitido dizer, mas as formas de discurso e contradiscurso adotadas.Taussig (1999) chama a ateno para a necessidade de adotar uma nova potica da destruioe da revelao, porque o problema no simplesmente de desconstruo (no sentido dedemolir para criar de novo). O projeto que o antroplogo prope o de escrever contra oterror; procurar um discurso que no continue o trabalho da cultura do terror.

    Notas Sobre o Cinema Colombiano

    No querendo relatar aqui os detalhes da histria do cinema colombiano15 apresentareialguns momentos importantes para entender seu desenvolvimento. Principalmente com oobjetivo de estabelecer um quadro onde possam ser localizados os filmes que sero analisadosneste trabalho. Pretendo estabelecer alguns pontos para entender o filme em relao, e nocomo uma obra isolada cujo valor provm unicamente do aspecto tcnico ou formal. Para prem perspectiva as obras flmicas de 2004 e 2007 que analisarei, estas se apreciam por seremindependentes na produo, encenao e na prpria narrativa escolhida. Uma independnciaque, para os dois diretores, decorre da produo sem o apoio dos fundos estatais e/ou privadospara a produo cinematogrfica16 (o que significa fundos pessoais e prmios concedidos porfestivais e fundos internacionais). Esta posio est vinculada ao desenvolvimento datecnologia digital e relao destes diretores com a arte cinematogrfica e do cinemacolombiano: diretores jovens, apenas entrando no disputado campo da produo audiovisual,com desejo de realizar suas ideias e estrias em imagens, produo com equipes compostas de14 Xavier (2005) afirma que cada esttica, cada teoria de cinema, uma idealizao sobre o que o cinema deve

    ser em cada poca. Este dever-ser do cinema muda de acordo com a histria. A essncia e a natureza docinema so pensadas em termos das ideias predominantes em cada momento. Imagens nem so produzidasautonomamente pela mente criativa do autor nem so postas em circulao de formas inusitadas quemodifiquem radicalmente o que se pensa. Trata-se melhor de processos que acontecem simultaneamente,modificando-se perpetuamente.

    15 O debate sobre a ausncia de Histria de cine colombiano data da dcada de 1970. Naquela poca acrescente preocupao pela produo foi acompanhada pela publicao de algumas obras e artigos, pormesta histria escrita marcada por vazios. Esta pesquisa adere ideia de pesquisar nosso cinema a partir depontos de vista mltiplos e tomando como sua particularidade aquilo que tido como seu prprio obstculo,como indica Martnez (1978).

    16 Proimgenes en Movimiento a parte do Ministrio de Cultura Colombiano que se encarrega de administraros fundos destinados produo cinematogrfica no pas. Para mais informaes sobre este rgo, acessar osite: http://www.mincultura.gov.co/index.phpidcategoria=1154?. Acessado em 08/ 2010.

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  • amigos e outros estudantes de cinema e com o uso dos aparelhos disponveis.O jornalista Oswaldo Osrio17, que tem escrito sobre cinema colombiano, afirma que na

    historiografia deste cinema h muitos vazios, porque esta no tem acompanhado o ritmo deproduo de filmes e que se baseia na crtica publicada em jornais e revistas18. Martnez(1978) estabelece uma cronologia e descreve os estilos de cada crtico de cinema at os anos1980. Segundo Martnez, a primeira crtica era inspirada na literatura e no teatro, ressaltavaelementos de argumento, atuao e decorao e ignorava os elementos propriamentecinematogrficos (Luis David Pea, Jorge Bernal e Lupecar). O grupo que continuou com estatarefa observou os elementos tcnicos (publicaram sob o pseudnimo de Olimac, Ulises), epaulatinamente o crtico foi aperfeioando seu trabalho (Andrs Caicedo, Luis Ospina,Augusto Bernal). Hoje contamos com alguns estudos sobre cinema produzidos no marco deeventos como a VII ctedra Anual de Historia Ernesto Restrepo Tirado, realizada no ano de2007 ou como resultados de estudos de ps-graduao (Suarez, 2009; Arias, 2010) e ainda,reflexes publicadas com ajuda do Ministrio de Cultura colombiano (Arboleda e Osrio D.,2003; Lpez, 2006), ou com ajuda de Universidades (Calle, 2002; Osrio, 2005 e 2010)graas a editais de publicao de ensaios crticos. Nota-se um crescente interesse no cinema,tanto por pessoas que estudam e produzem cinema como por pessoas de outras disciplinas,como a histria, a antropologia e a filosofia. Alm do apoio das universidades que agora estesestudos recebem, notvel que o XIV Congreso de Antropologa, Proceso de construccin dela nacin colombiana, realizado em 2012, tenha se interessado pelo assunto, dedicando ogrupo de trabalho Interpretando la nacin: Colombia a travs del cine ao encontro ediscusso do cinema na sua relao com a construo da nao colombiana.

    Arte e nao, uma relao antiga tanto harmoniosa como conflituosa. Sergei Einsestein,Leni Riefenstahl, D. W. Griffith so nomes chaves para pensar nos vnculos, causas econsequncias da produo de formas flmicas em concordncia com ideologias nacionais. NoBrasil, Glauber Rocha um dos diretores que procurou ajustar produo de cinema ediscusso crtica sobre o pas, uma produo em pelcula e em texto, no s para apoiar ideias,mas com o intuito de subverter e repensar as que j existiam. Na Colmbia, Carlos Mayolo eLuis Ospina produziram filmes que misturavam elementos da cultura popular e do

    17 Autor do web site cinefagos, o jornalista publica crticas, artigos e entrevistas sobre cinema nacional einternacional, e mantm um acervo de documentos sobre cinema colombiano. uma das referncias parapensar a crtica colombiana de cinema hoje. Ver: www.cinefagos.net.

    18 Para uma lista completa dos peridicos sobre cinema colombiano (ver Ministrio de Cultura et al, 2007).

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  • documentrio crtico para refletir sobre a imagem que se produz sobre a Colmbia e proporolhares divergentes. Em todos os casos, existe uma preocupao pela produo de cinema e oque pode/deve ser mostrado sobre a nao: assim, ideias de identidade coletiva, histria egeografia comum, cultura cinematogrfica, so articuladas na formao de umacinematografia que construa a nao pela promoo das paisagens e pela reflexo crtica sobredinmicas, processos e problemas.

    Neste contexto ressalto a exposio Accin! Cine en Colombia, realizada no MuseuNacional de Colombia, com sede em Bogot, entre outubro de 2007 e janeiro de 2008. Foi umesforo para reunir uma srie de objetos, nomes e imagens da cinematografia colombiana emostr-los a um pblico diverso. A exposio foi enquadrada pela ideia de que acinematografia contribui ao fortalecimento dos elementos de uma identidade coletiva. Asimagens constituem, portanto, um componente de transio da sociedade do conhecimento auma sociedade das experincias. [] O cinema um mecanismo privilegiado que nossensibiliza acerca da realidade, sobretudo quando requeremos mais solidariedade e deconscincia acerca do impacto dos processos sociais, polticos e econmicos que vivemostodos os dias (Ministerio de Cultura et. al, 2007, p. ix, traduo minha, grifos meus). O queleva a pensar na forma em que segmentos do Estado esto entendendo o cinema, as aesadministrativas empreendidas e os espaos abertos para o encontro de pessoas relacionadascom a produo e crtica de cinema e destes e suas obras com um pblico amplo. Sugeretambm que as pessoas, estudantes de cinema ou no, esto se expressando na linguagemaudiovisual, e mostra que existe um crescimento de pesquisadores e cineclubes que fazemcircular obras e ideias sobre cinema, principalmente nas cidades.

    Este panorama mostra que existe uma certa atividade no campo do cinema, o que noquer dizer que seja um campo constitudo por regras e dinmicas estabelecidas ousedimentadas fortemente na histria. um campo recente e exige aproximaes que deemconta deste movimento e que o vinculem a outros saberes para olhar a riqueza de propostas ede formas crticas de fazer cinema, pensar na prpria produo de imagens hoje na Colmbiae refletir sobre o lugar do cinema diante e inserido no contexto de um pas complexo, comdinmicas de guerra, pobreza e excluso, com processos culturais, sociais e polticosmultiformes e com uma grande necessidade de olhar para si e rever suas histrias para cont-las.

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  • Cinema quadro a quadro e com elipses

    Trs obras renem artigos e resenhas publicadas entre 1920 e 1980 em volumes:Historia del cine colombiano de Hernando Martnez Pardo, publicada em 1978; Reportajecrtico al cine colombiano, escrito por Umberto Valverde em 1978; e Crnicas de cinecolombiano, uma coleo de ensaios de Hernando Valencia Goelkel, publicada em 1974. Nasdcadas seguintes h uma exploso de revistas e coletneas de artigos. Notveis so Pginasde cine de Luis Alberto lvarez (1988), e Ojo al cine de Andrs Caicedo (2009). O livroCrnicas del cine colombiano 1897- 1950, de Hernando Salcedo Silva (1981), uma coleode 9 entrevistas com realizadores de cinema importantes nos primeiros anos desta indstria nopas. A obra de Carlos Alvarez (1989), Sobre cine colombiano y latinoamericano, umesforo admirvel de comparao das cinematografias dos pases da Amrica Latina realizadaa partir de 1955 at 1980. Uma viso ampla que lhe permite identificar e entender aspropostas e caminhos da cinematografia colombiana em relao brasileira, argentina e mexicana.

    Hoje, a melhor referncia em crtica de cinema a revista Kinetoscopio editada peloCentro Colombo Americano de Medelln. Esta maneira de estudar e de escrever sobre cinemapode ser lida como um tipo de relao entre o pblico e o cinema (diretores, equipe tcnica,indstria no geral e, claro, os filmes) que vai mudando com o tempo, as condies sociais epolticas. Assim, estas obras e artigos constituiro um corpus de referncias para descrever opanorama de cinema colombiano e dar alguns guias de leitura para entender melhor o lugarque La sombra del caminante e PVC-1 ocupam. Este lugar foi tambm alimentado por duasentrevistas realizadas no ano de 2011 na cidade de Bogot: a primeira junto ao diretor CiroGuerra e a segunda com o produtor Vassilis Stathoulopoulos19. Nas duas entrevistas pergunteisobre a origem da ideia e do processo de produo, o porqu da esttica elaborada e como osdois veem suas obras em relao ao cinema e ao pblico colombiano. E, finalmente, li oroteiro do filme La sombra del caminante, como um exerccio para chamar a ateno aosdetalhes da encenao, muitos dos quais teriam passado desapercebidos. No tive acesso ao

    19 As entrevistas e declaraes dos diretores no so tidas como a verdade do filme, do seu objetivo oupropsito. O filme tem suas prprias significaes, jogos de sentido e formas de se relacionar com oespectador, assim como formas que independem do diretor de circular e de ser recebido. Porm, o enunciadopelos diretores ilumina a prpria percepo do filme, a informa e lhe d um ponto de referncia que pode seraceito ou no, criticado ou at contraditado.

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  • roteiro de PVC-1, em parte porque segundo o produtor este no existia, pois a filmagem foiplanejada em mapas de deslocamentos e posies de cmera, desenhos que ele no possua.

    Martnez Pardo, em sua obra de 1978, descreve a histria do cinema colombiano a partirde 1900 at 1976. O historiador estabelece que dado que o que acontece com o cinema no independente do que acontece ao nvel social, na anlise estabeleo a relao entre o mundodo nosso cinema e a dinmica ou organizao que est se apresentando na sociedade, entre oque precisa o cinema para se desenvolver como indstria e para cumprir sua funo socialcomo arte e o que as circunstncias e condies do pas oferecem (Martnez, 1978, p. 16,traduo minha). Ele prope um tipo de anlise a partir das distintas afirmaes que tm sidofeitas para explic-lo: a ausncia de leis, a questo econmica, o afastamento do cinema darealidade local colombiana, os obstculos impostos pela indstria da distribuio e daexibio de filmes, a dominao comercial e ideolgica do cinema estrangeiro, em paralelocom os filmes, empresas e demais agentes que na histria marcaram seu percurso. Estaproposta de entender o cinema em relao aos assuntos sociais e polticos faz desta uma obrafundamental para se aproximar da produo colombiana, dos seus trajetos e desvios.

    Martnez estabelece uma historiografia que comea vinculada ao sobrenome DiDomenico, dois irmos italianos que chegaram a Bogot em 1908 ou 1909 no h certeza dadata com alguns filmes e uma filmadora Path. Algum tempo depois, em 1920, os Acevedocriariam a primeira empresa produtora de filmes e de noticirios que funcionou at 1955, datado ltimo filme produzido. Em 1912, o Teatro Olympia, primeiro dedicado totalmente exibio de filmes, abria suas portas a um pblico curioso pelas imagens em movimento.Situado no centro da cidade de Bogot, tinha capacidade para 5 mil pessoas, que pagavam umou outro preo dependendo do lugar que ocupavam na sala: diante ou atrs da tela. Em 1920,a projeo de cinema ocupava um lugar importante entre as atividades de lazer na capitalcolombiana e foi nesta poca que comearam as discusses sobre investimento e apoio dogoverno produo de cinema. Dentre as repostas e propostas oferecidas abriu-se o debatesobre a moralidade do cinema e as consequncias de uma ou outra produo nocomportamento das pessoas, o que fez com que o apoio e a censura fossem realizadossimultaneamente.

    Surgem novas produtoras (Calvo Films, Ducrane, Patria Films, Cofilma), filmes so

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  • feitos, novos equipamentos chegam ao pas e o interesse pelo cinema nacional cresce at quenovas desiluses apagam as luzes do estdio para que, tempo depois, a pelcula comece arodar outra vez. Sua histria est marcada pelo desenvolvimento do cinema sonoro, invenotecnolgica que afetou o curso do cinema no mundo20. Em 1937, a produtora Colombia Films,criada com o ideal de produzir filmes de qualidade europeia e sonoros, realizou uma srie denoticirios e documentrios no marco do projeto de Cultura popular do Ministrio deEducao do Ministro Jorge Elicer Gaitn21, demonstrando assim uma colaborao frutferaentre o governo e as empresas produtoras de filmes. O partido liberal esteve sempre a favor daproduo cinematogrfica nacional por motivos polticos e impulsionado por uma vontade deeducao e cultura popular. Tal foi o apoio que durante a Segunda Guerra mundial, apesar dasdificuldades desta empresa, foi aprovada a ley 9 de 1942 para o fomento da indstriacinematogrfica pelo presidente Alfonso Lpez Pumarejo (Martnez, 1978, p. 84). Este umprecedente importante para as prximas tentativas de criar formas de apoio do Estado produo de cinema: a lei do sobrepreo, FOCINE e o atual Fondo Mixto para la PromocinCinematogrfica Proimagenes Colombia criado pela lei de 2003 de cinema.

    A produo dos anos 1950 uma cinematografia de comdias, adaptaes de obrasliterrias, encenao de eventos histricos, crnicas sociais e polticas, e paisagens, queressaltava a qualidade da produo industrial nacional e do espao turstico que ofereciam asdistintas regies do pas. Recebeu graves crticas: alm da falta de qualidade tcnica, estesfilmes estavam longe do pas, das suas crises polticas e problemas que transtornavam ocampo e a cidade, o que segundo Martnez afastou o pblico de cinema e foi o maior desafioque o cinema colombiano enfrentou. As formas de financiamento seguintes teriam efeitosvariados e se relacionaram de formas diversas com o pblico, a questo nacional e a indstria:a lei do sobrepreo de 1972 permitiu que as salas de cinema cobrassem um preo maior no

    20 A passagem do cinema mudo para o cinema sonoro um momento que est muito bem encenado no filmeSinging in the rain dos diretores Stanley Donen e Gene Kelly (1952).

    21 Jorge Elicer Gaitn foi um importante lder popular que participou dos debates polticos nacionais em ummomento de transformaes ligadas ao processo de modernizao capitalista. Sua ativa participao polticase conjugou ao trabalho no campo da cultura e no campo do direito. Foi reconhecido como um grande juristae a partir desse lugar liderou mobilizaes como a de 8 de junho de 1929 contra a hegemonia conservadora edenunciou graves atos de violncia como o massacre dos trabalhadores da United Fruit Company em 1928.Sempre do lado dos trabalhadores, Gaitn ocupou um lugar importante entre os liberais e na esquerda. Nosanos 30 cria o partido UNIR (Unio Nacional de Esquerda Revolucionria). Em 1936 foi prefeito de Bogot,saindo antes de terminar o perodo eleito por causa de desconfortos com as suas transformaes. Em 1940 setorna Ministro de Educao onde tentou levar adiante uma reforma educao sem sucesso. Outras propostasde transformaes fomentaram o desgosto entre as elites e classes dirigentes. Sua vida acabou cedo,assassinado no dia 9 de abril de 1948 (ver Marn em,http://www.banrepcultural.org/blaavirtual/biografias/gaitjorg.htm. Acessado em 07/2012).

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  • ingresso para que o excedente fosse depositado em um fundo destinado realizao. Foramassim realizados muitos curtas-metragens que promoveram a formao de um conhecimentona prtica que trariam resultados anos depois.

    Entre 1978 e 1993 a Compaa de Fomento Cinematogrfico (FOCINE) permitiu aosartistas formados durante os anos anteriores realizarem obras com oramentos maiores,media-metragens e curtas-metragens, e se deu um importante debate sobre a relao entreapoio, produo, distribuio e exibio (Restrepo, 1980). Os temas do narcotrfico, damarginalidade e da violncia comeam a ser abordados pelas cmaras, e se abriu um espaoimportante ao documentrio, que teve sua melhor exposio com a antroploga MartaRodrguez e o fotgrafo Jorge Silva (Ministrio de Cultura et al, 2007). A atual lei de cinemacria um Fundo misto que permite o aprimoramento da tcnica, mas, sobretudo, permite que osjovens que haviam estudado cinema e praticado nos anos anteriores, alguns com maisexperincia que outros, possam chegar a produzir filmes, explorar a linguagem e oferecervariadas e renovadas respostas pergunta sobre como mostrar a Colmbia sua cultura seusproblemas e seus futuros (Surez, 2009).

    Depois da Segunda Guerra Mundial, Bogot contava com 33 salas de cinema, cujaprogramao era ocupada por filmes estadunidenses, argentinos e mexicanos, assim seestabeleceu a continuidade na projeo de filmes e o aumento do pblico de cinema22,constituindo-se nesse ano como o espetculo de maior importncia e frequncia defuncionamento, sendo os filmes estadunidenses os preferidos pelo pblico bogotano23. Nestapoca a produo de filmes colombianos era reduzida (uma mdia de um filme de longa-metragem por ano) e de baixa qualidade tcnica principalmente no que se refere ao som. Edistribuidoras como Cine Colombia, a mais importante at hoje, rejeitaram a exibio dequalquer produo nacional, apresentando somente filmes estrangeiros. O que manteve algunsno ofcio foi o cinema de publicidade e particularmente aquele realizado por Marco TulioLizarazo, que se dedicou a fazer filmes sobre e para polticos e empresas. Lizarazo introduziuno pas o cinema em cores e o uso do procedimento de cinemaScope24.

    22 No ano de 1944, para uma populao de quinhentos mil habitantes na cidade de Bogot, houve 3.149.058espectadores e 16.211 apresentaes (Martnez, 1978, p. 132).

    23 Uma estratgia de exportao, construo de salas de cinema e de dublagem que caracteriza as empresasprodutoras de cinema dos Estados Unidos e desenvolvida na maioria dos pases que, ao promover suas obras,desencorajam a produo nacional. Mas que tm a vantagem de fazer do cinema uma atividade deimportncia nas cidades.

    24 O primeiro filme a ser realizado com esta lente The Robe, um filme dirigido por Henry Koster em 1953.Este procedimento permite a ampliao da imagem original que pode ser feita com uma pelcula de 35mm ou

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  • Porm, alguns diretores continuaram realizando filmes, exploraram o pas e inseriramnovas personagens, outras histrias: o campons e sua relao com a violncia poltica (Estafue mi vereda (1959) de Gonzalo Canal Ramrez) e o mineiro e seus problemas no trabalho(El Milagro de la Sal (1958) de Luis Moya). E novas estruturas narrativas e estticasalinhadas com o surrealismo (La langosta Azul (1954) de lvaro Cepeda Samudio, EnriqueGrau, Luis Vicens e Gabriel Garca Mrquez). No caso, interessa o filme de Canal, j quedescreve a chegada e o ataque de um grupo de guerrilheiros a um povoado. No Jornal ElTiempo aparece a seguinte resenha:

    Gonzalo Canal Ramrez fez um filme de 21 minutos, com umimpressionante e por vezes cruel testemunho contra a violncia, talvez maisdenso do que toda a literatura vertida no pas sobre um tema to arraigado navida nacional. Esta fue mi vereda muito mais do que isso: um testemunhode grande qualidade cinematogrfica e esttica. [...] Simplesmente narra com aajuda de uma cmera e de um excelente grupo de artistas nacionais, comoaconteceu a trgica mutao de uma tranquila aldeia na antessala do inferno(Andrade, 1960, Apud Martnez, 1978, p. 201, traduo minha).

    A partir dos anos 1960, Martnez identifica uma modernizao do cinema,especialmente graas realizao de filmes que aproximavam o espectador das obras e queaproveitam a experincia adquirida pelo trabalho com outras mdias, muitas das quais tinhamcrescido ao lado da indstria da publicidade. As obras citadas acima constituem a base de umcinema que vai analisar a realidade e desenvolver a linguagem flmica, assim como formarum pblico mais exigente. Porm, este movimento no dialogou com os demais processos naAmrica Latina de renovao e transformao da prtica e da teoria que se manifestaram tantona realizao como na publicao de textos e manifestos (Surez, 2009, p. 61). Por outro lado,o pas vivia uma srie de transformaes polticas importantes, a aliana entre o partido liberale o partido conservador chamado Frente Nacional impediu outras manifestaes polticas dese fazerem presentes e gerou desconforto entre os jovens e grupos de esquerda. Aurbanizao, a abertura do pas a correntes de pensamento estrangeiras, secularizao,aumento do acesso educao, transformao social do papel da mulher. O mundo passavapor uma poca de efervescncia cultural, social, econmica e poltica que teve repercussesna Colmbia. Durante a dcada de 1970 no pas comeam a aparecer as estruturas donarcotrfico, as guerrilhas se transformam para se radicalizar rapidamente e surgem os grupos

    de 16mm. Alm disto, o procedimento permite a incluso da banda de som tico.

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  • de autodefesa de extrema direita como uma estratgia de contrainsurgncia. Todos estesacontecimentos fazem com que o regime poltico sofra uma crescente deslegitimao(Gonzles et al., 2002, p. 44) e outras vozes polticas e atores sociais comecem a aparecer nocenrio pblico. A produo de cinema simplesmente no podia continuar a ignorar astransformaes do pas nem desligada do seu pblico.

    A crtica de cinema nestes anos se limitava a descrever e elogiar os filmes, sem analisarnenhum dos aspectos propriamente cinematogrficos, como a iluminao, os planos, acomposio; sem oferecer elementos para a reflexo e a crtica sobre a funo narrativa destelegado de imagens dentro da complexa engrenagem de conceitos como o nacional (ocolombiano no caso) e a indstria cinematogrfica, impossvel ignorar que a constante daviolncia tem se tornado um elemento penetrante na mesma definio da nao colombiana,como adverte Juana Surez (2009, p. 11). A observao de Surez vlida no passado e nopresente, por conseguinte de ressaltar o trabalho de Hernando Valencia Gloekel, o primeirocrtico a estudar sistematicamente o cinema, publicando nas revistas Mito25, Cromos e Eco eno jornal El Tiempo. Valencia e um grupo de intelectuais bogotanos fundam a revista Mito,que segundo o escritor, jornalista, poeta e crtico Juan Gustavo Cobo Borda (Cobo, 2009) fundamental no estabelecimento da crtica de cinema, porque esta era feita por pessoas queestudavam cinema em cidades como Paris e Roma, cuja viso cosmopolita levou-os a traduzirtextos de Brecht e Fellini, escrever sobre o cinema contemporneo e a se perguntar pelaespecificidade da linguagem do cinema (signos e convenes, estrutura de significados, artecriativa e no da reproduo, ator como elemento funcional dentro da obra) pela relao entrecinema e histria, o desenvolvimento do gnero, a relao entre imagem e som, e pelaadaptao cinematogrfica da literatura e do teatro.

    Ou seja, o mundo do cinema comeava a definir os termos e as categorias para pensar aproduo nacional, suas particularidades e sua dimenso poltica, assim como a estabelecervnculos com outros campos do conhecimento; uma atividade que agora passava a seratendida pelos intelectuais e que propunha criar vnculos, alm do divertimento, com asociedade. Isto em uma poca de graves censuras promovidas pelo presidente conservador

    25 A revista Mito fundada por Jorge Gaitn Durn e Hernando Valencia Goelkel [] foi sem dvida apublicao cultural mais importante do sculo XX. conhecida sua posio de esquerda, de verdadeiraliberdade, mesmo que alguns dos colaboradores estivessem afiliados ao partido conservador []. A principalcaracterstica de Mito haver estado em contato com o mais novo do seu tempo, e refleti-lo na Colmbia[](Cobo, 2009).

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  • Laureano Gmez, que deu incio a uma srie de polticas que desfaziam o que foi feito pelopresidente anterior, Pumarejo, em matria de apoio produo de cinema.

    Outros crticos, como o reconhecido escritor Gabriel Garca Mrquez, os diretores decinema lvaro Gonzlez Moreno, Guillermo Angulo e Francisco Norden, aportariam formasde pensar a relao entre cinema, arte e sociedade. Pontos de vista que servem de refernciapara pensar o cinema colombiano feito nessa dcada. Em 1949, Luis Vincens, HernandoTellez, Bernardo Romero Lozano, Gloria Valencia de Castao, Carlos Martnez e JorgeValdivieso criaram um importante cineclube: o Cine Club de Colombia, que se props oobjetivo de melhorar o gosto pblico, chamar a ateno sobre as obras perdurveis dacinematografia e impedir que certos filmes fossem esquecidos. [] nessa funo derelembrar o velho que pode ser valorado com exatido o novo (Martnez, 1978, p. 221). Oque indica a aproximao e participao do pblico no cinema, pela visualizao e discussode obras flmicas. Tal o sucesso desta empresa que em 1966 o grupo abre as portas daCinemateca Colombiana, e em 1972 criada por decreto a Cinemateca Distrital 26, ambas comsede em Bogot.

    O cine club de Colombia o principal, mas no o nico cineclube que exibiu e discutiucinema no pas (cineclube e cinemateca La Tertulia, cine club de Cali, Nueva Generacin, dela casa de la amistad de los pueblos, de la Universidad del Valle em Cali, cine club deMedelln, cinemateca El Subterrneo, mundo universitrio, em Medelln, cine foroestudiantil, de la universidad Jorge Tadeo Lozano, cine club de Bogot, la Linterna Mgica,de la Universidad Central, de la Universidad Pedaggica, em Bogot, de la Universidad deCartagena, em Cartagena, para ressaltar alguns) estes e a Cinemateca cumprem uma funoimportante na formao de pblicos e na gestao de perguntas e desafios produonacional. Desde ento proliferam cineclubes nas cidades colombianas, alguns dos quaispermanecem funcionando at hoje e que estudam no s os grandes nomes da cinematografiamundial como tambm os fenmenos comerciais e as produes nacionais. Alm disto, egraas tecnologia digital, muitos destes cineclubes se dedicam ao ensino e produo decurtas-metragens junto a jovens, crianas, comunidades das periferias e estudantes de cinema.Tambm estes lugares so importantes na distribuio e exibio de obras que muitas vezesno chegam s salas de cinema comercial e que se perdem nas redes da indstria. Ressaltoeste movimento de cineclubes, pois algumas das perguntas e orientaes tericas assim como

    26 Website da cinemateca distrital de Bogot www.cinemateca.com.co

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  • a metodologia desta dissertao nasceram durante a minha participao na CorporacinCultural El Barco, criada no ano de 2004, na Biblioteca Pblica Virgilo Barco de Bogotcomo cineclube, vigente at hoje. Se as linhas escritas sobre cinema, assim como a prpriaproduo esto em concordncia com os momentos sociais, polticos e culturais dassociedades, no podemos deixar de pensar na ao dos cineclubes para refletir sobre o cinemacolombiano e, como pretendo, nas seguintes pginas, discutir a relao destas imagens e asnarraes da violncia do conflito armado colombiano.

    A construo de um discurso flmico sobre a violncia um dos assuntos que Surez(2009) aborda para pensar se o cinema colombiano tem contribudo com alguma coisadiferente ao corpus de discusso sobre La Violencia27 (ibid., 59). A partir de uma comparaoentre os cenrios rurais e urbanos, a pesquisadora chega pergunta de porqu La Violencia eas outras violncias so o discurso mais amplo, mas no o mais poltico (Loc. cit). Para apesquisadora, o cinema no teria sido poltico porque os filmes no conseguem conformaruma narrativa nacional cinematogrfica e, salvo algumas excees, no conseguem oferecerum conjunto cinematogrfico que desafie o status quo (ibid., p. 87). As obras so avaliadascomo no sendo politizadas na posio ideolgica e simplesmente ilustrativas. com o filmeRodirigo D no futuro (Victor Gaviria, 1990) que se marca uma ruptura com a poca anterior ese comea uma poca de novas expresses flmicas, esta mais na linha da denncia socialpropriamente dita.

    Comea, pois, um interesse pelas margens: desplazados28, excluso e pobreza se tornamtemas recorrentes dos filmes dos anos 1970 e 1980. Embora em 1915 a criminalidade tenhasido objeto de um filme, El drama del 15 de octubre, realizado por Vicenzo Di Domenico, e apopulao marginal tema de outro filme de 1925, Bajo el cielo antioqueo de Arturo AcevedoVallarino, estes no so temas que preocupam os cinegrafistas deste momento. Teria quechegar o ano de 1968 para que Marta Rodrguez e Jorge Silva mostrassem sociedadecolombiana este mundo em vrios documentrios. O mais importante deles, Chircales (1968),conta a histria da vida de uma famlia que trabalha na produo de tijolos em uma fbricalocalizada na periferia de Bogot. Anos depois, so as crianas de rua nas grandes cidades as

    27 A expresso La Violencia utilizada para nomear o confronto entre os dois partidos polticos tradicionais:Liberal e Conservador durante os anos 1950 (c.f. Guzmn et al., 1968). Esta dcada marcou a histriacolombiana e permanece como referncia fundamental para pensar a violncia contempornea no pas.

    28 O tema dos desplazados ser desenvolvido com mais detalhe no primeiro captulo desta dissertao. Refere-se s pessoas que so obrigadas a abandonar seu lugar de residncia como resultado do conflito armado(Granada, 2008).

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  • personagens que interessam aos documentaristas e com isto surge uma das melhores crticas representao da pobreza, pois a vontade de mostrar e denunciar vista por Carlos Mayolo eLuis Ospina como uma vontade quase pornogrfica de mostrar o sofrimento do outro; estesdois diretores inventaram o termo de pornomiseria para qualificar este tipo de esttica.

    Finalmente, como j disse, Victor Gaviria quem afina discurso e linguagem flmica,produzindo um documentrio de fico que mostra a vida na periferia de Medelln a partir daprpria viso, desejos e histrias dos moradores desta regio: vidas atravessadas (eorganizadas) pelas dinmicas do narcotrfico, pelas formas por meio das quais este negcioditou o modo das relaes familiares e sociais, criou cultura, linguagem e estabeleceu umlugar especfico para os indivduos relacionados com a compra e venda de drogas seposicionarem diante do pas. Gaviria mostra um enfoque esttico de como olhar, escutar,narrar e representar a urbe (ibid., p. 99) que, segundo Surez, um cinema que aproximademais da realidade e nos impede de evadi-la, [um] excesso de realidade [que] no se d semgerar certo desconforto no espectador, muitas vezes traduzido em rejeio (ibid., p. 100,traduo minha). Tal desconforto pode ser experimentado como uma crtica representaoda violncia pensada a partir da experincia do diretor com os atores e suas histrias29.

    A crtica que Mayolo e Ospina fazem ao cinema de denncia funciona no sentido deinspirar um tipo de cinema que, ao invs de simplesmente mostrar a dor alheia e pretendercom isto uma certa sensibilizao do pblico para com as formas de vida marginais, inventalinguagens que dialoguem com as personagens, que permitam a sua participao naconstruo das imagens e que apresentem filmes que no se limitem a mostrar/exibir o outro,mas que elaborem olhares e desloquem discursos. La sombra del caminante um filme queparticipa desta discusso, pois se interessa precisamente pelas pessoas que, embora habitem ocentro da cidade, so marginais, no s porque so pobres ou porque vm de lugareslongnquos, mas porque sua condio de vida resultado dos processos de excluso e deviolncia. Por isto, Guerra se prope a quebrar o limite da narrativa que mostra e explica paraelaborar um filme que vai alm e pensa na experincia, no silncio, nos fragmentos de vida

    29 Uma das caractersticas mais importantes do cinema de Gaviria o trabalho com no-atores; pessoas com asquais ele convive e a partir da qual escreve o roteiro e elabora toda a proposta esttica do filme. Esteprocedimento tanto uma posio artstica quando poltica, pois coloca a questo de mostrar na tela o rostocotidiano das pessoas. Uma sorte de desvio dos rostos clssicos do cinema de Hollywood que povoa nossastelas. Tambm uma forma de colocar a questo da representao da realidade, pois estas pessoas ao serepresentarem a si mesmas, esto tambm construindo uma persona, uma personagem. Ver Pessuto (2011)para uma discusso detalhada sobre a questo do no ator, como prope a pesquisadora, no cinemairaniano.

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  • que estas pessoas conservam e organizam para recompor uma biografia que deve lidarpermanentemente com o passado e o sofrimento.

    O enfoque da narrativa ser, ento, o da possibilidade ou impossibilidadede um dilogo, da reconciliao e do reconhecimento. O formato em branco epreto, o percurso pela cidade, o tempo pausado da narrativa e a reflexoprofunda sobre a nao em crise [] La sombra mostra outra dimenso datragdia, reunindo frentes e histrias distintas [] continua sendo um filmesobre a violncia na Colmbia, mas esquiva os lugares comuns. A partir dosprimeiros minutos adverte-se que se trata de um filme com outro enfoqueesttico e com uma reflexo terica, at certo ponto ausente na vertigem daproduo comercial sobre o tema (Surez, 2009, p. 192, traduo minha).

    Surez examina as periodizaes estabelecidas para o cinema colombiano, dentre asquais duas em especial so de interesse: ambas partem dos perodos dos historiadores daviolncia para identificar os diferentes momentos da produo flmica. Assim, s categoriasde primeira violncia, segunda violncia e terceira violncia se sobrepem as deprimeiro cinema, segundo cinema e terceiro cinema (Pulecio, 1999 e Kantaris, 2008),de modo que imagens e acontecimentos estariam relacionados no tempo (imagens como umtipo de resposta aos acontecimentos) e no entendimento (chaves de anlise dos eventos sendoutilizados para criar e avaliar as imagens). Para Kantaris (2008), a periodizao til paraentender a multiplicidade de violncias e seus entrelaamentos, mas no para entender o queMartn-Barbero chamou do espessor cultural destas violncias, tanto da sua origem como dasua trama (apud. Kantaris, 2008, p. 111). De modo que o exame de filmes traria discussoalgumas das estratgias que so adotadas para representar os efeitos da violncia [] mastambm, e muitas vezes de forma radical, a imbricao da violncia com os sistemas derepresentao (Loc, cit.).

    A relao parece simples: existe nao na medida em que definida umaidentidade nacional. Porm, precisamente a maneira como se define essaidentidade o que deve ser posto em evidncia. No suficiente afirmar que aidentidade nacional uma construo como tambm deve ser apontada suautilidade, assim como os procedimentos atravs dos quais esta fico se faznecessria (Arias, 2008, p. 148, traduo minha).

    O cinema participa desta construo do nacional e da identidade coletiva se

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  • relacionando com os processos de monumentalizao, recuperao de memria e memrias,escritura da histria e as manifestaes que desafiam e transformam as definieshegemnicas sobre o que seriam esses conceitos. Na Colmbia, a relao entre apoio doestado e marginalidade, assim como a produo descontnua de filmes e a obrigao dosdiretores de procurarem meios alternativos para finalizar suas produes, fazem com que esteseja um lugar onde se perguntar pelos fragmentos, os rudos e as dissonncias dos processosde construo nacional e dos discursos sobre a violncia e suas consequncias. tambm olugar onde se deve procurar maneiras distintas de mostrar e expressar a violncia, comoCorts (2009) indica na sua anlise sobre arte, pois seria uma forma que transformatemporalidades, constri lugares e abre espaos para falar, inserir problemas, criarpersonagens, e deslocar o discurso oficial, normativo e acadmico sobre a violncia em todassuas dimenses.

    Poderemos estar assistindo, como se pergunta Juana Surez, a uma mudana noenquadramento das formas de representao da violncia? Filmes como La primera noche(Luis Alberto Restrepo, 2003), El colombian dream (Felipe Aljure, 2006), Perro come perro(Carlos Moreno, 2008), La sombra del caminante (Ciro Guerra, 2004) e PVC-1 (SpirosSthatoulopoulos, 2007) emocionam o pblico e o levam a dar uma reposta afirmativa. Aprpria existncia da Lei de Cinema de 2003 e a criao do Fondo Mixto de PromocinCinematogrfica Proimagenes Colombia, o aumento da produo nacional (no ano de 2011foram produzidos 18 filmes com apoio do fundo)30, a participao dos filmes colombianos emfestivais internacionais, o interesse que estes tm despertado em crticos estrangeiros31 e umacrescente ateno de crticos e estudantes colombianos, desenham um panorama otimista. Masainda no ser respondida a pergunta formulada por Surez, pelo menos no definitivamente;e por isto o melhor pensar nas formas que existem de mostrar a violncia, observar emdetalhe as propostas, pensar sobre as relaes entre cinema e sociedade e os processos

    30 Segundo estatsticas publicadas no site Proimgenes, a produo com apoio do Fundo tem aumentado: no anode 2000 foram lanados 4 filmes; em 2001, 7 filmes; em 2002, 4 filmes; em 2003, 5 filmes; em 2004, 4filmes; em 2005, 8 filmes; em 2006, 8 filmes; em 2007, 12 filmes; em 2008, 13 filmes; em 2009, 12 filmes;em 2010, 10 filmes e em 2011, 18 filmes. Disponvel em:http://www.proimagenescolombia.com/secc