multivíduo conectivo: gregory bateson - ciência e...

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41 PSICANÁLISE E LINGUAGEM MÍTICA / ARTIGOS MULTIVÍDUO CONECTIVO: GREGORY BATESON Massimo Canevacci INTRODUÇÃO SUBJETIVA O meu itinerário na antropologia cultural é oblíquo. Formei-me na Escola de Frankfurt, com dedicação particular à “dialética do Ilumi- nismo. Neste sentido, o conceito de cultura, no qual me iniciei, é aquele de Kultur, isto é, a cultura humanística, eurocêntrica, aquela que se inicia com a filosofia grega e chega à catástrofe dos Estados autoritários. Uma cultura que tem necessidade de misturar diversas disciplinas e que apresentava então uma novidade fundamental: a reflexão filosófica aplicada na pesquisa empírica. Uma filosofia so- cial cujo telos – o escopo final – consistia em transformar o mundo segundo a célebre XI Tese sobre Feuerbach, de Karl Marx. Depois, por um acaso, logo que me formei, o professor de antropologia cultural me chamou para colaborar na faculdade de sociologia, pois queria conhecer a nossa cultura antes de estudar a cultura dos outros. Nesse começo, e devido a um novo acaso, fui convidado a ensinar no Brasil, em 1984, e o meu ponto de vista começou a mudar profundamente. Eu descentralizei a grande cultura ocidental como uma das culturas e filosofias possíveis. Deixei dolorosamente, diria traumaticamente, a minha formação clássica: foi um presente precioso que o Brasil me deu. Assim dei início a uma pesquisa espontânea, e depois mais metodológica, sobre São Paulo. Sempre tive uma paixão irrefreável pelo cinema em particular e pela comunicação e as artes visuais em geral. Por isso, decidi realizar, fazendo uso de diversos métodos, uma pesquisa empírica sobre a comunicação visual na metrópole de São Paulo. Utilizei para isso o conceito de polifonia, que integrei ao título final de minha pesquisa: A cidade polifônica (1) uma miscelânea de escrita ensaísta, narrativa, etnopoética e imagens. Comecei essa pesquisa fotografando alguns lugares de São Paulo, seguindo a hipótese de quatro centros: a Faria Lima chegando à avenida Berrini era uma possibilidade distante e de interconexão necessária e, para mim, ali emergia outro centro de es- tilo pós-industrial. Depois de fotografar alegorias, estátuas de pedra, seringueiras, trabalhadores da construção suspensos em andaimes, evangélicos pregando na rua, elegi os grandes edifícios modernistas, aqueles da arquiteta modernista Lina Bo Bardi, que amo, desmistifi- cando a pirâmide da Fiesp na Paulista. Em suma, os trabalhos sobre e com as imagens eram dialógicos com a escrita. Posteriormente, e de novo por acaso, encontrei um cacique xa- vante – Domingos Mahoro’e’o –, que me convidou para visitar sua aldeia. Então, finalmente comecei a fazer pesquisas indígenas no Mato Grosso, entre os Xavantes e depois entre os Bororos. Participar nos rituais xavantes de furação das orelhas e no funeral bororo foram as experiências da minha vida. As imagens foram sempre decisivas, mas, para minha grande surpresa, no começo eram como um desafio e se transformaram em um prazer. Entre essas duas culturas, havia pessoas como Divino (xavante) e Paulinho ( bororo) que usaram o

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p s i c a n á l i s e e l i n g u a g e m m í t i c a /a r t i g o s

multivíduo coNectivo: gregory batesoN

Massimo Canevacci

iNtrodução suBjetivaO meu itinerário na antropologia cultural é oblíquo. Formei-me na Escola de Frankfurt, com dedicação particular à “dialética do Ilumi-nismo. Neste sentido, o conceito de cultura, no qual me iniciei, é aquele de Kultur, isto é, a cultura humanística, eurocêntrica, aquela que se inicia com a filosofia grega e chega à catástrofe dos Estados autoritários. Uma cultura que tem necessidade de misturar diversas disciplinas e que apresentava então uma novidade fundamental: a reflexão filosófica aplicada na pesquisa empírica. Uma filosofia so-cial cujo telos – o escopo final – consistia em transformar o mundo segundo a célebre XI Tese sobre Feuerbach, de Karl Marx. Depois, por um acaso, logo que me formei, o professor de antropologia cultural me chamou para colaborar na faculdade de sociologia, pois queria conhecer a nossa cultura antes de estudar a cultura dos outros. Nesse começo, e devido a um novo acaso, fui convidado a ensinar no Brasil, em 1984, e o meu ponto de vista começou a mudar profundamente. Eu descentralizei a grande cultura ocidental como uma das culturas e filosofias possíveis. Deixei dolorosamente, diria traumaticamente, a minha formação clássica: foi um presente precioso que o Brasil me deu. Assim dei início a uma pesquisa espontânea, e depois mais metodológica, sobre São Paulo.

Sempre tive uma paixão irrefreável pelo cinema em particular e pela comunicação e as artes visuais em geral. Por isso, decidi realizar, fazendo uso de diversos métodos, uma pesquisa empírica sobre a comunicação visual na metrópole de São Paulo. Utilizei para isso o conceito de polifonia, que integrei ao título final de minha pesquisa: A cidade polifônica (1) � uma miscelânea de escrita ensaísta, narrativa, etnopoética e imagens. Comecei essa pesquisa fotografando alguns lugares de São Paulo, seguindo a hipótese de quatro centros: a Faria Lima chegando à avenida Berrini era uma possibilidade distante e de interconexão necessária e, para mim, ali emergia outro centro de es-tilo pós-industrial. Depois de fotografar alegorias, estátuas de pedra, seringueiras, trabalhadores da construção suspensos em andaimes, evangélicos pregando na rua, elegi os grandes edifícios modernistas, aqueles da arquiteta modernista Lina Bo Bardi, que amo, desmistifi-cando a pirâmide da Fiesp na Paulista. Em suma, os trabalhos sobre e com as imagens eram dialógicos com a escrita.

Posteriormente, e de novo por acaso, encontrei um cacique xa-vante – Domingos Mahoro’e’o –, que me convidou para visitar sua aldeia. Então, finalmente comecei a fazer pesquisas indígenas no Mato Grosso, entre os Xavantes e depois entre os Bororos. Participar nos rituais xavantes de furação das orelhas e no funeral bororo foram as experiências da minha vida. As imagens foram sempre decisivas, mas, para minha grande surpresa, no começo eram como um desafio e se transformaram em um prazer. Entre essas duas culturas, havia pessoas como Divino (xavante) e Paulinho ( bororo) que usaram o

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então, abandonou a “disciplina” por incluir a cibernética na área da antropologia.

Bateson já tinha elaborado nos anos 1930 o conceito de schismo-genesis (cismogênese, que vem do grego: schisma = “divisão” + genesis = “nascimento”) durante suas primeiras pesquisas etnográficas em Nova Guiné; para ele, os processos comportamentais e interativos no interior de um grupo em relação ao ethos (como uma cultura enfrenta e resolve as emoções) podem favorecer a competição ou rivalidade e também a inibição ou submissão. Ambas poderiam ser autodestrutivas devido à existência de duas facções internas ao gru-po, ou resolver-se numa divisão mais ou menos dramática – por isso criam-se mecanismos de autocorreção que freiam as relações de tipo conflitual. Assim, quero sublinhar a importância não só conceitu-al, como também pragmática da relação entre cismogênese e auto-correção: dez anos depois e por outros itinerários epistemológicos, Norbert Wiener elabora o modelo de retroação – o feedback –, seme-lhante ao modelo de autocorreção cismogenética. Tudo isso indica uma aliança profunda, ou conexões psicoculturais, entre feedback e schismogenesis, na direção de verificar como as tecnologias podem ser aplicadas na criação de projetos por meio da primeira inteligência artificial. E justamente a cibernética nasce do encontro entre um pesquisador etnográfico isolado, Bateson, e uma equipe de pesqui-sadores informáticos, Wiener. Tal aliança entre as chamadas duas culturas – científica e humanística, segundo Charles P. Snow torna-se ainda mais significativa, enquanto Bateson e Wiener criticam os cientistas que isolam o input-output sem retroação, analisando o “objeto” ficando fora dele. Wiener e Bateson utilizam a metáfora da caixa (box): o cientista precisa ficar dentro da caixa, isto é, fora da metáfora, no interior do fieldwork etnográfico. E esse fieldwork apre-senta afinidades (não identidade!) entre o ethos do Iatmul na Nova Guiné e a inteligência artificial na cibernética, baseados na autocor-reção. Quero novamente ressaltar que essas metodologias etnográ-ficas são muito parecidas com aquela da psicanálise. O psicanalista precisa ficar dentro da relação com o paciente, não pode observá-lo ou escutá-lo de fora. A caixa é igualmente o setting psicanalítico onde se cria uma contínua retroação autocorretiva entre os dois sujeitos envolvidos. O feedback envolve não só o psicanalista como também o paciente, e as metodologias psicanalíticas traduzem esse feedback em seus próprios conceitos (como, por exemplo, no de transferência e contratransferência). Recíprocas autocorreções criam um comple-xo vínculo na dupla durante o “interminável” processo terapêutico, e, assim, se apresenta o novo conceito, elaborado mais recentemen-te, que tornou o pensamento de Bateson fundamental: aquele de complexidade.

Von Foerster explica: “O que se precisa agora é uma descrição do descritor; ou, em outras palavras, precisamos de uma teoria do observador” (6); isso significa uma aliança necessária e ainda mais profunda e complexa entre antropologia e psicanálise, no contexto do desafio transdisciplinar da complexidade. Descrever, interpretar e transformar o descritor. E, se um cientista “exato” fala assim, parece-me que essa aliança já está profunda e posta em prática. O que ainda hoje precisa ser colocado na caixa é a descrição do observador, seja ele etnógrafo, psicanalista ou epistemólogo: isso para mim significa

vídeo. Daí a minha posição atual com base na autorrepresentação (2), ou melhor, em uma tensão dialógica e até em conflitos entre auto e heterorrepresentação. No fim de meu atual projeto, o pressuposto que considero fundamental para muitos pontos de vista é a relação aldeia-metrópole. Ou seja, uma etnografia que transita entre as cul-turas indígenas e urbanas para encontrar pontos de contato ou de diferença, de conflito, de sincretismo cultural. Assim, comunicação-cultura-consumo desempenham um papel sempre mais importante na metrópole contemporânea e, simetricamente, o conceito de mo-derno está em evidente declínio.

BatesoN: etNóGraFo da ComPLexidade Por tudo isso, meu traba-lho é diretamente influenciado pelo antropólogo britânico Gregory Bateson. Admiro-o e, ao mesmo tempo, tento identificar algumas limitações em seu contexto histórico e cultural. O livro de autoria de Bateson que mais me impressionou foi Balinese character (3) – na minha opinião, a melhor pesquisa etnográfica já realizada com uma câmara de filmar e fotografar. Insuperável. O conceito de uma sequência que define um traço cultural (por exemplo, o aleitamento ou o transe) constitui a base para minha pesquisa e meu ensino. Sempre que o mostro, na sala de aula forma-se um silêncio atento para o processo de investigação, ponto de partida para o desenvolvimento posterior de conceitos fundamentais, como o duplo vínculo (double bind) e a ecologia da mente. O primeiro conceito – o duplo vínculo – foi especialmente aplicado à comu-nicação visual, por meio da publicidade, da internet, do cinema e da política. Trata-se de um conceito que perpassa a psicologia, a etnografia, a comunicação, com um projeto de libertação. Todos os alunos, inclusive eu, estão cheios de duplos vínculos. Fixá-los e tentar dissolvê-los criativamente é a grande lição de Bateson que tento aplicar nos fetichismos visuais atuais.

Já Ecologia da mente (4) é mais articulado: há muitas limita-ções genéricas que se tornam estilos comuns, como o filme Avatar (2009), de James Cameron, no qual alguns críticos (e não só) conse-guiram enxergar algo de Bateson. E, talvez, estejam certos, o que se deve também a ele. A trama que liga (patterns which connects) é sem dúvida importante, embora descambe facilmente para um hippie místico zen, trip-ayuasca, uga-uga e coisas do tipo. Isso me deixa desconfiado em relação ao seu conceito de holístico, que considero perigosíssimo: a totalidade inclui e explica uma parte ou os diversos elementos empíricos. Em todo caso, reivindico a subjetividade – de um novo tipo a que chamo de multivíduo – como não unificável em uma totalidade ecológica. Este é um erro de Bateson: a ansiedade de perder a si mesmo ou unificá-lo holisticamente com o todo.

Bateson me influenciou na percepção da ligação entre etnogra-fia e cultura digital: a sua participação no nascimento da cibernética, juntamente com Norbert Wiener, foi muito importante. Daí a minha pesquisa sobre a internet e o sincretismo digital. Queria sublinhar que a cultura digital tem uma história que sempre esteve interligada à antropologia. E o autor de referência nessa conexão é Bateson.

Na entrevista realizada por Steward Brand, publicada em Per l’amor di Dio, Margaret! (5), Bateson revela a escolha de colaborar com o fundador da cibernética, Wiener, no ano de 1946, quando,

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sempre foge, que irá se mover cada vez para mais longe, enquanto o mesmo ritual e as pessoas que o praticam mudam, assim como o sujeito que faz a pesquisa é sempre diferente.

Enfim, a etnografia é acabável e inacabável, como diria Freud para a psicanálise. Talvez se possa afirmar que Bateson se sentisse limitado pela disciplina, motivo pelo qual teria influenciado muitas pessoas que não se tornaram antropólogos no sentido restrito. Na minha experiência, posso dizer que ele me influenciou profunda-mente, que a leitura e a visão atenta de Naven, de Balinese character e de Ecologia da mente me formaram.

Devo mencionar também um autor contemporâneo de Bate-son, totalmente diferente dele, com o qual nunca se encontrou física nem cientificamente; refiro-me a Walter Benjamin. Aqui sinalizo outro aspecto metodológico inerente a ambos, além de um certo “misticismo imanente”. Bateson diz no célebre posfácio de Naven que o método está em colocar junto os dados – o que é fundamental em toda pesquisa contemporânea, eu acho. Benjamin, mais sensível ao cinema e à tecnologia reproduzível, afirmava que o método está na montagem. Portanto, a composição é para mim o conceito mais adequado ao lugar da escrita, a fim de dar sentido à pesquisa de campo: uma montagem de fragmentos escritos, ensaísticos, literá-rios, poéticos, icônicos, sônicos para a qual uma composição fluida consegue dar um sentido parcial e temporâneo, oblíquo e profundo.

metróPoLe ComuNiCaCioNaL O problema transdisciplinar fun-damental da comunicação contemporânea é verificar pragmática e etnograficamente a transição da dimensão analógica para a digital:

a) Na dimensão analógica, o coletivo parece funcionar de ma-neira parcial e problemática. A sua composição sociopolítica, que reassume a política urbana e a dialética na modernidade industria-lista, começou a perder significado a partir da mudança da forma clássica da cidade e do crescente desenvolvimento das novas tecno-logias produtivas.

b) As dimensões digitais do conectivo caracterizam de modo mais acentuado esse processo, que numa dimensão inédita mistura cultura e comunicação. Essa mudança processual coloca em crise a perspectiva coletiva e, em consequência, afirma processos conecti-vos que favorecem a libertação de uma individualidade tendencial-mente fluida. Conectar significa verificar a hipótese de que uma pessoa possa conectar-se no mesmo momento com pessoas diferen-ciadas nos espaços-tempos, transitando, apesar de fisicamente ficar imóvel, num cronótopo polifônico e híbrido.

Tudo isso significa que a política está mudando profundamente e que as formas contemporâneas das políticas têm de incorporar a comunicação digital como constituinte de uma nova cidadania. Uma cidadania transitiva determinada pelo Estado-Nação e flutu-ante entre os e-spaces – espaços eletrônicos materiais e imateriais – que nos interconectam nos fragmentos das metrópoles comunica-cionais, onde as clássicas taxonomias identitárias de classes sociais, gênero, idade, etnicidade e território entram em crise.

Esse processo, que se iniciou, mais ou menos nos anos 1970, não só no mundo ocidental, manifesta a transição da cidade industrial para a metrópole comunicacional. Isto é, a cidade industrial tinha

aprender a fazer pesquisa com (e não sobre) o sujeito envolvido no processo empírico, seja ele nativo, paciente ou síncrotron (acelerador de partículas nucleares). A descrição do descritor é uma mudança de cultura epistemológica, comunicacional e política que envolve, no processo compositivo ou terapêutico, cada sujeito da pesquisa.

Tudo isso tem de ser aplicado também na cultura digital. Das conexões e infusões entre etnografia, psicanálise e cibernética – uma psicoetnografia da web – nascem as possibilidades de transformar a internet em uma “coisa” ainda mais ampla: a composição do sujeito contemporâneo. Assim, agora se apresenta o problema não resolvido – político e epistêmico – dos softwares produzidos como resultado de elaborações informáticas. E uma nova elaboração de software não baseada sobre a lógica binária poderia ser produzida a partir dessa aliança da complexidade transdisciplinar. E teríamos o digital cruzando a etnografia, a psicanálise e a comunicação.

Por isso, as disciplinas teriam de se conectar por meio dos fluxos da comunicação digital; e a aliança com os profissionais da informá-tica – frequentemente fechados, como muitos cientistas sociais, em mundos encastelados – poderia favorecer soluções progressivas além da web 2.0, importante pela social network, mas ainda centralista, em direção à web 3.0, um software mais descentrado e pluralista. É necessário, portanto, dissolver os poderes econômicos da web 2.0; envolver cada cibernauta nos processos de elaboração multilógicos e multissensoriais; favorecer um processo de autopoiesi por cada sujeito multividual. A aliança entre etnografia e psicanálise atual precisa enfrentar também – às vezes, principalmente – essa nova composição do multivíduo digital, a relação entre novas patologias e inovações comunicacionais libertadoras.

Eu li Naven (7), outro livro de Bateson, em 1988 e, desde o iní-cio, essa obra influenciou minha cidade polifônica: sua concentra-ção de escolha metodológica foi voltar ao mesmo ritual, com pontos de vista disciplinar e oticamente diferenciados, numa diferenciação epistêmica sem fim, enquanto um fato empírico como um ritual nunca poderia ser compreendido em sua totalidade através de um método ou uma monoescritura. Em suma, a multiplicação de pon-tos de vista dos pesquisadores sobre o próprio objeto de pesquisa tem sido decisiva.

Devo dizer que, devido a isso, se desenvolveu em mim a neces-sidade de ver a dimensão subjetiva do objeto, para dar voz à indi-vidualidade que a antropologia cultural, mesmo que batesoniana, silencia, ignora ou até mesmo remove. Minha intenção é encontrar a individualidade no trabalho de campo, ainda que sem nome e voz. Neste sentido, o excesso de “objetivismo” ligado ao excesso de um naturalismo transcendente é o seu limite. Como já mencionado, o conceito de ethos – de que forma as emoções são produzidas, fixadas e modificadas culturalmente – é outra importante categoria aplicada à pesquisa e ao pesquisador. O estudo etnográfico das emoções e dos desvios patológicos comunicacionais é um dos grandes méritos de Bateson, fato que provocou a dura crítica de um Malinowski blo-queado no funcionalismo, e que favoreceu a sucessiva pesquisa sobre o duplo vínculo e a esquizofrenia.

Naven contribuiu para a crise da objetividade na pesquisa, para a aproximação constante a um núcleo de verdade etnográfica que

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etc. Certamente a dimensão industrial ainda é significativa, embora não se mostre mais central como na cidade moderna; o cruzamento entre comunicação e tecnologia digital favorece um tipo de trans-formação profunda na metrópole. A metrópole comunicacional não é mais baseada apenas na relação entre Estado e Nação; ela está prioritariamente interconectada com outras áreas metropolitanas globalizadas. Fundamentalmente são grandes áreas metropolitanas e comunicacionais que competem entre si e que desenvolvem estilos diferenciados que favorecem esse tipo de transição profunda.

A metrópole comunicacional individualiza, no contexto tran-surbano, a possibilidade de experimentar lógicas plurais e conceitos sensoriais numa cultura urbana e num sujeito-multivíduo. A me-trópole moderna era industrialista e a pós-moderna, exemplificada por Las Vegas, podia só “remixar” os signos do passado, porque tudo parecia já ter sido inventado. Porém, nas últimas décadas emergiu a arquitetura pós-euclidiana, até então jamais imaginada (a história não acabou), em que é possível executar projetos graças à aliança en-tre tecnologias e materiais de construção digitais. Assim, o dualismo clássico material/imaterial é superado em face da cultura digital e, às vezes, a arquitetura contemporânea consegue antecipar novas sen-sibilidades: é suficiente olhar Dubai ou Xangai, a Concert Hall em Hamburgo ou a Tate Modern 1 e 2 em Londres, de Herzog & De-Meuron. Simultaneamente, moda, design, publicidade, música e, em geral, a comunicação visual tornaram-se elementos determinan-tes para entender o viver metropolitano. A comunicação devora a so-ciedade e se mostra mais hegemônica para permitir o entendimento de processos de mutação, de conflitos, de inovações. O significado das prospectivas do transurbanismo consiste em experimentar o vi-ver contemporâneo favorecendo um posicionamento fluido e tran-sitivo de subjetividades, códigos, identidades. O multivíduo – os “eus” de uma pessoa internamente plural – nasce nesse contexto (8).

Massimo Canevacci é docente de antropologia cultural na Universidade de Roma La Sapienza, Faculdade de Ciências da Comunicação. Atualmente é professor na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Notas e reFerÊNCias BiBLioGrÁFiCas

1. Canevacci, M. A cidade polifônica. São Paulo: Studio Nobel. 2004.

2. Canevacci, M. Comunicação visual. São Paulo: Brasiliense. 2009.

3. Bateson, G. & Mead, M. Balinese character. A photographic analysis.

New York: Academy of Sciences. 1942.

4. Bateson, G. Steps to an ecology of mind. New York: Ballantine. 1972.

5. Brand, S. "Per l’amor di Dio, Margaret! Intervista a Bateson e Mead".

In: Studi Culturali, nº 1, 2004.

6. Brand, S. op. cit., p. 152. 2004.

7. Bateson, G. Naven. A survey of the problems suggested by a compo-

sitive picture of the culture of a New Guinea tribe drawn from three

points of views. Standford University Press. 1936 (1985 ed. italiana).

8. Bateson, G. & Mead, M. op. cit., 1942.

como momento central a fábrica, lugar de produção econômica do valor de troca, e também de produção política. Centro do conflito, compunha o contexto em que se desenvolveu a forma mais poderosa da lógica, isto é, a dialética e a formação dos partidos e sindicatos. A fábrica dava, então, o sentido da transformação econômica, cultu-ral e sociológica da cidade. E naquela época era possível entendê-la imanentemente relacionada à produção industrial. Assistimos nos últimos trinta anos a um processo lento, um processo que ainda não acabou: a transformação desse centro num policentro.

Esse conceito indica que consumo, comunicação e cultura as-sumiram uma importância mais interconectada à tradicional pro-dução. Trata-se de um tríptico que desenvolve um tipo de público diferente daquele homogêneo e massificado da era industrial: é um público muito mais pluralizado ou, poderíamos dizer, são públi-cos. E eles gostam de desempenhar um papel nos contextos que envolvem consumo-comunicação-cultura. Tudo isso tem uma im-portância semelhante à da fábrica em plena era industrialista; e é por isso que precisamos estudar, pesquisar e, também, transformar os espaços do consumo-comunicação-cultura desenvolvidos pela metrópole comunicacional.

E a comunicação na era digital é ainda mais importante, seja pelo aspecto produtivo, seja pelo aspecto de valores, de comportamento, da maneira de falar, de estabelecer uma relação com o corpo e com a sua identidade. A cultura como estilo de vida é cada vez mais parte constituinte da vida cotidiana da nova metrópole. E, para entendê-la, é fundamental olhar o tipo de reforma empreendida, não somen-te urbanística, mas de prédio, de loja, de espaços expositivos, de museus que têm como forma arquitetônica um desenho e, também, uma lógica pós-euclidiana. Se uma pesquisa lança seu olhar sobre a grande área metropolitana do mundo sprawl, conurbação, tem-se um desafio glocal – global e local – que parece estagnado no Bra-sil, cujas áreas metropolitanas, como São Paulo e Rio de Janeiro, dispõem de uma arquitetura adequada à contemporaneidade, se comparadas com Xangai, Chicago, Londres, Berlim, Abu Dhabi, entre outras metrópoles. A hipótese aqui consiste em verificar as motivações complexas da cultura visual arquitetônica no Brasil – modernista, brutalista ou minimalista – e a atual (infeliz!) inexistên-cia de fluxos que desenvolvam formas lógicas inovadoras, capazes de favorecer uma percepção contemporânea da identidade, que permite elaborar configurações sensoriais inovadoras. Esse tipo de transição revela não apenas que o território não é mais como antes, mas também que a etnicidade, a sexualidade, a família, a identidade são muito mais pluralizadas e instáveis do que se percebe. É raro que uma pessoa possa executar um tipo de trabalho por toda a vida, que permaneça no mesmo território, que tenha a mesma família; e esse tipo de flexibilidade é parte constitutiva do conflito e da mudança contemporâneos. E a questão da cultura e da comunicação digital é fundamental nesse processo.

Assim, verificar etnograficamente as modalidades complexas e flutuantes da transição em direção da metrópole comunicacional significa determinar como o tríptico consumo-comunicação-cul-tura produz valores tanto no sentido econômico como no sentido antropológico: visão do mundo, estilos de vida, linguagem corporal

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