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Universidade Metodista de São Paulo Cátedra UNESCO/UMESP de Comunicação para o Desenvolvimento Regional Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação PENSACOM BRASIL – São Bernardo do Campo, SP – 16 a 18 de novembro de 2015 1 Não há lugar para mulheres neste filme: um estudo sobre o significado da ausência feminina no filme Cães de Aluguel 1 Carolina de Oliveira Silva 2 Rogério Ferraraz 3 Universidade Anhembi Morumbi Resumo Este artigo discute a representação feminina no cinema de Quentin Tarantino, com foco em seu primeiro longa-metragem “Cães de Aluguel” (1992), que caracteriza- se como um filme para homens, segundo palavras de seu criador. A partir de reflexões sobre um modelo cinematográfico hollywoodiano desenvolvido nos anos 70 e 80 os filmes para machos - que enaltecem o poder, a autossuficiência e a força física em um país que procura reerguer-se das crises através de ícones midiáticos, retomados em diferentes proporções ao longo da história do cinema. A ausência feminina relevante implica em algo além de um comportamento submisso, afinal uma única mulher é eventualmente responsável pelo estopim da história, sobre outra perspectiva a mulher como razão motivadora de um comportamento autoafirmativo masculino. Palavras-chave Tarantino; cinema; mulher; ícones; comportamento. Introdução “Não há lugares para mulheres neste filme” (TARANTINO abud WOODS, 2012, p. 43) declaração dada pelo próprio cineasta, sinceridade que coloca sua visão da masculinidade regressiva e baseada na cultura de massa dos anos 70. Mas, apesar de colocar-se de forma completamente apartada, nos dá a possibilidade de refletir sobre a ausência feminina carregada de significado, principalmente quando pensamos em toda a obra de um diretor que mais tarde dará destaque e força para as personagens femininas. Uma série de pós-estruturalistas franceses contestam a visão simplista dizendo que a ideologia é “constituída apenas pela refutação e a demolição da proposta ideológica nuclear do texto” (KEELNER, 2001, p. 148), em contraponto outros teóricos também franceses como Roland Barthes, Pierre Macheray, Jacques Derrida pensam em uma alternativa a essa leitura: a análise daquilo que é periférico como tão significativo quanto o que é evidente. A ausência de uma personagem mulher relevante em “Cães de Aluguel” (Reservoir Dogs, 1992) é carregada de valor narrativo e reforça a ideologia datada da década de 60, “Essa renúncia a mulheres e à sexualidade ressalta o tema de 1 Trabalho apresentado no GT História da Comunicação, do PENSACOM BRASIL 2015. 2 Mestranda do Curso de Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi, e-mail: [email protected] 3 Orientador do Trabalho. Professor do Curso de Comunicação da UAM, e-mail: [email protected]

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Universidade Metodista de São Paulo Cátedra UNESCO/UMESP de Comunicação para o Desenvolvimento Regional

Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação

PENSACOM BRASIL – São Bernardo do Campo, SP – 16 a 18 de novembro de 2015

1

Não há lugar para mulheres neste filme:

um estudo sobre o significado da ausência feminina no filme Cães de Aluguel1

Carolina de Oliveira Silva2

Rogério Ferraraz3

Universidade Anhembi Morumbi

Resumo

Este artigo discute a representação feminina no cinema de Quentin Tarantino,

com foco em seu primeiro longa-metragem “Cães de Aluguel” (1992), que caracteriza-

se como um filme para homens, segundo palavras de seu criador. A partir de reflexões

sobre um modelo cinematográfico hollywoodiano desenvolvido nos anos 70 e 80 – os

filmes para machos - que enaltecem o poder, a autossuficiência e a força física em um

país que procura reerguer-se das crises através de ícones midiáticos, retomados em

diferentes proporções ao longo da história do cinema. A ausência feminina relevante

implica em algo além de um comportamento submisso, afinal uma única mulher é

eventualmente responsável pelo estopim da história, sobre outra perspectiva – a mulher

como razão motivadora de um comportamento autoafirmativo masculino.

Palavras-chave

Tarantino; cinema; mulher; ícones; comportamento.

Introdução

“Não há lugares para mulheres neste filme” (TARANTINO abud WOODS,

2012, p. 43) declaração dada pelo próprio cineasta, sinceridade que coloca sua visão da

masculinidade regressiva e baseada na cultura de massa dos anos 70. Mas, apesar de

colocar-se de forma completamente apartada, nos dá a possibilidade de refletir sobre a

ausência feminina carregada de significado, principalmente quando pensamos em toda a

obra de um diretor que mais tarde dará destaque e força para as personagens femininas.

Uma série de pós-estruturalistas franceses contestam a visão simplista dizendo

que a ideologia é “constituída apenas pela refutação e a demolição da proposta

ideológica nuclear do texto” (KEELNER, 2001, p. 148), em contraponto outros teóricos

também franceses como Roland Barthes, Pierre Macheray, Jacques Derrida pensam em

uma alternativa a essa leitura: a análise daquilo que é periférico como tão significativo

quanto o que é evidente. A ausência de uma personagem mulher relevante em “Cães de

Aluguel” (Reservoir Dogs, 1992) é carregada de valor narrativo e reforça a ideologia

datada da década de 60, “Essa renúncia a mulheres e à sexualidade ressalta o tema de

1 Trabalho apresentado no GT História da Comunicação, do PENSACOM BRASIL 2015.

2 Mestranda do Curso de Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi, e-mail:

[email protected] 3 Orientador do Trabalho. Professor do Curso de Comunicação da UAM, e-mail:

[email protected]

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que o guerreiro deve seguir sozinho e renunciar ao prazer erótico” (KELLNER, 2001, p.

92). Se para o filme existe a possibilidade de um significado para aquilo que não se vê

ou ouve, a informação parcial ou periférica exige uma compreensão ideológica por parte

do espectador, além do entretenimento.

Hollywood encarna a fundo seu papel de fantasia e reflexo. Reflexo,

porque o cinema continua sendo uma representação da realidade:

mesmo o filme mais excessivo sobre a delinquência esconde em si

uma parte da verdade sobre a delinquência; alguns clichês

progressistas sobre o assunto, aliás, não são mais inteligentes do que

as ideias mais conservadoras e repressivas nesse campo. Fantasia,

porque o cinema desempenha para uma sociedade, e nos Estados

Unidos mais do que em qualquer outra parte, pelo fato da onipresença

da imagem, o papel do sonho no indivíduo. (PARAIRE, 1994, p. 70)

Para Tarantino o espectador tem de estar disposto a adentrar ao seu universo,

despender uma atenção e entregar-se, principalmente por conta da fragmentação

narrativa. “Não acho que meus filmes sejam difíceis de seguir. A única coisa que é

necessária é que você tem de se comprometer a assistir, tem de mergulhar neles de

cabeça. Não faço filmes para o espectador casual.” (TARANTINO abud O’HAGAN,

2012, p. 128).

“Cães de Aluguel” é um filme de baixo orçamento que trata da história de um

assalto malsucedido: Joe Cabot (Lawrence Tierney) um criminoso que reúne seis

bandidos para um assalto em uma joalheria e por motivos de segurança distribui

codinomes a cada um. Mr. Orange (Tim Roth) um dos seis bandidos é um infiltrado da

polícia em missão, mas para a sua falta de sorte acaba levando um tiro em meio à fuga e

Mr. White (Harvey Keitel) o único a se sensibilizar com a situação, leva-o para um

armazém – o lugar de encontro. Outro bandido, Mr. Pink (Steve Buscemi) chega ao

armazém e começa a discutir sobre a possibilidade de um traidor entre eles, é quando o

clima de acusações surge e a partir dai se torna cada vez mais insustentável.

Premissa que se aproxima muito de histórias já vistas do gênero policial, “The

Killing” O Grande Golpe, (1956) de Stanley Kubrick, homenageado por Tarantino, além

da inspiração em obras fragmentadas como o thriller de Jean-Pierre Melville, “Les

Doulos” (1962); “O Enígma de Outro Mundo” (1982) de John Carpenter; “City on

Fire” (1987) de Ringo Lam e “O Sequestro do Metrô” (1974) de Joseph Sargent. “Cães

de Aluguel” ficou conhecido por sua encenação teatral, herança do baixo orçamento,

motivo que o faz valorizar muito mais a tagarelice das personagens que as ações e

cenários. A obra toma o Sundance Film Festival – que tem o intuito de revelar novos

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cineastas, principalmente os de produções independentes – com uma atmosfera violenta

e de humor negro que apesar de perturbadora é reconhecidamente bem construída, “É

um belo filme de gênero que está permanentemente rindo de si mesmo e da idiotice

pueril do gênero.” (TAYLOR abud WOODS, 2012, p. 37).

O rir de si mesmo se dá pelo falatório recorrente que marca o diretor a partir de

um estilo verborrágico, ao mesmo tempo servindo como ponto de partida para reflexões

sobre as suas influências. Os filmes que colocam a mostra o masculinismo cru

identificados como repertório, são claramente subvertidos em sua obra – as cenas de

lutas, corridas ou assassinatos são menos importantes que o falatório, – a explicação

minuciosa por meio de longos discursos torna-se prova de uma força e esperteza

masculina não mais medida pelos músculos ou atributos físicos, mas pela desenvoltura

em conversar e o domínio, ou a ilusão de domínio, daquilo que é dito.

Quentin Tarantino é reconhecido por uma obra principalmente centrada em

motivos de vingança, algumas delas se destacando pela ação de mulheres que tomam o

lugar do homem violento e rijo já há muito ultrapassado: em filmes que Tarantino

contribui como roteirista, “Amor à Queima-Roupa” (True Romance, 1993) e

“Assassinos por Natureza” (Natural Born Killers, 1994); como roteirista e ator em“ Um

Drink no Inferno” (From Dusk Till Dawn, 1996) e como diretor e roteirista em “Kill

Bill – Vol.1” (Kill Bill – Vol.1, 2003), “Kill Bill – Vol.2 (Kill Bill – Vol.2, 2004) e “À

Prova de Morte” (Death Proof, 2007), são a prova do motivo recorrente em sua obra. É

importante destacar que a vingança da mulher é construída a partir do ponto de vista

masculino – a Noiva (Uma Thurman) em Kill Bill Vol.1 e 2 é claramente inspirada em

personagens feita por atores como Clint Eastwood em seus faroestes e Bruce Lee em

seus filmes de artes marciais, – uma fantasia sobre comportamentos violentos e

selvagens. Sobre “Um Drink no Inferno”

Parece-me ser uma fantasia masculina de vingança feminina, na qual a

raiva transforma as mulheres em monstros, ou na qual mulheres em

fúria revelam que eram monstros disfarçados o tempo todo, e em face

ao ódio, homens se tornam vítimas inocentes de putas malvadas.

(BAUGHMAN apud WOODS, 2012, p. 197)

Apesar de uma fantasia temerosa as mulheres tomam a forma de um tipo

masculinizado, as funções simplificadas e datadas da cultura de massa expostas por

Morin (2001, p.144) como o estereótipo da mulher, são emancipadas não pela promoção

social, mas por um hipererotização da sua imagem - “a imprensa não-feminina não é

masculina, ela é feminino-masculina, e engloba todo os temas da imprensa feminina

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(moda, coração, conselhos prático, vidas romanceadas, etc.)” – desenvolvendo-se

também o modelo da good-bag girl, uma mulher com aparência de vagabunda mas de

alma pura, a imagem sublimada da mulher no cinema: “pintada e enfeitada como

boneca de amor, mas buscando o grande amor, a ternura e a felicidade.” (p. 145)

A imprensa feminino-masculina parece estabelecer o começo de uma aliança

que é refletida mais tarde em meios de comunicação como o cinema, em “Amor à

Queima-Roupa” o burburinho é ainda maior, um filme taxado como R (restrito) pela

Motion Picture Association of America (MPAA), sofre várias alterações no roteiro

original, dentre elas a da personagem Alabama Whiteman (Patricia Arquette) que

originalmente atira em um policial, “É o que eles disseram: ‘Uma mulher atirando num

policial, isso só piora...’.”, revela Tony Scott, diretor do longa-metragem sobre a

declaração da MPAA.

Com exceção de “Kill Bill” e “À Prova de Morte”, as personagens dos filmes

citados sempre dividem o protagonismo com uma personagem masculina. Em “Cães de

Aluguel", o primeiro filme de Tarantino como roteirista e diretor, as mulheres não

possuem um lugar articulado na história, contam com pouquíssimas aparições físicas,

duas no total, reservando espaço apenas para comentários em meio a espertas discussões

– que vagarosamente formatam a imagem feminina a partir do olhar fantasioso

masculino, – em meio aos produtos culturais como a música, filmes e séries de TV

caracterizando seus bandidos de humor negro, descaradamente racistas e exibicionistas.

Um Nerd armado

27 de março de 1963, Knoxville, Tennesse. Connie McHugh fica grávida aos

dezesseis anos, encarando tudo como um grande ato de libertação, inclusive o

casamento com Tony Tarantino que, em sua opinião, serviu somente para torná-la uma

menor emancipada. Quentin Jerome Tarantino, futuro diretor que seria aclamado alguns

anos depois como “messias descolado do cinema” (DAWSON abud WOODS, 2012,

p.21) já se aproveitava das referências à cultura televisiva e cinematográfica desde o

útero de sua mãe.

Quentin, nome inspirado em uma série de TV chamada “Gunsmoke” com o

personagem mestiço Quit Asper, interpretado por Burt Reynolds e no livro “O som e a

fúria” de Faulkner que tinha como Quentin uma heroína. Tarantino, herança de seu pai

biológico Tony Tarantino, ator e músico independente, descendente de italianos e

responsável pelo futuro adjetivo com o qual seu filho tornar-se-ia conhecido no mundo

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do cinema: o “tarantinesco4” que para muitos resumia-se em “uma crítica sucinta para

thrillers policiais banais, metidos a descolados de baixo orçamento” (CHARITY abud

WOODS, 2012, p.281).

O jovem Tarantino cresce na cidade de South Bay, LA e a sua experiência com a

sala de cinema começa cedo, um dos lazeres favoritos da sua família constituída

somente por adultos – sua mãe e seus amigos e amigas – torna-se uma paixão e o

principal motivo da sua marca como cineasta autoral:

Quando eu era moleque, filmes de exploitation [apelativos] em geral

realmente me empolgavam. Eu gostava mesmo. Via de tudo, de filmes

de arte estrangeiros a toda a coisa mainstream. Mas havia uma crueza,

um ultraje e uma malandragem em filme de exploitation. Fossem

filmes de exploitation de negros, ou de caipiras, os velhos filmes de

macho, ou filmes de garotas pom-pom. Os filmes de exploitation

foram um pouco além porque é o que eles tinham a oferecer.

(TARANTINO apud WOODS, 2012, p. 259)

Os filmes de exploitation surgem nos anos 70 como uma das muitas respostas às

superproduções americanas, assim como fora o choque do cinema europeu na década de

60: a Inglaterra com os filmes de espionagem e aventura, a Itália com o gênero do

western e a França com comédias, dramas e a nouvelle vague que “...faz a apologia a

simplicidade, condena os excessos das superproduções, roda às pressas filmes de

impacto, feitos em algumas semanas e com orçamentos irrisórios.” (PARAIRE 1994,

p.28).

Tarantino nasce 1963, década em que o espírito de liberdade tomava conta do

país, a contracultura surge para confrontar os valores institucionalizados, tornando a

sede por mudanças ainda maior, o Código Hays torna-se caduco já que pouco se

reformulou desde a década de 30. Como observa Philippe Paraire (1994, p.29) “as

proibições eram numerosas demais para não serem transgredidas.”. E é a partir desse

afrouxamento do Código Hays que as produções independentes e de baixo custo,

conhecidas também como filmes B, começam a conquistar o seu lugar no cinema –

antes tímido e visto por uma parcela mínima de espectadores, – são as histórias que

discutem questões como a prostituição, drogas e o racismo e alcançam um público

4 Em entrevista Tarantino é questionado sobre o termo: “É, sinto isso. Nunca entendi realmente

o que significa ‘tarantinesco’. Quando escuto isso aplicado, nunca me soa como uma coisa

lisonjeira, porque é tão restrito a ternos pretos, diálogos hiperativos e gente falando de

programas de TV. Não sou eu. Sinto que há muito mais no meu trabalho do que isso.”

(CHARITY abud WOODS, 2012, p.285).

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afoito para ver aquilo que lhes foi mascarado durante anos, pelo menos através da

indústria cinematográfica mais difundida até o momento.

As produções americanas passam a misturar procedimentos do cinema clássico e

moderno. Influenciados pelo modernismo europeu através do American Art Film que

contava com uma nova geração de cineastas “que usavam o cinema para desconstruir e

opor os mitos culturais dominantes através de visões alternativas mesmo em produtos

americanos como Bonnie e Clyde5” (COORIGAN, 1967, p. 17), como Robert Altman,

Francis Ford Coppola, Martin Scorsese e outros que exploravam questões morais e

críticas ousadas – violência, sexualidade, contracultura – a angústia dos filmes da

década de 1970 é banhada pela perda da confiança e pela má consciência que assolava

os americanos na sua crise financeira. Em meados de 1975, segundo Mascarello6 (2003,

p. 335) “Depois da pior crise de sua história ao final dos anos 60, o predomínio

avassalador de Hollywood na contemporaneidade decorre, fundamentalmente, da

reconfiguração estética e mercadológica do blockbuster”, é a salvação de Hollywood

que se dá em termos financeiros e estéticos por meio da sinergia dos meios, permitindo

ao blockbuster fortalecer uma indústria voltada não só para o cinema, mas para todos os

produtos que dele podem surgir. A dominação do blockbuster não excluiu as produções

alternativas que surgem na época, muito pelo contrário, “se o blockbuster admite uma

variedade de público muito grande para ser definida, as pequenas produções redefinem

a audiência com uma pluralidade de interesses, a proliferação de posições ao invés da

oposição.7” (COORIGAN, 1967, p. 24).

Nós e eles

Douglas Kellner (2001) explica a ideologia como “tanto um processo de

representação, figuração, imagem e retórica quanto um processo de discursos e ideias.”

(p. 82), logo, as imagens construídas através dos textos da cultura popular ajudam na

5 Texto original “who used the cinema to undermine and oppose the dominant cultural myths

with alternative visions even in Americanizes products such as Bonnie and Clyde.” Tradução do

autor. 6 Fernando Mascarello discute as críticas e definições colocadas ao cinema americano da década

de 70, como a Nova Hollywood, o Pós-Clássico e o High Concept. A partir disso, confrontam-

se uma série de autores que elegem metodologias para a definição de cada conceito, dentre eles

Murray Smith que alerta um problema de "falta de clareza sobre qual aspecto de Hollywood está

em discussão [...]” (1998, p. 16), tornando cada vez mais urgente para os pesquisadores a

natureza das afirmações. 7 Texto original: “If the conglomerate blockbuster admitted an audience too large to be defined

and actually addressed, the smaller production houses redefined that audience as a plurality of

special interests, a proliferation of positions rather than an opposition.” Tradução do autor.

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criação da forma de ver e interpretar o mundo e seus processos, fazendo parte, portanto

de um sistema de dominação. A segmentação do público e a construção de ideologias

“constitui um sistema de abstrações e distinções em campos como sexo, raça e classe,

de tal modo que constrói divisões ideológicas entre homens e mulheres, entre as

“classes melhores” e “as classes mais baixas”, entre brancos e negros, entre “nós” e

“eles”, etc.” (p.84). A partir dessa premissa de domínios e hierarquias, torna-se

justificável, em virtude de uma “alegada superioridade ou da ordem natural das coisas”

(p. 84) a dominação de um sobro o outro, nesse caso os filmes de ideologia onde o

homem tem domínio social sobre a mulher.

Esse pensamento sexista, racista e binário coloca-se entre forças antagônicas e

desiguais que “servem para legitimar os privilégios e a dominação dos mais poderosos”

(p.84), refletindo-se no senso comum dos americanos mobilizados por essa ideologia,

Vencido no Vietnã, vencido na rua por seus delinquentes, o país ganha

no cinema as guerras perdidas: “a atmosfera Reagan” favorece a

reescrita da história atual. Assim, as demonstrações de força de

Stalone em Rambo, Cobra e Rocky, de Bronson em Desejo de Matar,

de Eastwood, na série do inspetor Harry, de Schwarzennegger e de

todas as suas réplicas mais recentes funcionam como antidepressivos

numa sociedade que há cerca de quinze anos duvida dela própria.

(PARAIRE, 1994, p.70)

Através de atitudes machistas a mensagem dos EUA para todo o mundo na

década de 80 é a de uma nação segura, poderosa e autossuficiente, a essência se

cristaliza com a espetacularização da cena pública8, tornando as fronteiras entre real e

imaginário cada vez mais entrelaçadas, o gênero policial noir se sobressai e contribui

para uma retomada da atmosfera insegura e sombria dos anos 50, o voyeurismo incita o

consumidor não cidadão a acompanhar tudo do sofá de casa, as obras do artista Andy

Warhol em 1960 antecipam uma crítica à verdade do que vem a ser a Pop Art, que não

se preocupa com o seu caráter de mercadoria, é criada para tal, não se importando com o

rótulo, muito pelo contrário, o valoriza.

Toda crise carrega em si sua própria recuperação, os americanos com a

necessidade de reerguerem-se moralmente recorrem aos valores de poder, segurança e

8 Amir Labaki (1991, p.7) comenta a trajetória de artistas que acabam resumindo o espírito da

época, como a morte de John Lennon. Citando o dramaturgo e ensaísta Václav Havel: “O fato

de Lennon ter sido morto por um psicopata, vítima do moderno culto pop criado pelo mass

media, tem também significado simbólico: identificação pacífica com um ídolo, substitutiva da

ação engajada, encontra seu obscuro clímax na esquizofrenia de um homem que atira em seu

ídolo para resgatar sua própria identidade e a ascensão de Ronald Reagan, “chamado a

interpretar um presidente da República, num filme sem câmera ou duração pré-determinada”.

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orgulho, representados por astros do cinema que reforçam a política do star system,

agora mais sólida que nunca. O papel da grande tela é reforçado, ela fantasia a realidade

e realiza ilusoriamente o sonho dos indivíduos, “ao final, tudo que não pôde ser feito na

realidade nua e crua da vida política e social do país, é concretizado pelo cinema, logo

ele “participa do equilíbrio mental de toda a sociedade americana”. (Labaki, 1991,

p.70). Mas, apesar dessa abordagem bastante criticada quanto aos conceitos ideológicos,

muitas vezes técnicos e estéticos, o reforço do esquema de organização e maestria desse

tipo de cinema é difundido e continuamente absorvido de diferentes formas nos quatro

cantos do mundo, demonstrando assim sua importância e destaque para a

cinematografia mundial.

O homem que parou no tempo e avançou um pouquinho

A cultura de massa é a transformação de toda uma cultura que envolve não

somente a erudita ou alta cultura e a aura construída a partir dela, vai além. Já em

meados de 1936, Walter Benjamin enxergava a cultura de massa como as condições de

um crescimento que estavam além da economia, chegando a categoria de produção e

refletindo cada vez mais nos processos culturais, no cinema: as condições de produção

dos filmes hollywoodianos estão sujeitas ao aparato financeiro – o aspecto artístico

embora essencial – não é mais importante que o negócio, os lados se combinam e

passam a caminhar de mãos dadas, o cinema representa uma ideologia que será

construída também a partir dos ícones9.

É nesse contexto de filmes construídos a partir da diluição narrativa

simplificada, mainstream, integrada a produção, consumo, construção de ícones da

cultura que facilitam o reconhecimento das identidades e que têm como

espetacularização um dos seus principais chamarizes que se desenvolve um tipo de

filme que Tarantino cresceu assistindo,

Sua mãe e o tio com quem eles viviam o levavam para ver de tudo, “O

sistema de classificação não significava nada para eles. Eles achavam

que eu era esperto o suficiente para saber a diferença entre um filme e

a vida real, e estavam certos. Só havia um filme que minha mãe

desejou não ter me levado, e foi Joe, com Peter Boyle. Caí no sono.

Ela ficou bem feliz porque não queria que o filho visse aqueles

9 O gênero do western clássico da década de 50 tem como pano de fundo histórico a conquista

do Oeste nos EUA e, partindo dessa premissa ele delineia de forma objetiva aquele que será o

herói, um homem branco justo que reestabelece a ordem e faz com que a lei seja cumprida e o

antagonista, na maior parte das vezes é representado pelos índios bárbaros e refratários ao

progresso, um exemplo de ícone construído pela cultura americana.

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policiais matando todos aqueles hippies. (TAYLOR abud WOODS

2012, p.43)

Tarantino explora filmes originários de inúmeros países que não se resumem

apenas ao tipo americano “para machos” da década de 80, que são importantes já que

ele nasce e cresce na sociedade que produz essas histórias e reconhece isso sem o menor

constrangimento: “Adoro violência nos filmes”. (TARANTINO abud WOODS, 2012,

p.54), violência que pode ser encontrada também em outros gêneros com o qual ele

toma contato, “Se desejarmos situar o cineasta em termos geográficos, deveremos

precisar que ele mistura o filme de crime americano com a releitura de gêneros

vinculados à violência (o policial, o western, o filme de horror), realizada por cineastas

da França, da Itália e de Hong Kong.” (BAPTISTA, 2010, p. 26).

A violência a que se refere Tarantino é o resultado de um acúmulo de referências

que passam pelo western, o noir e o exploitation originando o que Mauro Baptista

denomina “filme de crime urbano10

” (2010, p.16). Essa aglomeração de menções as

outras obras acabou tornando-se uma característica do diretor, quando confrontadas e

misturadas o colocam em um patamar do cinema que surge a partir de muitas discussões

na década de 1980: o cinema pós-moderno, já observado também a partir do seu gosto

por filmes desde a infância, “impressionado com a genialidade do conceito de um filme

de terror e comédia juntos” nos filmes de Abbot e Costello.”, confissão do próprio

diretor a uma entrevista para a LA Weekly (TAUBIN abud WOODS, 2012, p. 50)

A pós-modernidade caracteriza-se, segundo Lyotard quanto à crise dos relatos

que consiste com o fim das metarrativas que antes serviam para validar qualquer

informação que se tinha – a regra a partir de um consenso que coloca um enunciado

como verdade aceitável, todas as histórias já gozavam de uma estrutura estabelecida e as

formas de viver já estavam postas, – no final do século XIX o quadro de descrença e

incredulidade da metanarrativa se dá ao extremo. Com a crise do sentido as pessoas

passam a buscá-lo agarrando-se em pontos de vista como uma única verdade, a procura

do sentido é para si e não para o mundo.

10

Por meio de uma investigação acerca dos gêneros da violência e crime, Mauro Baptista

considera que o “filme noir, por exemplo, fala de um grupo de filmes com padrões narrativos e

temáticos comuns realizados entre 1941 e 1958” e “embora partilhe algumas estratégias

narrativas como flashbacks – ainda que com diferenças importantes – não compartilha sua visão

de mundo”. Já a categoria de gângster “tampouco é apropriada: o gênero tem um padrão de

ascensão e queda de um criminoso, distante do universo de Tarantino.”

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A instabilidade dos referenciais na pós-modernidade acarreta em uma arte

nostálgica: "procura gerar imagens e simulacros do passado, para produzir, em uma

situação social na qual a historicidade ou as tradições de classe genuínas se

enfraqueceram, algo como um pseudopassado para consumo como compensação e

substitutivo" (JAMESON 1995, p. 140-141). Os filmes revisitam as produções e delas

extirpam suas inspirações, constituindo então o pastiche11

como uma das características

desse novo cinema. Apesar de visões opostas entre autores, Lyotard acredita no fim da

metarrativa e Jameson associa a pós-modernidade a grande narrativa marxista, não

podemos deixar de observar a complementaridade de pensamentos: a pós-modernidade

trouxe um novo aspecto a própria concepção de relato? Se considerarmos o pós-

moderno como intrinsecamente plural, híbrido e efêmero, as verdades das quais a busca

pelo sentido se encarregam resultam no que podemos chamar de relatos instantâneos.

Situando Tarantino como um cineasta pós-moderno e postas suas influências de

filmes do gênero policial moderno, segundo classificação de Philippe Paraire (1994,

p.67) e que têm como característica personagens justiceiros, - "exalta as virtudes do

acerto de contas e da justiça particular" (p.69), o universo que o diretor constrói parece

despender mais tempo com diálogos para a exaltação das virtudes que ações, uma

realocação dos valores do próprio gênero.

Observa-se, nos personagens de Tarantino, uma necessidade de

afirmação premente que é satisfeita pela recorrência ao verbo antes

mesmo da recorrência à ação física. No universo macho e sexista de

Tarantino é pela boca, e não pelos músculos, que os personagens

medem forças. (PUCCINI, 2001, p.12)

Pensando o pós-moderno como força criativa, o que Tarantino realiza aqui é

uma forma de paródia que consiste na repetição com diferenças, distância e ironia. A

divisão de tipos de filmes colocada por Edgar Morin nos anos 60 a partir de ícones

criados pela cultura de massa é muito objetiva - existem filmes para homens e para

mulheres:

Hollywood já proclamou sua receita há muito tempo: a girl and a gun.

Uma moça e um revólver. O erotismo, o amor, a felicidade, de um

lado. De outro, a agressão, o homicídio, a aventura. Esses dois temas

11

Segundo Linda Hutcheon “a paródia procura de fato a diferenciação no seu relacionamento

com o modelo, o pastiche opera mais por semelhança e correspondência (...) a paródia é

transformadora no seu relacionamento com outros textos; o pastiche é imitativo.” (BAPTISTA,

2013, p.46)

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emaranhados, uns, portadores dos valores femininos, outros, dos

valores viris, são, contudo, valores diferentes. (MORIN, 2001, p. 110)

A partir dessa segregação de temas com uma concepção maniqueísta, a

promoção dos valores femininos herdeiros de uma cultura burguesa que coloca a mulher

alimentada por romances que atenuam as brutalidades humanas, uma visão já

ultrapassada e datada de uma época em que o discurso da imprensa feminina ajuda a

reforçar o caráter de falatório a que ele é associado. O crítico John Fried observa que

para as personagens de “Cães de Aluguel”, "permanecer em silêncio é deixar de agir

como homem, baixar a guarda ou, mais próximo à paranóia, ser despido de toda

masculinidade." (FRIED apud PUCCINI, p.12). O universo criado por Tarantino é de

personagens caracterizadas principalmente a partir do que dizem, seja fútil ou não.

Ainda sobre a mesma perspectiva, toda a conversa dos homens-machos pode ser

associada a “um tom de fofoquinhas de corredor de ginásio” como bem observa a sagaz

Mia Wallace (Uma Thurman), uma das personagens femininas marcantes de Tarantino,

quando ela diz para o matador Vincent Vega (John Travolta) em “Pulp Fiction: Tempos

de violência” (Pulp Fiction, 1994), "Quando vocês malandros se juntam são piores do

que mulheres tricotando”, na verdade um replique do que Joe Cabot diz quando se

refere aos bandidos contratados que não conseguem se calar nem por um segundo.

Para os bandidos do filme o que os afirma como homens não são apenas suas

armas, raciocínios rápidos e atitudes violentas, mas principalmente a falação. A

imposição da palavra: quem fala mais, se destaca – não importa o que você diz, o que

importa é que você disse alguma coisa, – a construção e a confirmação da verdade fica

por conta de qualquer um. Os diálogos procuram expor o ponto de vista da personagem

de forma objetiva, às vezes absurda: Mr. Pink não acredita em gorjetas justificando-se

de forma egoísta e negligente quanto à situação das mulheres que dependem desse

dinheiro para construir uma vida digna, o que surpreendentemente acaba chocando seus

colegas de roubo e o próprio espectador quanto a reação desses bandidos, já que não se

espera uma atitude tão empática provinda de homens tão violentos.

Através da fala de Mia Wallace em “Pulp Fiction”, afirmam-se as fofoquinhas

como uma característica do universo feminino, Tarantino a coloca reconhecendo essa

separação de comportamentos entre o homem e a mulher, ou seja, fofocas feitas por

moças são aceitáveis, seu universo está automaticamente entregue as intrigas e

observações maldosas, já os homens quando agem da mesma forma são repreendidos

pois isso não diz respeito ao seu universo, no entanto é importante colocar que muitas

vezes esse pensamento vem acompanhado de uma extensão que garante as fofoquinhas

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feitas por homens como melhores que as feitas por mulheres – a apropriação do que é

colocado como feminino na cultura de massa do século XX, beirando um acordo social,

salvo as diferenças culturais que variam ao redor do mundo, que o cineasta Quentin

Tarantino faz em seus filmes – suas personagens masculinas quando tagarelam “como

uma mulher” o fazem porque necessitam disso para se firmarem como homens.

Garota procura: um cara legal

A famosa discussão sobre o real significado da música “Like a Virgin” de

Madonna (1984) é um exemplo de visão sexista e radical quanto às vontades e desejos

da mulher na sociedade. Para Mr. Brown (Quentin Tarantino) trata-se de uma mulher

com muitos parceiros sexuais que acaba surpreendida por um homem em particular, um

“cara bem dotado”, que a partir de uma relação sexual extremamente intensa, a fez

sentir-se como sendo virgem novamente, visão que contradiz a do sádico Mr. Blonde

que acredita tratar-se de uma garota sensível que “se ferrou muito na vida” e conhece

pela primeira vez um cara realmente legal. Para Mr. Brown, essa segunda interpretação

é o que deve ser contado aos turistas, um tipo de história água-com-açúcar e sem fatos

chocantes, ou seja, essa versão vai de encontro aos estereótipos da mulher romântica e

indefesa, visão compartilhada pela maioria dos bandidos na discussão. A partir dessa

discussão identificamos uma visão que ao mesmo tempo em que liberta as mulheres de

seus desejos e experiências sexuais, a encarcera com valores extremamente sexistas,

como se a garota da música só pudesse se libertar de uma forma, pelo sexo com um

homem que supera suas expectativas.

Na sequência Nice Guy Eddie (Chris Penn), filho de Joe Cabot comenta sobre

“O Som” dos anos 70 do K-Billy dizendo que ouviu a música “The Night The Lights

Went Out In Georgia” há anos e só percebeu agora que “a garota (Vickie) da música

matou o Andy”. O reconhecimento tardio da ação de uma garota capaz de matar um

homem surge como a ponta de um iceberg. Eddie começa a perceber, surpreso, a

mulher não por sua sensibilidade exacerbada, mas através de seus atos violentos perante

o homem. Joe Cabot também não fica atrás nas referências cinematográficas quando

resgata Doris Day, uma atriz e cantora dos anos 50 conhecida por papéis românticos e

ingênuos, comparando-a com o agente da condicional de Mr. Blonde, Scagnetti,

“Sempre achei estranho um cara cortar o pescoço de uma velhinha por mixaria e ter a

Doris Day como agente”. Mr. Blonde é um homem tão perigoso e violento que a

política de prisão não foi suficiente para corrigir o seu desvio de personalidade, uma

falha no sistema penitenciário quanto à escolha de seus funcionários, já que suas

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atitudes se aproximam de um modelo feminino da década de 50, algo extremamente

incongruente que não condiz com as nossas expectativas pré-estabelecidas, já que a

imagem do policial gira em torno da demonstração de força, poder e racionalidade.

As minorias trabalhadas em “Cães de Aluguel” recuperam os discursos muito

em voga a partir de 1968 com o surgimento das políticas de movimentos sociais como o

feminismo, a liberação gay, a ecologia e o apoio às minorias (STAM, p. 192), sem

esquecer a luta pelos direitos dos negros pensada desde a década de 50. Essas novas

políticas resultam em uma crítica ideológica que consiste “na análise e desmistificação

das ideias de classe dominante.” (KELLNER, p.77).

O declínio do marxismo associava-se não apenas à evidente crise das

sociedades socialistas (por vezes explorada para ocultar o fato de que

também o capitalismo internacional estava em crise), mas também ao

crescente ceticismo com respeito a todas as teorias totalizantes.

Gradualmente, o foco da teoria do cinema radical deslocou-se das

questões de classe e ideologia para outras preocupações. (STAM,

2003, p.192)

As novas preocupações a que se refere Robert Stam discutem questões de raça,

gênero e sexualidade, também demonstradas em algumas cenas de "Cães de Aluguel".

Em uma conversa no carro logo após a chegada de Mr. Orange, Mr. Pink fala sobre a

diferença entre mulheres brancas e negras, pressupondo de início que haja uma

diferença entre as mulheres de etnias diferentes, “As negras não suportam o mesmo que

as brancas. Se ultrapassar o limite delas, acabam com você”, Mr. White contesta

“porque os negros tratam tão mal as mulheres?” e é respondido, “homens que maltratam

as mulheres são cordeirinhos em casa”. A partir daqui a discussão insinua um pré-

julgamento generalizado sobre o comportamento tanto do homem quanto da mulher,

insistindo na premissa de que as mulheres negras, com menos paciência e mais

violentas, justificam-se implicitamente como herdeiras de um percurso histórico da

escravidão, o que justificaria sua força para suportar os possíveis abusos físicos que

podem vir a sofrer, além de julgarem o homem violento que se utiliza da vantagem

física para ser visto como dominante, mas que no fundo não passa de um coitado. Nice

Guy Eddie recorda-se da história de Elois, uma mulher negra de um dos clubes de seu

pai, também conhecida como Lady E, uma devoradora de homens que se parece com

Christie Love, Pam Grier ou Anne Francis? – outro motivo de discussão – o importante

é que Elois parecida fisicamente com a tal mulher do seriado era casada com um

homem violento que fazia “coisas” com ela. Numa noite, esperando que seu marido se

embebedasse e caísse no sofá, ela “passou cola no pau dele e acabou colando-o na

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barriga”, apesar de hilária, a vingança de Elois, uma mulher descrita de forma

ameaçadora, é o troco pago com a mesma moeda, quase aceitável e muito

compreensível devido às circunstâncias em que ela vivia, premissa que mais tarde será a

base para seus filmes de vingança.

Insultos homoeróticos quanto ao gênero e sexualidade são construídos através de

relações afetuosas entre as personagens. Mr. Blonde e Nice Guy Eddie se conhecem há

anos, portanto possuem certa liberdade um com o outro e, quando se reencontram logo

após a estadia de Mr. Blonde na cadeia matam a saudade de forma impetuosa. Nice Guy

Eddie acusa Mr. Blonde de ter se tornado bicha e “apreciador de uma carne de

primeira”, Mr. Blonde responde que “poderia domá-lo, mas seria a minha cadela”,

Eddie provoca dizendo que o sêmen de negros subiu pela cabeça do amigo e é revidado

“Se continuar falando como uma vadia vai apanhar”. São notórias as agressões

grosseiras tomadas como brincadeiras que hierarquizam os grupos sociais empregando a

brutalidade e a diferença biológica, reforçando ainda mais a política do poder patriarcal

e os estereótipos negativos e demonizados, nesse caso, tanto das mulheres como dos

homens.

Uma das funções do diálogo apontada por Michel Chion é a caracterização da

“personagem que fala, mas também a que escuta” (1989, p.102), portanto, algumas

discussões que parecem supérfluas ou concebidas para preencher espaços entre cenas

mais importantes, são na verdade auxílios que revelam aspectos das personagens. Em

uma conversa desesperada no armazém logo após o tiroteio na joalheria e a fuga dos

bandidos, Mr. Pink e Mr. White tentam racionalizar relembrando passo-a-passo o que

acabara de acontecer, em um flashback Mr. Pink aparece fugindo dos policiais e

abordando uma mulher em um automóvel, expulsando-a de forma nada cavalheira pelos

cabelos, arrancando-a pela janela que quebrou com sua arma, não dando chances para

reação. Nesse momento aceitamos isso como algo completamente normal, já que uma

mulher em sã consciência jamais reagiria a esse tipo de agressão uma vez que, seu porte

físico provavelmente não venceria a luta. Ainda na mesma discussão Mr. White

relembra “Quantos anos você acha que aquela negra tinha? 20? Talvez 21?”, se

referindo à mulher que Mr. Blonde matou no tiroteio, Mr. White demonstra certa

compaixão com as pessoas que foram mortas, em especial essa jovem. Ambas as

situações reforçam a ideia de que Mr. White e principalmente Mr. Pink acreditam na

inferioridade física da mulher perante o homem, o que é comprovado, em geral, pela

notória diferença de força entre um homem e uma mulher, fragilidade utilizada como

vantagem: Mr. Pink desesperado, escolhe o carro de uma mulher, presa muito mais fácil

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de lidar por conta das circunstâncias de fuga; Mr. White sensibiliza-se com a jovem

morta no tiroteio, afinal ela não tinha culpa e nem saída diante do banho de sangue

causado pelo psicótico Mr. Blonde.

Não satisfeito com a masculinidade regressiva, Tarantino retrabalha a

estruturação no cinema a partir da sociedade patriarcal, discutida por Laura Mulrey

(1983) apresentando a mulher como vítima e portadora de significado, não produtora,

ainda que com algumas ambiguidades. No início do filme se dá a discussão sobre a

gorjeta, Joe Cabot paga a conta e deixa a gorjeta por conta dos outros. Mr. Pink decide

não pagar a sua parte já que diz não acreditar em gorjetas, Mr. Blue (Edward Bunker)

defende o trabalho árduo das garçonetes que ganham uma miséria, Mr. Pink não

sensibilizado afirma que essa situação não lhe diz respeito, afinal se as garçonetes não

estão satisfeitas, que procurem outro emprego. Para ele gorjetas são dadas para os que

merecem e o que as garçonetes fazem ali não passa de um simples trabalho. “Mas não

fez nada especial” ele afirma referindo-se a garçonete, Mr. Blue recorre “O que seria

especial, chupar você?”, incrivelmente Mr. Pink parece não concordar e a julga

simplesmente pelo fato de ter enchido sua xícara de café apenas três vezes. Mr. Pink

conta que sobrevivia com um salário mínimo, sem gorjetas, então, por qual motivo as

garçonetes não podem viver assim também? Mr. Blue e Mr. White são defensivos na

causa dizendo que as garçonetes dependem disso para sobreviver já que sem um

diploma e no país em que vivem, dificilmente conseguiriam outro emprego. Nessa

discussão a mulher é claramente tratada como vítima de uma situação social com a qual

aparentemente não pode lidar, já que suas condições – físicas, sociais e outras – não a

permitem, ou mais além, uma crítica a própria problemática situação dos estudos onde

as mulheres abrem mão dos estudos por diversos motivos, uma discussão complexa que

ultrapassa as políticas públicas e tradições culturais de cada lugar. Por outro lado Mr.

Pink é categórico e defensor da igualdade, se ele sobreviveu com um salário mínimo, as

garçonetes também sobreviverão. Entretanto, sua ideologia igualitária em termos

salariais vai por água abaixo quando, definitivamente é obrigado a pagar a conta

simplesmente por uma questão de divisão dos gastos e não para de fato ajudar as

garçonetes que precisam desse dinheiro para viver dignamente.

Mesmo trabalhando uma imagem socialmente estabelecida da diferenciação

sexual refletida no cinema dominante, “Cães de Aluguel” cai numa armadilha que ele

próprio monta. As personagens em suas conversas triviais e cotidianas que quase

sempre envolvem mulheres utilizam-se desses casos para convencer os ouvintes do seu

papel dominante e superior como homem, ou seja, a maneira que encontram para se

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firmarem como homem é através das mulheres. Camille Paglia em seu estudo sobre as

personas sexuais discute a questão dos arquétipos, das diferenças políticas e suas razões,

o sexo e a violência, e deixa claro que apesar da luta pela igualdade política, que “...só

dará certo em termos políticos. Nada pode contra o arquétipo. Matem a imaginação,

lobotomizem o cérebro, castrem e operem: aí os sexos serão os mesmos.” (1993, p. 33),

o homem carrega consigo algo de feminino, “Todo homem abriga um território

feminino íntimo governado por sua mãe, da qual ele jamais consegue se livrar por

completo.” (1993, p.28). Essa mistura que carrega um pouco da mulher em cada

homem, e vice-e-versa, pode ser destacada em vários momentos da obra. Mr. Orange, o

policial infiltrado, inventa uma história para convencer os outros de que realmente faz

parte do mundo do crime, ele cita uma mulher hippie fornecedora das drogas que ele

comercializava, “Estava enriquecendo a garota. Ela não fazia nada. Nem via as pessoas.

Eu fazia tudo.”, esse caso que Mr. Orange conta acaba com um flashback em um

banheiro cheio de policiais e um cachorro pastor-alemão, momento crítico para quem

tem uma sacola de ervas nas mãos. Nesse flashback Mr. Orange inventa outra

personagem feminina, agora sobre a visão dos policiais que conversam sobre um

comando – um casal é parado pelo policial que pede ao homem que coloque as mãos no

painel do carro, fatalmente sua namorada é descrita como histérica e apavorada, “Aí a

namorada dele, a típica garota sexy oriental começou a gritar (com voz afeminada):

Chucky, o que está fazendo”?. Nessa história identificamos dois estereótipos de

mulheres – a hippie mulher de negócios que não faz nada, mas enriquece as custas de

um homem, um dos motivos da raiva e inveja do policial disfarçado, não admitindo

trabalhar para uma mulher, e a jovem sexy carente de massa encefálica e

hiperbolicamente histérica, – ambas com diferentes construções mas necessárias para a

veracidade do faz-de-conta.

Toda a encenação de Mr. Orange para os assaltantes é pautada em situações que

vão de encontro com figuras femininas, como a citada anteriormente, podendo ser

identificada ainda em mais três momentos do filme: quando Mr. Orange se prepara para

encontrar Nice Guy Eddie, Mr. Pink e Mr. White e acertar os últimos detalhes do

assalto. Antes de sair de seu apartamento, nervoso, ele volta à procura de um anel que

usa na mão esquerda, ou seja, uma aliança de casamento. Esta aliança lhe transmite a

segurança e força que precisa para acreditar na mentira que está vivendo, repetindo para

si mesmo “Não seja covarde. Eles não sabem. Não sabem de nada. Você não vai se

ferir. Você é o Barreta”. A mulher não se resume a citações que servem para a

afirmação do homem como macho, mas para ajudar esse homem a fazer o que tem de

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ser feito, enfrentar bandidos disfarçando-se como um deles, não podendo deixar que

nada dê errado. Em outra cena Mr. White repassa com Mr. Orange o planejamento do

roubo, confirma a função de cada um: “E a garota?”, Mr. Orange responde “Fica

sentada no meu pau”, como se essa fosse a única maneira para acalmar uma mulher em

uma situação de risco, no caso o assalto. Mr. White lança uma situação hipotética,

“Uma mulher pode falar com você. Olhe-a como se fosse amassar a cara dela. Vai se

calar”, já quando se refere ao homem, o gerente do lugar do assalto, “Se deixar você

nervoso, vai se achar o máximo.” Aqui ele situa a diferença comportamental entre um

homem e uma mulher sob pressão, o homem forte e racional que se sente o máximo por

conseguir irritar outro homem e a mulher, resumida em duas coisas: histerismo e

submissão, algo que será sensivelmente subvertido em uma cena posterior envolvendo

Mr. Orange e Mr. White. Como última tentativa de escapar da morte recorre-se a figura

da mãe, “Juro pela minha mãe que foi isso que aconteceu” afirma Mr. Orange na cena

final onde inventa uma desculpa por ter matado Mr. Blonde – que tortura e quase

queima um policial vivo sem o menor remorso, – história que não convence. Mr.

Orange recorre à força feminina assim como quando volta a procura de sua aliança, ele

jura em falso sobre o nome da mãe que é utilizada como garantia de verdade, sua última

tentativa para a salvação.

Ao mesmo tempo em que temos mulheres citadas de formas rudes e

extremamente machistas, idealizadas por seus atributos físicos, o tipo masculino

também é idealizado, a receita a girl and a gun já explicada por Morin são os dois “sóis

gêmeos” (p. 110) convivem, desenvolvem e se confundem em uma das cenas ápices do

filme, um momento de histeria que resume a sobreposição dos estereótipos. Mr. Orange

baleado esgota todas as possibilidades físicas de salvamento, agora inválido,

gravemente ferido e jorrando sangue, perde o controle da situação e recorre a gritaria e

suplicações, – lembrando que em seu flashback de história falsa, ele descreve uma

garota histérica quando testada em seus limites por policias – desequilibrado como essa

garota, ele implora por socorro diante da violência que sofreu, seu corpo ferido se iguala

ao delicado e fraco corpo das mulheres que a princípio, só podem pedir ajuda.

Essa inversão de papéis se dá por conta de uma mulher. Lançada para fora de

seu carro sem a mínima delicadeza por dois homens estranhos, Mr. Orange e Mr. White,

age sobre grande pressão emocional. No momento em que é atirada do automóvel saca

um revólver guardado no porta-luvas – algo supreendentemente contingente – e atira na

barriga de um de seus agressores e logo em seguida é morta com um tiro no peito pelo

mesmo homem que ela atingiu, Mr. Orange. Apesar de aparecer em pouco menos de 15

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segundos a personagem que mata não diz sequer uma palavra, apenas age, e esse é o seu

maior destaque – desprovida do direito de falar ou mesmo de se negar a deixar o carro,

ela age impulsivamente, não tem tempo para longos discursos – decide as pressas se

defender, e a única forma de fazê-lo é recorrendo a violência: o diálogo não funciona

mais, apela-se para o revólver. O estopim, o simples ato concretizado por essa mulher

de atirar em um homem edifica toda a história, afinal, ainda que ela não seja culpada da

confusão anterior: o dispare do alarme na joalheria, na verdade uma armadilha policial,

causa a reação violenta e psicótica de Mr. Blonde de atirar em todo mundo. O fato de

ela ter atirado no policial disfarçado deixando-o a beira da morte além de não resolver

sua situação de vítima, já que ela também morre, só contribui para o sentimento de

estupefação de Mr. Orange com o tiro que acaba de levar de uma moça aparentemente

indefesa, “Não acredito que ela me matou. Quem imaginaria?”.

A violência imprevista dessa mulher coopera para o desespero que resulta em

gritaria, a princípio apenas Mr. White – o mais próximo de Mr. Orange, tenta acalmá-lo

fazendo-o repetir para si mesmo que tudo ficará bem, mesmo consciente da situação do

ferido – precisa fazer com que Mr. Orange aguente firme até o atendimento médico. Em

momentos críticos a necessidade do apoio em alguma verdade é notória, e a verdade a

que o policial baleado se apega é ao nome verdadeiro de seu parceiro, escondido pelo

codinome distribuído por Joe Cabot antes do assalto. Mr. White em um ato de bondade

revela seu verdadeiro nome ao policial em um momento de desespero e como conforto e

atenuação das dores físicas. Ao mesmo tempo em que essa verdade parece aliviar um

pouco a dor do ferido, ela coloca Mr. White em uma situação de risco, abalando a

confiança entre eles – Mr. White não pode deixar Mr. Orange em um hospital, pois ele

já tem conhecimento de seu verdadeiro nome, de onde ele vem e sua especialidade, e

como observa o paranóico, neurótico e também histérico Mr. Pink, “Se o pegarem, nos

pegarão, e isso não pode acontecer. E acha que a culpa é minha? Não disse meu nome,

nem de onde sou.”

Conclusão

A mulher em “Cães de Aluguel” visualiza singelas mudanças da sua já há muito

estabelecida representação no cinema muito bem apontada por Edgar Morin. A partir

principalmente do terceiro longa-metragem do diretor Quentin Tarantino, “Jackie

Brown” (1997), a figura da mulher toma outras proporções com um filme que resgata o

gênero exploitation da década de 70, trabalhando a figura feminina sobre uma

perspectiva sensivelmente mais madura.

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Apesar da imagem datada de uma época resgatada pelo cineasta por conta da sua

política de homenagens e nostalgia, percebemos conteúdos criativos. Como observa

Linda Hutcheon (1991) sobre a poética pós-modernista em uma construção do “e…e”,

ou seja, ao invés de uma oposição entre novo e velho, existe uma junção de ambos que

dá origem a algo diferente. Entretanto, Quentin Tarantino não deixa de demonstrar a

estagnação da representação feminina no cinema que, em meados da década de 60

começa a tomar outras formas.

As transformações do cinema no geral e seus avanços tecnológicos alteram o

modo como os filmes são feitos, fazendo com que não dependam mais de sistemas

monolíticos baseados em investimentos “conforme exemplificado da melhor forma por

Hollywood nas décadas de 30,40 e 50” (MULVEY, p.439). O cinema alternativo cria

espaço para o enfrentamento das regras do cinema dominante e de como ele atenta para

a formação humana. A partir disso Tarantino experimenta a alternância de

possibilidades entre os dois cinemas, ao mesmo tempo dando voz as suas personagens e

calando-as, “o que é periférico nos textos pode ser tão significativo quanto o que é

nuclear” (KELLNER, p.148), a mulher secundária desconstrói o vazio, contradiz e

enfraquece através das suas histerias o que foi dito, subvertendo o estereótipo da mulher

responsável pela atenuação da brutalidade e violência.

O seu corpo ausente, ainda que possamos identificar duas mulheres, mas apenas

uma de extrema importância para a trama, introduz uma figura que não precisa aparecer

para obter relevância, sua constante citação a coloca como objeto dos comentários

cômicos que surgem em momentos de caos causados por aquele que fala, não podendo

ser evitado. O homem abriga um território feminino que lhe é natural, como já

observado por Camille Paglia, o que coloca a mulher em um patamar de importância

despendida inconscientemente pelos próprios homens, já que através delas eles

reafirmam suas fantasias de verdadeiros homens viris.

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Universidade Metodista de São Paulo Cátedra UNESCO/UMESP de Comunicação para o Desenvolvimento Regional

Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação

PENSACOM BRASIL – São Bernardo do Campo, SP – 16 a 18 de novembro de 2015

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