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Música, Civilização e Tecnologia A Música Erudita e a Transformação do Disco em Bem Cultural Leonardo De Marchi 1 Resumo: nos últimos anos, publicou-se vasta literatura acerca das relações entre meios fonográficos e música. Inspirada em forte determinismo tecnológico, a maior parte desses trabalhos é dedicada a investigar os “efeitos” dos discos sobre a poética musical. Por isso, passa-lhes desapercebido que foi, primeiramente, o prestígio social da música que ajudou a tornar os meios fonográficos em um dos mais importantes bens culturais do século XX. Em particular, a música erudita foi utilizada para equivaler a experiência mediada de ouvir discos a ouvir o próprio evento. Ao prometer a reprodução técnica “fiel” das melhores vozes da ópera, transformava-se o meio em continente legítimo das belas-artes sonoras e, por conseguinte, em instrumento de “civilização”. Em outros termos, consumir discos passava a significar cultivar o espírito. Neste trabalho, analisa-se tal uso da música erudita na construção social das tecnologias de reprodução sonora em bem cultural. Acredita-se que tal discussão seja fundamental para a compreensão do papel dos meios de comunicação na cultura moderna. Palavras-Chave: meio fonográfico; história da indústria fonográfica; música erudita; construção social das tecnologias da comunicação. Introdução Os dias de glória da “nova mídia” digital propiciaram um duplo resultado no meio acadêmico. Por um lado, renovou-se o interesse pelos estudos acerca do papel da materialidade dos meios no processo de comunicação. Por outro, provocou uma onda de abordagens cujo caráter determinista de inspiração mcluhaniana era patente. Assim, muitos trabalhos foram dedicados a reafirmar que o meio é mensagem, ou seja, que a tecnologia transforma a sociedade por suas qualidades imanentes. No caso específico da música, desde os anos 1990, um número crescente de publicações voltou-se à análise das relações entre meios fonográficos e música. Refletindo tal determinismo tecnológico, esses trabalhos buscavam demonstrar os efeitos da técnica sobre a poética musical. Partindo da premissa formalista, contudo, é inerente a esse discurso falhar ao deixar desapercebido que a tecnologia está absolutamente arraigada a processos sociais. Determinados meios se tornam paradigmas tecnológicos não porque sejam tecnicamente superiores ou possuam alguma força metafísica inexorável. Na verdade, são construídos socialmente através de decisões políticas, usos cotidianos, interesses de diferentes grupos envolvidos com sua criação e implementação, entre outras possibilidades que podem transformar por completo sua trajetória histórica. O caso da tecnologia fonográfica é exemplar. Criada inicialmente para ser um aparelho de gravação e leitura de sons, visando uso predominantemente burocrático, 1 Doutorando em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. [email protected]

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Page 1: Música, Civilização e Tecnologia A Música Erudita e a ... · tornou-se um meio de reprodução de música para entretenimento privado. Na medida em que assumia este viés, os

Música, Civilização e TecnologiaA Música Erudita e a Transformação do Disco em Bem Cultural

Leonardo De Marchi1

Resumo: nos últimos anos, publicou-se vasta literatura acerca das relações entre meios fonográficos e música. Inspirada em forte determinismo tecnológico, a maior parte desses trabalhos é dedicada a investigar os “efeitos” dos discos sobre a poética musical. Por isso, passa-lhes desapercebido que foi, primeiramente, o prestígio social da música que ajudou a tornar os meios fonográficos em um dos mais importantes bens culturais do século XX. Em particular, a música erudita foi utilizada para equivaler a experiência mediada de ouvir discos a ouvir o próprio evento. Ao prometer a reprodução técnica “fiel” das melhores vozes da ópera, transformava-se o meio em continente legítimo das belas-artes sonoras e, por conseguinte, em instrumento de “civilização”. Em outros termos, consumir discos passava a significar cultivar o espírito. Neste trabalho, analisa-se tal uso da música erudita na construção social das tecnologias de reprodução sonora em bem cultural. Acredita-se que tal discussão seja fundamental para a compreensão do papel dos meios de comunicação na cultura moderna.

Palavras-Chave: meio fonográfico; história da indústria fonográfica; música erudita; construção social das tecnologias da comunicação.

Introdução

Os dias de glória da “nova mídia” digital propiciaram um duplo resultado no meio

acadêmico. Por um lado, renovou-se o interesse pelos estudos acerca do papel da

materialidade dos meios no processo de comunicação. Por outro, provocou uma onda de

abordagens cujo caráter determinista de inspiração mcluhaniana era patente. Assim, muitos

trabalhos foram dedicados a reafirmar que o meio é mensagem, ou seja, que a tecnologia

transforma a sociedade por suas qualidades imanentes. No caso específico da música, desde

os anos 1990, um número crescente de publicações voltou-se à análise das relações entre

meios fonográficos e música. Refletindo tal determinismo tecnológico, esses trabalhos

buscavam demonstrar os efeitos da técnica sobre a poética musical.

Partindo da premissa formalista, contudo, é inerente a esse discurso falhar ao deixar

desapercebido que a tecnologia está absolutamente arraigada a processos sociais.

Determinados meios se tornam paradigmas tecnológicos não porque sejam tecnicamente

superiores ou possuam alguma força metafísica inexorável. Na verdade, são construídos

socialmente através de decisões políticas, usos cotidianos, interesses de diferentes grupos

envolvidos com sua criação e implementação, entre outras possibilidades que podem

transformar por completo sua trajetória histórica.

O caso da tecnologia fonográfica é exemplar. Criada inicialmente para ser um

aparelho de gravação e leitura de sons, visando uso predominantemente burocrático,

1 Doutorando em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. [email protected]

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tornou-se um meio de reprodução de música para entretenimento privado. Na medida em

que assumia este viés, os meios de reprodução sonora tiveram de ser considerados

portadores de um som “verdadeiro”. Afinal, não haveria razão em consumir uma tecnologia

de reprodução se ela não desse acesso imediato a algum conteúdo “verdadeiro”. Para isso,

antes que os discos pudessem ter qualquer “efeito” sobre a música, foi o prestígio social

desta que possibilitou tornar a tecnologia fonográfica em um dos mais importantes bens

culturais do século XX.

Nesse sentido, o uso da música erudita foi fundamental para equivaler a experiência

mediada de usar discos a ouvir a música original. Ao prometer a reprodução técnica “fiel”

das melhores vozes da ópera, por exemplo, a qualquer momento e local, transformava-se o

meio em continente legítimo das belas-artes e, devido ao contexto histórico em que estava

inserido, em instrumento de civilização. Assim, consumir discos passava a significar

cultivar o espírito e essa foi a ideologia que permitiu estabelecer uma indústria de

proporções globais.

Neste trabalho, analisam-se as razões que levaram os meios fonográficos a serem

reprodutores de música. Em particular, atenta-se para o uso da música erudita na construção

social de discos e seus reprodutores como instrumentos apropriados para o mercado

musical. Para tanto, o texto é dividido em duas partes. Na primeira, discutem-se as razões

pelas quais, a despeito de sua materialidade indicar uma experiência técnica e estética

distinta em si, os disco foram entendidos como recipientes de um som original. Em seguida,

trata-se do contexto histórico no qual os meios fonográficos surgiram e que foi essencial em

sua configuração social. Em deliberada oposição aos argumentos formalistas, o objetivo do

texto é demonstrar como, para se compreender o papel dos meios de comunicação na

cultura moderna, é fundamental tratar de seu caráter social e histórico.

O Caráter Social do Meio Sonoro

Há certa tendência nos estudos comunicação a eleger a tecnologia como causa de

processos sociais. Confiando na tradição filosófica formalista que, ao querer subtrair da

análise estética todo elemento subjetivo, sobressalta os efeitos da matéria da obra de arte

sobre a percepção humana (MERQUIOR, 1974), concebe-se todo meio como uma entidade

autônoma de seus contextos social e histórico e cuja linguagem realiza uma natureza

imanente. Sua expressão máxima encontra-se na obra de Marshall McLuhan. O pressuposto

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de “o meio é mensagem” (McLUHAN, 1964) era que, a despeito do que vivem emissores e

receptores da comunicação, o importante é, tão somente, o efeito sensorial da tecnologia

sobre a percepção humana e suas conseqüências na sociedade. Por suas qualidades

imanentes, o meio se torna motor da evolução social (reintroduzindo o sentido de

comunidade na “aldeia global”), biológica (afinal, é a extensão do corpo humano) e, enfim,

espiritual, pois a utopia social de sua “aldeia global” é inspirada em uma visão de uma nova

sociedade no qual tradicionais valores espirituais cristãos governam as relações entre as

pessoas, como bem demonstrou Grant Havers (2003).

Ao ressaltar a materialidade do objeto, por conseguinte, relegam-se fatores sociais,

culturais e econômicos a planos inferiores na análise. É elementar pressupor que as

características materiais de um meio determinam todos os outros processos. Tudo deve ser,

enfim, “efeito” de uma ou outra tecnologia. Isso incapacita esta teoria a explicar como e

porque uma tecnologia surge com um fim e se torna outra entidade social. Ou como, a

despeito das limitações técnicas de um meio, ele pode ser utilizado para um fim que

inicialmente pouco teria serventia. Em suma, toda resposta está dada, a priori: o meio é a

causa; o resto, seu efeito.

Uma das conseqüências mais prejudiciais desse formalismo é tornar refém de uma

perspectiva limitada uma série de fatos complexos, que nem sempre passam pela

materialidade do meio. Abandonam-se questões fundamentais, por exemplo, sobre o

significado da técnica em determinado tempo e sociedade, além de suas conseqüências

sociais. Perguntas sobre quais foram as determinações científica, política ou econômica que

levaram a alguma tecnologia ser implementada de uma forma ou outra tornam-se

despropositadas, ainda que se saiba, na prática, que são fundamentais.

Neste texto, seguindo as observações de Raymond Williams (1990) e Jonathan

Sterne (2003), assume-se uma posição construtivista, segundo a qual se entende todo meio

como uma rede de relações sociais e históricas, contingencialmente construídas. Em outros

termos, reproduzindo as palavras de Sterne (p.182), o meio é a base social que permite a

uma série de tecnologias serem compreendidas como um objeto definido.

Esta abordagem implica uma percepção absolutamente distinta da anterior. Não que

a materialidade de um meio seja desprezível para a análise. Ocorre que, na verdade, a

própria escolha dos materiais utilizados nos meios passa por uma série de decisões sociais e

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históricas, sejam de caráter técnico (quais as melhores matérias a serem usadas), econômico

(se tais decisões são compatíveis com os custos de implementação e venda do produto),

político (como reger o uso público e privado de um meio, através de leis) ou cultural (como

os usuários irão utilizar ou não) que determinarão, enfim, o que se entende por um meio.

No caso dos meios de reprodução sonora, sua história demonstra que todas surgiram

dos mesmos esforços científicos que levaram à criação do telégrafo, à transmissão de

impulsos elétricos como informações por redes de receptores com fio e sem fio, além da

necessidade de registro desse fluxo de informação. A partir de uma conjuntura

contingencial criada a partir de práticas sociais, interesses econômicos e mediações

políticas, tornaram-se meios e negócios nitidamente distintos, como a telefonia, o rádio, a

fonografia, respectivamente. O fato de a fonografia ser uma indústria envolvida com

música é parte de um processo histórico. As pesquisas que levaram à criação da tecnologia

derivaram de experimentações para o aperfeiçoamento do telefone. Seus primeiros usos

comerciais foram voltados para uso burocrático, em corporações pública e privada, para

gravação sonora. Terminou sendo um meio de entretenimento privado ligado à reprodução

de música2.

Neste trabalho propõe-se investigar este caso: a construção social dos meios

fonográficos em bens culturais. A tarefa reside em entender quais processos levaram tais

meios a serem considerados registros de um som original e como, a partir dessa crença,

construiu-se uma indústria de comunicação e entretenimento até hoje em vigor. Para

introduzir essa questão, retorna-se ao início dessa indústria e ao uso que estrategicamente se

fez do prestígio social da música erudita, sobretudo dos grandes cantores de ópera, para

fazer crer que os discos eram capazes de reproduzir suas divinas vozes.

O Gênio do Disco? Cantores de Ópera na Era da Reprodutibilidade Técnica do SomEnrico não podia nunca ouvir a adorável qualidade de sua voz quando cantava – simplesmente sentia algo dentro de si quando as notas saíam bem. Somente ouvindo seus discos é que conseguia ouvir o que os outros ouviam. “É bom, é uma bela voz”, dizia espantado. (CARUSO, 1991, p.39).

Constantemente, somos lembrados de que os discos estenderam a audição e a

memória humanas, mudando nossa forma de ouvir e produzir música. Nesse sentido, graças

à tecnologia, pôde-se registrar e reproduzir todo tipo de som, possibilitando ao homem 2 Sobre a história da fonografia, ver CHANAN, 1995; DOWD, 2002; GITELMAN, 1999; STERNE, 2003.

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moderno guardar e desfrutar de seus grandes artistas, no momento e lugar desejados.

Pressupõe-se nessa narrativa, deve-se notar, que os discos encerram um evento sonoro

original e que a audição mediada pela tecnologia constitui uma ação natural ao aparelho

sensório humano. Entretanto, o que tal discurso desconsidera é que a forma pela qual a

tecnologia alterou nossa percepção do som não constitui um gesto natural, mas um processo

cultural determinado historicamente.

É isso que Jonathan Sterne (2003) defende, em seu instigante trabalho sobre a

história cultural da reprodução sonora, ao argumentar que a audição de sons através de

reprodutores técnicos é um processo cognitivo. Longe de ser um ato natural, escutar

qualquer reprodução técnica sonora exige a priori uma disposição física e psicológica

específica, que chama de técnicas de audição, aprendida formal e informalmente e que, na

verdade, acostuma-nos à dinâmica da máquina. Ouvir uma reprodução é sempre uma

experiência estética em si, sendo algo absolutamente distinto da escuta sem mediação

técnica. A máquina jamais consegue captar e reproduzir a complexa dimensão sonora de

qualquer som; tão somente registra uma performance realizada especificamente para ser

reproduzida pela própria máquina.

Sterne está recorrendo, está claro, às observações do clássico ensaio de Walter

Benjamin (1994) sobre a estética da cultura de massas. Afinal, foi este autor o primeiro a

demonstrar com propriedade que a reprodutibilidade técnica da arte alterou

fundamentalmente a natureza da própria arte. De acordo com sua hipótese de declínio da

experiência tradicional (Erfahrung) e a emergência de uma experiência vivida (Erlebnis) na

modernidade3, Benjamin nota que a reprodutibilidade técnica extinguia aquele traço de

exclusividade no tempo e no espaço que garantia autenticidade, a autoridade dada pela

tradição, ou a Aura da obra de arte tradicional. Se antes havia um valor de culto que

diferenciava o original de uma cópia (a escultura baseada no “Davi”, de Michelangelo, será

sempre uma cópia realizada em tempo e lugar distintos do original, não podendo

compartilhar, portanto, de sua aura), a arte reprodutível tecnicamente fazia desmanchar no

ar tal sólida relação.

Quando afirma que “a obra de arte reproduzida é cada vez mais a reprodução de

uma obra de arte criada para ser reproduzida” (p. 171), Benjamin está sublinhando que

3 Herdada de uma tradição sociológica e filosófica alemã, que ele traduz para a estética, sobretudo, em textos como O Narrador e Experiência e Pobreza.

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também a arte entrara em sua fase industrial de produção, alienando a obra daquilo que lhe

conferia distinção. Agora, a arte fora fragmentada e racionalizada, como em uma linha de

produção fabril, objetivando ser difundida quantitativamente. Isso é perceptível no caso da

impossibilidade de um indivíduo pagar, como exemplificou, o custo de um filme. A razão

econômica deste reside em ser pago aos poucos e por muitos. Tal característica

transformava a própria função social da arte na sociedade industrial. A partir de então, a

técnica deveria tornar a arte “mais próxima” daquele fenômeno político e estético da maior

relevância para sua geração, as massas.

Seu paradigma é o cinema, contrastado ao o longo do texto com seu símile, o teatro.

A intenção é demonstrar que, enquanto este é uma arte que tem na ilusão da representação

imediata sua chave (um ator desempenha um papel para uma platéia presente que deve

acreditar na proposta da ilusão), aquele é uma arte de estúdio, realizada pela e para a

máquina (o ator de cinema não vive um papel defronte a um público, mas faz gestos para a

câmera em momentos distintos, inclusive quando não está atuando), fragmentada no tempo

(na ausência da platéia, a representação do papel só se configura a partir da edição do

filme) e no espaço (completando-se em sua exibição). O cinema é, enfim, uma arte que

posterga sua realização para o momento de exibição para as massas, o que exige uma outra

disposição perceptiva para apreender sua estética.

O que Sterne faz é aplicar o mesmo argumento às artes sonoras tecnicamente

reprodutíveis (rádio, telefonia, fonografia). Afinal, todas são artes de estúdio, as quais

demandam dos atores que atuem pela e para a máquina, criando uma experiência estética

distinta. A reprodução técnica do som é sempre uma obra criada para ser reproduzida. Ou

seja, discos não reproduzem um som original existente a priori. Mesmo o ato da gravação é

absolutamente determinado pela reprodução: sem esta etapa, aquela se torna inconcebível.

Não há, nos discos da obra de J. S. Bach, por exemplo, o princípio de autenticidade de que

estaria dotada sua apresentação. Não se pode alcançar a mesma sonoridade, pois esta estava

determinada pelos instrumentos e locais específicos de sua época. Toda gravação de suas

músicas é uma encenação que só pode ser julgada em seus próprios termos (se uma

gravação é melhor do que outra). A mesma lógica se aplica aos discos de um agrupamento

musical contemporâneo, como, por exemplo, os da banda de rock U2. Também eles são

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uma encenação cujo fim é a reprodução em disco, mesmo que seja a gravação de algum

concerto da banda.

Entretanto, por mais que a reprodução sonora constitua uma experiência estética em

si, que aniquilaria a distinção entre original e cópia, dissipando qualquer sombra de aura, a

ideologia que sustenta o comércio de discos é a de que estes exprimem uma dimensão de

um evento original. Isso é notável no campo econômico, sobretudo quando há o lançamento

de uma inovação tecnológica. A cada novo produto, vende-se a promessa de um som mais

“real”, isto é, mais “próximo” da fonte. Tal realismo sonoro serve para alavancar a

economia dessa indústria. Sob os auspícios da crença no progresso, a cada atualização, a

um só tempo, aumenta-se o mercado incitando o consumo dos novos produtos e se controla

a concorrência com a nova e, por isso, restrita tecnologia.

Isso não é resultado exclusivo, porém, de interesses econômicos. A citação

apresentada no início desta seção indica que tal processo está na base da própria

possibilidade social que engendrou a reprodução sonora. O depoimento de Dorothy Caruso

sobre a relação de seu falecido marido Enrico Caruso, cantor de ópera e primeiro astro da

indústria fonográfica, com seus discos é paradigmático dessa fé na tecnologia. Não

podendo reconhecer sua voz naturalmente, relembra a viúva, o cantor utilizava seus discos

como extensão dos ouvidos, a ponto de se surpreender com a fidelidade da gravação.

Obviamente, pressupunha o senhor Caruso que os discos continham sua voz.

Para entender tal paradoxo, é preciso observar o contexto no qual as tecnologias

fonográficas surgiram, algo a ser realizado com cuidado na próxima parte do texto. No

momento, basta observar que havia uma grande expectativa social que precedeu a própria

tecnologia de reprodução sonora. O início de pesquisas científicas que encaminharam a

possibilidade da reprodução maquínica do som datam dos séculos XVIII, como Sterne (op.

cit.) bem observa. Mas é o século XIX que demarca, por excelência, o triunfo do

cientificismo e a crença na evolução humana efetuada pelo Progresso, aquela face prática

da civilização4. Não surpreende, assim, que em 1877, quando Thomas Edison torna público

seu fonógrafo, tenham saudado o aparelho como a realização de um antigo desejo da

humanidade. Michael Chanan (1995, p. 01) lembra que o fotógrafo francês Nadar

comparou a máquina à bela passagem de Rabelais, em Gargantua e Pantagruel, sobre o mar

4 Sobre a relação entre ciência, evolução social e progresso material, ver o excelente debate sobre a sociologia da sociedade industrial feita por Krishan Kumar (1978).

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das palavras congeladas5. Lisa Gitelman (1999) sublinha a excitação ocasionada pelos

registros técnicos do som assinalando a possibilidade de manter um “pedaço” daqueles que

morreram (deve-se lembrar que a primeira saudação feita ao fonógrafo foi a de que “agora,

os mortos podem falar”). Isso sinaliza que havia uma forte pressão social para que as

tecnologias de reprodução sonora desempenhassem um determinado papel de

administração da memória social. Assim como nas fotografias dos entes queridos, última

trincheira do valor de culto na era da reprodutibilidade técnica da arte, como avisou

Benjamin, os discos deveriam – na verdade, mais do poderiam tecnicamente – reter a aura

de eventos – e de pessoas – reais.

Era preciso, no entanto, que se acreditasse na capacidade da tecnologia, o que não

era uma das tarefas mais fáceis. Como muitos engenheiros de som de ontem e de hoje

admitem, a funcionalidade dos primeiros reprodutores estava longe de ser satisfatória. Os

discos possuíam notáveis chiados, misturando sons e ruídos em uma única peça sonora; não

conseguiam captar qualquer tipo de som; não mantinham as rotações por minuto

necessárias para a perfeita execução; além de se quebrarem ou se gastarem com inadequada

facilidade.

Mesmo assim, a tarefa tornou-se garantir, desde logo, que os discos eram registros

duradouros de um evento original. Para tanto, muitas estratégias foram realizadas. Uma das

mais eficientes foi a gravação de grandes artistas de ópera. Por dois motivos. O primeiro

era que esses cantores tinham vozes potentes o suficiente para registrarem-nas em máquinas

que, até então, não dispunham de tecnologia para gravar todo tipo de som. O outro era o

prestígio social de que a ópera gozava. Sabe-se que com a emergência de um mercado

capitalista para a música e o esforço de figuras como Mozart que, conforme Norbert Elias

(1994) retratou, procurou ser o primeiro músico profissional e gênio desse novo mercado

(algo alcançado apenas pela geração seguinte, notadamente com Beethoven), a música

européia de concerto logrou sua autonomia entre as belas-artes. Assim, se os discos

pudessem conter a aura dessas grandes vozes, a capacidade técnica e cultural do meio

estaria definitivamente comprovada.

5 Nesta passagem, Pantagruel visita um congelado local onde houve, no inverno anterior, uma sangrenta batalha. O frio do local congelara no ar todos os sons de gritos, dor, choros e ruídos do enfrentamento. Mas com a aproximação da primavera e o derretimento do gelo, todos aqueles sons preservados estavam sendo libertados e, finalmente, reproduzidos. A associação de Nadar era exatamente com a possibilidade de preservação da memória de eventos passados.

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Os esforços da indústria não foram tímidos. Notem-se as seguintes propagandas6:

Neste anúncio, da empresa Victor, o meio é descrito como a materialização

(embodiment) do melhor da música. Longe de ser uma experiência estética em si, o meio é

a música em sua plena expressão. Somente assim pode a tecnologia trazer ao ouvinte o

melhor, ou seja, a mais refinada expressão da música. A imagem dos aparelhos próxima a

das fotos das personalidades gravadas pela empresa sugere a inequívoca associação entre os

dois elementos.

6 Imagens retiradas do site http://www.tjsrecords.com/victrola.htm

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O assertivo título “você escuta o real Caruso” obriga a estabelecer a total

equivalência entre homem e máquina. Como naquele conto do gênio que sai da lâmpada

com um leve esfregão, a promessa da propaganda é que basta o disco funcionar para que o

gênio lá contido se materialize e cumpra o desejo de tocar a música.

Anúncios não bastam para convencer uma sociedade de que discos encerram um

evento original. Contudo, servem como instrumento de ensino sobre o que esperar e como

utilizar as potencialidades da máquina. Propagandas não apresentam, algo que seja

explícito, inequívoco e, portanto, verdadeiro. Pelo contrário, induzem à interpretação do

que deveria ser: ouvir uma música através de uma máquina, ao invés de perceber seus sons

como ruídos imanentes ao próprio meio. Em particular, estas propagandas constituem

significativos documentos das expectativas sociais e, também, econômicas que cercaram a

implementação dos meios fonográficos. Na verdade, sempre se soube que ouvir um disco

era algo distinto de presenciar o acontecimento em si. O ponto a investigar está na

plausibilidade de se estabelecer uma relação de original e cópia entre dois eventos

absolutamente distintos.

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Isso lembra-nos, acima de tudo, que fatores sociais historicamente dispostos afetam

sobremaneira o desenvolvimento das tecnologias. Ainda que a materialidade destas

suponha a deterioração da aura, vetores sociais e econômicos que acompanharam seu

desenvolvimento como meios empurraram-nas à restauração, ainda que em outra medida,

da aura artística. Aqui, cabe relembrar o refinado comentário de Theodor Adorno (1986, p.

95) sobre o assunto, ao afirmar que a indústria cultural “se define pelo fato de que ela não

opõe outra coisa de maneira clara a essa aura, mas [...] se serve dessa aura em estado de

decomposição [...]”.

Discos e o Processo Civilizador

A questão que falta entender é, portanto, da maior relevância: o que causara o

desejo de acreditar que os discos continham registros de uma sonoridade original? Em

termos precisos, quais foram as condições históricas que fizeram dos meios fonográficos

reprodutores de música? A seguir esboça-se uma hipótese sobre mudanças nas esferas

social e política que podem esclarecer o contexto no qual as tecnologias de reprodução

sonora vieram a existir.

O final do século XIX marca o declínio dos valores vitorianos, pautados por uma

ética religiosa reticente sobre o mundo, e a preponderância dos burgueses, que pregam o

desfrute do mundo (GAY, 2001). A emergente classe média que se constituía nas grandes

cidades estava ávida por legitimidade cultural e política, mas lhe faltava, para utilizar o

termo de Bourdieu, “capital cultural”. Os muitos self-made-men não vinham de famílias

nobres ou da alta burguesia tampouco haviam sido educados em suas instituições de ensino.

Aqueles que detinham o poder faziam questão de sublinhar isso. Norbert Elias (1993; 1994)

argumenta que a crescente interdependência das classes suscitou, no ocidente, o reforço das

diferenças culturais entre elas. Seu Processo Civilizador exprime, enfim, uma forma de

demarcar espaços sociais. Pois o controle de gestos e da personalidade que a nobreza de

corte se impôs “serviu ao mesmo tempo como valor de prestígio, como meio de distinguir-

se dos grupos inferiores que a fustigavam e ela tudo fez para impedir que essas diferenças

fossem apagadas” (1993, p. 214).

O mesmo valeu à alta burguesia. Conforme Kumar (1978) observa, longe de

constituir-se como classe homogênea desde sua ascendência, muitos grupos burgueses

conseguiram ultrapassar os portões da nobreza, assumindo seu ethos distintivo para se

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diferir de sua contrapartida citadina que viria à tona em meados do século XIX, com a

expansão do industrialismo7. Até mesmo nos Estados Unidos, nação que se construíra como

terra da liberdade social, elites tradicionais se organizaram para diferenciar a “alta cultura”

do que era “popular” ou de mercado, como Paul Di Maggio (1982) demonstrou, a fim de

impedir que grupos ascendentes obtivessem capital cultural que os qualificasse a adquirir

status social e político8.

Entretanto, em um cenário de acelerado crescimento econômico e urbano,

acompanhado de uma notável mobilidade social, as pressões de grupos emergentes

desejosos de fruição de bens material e simbólico facilmente se tornam uma forte demanda

política. Privados dos tradicionais meios de capacitação intelectual, como escolas, institutos

de educação ou conservatórios, em um primeiro momento, invariavelmente teriam de

encontrar outra forma de acesso aos bens culturais. É aqui que determinadas tecnologias da

comunicação passam a fazer sentido: elas constituem uma via alternativa à “cultura”,

mediada apenas pelo dinheiro. Retomando a frase lapidar de Benjamin, o que justifica a

arte reprodutível tecnicamente é a vontade de tornar as artes “mais próximas”, não apenas

espacialmente como também socialmente.

Materializando aquele desejo iluminista de levar o conhecimento a todos,

misturando-se com a crença no progresso pela técnica, a fonografia se descreveu como

caminho de fruição aos bens simbólicos. Com ela, poder-se-ia suprir a ausência de herança

social e desfrutar de uma orquestra sinfônica ou usar e abusar do Caruso “real”, conforme

sugerido pela propaganda, na medida em que se desejasse. O apelo do meio estava na

7 Questionando a imagem construída pela sociologia do século XIX de uma burguesia unida contra o antigo regime, Kumar (1978, p. 149-163) observa, por exemplo, que foi a nobreza inglesa a primeira a financiar a revolução industrial em seu país, além de acolher em seu meio a burguesia financeira e comercial. Algo similar aconteceu no caso alemão, no qual os tradicionais proprietários de terras, os Junkers, promoveram a unificação política e, por conseguinte, a industrialização do novo Estado. O ponto a se sublinhar aqui é que a diferenciação através dos gostos culturais necessariamente não se apaga em uma sociedade democrática. Os trabalhos sobre mercado de bens simbólicos realizados por Pierre Bourdieu são categóricos neste ponto.8 O argumento do autor é que as divisões entre “alta-cultura” e “cultura popular” de mercado não eram relevantes até meados do século XIX no principal centro cultural norte-americano, a cidade de Boston. Enquanto as elites locais não sentiram necessidade de se articular contra um elemento social estranho, não havia instituições ou regras sociais que condenassem ou impedissem a interpenetração de cultura da academia com a de mercado. Somente com o crescente fluxo de imigrantes europeus para trabalhar em indústrias da região, na passagem para o século XX, constitui-se certa ameaça ao poder político e cultural local. É sob a pressão por melhoras políticas e sociais vindas das camadas populares que as elites passariam a ser retirar da vida pública da cidade, fundando instituições especializadas para alta cultura (museus, salas de concerto, escolas de belas-artes), destacadas do mercado de entretenimento, afirmando certo tipo de identidade coletiva exclusiva. “Alta cultura” passaria a ser um elemento identificador de um grupo social que se articula, a partir de então, como classe dirigente.

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facilidade de manuseio: diante de qualquer pessoa havia uma tecnologia a exigir o mínimo

esforço para “tocar”. Isso se chocava com a valorização vitoriana da dedicação individual,

no caso da música, expressa nos penosos anos necessários para controlar corretamente um

instrumento musical. Lembre-se: lazer e consumo são valores-chave nessa sociedade

burguesa. Este é seu grande triunfo. Qualquer indivíduo pode ter acesso à “boa música”,

desde que consuma tecnologia. Não surpreende, assim, que gramofones tenham tomado o

lugar dos pianos nas salas de estar.

Mais uma vez, a observação de um anúncio do período pode ser bastante

esclarecedora:

Aqui se nota uma família de classe média em uma postura passiva, ouvindo atenta e

educadamente ao “concerto” no portátil e, portanto, onipresente fonógrafo. Em uma

exibição de status social, a família coloca à vista seu bem: a última tecnologia através da

qual ela acessa a cultura.

Em larga medida, o uso da música erudita pela indústria fonográfica atendia a esse

ímpeto civilizador. Não que os empresários estivessem sinceramente engajados em cultivar

as massas em seu país ou nativos nas colônias dos grandes impérios. O objetivo era que uso

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deste tipo de música emprestasse legitimidade cultural à tecnologia e ao negócio, em casa, e

os levasse a todos os recantos do mundo colonizado. Não por acaso, como William H.

Kenney (1999) observa, os “selos vermelhos”, marcas que distinguiam os discos de música

erudita, eram os mais valorizados nos primeiros catálogos da Victor Talking Machine.

Eram eles que tinham trânsito ininterrupto pelos diferentes continentes e países. Em uma

época na qual a música popular era um dialeto geograficamente restrito, a “boa música”

erudita podia passear pela Europa, EUA, Brasil ou nos países escandinavos, possibilitando

à indústria fonográfica se estabelecer em tais localidades, a despeito das diferenças

econômicas e culturais9.

Em um interessante ensaio, Mark Katz (2004) sinalizou o grande interesse dos

norte-americanos em utilizar a nova tecnologia como meio de civilizar o país, difundindo a

“boa” música européia por suas diferentes regiões e classes sociais. Segundo os

comentadores sociais da época, a nação carecia de uma tradição musical acadêmica, além

do que sua continental abrangência geográfica impedia um desenvolvimento cultural

homogêneo. Em termos precisos, muitos membros da elite preocupavam-se com o futuro da

nação, dominada por culturas populares ainda marcadamente regionalizadas. Afinal, as

cicatrizes da Guerra de Secessão ainda estavam expostas. Não causa surpresa, neste caso,

que reprodutores e discos tenham sido bem promovidos como forma de civilizar (e,

adicione-se, nacionalizar) a população10.

Isso é muito claro no seguinte anúncio11,

9 Os trabalhos de FRANCESCHI, 2002, e o ensaio de GRONOW; ENGLUND, 2007, dão informações importantes sobre a construção da indústria fonográfica no Brasil e nos países escandinavos, respectivamente.10 Não por acaso, o trabalho do historiador William H. Kenney (1999) demonstra como os discos foram importantes para criar uma memória coletiva norte-americana, um certo sentido de comunidade, ou mais propriamente, de nação. É certo que se deve descontar dessas narrativas a tradição de determinismo tecnológico inerente à visão de mundo norte-americana. Contudo, a desculpa da unificação cultural foi, sem dúvida, um operante motivo de disseminação da tecnologia fonográfica rapidamente no país.11 Disponível em http://www.phonographia.com/PhonoArt.htm

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Esta propaganda de 1910, da Companhia Edison, traz uma incômoda semelhança

com a última. Nela, os indígenas escutam, com a mesma postura resignada da família

burguesa branca, o fonógrafo. Não há indicação se a música que os entretém é de tipo

erudito ou não. Isso pouco importa, é verdade. Aqui a ideologia do progresso pela técnica é

explícita: o fonógrafo civiliza a todos, naturalmente. Nas propagandas do período não é

raro encontrar representações não apenas de indígenas como também de mulheres, crianças,

negros e nativos de partes do mundo colonizado (seres considerados, então, alheios por

incapacidade própria à civilização) representados admirando o progresso tecnológico do

mundo industrializado.

O fato é que, por mais diversos que sejam os motivos locais, os meios fonográficos

tiveram uma fulminante penetração social devido, sem dúvida, ao prestígio civilizador da

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música erudita. Os selos vermelhos da Victor ou as gravações de Enrico Caruso ajudaram a

construir um catálogo mundial do qual, até hoje, essa indústria se vale. Basta lembrar que

na época da introdução dos Compact Discs, nos anos 1980, foram as sinfonias as primeiras

a serem digitalizadas e vendidas. Eram elas, assim se justificou, que melhor testariam a

qualidade técnica da nova tecnologia: finalmente poderiam ser gravadas por completo, sem

a interrupção dos lados dos LP e se caso a tecnologia digital fosse aprovada pelos exigentes

fãs de música erudita, certamente o produto estria capacitado para uso em escala. Mais uma

vez, o discurso da alta-fidelidade servia a seus fins ideológico e comercial.

Conclusão

O aspecto mais importante a se depreender deste texto é que as discussões sobre os

meios de comunicação exigem atenção a muito mais que sua materialidade. O meio não é a

mensagem. Os contextos social e econômico são, sim, essenciais.

Na contramão dos recentes estudos formalistas sobre os efeitos da materialidade dos

meios sobre a sociedade, apresentou-se aqui um argumento em que se sustenta que a

cultura foi fundamental na própria criação da tecnologia. Estivessem envoltas em outro

momento histórico, talvez as tecnologias de reprodução sonora tivessem seguindo outra

trajetória e pouco estivessem ligadas à música. No entanto, o uso da música, sobretudo a

erudita, em um cenário de expansão imperial, industrialismo, mobilidade social e crença no

progresso via tecnologia agiram contigencialmente – e essa é a palavra-chave – na

construção dos meios fonográficos como portadores universais da cultura musical.

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