nao miscigenada ou nao multitnica: …‡Ão em razão das discussões que envolvem as práticas...

29
NAÇÃO MISCIGENADA OU NAÇÃO MULTIÉTNICA: QUAL VOCE QUER PARA O BRASIL? Carlos Alberto de Miranda Freitas * Resumo: O presente artigo é uma reflexão do futuro país étnico que se passa a construir, com muita ênfase a partir da última década do século XX, precisamente a partir do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, tendo sua continuidade nos mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, até os dias de hoje. As ações afirmativas, o Estatuto da Igualdade Racial, a desconstrução da Democracia Racial, são propostas que têm levado a se construir um Brasil onde tratar desigualmente os desiguais será a meta, fundamentada na cor de cada cidadão. É necessária uma reflexão da sociedade sobre essa temática. A diversidade em nosso país é imensa em todos os aspectos. Não podemos discutir a questão racial apenas pela emoção, tendo como justificativa a busca do resgate histórico, a dívida material e moral de reparação da escravidão. A cada passo que se dá na insistência das políticas raciais, tornando-as enraizadas, a sociedade brasileira estará próxima de uma cisão racial sem precedência. Palavras-chave: Miscigenação. Ações afirmativas. Democracia racial. Cisão racial. Resumen: El presente artículo es una reflexión del futuro país étnico que se pasa a construir, con mucha énfasis a partir de la última década del siglo XX, precisamente a partir del gobierno del presidente Fernando Henrique Cardoso, teniendo su continuidad en los mandatos del presidente Luis Inácio Lula da Silva, hasta los días actuales. Las acciones afirmativas, el estatuto de la Igualdad Racial, la desconstrucción de la Democracia Racial, son propuestas que han llevado a construir un Brasil donde tratar desigualmente los desiguales será la meta, fundamentada en el color de cada ciudadano. Es necesaria una reflexión de la sociedad sobre esa temática. La diversidad en nuestro país es inmensa en todos los aspectos. No podemos discutir la cuestión racial solamente por la emoción, si hay como justificativa la búsqueda del rescate histórico, la deuda material y moral de reparación de la esclavitud. Cada paso que se dé en la insistencia de las políticas raciales y, cuando ellas se enraícen, la sociedad brasileña estará próxima de una escisión racial sin precedencia. Palabras Clave: mestizaje, acciones afirmativas, democracia racial, escisión racial. * Professor da Rede Pública do Estado do Paraná, Licenciado em História, Geografia e Bacharel em Direito, Especialista em Ciências Sociais. 1

Upload: phamminh

Post on 27-Sep-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: NAO MISCIGENADA OU NAO MULTITNICA: …‡ÃO Em razão das discussões que envolvem as práticas sociais das ações afirmativas e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, resultado da

NAÇÃO MISCIGENADA OU NAÇÃO MULTIÉTNICA: QUAL VOCE QUER PARA O BRASIL?

Carlos Alberto de Miranda Freitas* Resumo: O presente artigo é uma reflexão do futuro país étnico que se passa a construir, com muita ênfase a partir da última década do século XX, precisamente a partir do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, tendo sua continuidade nos mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, até os dias de hoje. As ações afirmativas, o Estatuto da Igualdade Racial, a desconstrução da Democracia Racial, são propostas que têm levado a se construir um Brasil onde tratar desigualmente os desiguais será a meta, fundamentada na cor de cada cidadão. É necessária uma reflexão da sociedade sobre essa temática. A diversidade em nosso país é imensa em todos os aspectos. Não podemos discutir a questão racial apenas pela emoção, tendo como justificativa a busca do resgate histórico, a dívida material e moral de reparação da escravidão. A cada passo que se dá na insistência das políticas raciais, tornando-as enraizadas, a sociedade brasileira estará próxima de uma cisão racial sem precedência. Palavras-chave: Miscigenação. Ações afirmativas. Democracia racial. Cisão racial.

Resumen: El presente artículo es una reflexión del futuro país étnico que se pasa a construir, con mucha énfasis a partir de la última década del siglo XX, precisamente a partir del gobierno del presidente Fernando Henrique Cardoso, teniendo su continuidad en los mandatos del presidente Luis Inácio Lula da Silva, hasta los días actuales. Las acciones afirmativas, el estatuto de la Igualdad Racial, la desconstrucción de la Democracia Racial, son propuestas que han llevado a construir un Brasil donde tratar desigualmente los desiguales será la meta, fundamentada en el color de cada ciudadano. Es necesaria una reflexión de la sociedad sobre esa temática. La diversidad en nuestro país es inmensa en todos los aspectos. No podemos discutir la cuestión racial solamente por la emoción, si hay como justificativa la búsqueda del rescate histórico, la deuda material y moral de reparación de la esclavitud. Cada paso que se dé en la insistencia de las políticas raciales y, cuando ellas se enraícen, la sociedad brasileña estará próxima de una escisión racial sin precedencia.

Palabras Clave: mestizaje, acciones afirmativas, democracia racial, escisión racial.

* Professor da Rede Pública do Estado do Paraná, Licenciado em História, Geografia e Bacharel em Direito, Especialista em Ciências Sociais.

1

Page 2: NAO MISCIGENADA OU NAO MULTITNICA: …‡ÃO Em razão das discussões que envolvem as práticas sociais das ações afirmativas e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, resultado da

INTRODUÇÃO Em razão das discussões que envolvem as práticas sociais das ações

afirmativas e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, resultado da voga atual do

multiculturalismo, o país está sendo transformado, pelo menos no nível da

interpretação histórica e sociológica, numa nação multiétnica, onde só teremos as

figuras do branco e do negro. De acordo com a metodologia utilizada pelo IBGE, a

classificação cor/raça nos censos demográficos e na pesquisa nacional por amostra

de domicílios, a PNAD, a população brasileira é classificada da seguinte maneira:

Branca, Preta, Parda, Amarela e Indígena. A “nova” sociologia e a “nova”

interpretação histórica quer dividir o país em duas raças, não aceitando mais essa

metodologia. Assim, vamos caminhando na direção da nação bicolor: brancos e

negros (KAMEL, 2006).

É necessário levar essa discussão para dentro da escola básica, porque

acreditamos que temos que resgatar a historiografia isenta deste engajamento

multiculturalista e multiétnico, visto que esse engajamento, patrocinado pelas

Nações Unidas, visa resolver problemas raciais dos países europeus e dos Estados

Unidos, países estes cultural e socialmente bastante diferentes do Brasil. O Brasil,

como sabemos, é um país miscigenado, onde as relações raciais são analisadas na

obra de Gilberto Freire (“Casa Grande e Senzala”, 1933), denominando-as de

Democracia Racial, hoje tão combatida por algumas ongs do movimento negro e

parte da academia. O Brasil nunca teve um racismo institucionalizado, como em

alguns estados norte-americanos, onde o negro não podia circular num ônibus

reservado para brancos, por exemplo.

As teses sobre uma nova Abolição, em que o branco tem uma dívida

material e moral da escravidão, não deve ter sustentação, pois, desde a antiguidade

e, principalmente, depois da conquista árabe no norte da África, a partir do século

VII, os africanos vendiam escravos em grandes caravanas, que cruzavam o deserto

do Saara. Na época em que o colonialismo português trouxe a maioria dos escravos

para o Brasil, vindos da região do Congo e de Angola, naquela região havia reis

venerados como se fossem divinos. Muitos deles se aliaram aos portugueses e

enriqueceram com a venda dos súditos destinados à escravidão.

2

Page 3: NAO MISCIGENADA OU NAO MULTITNICA: …‡ÃO Em razão das discussões que envolvem as práticas sociais das ações afirmativas e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, resultado da

Ao longo do século XX , os estudiosos marxistas construíram dois mitos: o

de Zumbi, como exemplo de um verdadeiro líder popular dos negros, e o do

Quilombro de Palmares, como exemplo de uma verdadeira sociedade igualitária, na

qual a terra seria livre e o poder de decisão política compartilhado entre os

habitantes dos povoados. Esta dupla visão mítica começa, porém, a ser questionada

atualmente por outra geração de estudiosos, para quem Zumbi nada mais seria do

que um rei guerreiro que, como muitos líderes africanos do século XVII, tinha seu

séquito de escravos para uso próprio. Para Ronaldo Vainfas, por exemplo, é uma

mistificação dizer que havia igualdade em Palmares.

A lei 10639/03, que alterou a lei de Diretrizes e Bases da Educação

Nacional, tornando obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-brasileira em todos

os estabelecimentos de ensino da educação básica, tanto pública, como particular,

do ensino básico, não pode ser instrumento de desagregação entre brancos e

negros. Portanto, este material tem o objetivo de proporcionar e discutir o outro lado

da segunda abolição, tão proclamada por aqueles que defendem as políticas

afirmativas como institutos que resolverão todos os problemas sociais do Brasil. O

brasileiro branco, preto, pardo, amarelo e indígena, tem o direito de escolher que

tipo de nação deve prevalecer. Portanto, levar o debate até eles, é praticar a

democracia em sua plenitude nesta nação Republicana.

Preconceito e discriminação não equivalem necessariamente a ódio racial. O projetado Estatuto da Igualdade Racial não parece ter dado a desejável atenção histórica e comparativa a países “racialmente” divididos, como os Estados Unidos e a África do Sul (LAMOUNIER apud FRY et al., 2007, p. 10).

DESCONSTRUÇÃO DA NAÇÃO MISCIGENADA

Conforme destaca Ali Kamel, a desconstrução da nação miscigenada foi

um movimento que surgiu a partir da década de 1950, na academia: ninguém se deu

conta e, mais do que de repente, transformou-se em política oficial de governo no

final do século XX.

3

Page 4: NAO MISCIGENADA OU NAO MULTITNICA: …‡ÃO Em razão das discussões que envolvem as práticas sociais das ações afirmativas e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, resultado da

Muitos estudiosos buscaram alertar a sociedade para os riscos e perigos

políticos desta política multiculturalista que estava sendo disseminada entre nós. Eis

alguns nomes de estudiosos contrários a esta política: José Murilo de Carvalho e

Mônica Grin (historiadores), Yvonne Maggie e Peter Fry (antropólogos), Marcos Chor

Maio, Ricardo Ventura e Deméttrio Magnoli (sociólogos), Luiz Nassif e Ali Kamel

(jornalistas).

Bem, tudo começou com a desconstrução dos efeitos simbólicos da

miscigenação, que passaram a ser negados, dizendo que a miscigenação promovia

a acomodação de conflitos e era um interessante laboratório da Democracia Racial.

Neste sentido, a busca para fins políticos, fins estatísticos e sociológicos, a figura do

mulato, moreno ou pardo é um obstáculo epistemológico, pois impede de ver o

mundo tal como ele deveria ser: Negro e Branco (GRIN, 2007). Assim, começa a

impor, no subconsciente da sociedade, um novo conceito de negro. Para as

estatísticas, quem não é branco passa a ser negro, não interessa se é pardo,

mameluco, cafuzo, mulato, caboclo, escurinho, moreno, marrom bombom, cor de

jambo. Agora ou se é branco ou se é negro. O país orgulhoso de sua miscigenação,

das cores variadas de norte a sul, leste a oeste, fica reduzido, com esta política

multiculturalista e racial, a brancos e negros, sendo os negros oprimidos pelos

brancos, situação que explica o “porquê” da miséria material e educacional da

população negra. “Aquele país não é o meu”, afirma Kamel.

Desde o século XIX, quando escravocratas e abolicionistas se

enfrentavam na questão da escravidão negra, até o século XX, se discutiu o termo

“raça”. Para muitos, o desenvolvimento e progresso do país só poderia acontecer

com o branqueamento da população. Contrapondo-se a essa argumentação, quem

mais se destacou foi exatamente Gilberto Freyre, hoje combatido pelos ativistas

negros, por ter cunhado o conceito “Democracia Racial”. A obra prima de Freire,

Casa Grande & Senzala, relata em grande parte as atrocidades cometidas contra os

escravos. Freyre fez alguns discursos usando o conceito Democracia Racial, sempre

como sinônimo de um modelo em que a miscigenação prevalece.

O que os ativistas em favor das questões afirmativas descrevem é que

Freire só realça o congraçamento entre negros e brancos buscando transformar o

Brasil mais do que numa Democracia Racial, num paraíso. Porém, o que ele

descreve é a elasticidade cultural-racial do branco português e do negro e, na

ausência desses, jamais haveria mistura, afirma Kamel.

4

Page 5: NAO MISCIGENADA OU NAO MULTITNICA: …‡ÃO Em razão das discussões que envolvem as práticas sociais das ações afirmativas e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, resultado da

O papel de Freire, porém, foi outro, muito mais marcante. No debate com o pensamento majoritário de então, o que Freyre fez foi resgatar a importância do negro para a construção de nossa identidade nacional, para a construção da nossa cultura, do nosso jeito de pensar, de agir e de falar. Ele enalteceu a figura do negro, dando a ela sua real dimensão, sua real importância. A nossa miscigenação, concluímos depois de ler Freyre, não é a nossa chaga, mas a nossa principal virtude (KAMEL, 2006, p. 19).

Kamel continua a falar das virtudes da miscigenação, enfatizando a

antropóloga Yvonne Maggie, dizendo que:

A visão de Freyre coincidiu com o ideal de nação expresso pelo movimento modernista, que via, na nossa mestiçagem, a nossa virtude. Num certo sentido, digo eu, a antropofagia cultural só poderia ser mesmo uma prática de uma nação que é em si uma mistura de gentes diversas. Esse ideal de nação saiu-se vitorioso e se consolidou em nosso imaginário (KAMEL, 2006, p. 19).

O povo brasileiro admira-se de ser miscigenado e orgulha-se de não se

reconhecer racista. A “Democracia Racial”, longe de ser uma realidade, era o alvo a

ser buscado permanentemente, afirma Peter Fry.

Não afirmo que aqui não exista racismo. Existia e existe, pois em todo

grupo existe sentimentos bons e maus. Após a abolição, institucionalmente nunca se

criou barreiras a negro ou outra etnia, mas se criaram leis para punir racistas. A Lei

Afonso Arinos é a mais famosa delas (KAMEL, 2006).

A partir de 1950, esse raciocínio descrito anteriormente foi abandonado e

começou a dividir o Brasil entre brancos e não brancos, até se chegar à divisão de

brancos e negros.

Os trabalhos de acadêmicos como Florestan Fernandes, Fernando

Henrique Cardoso, Oracy Nogueira e depois Carlos Hasembalg, foram sempre

engajados, a favor dos negros explorados, contra brancos racistas (Ali Kamel),

usando o argumento de que o racismo explícito é melhor que um racismo

envergonhado.

Impõem-se aqui uma pergunta: até que ponto a historiografia sobre

escravidão e relações raciais é capaz de se manter objetiva, frente às pressões da

política racial, notadamente políticas de cotas e ações afirmativas? Esta pergunta se

5

Page 6: NAO MISCIGENADA OU NAO MULTITNICA: …‡ÃO Em razão das discussões que envolvem as práticas sociais das ações afirmativas e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, resultado da

faz necessária quando observamos a visão que o antropólogo José Jorge de

Carvalho, da UNB, tem dos trabalhos acadêmicos e historiográficos sobre a

escravidão do Brasil, ou melhor, daqueles trabalhos que não comungam as ações

afirmativas (GRIN, 2007).

Essa escolha de falar das positividades da vida dos escravos no auge do regime escravista brasileiro possui o efeito de minar, direta ou indiretamente, a agenda do movimento negro contemporâneo, que luta pelas reparações aos afrodescendentes, consoante a pauta da III Conferência de Durban em 2001 (Carvalho, 2006 apud GRIN, 2007, p. 231).

A metodologia encontrada para afirmar que somos racistas, foi a

importação de uma terminologia norte-americana revestida de uma nova roupagem:

o racismo de origem e o racismo de marca. De acordo com Oracy Nogueira, o

racismo de origem é demarcado pela ascendência, enquanto o de marca é

determinado pela aparência. No caso do Brasil, as pessoas se classificam a partir da

aparência física, e não da origem ou ascendência racial. Assim, o que se reproduz

no país é um “preconceito de marca”, calcado no aspecto físico de cada um

(ALMEIDA, 2007). Assim, de acordo com tal método, tanto nos Estados Unidos,

quanto no Brasil, somos racistas. Para Kamel, Oracy Nogueira iguala-nos, como

racistas, aos racistas norte-americanos, em vez de nos diferenciar. Com essa

fundamentação, o movimento negro buscou aplicar no Brasil o mesmo remédio

aplicado nos Estados Unidos: o das cotas raciais. Importa-se a solução norte-

americana para o problema brasileiro. Porém, no Brasil, o problema racial é muito

diferente do dos Estados Unidos.

O racismo brasileiro é envergonhado, em razão da sociedade condenar

tal política; dessa forma, há menos racismo, diferentemente dos Estados Unidos,

afirma Kamel. A sociologia divide o Brasil em brancos e negros, chancela a

construção racista estadunidense, que usa uma metodologia racista para analisar o

racismo.

Foi no governo de Fernando Henrique Cardoso que se avançou bastante

na institucionalização da nação bicolor, de negros e brancos, fortalecendo a ideia de

que o Brasil é um país onde os brancos oprimem os negros (KAMEL, 2006). Vejam

as palavras de Fernando Henrique Cardoso, cujo objetivo é mostrar que as

6

Page 7: NAO MISCIGENADA OU NAO MULTITNICA: …‡ÃO Em razão das discussões que envolvem as práticas sociais das ações afirmativas e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, resultado da

desigualdades sociais no Brasil, não são causadas basicamente pela pobreza, mas

sim nas diferenças raciais.

Passei anos de minha vida, como sociólogo, no início de minha carreira, estudando os negros e a discriminação racial no Brasil nas camadas, naturalmente, mais pobres do país, que são as populações negras. De São Paulo até o Rio Grande do Sul, naquela época, nos anos 1950, acredito que não houve favela que eu não tivesse palmilhado e não houve possibilidade de que eu não tivesse aproveitado para não apenas estudar, mas, com Florestan Fernandes, com Otácvio Ianni, Com Renato Jardim e com tantos outros, para demonstrar a realidade brasileira que, na época, anos 50, não era percebida ainda pelas nossas elites, como se fosse aflitiva. Pelo contrário, se vivia embalado na ilusão de que isso aqui já era uma democracia racial perfeita, quando não era, quando até hoje não é (apud KAMEL, 2006, p. 25).

Em 2000, Fernando Henrique Cardoso discursa no lançamento da

reedição de Negros em Florianópolis: Relações Sociais e Econômicas, dando ênfase

à miscigenação.

Quando começam a discutir muito, mostro a minha cor. Vários aqui podem fazer a mesma coisa. Isso aqui é branco? É duvidoso que seja. Agora, que tem a moda de ver pelo DNA, vê-se que a imensa maioria dos brasileiros tem sangue indígena. Nós somos muito mestiços (apud KAMEL, 2006, p.25-26).

Na campanha presidencial de 1994, Fernando Henrique Cardoso afirmou

que tinha o pé na cozinha, referindo-se à sua origem negra; agora ele afirma que

também tem sangue indígena. Concluímos, assim, pela sua fala, que não importa

que tipo de mistura sanguínea corra por nossas veias, o importante é o

reconhecimento de que pertencemos a uma nação miscigenada:

Costumo dizer: o importante aqui não é só, às vezes, dizer que temos muitas raças. Temos preconceito sim. Mas há um certo gosto pelo mestiço também. Em outros países, outras situações, há até países que avançaram democraticamente muito, mas avançaram cada um do seu lado. Aqui, houve mistura. Não estou dizendo que seja bom ou mau. Acho bom. Mas o fato é que isso altera também o tipo de preconceito, o modo como se faz o

7

Page 8: NAO MISCIGENADA OU NAO MULTITNICA: …‡ÃO Em razão das discussões que envolvem as práticas sociais das ações afirmativas e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, resultado da

preconceito. Às vezes, até acentua, porque as pessoas querem fingir que não tem mistura. Mas têm, alguns, nem todos (apud KAMEL, 2006, p.26).

Ler Cor e mobilidade social em Florianópolis (1960) e Capitalismo e

escravidão no Brasil meridional (1962) é fundamental para entender por que foi no

governo de Fernando Henrique Cardoso que o projeto daqueles que nos querem

transformar numa nação bicolor alçou um vôo tão alto, afirma Kamel.

Fernando Henrique Cardoso analisa a cidade de Florianópolis na década

de 1950, através de condicionantes do passado. Faz uma análise marxista,

mostrando o desenvolvimento econômico e suas características, mais ou menos as

mesmas da época da escravidão, como pouco ou quase nada tivesse mudado nas

relações entre brancos e negros. Eis um dos textos:

Parece-nos que o ritmo de mudança da sociedade global, em Florianópolis, não ofereceu muitas oportunidades de ascensão social aos elementos egressos da escravidão ou das camadas sociais dependentes. As mudanças recentes apenas afetaram as condições nas quais eles prestam, regularmente, os seus serviços. Tornando-se trabalhadores livres e assalariados, nem por isso conseguiram, até recentemente, em escala apreciável, novas oportunidades de especialização e classificação social (apud KAMEL, 2006, p. 27-28).

Para Fernando Henrique Cardoso, só a sociedade de classes

desenvolvida economicamente poderia melhorar as condições sociais do negro e do

mestiço. A superioridade econômica determinava a superioridade da raça. Portanto,

o preconceito era produto de superioridade econômica do branco. Na ausência

dessa superioridade, o preconceito poderia advir de atributos subjetivos e

persistentes da ideologia da ordem escravocrata. Portanto, dentro dessa ótica, o

homem branco em si é racista.

Posteriormente, a análise de Fernando Henrique Cardoso em Capitalismo

e escravidão no Brasil meridional, continua sua análise no mesmo caminho: analisa

o racista branco, e não o racismo dos racistas em geral.

Com a desagregação da ordem servil, que naturalmente antecede, como processo, a abolição, foi-se constituindo, pouco a pouco, o “problema negro”

8

Page 9: NAO MISCIGENADA OU NAO MULTITNICA: …‡ÃO Em razão das discussões que envolvem as práticas sociais das ações afirmativas e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, resultado da

e, com ele, intensificando-se o preconceito com novo conteúdo. Nesse processo, o preconceito de cor ou raça transparece nitidamente na qualidade de representação social que toma arbitrariamente a cor ou outros atributos raciais distinguíveis, reais ou imaginários, como fonte para a seleção de qualidades estereotipáveis. De um momento para o outro, o negro – que fora sustentáculo exclusivo do trabalho na escravidão – passa a ser representado como ocioso, por ser negro, e assim por diante (apud KAMEL, 2006, p.29).

E prossegue:

Cabe, entretanto, ponderar que as representações estereotipadas eram feitas com “base na realidade”. Seria falso supor que os brancos imputassem todos os atributos negativos aos negros como uma simples projeção ou como simples recurso de autodefesa imaginário. Não se pode dizer que o negro desordeiro, ocioso, bêbado etc. era uma imagem criada pelo branco. Ao contrário, e muito pior, o branco não criou apenas essa representação do negro: fê-lo, de fato, agir dessa forma. E o fez tanto porque criou as condições de vida e de opção para os negros indicadas acima, quanto porque passou, ao mesmo tempo, a representá-los com essa imagem (apud KAMEL, 2006, p.30).

Agora, os brancos, além de racistas, também são responsáveis por

transformarem os negros em bêbados, desordeiros e ociosos. Uma generalização

absurda. Assim, cria-se a onda de que o negro não trabalha, por culpa do branco,

que, por esse motivo, o demoniza, e Fernando Henrique Cardoso demoniza o

branco por essa atitude.

Fernando Henrique Cardoso foi um bom presidente, transformou a face

deste país em muitos aspectos positivos: reduziu a inflação, buscou mostrar aos

gestores públicos que sem responsabilidade fiscal não existe país, reformou as

instituições, promoveu o Estado-regulador, iniciou a modernização da administração

pública, criou uma rede de proteção social. Porém, mudou também a forma de ver o

país de uma maneira que pode ter efeitos políticos extremamente negativos em

futuro próximo, conforme alerta Ali Kamel. “Se a desigualdade entre negros e

brancos reside em grande medida no racismo, não adianta apenas o esforço de

investir na educação dos pobres, negros e brancos, com a intenção de tornar o país

mais justo” (KAMEL, 2006, p. 34).

Ao mesmo tempo em que investiu na educação, colocando praticamente

100% das crianças de 7 a 14 anos na escola, Fernando Henrique Cardoso deu

9

Page 10: NAO MISCIGENADA OU NAO MULTITNICA: …‡ÃO Em razão das discussões que envolvem as práticas sociais das ações afirmativas e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, resultado da

curso à institucionalização da nação bicolor, ao criar o Grupo de Trabalho

Interministerial para a Valorização da População Negra, ao lançar o Programa

Nacional de Direitos Humanos (PNDH) e ao propor outras medidas para combater o

racismo, como as seguintes:

– inclusão do quesito cor em todos os sistemas de informações e registro

sobre a população e bancos de dados públicos;

– incentivo e apoio à criação e instalação, em níveis estadual e

municipal, de Conselhos da Comunidade Negra;

– definição de políticas públicas de valorização da população negra;

– apoio às ações da iniciativa privada que visem à discriminação positiva;

– desenvolvimento de ações afirmativas para o acesso dos negros aos

cursos profissionalizantes, à universidade e às áreas de tecnologia de

ponta;

– adoção, pelo IBGE, do critério de se considerar os mulatos, os pardos

e os pretos como integrantes do contingente da população negra,

determinação que jamais entrou em vigor;

– adesão do Brasil, em 2001, ao documento final da II Conferência

Mundial das Nações Unidas de Combate ao Racismo, Discriminação

Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata. Ao tornar-se signatário

desse documento, o governo de Fernando Henrique Cardoso

comprometeu-se a pôr em prática as políticas de preferência racial.

Em maio de 2002, seu governo lançou o segundo Programa Nacional de

Direitos Humanos (PNHD) e instituiu o Programa Nacional de Ações Afirmativas. A

mudança de mentalidade no país havia sido operada. Eis o discurso pronunciado

por Fernando H. Cardoso no lançamento do segundo PNDH.

Quero concluir reafirmando que, tão importante quanto medidas concretas que têm sido adotadas pelo governo federal, bem como pelos estados e municípios, é a mudança que está ocorrendo no plano das mentalidades. Alteram-se, a olhos vistos, os padrões de legitimidade. Práticas que eram toleradas, há alguns anos, não o são mais, seja no tocante à comunidade negra, seja na questão de gênero ou, ainda, no tratamento das minorias e de outros grupos vulneráveis (apud KAMEL, 2006, p. 37).

10

Page 11: NAO MISCIGENADA OU NAO MULTITNICA: …‡ÃO Em razão das discussões que envolvem as práticas sociais das ações afirmativas e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, resultado da

Esse discurso de Fernando Henrique Cardoso demonstra sua satisfação

por contribuir decisivamente para que as mazelas que afligem os negros não sejam

mais atribuídas à pobreza, mas que passem a ser tratadas como produto do

preconceito e racismo da sociedade brasileira.

Alguns grupos passam a discutir a questão, estimulando discussões pelo

país afora. Na esteira disso tudo, surgem as propostas de adoção de cotas nas

universidades.

Ali Kamel revela que, ao terminar o livro Não Somos Racistas, conversou

com Fernando Henrique Cardoso e disse-lhe que a ação dele no governo, no

tocante à questão racial, guardava coerência com o que ele escrevera quando

jovem. A resposta de Fernando Henrique Cardoso foi: Eu acho que tenho sido

razoavelmente coerente com o que penso. Claro, evoluí com o tempo, mas guardei

meus valores (KAMEL, 2006, p. 37).

Segundo Kamel, ao longo da conversa Fernando Henrique Cardoso pôs

mais ênfase no gosto brasileiro pela mistura, em contraposição às situações vividas

por outros países:

Aqui é e (espero) será sempre outra coisa. Se é assim, por que programas especiais? No fundo, porque eu acho que a vigência do mito da democracia racial não é o coroamento da convivência mais amena e gostosa que de fato há entre nossos “brancos” e os outros, mas é uma ponta de negação ideológica da mistura que constitui o cerne da nossa “etnia” (apud KAMEL, 2006, p.38).

Mas, por outro lado, Fernando Henrique Cardoso, diz ser contra a política

de cotas nas Universidades:

Daí a enrijecer o espírito com cotas vai uma distância grande e nela mora o perigo. Eu prefiro, por exemplo, a solução dada no Itamaraty [bolsas para estudantes negros se aperfeiçoarem para o concurso de entrada] do que a rigidez de somar não sei quantos pontos às notas de quem for “negro” ou “índio” (apud KAMEL, 2006, p. 38).

Conclui com a coerência da maturidade:

11

Page 12: NAO MISCIGENADA OU NAO MULTITNICA: …‡ÃO Em razão das discussões que envolvem as práticas sociais das ações afirmativas e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, resultado da

A dificuldade para lidar com essas questões no Brasil é que não dá para “americanizar” e, eventualmente, criar racismo, nem para descuidar e deixar, em nome de nosso igualitarismo racial teórico, que os negros e que tais continuem à margem das oportunidades (apud KAMEL, 2006, p. 38).

Embora a política de cotas nas universidades brasileiras não possa ser

atribuída diretamente a Fernando Henrique Cardoso, suas políticas públicas

afirmativas contribuíram decisivamente para que elas se tornassem realidade no

País. Inequivocamente, Fernando Henrique Cardoso programou políticas que tinham

como pressupostos a existência, na sociedade, de condições influenciadas pelo

racismo, impedindo o progresso social do negro. A adoção de cotas só se tornou possível, porque o governo agiu de forma decisiva para que o ideal de nação miscigenada e tolerante fosse substituído pela nação bicolor em que brancos oprimem negros (grifo nosso).

Se Fernando Henrique Cardoso institucionalizou essa mudança, o

presidente Lula deu sequência. Criou a Secretaria de Igualdade Racial, patrocinou o

projeto que torna obrigatória a política de cotas nas universidades federais, apoiou o

Estatuto da Igualdade Racial e lançou as Diretrizes Curriculares Nacionais para a

Educação das relações étnico-raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-

brasileira e Africana.

Afirma Kamel:

Num país em que na pós-abolição jamais existiram barreiras institucionais contra a ascensão social do negro, num país em que os acessos a empregos públicos e a vagas em instituições de ensino público são assegurados apenas pelo mérito, num país em que 19 milhões de brancos são pobres e enfrentam as mesmas agruras dos negros pobres, instituir política de preferência racial, em vez de garantir educação de qualidade para todos os pobres e dar a eles oportunidade para que superem a pobreza de acordo com os seus méritos, é se arriscar a pôr o Brasil na rota de um pesadelo: a eclosão entre nós do ódio racial, coisa que, até aqui, não conhecíamos. Quando pobres e brancos que sempre viveram ao lado de negros pobres, experimentando os mesmos dissabores, virem-se preteridos apenas porque não têm a pele escura, estará dada a cisão racial da pobreza, com consequências que a experiência internacional dá conta de serem terríveis (KAMEL, 2006, p. 39-40).

Exclama Kamel: A nação que sempre se orgulhou de sua miscigenação

não merece isto.

12

Page 13: NAO MISCIGENADA OU NAO MULTITNICA: …‡ÃO Em razão das discussões que envolvem as práticas sociais das ações afirmativas e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, resultado da

Ainda somos uma nação em que a miscigenação é uma virtude, em que

convivem harmoniosamente todas as cores e em que o racismo, quando se

manifesta, envergonha quem o pratica.

O único e seguro caminho pelo quais negros e brancos pobres podem

superar as condições adversas, é o da educação. A política de cotas ou

assistencialistas são medidas paliativas e arriscadas, interessa apenas àqueles que

não acreditam que tal divisão poderá transformar-se em eclosão do ódio racial, já

dito anteriormente.

CONCEITO DE RAÇA A crença na existência de raças é o fundamento e a base para o

desenvolvimento do racismo. Raças não existem.

O genoma humano é composto de 25 mil genes. As diferenças mais aparentes (cor da pele, textura dos cabelos, formato do nariz) são determinadas por um conjunto de genes humanos. Para ser exato, as diferenças entre um branco nórdico e um negro africano compreendem apenas uma fração de 0,005 do genoma humano. Por essa razão, a imensa maioria dos geneticistas é peremptória: no que diz respeito aos homens, a genética não autoriza falar em raças. Segundo o geneticista Craig Venter, o primeiro a descrever a sequência do genoma humano, “raça é um conceito social, não um conceito científico (KAMEL, 2006, p. 45).

O conceito de raça é um produto da imaginação cultural, precisa

desaparecer da sociedade. Não há nenhuma razão em mantê-lo, principalmente por

ter sido usado no passado como motivação para exploração do homem pelo

homem, principalmente no tráfico de escravos, ou para a prática do genocídio, no

caso do Holocausto dos judeus, posto em prática pelos nazistas. Existem várias

linhas de evidências que demonstram que não existem raças humanas. A primeira é

que a espécie humana é jovem, só tem 200 mil anos e tem padrões migratórios

amplos demais para permitir que houvesse a separação em raças diferentes. Talvez

o indício genético mais forte contra a existência de raças seja a demonstração de

que mais de 90% da diversidade humana está dentro das populações, e não entre

elas. Por exemplo, se houvesse um cataclismo nuclear e toda humanidade

13

Page 14: NAO MISCIGENADA OU NAO MULTITNICA: …‡ÃO Em razão das discussões que envolvem as práticas sociais das ações afirmativas e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, resultado da

desaparecesse e ficasse apenas a América do Sul, nós teríamos aqui 93% da

variabilidade genômica de todo o mundo. Se desse cataclismo ficasse apenas uma

cidade, como Belo Horizonte, nós teríamos pelo menos 90% da variabilidade

genômica humana. Um brasileiro de pele branca é tão diferente de qualquer

brasileiro como de um indivíduo nascido em Nairóbi, na África, ou de outro que vive

em Beijing, na China. O feriado do Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro, é

uma data em que se deve refletir sobre o quanto de mal a noção de raça já criou

anteriormente, ao ser usado como justificativa para atos desumanos. Cada um de

nós tem um genoma único. Por que não valorizar essa individualidade que vem da

nossa história de vida, ao invés de dividir em um punhado de raças (Folha Online

20/11/2008)?

PARA ONDE FOI A POPULAÇÃO PARDA?

Quando se fala da pobreza no Brasil, geralmente se pronuncia a seguinte

frase: “A pobreza no Brasil tem cor, e ela é negra”.

Será que os números que são divulgados acerca dessa relação entre

pobreza e negros no Brasil são confiáveis? Vejamos os dados do IBGE:

Tabela 1 – População residente, por cor ou raça, segundo a situação do domicílio,

Brasil – 2007. – População residente (1000 pessoas). População total 189820 100,00 %

Branca 93762 49,40%

Preta 14138 7,45%

Parda 80302 42,30%

Amarela 1027 0,55%

Indígena 552 0,29%

Sem Declaração 39 0,01% FONTE: IBGE - PNAD/2007.

14

Page 15: NAO MISCIGENADA OU NAO MULTITNICA: …‡ÃO Em razão das discussões que envolvem as práticas sociais das ações afirmativas e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, resultado da

Tabela 2 – População residente, por cor ou raça, segundo a situação do domicílio – Brasil, 2007. – População residente (1000 pessoas).

Número de

brasileiros

Brasileiros pobres Brasileiros pobres

em percentagem

Total 189820 59233 31,2%

Branca 93762 20254 34,2%

Preta 14138 4204 7,1%

Parda 80302 34764 58,7%

(Preta + Parda) 94440 38968 65,8% Obs.: Usamos o percentual da PNAD/2004, para a população da PNAD/2007.

Os números não confirmam, portanto, essa tese de que a pobreza no

Brasil incide mais sobre os negros propriamente ditos. Eles mostram, sim, que se a

pobreza tem cor no Brasil, essa cor é parda. Os defensores da tese de que a

pobreza é o resultado da opressão dos brancos sobre os negros é falsa, pois, para

que a realidade lhes seja favorável, somam-se negros e pardos e o resultado da

pobreza chega a 65,8%. Conclui-se que, além da pobreza ser parda, o país é uma

grande nação miscigenada.

Reafirmando, a população negra, ou afrodescendente, corresponde ao

conjunto das pessoas que se declaram preto ou pardo nas pesquisas do IBGE.

Dessa forma é que o Brasil apresenta a maior população negra depois da Nigéria.

Trata-se de uma metodologia nascida na sociologia da década de 1950 e hoje

vitoriosa: negros são todos aqueles que não são brancos.

É preciso ter em mente que, toda vez que são apresentadas estatísticas

que envolvam cor dos indivíduos, os números absolutos dos negros englobam os

números relacionados aos pardos. Mas quem é pardo? Branco meio negro, ou negro

meio branco? Chamar um pardo de afrodescendente não é apropriado. Como fica o

filho de mãe italiana casada com um negro? Afrodescendente? Ítalo-afrodescendente? Afro-italodescendente? euro-afrodescendente? Teria direito a cotas ou a outras políticas de preferência racial, ou o prefixo euro os condenaria

irremediavelmente? Enfim, todas as definições são racistas, a começar pela própria

15

Page 16: NAO MISCIGENADA OU NAO MULTITNICA: …‡ÃO Em razão das discussões que envolvem as práticas sociais das ações afirmativas e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, resultado da

definição de afrodescendente. Na verdade, somos todos brasileiros: negros, pardos,

brancos e indígenas.

A política de cotas e ações afirmativas se baseia na estatística de que

65,8% dos negros são pobres. Na verdade, são apenas 7,1%, mas, na hora de

usufruir os benefícios, os pardos são excluídos. Em uma república, isto é grave.

Para justificar a política de cotas, os pardos são incluídos para engrossar os

números. Na hora de usufruir, são barrados. Porque os pardos, tão pobres quanto

os negros, têm de ficar fora desta política? Porque os brancos, pobres como os

negros, também têm que ficar de fora? Os defensores de cotas raciais afirmam que

brancos pobres são apenas 34,2%. Em números absolutos, isto representa 20

milhões de brasileiros brancos pobres, contra 4 milhões de negros pobres.

A existência de tantos brancos pobres já desmente a tese de que brancos

discriminam negros. Os pardos que se declaram assim são 80 milhões e a pobreza

atinge a 34 milhões deles. Quem é mais pobre? O pardo resulta de uma

miscigenação de branco com negro, o que prova que somos uma nação

majoritariamente livre do ódio racial e amplamente miscigenada.

O ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL Na visão de Kamel, o projeto do Estatuto da Igualdade Racial transforma

o Brasil em outro país, pois a nação será regida sob a noção de raça, base do todo

racismo.

O quesito raça/cor e gênero serão obrigatoriamente introduzidos para

orientar os critérios de atendimento no SUS (Sistema Único de Saúde). Os

documentos de seguridade social e certidões de nascimento terão a obrigatoriedade

de constar raça/cor. Os funcionários públicos e privados deverão incluir o quesito

raça/cor em toda sua documentação de registro, tais como formulários de admissão

e demissão.

Assim, o Brasil busca definir sua população através da raça, conceito que

a ciência repudia. É o fim do país miscigenado, do país multicolorido, seremos o

país bicolor, negros de um lado e brancos do outro. O que poderá acontecer é um

antagonismo entre os dois lados.

16

Page 17: NAO MISCIGENADA OU NAO MULTITNICA: …‡ÃO Em razão das discussões que envolvem as práticas sociais das ações afirmativas e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, resultado da

O Estatuto pressupõe doenças raciais, pois o artigo 14 enfatiza que: “o

poder executivo incentivará a pesquisa sobre doenças prevalentes na população

afro-brasileira, bem como desenvolverá programas de educação e saúde e

campanhas públicas que promovam a sua prevenção e adequado tratamento”.

O Estatuto da Igualdade Racial acredita que haja “doenças de negro”,

mas não faz menção a “doenças de branco.” Veja o absurdo no ponto de vista da

ciência. Sabemos que existem doenças de origem genética, mas não relacionadas à

cor do indivíduo.

No Estatuto, permite-se que os tradicionais mestres em capoeira deem

aulas nas escolas públicas e privadas. Ele introduz a obrigatoriedade da História

Geral da África no currículo das escolas. Ele permite que os praticantes das religiões

“africanas e afroindígenas” ausentem-se do trabalho para atender às obrigações

litúrgicas, “podendo” tais ausências serem compensadas posteriormente.

Perguntamos: os brancos terão direito a dar aulas de capoeira? Terão direito de

cumprir suas obrigações litúrgicas de umbanda e candomblé durante o expediente

de trabalho? Perguntamos isto, porque sabemos que, no Brasil, os brancos também

são frequentadores de terreiros.

O Artigo 62 trata do mercado de trabalho: “os governos federal, estaduais

e municipais ficam autorizados [...] a realizar contratação preferencial de afro-

brasileiros no setor público e a estimular adoção de medidas similares pelas

empresas privadas”.

Propõe-se, inicialmente, a adoção de cotas de 20% para preenchimento

dos cargos de DAS (vagas que não exigem concurso público), percentagem esta

que será ampliada gradativamente. Empresas fornecedoras de bens e serviços ao

setor público deverão adotar programas de igualdade racial, contratando

preferencialmente negros. Num país em que ninguém sabe ao certo quem é branco

e quem é negro, a medida é de difícil aplicação. Pergunto: será que esse Estatuto

não será um estímulo para que surjam rancores em grupos e pessoas que se sintam

preteridas? O Estatuto também estabelece cotas para ingresso de estudantes no

ensino superior, cotas para programas de TV, filmes, anúncios publicitários. Será

esse o país que os brasileiros desejam?

17

Page 18: NAO MISCIGENADA OU NAO MULTITNICA: …‡ÃO Em razão das discussões que envolvem as práticas sociais das ações afirmativas e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, resultado da

O PRECONCEITO DE CLASSES

O desprezo contra pobres é universal, existe em todo o mundo, sempre

existiu e, infelizmente, jamais deixará de existir. Porém, parece que entre nós

brasileiros ele se reveste com características acentuadamente mais nossas.

Aqui, pobreza e baixíssimo nível de educação formal e informação são

companheiras, o que torna os pobres mais submissos e menos conscientes de seus

direitos. A enorme distância entre ricos e pobres faz com que exista sempre um

remediado para destratar o mais pobre.

Ao lado dessa constatação, a nossa miscigenação derruba o argumento

de que somos estruturalmente racistas. Sim, o racismo existe aqui como em todo

lugar, mas não é uma marca de nossa identidade nacional. Fazendo a leitura de

manifestações aparentemente racistas, vimos que o “classismo” é a razão dessa

manifestação.

Grande parte das ocorrências de racismo se dá com negros que não são

pobres: são barrados em hotéis de luxo, são confundidos com seguranças, ou

motoristas. O preconceito contra pobres é tamanho que, mesmo quando se encontra

um negro bem sucedido economicamente, ocorre uma relação automática e

inconsciente entre pobreza e negritude. Essa relação faz aflorar o preconceito, que é

desfeito quando se informa a condição social deste negro em questão.

As políticas de cotas raciais não eliminarão as bases do preconceito

social. As cotas poderão criar no Brasil um racismo que até aqui não conhecíamos.

Entre os pobres, cor não é nem privilégio nem demérito de ninguém. As cotas farão

com que passe a ser, estimulando no Brasil a cisão racial da pobreza. É um risco

enorme (KAMEL, 2006, p. 104).

O exemplo dessa conotação ocorreu com Ronaldo (o fenômeno). Quando

sofreu algumas agressões raciais na Europa, ele deu a seguinte declaração: “Eu,

que sou branco, sofro com tamanha ignorância. A solução é educar as pessoas.

Comigo o preconceito é outro, bem menos grave. As pessoas me chamam de

gordinho” (KAMEL, 2006, p. 139).

Como! Ronaldo branco? Assim as pessoas se perguntaram. O pai de

Ronaldo foi logo declarando não saber onde o filho estava com a cabeça, pois ele

era negro. Ronaldo voltou a declarar: “Eu quis dizer que tenho pele mais clara, só

18

Page 19: NAO MISCIGENADA OU NAO MULTITNICA: …‡ÃO Em razão das discussões que envolvem as práticas sociais das ações afirmativas e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, resultado da

isso, e mesmo assim sou vítima do racismo. Meu pai é negro. Não sou branco, não

sou negro, sou humano. Sou contra qualquer tipo de discriminação” (KAMEL, 2006,

p. 139).

Esse debate foi a prova de que o efeito do vírus da nação bicolor – negros

e brancos - já está disseminado. Em outra época, talvez, a crítica racista a Ronaldo

seria feita de maneira envergonhada. Hoje em dia, porém, ao dizer que é branco,

Ronaldo provoca escândalo entre aqueles que pensam de acordo com critérios de

cor e raça.

Quem defende a nação bicolor não aceita mais a autodeclaração. Hoje

eles se dão o direito de dizer quem é branco ou quem é negro. Isso é racismo em

altíssimo nível.

Por que, quando o conceito raça não é mais aceito pela ciência, o

discurso racial negro, da nação bicolor, da divisão do país em raças, da adoção de

políticas de preferência racial, ganhou tanto eco e espaço no Brasil, na mídia e na

Academia?

Kamel arrisca várias respostas que faço questão de aqui transcrever, e a

primeira é a seguinte:

Por dez anos, o Brasil teve em seu comando um homem que sempre pensou o Brasil em termos de uma nação dividida, em que brancos oprimem negros: Fernando Henrique Cardoso, primeiro como ministro da Fazenda, depois, como presidente da República, por dois mandatos consecutivos. Somente aqueles que não leram a obra sociológica de FHC podem imaginar que ele, como presidente, guiaria o país com os olhos voltados para outros paradigmas (KAMEL, 2006, p. 140).

O homem que ajudou a construir a tese sobre nação bicolor no poder não agiria de outra forma, senão a partir dos pressupostos em que acreditava. Dez anos de ação, se não mudam, ao menos ajudam, e muito, a mudar a face de um país. É certo que o presidente era mais sutil que o jovem sociólogo. Reconhecia que aqui havia, e há, o gosto pela mistura, o que, no entanto, não muda em essência o fato de que a desigualdade entre negros e brancos se deve, em grande medida, ao racismo. Que ele tenha sido e seja pessoalmente contra as cotas raciais, importa pouco: a adoção delas só é possível se antes toma corpo um processo que substitui o ideal de nação miscigenada e tolerante pela crença numa nação dividida entre negros oprimidos e brancos opressores (KAMEL, 2006, p. 140-141).

Na segunda resposta, Kamel argumenta que a chegada de Fernando

Henrique Cardoso ao poder ocorreu no momento em que a ONU - Organização das

19

Page 20: NAO MISCIGENADA OU NAO MULTITNICA: …‡ÃO Em razão das discussões que envolvem as práticas sociais das ações afirmativas e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, resultado da

Nações Unidas - buscava amenizar o racismo presente em grande parte do mundo.

Esse esforço implicava no apoio financeiro, publicitário e na realização de estudos

em diversas partes do mundo. O fim do racismo pela mistura não ocorreu no resto

do mundo como aqui no Brasil. Portanto, a ONU busca outra forma de solução para

o problema – o ideal passa a ser agora a instauração de nações multiétnicas,

mantendo cada um no seu canto, todos se respeitando e tolerando suas diferenças.

Nada de misturas, independentemente de raça ou cor, mas a luta é para que todos

os diferentes sejam aceitos como cidadãos. Assim acontece no Reino Unido, onde

se espera que árabes, hindus e africanos se orgulhem de seus co-cidadãos, cada

qual em seu bairro, cada qual com sua diversidade, mas todos igualmente

britânicos. Assim também na França, na Alemanha, na Espanha e em tantos outros

lugares.

Esse ideal da Organização das Nações Unidas é um presente político

para os movimentos negros e para aqueles que comungam o ideal de nação bicolor,

mas um desastre para aqueles que acreditam numa sociedade miscigenada. A

Democracia Racial, com sua mistura de raças, é muito mais revolucionária do que a

atitude acrítica e importada da convivência e respeitabilidade entre raças.

Desde Oswald de Andrade, com a sua definição maravilhosa de antropofagia cultural, vivíamos a querer isso: um povo misturado, em que ninguém sabe onde começa o branco e onde termina o negro. E, no entanto, pouco a pouco, esse ideal foi sendo substituído pelo respeito à diferença, a etnias diversas. E passamos a ouvir como se fosse algo “chique”: “somos uma nação multiétnica.” Mal percebendo que nações multiétnicas estão num degrau abaixo em termos de ideal civilizatório: no topo, nações misturadas, em cor e “raça” são noções de um passado bárbaro; no meio, nações multiétnicas, em que a discriminação é odiosa, mas onde a mistura é evitada como “antinatural”; e no degrau mais baixo, as nações que se orgulham de sua pureza racial, seja ela qual for (KAMEL, 2006, p. 141-142).

A argumentação para a terceira resposta está na desigualdade. Nossa

nação está dividida entre ricos e pobres, porém com um abismo imenso entre

ambos. Sendo os negros e pardos a maioria entre os pobres, a saída é atribuir a

desigualdade ao racismo de brancos, ignorando que entre pobres existe uma fatia

de 20 milhões de brancos. A política de preferência racial, buscando a promoção e

emancipação de parte da pobreza, é uma monstruosidade. Ao invés disso, o Estado

20

Page 21: NAO MISCIGENADA OU NAO MULTITNICA: …‡ÃO Em razão das discussões que envolvem as práticas sociais das ações afirmativas e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, resultado da

deveria investir na superação de toda a pobreza, o que poderia ocorrer elegendo a

educação como prioridade. Fazendo isso, o estado não estaria emancipando apenas

um grupo racial, mas todos os brasileiros.

A quarta argumentação decorre exatamente das soluções fáceis, as

mágicas tão bem apresentadas pelos políticos brasileiros. Se o problema é a

educação, então vamos dar prioridade a ela, pelo menos na lei. Na Constituição

Federal coloca-se a obrigatoriedade de investir 18% na educação, sendo que nas

estaduais esta obrigatoriedade sobe para 25%, o que deveria ser piso passa a ser

teto. Apesar da lei, a educação continua sem dinheiro, enquanto os gestores ficam

com a consciência tranquila.

O outro caminho mágico é a política de cotas. Todos sabem que o

problema educacional brasileiro é a má qualidade da educação básica. A solução

mágica, portanto, é a política de cotas, para facilitar o acesso de negros e pardos às

universidades, acreditando-se, assim, que os problemas estarão resolvidos. De

acordo com a experiência internacional, nem sempre a política de cotas produz o

resultado esperado: no caso, a diminuição das desigualdades. Geralmente o ódio

racial é o que prevalece. O outro caminho mágico para superação da pobreza, muito

valorizado pelos políticos, são as políticas assistencialistas. Infelizmente, não é

possível acabar com a pobreza com esse artifício, basta tirar o dinheiro do programa

social e o pobre voltará a ser pobre. Portanto, cada centavo que deixa de ir para a

educação, contribui para a manutenção do caos da miséria de brancos, negros,

pardos ou de qualquer outra cor. Talvez uma política educacional eficaz e a geração

de renda consistente e bem distribuída (sem ser esmola), diminuam a pobreza,

diminuindo, com isso, o preconceito de classes ou classista.

Finalizando, Kamel pergunta se há solução, se há caminho de volta, e ele

se manifesta com as seguintes palavras: “Basta que, como eu, manifestem-se todos

aqueles que ainda pensam que uma nação misturada, miscigenada, colorida, sem

espaço para diferenças de “raça” é ainda muito superior a uma nação multiétnica”

(KAMEL, 2006, p. 143).

21

Page 22: NAO MISCIGENADA OU NAO MULTITNICA: …‡ÃO Em razão das discussões que envolvem as práticas sociais das ações afirmativas e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, resultado da

CONCLUSÃO

A necessidade de aprofundar a discussão sobre a questão étnica e racial

na sociedade brasileira se colocou, principalmente, após a promulgação de

determinadas leis sobre a educação e sobre a questão racial, como a Lei 10.639, de

09 de janeiro de 2003, que altera a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que

dispunha sobre as diretrizes e bases da Educação, e a Lei 11.645, de 10 de março

de 2008, que ratifica a Lei anterior e lhe acrescenta algumas disposições sobre a

questão indígena. Partindo, portanto, dessa necessidade, é que iniciei minhas

pesquisas sobre o assunto, como participante do Programa de Desenvolvimento

Educacional PDE/2008. Porém, minha linha de pensamento, ou mesmo pesquisa,

vai na contracorrente do fervor do engajamento da SEED, explícito na sua Diretriz

Curricular de História para a educação Básica.

Questiono esse posicionamento, fazendo minhas as palavras do

sociólogo Demétrio Magnoli, acerca da política de cotas no Brasil: “os incentivos

oficiais, vagas nas universidades, cotas no mercado de trabalho vão ajudar os

mestiços a assumir a sua negritude. Ao negar a verdadeira raça (miscigenada),

assumindo a condição de negro, se criará uma larga base social, para que os

promotores das políticas raciais se ergam como lideranças políticas” (Veja, nº

35/2009).

Acredito na transformação social do país através da educação e os

grupos engajados acreditam que a transformação social só acontecerá quando as

ações afirmativas reivindicadas forem colocadas em prática a favor dos

afrodescendentes.

Tendo receio desta proposta para a nação, levei a discussão aos jovens

estudantes do 2º e 3º ano do ensino médio noturno do Colégio Estadual Pedro II, na

cidade de Umuarama, para saber o que pensam sobre a questão em discussão.

Com base no exposto, no primeiro momento dividimos grupos com no

máximo 10 alunos, para que desenvolvessem pesquisa sobre as políticas

afirmativas, sem a preocupação de entrega de material. No segundo momento, cada

grupo apresentou o que tinha pesquisado referente ao assunto. O material

encontrado, na sua grande maioria, foram questões relativas à discussão sobre o

Estatuto da Igualdade Racial, sistema de cotas para concursos públicos, sistemas

22

Page 23: NAO MISCIGENADA OU NAO MULTITNICA: …‡ÃO Em razão das discussões que envolvem as práticas sociais das ações afirmativas e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, resultado da

de cotas nos vestibulares de determinadas Universidades, obrigatoriedade do

estudo de História e Cultura afro-brasileira nas escolas públicas e privadas. Enfim, o

que a mídia falada e escrita tem proporcionado até o momento.

Minha intenção era que os alunos tivessem apenas ideia do que estava

em questionamento. O engajamento a favor ou contra iríamos discutir em outro

momento. Após as apresentações, sendo quatro turmas com média de 35 alunos,

duas turmas do segundo ano, e duas turmas do terceiro ano, ambas do período

noturno, apliquei um questionário em que constavam oito perguntas (Anexo). A

aplicação do questionário se deu nesse momento, em razão de não termos discutido

o posicionamento de autores contrários ou a favor sobre o assunto. Assim, os alunos

responderiam as perguntas sem interferência de processo anterior, que pudesse

prejudicar a credibilidade da pesquisa.

As perguntas que fazem parte do questionário reproduzem a mesma

linguagem que o IBGE utiliza em suas pesquisas Censitárias e nas Pesquisas

Nacionais por Amostra de Domicílios, a PNAD.

O resultado apresentado não pode, nem deve, de maneira alguma, ser

generalizado para as demais escolas paranaenses e para as escolas de outros

estados brasileiros. Nas perguntas 1 e 2 buscou-se saber a ascendência dos

pesquisados e, conforme resultado, percebemos que os números apresentados são

bem próximos dos resultados oficiais apresentados pelo IBGE na Pesquisa Nacional

por Amostra de Domicílios PNAD/2007 (tabela 1 da pág. 14).

Quanto ao percentual de cor/raça das mães pretas, o mesmo ficou abaixo

do resultado para o Brasil, mas próximo do resultado da população preta no estado

do Paraná, que foi divulgado pelo IBGE em agosto do corrente ano, (resultado da

Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios /2008) que divulgou uma população

de 2,5% da cor/raça preta.

Quando se pergunta a cor/raça dos estudantes, estes se autodeclaram

brancos (44,3%), pardos (54,1%) e pretos (0,8%). Este resultado é um pouco

discrepante dos resultados divulgados pelo IBGE referente à PNAD/2008 para o

Paraná, que apresentou os seguintes resultados: 71.6% declararam-se brancos,

24,3% declararam-se pardos e 2,5% declararam-se pretos.

Quando perguntamos se já sofreram algum tipo de preconceito em

relação à cor/raça, apenas 11,1% dos autodeclarados brancos e 24,6% dos

autodeclarados pardos/preto afirmaram ter sofrido algum tipo de preconceito ou

23

Page 24: NAO MISCIGENADA OU NAO MULTITNICA: …‡ÃO Em razão das discussões que envolvem as práticas sociais das ações afirmativas e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, resultado da

discriminação. Quando perguntamos se eles têm preconceito em relação à cor/raça,

apenas 5,6% dos autodeclarados brancos e 4,5% dos autodeclarados pardos/pretos

disseram que sim. Portanto, esse resultado é um pouco divergente em relação ao

resultado da pergunta anterior, sobre preconceito e/ou discriminação.

Na pergunta sobre as cotas para a entrada nas universidades públicas,

12,9% dos que se autodeclararam brancos são a favor e 25,7% dos que se

autodeclararam pardos/pretos também são a favor. A pergunta sobre os motivos da

discriminação ou preconceito foi fechada em cor/raça ou condição econômica: os

autodeclarados brancos afirmaram ser cor/raça (41,5%) e a condição econômica

(58,5%). Os autodeclarados pardos/pretos declararam cor/raça (38,5%) e condição

econômica (61,5%).

Finalizando o questionário, perguntamos aos alunos,qual o conceito de

educação da escola pública. Deles, 13,1% responderam ótima, 38,3% responderam

boa, 40,6% responderam mais ou menos, 3,9% responderam ruim, e 4,1%

responderam péssima. Cabe aqui uma reflexão dos gestores da SEED.

Diante desses resultados, podemos dizer que a maioria esmagadora dos

jovens estudantes de uma escola pública de Umuarama despreza a questão racial,

apresentada como solução dos problemas sociais da população negra no país. A

professora Yvonne Maggie, no seu artigo “Racismo e Antirracismo: Preconceito,

discriminação e os Jovens Estudantes nas escolas Cariocas” (2006), após análise

dos resultados da pesquisa realizada por dois anos em algumas escolas públicas do

Rio de Janeiro, deixa a seguinte pergunta: “... será lícito criar políticas que se

afastem da estratégia até então adotada pelos estudantes cariocas? Será justo fazer

recair, sobre os ombros desses jovens, não só a responsabilidade, como as

possíveis consequências dessa engenharia social baseada na “raça” e que entroniza

marcadores “raciais” como critério de distribuição de direitos e estratégia de vida?

Temos o direito de, em nome do antirracismo, correr o risco de transformar os pátios

dessas escolas em espaços divididos entre brancos e negros definidos por lei?

Após os alunos terem respondido o questionário, o resultado foi

apresentado a eles. A partir desse momento é que se passou ao debate e leitura de

artigos sobre o assunto. Novamente eles trabalharam em grupo e, para cada grupo,

foi disponibilizado certo tempo para apresentação e posicionamento sobre a questão

étnica atual no Brasil. Sem dúvida, os resultados foram excelentes. Os debates

foram acalorados, principalmente nas turmas do 3º ano do ensino médio. As

24

Page 25: NAO MISCIGENADA OU NAO MULTITNICA: …‡ÃO Em razão das discussões que envolvem as práticas sociais das ações afirmativas e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, resultado da

brincadeiras, gozações e até xingamentos foram evidenciados entre colegas.

Poderiam até ser evidenciados como preconceito ou discriminação para quem está

“de fora”, porém, entre eles, é a forma de aproximação e de se construir amizades.

Se nossos estudantes não veem uma sociedade dividida em cor/raça, qual a razão

para os políticos terem a preocupação de construir uma sociedade legalmente

dividida? A quem interessa o Brasil com ódio racial?

O Estatuto da Igualdade Racial está prestes a ser sancionado pelo

presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e poderá ser o divisor da Democracia Racial,

para a Segregação Racial. Os 16 anos dos governos de Fernando Henrique

Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, realmente poderão ficar para a História deste

país.

25

Page 26: NAO MISCIGENADA OU NAO MULTITNICA: …‡ÃO Em razão das discussões que envolvem as práticas sociais das ações afirmativas e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, resultado da

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, A.C. A cabeça do brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007.

FOLHA ON LINE. Evidências genéticas negam existência de “raças humanas”. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/podcasts/ult10065u468874. shtml>. Acesso em: 20 nov. 2008.

FRY, P.; MAGGIE, Y.; MAIO, M. C.; MONTEIRO, S.; SANTOS, R. (Orgs.). Divisões perigosas: políticas raciais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

GRIN, M. Do pluralismo étnico à bi-racialização: historiografia, políticas públicas e o legado da escravidão no Brasil contemporâneo. In: MOREIRA, L. F. V. Instituições, fronteiras e política na história sul-americana. Curitiba: Juruá Editora, 2007. 229-245.

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. v. 28, 2007. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br>. Acesso em: 02 dez. 2008.

KAMEL, A. Não somos racistas: uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. 143p.

MAGGIE, Y. Racismo e antirracismo: preconceito, discriminação e os jovens estudantes nas escolas cariocas. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php? pid=S0101-73302006000300006&script=sci _arttex&t>. Acesso em: 24 jul. 2008.

SEED. Diretrizes Curriculares de História para a Educação Básica. Curitiba, 2008.

SUZUKI, S. Brasil en la época del multiculturalismo: Una polémica en torno a las acciones afirmativas. In: Seminário en Las Américas (Universidad de Los Andes, Mérida-Venezuela, 11 de septiembre de 2007). Humania de Sur. Revista de Estúdios Latinoamericanos, Africanos y Asiáticos. Universidad de Los Andes, Mérida. Ano 2, nº 3. Julio-deciembre, 2007, p. 73-85. Disponível em: <http://saber. ula.ve/db/ssaber/Edocs/pubelectronicas/humaniadelsur/vol2num3/articulo5.pdf>. Acesso em: 24 jul. 2008.

26

Page 27: NAO MISCIGENADA OU NAO MULTITNICA: …‡ÃO Em razão das discussões que envolvem as práticas sociais das ações afirmativas e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, resultado da

ANEXO

27

Page 28: NAO MISCIGENADA OU NAO MULTITNICA: …‡ÃO Em razão das discussões que envolvem as práticas sociais das ações afirmativas e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, resultado da

QUESTIONÁRIO PESQUISA 1- A cor ou raça de seu pai é:

Branca Parda (mulata, cabocla, cafuza, mameluca ou mestiça de preto com pessoa de outra cor ou raça)

Preta Indígena Amarela (origem japonesa, chinesa, coreana, etc)

Resultado: Branca Parda Preta 45,9% 46,7% 7,4%

2- A cor ou raça de sua mãe é:

Branca Parda (mulata, cabocla, cafuza, mameluca ou mestiça de preto com pessoa de outra cor ou raça)

Preta Indígena Amarela (origem japonesa, chinesa, coreana, etc)

Resultado: Branca Parda Preta Indígena 50,9% 45,9% 1,6% 1,6%

3- A sua cor ou raça é:

Branca Parda (mulata, cabocla, cafuza, mameluca ou mestiça de preto com pessoa de outra cor ou raça)

Preta Indígena Amarela (origem japonesa, chinesa, coreana, etc)

Resultado: Branca Parda Preta Amarela 44,3% 54,1% 0,8% 0,8%

4- Você já esteve em situação que outras pessoas tivessem preconceito pela sua cor ou raça?

Sim Não Resultado Geral:

Sim Não Não respondeu 19,6% 79,6% 0,8%

Resultado por cor/raça:

Branca Parda/Preta Sim Não Sim Não

11,1% 88,9% 24,6% 75,4% 5- Você tem preconceito de cor ou raça?

Sim Não Resultado Geral:

Sim Não 16,4% 83,6%

Resultado por cor/raça:

Branca Parda/Preta Sim Não Sim Não

5,6% 94,4% 4,5% 95,5%

28

Page 29: NAO MISCIGENADA OU NAO MULTITNICA: …‡ÃO Em razão das discussões que envolvem as práticas sociais das ações afirmativas e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, resultado da

6- Você é a favor das cotas universitárias para negros ou afrodescendentes? Sim Não

Resultado Geral: Sim Não Não respondeu

20,5% 78,7% 0,8% Resultado por cor/raça:

Branca Parda/Preta Sim Não Sim Não

12,9% 87,1% 25,7% 74,3% 7- Você acha que as pessoas têm mais preconceito em relação:

Cor ou Raça Condição Econômica Resultado Geral:

Cor ou Raça Condição Econômica Não respondeu 39,3% 59,1% 1,6%

Resultado por cor/raça:

Branca Parda/Preta Cor/Raça Condição Econômica Cor/Raça Condição Econômica

41,5% 58,5% 38,5% 61,5% 8- Qual seu conceito de educação da escola pública?

Ótima Boa Mais ou menos Ruim Péssima Resultado Geral:

Ótima Boa Mais ou Menos Ruim Péssima 13,1% 38,3% 40,6% 3,9% 4,1%

Resultado por cor/raça:

Ótima Boa Mais ou Menos

Ruim Péssima

Branca 7,4% 39,8% 44,4% 3,7% 5,6% Parda/Preta 16,7% 39,4% 37,9% 3,0% 3,0%

29