mutações da “grande política”

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Capítulo 5 da tese de doutorado de Bernardo C. Oliveira: "A Guerra Desesperada: Cultura e Política em Nietzsche", Ed.PUC /RJ, 2011.

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  • 5 A Guerra Desesperada: Percurso e dissoluo da Grande Poltica

    Um povo o rodeio que faz a natureza chegar a seis ou sete

    grandes homens. Sim: para em seguida evit-los. Alm do Bem e do Mal, 126

    5.1 Mutaes da Grande Poltica

    A expresso Grande Poltica, utilizada por Nietzsche em momentos

    diversos de sua obra, revela mais que uma perspectiva diferenciada sobre os

    problemas de natureza poltica; antes, se percebe um contexto terico complexo,

    depositrio dos problemas centrais de seu pensamento: o niilismo, a crtica da

    religio, da democracia, das cincias em ltima instncia, o problema da cultura.

    Alguns comentadores da Grande Poltica concordam que a expresso no

    nem acidental nem perifrica em relao a seu projeto filosfico global, mas

    origina-se (...) de suas preocupaes fundamentais190. Assim, a Grande Poltica

    se relacionaria tanto ao alargamento de sentido e horizonte para questes de

    natureza poltica191 quanto a uma conjuno de legislao filosfica e poder

    poltico192 que proporia metas em vistas de uma outra possibilidade de cultivo

    dos casos singulares e da cultura. De um modo geral, portanto, a Grande

    Poltica se relaciona com as possibilidades de cultivo do tipo-homem e da

    humanidade como um todo, ao mesmo tempo que gera um contradiscurso

    endereado pequena poltica expresso com a qual Nietzsche identifica os

    embates dinsticos e democrticos que assolam a Europa no momento em que

    escreve. Esta acepo, entretanto, compreende a aplicao da expresso nos

    fragmentos pstumos de 1888 e 1889, quando Nietzsche j defende a

    radicalizao como caminho para uma sociedade formada por tiranos-artistas.

    neste momento, sem dvida, que a expresso adquire contornos mais definidos.

    Entretanto, a Grande Poltica j aparece em 1878 enquanto necessidade do

    190 ANSELL-PEARSON, op. cit., p. 162. 191 GIACIA, Oswaldo. A Grande Poltica: Fragmentos. In: Cadernos da Filosofia: Cadernos de Traduo n 3, So Paulo, IFCH/UNICAMP, 2002b, p.8. 192 ANSELL-PEARSON, op. cit., p. 161.

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    desenvolvimento do poder193; e a partir de 1886, reaparece com outra

    configurao em Alm do bem e do mal e em outros escritos subsequentes. A

    Grande Poltica traa um percurso prprio na obra de Nietzsche, seguindo de

    perto mudanas e correes de rumo que marcam seu projeto de crtica

    retrospectiva e prospectiva da cultura.

    No entanto, em todas as ocorrncias da Grande Poltica, o sentido da

    palavra poltica no corresponde s prticas e ideias da poltica institucional, da

    poltica de gabinete, nem filosofia poltica contratualista, nem a quaisquer

    vertentes polticas, movimentos nacionais e regimes de governo, pois o que deve

    resplandecer na Grande Poltica no a nao, mas o homem mesmo colocado

    em Gegensatz (contraste) ao monstruoso processo de mediocrizao e

    rebaixamento produzido pela pequena poltica.194. De fato, a Grande Poltica se

    relaciona com esta preocupao tipicamente nietzschiana quanto ao destino da

    humanidade. Mas justamente atravs da reconstituio de sua trajetria que

    percebemos o quanto a Grande Poltica deve crtica da cultura e dos valores

    morais, tal como Nietzsche a concebeu inclusive se levarmos em conta a

    apario de um conceito fundamental em seu pensamento, a Vontade de Poder.

    Quer dizer: o processo de constituio da Grande Poltica acompanha de perto o

    desenvolvimento da crtica dos valores morais, problema central na obra de

    Nietzsche. a crtica dos valores morais, sua crtica da cultura e, ainda, sua

    concepo original do que vem a ser uma cultura, que concentra o emaranhado de

    temas definidores da Grande Poltica.

    A primeira ocorrncia da Grande Poltica articula dois momentos

    simultneos: uma crtica submisso individual aos valores superiores,

    particularmente, a adeso cega dos alemes ao projeto do Estado Nacional

    germnico; e adota como parmetro para esta anlise os aspectos gregrios da

    poltica e da cultura, exprimindo um tipo de observao sobre o tecido

    comunitrio marcado sobretudo pela anlise da conduta e dos modos de vida.

    Como concluso do captulo intitulado Um olhar sobre o Estado, em Humano,

    demasiado humano, podemos ler a respeito da grande poltica e suas perdas, em

    que Nietzsche chama ateno para um evento comum na histria da humanidade:

    193 M/A, 189. 194 VIESENTEINER, Jorge L.. A Grande Poltica e sua relao com os fragmentos inditos Kriegserklrung de Nietzsche. In: Revista de Filosofia, Curitiba, 2003, pp. 12-23.

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    o momento em que a massa est disposta a empenhar sua vida, seus bens, (...)

    para dar a si mesma tal fruio suprema e, como nao vitoriosa, tiranicamente

    arbitrria, dominar as outras naes195. Em Aurora, a Grande Poltica aparece

    como necessidade do desenvolvimento do poder (...) no apenas nas almas dos

    prncipes e poderosos, mas tambm nas camadas baixas do povo.196. Trata-se de

    um ponto de vista sobre a poltica que busca a constituio do poder na prpria

    conduta humana e no predica o desenvolvimento humano a elementos abstratos.

    Aqui, a Grande Poltica emerge como uma interpretao sobre a situao

    poltica europeia por meio da observao e da anlise das motivaes efetivas que

    orientam os grupamentos humanos. importante frisar que neste processo,

    embora Nietzsche rena elementos acerca da conduta geral dos indivduos o que

    permite que ele possa se referir a diversos tipos de moral de diferentes pases em

    outros trechos de sua obra , toma a Europa de seu tempo e, particularmente, a

    Alemanha, como caso singular.

    bem verdade que em Humano, demasiado humano e Aurora a Vontade

    de Poder ainda no ocupa o lugar privilegiado das obras posteriores nem

    citada. Porm, desde j, sugerimos que, ao menos em seu registro propriamente

    afetivo, isto , em sua relao com as possibilidades da conduta e da expresso

    individual, a Vontade de Poder aparea embrionariamente como pano de fundo

    para a Grande Poltica. Ansell-Pearson, por exemplo, embora conceba o

    problema moral em Nietzsche segundo uma suposta oposio entre moralidade e

    vida197, reconhece que ele recorre Vontade de Poder como contradiscurso

    modernidade poltica e a seus preceitos198. Mark Warren reserva um captulo

    inteiro Vontade de Poder, diferenciando cerca de sete acepes diferentes para o

    conceito: Vontade de Poder como prtica, pthos, physis, interpretao, histria,

    evoluo cultural e reflexo. De forma geral, entretanto, Warren afirma que a

    Vontade de Poder , sobretudo, uma crtica ontolgica da prtica, que diz

    respeito, em ltima instncia, s mltiplas possibilidades de interveno efetiva na

    195 MAI/HHI, 481. 196 M/A, 189. 197 Esta afirmao no leva em conta o fato de que Nietzsche dirige sua crtica no contra a moral ou a moralidade em si, mas contra os caminhos que os indivduos tomam quando no percebem que a moral conjuntural, histrica, e no possui o carter de verdade absoluta, mas fornece padres de comportamento especficos. Num certo sentido, a moral inevitvel, cabendo ao indivduo no se deixar dominar por ela. 198 ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche como pensador poltico Uma introduo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994, p. 169.

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    realidade. Para Nietzsche, esta gama de possibilidades no pode ser simplesmente

    subjugada por fora de uma lei moral, seja ela religiosa ou jurdica, sob pena de

    forjarmos uma perspectiva ilusria do homem e da humanidade. A Vontade de

    Poder no seria uma representao do mundo ou o mundo em si, mas uma viso

    de mundo interna s nossas estruturas de ao199, levando em considerao a

    discrepncia entre o discurso e a prtica, as aspiraes e os resultados. O

    diagnstico da Grande Poltica, neste primeiro momento, se baseia na

    observao microscpica dos elementos afetivos que norteiam os embates

    polticos e indica os sintomas daquilo que Nietzsche mais tarde identificar como

    enfraquecimento da vontade.

    Se a Grande Poltica, a princpio, pode ser tomada como alargamento

    de sentido e horizonte para questes polticas, este alargamento diz respeito,

    sobretudo, s possibilidades de reao individual contra os valores que tendem a

    domesticar a Vontade de Poder. Tomando o ponto de vista do problema da

    cultura, Nietzsche destrincha a necessidade do desenvolvimento do poder que

    caracteriza a primeira acepo da Grande Poltica, e destaca um certo regime

    afetivo comum, que submete a exceo regra como forma de produzir maiores

    espaos de conservao e regulao da comunidade. Por um lado, a violncia e a

    expropriao so expurgadas do trato pblico e canalizadas para fora segundo a

    rentvel economia da guerra e da institucionalizao da poltica. Mas, em

    contrapartida, os indivduos so utilizados como engrenagem de uma mquina

    totalmente voltada para a conservao da maioria em detrimento das excees o

    chamado processo civilizatrio. Nietzsche lamenta que, entre esses indivduos, os

    rebentos mais nobres () e espirituais sejam sacrificados em favor da maioria,

    para ele, um sintoma claro de rebaixamento cultural. A Grande Poltica

    testemunha um momento na obra de Nietzsche em que a Vontade de Poder se

    refere a uma certa espontaneidade afetiva, mais palpveis que as abstraes

    caractersticas da interpretao religiosa, jurdica e institucional.200 Ela ainda no

    uma grande poltica no sentido prospectivo que a definir mais tarde, mas pelo 199 WARREN, op. cit., p. 111. 200 Neste aspecto, notria a ligao entre o pensamento de Nietzsche com o de outros dois autores: Maquiavel e Espinosa. Maquiavel e a verit effetuale, a tomar sua prpria experincia efetiva no trato com o poder como parmetro para a reflexo; Espinosa e sua anlise dos afetos, descrita na parte III da tica, classificando o comportamento humano segundo critrios imanentes prtica efetiva. O que parece unir os trs autores, embora em contextos diferentes, a recusa absoluta de uma finalidade ontolgica da existncia. (v. CALVETTI, Carla Gallicet. Spinoza lettore del Machiavelli. Milo. Universit Cattolica del Sacro Cuore, 1972.)

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    carter moral que Nietzsche utiliza para interpretar o problema. A grandeza est

    no mtodo de observao, na possibilidade de interpretar, livre do peso normativo

    e repressivo caracterstico da filosofia poltica moderna. Nietzsche no parece

    aceitar de bom grado que o avano da razo cientfica e institucional possa de fato

    elevar o tipo-homem a estados mais completos de humanizao201. A igualdade

    preconizada pelo aparelho jurdico-institucional no procede, sobretudo se

    contrastarmos com a violenta histria da humanidade. A Grande Poltica, neste

    momento, resultado de um tipo de anlise incomum na histria da filosofia

    poltica: no figura somente como diagnstico de uma situao especfica, mas

    tambm como um modo de compreenso das relaes humanas. Esta obstinao

    coletiva, que Nietzsche denomina por ora Grande Poltica, no propriedade de

    nenhum povo, de nenhuma ptria, mas um elemento humano, demasiado humano.

    Tanto que Nietzsche considera esta obstinao parcialmente positiva, at que

    sobrevenham os elementos do nacionalismo, a delirante estupidez e ruidosa

    garrulice da burguesia democrtica202.

    Adiante, j no contexto do projeto crtico mais especificamente em Alm

    do Bem e do Mal e Genealogia da moral surge uma segunda inflexo da

    Grande Poltica:

    No apenas guerras na ndia e complicaes na sia devero ser necessrias para que a Europa se livre do seu maior perigo, mas tambm convulses internas, a desintegrao do imprio em pequenas unidades, e sobretudo a introduo da estupidez parlamentar, incluindo a obrigao de cada um ler seu jornal no caf da manh. No digo isso como se desejasse: o contrrio seria antes do meu agrado isto , um crescimento tal da ameaa russa, que a Europa teria que resolver tornar-se igualmente ameaadora, adquirindo uma vontade nica mediante uma nova casta que dominasse toda a Europa, uma demorada e terrvel vontade prpria que se propusesse metas por milnios para que enfim terminasse a longa comdia de sua diviso em pequenos estados, e tambm sua multiplicidade de ambies dinsticas e democrticas. O tempo da pequena poltica chegou ao fim: j o prximo sculo traz a luta pelo domnio da Terra a compulso Grande Poltica.203

    Uma primeira mudana em relao acepo anterior: a Grande Poltica

    definida em oposio pequena poltica. A pequena poltica neste trecho,

    portanto, entendida como a poltica democrtica tal como ela se desenvolve na

    segunda metade do sculo XIX: a constituio abrupta de um privilgio do 201 CNDIDO, Antnio. O portador. In.: NIETZSCHE, F. Obras completas. So Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 411. 202 JGB/BM, 254. 203 Idem, 208.

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    homem mdio em detrimento da exceo, a diviso da Europa em Estados

    Nacionais, a longa comdia de suas ambies dinsticas e democrticas.

    Claro est que a pequena poltica a que Nietzsche se refere diz respeito aos

    valores da modernidade poltica e exprime a incapacidade do homem moderno de

    estabelecer metas prprias, imanentes sua prpria vida. A Grande Poltica,

    neste caso, a anttese da pequena poltica. E o que a pequena poltica neste

    trecho seno os elementos reativos e gregrios, aos quais Nietzsche se referia no

    trecho anterior? Isto : aquilo que se denominava Grande Poltica a afirmao

    da ptria atravs do poder militar, como forma de expurgo e interdio da

    violncia interna em vistas de maiores graus de sociabilidade torna-se, em Alm

    do Bem e do Mal, a pequena poltica.

    Qual o sentido que a expresso Grande Poltica adquire diante desta

    inverso? H certamente uma correo quanto sua qualidade. Ela agora o

    contrrio do que Nietzsche aponta como degenerao do tipo-homem, o contrrio

    do homem moderno, rebaixado pelos mecanismos da moral escrava. Seguindo

    conforme as correes de rumo do seu projeto de crtica da cultura, a introduo

    do conceito de Vontade de Poder reajusta e adiciona novos elementos Grande

    Poltica. Nietzsche especula a respeito de uma suposta vontade russa, em que

    a energia de querer est h muito recolhida e acumulada. Ele se pergunta: e se o

    crescimento da ameaa russa determinar uma situao insustentvel para a

    Europa, como ela responder, posto que sua diviso em Estados menores a

    enfraquece e debilita? Ele afirma que seria do seu agrado que a Europa

    adquirisse uma vontade nica contra a ameaa russa. O que significa adquirir

    uma vontade nica? Seria Nietzsche o arauto de um conservadorismo militaresco,

    a prescrever a disciplina como mtodo para se alcanar a supremacia pela fora?

    Ao contrrio: aqui, o termo vontade est ligado no a um desejo, mas Vontade

    de Poder como conceito. a vida essencialmente apropriao, ofensa, sujeio do que estranho e mais fraco, opresso, dureza, imposio de formas prprias, incorporao e, no mnimo e mais comedido, explorao mas por que empregar sempre essas palavras, que h muito esto marcadas de uma inteno difamadora? Tambm esse corpo () no qual os indivduos se tratam como iguais, (...) deve, se for um corpo vivo e no moribundo, fazer a outros corpos tudo o que os seus indivduos se abstm de fazer uns aos outros: ter de ser a Vontade de Poder encarnada, querer crescer,

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    expandir-se, atrair para si, ganhar predomnio no devido a uma moralidade ou imoralidade qualquer, mas porque vive, e vida precisamente Vontade de Poder.204

    Em Alm do Bem e do Mal, a Vontade de Poder possui dois aspectos que

    se embaralham e se complementam. Como vida, possui um sentido ontolgico

    estritamente materialista: ela sobretudo uma fora plstica, malevel conforme

    as motivaes e ocorrncias que definem seu sentido. Ela reivindica

    incessantemente o poder como essncia positiva do real, como forma bsica da

    vontade205. Neste sentido, a Vontade de Poder essncia da vida206, instinto

    de liberdade207, primazia fundamental das foras espontneas208 cuja natureza

    violentadora e conformadora deseja, em primeiro lugar, expandir-se, ampliar-se,

    agredir... Entretanto, a Vontade de Poder, diz Deleuze, ao mesmo tempo um

    complemento da fora e algo interno209. Se o carter ontolgico de uma fora se

    define pelo movimento de apropriao, o complemento, por sua vez, se define

    por seu sentido, ativo ou reativo. Deste modo, um ato ou uma idia seriam

    medidos no por sua vontade, mas sobretudo pela qualidade complementar de sua

    vontade: se uma vontade ativa, que afirma a vida, ou se uma vontade reativa,

    que simplesmente segue os valores em curso. Se afirma a vida, ento se manifesta

    de forma essencialmente criadora, desestabilizadora; sua mais alta forma a arte,

    mas vale recordar que a unidade de estilo que caracteriza as culturas mais fortes

    e afirmativas tambm pode se manifestar na poltica, atravs da educao dos

    casos singulares e da presena fundamental do gnio, do esprito livre e do

    artista. Se segue os valores em curso, desgarra-se gradativamente da realidade

    efetiva, fortalecendo formas de vida comprometidas com valores irrealizveis, ou,

    o que seria ainda mais problemtico, com o vazio andino das metas e das

    aspiraes individuais.

    204 Idem, 259. 205 Idem. 36. 206 GM/GM, II, 12. 207 Idem, II, 18. 208 Idem, II, 12. 209 DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976, p. 40.

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    A Vontade de Poder possui um registro direto ao nvel da prxis como

    expresso210, como singularidade das formas de vida, mas preciso evitar dois

    contrassensos: primeiro, que a Vontade de Poder representa o desejo de obter

    mais poder, em um sentido poltico, e, segundo, que a Vontade de Poder , no

    plano das relaes humanas, sinnimo de luta. Se assim fosse, ela dependeria

    nica e exclusivamente da fora bruta e da moral. Mas o que o poder, entendido

    sob a sua forma mais rasteira, seno o recenseamento dos valores em curso e sua

    cristalizao em valor moral, particularmente no valor da moral escrava? A

    Vontade de Poder no pode ser confundida com a ao daqueles que dominam o

    poder poltico e as honras; ela o substrato de toda vida, de toda ao humana.

    Nietzsche nos lembra que em si, ofender, violentar, explorar, destruir no pode

    naturalmente ser algo injusto, na medida em que essencialmente, isto , em suas

    funes bsicas, a vida atua ofendendo, violentando, explorando, destruindo, no

    podendo sequer ser concebida sem esse carter.211 Na primeira acepo da

    Grande Poltica, vimos que Nietzsche elabora um sentido para a poltica

    baseado na recusa dos preceitos ilusrios caractersticos da modernidade poltica e

    em uma avaliao dura e objetiva da composio moral derivada da poltica

    moderna. Depois, porque encerrava uma vontade ambgua por dominao externa

    e segurana interna, a Grande Poltica se tornou a pequena poltica, pois sua

    ao no fundo reao212. A Grande Poltica agora seria esta capacidade de

    manipular o elemento diferencial da vontade por meio de um ato efetivo, um ato

    de grandeza, capaz de reconfigurar os valores de uma comunidade.

    210 Nietzsche escreve que todos os "fins", "metas", "sentidos" so apenas maneiras de expresso e metamorfoses de uma vontade, inerente a todo acontecer: a vontade de poder... e que o mais universal e profundo instinto em todo fazer e querer permaneceu o mais desconhecido e oculto, porque in praxi ns sempre seguimos seu mandamento, porque ns somos esse mandamento MLLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. So Paulo: Annablume, 1997, p. 92. 211 GM/GM, II, 11. 212 Idem, I, 10.

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    Em todas as suas acepes, a Grande Poltica produto da crtica dos

    valores morais, entendida provisoriamente como anlise tipolgica e

    morfolgica213 da Vontade de Poder. Tipolgica porque busca pensar os padres

    de conduta moral segundo o critrio seletivo ativo/reativo; morfolgica, porque

    busca esta tipologia na observao genealgica da conduta humana e de sua

    expresso efetiva214. Por este motivo Nietzsche pode afirmar, por exemplo, que a

    autntica inveno dos fundadores de religies , em primeiro lugar, fixar uma

    determinada espcie de vida e de costumes cotidianos215. Portanto, a crtica

    investiga as condies e circunstncias nas quais (os valores) nasceram ()

    desenvolveram e se modificaram216 para posteriormente qualific-los a partir de

    um critrio seletivo. O que se interpreta a Vontade de Poder que se exprime nos

    modos de vida, no os modos de vida. A crtica da cultura e dos valores

    corresponde ao exerccio de investigao do elemento diferencial e qualitativo da

    Vontade de Poder expressa nos modos de vida: o alto e o baixo, o nobre e o

    escravo217. preciso entender essas palavras tanto no seu movimento

    propriamente intelectual quanto nos aspectos afetivos correlatos. Nietzsche

    pergunta de onde provm o valor dos valores, mas, ao faz-lo, no pergunta

    somente por ideias. O ressentimento, a m conscincia e o ideal asctico so as

    expresses tipolgicas e morfolgicas que atestam o diagnstico nietzschiano

    segundo o qual a Europa estaria fatalmente morta de sua vontade. Todos esses

    modos de vida pressupem uma reatividade ou contra o estrangeiro, ou contra si

    mesmo, ou contra a vida. A pequena poltica, contra qual Nietzsche prescreve a

    Grande Poltica, a expresso da reatividade, incrustada nas prticas, condutas

    213 As palavras Tipologia (Typenlehre) e Morfologia (Morphologie) so utilizadas por Nietzsche em momentos fundamentais. Em Alm do bem e do mal, 186, Nietzsche relaciona a tipologia com a necessidade de coletar e ordenar um imenso domnio de delicadas diferenas e sentimentos de valor, numa clara aluso ao mtodo genealgico; em Alm do bem e do mal, 23, Nietzsche se refere morfologia e teoria da evoluo da vontade de poder como uma psicologia que desce s profundezas, isto , que busca na constituio complexa da cultura e dos indivduos, as reais motivaes dos diversos modos de vida. 214 Ela [a vontade de poder] no um fundamento do mundo, que produz vida, ou se exterioriza como arte, ou se efetiva como humanidade. Muito ao contrrio, as configuraes (Gestaltungen) apresentadas por Nietzsche so, segundo sua essncia, vontade de poder. Tornar visvel essa essncia, nos mbitos de espcie diversa, a tarefa de uma morfologia da vontade de poder, de que se fala tambm em um outro plano de Nietzsche da primeira metade do ano 1888. Isso vale, precisamente, quando a vontade de poder permanece oculta em determinadas maneiras de expresso (no produes!). MLLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. So Paulo: Annablume, 1997, p. 86. 215 FW/GC, 353. 216 GM/GM, Pr. 6. 217 Idem, Pr. 1.

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    e hbitos dos europeus. Sua crtica, pois, se direciona contra o aspecto reativo,

    meramente adaptativo do pensamento e da cultura modernas.

    Para Nietzsche, todo corpo, todo fenmeno qumico, biolgico, social,

    poltico218 uma relao de foras, a prpria fora se definindo por esta

    relao219. Nesse movimento, as foras se exprimem como Vontade de Poder, mas

    seu elemento diferencial determinado na prpria relao, isto : em qualquer

    processo, as foras dominantes, ativas, e as foras dominadas, reativas, se

    relacionam e se hierarquizam numa luta contnua. A foras reativas no so por

    isso, menos fortes e resistentes; ao contrrio, tambm afirmam seu poder: a

    obedincia, a adequao, a adaptao, a regulao, a utilidade e todos os valores em

    que se baseiam os mecanismos cientficos e as finalidades metafsicas so reativas,

    mas no menos poderosas. Essas foras marcam o triunfo da moral escrava, as

    ambies dinsticas e democrticas que levam tanto ao esquartejamento da

    Europa quanto obrigao de ler seu jornal no caf da manh, e resultam no

    sombrio e perigoso espectro do niilismo da sociedade de controle e de conforto,

    como ele afirma com a ironia habitual: o que eles gostariam de perseguir com

    todas as foras a universal felicidade do rebanho em pasto verde, com segurana,

    ausncia de perigo, bem-estar e facilidade para todos220.

    Assim, a Grande Poltica, como prescrio contra a pequena poltica,

    quer dar sentido a uma outra concepo de desenvolvimento na ordem da cultura,

    pautada na atividade transfiguradora, criativa. A Grande Poltica, em sua

    segunda acepo, assume um carter prospectivo, e diz respeito a uma ao

    poltica ativa em contraste com os preceitos e prticas reativas da pequena

    poltica. Nietzsche afirma que somente uma transvalorao de todos os valores,

    isto , somente a superao/inverso dos valores em curso renovaria as

    perspectivas em relao ao futuro do homem e possibilitaria o aumento de sua

    capacidade de autodeterminao. Somente a criao de outros valores, outros para

    que, e portanto, outros modos de vida, pode abrir caminho para a dissoluo do

    rebanho autnomo e a reconfigurao ativa das relaes polticas. Ao afirmar que 218 DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976, p. 33. 219 Toda vontade de poder , com efeito, dependente de sua oposio a outras vontades de po- der, para poder ser vontade de poder. A qualidade vontade de poder no um Um efetivo; esse Um nem subsiste de alguma maneira para si, nem sequer fundamento do ser (Seins- grund). S h efetiva unidade como organizao e combinao de quanta de poder. MLLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. So Paulo: Annablume, 1997, p. 84-85. 220 JGB/BM, 44.

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    gostaria que a Europa adquirisse uma vontade nica contra a ameaa russa,

    Nietzsche indica sua preferncia: que a vontade europeia221 se desenvolvesse

    num sentido ativo, e no reativo; que a fora plstica da vontade pudesse ser

    manipulada conforme suas caractersticas de interpretao e criao, e no a partir

    de caractersticas secundrias de adaptao e regulao. No exatamente uma

    exortao guerra, mas um contradiscurso que pe em xeque a prpria confuso

    dinstica e democrtica, contraditoriamente ocasionada por motivaes

    individuais como cobia, vaidade, ignorncia... Como ele bem descreve a situao

    da poltica europeia: opinies pblicas indolncias privadas.222

    5.2 A Liga antigermnica: fisiologia e cultura

    decisivo, para a sina de um povo e da humanidade, que se comece a cultura no lugar certo no na alma (como pensava a funesta superstio dos sacerdotes e semi-sacerdotes): o lugar certo o corpo, os gestos, a dieta, a fisiologia, o resto conseqncia disso 223

    Zaratustra convoca para a guerra: Deveis amar a paz como meio para

    novas guerras. Mas, ele observa: uma guerra de guerreiros, no de soldados.224

    Uma guerra espiritual contra toda degenerao do tipo-homem. Neste sentido,

    Nietzsche prope uma abordagem radicalmente diversa da que comumente

    empregada na filosofia poltica moderna mais prescritivas e abstratas do que

    atentas para as reais motivaes das aes humanas, amparadas que so pelo

    aporte abstrato do humanismo metafsico. O discurso poltico da modernidade

    afianado pela confiabilidade do discurso comunicacional, pela validade da

    soberania e pela generalizao do capitalismo contrasta com as arbitrariedades

    institucionais, e o favorecimento de elites desprovidas de esprito e capacidade 221 MLLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. So Paulo: Annablume, 1997, p. 94. Adiante, o autor afirma que um homem () forma um quantum de poder que organiza em si inmeros quanta de poder. Em oposio e associao com outros homens, ele prprio pertence a organismos mais abrangentes. (p. 96) Assim, a vontade europia indica um complexo de vontades, que por sua vez alude ao raio expressivo-valorativo imanente produo efetiva direcionada para a consolidao do processo civilizatrio. Nietzsche busca os elementos dessa expresso na cultura, entendida como conjunto total da produo. Entenda-se: a vontade de poder no nem resultado nem produo, mas a expresso valorativa de artefatos ideais e materiais. 222 MAI/HHI, 482. 223GD/CI, IX, 47. 224 Za/ZA, I, 10.

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    de transfigurao. Nietzsche ilumina um aspecto pouco valorizado no cnone da

    filosofia poltica moderna, que a percepo segundo a qual os valores perdem

    sua imanncia se, em primeiro lugar, desprezam o corpo. Dos seus escritos finais,

    chamados escritos patolgicos, um dos mais curiosos sustenta o ttulo a

    Grande Poltica, no qual Nietzsche afirma que traz a guerra:

    Eu trago a guerra. No entre povo e povo; no tenho palavra para exprimir meu desprezo pelos detestveis interesses polticos das dinastias europias, que fazem do incitamento egosta e presunoso dos povos contra si um princpio e quase um dever. No entre classes. Pois no temos nenhuma classe superior, portanto tambm inferior. [...] Eu trago a guerra entre todos os absurdos acasos de povo, estado, raa, profisso, educao, formao: uma guerra como entre ascenso e declnio, entre vontade de vida e desejo de vingana contra a vida, entre honestidade e mentiras matreiras... [...] Primeira proposio: a Grande Poltica quer tornar a fisiologia senhora sobre todas as outras questes; ela quer criar um poder, forte o suficiente, para cultivar a humanidade como um todo e mais elevada [...]. Segunda proposio: guerra de morte contra o vcio; viciosa toda forma de contra-natureza. [...] Segunda proposio: criar um partido da vida, forte o suficiente, para a Grande Poltica: a Grande Poltica torna a fisiologia senhora sobre todas as outras questes, ela quer cultivar a humanidade como um todo, ela mede o nvel de raas, de povos, de indivduos segundo seu futuro- [---], segundo sua garantia de vida que carrega em si [...]. Terceira proposio: o restante segue daqui.225

    Nietzsche no esclarece os meios para a realizao desta tarefa, fato que

    no deve criar entraves para uma interpretao do sentido poltico de sua crtica

    dos valores. Pois no menos certo que, enquanto a filosofia poltica moderna

    notadamente a de Rouseau e de Tocqueville se caracteriza pela supresso da

    subjetividade e consequente nivelamento da condio humana, a Grande

    Poltica, por sua vez, representa a denncia do niilismo, da doena da vontade

    europeia226 ocasionada por esta mesma condio. Portanto, no cabe interpret-la

    contraluz do Iluminismo e do projeto de generalizao espiritual posto em

    marcha pelo capitalismo jurdico-intitucional, sob pena de perdermos de vista seu

    carter essencialmente afirmativo. Assim, a referncia guerra no se afigura

    como elogio da dominao, mas como incentivo deflagrao de uma guerra

    espiritual contra os resultados efetivos do processo poltico mundial,

    particularmente o europeu. Entretanto, ao falar de poltica e de uma guerra

    espiritual, Nietzsche toca o tema da fisiologia. Qual o sentido geral desta

    225 NIETZSCHE, Friedrich. uvres Philosophiques Compltes XIV - Fragments Posthumes (dbut 1888 dbut janvier 1889). Paris: Gallimard, 1977, p. 377-385. 226 JGB/BM, 208.

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    estranha aluso? O tema da fisiologia ocupa um lugar privilegiado nesse conjunto

    de textos que, durante muitos anos, foram considerados preliminares a um livro

    que no veio a existir propriamente, A Vontade de Poder. Destes fragmentos

    derivaram, pela ordem cronolgica, Crepsculo dos dolos, O Caso Wagner, O

    Anticristo e Ecce Homo, livros nos quais a questo fisiolgica se articula com a

    poltica, a cultura e o sentido de dcadence. Sabe-se que este excerto

    particularmente faz parte de uma srie de fragmentos, reunidos sobre o ttulo

    Kriegserklrung, Declarao de Guerra, que figurariam no ltimo captulo de

    Ecce Homo, Por que sou um Destino?227 Fazem parte, portanto, no somente da

    ltima fase da produo de Nietzsche, mas, precisamente, dos ltimos dias antes

    que a doena lhe acometesse definitivamente.

    Qual o propsito de Nietzsche quando une esses dois temas num s

    contexto? Em primeiro lugar deve-se observar que, nestes fragmentos, a Grande

    Poltica adquire uma dimenso temtica diversa em relao s citaes

    anteriores. Aqui, me parece, a Grande Poltica concatena dois temas

    fundamentais em Nietzsche: o papel do corpo em sua noo de cultura e a

    criao de valores, um dos pontos mais problemticos de seu pensamento

    tardio. O primeiro elemento, retrospectivo, refere-se crtica dos valores morais e

    como esta crtica despreza a profunda ligao do corpo com as dinmicas afetivas

    e com a dita conscincia; o segundo, prospectivo, refere-se condio

    inescapvel desta mesma cultura, capaz de criar, mas tambm de esquecer que

    criou, tornando-se beneficiria ou escrava de sua prpria criao. Durante toda sua

    obra, Nietzsche se refere com veemncia a esses dois temas, cultura e criao,

    sem entretanto un-los sob a forma consistente de uma proposta. Sob que forma

    Nietzsche percebe a emerso desses novos valores? E seria a guerra produto de

    seu advento? Seria possvel, ou mesmo desejvel, criar valores segundo uma

    utilidade, ou mesmo adequar-se a esses valores? Se admitimos a dimenso

    afirmativa deste pensamento, deveramos supor que Nietzsche, de fato, deseja

    produzir em seus leitores a mudana de foco nas questes polticas. Neste sentido,

    talvez no fragmento acima a primeira ocorrncia da Grande Poltica em que

    ele fornece uma prescrio para seu projeto de renovao da cultura europeia. Ele 227 A relao entre a Grande Poltica e os fragmentos pstumos Kriegserklrung podem ser apreciadas na dissertao de mestrado de Jorge Viesenteiner. VIESENTEINER, Jorge L.. Trs hipteses hermenuticas a propsito do tema da Grande Poltica em Nietzsche. Dissertao de mestrado, PUC-SP, 2002.

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  • 116

    afirma que, para fazer valer uma Grande Poltica, deve-se tornar a fisiologia a

    me de todas as coisas. Deve-se suspeitar de tamanha generalidade, mas ao

    mesmo tempo se perguntar pela necessidade de ajustar o foco: a fisiologia,

    tornando-se me de todas as coisas, passa a figurar como critrio na relao entre

    o corpo e a exterioridade, papel que na modernidade desempenhado pela

    fantasmagoria do humanismo metafsico. Mas no se trata de uma mera inverso,

    como analisaremos abaixo.

    Se a crtica dos valores morais, tal como Nietzsche a compreende, se

    dedica a promover uma avaliao total dos artefatos morais que perpassam a

    constituio do mundo contemporneo, sobretudo os valores modernos que

    amparam os sistemas polticos; se esta crtica assume a conscincia de que se

    exerce dentro de limitaes ontolgicas dadas; se, por outro lado, esta crtica no

    pode prescindir de um cultivo de si e de uma preparao para a experimentao;

    e se, enfim, a crtica inseparvel de uma ao em favor da cultura, ento, s se

    pode concluir que a Grande Poltica, como tomada de conscincia e ao

    criadora, figura como corolrio do projeto crtico, tal como Nietzsche o concebeu.

    Longe de confirmar a cultura europeia oficial, esta Grande Poltica remete a

    uma relao entre os instintos e o gosto, pois deve derivar-se do mais alto

    sentimento (hohe Stimmung). Por sua vez, este alto sentimento permanece

    atrelado a uma relao entre os impulsos e as condies fisiolgicas que

    interagem com o corpo. Algumas conexes entre fisiologia e cultura so, portanto,

    elementos efetivos desta Grande Poltica.

    O tom talvez um tanto excessivo do autor no torna o assunto menos

    importante, fundamental no pensamento nietzschiano tardio. Uma tal referncia

    fisiologia, situada num contexto terico basicamente poltico, no deve ser tomada

    como mero desatino sem que se recorde o problema do niilismo e a sua relao

    fundamental com a fisiologia. Como desejo de vingana contra a vida228, o

    niilismo europeu deriva, entre outros fatores, de uma m compreenso do corpo e

    de seus aspectos afetivos correlatos. Para Nietzsche, o desenvolvimento do estado

    na Europa representa nada mais do que a momentnea e limitada hegemonia de

    determinados tipos de relao com a vida, que no atentam para a relao

    intrnseca entre aspectos afetivos e fisiolgicos, que, por sua vez, permitem o

    228 NIETZSCHE, Friedrich. uvres Philosophiques Compltes XIV - Fragments Posthumes (dbut 1888 dbut janvier 1889). Paris: Gallimard, 1977, p. 377-385.

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    desenvolvimento de um contexto cultural e social perpassado pelo nivelamento,

    pela obedincia e pela convico. Portanto, no so de modo algum gratuitas as

    referncias, em Ecce Homo, que Nietzsche faz alimentao, ao clima, ao lugar e

    distrao, em suma, aos fatores externos que se relacionam e produzem as

    condies de atividade dos corpos, no caso o corpo humano. Ao contrrio: as

    caractersticas de sua sabedoria a deteco e eliminao do ressentimento229, o

    desenvolvimento do faro para questes psicolgicas230, a segunda viso231 tm

    por base as caractersticas de sua inteligncia, isto , os elementos que

    determinam as condies de possibilidade do pensamento. No que esta

    composio anteceda o pensamento, pois no se trata de afirmar a proeminncia

    do orgnico sobre o inorgnico. Ao contrrio, vinculado ao poder de inteligir ou,

    como em uma de suas metforas prediletas, digerir como que afirmados no

    mesmo passo, impem-se os elementos que o cristianismo e a metafsica trataram

    de tornar contrrios s prescries do poder estabelecido. Determinar os

    elementos constitutivos (alimentao, o clima, o lugar) e o elemento relacional (a

    distrao), vinculados produo da inteligncia, indicam o esforo de

    Nietzsche em restituir o pensamento s foras corporalizantes.232 Mas o corpo

    pra Nietzsche o lugar dos impulsos ou melhor, da luta entre impulsos233.

    Consideradas certas foras presentes no seio de um indivduo e as lutas e as

    coeres vindas do exterior, quem far delas mestres, quem far escravos?234 O

    livre-arbtrio critrio metafsico por definio se alimenta da identidade como

    sua fico maior, como a cristalizao de certos impulsos na iluso de um eu

    consciente. Esta cristalizao, por sua vez, nos remete novamente ao problema

    do nivelamento: o eu consciente, como preposto para o critrio de identidade,

    mas tambm de inteligibilidade, se relaciona com a necessidade de preservao e

    manuteno dos grupamentos humanos, mas a preservao e a manuteno, como

    critrios para prticas vitais, indicam um baixo grau de experimentao e

    autodeterminao. Reivindicando a restituio do pensamento s foras

    corporalizantes, Nietzsche no prope o irracionalismo ou o laisser aller, mas,

    contra a falcia metafsica, o reconhecimento e a conscincia do jogo 229 EH/EH, I, 6. 230 Idem, I, 8. 231 Idem, I, 3. 232 KLOSSOWSKI, op. cit., p. 51. 233 JGB/BM, 19. 234 KLOSSOWSKI, op. cit., p. 29.

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    inconsciente, travado no mago do corpo, entre as foras impulsivas que dominam

    e que so dominadas, para tomar o partido dos impulsos dominantes. Como

    assinalamos acima, a prpria conscincia de onde se produz esta reflexo se

    sabe submetida a processos e foras que no domina. Nietzsche prope que a

    cultura e o pensamento sejam criados e avaliados segundo a fora irrepresentvel

    e insubmissa dos impulsos dominantes, plsticos, criadores. Trata-se no de uma

    defesa da inconscincia ou de um irracionalismo inconsequente, mas de um

    esforo intelectual no sentido de reintegrar de forma contundente o problema da

    vida ao pensamento moderno. Para tanto, Nietzsche comea reconhecendo que:

    Em sua maior parte, o pensamento consciente de um filsofo secretamente guiado e colocado em certas trilhas pelos seus instintos. Por trs de toda lgica e de sua aparente soberania de movimentos existem valoraes, ou, falando mais claramente, exigncias fisiolgicas para a preservao de uma determinada espcie de vida.235

    A percepo de que o pensamento consciente um sintoma de algo maior, a

    vida, uma conscincia da inconscincia236, conscincia dos impulsos e de sua

    linguagem especfica, mas tambm o cultivo da alta tonalidade da alma e,

    portanto, dos aspectos fisiolgicos a ela associados , constituem para Nietzsche a

    rigorosa disciplina de si que fundamenta a Grande Poltica e a sua declarao

    de guerra. Pois, se a declarao de guerra direcionada ao rumo que toma a cultura

    sob a organizao dos estados nacionais, convm abordar o problema na contramo

    dos que pensam e agem em favor da conservao do Estado e de seu papel tutelar. E

    mais: convm pensar e agir na contramo da vida para a qual nos empurram as

    condies polticas dadas no contexto em que pensamos e agimos, sejam condies

    polticas ou individuais. E, neste ponto, ressaltamos uma caracterstica crucial do

    pensamento de Nietzsche, cuja inspirao podemos atribuir a Goethe, qual seja: a

    busca pela totalidade, contra a separao de razo, vontade, sensualidade e

    sentimento.237 A ligao simultnea entre fisiologia, impulsos, ao, moral e

    costumes em Nietzsche , de certa forma, fundamental para a compreenso da

    dimenso poltica de seu pensamento, tanto em seus aspectos retrospectivos

    (crticos ao estado e aos rumos da poltica europeia) quanto em seus aspectos

    prospectivos (a Grande Poltica). A moral que d suporte ao senso de nao na 235 Idem, p. 11. 236 Idem, p. 80. 237 GD/CI, IX, 49.

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    Alemanha do Rei Guilherme, de Bismarck e mesmo de Wagner tomada por

    Nietzsche como valor externo, definido metafisicamente, mas que todavia confere

    ao rebanho autnomo uma coeso prtica e, sobretudo, til.

    Nietzsche nota que a situao da Nova Alemanha se ampara em valores

    adquiridos hereditariamente, conservando o processo militaresco de

    endurecimento e, segundo ele, de mediocrizao da cultura do perodo

    bismarckiano. O que caracterizava a Grande Poltica em Humano, demasiado

    humano era justamente a valorizao da obedincia em sintonia com o desenrolar

    dos acontecimentos histricos, o que Nietzsche chamava ironicamente de

    necessidade do desenvolvimento de poder.238 Os termos polticos desta

    discusso, entretanto, adquirem uma dimenso diferenciada, pois seu critrio no

    a organizao da sociedade civil, mas o cultivo da cultura, da alta cultura

    (lembrando que no se trata da cultura europeia moderna, mas de uma cultura

    amparada no alto sentimento).

    O dilogo de Nietzsche com a fisiologia marcado por uma srie de

    situaes inusitadas. Sua compreenso do assunto e dos debates que ocorriam

    sua poca a de um esforado aprendiz, como escreve Montinari:

    Chama a ateno de todo leitor do Crepsculo dos dolos, que Nietzsche utiliza uma nova terminologia: Scrates como raqutico, bastardo e de desenvolvimento decadente, o criminoso tpico como monstro, despotenciao, degenerescncia e degenerado, fisiologia, psicologicamente degenerado, estado de necessidade fisiolgica, sentimentos fisiolgicos fundamentais, "ns fisilogos", aprisionamento pela doena, decadncia e esgotamento e, por toda parte, dcadence: esta terminologia sinaliza em Nietzsche um desvio em direo fisiologia contempornea. Algumas semanas depois, seu esprito vencido sob estes signos: em uma de suas ltimas declaraes, quer "homenagear a fisiologia. Um esquisito ar de hospital sopra contra ns, de muitas pginas do Crepsculo dos dolos. () A invaso do medi-cnico (do processo de medicalizao das condutas) um distintivo do amortecido sculo XIX. Criminosos e prostitutas, alcolatras e neurticos, degenerados e loucos: Dgnerescence et criminalit um tema popular dos fisilogos, o ttulo de um livro de Charls Fr que Nietzsche, no comeo de 1888, pouco depois de sua publicao, estudou e anotou e a quem ele deve seu conhecimento acerca do regime das doenas no Caso Wagner e muitas outras coisas no Crepsculo dos dolos. () Os pstumos mostram, da mesma maneira que o Caso Wagner e o Crepsculo dos dolos, profundos traos da ocupao de Nietzsche com este fisilogo. () Ao mesmo tempo em que Nietzsche tentou acompanhar a mais recente situao da fisiologia, ele produziu para si mesmo e para seus contemporneos conceitos e metforas pregnantes.239

    238 M/A, p. 133. 239 MONTINARI, Mazzino. Ler Nietzsche: O crepsculo dos dolos. So Paulo. In: Cadernos Nietzsche 3, p. 85.

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    Em uma de suas clebres biografias, pode-se conferir o contexto pessoal e

    poltico no qual Nietzsche redige esses ltimos aforismos. Pessoalmente, parecia

    sentir a doena avanar, ora posicionando-se cada vez mais deseperadamente

    contra as articulaes polticas de seu tempo, ora tomando para si as mais amplas

    e complexas tarefas no sentido de desarticular essa mesma poltica. As ltimas

    consideraes atestam este desespero, quando Nietzsche afirma estar pronto para

    governar a terra.240 Percebe-se um afastamento gradativo das questes

    propriamente filosficas e especulativas em direo a uma guerra renitente contra

    a poltica de gabinete. O contexto a Alemanha, na qual Bismarck acaba de

    adquirir um novo adversrio:

    A experincia da guerra de 1870 lhe ensinou o quanto de sofrimento a arrogncia de uma dinastia imbuda de seu poder (Napoleo III, no caso) poderia, por uma guerra real, infligir aos homens. Ele compreendeu igualmente nessa ocasio, que uma vitria militar poderia corresponder a uma inferioridade cultural e espiritual. Isto, Jacob Burckhardt lhe ensinou. O novo tabuleiro poltico berlinense o fez recear o fato de que a Europa no estava preparada novamente para o desequilbrio a curto prazo em semelhante catstrofe. Nietzsche, cuja conscincia j era profunda, no atentar mais para as graves tenses que ope o jovem imperador Guillaume II ao partido Bismarck-Stoecker e se afasta dos dois homens da cena poltica berlinense. Por um instante, ele percebe o perigo ameaador e se lembra que no tem um minuto a perder para conjurar: tarefa qual ele se sente convocado e obrigado: ao ttulo que lhe agrada com efeito, e que uma audincia rapidamente o autoriza a gabar-se de primeiro esprito filosfico de sua poca.241

    Diante dos embates dinsticos e democrticos que se instauram na Europa

    de seu tempo, Nietzsche percebe o grande perigo: no a guerra em si, mas a

    inferioridade cultural e espiritual que esta guerra real traria para a grande

    maioria dos homens. Uma guerra que resultaria num regime de poder

    comprometido somente com a manuteno do Estado-nao, promovendo

    fatalmente o empobrecimento da cultura. Nietzsche toma partido de uma outra

    poltica, cuja preocupao central no seria o belicismo e a conquista territorial.

    Foi sob este vis equivocado, inclusive, que se sustentou uma opinio

    absolutamente despropositada acerca da Grande Poltica, a partir da qual foi

    compreendida durante o sculo XX. Como Burckhardt, Nietzsche voltou-se para

    uma investigao da histria da cultura, aliando todos os elementos de sua crtica 240 NIETZSCHE, Friedrich. uvres Philosophiques Compltes XIV - Fragments Posthumes (dbut 1888 dbut janvier 1889). Ed. crtica org. por Colli e Montinari. Trad. Jean-Claude Hmery. Paris: Gallimard, 1977. p. 384. 241 JANZ, Curt Paul. Nietzsche: Biographie. Trad. do alemo por Marc B. de Launay, Violette Queuniet, Pierre Rusch e Maral Ulubeyan. Paris: Gallimard, III Tomos, 1984, p. 394.

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    da poltica, em direo a uma tomada de posio radical e efetiva a uma tarefa,

    como ele se referia. A urgncia desta posio, no se sabe se vinculada aos

    desdobramentos de sua filosofia ou se catstrofe iminente242 que ele prprio

    antev, confere produo subsequente um clima to delirante quanto

    propositadamente dissonante em relao aos acontecimentos e aos valores

    vigentes. Em carta para Overbeck, em 26 ou 27 de dezembro de 1888, ele escreve:

    Eu trabalho nesse momento em uma memria [promemoria] visando o rumo [histrico] europeu, a fim de constituir um liga anti-germnica. Apertarei o Reich dentro de um espartilho de ferro243 e o forarei a uma guerra desesperada. No terei as mos livres, pois no estarei seguro da personalidade do jovem imperador e de seus comparsas.244

    Diante da incerteza gerada pela situao poltica europeia, para a qual

    Nietzsche reservava suas mais duras crticas, o filsofo tomado por uma

    necessidade desesperada de uma ao positiva em favor da cultura. A valorizao

    do alto sentimento, a cultura da ao e da vontade, a afirmao da autonomia do

    homem e a conscincia da inconscincia se alinham para projetar um

    contradiscurso inconveniente do ponto de vista dos valores em curso. Esta tenso,

    nos parece, adquire um carter exortativo na medida em que a Grande Poltica

    uma perspectiva, mas tambm, e sobretudo, uma ao. Se, como ele afirma, o

    tempo da pequena poltica chegou ao fim, ento no se trata de constituir uma

    nova modalidade da poltica institucional. Nietzsche exorta o leitor realizao

    de uma Grande Poltica.

    A Grande Poltica, portanto, inseparvel de uma ao ou atividade e

    representa uma guerra desesperada contra tudo aquilo que compactua com a

    poltica moderna. As formas morais, isto , os modos de vida correntes, instituem

    uma contranatureza, pois acusam os sentidos e os instintos, indicando que, no

    mesmo processo de dependncia poltica, se inscreve tambm a gradativa runa do

    corpo. No que o corpo no se desgaste na Grande Poltica, o que seria absurdo

    afirmar. Mas certo que o trabalho aviltante, a alimentao desregrada o prprio

    desconhecimento da repercusso da alimentao sobre a produo dos afetos245

    242 Idem, T. III, p. 394. 243 No original, corset de fer. N. do T. 244 NIETZSCHE, Friedrich. uvres Philosophiques Compltes XIV Fragments Posthumes (dbut 1888 dbut janvier 1889). Op. cit., p. 395. 245 Cf. EH/EH, II, 1.

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    o cio urbano, o vcio, todos esses elementos conjuram para a determinao de

    uma cultura da dependncia. O alargamento do sentido da poltica ocorre em

    Nietzsche muito por conta dessas observaes sobre a fisiologia, pois o ato de

    arruinar o corpo propicia, por sua vez, a suscetibilidade do comportamento afetivo

    que faz a manuteno e d sustentao submisso dos grupamentos sociais

    forma-Estado. Entretanto, deve-se notar que no se trata de um estmulo ao

    individualismo, pois ao mesmo tempo em que a disciplina corporal deve se

    estabelecer individualmente, ela deve tambm compactuar com a formao da

    cultura. Assim, interdita-se a possibilidade de se conceber o pensamento de

    Nietzsche sob a rubrica do individualismo aristocrata, pois o cultivo individual, no

    mais das vezes, estimula na comunidade tanto a rejeio quanto a inclinao a

    realizar alteraes no cdigo vigente, e esta disposio tem como ponto de partida

    a possibilidade de alterao na sua prpria constituio afetiva. Por um lado, a

    possibilidade de cultivo individual, no qual o indivduo desprende-se da

    submisso aos valores gregrios, em direo a uma independncia relativa; por

    outro lado, a possibilidade deste comportamento se espalhar, se expandir, ainda

    que de forma truncada e nem sempre positiva. A liga-antigermnica representa o

    desejo de Nietzsche de concretizar uma experincia social na qual somente os

    indivduos que detm a percepo do alto sentimento compartilhem outros

    modos de vida e busquem estimular o corpo, no arruin-lo. No percurso dessa

    experincia, supe-se, o compartilhamento social, tal qual o moral e o cultural,

    so inevitveis, pois, como Nietzsche afirma, no temos o direito de atuar

    isoladamente em nada: no podemos errar isolados, nem isolados encontrar a

    verdade.246

    246 GM/GM, I, 2.

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