na melodia do riso - analise do humor nas letras da mpb no estado novo

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5/23/2018 NaMelodiaDoRiso-AnaliseDoHumorNasLetrasDaMPBNoEstadoNovo-slidepdf.... http://slidepdf.com/reader/full/na-melodia-do-riso-analise-do-humor-nas-letras-da-mpb-no    R   e   s   u   m   o    /    A    b   s    t   r   a   c    t    /    R   e   s   u   m   e   n 11 Na melodia do riso: análise do humor nas letras da MPB no Estado Novo Ana Cristina M. Spannenberg Jornalista graduada pela Universidade de Passo Fundo (RS), mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBa e doutoranda em Ciências Sociais pela UFBa. RESUMO O texto mostra o humor nas letras de samba produzidas no período de 1930-45, basean- do-se na idéia de Bakhtin de que o riso pode servir para burlar, de forma sutil, a ordem estabelecida, funcionando como forma de resistência. Discute o modelo de moderniza- ção proposto por Getúlio Vargas, relata o nascimento da Música Popular Brasileira, com ênfase no samba, e a forma como esse ritmo foi utilizado como “arma de resistência”. Palavras-chave: humor, samba, Música Popular Brasileira, Estado Novo ABSTRACT This text shows the form of humour in the samba´s songs made between 1930-45, based on Bakhtin´s notion about the laugh and how it can work to overwhelm, in a very subtle way, the stablished order, acting like a resistence form. We discuss the modernization model proposed by Getulio Vargas, the Brazilian Popular Music´s birth, emphasizing the samba, and the way the rhythm has been employed as a “resistence gun”. Keywords : humour, samba, Brazilian Popular Music, New State. RESUMEN El texto mostra el humor en las músicas de samba que han sido producidas en el período de 1930-45, basándose en la idea de Baktin de que la risa puede ser empleada para burlar, de manera sutil, el orden establecido, funcionando como forma de resis- tir. Discute el modelo de modernización propuesto por Getulio Vargas, relata el nacimiento de la Música Popular Brasileña, con énfasis en la samba, e la manera que ese ritmo fue empleado como “arma de resistencia”. Palabras clave: humor, samba, Música Popular Brasileña, Estado Nuevo.

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    11Na melodia do riso: anlise do humor nasletras da MPB no Estado Novo

    Ana Cristina M. SpannenbergJornalista graduada pela Universidade de Passo Fundo (RS), mestre em Comunicao e

    Cultura Contemporneas pela UFBa e doutoranda em Cincias Sociais pela UFBa.

    RESUMO

    O texto mostra o humor nas letras de samba produzidas no perodo de 1930-45, basean-

    do-se na idia de Bakhtin de que o riso pode servir para burlar, de forma sutil, a ordem

    estabelecida, funcionando como forma de resistncia. Discute o modelo de moderniza-

    o proposto por Getlio Vargas, relata o nascimento da Msica Popular Brasileira, com

    nfase no samba, e a forma como esse ritmo foi utilizado como arma de resistncia.

    Palavras-chave: humor, samba, Msica Popular Brasileira, Estado Novo

    ABSTRACT

    This text shows the form of humour in the sambas songs made between 1930-45,

    based on Bakhtins notion about the laugh and how it can work to overwhelm, in a

    very subtle way, the stablished order, acting like a resistence form. We discuss the

    modernization model proposed by Getulio Vargas, the Brazilian Popular Musics birth,

    emphasizing the samba, and the way the rhythm has been employed as a resistence

    gun.

    Keywords: humour, samba, Brazilian Popular Music, New State.

    RESUMEN

    El texto mostra el humor en las msicas de samba que han sido producidas en el

    perodo de 1930-45, basndose en la idea de Baktin de que la risa puede ser empleada

    para burlar, de manera sutil, el orden establecido, funcionando como forma de resis-

    tir. Discute el modelo de modernizacin propuesto por Getulio Vargas, relata el

    nacimiento de la Msica Popular Brasilea, con nfasis en la samba, e la manera que

    ese ritmo fue empleado como arma de resistencia.

    Palabras clave: humor, samba, Msica Popular Brasilea, Estado Nuevo.

  • 142 Dilogospossveis

    Com humor e sutileza, a Msica Popular Brasileira serviu como espao de resistncia

    ao modelo desenvolvimentista que o governo de Getlio Vargas tentava implantar desde

    que chegou ao poder, em 1930. Essa apropriao do riso como instrumento de crtica ,

    de acordo com Rachel Soihet (1998: 12), uma prtica antiga, que alcanou grande

    expressividade na Idade Mdia. Durante o Renascimento, o riso constituiu-se numa das

    formas capitais pelas quais se expressava uma viso crtica da verdade sobre o mundo

    na sua totalidade, sobre a histria, sobre o homem. (SOIHET, 1998: 13)

    Mikhail Bakhtin, lingista russo, em sua obra A cultura popular na Idade Mdia e no

    Renascimento: o contexto de Franois Rabelais, define as funes gerais do riso na

    evoluo histrica da cultura e da literatura, a partir da anlise das obras do escritor

    medieval. Segundo ele,

    o verdadeiro riso, ambivalente e universal, no recusa o srio,

    ele purifica-o e completa-o. Purifica-o do dogmatismo, do carter

    unilateral, da esclerose, do fanatismo e do esprito categrico,

    dos elementos de medo ou intimidao, do didatismo, da ingenui-

    dade e das iluses, de uma nefasta fixao sobre um plano nico,

    do esgotamento estpido. O riso impede que o srio se fixe e se

    isole da integridade inacabada da existncia cotidiana. Ele resta-

    belece essa integridade ambivalente (BAKHTIN, 1999: 105).

    E essa tnue fronteira entre o srio e o cmico um dos pontos mais explorados

    pelas letras das msicas populares, mais especificamente, pelo samba durante o Estado

    Novo. Nesse processo, a msica menos um instrumento de resistncia declarada e

    mais uma brincadeira, uma forma de burlar, driblar o sistema imposto. Por este motivo,

    Soihet (1998: 154) identifica os sambas desse perodo (bem como toda a organizao

    que traziam consigo, as manifestaes carnavalescas populares como um todo), com o

    que Bakhtin chama de riso festivo: esse riso ambivalente [grifo do autor]: alegre e

    cheio de alvoroo, mas ao mesmo tempo burlador e sarcstico, nega e afirma, amorta-

    lha e ressuscita, simultaneamente (BAKHTIN, 1999: 10).

    A inteno desse tipo de riso quebrar as hierarquias, inverter as posies sociais,

    j que encara todos como iguais, brincando juntos na festa popular, e desfaz, ainda que

    por alguns momentos, os aspectos srios e amedrontadores da sociedade. O riso deve

    desembaraar a alegre verdade sobre o mundo das capas da mentira sinistra que a

    mascaram, tecidas pela seriedade que engendra o medo, o sofrimento e a violncia

    (BAKHTIN, 1999: 150). De acordo com Maurcio Tavares (2002), o humor visto como

    Ana Cristina M. Spannenberg

  • 143Dilogospossveis

    brecha ou fratura, no pensamento dominante cumpriu, e cumpre, um importante papel

    na Amrica Latina, especialmente no Brasil. Lugar em que se misturam e se confrontam

    desde a origem colonial diferentes vises de mundo.

    O presente ensaio pretende analisar, de forma bastante sucinta, a utilizao do hu-

    mor em algumas letras de sambas produzidas no perodo de 1930 e 1945. Assim, busca-

    remos especificamente aquelas que se apresentam como forma de resistncia ao mode-

    lo social imposto, mesmo depois do Estado apropriar-se da msica e passar a utiliz-

    la para seus interesses; para isso, utilizaremos a idia de burla e resistncia proposta

    por Bakhtin. Assim, a msica e o humor seriam percebidos aqui como armas das cama-

    das mais pobres para expressar seu descontentamento com a situao social a que

    estavam submetidas e, portanto, uma forma de driblar as regras e desfazer o lado srio

    e amedrontador da sociedade, como descrevia Bakhtin, falando sobre o carnaval medi-

    eval.

    Para tanto, o texto est divido em trs partes distintas. Num primeiro momento,

    abordaremos o modelo poltico, econmico e ideolgico imposto pela ditadura de Getlio

    Vargas, centrado na noo de modernizao e exaltando a figura do trabalhador. Logo

    aps, apresentaremos um breve histrico da msica popular brasileira, detendo-nos

    mais especificamente no ritmo samba. Por fim, discutiremos a utilizao do humor nas

    letras de samba, trazendo alguns exemplos que enfatizam especialmente as temticas

    do trabalho e a presena da figura do malandro.

    A imposio de um modelo

    Com a queda da oligarquia cafeeira e o declnio da agricultura, iniciou-se, no Brasil,

    um processo de industrializao, com grande aumento na urbanizao. Tal processo

    segue o que Renzo de Felice (1978: 35-9) chama de linha evolutiva europia, que

    apontava no sentido de uma racionalizao crescente, com o progresso e o aumento da

    tecnologia. Mas o fim da I Guerra Mundial gera uma crise da razo principal eixo da

    linha evolutiva europia , o que d margem ao surgimento de um discurso ideolgico.

    De acordo com Hannah Arendt (1989), o discurso ideolgico um fenmeno recente,

    caracterstico das sociedades de massa, ou seja, das sociedades industriais e urbanas;

    pois a massa considerada como pequenos fragmentos da sociedade que tm a sua

    multiplicidade simplificada por uma ideologia. As grandes potencialidades das ideolo-

    gias no foram descobertas antes de Hitler e Stlin (ARENDT, 1989: 520), afirma ela,

    para quem a principal caracterstica do discurso ideolgico ocultar as contradies, os

    conflitos, gerados, principalmente, pela luta de classes.

    Utilizando-se do discurso ideolgico, para combater o liberalismo e o comunismo,

    Ana Cristina M. Spannenberg

  • 144 Dilogospossveis

    surge, no Brasil, um governo autoritrio, baseado no cooperativismo fascista da Itlia.

    Tal governo tinha como principal caracterstica a manipulao das massas e seu objeti-

    vo, conforme Maria Antonacci (1993), era a construo de uma nova ordem e de um

    novo homem. Esta nova ordem baseava-se na centralizao poltica, ou seja, preten-

    dia-se que o Estado fosse intervencionista; desejava-se tambm a industrializao ba-

    seada na Organizao Racional do Trabalho, pois o pensamento vigente considerava que

    a industrializao era o nico caminho para o desenvolvimento; e, por fim, o nacionalis-

    mo era o que sustentava todo esse projeto, pois tudo era feito buscando-se uma Nao

    Brasileira forte e independente das tendncias internacionais.

    Deve-se ressaltar, dentro dos aspectos dessa nova ordem, aquele que pretendia a

    industrializao brasileira baseada na Organizao Racional do Trabalho pois, a partir

    desse aspecto, pode-se observar a nfase dada pelo governo autoritrio questo do

    trabalho. No Manifesto de Outubro da Ao Integralista Brasileira l-se, como objetivo

    do governo de Getlio: transfigurar o trabalhador no heri da nova Ptria, no homem

    superior, iluminado pelos nobres ideais de elevao moral, intelectual e material. Tais

    objetivos, contudo, vo de encontro a uma parcela da massa que no se encaixa no

    mercado de trabalho assalariado: a massa ex-escrava.

    A crescente urbanizao trouxe um grande nmero de ex-escravos para o Rio de

    Janeiro, ento capital da Repblica que, sem uma infra-estrutura necessria para abrig-

    los, e aps um movimento de limpeza, empurrou-os para favelas nos morros da peri-

    feria. A vida dessa parcela da massa pode ser observada nas msicas da poca, nas

    quais os temas mais recorrentes eram a malandragem, a vida bomia e, em oposio, o

    trabalho e as iluses de fortuna do povo.

    Conforme Rachel Soihet (1998), esse processo era uma exigncia para a instaurao

    plena do capitalismo no Brasil, porque era preciso ajustar a classe trabalhadora. Tor-

    nava-se necessrio canalizar todas as energias dos populares para essa atividade e, por

    isso, procurava-se incentivar neles valores e formas de comportamento que passassem

    pela disciplinao rgida do espao e do tempo de trabalho, estendendo-se ainda a todas

    as esferas da vida (SOIHET, 1998: 26-7).

    Outro aspecto bastante valorizado no novo modelo imposto aos brasileiros era o

    nacionalismo, utilizado para tentar forjar a construo da Nao Brasileira. A tendn-

    cia nacionalista na msica vinha desde o final do sculo XIX, quando as naes europias

    que ainda no tinham constitudo-se efetivamente como Estado Nao precisavam bus-

    car, em suas razes, algo que as unisse, algo como um esprito nacional. Tal tendncia

    chegou ao Brasil e foi constatada pela primeira vez na composio O Guarani, de Carlos

    Gomes, e evoluiu e atingiu seu pice com a Semana de Arte Moderna de 1922, mas o seu

    Ana Cristina M. Spannenberg

  • 145Dilogospossveis

    principal representante foi o msico Heitor Villa-Lobos.

    O antroplogo Hermano Vianna, no livro O mistrio do samba, apresenta os objeti-

    vos e as estratgias utilizadas nesse projeto de nacionalizao e modernizao da

    sociedade brasileira (VIANNA, 1999: 127). Para ele, elementos diferentes de vrias

    culturas foram agrupados e deram forma ao que se definiu como cultura brasileira.

    Entretanto, os prprios envolvidos (ele cita, por exemplo, Mrio de Andrade, referindo-

    se ao romance Macunama) sabiam que esse seu nacionalismo era uma opo (e uma

    construo) poltica, adequada ao momento pelo qual o pas estava passando, e no o

    resultado de uma descoberta da essncia do povo brasileiro ou de suas razes culturais

    imutveis (ibidem, p.105). Nessas circunstncias, o samba carioca foi incorporado e

    apresentado ao mundo como smbolo de nacionalidade (ibidem, p. 111).

    Arma da resistncia

    A msica brasileira nasce nesse contexto, que mistura as razes africanas do negro

    com as influncias europias e, em menor escala, os ritmos indgenas, no que Gilberto

    Vasconcellos e Matinas Suzuki Jr. (1986) chamam de sntese original. Para os autores,

    a msica popular cresce contempornea da misria, do

    desequilbrio, do inconformismo, da rebeldia: febre, cangao,

    Canudos, Chibata, Coluna Prestes, movimentos proletrios, Mo-

    dernismo... No seu andamento, desfraldando o estandarte dos

    (en)cantos, a msica popular apresentava-se como uma das vozes

    da voz geral que desafinava. Arma presa na garganta. Operrios,

    malandros, vadios, bomios o desajuste sendo entoado por no-

    vos timbres. Acende-se o luminoso de um novo Brasil, urbano-

    industrial, de personalidade inquieta e ruidosa: Brasil sonoro. As

    classes dominadas passavam a movimentar-se no terreno poltico-

    social, a conquistar um espao cultural, a reescrever a Histria

    do pas (P. 503).

    O nascimento do ritmo samba tambm gera conflitos, embora alguns tericos afir-

    mem que o ritmo a voz do morro. Rachel Soihet diz que a Cidade Nova, nas proximi-

    dades da Praa Onze, no Rio de Janeiro, teve um papel fundamental nesse desenvolvi-

    mento. Nessa rea, onde fermentava o samba, negros e mestios acabaram se impon-

    do culturalmente e criando o que seria o carnaval das camadas populares do Rio de

    Janeiro, marcado pelo tom africano, que se impusera cultura pequeno-burguesa tam-

    Ana Cristina M. Spannenberg

  • 146 Dilogospossveis

    bm a existente (SOIHET, 1998: 101). Cabe destacar que a autora utiliza a expresso

    carnaval das camadas populares porque, desde meados do sculo XIX, o carnaval j

    era costume no Brasil, porm nos moldes europeus e festejado nas classes altas.

    A irreverncia , desde os primeiros sambas, uma das marcas do novo ritmo. Citan-

    do fragmentos de notcias de jornais do incio do sculo XX, a mesma autora afirma que

    a associao do samba com a desordem explcita e, por este motivo, era necessrio

    encontrar estratgias criativas, para driblar a represso (ibidem, p.36-37). Nessa

    construo, Soihet admite que, apesar das resistncias, o samba deixou-se influenciar

    por manifestaes da cultura dominante, tanto quanto de segmentos subalternos

    (ibidem, p. 45). No deixa de enfatizar, entretanto, que a elite dominante urgia acele-

    rar a modernizao e a higienizao da cidade [Rio de Janeiro], atravs de sua remode-

    lao urbanstica [...] o universo cultural deveria ser revisto, estimulando-se sua

    homogeneizao por meio da difuso do saber erudito [...] as crenas e prticas popu-

    lares manifestaes de atraso e ignorncia precisavam ser expurgadas (ibidem,

    p.48).

    Nesse contexto, a reao popular era evidente e pode ser constatada em processos

    criminais, crnicas do perodo e tambm nas msicas. Em pouco tempo, porm, os

    populares comeavam a perceber que, em vez do confronto com aqueles que pretendiam

    oprimi-los, era prefervel lanar mo da obliqidade para atingir seus objetivos e, as-

    sim, garantir seu espao (ibidem, p. 83). Essa idia do samba como uma arma de

    resistncia tambm defendida por Maria ngela Salvadori (1987), que afirma:

    o samba, enquanto uma das manifestaes da cultura popu-

    lar, apresentava um carter marcadamente revolucionrio e

    contestatrio, constituindo-se numa recusa severa disciplina

    imposta pelos tempos modernos e, mais adiante, ao referir-se s

    letras das msicas, a crtica feita com elementos ldicos e o

    humor , por excelncia, um instrumento de crtica (SALVADORI,

    1987: 116-7).

    A institucionalizao do ritmo, conforme Soihet, seria resultado de uma negocia-

    o, tendo em vista as possibilidades que se abriam com o reconhecimento oficial

    (SOIHET, 1998: 142). Ela teria acontecido com o estabelecimento da Unio das Escolas

    de Samba, em 1934, e derivaria de trs fatores: uma melhor organizao dos sambis-

    tas, facilitao da divulgao e disseminao do samba para a sociedade; estreitamento

    das relaes entre as escolas e as instituies da sociedade responsveis pelo carnaval;

    Ana Cristina M. Spannenberg

  • 147Dilogospossveis

    e ainda a necessidade de uma instncia que defendesse os direitos dos sambistas, espe-

    cialmente no que dizia respeito autoria das msicas (ibidem, p.141). Porm, essa

    idia contestada por Hermano Vianna, que discorda do que chama de histria mtica

    da resistncia do popular (VIANNA, 1999: 115). Para confirmar sua afirmao, usa o

    exemplo do grupo Os Oito Batutas, criado por Pixinguinha e Donga que, ainda na

    segunda dcada do sculo XX, j faziam diversas apresentaes de samba, at mesmo

    fora do pas (ibidem, p.116). Para ele, a elite cultural sempre conviveu bem com o

    samba, por antever nele uma possibilidade de uso dentro do seu projeto de nacionalis-

    mo.

    Relao conflituosa

    Independente da aceitao popular ou de uma possvel resistncia ao samba, a rela-

    o conflituosa entre samba e Estado clara e pode ser percebida pelas letras. Entre as

    principais temticas, a do trabalho, ou melhor, de oposio a ele, a que parece conter

    demonstraes mais claras da utilizao do humor como forma de resistncia. Gilberto

    Vasconcellos e Matinas Suzuki Jr. afirmam que a esfera do trabalho projeta-se sobre a

    MPB como uma poderosa imagem invertida [grifo do autor]; o exerccio sistemtico e

    radical de negao dos valores positivamente elevados pelo trabalho tornou-se o assun-

    to potico predileto de nosso compositor popular, nas dcadas de 20 e 30 deste sculo

    uma das pocas mais fecundas e notveis da MPB (1986: 505).

    A figura central das msicas sob esse tema a do malandro. Com essa crescente

    preferncia temtica, a figura do malandro passou a ser confundida com a pessoa do

    compositor, chegando ao que Vasconcellos e Suzuki Jr. chamam de processo progressivo

    de interiorizao de uma personalidade na outra, colaborando para que samba e malan-

    dragem viessem a ser percebidos como sinnimos. A malandragem tornou-se um estere-

    tipo perseguido pelos compositores brasileiros: a ilusria imagem do sucesso do com-

    positor ou do cantor emoldurada e dourada pela indstria musical tornou-se um smbolo

    de ascenso social pela caminhada mais curta e menos tortuosa, fora das multides do

    trabalho no Brasil. (ibidem, p.509-10).

    Citando o socilogo Fernando Henrique Cardoso, os autores lembram que a opo

    pelo trabalho, por recordar a condio anterior de escravido, aparecia para o negro

    como uma qualidade anti-humana por excelncia, sendo necessrio, por isso, que o

    homem negro se afirmasse primeiro como ocioso [grifo do autor], para sentir-se livre e

    poder recomear todo o caminho da lenta e penosa reconstruo de si na sociedade de

    classes que comeava a formar-se (CARDOSO apud VASCONCELLOS E SUZUKI JR., 1986:

    513). Para Maria ngela Salvadori, nesse momento de reafirmao, o samba represen-

    Ana Cristina M. Spannenberg

  • 148 Dilogospossveis

    tava uma crtica irnica e jocosa ao ritmo de vida que vinha se impondo nas cidades

    (SALVADORI, 1987: 114).

    possvel perceber dois momentos distintos que diferenciam as letras das msicas

    nessa temtica: um o de resistncia clara e o outro de uma pretensa regenerao

    que, ainda assim, apresenta sinais de no adeso total ao modelo imposto. No primeiro,

    o samba o antnimo do trabalho, conforme Salvadori, e marca um protesto do

    indivduo que no encontra espao no mercado nascente. As msicas O que ser de mim,

    de Ismael Silva, Nilton Bastos e Francisco Alves, gravada em 1931 (citada anteriormen-

    te), e Leno no pescoo, de Wilson Batista, gravada em 1933, so bons exemplos dessa

    postura.

    Meu chapu do lado, tamanco arrastando

    Leno no pescoo, navalha no bolso

    Eu passo gingando, provoco e desafio

    Eu tenho orgulho de ser to vadio

    Sei que eles falam desse meu proceder

    Eu vejo quem trabalha andar no miser

    Eu sou vadio porque tive inclinao

    Eu me lembro, era criana tirava samba-cano

    (Leno no pescoo)

    Leno no pescoo, alm da negao clara do trabalho e afirmao do modo de vida

    malandro (Eu tenho orgulho de ser to vadio / Eu vejo quem trabalha andar no

    miser), explicita a relao desse ltimo com o samba (dois ltimos versos).

    Em outras letras desse perodo, mesmo quando o trabalhador aparecia, era a des-

    crena no trabalho e a reclamao bem-humorada que tomava o espao:

    Meu pai trabalha tanto

    Que eu j nasci cansado

    Ai patro, sou um homem liquidado

    No meu barraco chove

    Meu terno est furado

    Ai patro, trabalhar no quero mais

    Eu no sou caranguejo

    Que s sabe andar pra trs

    (Nasci cansado, Wilson Batista e Henrique Alves)

    Ana Cristina M. Spannenberg

  • 149Dilogospossveis

    A figura do malandro carioca e seus trejeitos foi incorporada tambm por outros

    compositores que no se encaixavam no perfil negro e pobre, morador de subrbios do

    Rio de Janeiro. Noel Rosa, branco, de classe mdia e estudante de Medicina, um

    exemplo disso. O fascnio que o universo da malandragem exercia sobre ele rendeu

    canes como Com que roupa (1929), Trs apitos (1933) e Conversa de botequim (1935),

    nas quais o personagem retratado tem traos do malandro:

    Sou do sereno, poeta muito soturno

    Vou virar guarda-noturno e voc sabe por qu

    Mas voc no sabe que enquanto voc faz pano

    Fao junto do piano esses versos pra voc

    (Trs apitos)

    Como resultado da famosa polmica que envolveu Noel Rosa e Wilson Batista, surgiu

    Rapaz folgado (1932), em que Noel critica o autor de Leno no pescoo e afirma que a

    expresso rapaz folgado seria melhor que malandro, considerada uma palavra

    derrotista, que s serve para tirar todo o valor do sambista. Alm de Noel Rosa, outros

    autores, como Adoniran Barbosa, em So Paulo e, dcadas mais tarde, Jackson do Pan-

    deiro, com ritmos do nordeste e, em menor escala, Dorival Caymmi, deixaram-se influ-

    enciar pela temtica. Este ltimo apenas mostra alguns traos de malandragem na m-

    sica Eu no tenho onde morar (1960).

    Foi o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo, criado em

    1939, que, segundo Rachel Soihet, considerando que havia um excesso de sambas

    fazendo a apologia da malandragem, pressionou os compositores para que adotassem

    temas de exaltao ao trabalho e execrao da boemia (SOIHET, 1998: 108). A partir

    da, inicia o segundo momento, quando as letras exaltam o malandro regenerado e o

    trabalho como nica via para a felicidade. Entre as letras, o maior exemplo talvez seja

    o clssico Bonde So Janurio, de Wilson Batista e Ataulfo Alves, gravada em 1940, cuja

    alterao na letra de conhecimento pblico. Podemos notar a diferena entre a verso

    original e aquela que prevaleceu:

    Quem trabalha no tem razo

    Eu digo, no tenho medo de errar

    O bonde So Janurio leva mais um otrio

    Sou eu que vou trabalhar

    Ana Cristina M. Spannenberg

  • 150 Dilogospossveis

    ..................

    Quem trabalha que tem razo

    Eu digo e no tenho medo de errar

    O bonde So Janurio leva mais um operrio

    Sou eu que vou trabalhar

    Antigamente eu no tinha juzo

    Mas resolvi garantir meu futuro

    Vejam vocs: sou feliz, vivo muito bem

    A boemia no d camisa a ningum

    De acordo com Salvadori, essas letras demonstram que a resistncia exercida no

    crtico senso de humor ou no silncio, foi chamada a participar de um projeto, onde

    um dos objetivos, seno o maior deles, era a camuflagem do conflito (SALVADORI,

    1987: 110). A autora continua afirmando que, para destruir a resistncia representanda

    pelo samba, o Estado resolveu incorpor-lo: a comercializao do samba foi o primeiro

    momento dessa incorporao (ibidem, p. 114).

    Essa incorporao, de acordo com Hermano Vianna, fazia parte do plano de unifica-

    o nacional (VIANNA, 1999: 109) para a criao da cultura brasileira. Conforme o

    autor, Getlio Vargas tinha conscincia da importncia que os meios de comunicao,

    especialmente o rdio, teriam nesse processo. Por este motivo, at mesmo o programa

    de divulgao oficial do Governo A Hora do Brasil tinha um espao reservado msica

    popular. tambm desse perodo o fenmeno Z Carioca, que passa a ser exportado

    como imagem nacional pelos traos de Walt Disney, apresentando uma viso do malan-

    dro como esperto, sem a conotao negativa do perodo anterior.

    As letras dos sambas dessa segunda fase, embora retratem um malandro regenera-

    do, no deixam de lado a ironia e opem quase sempre o tempo e o espao do trabalho

    ao tempo e espao do lazer, apresentado como mais divertido. Observe-se o exemplo

    da msica Ganha-se pouco, mas divertido, de Wilson Batista e Ciro de Souza, gravada

    em 1941:

    Ele trabalha de segunda a sbado

    Com muito gosto, sem reclamar,

    Mas no domingo ele tira o macaco

    Embandeira o barraco

    Bota a famlia para sambar

    Ana Cristina M. Spannenberg

  • 151Dilogospossveis

    L no morro ele pinta o sete

    Com ele ningum se mete

    Ali ningum fingido

    Ganha-se pouco, mas divertido

    Ou ainda no samba Senhor delegado, de Antnio Lopes e Ja:

    Senhor delegado

    Seu auxiliar est equivocado comigo

    Eu j fui malandro

    Hoje estou regenerado

    Os meus documentos

    Eu esqueci mas foi por distrao

    Comigo no, sou rapaz honesto

    De tal forma, a resistncia do samba encontrou um modo de manter viva a figura do

    malandro e tudo o que ela representava, driblando astutamente a resistncia imposta

    pelo governo ditatorial. Como sempre, o instrumento para isso foi o humor, a ironia,

    presente em quase todos os sambas, mesmo naqueles que fogem a essa temtica. O

    riso, novamente, como na Idade Mdia estudada por Bakhtin, inverte a hierarquia e o

    poder.

    Gilberto Vasconcellos e Matinas Suzuki Jr. tentam sintetizar essa viso da msica

    como instrumento de crtica:

    a presena ntima da cano na vida do brasileiro uma via

    de acesso ao poder de iluminar profanamente, de lanar uma luz

    sobre as coisas mais simples do mundo; atravs de uma composi-

    o no muito elaborada (humilde), ele vai recortando o objeto

    de seu estado natural, pintando-o com novas cores vivas; o oculto

    no bvio, o objeto no identificado, re-ve-la-o: o canto o

    prprio realce, enfatizando o real teor da beleza (VASCONCELLOS

    e SUZUKI JR., 1986: 521-22).

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    ANTONACCI, Maria A. A vitria da razo. So Paulo : Marco Zero, 1993

    Ana Cristina M. Spannenberg

  • 152 Dilogospossveis

    ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. So Paulo : Cia. das Letras, 1989.

    BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento: o contexto de

    Franois Rabelais. 4.ed. Trad. Yara Frateschi. So Paulo-Braslia: Edunb-Hucitec, 1999.

    DE DECCA, Edgar. 1930. O silncio dos vencidos. So Paulo Brasiliense, 1981.

    FELICE, Renzo de. Explicar o fascismo. Lisboa : Edies 70, 1978.

    MANIFESTO de Outubro da Ao Integralista Brasileira. Disponvel em:

    Acessado em: 02 jul 2002.

    SALVADORI, Maria ngela Borges. Malandras canes brasileiras. In: Revista Brasileira

    de Histria. v.7, n.13, set 86 / fev 87, p. 103-124.

    SOIHET, Rachel. A subverso pelo riso: estudos sobre o carnaval carioca da Belle poque

    ao tempo de Vargas. Rio de Janeiro : Editora Fundao Getlio Vargas, 1998.

    TAVARES, Maurcio. Crtica cultural no Brasil: pardia e ambivalncia. In: GOMES, Itania

    Maria Mota & SOUZA, Maria Carmem Jacob (Orgs.). Media e Cultura. Salvador : Facom/

    UFBA, 2002

    VASCONCELLOS, Gilberto; SUZUKI JR., Matinas. A malandragem e a formao da msica

    popular brasileira. In: FAUSTO, Boris. Histria Geral da Civilizao Brasileira. 2.ed.

    vol. 4. So Paulo : DIFEL, 1986. Captulo XI.

    VIANNA, Hermano. O mistrio do samba. 3. ed. Rio de Janeiro : Jorge Zahar: Editora da

    UFRJ, 1999.

    Ana Cristina M. Spannenberg