mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; the

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Correio O DA UNESCO Abril – Junho 2011 ISSN 2220-2269 Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade Defensora das causas das mulheres Michelle Bachelet Inscrever o Quirguistão no mapa-múndi Roza Otunbayeva Uma questão de compromisso Michaëlle Jean Direitos garantidos, liberdades confiscadas Sana Ben Achour Crime sem castigo Aminetou Mint El Moctar Sem medo de nada Sultana Kamal Uma advogada de caráter inabalável Asma Jahangir Resistir à tirania Mónica González Mujica Paciência, vamos chegar lá Humaira Habib Estrelas de minha galáxia pessoal Luisa Futoransky

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Page 1: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

Correio O

DA UNESCO

Abril – Junho 2011

ISSN 2220-2269

Mulheres na conquista por novos

espaços de liberdade

Defensora das causas das mulheres

Michelle Bachelet

Inscrever o Quirguistão no mapa-múndi

Roza Otunbayeva

Uma questão de compromisso

Michaëlle Jean

Direitos garantidos, liberdades conf iscadas

Sana Ben Achour

Crime sem castigo

Aminetou Mint El Moctar

Sem medo de nada

Sultana Kamal

Uma advogada de caráter inabalável

Asma Jahangir

Resistir à tirania

Mónica González Mujica

Paciência, vamos chegar lá

Humaira Habib

Estrelas de minha galáxia pessoal

Luisa Futoransky

Page 2: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

NOSSOS AUTORES E AUTORAS

Condição necessária para a realização de todos os outros objetivos de

desenvolvimento negociados no plano internacional, a igualdade de gênero é

vital para combater a pobreza extrema, reduzir a propagação do HIV e da AIDS,

atenuar os efeitos das mudanças climáticas e alcançar desenvolvimento e paz

sustentáveis.

Sempre atenta à promoção dos direitos das mulheres, a UNESCO elevou

a igualdade de gênero ao nível de suas prioridades globais. A Organização

tem empreendido uma série de ações que visam a reduzir as desigualdades

em matéria de educação, começando pelo acesso à escolarização, até a

garantia da qualidade do ensino em todos os níveis, passando por crescente

participação das mulheres na ciência, na tecnologia, na inovação e na pesquisa.

A UNESCO também busca combater os estereótipos de que as mulheres

são vítimas, assim como as desigualdades a que elas são submetidas

em matéria de acesso, utilização e participação em todos os sistemas

de comunicação e de informação. Ao mesmo tempo em que a

Organização desperta nos prof issionais maior consciência

quanto à necessidade de integrar uma perspectiva

de igualdade de gênero nos conteúdos

midiáticos, ela organiza programas de

formação destinados a aumentar a segurança

para as mulheres jornalistas.

Além disso, a UNESCO esforça-se em

promover o empoderamento das mulheres e a

igualdade de gênero, integrando essas considerações

na sua ação normativa em áreas como a ética da ciência, a

cultura e os direitos humanos.

O Departamento para a Igualdade de Gênero é o responsável

pela execução da prioridade “Igualdade de Gênero”, utilizando como

roteiro o Plano de Ação 2008-2013.

Noémie AntonyLaura Martel

(França) Sultana Kamal (Bangladesh)

Sana Ben Achour (Tunísia)

Katrin Bennhold (Alemanha)

Feriel Lalami-Fates (Algéria)

Aminetou Mint El Moctar (Mauritânia)

Navin ChawlaAnbarasan EthirajanShiraz Sidhva(Índia)

Lautaro Pozo (Equador)

Lorena Aguilar (Costa Rica)

Michelle BacheletMónica González Mujica

(Chile)

Roza Otunbayeva (Quirguistão)

Michaëlle Jean (Canadá)

Asma Jahangir (Paquistão)

Giusy Muzzopappa (Itália)

Humaira Habib (Afeganistão)

Luisa Futoransky (Argentina)

Ernest Pépin (Guadalupe)

Princesse Loulwah (Arábia Saudita)

Maggy Barankitse (Burundi)

Scutum, escultura em bronze de Annette Jalilova. © Annette JALILOVA, Paris

dos os outros objetivos de

rnacional, a igualdade de gênero é

zir a propagação do HIV e da AIDS,

e alcançar desenvolvimento e paz

as mulheres, a UNESCO elevou

idades globais. A Organização

isam a reduzir as desigualdades

cesso à escolarização, até a

s níveis, passando por crescente

nologia, na inovação e na pesquisa.

estereótipos de que as mulheres

que elas são submetidas

ção em todos os sistemas

o tempo em que a

or consciência

pectiva

ça

e a

iderações

a da ciência, a

nero é o responsável

Gênero”, utilizando como

Igualdade de gênero: uma prioridade para a UNESCO

Page 3: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

CorreioO

DA UNESCO ABRIL-JUNHO 2011

© D

R

O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 1 . 3

Editorial – Irina Bokova, diretora-geral da UNESCO 5

Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade

Defensora da causa das mulheres 7

Entrevista com Michelle Bachelet por Jasmina Šopova

Mulheres à conquista do espaço político – Shiraz Sidhva 9

Inscrever o Quirguistão no mapa-múndi

Entrevista com Roza Otunbayeva por Katerina Markelova 13

Uma questão de compromisso 15

Entrevista com Michaëlle Jean por Katerina Markelova

Crime sem castigo 17

Entrevista com Aminetou Mint El Moctar por Laura Martel

Mamãe Maggy e seus 20.000 f ilhos 20

Jasmina Šopova encontra com Maggy Barankitse

Sem medo de nada 22

Entrevista com Sultana Kamal por Anbarasan Ethirajan

Uma advogada de caráter inabalável 25

Entrevista com Asma Jahangir por Irina Zoubenko-Laplante

Direitos garantidos, liberdades conf iscadas – Sana Ben Achour 28

Agora ou nunca – Giusy Muzzopappa 30

Resistir à tirania 32

Entrevista com Mónica González Mujica por Carolina Jerez e Lucía Iglesias

Paciência, vamos chegar lá – Humaira Habib 34

Uma lenta conquista do mercado de trabalho – Feriel Lalami-Fates 36

Igualdade de gênero: um bem público mundial 37

Saniye Gülser Corat e Estelle Raimondo

A mulher é o futuro de Davos – Katrin Bennhold 39

Lançando as sementes do futuro 41

Entrevista com Lorena Aguilar por Alfredo Trujillo Fernández

Estrelas de minha galáxia pessoal – Luisa Futoransky 43

Madre Teresa: a mulher mais poderosa do mundo – Navin Chawla 47

Manuela Sáenz, guerreira à serviço da América Latina 48

Lautaro Pozo

POST-SCRIPTUM

Homenagem a Edouard Glissant: pensar o Tout-Monde – Ernest Pépin 50

A nossa riqueza é a juventude

Entrevista com a Princesa Loulwah da Arábia Saudita por Linda Tinio 52

Pensamento universal: Tagore, Neruda, Césaire, a poesia a 53

serviço de um novo humanismo – Noémie Antony e Jasmina Šopova

64º aniversário

2011 - n° 2

O Correio da UNESCO é átualmente trimestral, publicado

em sete línguas pela Organização das Nações Unidas para a

Educação, a Ciência e a Cultura.

7, place de Fontenoy 75352, Paris 07 SP, France

Assinatura da versão eletrônica gratuita:

www.unesco.org/new/pt/unesco-courier

Diretor da publicação: Eric Falt

Redatora- chefe: Jasmina Šopova

[email protected]

Secretária de Redação: Katerina Markelova

[email protected]

Redatores:

Árabe : Khaled Abu Hijleh

Chinês : Weiny Cauhape

Espanhol : Francisco Vicente-Sandoval

Francês : Françoise Demir

Inglês : Cathy Nolan

Português : Ana Lúcia Guimarães

Russo : Irina Krivova

Photos : Ariane Bailey

Paginação: Baseline Arts Ltd, Oxford

Impressão: UNESCO – CLD

Informações e direitos de reprodução:

+ 33 (0)1 45 68 15 64 . [email protected]

Plataforma web: Chakir Piro e Van Dung Pham

Agradecimentos a: Elisabeth Cloutier e Marie-Christine

Pinault Desmoulins

Os artigos podem ser reproduzidos sob a condição de

estarem acompanhados do nome do autor e da menção

“Reproduzido do Correio da UNESCO”, precisando a data

da edição.

Os artigos exprimem a opinião de seus autores e não

necessariamente a da UNESCO.

As fotos que pertencem à UNESCO podem ser

reproduzidas com a menção ©UNESCO seguida do nome

do fotógrafo. Para obter as fotos em alta resolução, favor

dirigir-se ao Banco de Fotos: [email protected].

As fronteiras retratadas nos mapas não implicam

reconhecimento ofi cial pela UNESCO ou pelas Nações

Unidas, assim como as denominações de países ou de

territórios mencionados.

Page 4: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

Neste ano, celebramos o centenário da

primeira manifestação internacional

que reuniu, nos dois lados do Atlântico,

milhares de mulheres, reivindicando o

direito ao voto. Esse é o passado, mas, no

que diz respeito ao futuro, o ano de 2011

marca uma virada muito mais decisiva

para a condição feminina em escala

internacional: a criação da ONU Mulheres.

Figura principal desta edição, Michelle

Bachelet explica a missão e os objetivos

dessa nova entidade da Organização

das Nações Unidas, da qual ela é a

primeira diretora-executiva (p. 7). Ao seu

lado, vamos encontrar outras mulheres

importantes que entraram de maneira

triunfante na cena política internacional:

Roza Otunbayeva, que fala sobre seu

mandato como a primeira presidente

do Quirguistão (p. 13), e Michaëlle Jean,

ex-governadora-geral do Canadá, que

aborda o pacto de solidariedade em favor

do Haiti, seu país natal (p. 15).

Se na cena política os progressos

em direção à igualdade de gênero

continuam em ritmo lento (p. 9-12),

o mesmo não acontece no âmbito

dos direitos humanos. Nesse ponto as

mulheres também precisam de muita

força de vontade para romper com

obstáculos seculares, como têm feito a

mauritana Aminetou Mint El Moctar

(p. 17), a burundiense Maggy Barankitse

(p. 20), a bengalesa Sultana Kamal (p. 23),

a paquistanesa Asma Jahangir (p. 25) e

a tunisiana Sana Ben Achour (p. 28). A

determinação de todas elas é a mesma

das italianas que se mobilizaram em

todos os cantos do mundo para defender

sua dignidade desrespeitada (p. 30).

Para ter sucesso, essas difíceis

conquistas não podem dispensar

a contribuição dos meios de

comunicação. Duas mulheres, uma

chilena e uma afegã, correram vários

riscos para defender a liberdade de

expressão e explicam-nos o que signif

ica o “jornalismo feminino” (p. 32-35).

Como o trabalho digno constitui,

neste ano, o tema central da celebração

do Dia Internacional da Mulher, também

nos interessa a situação das argelinas

que, em suas atividades laborais, se

deparam com situações precárias.

Quando falamos de trabalho, também

estamos falando de economia, outro

elemento determinante para a liberdade

das mulheres. No âmbito internacional,

é possível observar sinais de mudança

em relação à imagem e à posição

ocupada pelas mulheres, em um espaço

que foi, durante muito tempo, ocupado

exclusivamente por homens. Enquanto

isso, em âmbito local, constatamos

que, devido a seu papel na agricultura,

as mulheres estão na vanguarda da

preservação do meio ambiente e do

combate aos efeitos das mudanças

climáticas (p. 36-42).

Para encerrar o tema central, vamos

redescobrir, graças à poetisa argentina

Luisa Futoransky, algumas f iguras

femininas que se destacaram nas artes

e na literatura (p. 43-46). Também

recordamos Madre Teresa, que teria

completado 100 anos de vida este ano,

e a equatoriana Manuela Sáenz Aizpuru,

uma guerreira a serviço da América

Latina (p. 47-48).

Como complemento desta edição,

prestamos homenagem a Édouard

Glissant (1928-2011), ex-chefe de

redação do Correio da UNESCO,

entrevistamos a princesa Loulwah da

Arábia Saudita e apresentamos um novo

projeto da UNESCO, Tagore, Neruda e

Césaire: pelo universal reconciliado.

Jasmina Šopova

Nesta edição

4 . O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L - J U N H O 2 0 1 0

Page 5: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

EditorialIrina Bokova

“Ser mulher, aqui, é semelhante a uma ferida

aberta que permanece incurável”, escreve

Toni Morrison1, no livro Misericórdia (A Mercy,

2008); no meu entender, trata-se de um dos

romances mais comoventes que já foram

escritos sobre a condição feminina. Os destinos

de quatro mulheres – uma europeia, uma

africana, uma indígena e uma jovem surgida

misteriosamente do mar – estão emaranhados

nesse texto, cada qual mais trágico do que

o outro, inextricavelmente ligados entre si e

profundamente enraizados no solo que, um

século mais tarde, daria origem aos Estados

Unidos. Essas quatro f iguras femininas, cada uma

mais consistente que a outra, apresentam-se

como outras tantas cariátides, dando sustentação

à sociedade norte-americana nascente. No

entanto, af irma a romancista, são “feridas

abertas”. Será que, de uma extremidade à outra

de nosso vasto mundo, o destino comum das

mulheres é serem pilares e vítimas da sociedade?

Não é preciso dizer que, desde então, a situação

das mulheres evoluiu consideravelmente nos

últimos 100 anos. O Conselho Internacional

das Mulheres (CIM), criado em 1888, e a Aliança

Internacional da Mulher (AIM), criada em

1904, assim como a Federação Democrática

Internacional das Mulheres (FDIM), criada 1945,

desempenharam papel determinante na luta

pela igualdade de gênero.

A igualdade de gênero está no âmago dos

direitos humanos e das liberdades fundamentais,

que são valores essenciais para a dignidade dos

indivíduos, para a prosperidade das sociedades

e para o Estado de direito. A igualdade entre

homens e mulheres revelou-se também como

vigoroso acelerador da transformação política,

social e econômica; ela está no cerne da temática

do desenvolvimento e da segurança. De fato,

as meninas e as mulheres sofrem, de maneira

desproporcional, com os conf litos armados. E,

muitas vezes, são elas que trabalham mais ef

icazmente em favor da reconciliação.

O século passado ensinou-nos que todos têm

o dever de promover a igualdade de gênero.

É evidente que o poder público desempenha um

papel-chave, mas a mesma exigência impõe-se,

à sociedade civil e às empresas, aos professores e

aos administradores, aos artistas e aos jornalistas.

A comunidade internacional cumpre sua

parte, ao f ixar objetivos e ao mobilizar o apoio

necessário para atingi-los.

A UNESCO procura estreitar o vínculo

entre a igualdade de gênero e os objetivos

fixados pela comunidade internacional. Demos

especial destaque a esse argumento em 2010,

por ocasião do 15º aniversário da Quarta Ames (Almas),

esculturas da artista

francesa Hélène Hiribarne.

© Alicia Cloeren, Texas

1. A romancista norte-americana Toni Morisson

recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, em 1993.

O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 1 . 5

A diretora-geral, em

visita às Tumbas dos

Reis Buganda, em Kasubi

(Uganda), acompanhada

de Geraldine Namirembe

Bitamawire, ministra

da Educação e dos

Esportes, e Elizabeth

Paula Napeyok, delegada

permanente de Uganda

na UNESCO.

© UNESCO/Tosin

Animashawun

Page 6: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

Conferência Mundial sobre as Mulheres, em

Beijing, sendo novamente enfatizado durante

a realização da Cúpula das Nações Unidas sobre

os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio,

que aconteceu em Nova York, em setembro

passado. Em colaboração com a Coreia do Sul,

transformamos a educação em uma prioridade

da agenda da Cúpula do G-20 realizada em Seul,

e procedemos do mesmo modo no decorrer

do Fórum Econômico Mundial, em Davos, em

2011. Promovemos todas essas ações em estreita

colaboração com a Iniciativa das Nações Unidas

para a Educação das Meninas e vamos dar-lhes

prosseguimento com a ONU Mulheres, a nova

entidade dirigida por Michelle Bachelet.

A igualdade de gênero está integrada nas

atividades de todos os setores da UNESCO. Ela

incentivou-me a reformar a Organização, além de

orientar nossas ações de campo, principalmente,

em contextos difíceis, como no Afeganistão, no

Iraque ou no Paquistão. Durante a minha recente

visita à República Democrática do Congo, assinei

um acordo com o governo para estabelecer

um Centro de Pesquisa e Documentação

sobre as Mulheres, a Igualdade de Gênero e a

Consolidação da Paz. Localizado em Kinshasa,

esse centro da UNESCO irá abordar um problema

crucial para os direitos humanos, a estabilidade

social e o desenvolvimento na região africana

dos Grandes Lagos.

Ao evocar as lembranças de uma viagem

feita na década de 1980, ao noroeste de seu

país natal, o Zimbábue, Doris Lessing fez a

seguinte af irmação: “aquela pobre moça que

caminha na estrada empoeirada, sonhando com

uma educação para os f ilhos, será que temos a

certeza de sermos melhores do que ela – nós que

estamos empanturrados de comida, com nossos

armários cheios de roupas e sufocados sob o

supérf luo? Estou convencida de que a situação

daquela moça e das mulheres que falavam

sobre livros e educação – e, no entanto, haviam

A MULHER NOS ARQUIVOS DO CORREIO DA UNESCO

Descubra uma seleção de reportagens especiais e artigos (em espanhol) dedicados às mulheres, escrevendo o título desejado no

campo “pesquisa personalizada” no link: http://www.unesco.org/fr.

10 REPORTAGENS ESPECIAIS

Mujeres entre dos orillas (2008)

Ciudadanas al poder (2000)

Mujeres: la mitad del cielo (1995)

Un pacto planetario: la voz de las mujeres (1992)

La mujer: entre la tradición y el cambio (1985)

La mujer invisible (1980)

Hacia la liberación de la mujer (1975)

Año Internacional de la Mujer (1975)

Mujeres de la nueva Asia (1964)

La mujer, ¿es un ser inferior? (1955)

10 ARTIGOS

Chiapas: invertir en alfabetización (2005)

Mujeres afganas: el saber y la rebelión (2001)

El duro despertar de las mujeres del Este (2000)

Mujeres: una alfabetización a medida (1999)

Mujeres de Kabul (1998)

Las mujeres, botín de guerra (1998)

Las mujeres, un eslabón indispensable (1997)

Las mujeres guardianas del medio ambiente (1995)

¿Con qué sueñan veinte muchachas? (1994)

Las olvidadas (1993)

passado três dias sem se alimentarem – ainda

pode nos def inir atualmente.”2

A famosa feminista britânica reaf irmava,

assim, fora dos limites de seu universo

romanesco, sua fé nas mulheres, inclusive nas

mais necessitadas. A UNESCO dispõe de outros

recursos para reaf irmar essa mesma fé: a f im de

dar mais autonomia às meninas e às mulheres

mais pobres do mundo, vamos lançar, em breve,

uma nova iniciativa de educação que irá envolver

parceiros dos setores público e privado. Esse

projeto focalizará particularmente a utilização

inovadora das novas tecnologias para estender

a educação básica e a alfabetização à educação

de meninas e mulheres em situações de conf lito

e desastres naturais, assim como aos quadros

políticos e à formação de professores em todo o

Sistema das Nações Unidas.

De fato, apesar do avanço realizado, nos

últimos dez anos, em matéria de igualdade

de gênero no ensino primário – como é

testemunhado pelo Relatório de Monitoramento

Global de Educação para Todos 2011, publicado

recentemente pela UNESCO –, convém

reconhecer que as disparidades se tornaram mais

evidentes no nível secundário, principalmente

na África. E, mesmo que o número de mulheres

tenha aumentado no ensino superior em todo

no mundo , elas continuam representando

apenas 29% dos pesquisadores. A proporção de

mulheres analfabetas não evoluiu nos últimos 20

anos: elas ainda representam dois terços dos 796

milhões de analfabetos do planeta.

“Se você pretende construir um barco”,

escreveu o romancista francês, Antoine de Saint-

Exupéry, “não se preocupe em reunir homens

para buscar madeira, preparar ferramentas,

distribuir tarefas, facilitar o trabalho, mas

desperte nas pessoas a nostalgia pelo inf inito do

mar”. Essa nostalgia pelo inf inito do mar serve-

nos de orientação, desde 1911, e continua a

inspirar-nos ainda hoje. 

2. Discurso de Doris Lessing,

por ocasião da entrega do

Prêmio Nobel de Literatura,

em 2007.

6 . O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 0

Page 7: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

O que incentivou a Sra. a def inir as

violências perpetradas contra as

mulheres como principal prioridade

da ONU Mulheres, e quais são os tipos

de violência de que as mulheres são

vítimas ao redor do mundo?

A violência contra as mulheres constitui

uma das violações mais comuns

dos direitos humanos. Def inimos

essa realidade como uma das cinco

prioridades da ONU Mulheres, porque,

se conseguirmos registrar algum

progresso nesse campo, poderemos

avançar mais longe em outras áreas.

Uma mulher que não é vítima de

violências tem mais possibilidades

de encontrar trabalho decente, de

interessar-se por sua educação, de

cuidar de sua saúde e de assumir

cargos de responsabilidade em sua

comunidade ou em outro lugar.

As mulheres sofrem todos os tipos

de violência: violência doméstica,

estupro, violência sexual como

arma de guerra, casamento precoce,

mutilação genital. Um grande número

de sociedades, em todo o mundo,

enfrenta um ou outro desses problemas.

Assim, se levarmos em consideração as

experiências vivenciadas pelas mulheres

ao longo da vida, a taxa de vítimas

chega a atingir 76% da população

feminina mundial.

Quais são os outros temas prioritários

que a Sra. pretende abordar e como vai

mobilizar recursos para concretizar as

ações programadas?

Vamos desenvolver e apoiar projetos

inovadores que visem a fortalecer a

independência econômica das mulheres,

conf iar-lhes o papel de defensoras e

de líderes nos processos de mudança,

posicioná-las no centro dos processos

de paz e de segurança, além de inscrever

prioridades de igualdade de gênero nas

estratégias nacionais. Mobilizar recursos

para realizar esses objetivos servirá,

entre outros aspectos, para demonstrar

até que ponto as mulheres contribuem

para o desenvolvimento não só de sua

própria condição, mas também de sua

sociedade como um todo. As provas

de tais avanços são cada vez mais

frequentes. O último Relatório Global de

Desigualdade de Gênero (Global Gender

Gap Index Report), publicado pelo Fórum

Econômico Mundial, em 2010, mostra,

por exemplo, que, entre 114 países,

aqueles que atingiram o nível mais alto

da igualdade entre homens e mulheres

são os mais competitivos e exibem as

mais elevadas taxas de crescimento.

Defensorada causadas mulheresAs desigualdades entre homens e mulheres permanecem

profundamente enraizadas em um grande número de

sociedades. As mulheres deparam-se, muitas vezes, com a

falta de acesso à educação e aos cuidados básicos, devem

superar a segregação nos empregos e as diferenças de

remuneração, estão sub-representadas nos processos de

tomada de decisões e são vítimas de violências. Outros

tantos desaf ios que Michelle Bachelet – diretora-executiva

da nova Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de

Gênero e o Empoderamento das Mulheres, ONU Mulheres –

pretende enfrentar com toda sua determinação.

MICHELLE BACHELET responde às perguntas de Jasmina Šopova

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Page 8: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

Quais são os recursos humanos e

f inanceiros que atualmente estão à

disposição da ONU Mulheres? Serão

suf icientes para realizar sua missão?

A ONU Mulheres herdou recursos

das quatro entidades da ONU que se

fundiram para sua criação. Com base

nesses recursos – que serão acrescidos

de outras contribuições, de acordo com

a recomendação do secretário-geral,

Ban Ki-moon, proferida em janeiro de

2010 –, está previsto aumento anual

no orçamento de, no mínimo, US$ 500

milhões. Esse é o objetivo para o qual

conjugaremos todos nossos esforços.

A Sra. pretende dar prioridade a

determinados países? Quais seriam

esses países e quais as razões desse

interesse particular?

Vamos trabalhar com todos os Estados-

-membros da ONU que solicitarem

nossos serviços, sejam eles países

desenvolvidos ou em desenvolvimento.

Atualmente, a ONU Mulheres está

presente, em graus variáveis, em cerca

de 80 países, e teremos de fortalecer

nossa presença naqueles que têm

necessidade de nosso apoio. Vamos

intervir de forma gradual, à medida que

desenvolvermos nossas capacidades e

nossos recursos de ordem institucional.

Em cada país, uma das prioridades

consistirá em atingir os grupos de

mulheres mais marginalizadas. São elas

que têm mais necessidade do apoio

da ONU Mulheres. Cooperar com elas

pode ser a melhor maneira de utilizar

nossos recursos. Como o UNICEF tem

demonstrado, o método mais ef icaz

consiste em investir na parcela da

população mais marginalizada.

Qual é o lugar da igualdade de gênero

nos Objetivos de Desenvolvimento do

Milênio (ODM)? Qual é a sua estratégia

para atribuir maior importância a esse

aspecto?

Conseguir a igualdade de gênero –

objetivo número três dos ODMs – é

primordial para a realização de todos

os outros objetivos. Vamos continuar

a insistir, até 2015 (prazo f inal para a

realização dos ODMs), no vínculo crucial

existente entre a igualdade de gênero

e todos os outros objetivos que dizem

respeito à pobreza, à saúde, à educação

ou ao meio ambiente.

Um dos problemas prioritários

relacionado a nossa missão é a

mortalidade materna. No plano

mundial, estamos longe de ter

conseguido um avanço satisfatório.

Podemos – e devemos – obter

melhores resultados. Salvar maior

número de vidas no momento do

parto exige conhecimentos básicos e

meios pouco onerosos que poderiam

estar disponíveis facilmente em toda

parte, se os governos e a comunidade

internacional decidissem realmente

reconhecer essa ação como prioritária.

O número de mulheres eleitas para

assumir a direção de Estados, governos

e agências da ONU tem aumentado

nos últimos anos. Esse fenômeno já

apresentou efeitos positivos sobre

questões sensíveis relativas às

mulheres em âmbito mundial?

Em uma perspectiva histórica, foi

realizado um enorme progresso. Apesar

de ainda existirem desaf ios a enfrentar,

a igualdade de gênero entrou em uma

dinâmica que nunca havia ocorrido no

passado, tanto no plano internacional

quanto internamente na maior parte dos

países.

A razão disso é que as mulheres

assumiram a defesa da igualdade de

gênero, assim como as questões mais

sensíveis em diversos níveis, tanto no

seio de sua comunidade quanto na

direção dos Estados. A existência de

mulheres líderes tem levado um número

crescente de pessoas a compreender

que as mulheres devem participar

ativamente das atividades econômicas,

que se deve acabar com a violência

contra as mulheres e que se deve

utilizar a capacidade das mulheres para

que elas se tornem as promotoras de

mudanças que irão benef iciar a todos.

Para atingir esses objetivos, devemos

fornecer os recursos e empreender as

ações necessárias – como f izemos, em

parte, ao criar a ONU Mulheres, que é a

“defensora” obstinada dos direitos das

mulheres no mundo.

Cirurgiã por formação, Michelle Bachelet é a primeira secretária-geral adjunta

e diretora-executiva da nova entidade ONU Mulheres. A ex-presidente do Chile

(2006-2010) chamou a atenção, em particular, pela reforma da aposentadoria e

dos programas de proteção social para mulheres e crianças, assim como pelos

investimentos em pesquisa e desenvolvimento. Durante seu mandato presidencial,

triplicou o número de centros de saúde gratuitos para crianças de famílias de baixa

renda, além de ter criado cerca de 3.500 novos centros pediátricos no Chile. No

momento de sua nomeação para dirigir a nova agência da ONU, a ONU Mulheres,

em 14 de setembro de 2010, Michelle Bachelet comprometeu-se a transformá-la na

“defensora da causa das mulheres”.

A ONU Mulheres foi criada em julho de 2010 pela Assembleia Geral das Nações

Unidas com o objetivo de acelerar a realização das metas da Organização associadas à

igualdade de gênero e ao empoderamento das mulheres.

Lançada of icialmente em 24 de fevereiro de 2011, a ONU Mulheres é o resultado

da fusão de quatro componentes do Sistema das Nações Unidas: o Departamento

da Promoção das Mulheres (Division for the Advancement of Women - DAW), o

Instituto Internacional de Pesquisas e Formação para a Promoção das Mulheres (International Research and Training Institute for

the Advancement of Women - INSTRAW), o Escritório da Conselheira Especial para a Problemática Homens-Mulheres (Of f ice of

the Special Adviser to the Secretary-General on Gender Issues - OSAGI); e o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para as

Mulheres (United Nations Development Fund for Women - UNIFEM).

A principal missão da nova entidade ONU Mulheres consiste em apoiar organismos intergovernamentais, assim como os Estados-

-membros, na elaboração de políticas, regulamentos e normas, em âmbito nacional e mundial, em favor da igualdade de gênero.

Compete à agência exigir às Nações Unidas a prestação de contas em relações a seus próprios compromissos, em particular, por

meio do monitoramento regular dos progressos registrados no conjunto do Sistema ONU. Site of icial : www.unwomen.org/fr

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8 . O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 0

Page 9: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

Apesar do consenso geral de que a

representação das mulheres em sistemas

de tomada de decisão é um fator

essencial de mudança, elas raramente

estão presentes nesses postos. De acordo

com a União Interparlamentar, o número

de mulheres aumenta nos parlamentos

nacionais, com uma presença média

recorde de 19,1% dos assentos, levando

em consideração todos os organismos

nacionais com atribuições legislativas.

No entanto, “o objetivo de chegar ao

equilíbrio entre homens e mulheres

na política está ainda longe de ser

alcançado em vários países”.

Nas últimas décadas, registraram-se

histórias notáveis de mulheres que

conseguiram ultrapassar barreiras

antes intransponíveis, vencendo todos

os obstáculos para conquistar este

bastião da masculinidade: o mais alto

cargo à frente do Estado. Trata-se de

pioneiras que derrubaram um tabu em

seus respectivos países, incentivando

outras mulheres, em todo o mundo, a

manifestarem suas opiniões, sempre que

políticas decisivas para o futuro de suas

sociedades chegam à ordem do dia.

A começar por Ellen Johnson Sirleaf,

que entrou na história, em 2006, ao

ser eleita presidente da Libéria, fato

inédito na África. Defensora dos direitos

das mulheres, essa mulher combativa,

formada em Harvard, repetiu, no

decorrer de sua campanha, que, se

ganhasse a eleição, iria incentivar as

mulheres africanas a alcançar postos

mais altos no funcionalismo público.

Essa dedicada avó, que, em 30 anos de

carreira, enfrentou a prisão e o exílio,

demonstrou determinação implacável

para impor a paz em um país devastado

por uma década de guerra civil.

Ellen Johnson Sirleaf foi agraciada

recentemente com o Prêmio Africano

de Excelência em favor do Gênero 2011,

como reconhecimento “pelos esforços

despendidos pela Libéria para promover

o direito das mulheres e, principalmente,

a educação das jovens, a independência

econômica das mulheres e as leis que

punem a violência de que elas são

vítimas”. “Ao incentivar a igualdade de

gênero, ao emancipar nossas jovens,

estamos também enaltecendo nosso

país”, sublinhava ela, recentemente,

diante de jovens diplomadas em

programa de autonomia econômica.

A ex-presidente islandesa,

Vigdís Finnbogadóttir, também está

convencida da importância da educação:

“eu gostaria de dizer a todas as mulheres

do mundo inteiro: estudem o máximo

possível e nunca aceitem estudar menos

do que seus irmãos. É essencial que

vocês obtenham um grau acadêmico,

leiam e descubram a vida. Nem todos

conseguem ter acesso à universidade,

mas, se os irmãos de vocês são

caminhoneiros, aprendam, pelo menos,

algo semelhante”.

A “presidente Vigdís”, como é

conhecida na Islândia – foi a primeira

SHIRAZ SIDHVA, jornalista indiana residente nos EUA

Mulheresà conquistado espaço político Se, entre as personalidades mundiais, f iguram algumas mulheres, seu número continua

reduzido na presidência das democracias modernas: na história recente, menos de 50

mulheres alcançaram a cúpula do Estado e, atualmente, apenas 19 países aceitaram

elevá-las até o posto supremo. Na cena política, a marcha em direção à igualdade de

gênero é, portanto, lenta, mas inexorável.

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Foto dos participantes do III Fórum Mundial

da Aliança de Civilizações das Nações Unidas,

realizado no Rio de Janeiro, Brasil, em maio de

2010. Única f igura feminina: Cristina Fernández

de Kirchner, presidente da Argentina.

O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 1 . 9

Page 10: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

mulher no mundo a ocupar o cargo

presidencial, sem estar f iliada a um

partido. Foi em 1980. “Abri as portas da

política, não só para as mulheres, mas

também para os homens”, af irma ela.

Com efeito, quando uma mulher é

bem-sucedida, “ela mostra o caminho a

outras mulheres e a outras sociedades

em todo o mundo”.

A Islândia, entre outros países

da Europa Setentrional, continua

sendo o melhor exemplo em matéria

de igualdade de gênero, sendo,

atualmente, ainda uma mulher, Jóhanna

Sigurdardóttir, que ocupa o cargo de

primeiro-ministro. Contudo, há 30 anos,

no momento de sua eleição, “as pessoas

achavam algo realmente insensato

que uma mulher fosse presidente de

um país”, conta Vigdís Finnbogadóttir.

“Os islandeses demonstraram uma

coragem fora do comum, ao infringirem

a tradição”, complementa. Ela havia sido

precedida por outras dirigentes como

Indira Gandhi, na Índia, Isabel Perón, na

Argentina, e Sirimavo Bandaranaike, no

Sri Lanka, que chegaram ao poder “por

herança”, tendo assumido na sequência

do pai ou do marido, enquanto Golda

Meir e Margaret Thatcher foram

apoiadas por partidos políticos. Por sua

vez, Vigdís Finnbogadóttir não era a

herdeira de ninguém, nem pertencia

a um partido. Ela foi reeleita quatro

vezes, de 1980 a 1996, fato que a torna

a dirigente que permaneceu no cargo

pelo período mais longo em toda a

história. “Na primeira vez, ganhei por

pouco”, reconhece ela. “Na segunda, a

margem foi mais confortável. Convém

dizer, entretanto, que eu tinha provado

que uma mulher poderia ter sucesso,

mesmo sendo uma mulher”.

No entanto, será que o sexo tem

realmente tanta importância para quem

ocupa um cargo de direção, e será

que ele exerce inf luência real sobre as

qualidades de um líder? Os contextos

que levaram essas mulheres, entre

outras, a assumir o poder eram bastante

heterogêneos, mas especialistas em

ciência política identif icam, mesmo

assim, características comuns às

dirigentes. Quais são, portanto, os

obstáculos que elas devem vencer

para chegar à cúpula do poder de seus

respectivos países? Que qualidades elas

devem ter para alimentar a expectativa

de superar a mais intransponível

das barreiras e abrir caminho para a

magistratura suprema, às vezes, sem

ninguém para mostrar-lhes a direção?

Essas questões têm intrigado Laura

Liswood, advogada, escritora e ativista

internacional dos direitos das mulheres.

No âmbito do projeto Liderança

Feminina (Women’s Leadership), nos EUA,

promovido por sua iniciativa, ela fez

viagem inédita ao redor do mundo, em

1992, para encontrar 15 mulheres chefes

de Estado e de governo. As entrevistas

com essas dirigentes – como Margaret

Thatcher (Reino Unido), Gro Brundtland

(Noruega), Benazir Bhutto (Paquistão),

Corazón Aquino (Filipinas) ou Kazimiera

Prunskiene (Lituânia) – deram origem a

um livro original: Líderes mundiais: quinze

grandes mulheres políticas contam sua

história (Women world leaders: f ifteen

great politicians tell their stories).

Liderança feminina

Há muito tempo, pesquisadores

debatem o papel do gênero na liderança.

“Em alguns casos, o sexo é irrelevante”,

explica Michael A. Genovese, professor

Pratibha Patil

Presidente da Índia

© Bureau du Président de l’Inde

Jóhanna Sigurdardóttir

Primeira-ministra da Islândia

© UNPhoto/Aliza Eliazarov

Ellen Johnson-Sirleaf

Presidente da Libéria

© UNESCO/Michel Ravassard

Laura Chinchilla

Presidente da Costa Rica

© UN Photo/Aliza Eliazarov

Jadranka Kosor

Primeira-ministra da Croácia

© UN Photo/Jenny Rockett

Dalia Grybauskaitė

Presidente da Lituânia

© UNPhoto/Rick Bajornas

Angela Merkel

Chanceler federal da Alemanha

© UN Photo/Evan Schneider

Mary McAleese

Presidente da Irlanda

© UN Photo/Evan Schneider

Dilma Rousseff

Presidente do Brasil

© Roberto Stuckert Filho/Presidência

da República/Agencia Brasil

1 0 . O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 0

Page 11: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

por todos os dirigentes, obrigando-os

a assumir determinadas tarefas e

responsabilidades de forma semelhante

ou previsível: tarefas protocolares,

obrigações constitucionais ou legais,

expectativas relativas a funções. Todas

provocam, em maior ou menor grau, as

mesmas atitudes, independentemente

de o líder ser homem ou mulher. É nas

circunstâncias novas ou inesperadas – ou

em período de crise – que o sexo deve

ser levado em consideração, quando o

que se espera do líder não está previsto.

Nesses casos, a personalidade e o sexo

podem revelar-se determinantes”.

Como esperado, a maior parte dessas

obstinadas mulheres assume funções

com muitas qualif icações acadêmicas

e prof issionais. Muitas delas foram

escritoras, advogadas, diplomatas ou

ministras, antes de ascenderem ao

cargo mais alto no governo. A maior

parte delas reconhece que, além dos

estudos, o modelo dos pais, seguido

desde a infância, lhes ensinou que uma

mulher seria capaz de obter resultados

semelhantes aos que são conseguidos

por um homem.

Michelle Bachelet, primeira

presidente do Chile, depois de ser

a primeira chilena a ocupar o cargo

de ministra da Defesa, é bastante

familiarizada com o que se refere ao

trabalho de pioneira. “Como jovem

mãe e pediatra, vivenciei a dif iculdade

de conseguir o equilíbrio entre carreira

e vida familiar, tendo constatado

que a impossibilidade de ter alguém

para cuidar dos f ilhos impediu que as

mulheres tivessem acesso a emprego

remunerado”, declarava ela, na Libéria,

por ocasião da comemoração do Dia

Internacional da Mulher. “Foi também

para remover esses obstáculos que entrei

na política e que priorizei, nas despesas

públicas, o acolhimento da primeira

infância e a proteção social das famílias”.

Será que as mulheres têm uma

maneira peculiar de exercer a liderança,

que seja diferente da atitude assumida

pelos homens? “Em geral, acredita-se

que os homens apresentam mais

características de comando do que as

mulheres e que essas adotam estilo mais

colegial”, constata Michael Genovese,

autoridade em matéria de liderança,

tema ao qual já dedicou 28 livros. “As

exceções são muitas, mas há algo de

verdadeiro nesse ponto de vista. Os

homens fazem af irmações; as mulheres

discutem. Os homens falam para si;

as mulheres estabelecem o diálogo”,

sublinha ele. “Quanto aos assuntos que

concernem as mulheres em postos

de liderança, talvez seja motivo de

surpresa o fato de que atualmente elas

não defendem com mais vigor que os

homens as ‘questões femininas’. Nesse

aspecto, as diferenças ideológicas e

partidárias são melhores indicadores

do apoio a temas que tendem a ser

considerados especif icamente femininos,

como educação, saúde etc.”.

de Ciência Política e diretor do Instituto

de Estudos da Liderança da Universidade

Loyola Marymount, na Califórnia.

“Nesse aspecto, Margaret Thatcher é

um bom exemplo; em outros casos,

ocorre o oposto, como no de Corazón

Aquino”. De acordo com ele, é preferível

“questionar-se quando e em que

circunstâncias o gênero perde ou ganha

importância. Existem forças estruturais

internas que devem ser enfrentadas

Iveta Radicová

Primeira-ministra da Eslováquia

© European People’s Party

Micheline Calmy-Rey

Presidente da Suíça

© Patrick Lazic/OIF

Cissé Mariam Kaïdama Sidibé

Primeira-ministra do Mali

© Primature du Mali

Rosario Fernández Figueroa

Primeira-ministra do Peru

© Présidence du Conseil de Ministres

Sheikh Hasina Wajed

Primeira-ministra de Bangladesh

© UNPhoto/ Eskinder Debebe

Kamla Persad-Bissessar

Primeira-ministra de Trinidad e

Tobago © UN Photo/Aliza Eliazarov

Cristina Fernández de Kirchner

Presidente da Argentina

© UNPhoto/Jean Marc Ferre

Julia Gillard

Primeira-ministra da Austrália

© UN Photo/Mark Garten

O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 1 . 1 1

Tarja Halonen

Presidente da Finlândia

© UN Photo/Erin Siegal

Page 12: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

Preconceitos persistentes

Ao contrário de seus homólogos

masculinos, as mulheres que estão

atualmente à frente das democracias

devem lidar com um conjunto de

preconceitos arraigados. Além disso,

elas são julgadas mais severamente

do que os homens pela mídia e pelos

eleitores. “Não há qualquer obstáculo,”

apenas uma grande barreira de homens”,

insiste Laura Liswood. Em 1996, em

companhia de Vigdís Finnbogadóttir, ela

fundou o Conselho Mundial das Líderes,

no qual exerce a função de secretária-

-geral. “O mais urgente consiste em

preparar as mulheres, desde agora, para

ocupar cargos de tomada de decisões,

objetivo que não pode ser alcançado,

sem modelos de funções aptos para

incentivar outras mulheres nessa

direção”, frisa ela. O Conselho dispõe

do melhor equipamento possível para

realizar tal tarefa.

Em 1997, em companhia de outras

ativistas, ela lançou o Projeto Casa

Branca (White House Project) para

apoiar a eleição de uma mulher para a

presidência dos EUA. “Relatavam-me

sempre a mesma história”, af irma ela.

“As experiências eram as mesmas,

independentemente do país, da cultura

ou do percurso das líderes. Por toda

a parte, os jornalistas e seus leitores

davam-lhes o mesmo tratamento:

elas eram sabatinadas em profusão. A

imprensa considerava-as, antes de mais

nada, como mulheres, criticando, de

forma excessiva, inclusive sua aparência:

roupas, penteado, bolsas, xales... “.

“A idéia comumente aceita de

que elas não conseguem ser líderes

competentes é, sem dúvida, o maior

obstáculo para a entrada maciça de

mulheres na cena política”, opina

Esther Duf lo, professora de Economia

do Desenvolvimento, do Instituto de

Tecnologia de Massachusetts – MIT.

Fundadora, com outras colegas no MIT,

do Laboratório Abdul Latif Jameel de luta

contra a pobreza, ela empreendeu várias

pesquisas pioneiras na Índia. De acordo

com os resultados desses estudos, as

mulheres governantes são avaliadas

de forma mais negativa do que seus

homólogos masculinos, apesar de elas

tenderem a fornecer melhores serviços,

como o acesso à água potável, e de

serem muito menos corruptas.

Esther Duf lo recorreu a comediantes

para identif icar os preconceitos em

centenas de aldeias indianas, nas quais

um terço dos assentos nos Conselhos

de Aldeia são reservados às mulheres,

desde 1993 – cota recentemente elevada

para 50%. Ela fez que o mesmo discurso

político fosse lido ora por um homem,

ora por uma mulher. Os camponeses

que nunca tiveram uma líder tenderam

a julgar as oradoras incompetentes,

no entanto, os eleitores que já haviam

presenciado uma mulher no exercício

do poder não apresentaram esse viés.

“A experiência reduz o preconceito”,

conclui Esther Duf lo, em uma entrevista

concedida à revista New Yorker. Prova de

que as políticas públicas podem quebrar

os estereótipos de bases eleitorais.

Brinda Karat, membro do comitê

central do Partido Comunista da Índia e

deputada na câmara alta do Parlamento

indiano, acredita que “as líderes tendem

a formular questões que despertam mais

o interesse das mulheres do que dos

homens”. No seu entender, a decisão

de seu país de reservar metade dos

assentos às mulheres nos Conselhos

Locais (panchayats) começa a dar

resultados: “o recorde de participação

das mulheres nas eleições locais, apesar

das barreiras sociais e culturais, abre

capítulo encorajador na história política

da Índia, que, a cada dia, se enriquece”.

No entanto, o número de deputadas na

Índia não é superior a 11% e, na maior

parte das assembleias dos estados

indianos, o percentual é ainda menor.

“Será que isso signif ica que as

mulheres são incapazes ou não

demonstram mérito suf iciente?”,

questiona Brinda Karat, que, há 40 anos,

é ativista de movimentos em prol das

mulheres. “Essa seria uma conclusão

precipitada e inaceitável”. A verdade é

que as práticas discriminatórias de que

elas continuam sendo alvo, quando da

elaboração de listas eleitorais, as têm

mantido afastadas de cargos eletivos.

A luta travada pelas mulheres contra a

discriminação nas esferas econômica

e social deve estender-se também à

esfera política. Qualquer discriminação

baseada no sexo enfraquece a

democracia. O movimento em favor

da igualdade de representação é

também uma luta em favor dos direitos

democráticos e da cidadania”.

Acesso pela porta dos fundos

A marcha das mulheres em direção

à liderança política pode parecer,

portanto, lenta, mas – tanto para

Michael Genovese quanto para Laura

Liswood – é inexorável. “Nas últimas

décadas, mudanças têm ocorrido”,

observa Genovese. “Quando meu

livro sobre as líderes foi publicado,

em 1993, eu poderia citar o nome de

todas as mulheres chefes de governo.

Atualmente, esse número cresceu, e

elas estão mais presentes do nunca

na cúpula dos governos, mesmo que

tal constatação esteja muito longe de

corresponder ao peso demográf ico das

mulheres na população”.

“O importante é o número

crescente de mulheres que ingressam

na política pela porta dos fundos no

âmbito local, assim como a grande

af luência de mulheres que jogam

na ‘segunda divisão’ com o pé já

na ‘primeira’. Existem várias causas

para essa evolução: o movimento

feminista, o fato de que muitos partidos

políticos – em particular na Europa –

estabeleceram cotas para as mulheres

em suas campanhas eleitorais, além

da existência de grupos de apoio que

oferecem recursos f inanceiros, como a

Emily’s List, nos EUA, e f inalmente uma

verdadeira mudança de atitude das

sociedades em relação às mulheres na

política”.

“É certo que mudanças estão

ocorrendo”, constata Laura

Liswood. “Mas será que seu ritmo é

suf icientemente rápido? Por toda a

parte, as mulheres estão matriculadas

no ensino superior, obtêm diplomas

e ingressam no mercado de trabalho.

Contudo, aparentemente é muito mais

difícil para elas ter acesso aos cargos

de direção. Esse é, portanto, o alvo a

ser visado”.

“Eu ainda hei de presenciar a eleição

de uma mulher para a presidência

[dos EUA]”, insiste Michael Genovese.

“Essa longa espera talvez se explique,

porque, além das questões já evocadas,

os grandes países e as superpotências,

envolvidos militarmente em vários

lugares do mundo, tendem a procurar

f iguras masculinas que manifestem

certa insensibilidade, sugerindo sua

capacidade para recorrer à força, se

necessário. Esse clichê continua pesando

contra as mulheres, embora alguns

líderes mais obstinados do pós-guerra

fossem mulheres: por exemplo, Margaret

Thatcher ou Golda Meir. É muito difícil

acabar com os estereótipos.”

Alguns extratos deste artigo foram retirados de:

Laura A. Liswood

Women World Leaders: Great Politicians Tell Their Stories,

The Council Press, 2007 (edição original, Women

World Leaders: Fifteen Great Politicians Tell Their Stories,

Pandora, Harper Collins Publishers,1995).

Michael A. Genovese (ed.)

Women As National Leaders, Sage Publications, 1993.

1 2 . O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 0

Page 13: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

O principal problema enfrentado pelos Estados que

recentemente se tornaram independentes é o da

identidade, de acordo com Roza Otunbayeva, primeira

mulher a ocupar o cargo de presidente do Quirguistão.

A “dama de ferro” quirguiz já atravessou várias crises e

superou alguns obstáculos no decorrer da longa carreira,

que culminou na presidência do seu Estado, em julho de

2010. Seu país esteve sob risco de desmantelamento, sua

nação, ameaçada de fragmentação, mas ela conseguiu

enfrentar esses desaf ios.

Em sua biograf ia, é recorrente a

utilização do qualif icativo “primeiro”:

primeira mulher a ocupar o

Ministério das Relações Exteriores

do Quirguistão; primeira mulher a

assumir a embaixada de seu país nos

Estados Unidos e, em seguida, no Reino

Unido; e, f inalmente, primeira mulher a

ascender à presidência do Quirguistão.

Qual é o segredo de tal sucesso?

Na época da Perestroika – período

em que eu era vice-presidente do

Conselho de Ministros da República do

Quirguistão –, fui convidada a exercer

funções no Comitê da União Soviética

para a UNESCO, em Moscou. Comecei

como secretária executiva, antes de

ser nomeada presidente desse Comitê.

Representar a União Soviética não foi

uma missão simples: esse país era, na

época, uma superpotência, e, como os

Estados Unidos não eram membros da

UNESCO, éramos o principal doador da

Organização. Foi nessa qualidade que

entrei para o gabinete do Ministério

das Relações Exteriores da União

Soviétiva, sendo, coincidentemente, a

primeira mulher a tomar assento nesse

organismo.

Com o desmantelamento da União

Soviética, Askar Akaïev (primeiro

presidente do Quirguistão, deposto

pela Revolução de março de 2005)

convidou-me para assumir as funções

de ministra das Relações Exteriores, mas,

como nessa época os Estados Unidos

eram muito importantes para nós,

assim como o Banco Mundial e o Fundo

Monetário Internacional, dos quais

estávamos dependentes, fui designada

para ocupar a embaixada de meu país

em Washington, função que exerci

durante dois anos, antes de retornar

para o cargo de ministra das Relações

Exteriores, no Quirguistão.

Três anos mais tarde, em 1997,

o autoritarismo crescente de Askar

Akaïev começou a manifestar-se. Não

chegávamos mais a nos entender. Eu

passava criticando-o, e ele irritava-se.

Acabei pedindo demissão. Minha

intenção não era fazer oposição a ele: as

pessoas ainda depositavam conf iança

mapa-múndi

ROZA OTUNBAYEVA responde às perguntas de Katerina Markelova

Inscrever o Quirguistão no

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A B R I L J U N H O 2 0 1 1 . 1 3

Page 14: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

nele e queriam que ele completasse as

reformas. Quanto a mim, tornei-me a

primeira pessoa a ocupar, como titular,

a Embaixada do Quirguistão no Reino

Unido. Esse também foi um esforço

pioneiro importante, junto com os

membros do Conselho de Segurança

da ONU. Tínhamos, então, a missão de

inscrever o Quirguistão no mapa-múndi.

Em 2005, graças à união de

vários partidos da oposição, f izemos

a Revolução das Tulipas. Contudo,

Kurmanbek Bakiev1 acabou usurpando

nossa revolução: apoderou-se de tudo,

instaurando uma ditadura familiar.

Durante os cinco anos seguintes,

lutamos por nossos ideais. Eu era a líder

da oposição no Parlamento. Em 2010,

f inalmente vencemos!

Como seus colaboradores e as pessoas

comuns veem o cargo do chefe de Estado

sendo ocupado por uma mulher?

Com o respeito que é tradicionalmente

dedicado às pessoas mais velhas, às

mulheres e às mães. Além disso, entre

meus colegas, sou provavelmente

aquela que possui mais experiência.

Af inal, mereci essa promoção. Lutei por

meus ideais, tendo feito numerosos

sacrifícios. Quanto ao povo quirguiz, ele

também sabe que não estou na política

por acaso, que não sou protegida de

ninguém.

Obviamente, há pessoas que

pensam que uma mulher não é capaz

de governar. Minha resposta para elas

é a seguinte: o ano de 2010 foi um dos

mais críticos da história do Quirguistão.

Pouco faltou para que o país entrasse em

colapso e a nação se dividisse. Entretanto

conseguimos superar tudo isso. Saímos

do caos e transpomos a crise, evitando

o naufrágio e pisando em terra f irme,

apesar do silêncio e da inércia do mundo

inteiro. Que tentem fazer o mesmo!

Atualmente, todos os meios de

comunicação social falam de países em

crise, como a Líbia. No Quirguistão, a

tempestade já passou. O nosso jovem

país ainda precisa superar numerosas

dif iculdades, no entanto, o mais difícil

já passou.

Sua energia e seu zelo foram

recompensados, neste ano, pelo

Prêmio Mulheres de Coragem,

atribuído pelo Departamento de

Estado norte-americano. O que isso

signif ica para a Sra.?

Penso que esse prêmio foi atribuído

a meu país e não tanto a mim. Os

acontecimentos ocorridos nos países

árabes demostram que o mundo

está começando a entender que a

movimentação das pessoas, dos países

e, até mesmo, dos continentes em

direção à democracia é irrefreável. O

que temos visto comprova que meu

país também está fazendo parte da

evolução mundial. O que meu país

e meu povo têm tido a coragem de

demostrar é que eles estão motivados

pelo amor da liberdade, pela crença no

progresso e pela democracia. Limitei-me

simplesmente a participar desse

movimento.

O Quirguistão já fez muito para

instaurar a igualdade de gênero. Por

exemplo, existe, no Parlamento, uma

cota de 30% das cadeiras reservadas

às mulheres. Em sua opinião, o que

ainda deveria ser feito nesse sentido?

A igualdade de gênero é um combate

sem f im. Inscrever cotas na lei, como

f izemos na última legislatura, é

Primeira mulher a assumir o cargo de chefe de

Estado na Ásia Central, Roza Otunbayeva nasceu

em 1950. Formada em fi losofi a pela Universidade

Estadual de Moscou e professora no início de sua

vida profi ssional, ela ingressou precocemente

no Partido Comunista da União Soviética e teve

rápida ascensão política. Ela desempenhou um

papel importante nos dois movimentos que

derrubaram os regimes autoritários no Quirguistão

– em março de 2005 e em abril de 2010. Em junho

de 2010, por ocasião de plebiscito para nova

Constituição, a população aprovou a candidatura

única de Roza Otunbayeva para ascender à

presidência de seu país. © U

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insuf iciente. Na vida cotidiana, essas leis

nem sempre são aplicadas. Atualmente,

o Tribunal de Contas, para o qual

também votamos a cota de 30%, prevê

que três pessoas sejam nomeadas

pelo presidente, três pela oposição e

três pela coligação. Como a oposição

e a coligação indicam unicamente

homens, f ico com a responsabilidade de

propor mulheres. Esse procedimento é

absolutamente cínico!

Em nosso país, existem cargos

importantes ocupados por mulheres.

Além de mim, que sou o resultado de

um consenso das forças políticas, o

Banco Nacional é presidido por uma

mulher, assim como o Supremo Tribunal

e a Academia das Ciências. No governo,

em compensação, temos apenas

uma mulher, o que é simplesmente

inaceitável. No plano econômico,

nenhuma mulher faz parte dos

Conselhos de Administração de nossas

grandes empresas.

Para as mulheres quirguizes, este

ano é especial. Primeiramente, porque

comemoramos o bicentenário do

nascimento de Kurmanjan Datka. Essa

mulher, que governava o Alai, no sul

do país, despendeu enormes esforços

para unif icar essa região e anexá-la à

Rússia. E era uma mulher progressista,

dotada de vontade e energia notáveis.

Ela desempenha um papel simbólico

na formação das mulheres e de toda

a nação. Em segundo lugar, este ano

é também especial, porque minha

presidência chega ao f im. Além disso,

ele marca, provavelmente, o auge dos

debates sobre o papel a ser exercido

pelas mulheres no nosso país.

Em sua opinião, qual seria a principal

prioridade para seu país?

É difícil responder a essa pergunta

de forma categórica. Eu diria, no

entanto, que a questão mais delicada

a ser enfrentada pelos Estados

que recentemente se tornaram

independentes é a da identidade.

Trata-se de um problema amplo,

complexo e múltiplo. Todos nós,

todos os quase duzentos membros da

ONU, somos arrastados pela mesma

corrente, chamada globalização. A

questão da identidade é fonte de

perturbação para toda nação, para

cada ser pensante. Esse é um sério

obstáculo ao desenvolvimento. Estamos

todos sofrendo com essa conjuntura e

devemos tentar superá-la.

1. Kurmanbek Bakiev ascendeu ao poder pela

Revolução das Tulipas e dirigiu o país entre 2005

e 2010. Em abril de 2010, foi forçado a abandonar

o cargo, na sequência de uma revolta popular que

deixou 87 mortos.

1 4 . O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 0

Page 15: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

Uma questão de compromisso Assegurar que se tenha sempre presente a situação

de urgência e fragilidade do Haiti é a primeira missão

de Michaëlle Jean, ex-governadora-geral do Canadá,

designada recentemente como enviada especial da

UNESCO para o Haiti. Percurso de uma mulher excepcional,

que herdou a coragem, a perseverança, o pragmatismo e o

senso de compromisso das mulheres haitianas.

MICHAËLLE JEAN responde às perguntas de Katerina Markelova

Como uma imigrante haitiana se torna

governadora-geral do Canadá?

E como bônus, a responsabilidade

de chefe de Estado, além de chefe

de Estado-Maior das Forças Armadas

(risos)! Creio que se trata, antes de mais

nada, de uma questão de compromisso.

Aprendi uma coisa preciosa no Haiti:

não f icar indiferente! Em um país onde

a indiferença provoca grandes danos,

meus pais incentivaram-me a observar, a

formar um ponto de vista e a agir. Herdei

minha coragem, minha perseverança,

meu pragmatismo e meu senso de

compromisso das mulheres haitianas.

Ainda criança, cheguei ao Canadá

e compreendi rapidamente que

integração signif icava participação.

Muito cedo comecei a me envolver

nas atividades do movimento das

mulheres no Quebec e, em particular, no

estabelecimento de uma rede de abrigos

para mulheres vítimas de violência e

seus f ilhos. Isso foi determinante para

minha cidadania ativa e responsável.

Essa experiência levou-me ao

jornalismo: 18 anos na televisão pública!

Frequentemente, os jornalistas de

televisão tornam-se apresentadores

de programas de variedades, quando

dispõem de físico diferente do da

maioria. No meu caso, fui nomeada

imediatamente para um departamento

de notícias: de uma sala de redação, até

chefe do setor e âncora de programa,

com presença em frente às câmeras.

O Canadá é a encarnação da

diversidade. No nosso país, a diversidade

é real, enraizada no cotidiano. Em vez de

uma ameaça, ela é considerada como

uma riqueza, apesar de todos os

desaf ios que isso representa. Em

momentos em que fui vítima de

discriminação ou de racismo – porque

nenhuma sociedade está imune de tais

deslizes –, eu sempre encontrei grande

número de pessoas para me apoiar, de

recursos e de organizações para dizer

coletivamente: “Não! Em um país como

o Canadá, isso é inaceitável!”. Eis por que

uma mulher negra, além disso militante

feminista e ex-refugiada política,

conseguiu tornar-se governadora-geral

do Canadá.

Quais são suas prioridades, enquanto

enviada especial da UNESCO para o

Haiti?

Acima de tudo, f icar vigilante para que

as pessoas tenham sempre presente a

situação de urgência e fragilidade desse

país. O Haiti era prioridade, durante

todas as missões que efetuei em todo

o mundo, na minha qualidade de

governadora-geral. Tanto no Ocidente

quanto na América Latina ou na África,

sempre percebi da parte de meus

interlocutores o desejo de participar

de um pacto de solidariedade em

favor do Haiti. Em razão disso, tenho

intenção de retornar a essas terras, já

trabalhadas, para obter apoio. O Haiti

não poderá sair sozinho dessa situação.

Trata-se de uma tragédia, tenho pleno

conhecimento disso! Ao mesmo tempo,

o Haiti também deve assumir a sua parte

da responsabilidade.

Creio que o mundo inteiro está

observando o caso haitiano. Como será a

resposta da comunidade internacional?

Os haitianos e, em particular, o Estado

haitiano, vão agir de forma responsável?

Impõe-se a obrigação de sermos bem-

-sucedidos e enviarmos uma mensagem

de esperança para toda a humanidade.

O Haiti é um país de todas as urgências,

de todos os tipos de misérias, mas é

um país onde é possível agir, com uma

condição: incluir os cidadãos, sem

distinção entre homens e mulheres.

Tenho o costume de dizer que, no

Haiti, o modo de vida e de sobrevivência

se baseia na esperança. Esse país sempre

consegue superar uma catástrofe após

a outra. Por meio da Revolução Haitiana,

o país foi capaz de triunfar sobre a

barbárie e abolir a escravatura... Com

o terremoto, a esperança sofreu um

golpe violento.

Evoca-se, com frequência,

a capacidade de resiliência dos

haitianos. Eu gostaria que eles fossem

Cena de uma rua em Porto Príncipe, capital

do Haiti, um mês depois do terremoto de 12 de

janeiro de 2010. Mãe e suas f ilhas “preparadas com

capricho, lindas e orgulhosas”, como destacou

Michaëlle Jean.

© UN Photo/Pasqual Gorriz

O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 1 . 1 5

Page 16: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

reconhecidos por sua capacidade para

criar, pensar, exprimir-se. Isso porque,

se nos limitarmos à sua capacidade de

resiliência, acabaremos acreditando

que o Haiti ainda pode esperar, uma vez

que seu povo sabe suportar as piores

situações possíveis.

Em sua opinião, qual é o papel das

mulheres na refundação do Haiti?

Para minha visita ao Haiti, em março de

2010, escolhi deliberadamente o dia 8 de

março, Dia Internacional da Mulher, para

chegar ao país. As mulheres, no Haiti,

tinham necessidade de ouvir alguém

dizer que, sem elas, a reconstrução

será um fracasso. Foi absolutamente

espantoso ver que, nessa imensa

hecatombe em que era praticamente

impossível circular, 5.000 mulheres se

deslocaram para comunicar-me sua

vontade de ver a vida triunfar sobre

essa catástrofe. O movimento das

mulheres, no Haiti, está extremamente

bem organizado. Mulheres importantes

que haviam participado da construção

desse movimento em todo o país

perderam suas vidas, inclusive grandes

amigas minhas. Todas aquelas que

sobreviveram, estavam de luto, mas

animadas, em seu interior, por uma

energia sem limites, determinadas a

assegurar que, ao f inal, a vida vença!

E qual é o lugar ocupado pela

diáspora?

A diáspora teve de superar várias

dif iculdades: não é o primeiro problema

enfrentado pelo Haiti. Com a saída dos

Duvalier1, em 1986, todas as esperanças

renasceram. Vimos emigrantes vender

todos os seus bens e voltar para o país.

Homens, mulheres e jovens quiseram

contribuir para o renascimento do

Haiti, assim como para a construção

de um Estado democrático e de uma

nova governança. Nessa época, já se

falava de refundação, de reconstrução

e de novo impulso. Contudo, o terreno

estava minado. A sucessão de golpes

de Estado e a repressão imposta pelas

Forças Armadas acabaram asf ixiando

as esperanças. Após curto período de

euforia, os haitianos têm vivido uma

prolongada experiência dolorosa.

Em 2008, por ocasião dos furacões –

quando cerca de mil pessoas perderam a

vida –, pressenti um sinal de mau agouro:

não houve reação por parte da diáspora.

Ah, como foi terrível ter constatado isso!

Na verdade, as pessoas que vivem no

exterior tinham f icado decepcionadas

com o comportamento dos compatriotas

no decorrer dos anos precedentes: a

ajuda enviada por elas deteriorava-se

em contêineres ou, então, benef iciava

apenas funcionários corruptos.

O terremoto de 2010 atingiu todos

os corações e todas as mentes! A

diáspora reanimou-se e tem contribuído.

Neste exato momento em que estou

falando, as pessoas estão em plena

movimentação para participar nesta

etapa da evolução do país, que pode ser

determinante. Como já foi dito, é preciso

fazer dessa catástrofe uma oportunidade

para agir!

Durante a sua estada no Haiti, em

março de 2010, a Sra. sublinhou

a importância da educação. Isso

aconteceu no âmbito da mesa-

redonda, em Porto Príncipe, presidida

pela Sra., em companhia da diretora-

geral da UNESCO, Irina Bokova. Quais

serão suas ações nessa área?

Durante essa visita, o mais importante,

para mim, foi identif icar as forças em

ação. Essa é talvez a minha natureza

de haitiana que me leva a pensar

que, diante da adversidade, se deve

reagir e, para reagir, deve-se apostar

nas forças disponíveis. O Haiti é um

país onde se pode fazer muito em

termos de educação. Por quê? Porque,

de maneira intrínseca, na cultura

haitiana, no modo de ser do haitiano,

na sua história, a educação foi sempre

sinônimo de emancipação e de acesso

à liberdade. Nas plantações, os escravos

permaneciam analfabetos, mas havia

também outra categoria de pessoas: as

crianças nascidas das relações entre os

senhores e suas escravas. Essas crianças

não eram enviadas para as plantações,

o que permitiu que aprendessem a ler

e a escrever. Os escravos domésticos,

como eram chamados, tinham acesso

ao conhecimento. Chegava-se, inclusive,

a exibir suas proezas. E os escravos das

plantações assistiam a tudo isso.

Hoje, ao ver os alunos haitianos,

é impossível imaginar as terríveis

condições em que eles vivem! No

entanto, quando vão à escola, essas

crianças são sempre preparadas com

todo o capricho, elas são lindas e

manifestam um sentimento de grande

satisfação, e os pais sentem orgulho

dos f ilhos.

Todas as famílias, até mesmo as

mais pobres, estão dispostas a fazer

tudo o que estiver a seu alcance para

enviar os f ilhos à escola! Portanto, as

condições são muito favoráveis. Se

houver investimento em educação, se o

Haiti for ajudado a compor um sistema

de educação pública de qualidade, tais

projetos serão imediatamente acolhidos

como algo importante e útil pela

população.

Atualmente, há vários projetos

educacionais dispersos, faltando ainda

coordenação. Penso que a UNESCO

dispõe de todas as competências para

desempenhar um papel de liderança

nessa área e para ajudar o Estado

haitiano a criar um quadro normativo

para as escolas.

Michaëlle Jean, nascida em 1957, em

Porto Príncipe (Haiti), exilou-se com a

família no Canadá, em 1968, fugindo do

regime ditatorial de François Duvalier.

Depois de longa carreira no jornalismo

(rede francesa da Radio-Canada e rede

inglesa da CBC Newsworld), além de

percurso militante na defesa dos direitos

das mulheres, Michaëlle Jean assumiu a

função de governadora-geral do Canadá

(de setembro de 2005 a setembro de

2010). Em 8 de novembro de 2010, ela

foi designada como enviada especial da

UNESCO para o Haiti. Com o marido, o

cineasta Jean-Daniel Lafond, Michaëlle

Jean preside uma fundação com seu

nome, dedicada à juventude e às artes.

Michaëlle Jean, enviada especial da UNESCO

para o Haiti.

© Stg Serge Gouin, Rideau Hall

1. François Duvalier, “Papa Doc”, e seu f ilho, Jean-

-Claude Duvalier, “Baby Doc”, usurparam o poder

no Haiti, entre 1957 e 1986, período marcado pela

corrupção, pela supressão das liberdades civis e pela

institucionalização do terror.

1 6 . O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 0

Page 17: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

Crime sem castigo

Com 55 anos, a Sra. já passou mais

de quatro décadas combatendo

todas as formas de discriminação,

em particular, contra as mulheres. De

onde vem seu espírito de militante?

Já nasci rebelde! O contexto social

e meu ambiente familiar apenas

acentuaram essa característica. Com

11 anos, dei meus primeiros passos

como militante de esquerda. Eu morava

no sudeste de Nouakchott, capital

da Mauritânia, em um reduto do

Movimento Nacional Democrático. Esse

movimento pró-marxista reivindicava

emancipação socioeconômica, sem

deixar de contestar o poder do

presidente Ould Daddah e de seu

partido único. Acabei adotando essas

idéias, com as quais tive contato

na rua, entre amigos ou na escola.

Eu lia muito: sobre a resistência das

mulheres vietnamitas, sobre a revolução

bolchevique e, em particular, sobre a

Comuna. A tal ponto que me deram o

apelido de “A Comuna de Paris”. Esse

ideal de libertação dos povos e de

igualdade contrastava radicalmente

com as ideias retrógradas e com o

espírito feudal que prevalecia na minha

família. Nós éramos ricos, tínhamos

escravos, meu pai reinava como um

patriarca dotado de poder absoluto.

Como eu fugia de casa para participar

de passeatas e distribuir folhetos, ele

me dava surras e me prendia com

correntes. Tudo isso fez com que, desde

os 12 anos, eu fosse presa em várias

ocasiões. Em razão de minha idade, eu

era logo solta, mas foi em minha casa

onde sofri os piores maus-tratos. Em

decorrência dessa experiência, meu

compromisso político antes espontâneo

se transformou em convicções

inabaláveis. Desde então, tenho lutado

incansavelmente pela igualdade entre

os homens e as mulheres, pelo f im da

escravidão e pela defesa dos direitos

humanos.

Seu compromisso é muito antigo, mas

só recentemente é que a Sra. criou a

Associação das Mulheres Chefes de

Família (Association des femmes

chefs de famille - AFCF). O que a levou

a tomar essa iniciativa?

Durante muitos anos, f iz parte de

várias associações, como o Comitê de

Solidariedade para Viúvas (Comité de

solidarité aux veuves) ou SOS Escravos

(SOS Esclaves). Em 1999, assisti ao

julgamento de uma mulher. Ela

lutava para que os dois f ilhos fossem

considerados herdeiros do falecido

pai, uma vez que fora casada não

formalmente com um empresário.

O tribunal recusou-se a reconhecer tal

paternidade. Ao ouvir o veredicto, ela

foi literalmente fulminada e morreu

a caminho do hospital. Sem marido,

portanto, sem dinheiro e sem instrução;

logo, sem possibilidade de encontrar

trabalho, ela estava consciente de que,

em companhia dos f ilhos, teria de pedir

Na Mauritânia, a problemática da escravatura está intimamente relacionada com as mulheres,

porque tradicionalmente a condição de escrava era hereditária e transmitida pela mãe. Desde

2007, a legislação mauritana considera a escravidão como crime, mas, na prática, ela continua

sem ser condenada, sob formas mais ou menos disfarçadas.

AMINETOU MINT EL MOCTAR responde às perguntas de Laura Martel, jornalista da Rádio França Internacional (RFI)

Na Mauritânia, a escravidão tradicional foi substituída

pelo trabalho doméstico forçado, lastima Aminetou

Mint El Moctar, que está preocupada particularmente

com o destino de jovens mulheres.

© UN Photo/Jean Pierre Laff ont

O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 1 . 1 7

Page 18: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

contra a Mulher, mas com duas reservas,

precisamente em relação ao divórcio

e à herança. Atualmente, a AFCF faz

campanha para que tais reservas sejam

retiradas. Por meio da inserção da

igualdade entre homens e mulheres

na lei, teremos à nossa disposição os

meios necessários para combater as

discriminações de fato, mesmo que se

trate apenas de uma primeira etapa, já

que um grande número de leis não são

aplicadas.

Esse é o caso, em particular, da lei de

2007 que criminaliza a escravidão.

A Sra. sublinha frequentemente que

nenhuma condenação foi pronunciada

desde a adoção desse texto: isso

signif ica que deixou de haver escravos

na Mauritânia?

É algo dif icilmente quantif icável, por

se tratar de assunto tabu. No entanto,

sabemos que persiste a escravidão,

porque temos acolhido vítimas nessa

situação regularmente. A AFCF tem

denunciado, com outras associações

e em várias oportunidades, casos de

escravidão às autoridades, mas, até

agora, nenhum processo resultou em

condenação. Os “senhores”, que, muitas

vezes, ocupam posições elevadas na

hierarquia social, são protegidos.

A problemática da escravidão está

intimamente relacionada com as

mulheres, já que, segundo a tradição,

ela é hereditária e transmitida pela mãe.

É, portanto, mais interessante para o

“senhor” dispor de mulheres escravas,

esmola para sobreviver. Ela morreu por

não ter sido capaz de defender seus

direitos. Nesse instante, compreendi

que já era tempo de lutar em favor

dessas mulheres abandonadas por todo

o mundo, e, imediatamente, fundei

a Associação. Contudo, por razões

administrativas, nossas atividades

começaram realmente apenas em

2005. Atualmente, a AFCF tem mais

de 10.000 sócios e garante emprego

para 62 pessoas. Nossa equipe e nossos

custos operacionais são pagos pelas

cotizações. Além disso, nossos projetos

são f inanciados com o apoio recebido

de várias entidades.

A sociedade mauritana é multicultural

com dois componentes principais: os

árabes-berberes e os negros africanos.

Será que as mulheres ocupam a mesma

posição nessas duas comunidades?

No cerne das duas comunidades, a

mulher exerce tradicionalmente a

mesma função: ela é “feita para o

casamento e para satisfazer o desejo

do homem”, mas tal entendimento

traduz-se de forma diferente na vida

cotidiana. O tipo de obrigações é

variável. Para as negras africanas, uma

boa esposa ocupa-se essencialmente

das tarefas domésticas, da educação

dos f ilhos e da satisfação do marido.

Se a mulher ganha dinheiro, ela deve

entregá-lo, em geral, ao “dono da

casa”. Por sua vez, as mulheres árabe-

-berberes escapam, na maior parte

das vezes, às tarefas domésticas. Não

apenas porque suas famílias são, muitas

vezes, mais abastadas, mas também

porque a mulher deve ser “preservada”

para que possa ser casada da melhor

maneira possível. Mimá-la e forçá-la a

alimentar-se constitui investimento. A

honra da família apoia-se, em particular,

no fato de que as moças se casam

precocemente: “ela casou-se cedo” é

um adágio utilizado com frequência

pelos griôs como elogio. A tradição

nômade outorga mais liberdades às

mulheres árabe-berberes que a suas

irmãs negras africanas, no que se

refere às respectivas atividades. Além

disso, as árabes-berberes mauritanas

têm uma concepção tradicional do

divórcio bem particular: não só ele é

aceito, mas pode constituir um valor

agregado para a mulher! A mulher que

se divorciou várias vezes é altamente

cobiçada. Eu mesma tenho três f ilhos

de pais diferentes e já casei cinco, seis

ou sete vezes... mas agora acabou!

(risos) O divórcio é, pelo contrário, mal

visto entre os negros africanos, que

Durante séculos, imperativos religiosos e

costumes tradicionais criaram instrumentos

discriminatórios no que se refere às mulheres na

Mauritânia, segundo Aminetou Mint El Moctar.

© Pepa Martin, Espagne

tradicionalmente praticam a poligamia

com maior frequência do que ocorre

com os árabes-berberes, embora a

atual tendência obscurantista esteja

implicando ressurgimento dessa prática

entre estes. Tudo isso não passa, é claro,

de generalidades, mas existem muitas

exceções.

Alimentação forçada, casamento

precoce, mutilação genital feminina,

escravidão, trabalho doméstico…

a lista de violações dos direitos

das mulheres é longa. Qual é a sua

prioridade?

O mais urgente consiste em estabelecer

igualdade entre homens e mulheres no

plano legal. No decorrer dos séculos,

a jurisprudência tem feito uso de

imperativos religiosos com costumes

tradicionais para criar instrumentos

discriminatórios. Na Mauritânia, a

mulher tem, ao longo de sua vida, um

tutor legal, que pode ser o pai, o marido

ou, até mesmo, o f ilho. Portanto, ela

não tem nenhum direito em relação

à sua própria pessoa. Consideremos

o exemplo do casamento. Segundo o

Código do Estatuto Pessoal, a idade

legal do casamento é de 18 anos, mas,

havendo acordo do tutor, ele pode ser

celebrado mais cedo. Esse dispositivo

legaliza o casamento precoce e retira

o poder de decisão das mulheres. Foi

assim que, certo dia, ao voltar para casa

depois da escola, me dei conta de que

estava casada com um amigo do meu

pai. Eu tinha 13 anos.

Além disso, os f ilhos homens

têm direito a dois terços da herança,

e o pedido de divórcio só pode ser

apresentado pelo homem. A Mauritânia

assinou a Convenção sobre a Eliminação

de todas as Formas de Discriminação

1 8 . O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 0

Page 19: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

uma vez que ele se apropria da prole

delas. No entanto, essa expressão

tradicional da escravidão – em que

as pessoas, de geração em geração,

são propriedade do “senhor” – está

em declínio. Infelizmente, ela está

sendo substituída por uma forma de

escravidão mais “moderna”: o trabalho

doméstico. Famílias pobres levam

as f ilhas para casas de famílias ricas,

recebendo em troca, muitas vezes,

apenas alojamento e comida. Essas

meninas, em geral muito jovens, não

têm qualquer instrução e, não raro, são

vítimas de violência. Em Nouakchott,

é possível encontrar inúmeros casos

desse tipo. Essas meninas vêm

principalmente das zonas rurais

do país, mas também dos Estados

vizinhos, como Senegal, Mali e Gâmbia.

Em cooperação com a associação

de solidariedade internacional Terra

dos Homens, lançamos, em 2009, um

programa que nos permitiu ajudar 2.200

crianças e adolescentes.

Em sua opinião, a Mauritânia é uma

plataforma para o tráf ico de crianças e

adolescentes?

Esse tráf ico existe há muito tempo,

mas ganhou maior amplitude nos

últimos anos. Os traf icantes vão à

procura de crianças e adolescentes

nas famílias pobres das zonas rurais,

prometendo aos pais que as f ilhas terão

um emprego, ou uma peregrinação

religiosa, um casamento de prestígio,

uma quantia em dinheiro... As meninas

passam por Nouakchott, antes de

serem levadas para o Golfo, onde são

vendidas e acabam casando. Se forem

negras, elas são despigmentadas. Ao

atingirem a idade de 18, 20 anos, os

maridos jogam-nas na rua, porque já

não são suf icientemente jovens para

seu gosto, e, na maior parte das vezes,

elas ingressam na prostituição. Mesmo

que não tenham atingido a maioridade,

eventualmente podem ser expulsas. Há

três anos, no aeroporto, encontrei 14

meninas com cerca de 15 anos de idade

que tinham vivenciado esse tormento

e estavam sem destino. A rede de

prostituição estende-se também para

a Europa. Atualmente, a AFCF procura

angariar fundos para f inanciar uma

pesquisa que visa a avaliar a amplitude

desse fenômeno.

Existem áreas em que há uma evolução

positiva?

A mutilação genital feminina! Embora

ela esteja desaparecendo em ritmo

bastante lento, essa prática começa

a ser abandonada coletivamente,

graças às diversas convenções e

às contribuições de entidades que

têm despendido muito dinheiro em

campanhas de informação, além

do comprometimento de algumas

personalidades religiosas. Em 2010,

foi assinada uma fatwa (lei religiosa)

contra a mutilação genital feminina.

A polícia e a justiça estão igualmente

sensibilizadas, porém, mais uma

vez, não há praticamente nenhuma

condenação.

A alimentação forçada está em

declínio também, em particular pela

mudança progressiva nos critérios de

beleza. No entanto, mais de 20% das

mauritanas ainda comprometem sua

saúde, na tentativa de engordar, ainda

mais que atualmente os métodos

tradicionais estão sendo substituídos

por suplementos alimentares, muitas

vezes perigosos para o organismo.

Finalmente, em termos de

representação política, alcançamos

progressos consideráveis entre 2005

e 2007, inclusive com a instauração

de cota de 20% de mulheres nas

instituições eletivas. Atualmente,

temos uma ministra das Relações

Exteriores, mas o número de cargos

de responsabilidade ocupados

por mulheres (secretarias de

Estado, prefeituras, governadorias)

está diminuindo desde 2008.

Simbolicamente, o Ministério da

Promoção Feminina voltou a ser

incluído no Ministério dos Assuntos

Sociais. Além disso, a Mauritânia, à

semelhança de outros países, enfrenta

pressões por parte de uma corrente

obscurantista que pretende reduzir as

mulheres à função de donas de casa.

Na sua opinião, o que deve ser feito

pelas mulheres para defenderem

melhor seus direitos?

Tradicionalmente, as mulheres

não recebem educação religiosa

aprofundada; elas aprendem “apenas

o que é necessário para rezar”. Ora,

o fato de conhecer melhor a religião

deveria permitir que elas se livrassem

de certas práticas. Por exemplo, eles

f icariam sabendo que a mutilação

genital feminina ou a poligamia não são

impostas pelo Alcorão. Penso também

que as religiões, incluindo o Islã, devem

adaptar-se ao mundo contemporâneo:

devemos solicitar aos eruditos uma

interpretação “moderna” dos textos

sagrados.

Na Mauritânia, as mulheres são

a maioria: elas representam 52% da

população. Existe, por conseguinte,

potencial para que uma elite feminina

se desenvolva, sendo capaz de

superar divisões ideológicas e raciais.

Em colaboração com a ONG norte-

americana Parceria de Aprendizagem

das Mulheres (Women’s Learning

Partnership), a AFCF está formando

anualmente 100 mulheres para que

desempenhem funções de liderança.

A política é um meio para atingir

nossos f ins, mas convém reconhecer

que não é necessariamente o melhor,

porque muitas mulheres, uma vez que

assumem seus cargos, costumam ceder

ao oportunismo individual. Nesse caso,

impõe-se uma tomada de consciência

coletiva, que está começando a se

formar.

Por que razão a Sra. não ingressou na

vida política?

Porque pref iro o trabalho de campo,

junto das vítimas. Ao mobilizar as

mulheres de rua, conseguiremos

ganhar mais credibilidade. Sei que se

trata de um trabalho exaustivo, mas

sinto claramente que estamos em

um momento de virada: os esforços

da Associação foram recompensados

pela atribuição do Prêmio dos Direitos

Humanos da República Francesa, em

2007, e do Prêmio Heróis em Luta

contra a Escravidão Moderna (Heroes

Acting To End Modern-Day Slavery

Award), concedido pelo Departamento

de Estado norte-americano, em 2010.

Este reconhecimento encoraja um

número cada vez maior de organismos

internacionais a f inanciar nossos

projetos.

A jurista mauritana Aminetou Mint

El Moctar fundou a Associação

das Mulheres Chefes de Família

(Association des femmes chefs de famille

– ACFC).

© C

rid

em

.org

O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 1 . 1 9

Page 20: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

Seu país ainda estava em guerra quando ela começou a

construir sua casa. Para começar, usou um carrinho de mão.

Transportou e enterrou os restos mortais de 72 pessoas

assassinadas na sua frente, a maior parte das quais haviam

procurado refúgio nas instalações da diocese em que ela

trabalhava. Em seguida, ela foi aos campos de batalha para

procurar por crianças sobreviventes. “Algumas estavam

cegas, enquanto outras tinham perdido os braços”. Ela

forneceu-lhes curativos e alimentação... mas era necessário

também uma casa para abrigá-las.

Maggy Barankitse tinha 37 anos de

idade quando a guerra civil eclodiu em

Burundi, um dos menores e mais pobres

países do continente africano. De 1993

até o início da década de 2000, o

conf lito entre tutsis e hutus ceifou mais

de 200.000 vidas, mas acabou poupando

a sua. Ela então dedicou-se a salvar a vida

de milhares de crianças em sua região

natal de Ruyigi, perto da fronteira com

a Tanzânia, e também em todo o país.

“Atualmente, eu sou a mãe mais feliz do

mundo - tenho 20.000 f ilhos”, declara

com um sorriso radiante nos lábios.

“Tentamos instruir as crianças de uma

geração fratricida para criar uma nova

geração que seja capaz de respeitar o

semelhante. Não fazemos distinção entre

f ilhos de vítimas e f ilhos de criminosos,

elas todas são apenas crianças que

precisam ser amadas e reconfortadas.

Atualmente, 75% dos meus colegas

– médicos, psicólogos, economistas,

enfermeiros, professores – fazem parte

das crianças tutsis e hutus que cresceram

juntas na Casa Shalom.”

Não se deve imaginar essa casa

com quatro paredes cobertas com um

telhado. Há 17 anos, “mamãe Maggy”

utilizou diferentes espaços que lhe foram

emprestados ou cedidos para abrigar

os órfãos da guerra, antes de criar três

grandes orfanatos. “Mas eu me dei

conta”, confessa ela, “de que as crianças

que crescem nesses lugares perdem

o senso de responsabilidade. Acabei

fechando os orfanatos para montar uma

série de estabelecimentos vinculados à

nossa associação. Pouco a pouco, criei,

por todo o país, centros para abrigar

pequenos grupos de irmãos – hoje

contamos com três centros. Consegui

também que algumas crianças fossem

JASMINA ŠOPOVA

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2 0 . O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 0

Mamãe Maggye seus 20.000 f ilhos Encontro com Maggy Barankitse

Page 21: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

recebidas por famílias. Eu comparo a

Casa Shalom com um barco, cujo capitão

é Deus.”

Cristã fervorosa, Maggy Barankitse

tem uma única religião: o amor. “Os

homens e as mulheres têm amor

suf iciente em seus corações para

dizer ‘não’ ao destino e ‘não’ ao ódio

fratricida”, af irma essa mulher que

organizou uma “votação democrática”

com as crianças quando chegou o

momento de batizar sua associação.

“Foram as crianças que deram à sua

casa o nome de ‘Shalom’. Trata-se de

uma palavra de origem hebraica, mas

seu alcance é universal, porque signif ica

‘paz’. As crianças muçulmanas também

levantaram a mão na hora de votar.”

No decorrer dos anos, ela também

construiu para seus f ilhos um centro

de ensino de prof issões, onde eles

podem aprender técnicas de carpintaria,

agricultura, pecuária, costura e trabalhos

hidráulicos. No entanto, seu maior

motivo de orgulho é o hospital que,

por sua iniciativa, foi construído em

Ruyigi, incluindo um centro de proteção

materna e infantil: “consegui colocar

em prática um grande hospital, de

modo a prevenir a ocorrência de alguns

incidentes. Eu não suportava mais

acolher bebês que haviam perdido a

mãe no momento do parto – ninguém

no mundo pode substituir a ternura de

uma mãe; nenhuma instituição, nenhum

centro é capaz de substituir uma mãe.

Construí uma bela maternidade e

montei uma escola de enfermagem.

Bati em todas as portas para conseguir

uma ambulância. Em seguida, visitei as

mães em suas aldeias para dizer-lhes

que, agora, elas têm a possibilidade de

recorrer a nossos serviços sempre que

tiverem necessidade de ajuda.”

Para as mulheres soropositivas e para

as doentes de AIDS, Maggy Barankitse

abriu um centro especial no qual, além

de serem acolhidas, alimentadas e

tratadas com medicamentos antivirais,

elas recebem ajuda psicológica e

orientações para o seu futuro. “Elas

aprendem a se organizar, a criar

associações e pequenas cooperativas.

Veja isto aqui”, diz ao chamar nossa

atenção para o belo vestido colorido

que ela usa durante o nosso encontro,

na sede da UNESCO, “foram elas que

confeccionaram! O essencial não

consiste em dar assistência a essas

mulheres, mas em ajudá-las a se

tornarem autossuf icientes”.

É difícil exprimir em números exatos

o alcance da ação da Casa Shalom.

“Como trabalhamos em todo o território

nacional, eu não posso dizer quantas

pessoas receberam nosso apoio. Nossas

escolas acolhem todas as crianças dos

municípios onde foram construídas

por nossa iniciativa. Do mesmo modo,

as bibliotecas e as salas de cinema

instaladas por nós são acessíveis a todo

o mundo.”

Atualmente, a associação garante

emprego a 220 assalariados, sem contar

os voluntários. Além disso, ela recebe

o apoio de mais de 40 instituições de

caridade, de organizações diversas e de

governos. De fato, Maggy Barankitse

é muito convincente na hora de pedir

ajuda, mas talvez por causa disso ela não

Relatório Mundial de Monitoramento

sobre a Educação para Todos 2011,

dedicado ao impacto dos conf litos

armados sobre a educação. “Essa

menina, vítima de estupro na República

Democrática do Congo, de quem se

falou hoje na conferência, é que deveria

ter sido convidada no meu lugar. É ela

que deve falar de si mesma. Temos que

abrir as portas das salas de reuniões

para essas pessoas. Elas têm voz e não

necessitam de porta-vozes! Mesmo

que não falem inglês nem francês, elas

devem ter direito à palavra.”

E para concluir o capítulo das

críticas: “eu gostaria que houvesse um

questionamento quanto à ação das

Agências das Nações Unidas. Que elas

deixassem de organizar tantas reuniões

evita criticar abertamente determinados

comportamentos. Por exemplo, mesmo

que o UNICEF ajude a Casa Shalom, ela

indigna-se com as centenas de escolas

feitas de plástico espalhadas pelo país

que ostentam a logomarca do UNICEF.

“Ao invés de nos enviar o plástico

fabricado em empresas do Ocidente e

nocivo para a saúde das crianças, eu me

pergunto por que o Fundo não nos ajuda

a comprar palha – um material muito

mais adaptado ao nosso ambiente e ao

nosso clima –, para que nós mesmos

possamos construir nossas escolas e, ao

mesmo tempo, receber um salário que

nos permita escolarizar nossos f ilhos?”

Esse tom enérgico também é

utilizado em relação à UNESCO.

Com efeito, ela participou, na sede

da Organização, do lançamento do

internacionais, que deixassem de se

basear tanto nas estatísticas e que

estivessem mais presentes onde fazem

falta: nos lugares que necessitam

de ação.”

“Quanto a mim, eu vivo no mato,

em uma região esquecida do mundo”,

declara Maggy Barankitse, ainda com

mais veemência. “Vivo em uma ‘zona de

risco’, por onde, de vez em quando, passa

um jornalista que vem bater algumas

fotos e logo se apressa em ir embora.

Vivo em um lugar onde os funcionários

estrangeiros passam três semanas antes

de ir descansar em Zanzibar! Quando

comecei meu trabalho, eu f icava chocada

com esses comportamentos. Mas depois

compreendi: deve-se abrir a boca e falar.

Quem não critica não ama o que faz,

porque não existe amor sem a verdade.”

© M

aiso

n S

hal

om

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yig

i

Maggy Barankitse tem muito orgulho deste hospital que ajudou a construir em uma zona rural da região de

Ruyigi, no Burundi.

O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 1 . 2 1

Page 22: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

Sem medo de nada

Neste ano, o Bangladesh comemora o

40º aniversário de sua independência.

Desde então, quais foram as mudanças

verif icadas na vida das bengalesas?

Muitas coisas mudaram desde a

libertação do país. Atualmente, as

mulheres estão, em geral, muito

mais conscientes de seus direitos,

reivindicando-os com maior

determinação, e conseguindo

manifestar suas opiniões no cenário

político e social.

Certamente, a situação não evolui

no mesmo ritmo em todas as regiões

do país, e poderia ter havido mais

avanços, não fossem as interrupções do

processo democrático ou a progressão

do fundamentalismo. De maneira

geral, os bengaleses nunca chegaram

a aprovar a ortodoxia religiosa no país.

SULTANA KAMAL responde às perguntas de Anbarasan Ethirajan, jornalista indiano na BBC – Bangladesh

Em razão disso, as mulheres sempre

se benef iciaram de um clima bastante

liberal, que tem sido utilizado por elas

para manifestar suas opiniões, participar

de debates e envolver-se em vários

aspectos da vida social.

Em Bangladesh, as funções de

primeiro-ministro e de líder da

oposição são ocupadas por mulheres,

Sheikh Hasina e Khaleda Zia, ou

seja, uma situação no mínimo

insólita em um país cuja população é

majoritariamente muçulmana.

Gosto da maneira como você apresenta

as coisas, ao af irmar que se trata de

uma situação insólita em um país

cuja população é majoritariamente

muçulmana. De fato, o Bangladesh é um

país em que a maioria da população é

Em Bangladesh, as mulheres têm ocupado posições políticas

de alto nível e, no entanto, a discriminação sexual não deixa

de ser institucionalizada nesse país, segundo a militante

Sultana Kamal. A progressão do fundamentalismo – neste

país que se propõe laico, mas onde o islamismo continua

sendo a religião de Estado – assim como as interrupções

do processo democrático têm incidências diretas sobre a

condição das mulheres.

muçulmana, mas não nos consideramos

como um Estado muçulmano. É um

país onde vivem pessoas de diferentes

religiões e coabitam numerosas culturas

que, por sua vez, são reverenciadas e

respeitadas. Entretanto, no que se refere

ao fato de os cargos mais elevados do

Estado serem ocupados por mulheres,

convém lembrar o seguinte: ao dar

o voto a Sheikh Hasina, os eleitores

estavam votando, na realidade, em seu

falecido pai, Sheikh Mujibur Rahman,

o primeiro presidente do país. E no

caso de Khaleda Zia, o voto era dado

efetivamente a seu falecido marido,

o general Ziaur Rahman, ex-ditador

militar. Os bengaleses conservam uma

imagem bem marcante desses dois

líderes famosos de nossa sociedade.

No entanto, o simples fato de

essas mulheres desempenharem uma

função de poder e exercerem controle

real sobre a situação no país dá às

bengalesas um sentimento de

conf iança, a convicção de que as

mulheres podem também chegar ao

topo da hierarquia social.

Qual é a identidade predominante

no Bangladesh: a bengalesa ou a

muçulmana?

Um grande número de meus

compatriotas questiona-se para

2 2 . O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 0

Page 23: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

saber se eles são, em primeiro lugar,

muçulmanos ou bengaleses. Esse

conf lito tem suas raízes na época

em que o Bangladesh fazia parte

do Paquistão: os líderes militares

paquistaneses desaf iavam

constantemente os habitantes do

Paquistão Oriental a provarem sua

lealdade como paquistaneses. Era

exigido que provassem ser verdadeiros

muçulmanos, vinculando, desse

modo, a identidade muçulmana com a

identidade paquistanesa.

A maioria dos bengaleses, todavia,

pensa que é possível ter várias

identidades. Sim, sou muçulmana,

ou nasci no seio de uma família

muçulmana; mas sou também

bengalesa, sou também mulher e

sou também militante em favor dos

direitos humanos. Tenho um grande

número de identidades diferentes.

Da mesma forma, há hindus e cristãos

que têm várias identidades. Como já

disse, o povo de Bangladesh acredita,

fundamentalmente, no pluralismo.

Aliás, acredita no suf ismo: sua relação

com a natureza, com Deus e com

todos os mistérios da vida está, creio

eu, intimamente associada à própria

percepção de si mesmo e da natureza.

O amor dos bengaleses por seu país

mistura-se com seu amor pelos rios,

pelas árvores e pela natureza. A cultura

bengalesa está intimamente associada

à harmonia fundamental que meus

compatriotas procuram ver em todos os

lugares. Inicialmente, não havia a cultura

do confronto: essa foi forjada e tem sido

apoiada constantemente por forças

presentes na sociedade que, de vez em

quando, conseguem tomar o poder e

estender sua inf luência, por meio dos

sistemas econômico e educativo, além

dos organismos culturais.

Em que medida as forças

fundamentalistas islâmicas têm

modif icado a vida social e cultural em

Bangladesh?

Os fundamentalistas apoderaram-se dos

setores-chave da sociedade: bancos,

companhias de seguro, saúde, educação

etc. Sua inf luência é mais prejudicial no

sistema de ensino, porque eles

modif icaram todos os programas e

todos os métodos de informação no

país. A interpretação correta da religião

passa necessariamente por seu ensino

ou pela submissão à sua maneira de

pensar.

Eles servem-se do terror para ter

acesso ao poder ou manter-se nele.

Todos os danos inf ligidos à sociedade

de Bangladesh pelos fundamentalistas

têm sido causados pelas armas. Eles

fazem uso do dogma que nos diz

que nada pode ser questionado. A

população não tem, portanto, outra

escolha, além de submeter-se. Eles

servem-se também da liberdade

de expressão e das oportunidades

oferecidas pela democracia para impor

obrigações de cunho religioso. E

repetem incessantemente: “queremos

a cabeça dessa pessoa” ou, então, “esse

indivíduo deve ser enforcado, porque

é um traidor”, sempre que uma pessoa

diz algo que eles consideram como

blasfêmia. Tais métodos aterrorizam

a população. Contudo, você terá

observado também que poucas pessoas

apoiam realmente essas práticas.

Um grande número de bengaleses

manifesta-se contra essas acusações,

desde que eles tenham a certeza de

que sua tomada de posição não terá

repercussões, nem implicará represálias

por parte dos fundamentalistas. No

entanto, existem outros atores da

sociedade que os apoiam, incentivam e

protegem, cada vez que se sentem em

perigo, como nos períodos eleitorais.

Nos últimos anos, os tribunais de

Bangladesh têm proferido vários

julgamentos, proibindo que a mulher

seja obrigada a usar a burca ou o véu.

Em Daca, observa-se que tais decisões

são aceitas, mas, fora da capital,

percebe-se que as mulheres continuam

usando o traje islâmico tradicional.

Em primeiro lugar, convém lembrar que

as mulheres das zonas rurais dispõem

de recursos bem precários para serem

independentes no plano econômico e

social. Essas mulheres pertencem, na

maior parte das vezes, à classe média

baixa ou às camadas menos favorecidas

da sociedade. Então, servem-se desse

tipo de estratégia para poderem sair de

suas casas. Quando falamos com elas,

conf idenciam-nos que a família não

permite que venham para a rua sem

burca. Portanto, elas são obrigadas a

usá-la, se pretendem ir para a escola,

para o trabalho ou para uma reunião.

A que se deve tal situação? Nas

zonas rurais, os homens também são

Em Bangladesh, as f ilas de mulheres esperando

para votar são quase sempre mais longas que as dos

homens.

© Faizal Tajuddin, Kuala Lumpur

privados de inúmeras oportunidades

pelos líderes sociais, que, infelizmente,

estão associados com a hierarquia

religiosa. Com isso, tais líderes

inf luenciam os maridos a controlar as

respectivas mulheres dessa maneira.

Como, durante anos, este país foi

dirigido por generais que estabeleceram

sólidas alianças com as forças religiosas,

essas práticas foram incentivadas,

alimentadas e, até mesmo, protegidas

pelo Estado. Em razão disso, não será

fácil para que algumas mulheres deixem

de usar a burca da noite para o dia.

É possível ver, atualmente, um

número muito maior de burcas no

Bangladesh, em relação ao que se

via quando o país fazia parte do

Paquistão. Para mim, essa é uma das

consequências das interrupções do

processo democrático, durante as

quais o povo bengalês foi obrigado a

submeter-se a determinados poderes

e a certas forças que não desejavam

que ele se exprimisse e reanimasse o

espírito da Guerra de Libertação, de

1971. Nessa época, havia um conf lito

aberto entre os grupos da linha dura,

contrários à independência, e as forças

que haviam lutado pela independência

de Bangladesh.

Outro tema delicado: os ataques à

base de ácido contra as mulherese

o assédio sexual das meninas, que

levam frequentemente ao suicídio das

vítimas. Será possível controlar essas

práticas pela simples promulgação de

leis?

Como se trata de um problema social,

ele deve ser tratado com medidas

de cunho social. Temos de criar um

ambiente em que as mulheres tenham

conf iança suf iciente para lutar contra

essas práticas. Além disso, é necessário

envolver o Estado, a sociedade e as

famílias na proteção das mulheres.

Temos de conversar com as famílias,

levando-as a compreender, com toda

a clareza, que, neste país, as mulheres

têm os mesmos direitos e a mesma

dignidade que os homens, e que estes

princípios devem ser respeitados. Nesse

ponto, é impossível fazer qualquer

tipo de concessão. A luta contra

essas práticas deve inscrever-se em

um movimento social. No entanto,

a legislação é, igualmente, útil, por

conferir uma espécie de poder e

conf iança no que concerne à

possibilidade de combater esses

problemas no plano legal.

O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 1 . 2 3

Page 24: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

Será que a discriminação sexual

se encontra institucionalizada em

Bangladesh?

Se analisarmos a legislação civil vigente

em Bangladesh, eu tenderia a dar-lhe

uma resposta af irmativa. De acordo com

esses textos, o povo deve ser governado

por leis religiosas que, por sua vez,

discriminam claramente as mulheres.

Todavia, o Estado não faz nada para

lutar contra essa discriminação. Desde

1972, estamos pedindo a adoção de

um código civil ou de um código da

família uniforme para todos. O governo

é incapaz de agir sobre esse ponto,

de modo que ainda não def inimos

claramente o que é a discriminação

positiva ou a igualdade de gênero neste

país. Temos esbarrado em uma forte

resistência no coração da sociedade que

se ref lete nas políticas do Estado.

Atualmente, há uma polêmica sobre

o modo pelo qual Bangladesh está

tratando os refugiados da etnia

rohingya, da vizinha Myanmar. Qual

sua opinião a respeito?

Em primeiro lugar, creio que os

partidários do fundamentalismo em

Bangladesh estão explorando a situação

dessas pessoas. Esse é um aspecto do

problema; outro aspecto, segundo

nosso ministro das Relações Exteriores,

é de ordem econômica. A partir do

momento em que se reconhece

a condição de refugiados a essas

pessoas, temos de tratá-las conforme

os tratados internacionais existentes, e

os maridos e encontravam dif iculdades

para conviver com a família deles.

Outras desejavam saber se podiam

casar-se novamente e conservar os fi lhos

do primeiro casamento. Foi por isso

que decidi estudar direito e me tornei

advogada. Percebi que, como detentora

de uma bagagem jurídica, eu poderia ser

útil a essas mulheres. Eu queria ajudá-las

a compreender que elas tinham direitos e

podiam viver com dignidade.

A Sra. tem sido ameaçada em muitas

ocasiões e, inclusive, já sofreu um

atentado. Já chegou a pensar em

desistir?

Para dizer a verdade, não, porque meus

pais ensinaram-me que, ao abandonar o

combate, perde-se metade da batalha.

Por que haveria eu de abandonar

as causas em favor das quais tenho

lutado e deixar que algumas pessoas

pensassem que tinham vencido minha

resistência? Temos apenas uma vida a

perder, é nisso que está a sua força.

Descontentes pelo fato de eu ter

casado com um hindu e por eu me

relacionar com determinadas pessoas,

os fundamentalistas incendiaram

minha casa, em 1995. Por um triz, não

perdemos a vida. Mais tarde, lançaram

também uma bomba na minha

residência. No entanto, nunca f iquei

preocupada com o meu bem-estar ou

com a minha vida. Com certeza, sinto

responsabilidade em relação a meu

marido e a minha f ilha. Eles têm direito

de contar comigo. No entanto, mesmo

nesse aspecto, penso que a maneira

como fui criada e comecei a perceber

os problemas da vida me ensinou que

nunca deveria ter medo. O medo não

serve para nada, não traz solução para

os problemas.

Sultana Kamal, militante

bangladeshiana em favor dos direitos

das mulheres, é diretora-executiva de

Ain Shalish Kendra (ASK): essa ONG do

Bangladesh, que garante assessoria

jurídica e defesa dos direitos humanos,

fundada em 1986, benef icia-se do apoio

f inanceiro da Embaixada dos Países

Baixos, da agência alemã NETZ, da Save

the Children e de outras organizações.

Seus fundos provêm, igualmente, dos

serviços prestados, principalmente, no

domínio da formação e das publicações.

Levando em consideração apenas os

números de 2010, a ASK forneceu ajuda

jurídica gratuita a 4.000 mulheres.

isso acarretará um peso econômico que

Bangladesh não pode assumir.

Outro problema diz respeito ao

número dessas pessoas. O Bangladesh

não tem condições de acolher uma

população tão grande.

No entanto, como militante da causa

dos direitos humanos, eu gostaria que

se reconhecesse a existência de todos

esses problemas para que pudéssemos

tratá-los de forma adequada. Tenho a

convicção de que essas pessoas têm

direitos que devem ser respeitados.

Falemos, agora, de sua vida. O que

levou a Sra. a tornar-se militante em

favor dos direitos das mulheres?

Cresci em um ambiente frequentado

por um grande número de ativistas

sociais e políticos. Meus pais estavam

envolvidos intensamente no movimento

antibritânico. Em seguida, minha mãe

iniciou o movimento das mulheres em

Bangladesh e desempenhou um papel

importante no movimento em favor

da língua bengali, assim como nos

movimentos culturais das décadas de

1950 e 1960.

Envolvi-me na vida pública, no

momento da Guerra de Libertação do

país. Durante a guerra, que durou nove

meses, passei vários meses na Índia com

minha irmã. Chegamos a montar um

hospital para tratar os feridos da luta pela

independência. Anteriormente, eu tinha

ajudado meus compatriotas a obter

informações ou refúgio, além de auxiliá-

-los a atravessar a fronteira.

Após a libertação, em 1971, comecei

a trabalhar com as mulheres que haviam

sido atingidas impiedosamente pela

guerra e visitavam minha mãe. Na maior

parte das vezes, elas tinham perdido

Em Sultana Kamal, na inauguração de projeto

de construção de escola para crianças carentes

e órfãs.

© ASK, Dakha)

Page 25: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

feminista estava dando seus primeiros

passos, mas já havia um movimento

dos advogados. Encontramo-nos no

centro desses dois grupos e, em seguida,

começamos a defender nossas causas.

Que dif iculdades teve de enfrentar

como ativista dos direitos humanos?

Nos últimos cinco ou seis anos, recebi

várias mostras de reconhecimento,

tanto no exterior quanto no meu país.

Contudo ainda hoje, se você falar de

mim com alguém que não acredita na

universalidade dos direitos humanos,

essa pessoa vai dizer que sou uma

mulher ocidentalizada, sendo que na

verdade nunca estudei nem vivi no

exterior. Vai dizer também que sou

contra a religião, porque penso que

todas as pessoas têm o direito à escolha

de ter ou não uma religião. Por f im, dirá

que sou contra o Paquistão, porque

acredito que meu país deve viver em paz

com seus vizinhos…

No entanto, eu também venho de

uma sociedade feita de contradições.

Em nosso país, as mulheres são objeto

de violência e de desprezo, sendo

que, o Paquistão foi o primeiro Estado

muçulmano do mundo em que uma

mulher ocupou o cargo de primeiro-

ministro: Benazir Bhutto, uma pessoa

muito corajosa. Em nosso país, existem

pessoas que ameaçam as mulheres

como eu, mas também há outras que

nos dão apoio, proteção e incentivo.

Aprendi muito e devo muito a meus

compatriotas.

Com o tempo, compreendi quais

são as três qualidades necessárias para

defender nossos ideais: em primeiro

lugar, é necessário ter um caráter

inabalável; em segundo lugar, é preciso

ser perseverante; e, em terceiro lugar,

deve-se constantemente buscar novas

soluções.

Ainda me lembro que quando

comecei a defender os trabalhadores

braçais (pessoas que estão submetidas

ASMA JAHANGIR responde às perguntas de Irina Zoubenko-Laplante

Em 10 de dezembro de 2010, Dia dos Direitos

Humanos, a diretora-geral da UNESCO, Irina

Bokova, e o prefeito de Bilbao (Espanha), Iñaki

Azkunale, entregaram o Prêmio UNESCO/Bilbao

para a Promoção de uma Cultura dos Direitos

Humanos à advogada paquistanesa Asma Jahangir.

Ela nos concedeu esta entrevista na ocasião do

recebimento do Prêmio.

Irina Zoubenko-Laplante trabalha na Divisão de

Direitos Humanos, Filosof ia e Democracia da

UNESCO.

Uma advogada de caráter inabalável

A Sra. passou a vida defendendo os

direitos humanos. Como advogada,

o que a incentivou a especializar-se

nessa área?

Cresci em uma família envolvida na

política. Meu pai, Malik Jilani, foi

um líder político que sempre esteve

na oposição e, por isso, sofreu por toda a

sua vida. Fui testemunha do que

signif ica o fato de dirigir-se a um tribunal,

sabendo de antemão que a justiça não

seria feita. Com o tempo, compreendi a

importância do trabalho dos advogados.

No início da década de 1980, a Sra.

criou o centro de assistência jurídica

AGHS, gerenciado exclusivamente por

mulheres. Pode nos falar sobre ele?

Ao concluir meus estudos, após a

obtenção do diploma de Direito pela

Universidade de Punjab, dei-me conta

de que nenhum escritório de advocacia

me contrataria. Pensei comigo mesma

que a melhor solução seria com certeza

montar o meu próprio escritório. Então,

associei-me com duas amigas e, depois,

com minha irmã, Hina Jilani. Nesse

momento, as mulheres encontravam-se

totalmente oprimidas. O movimento

“A lei é que é criminosa”, costuma responder a

advogada Asma Jahangir, quando um juiz lhe

censura o fato de que ela sempre assume a defesa

de mulheres acusadas de cometer crimes. Nada

consegue deter essa ativista paquistanesa no

combate contra os chamados crimes de honra, a

favor dos direitos econômicos das mulheres e, acima

de tudo, em defesa da universalidade dos direitos

humanos, aplicáveis a todos, sem exceção.

O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 1 . 2 5

© DR

Page 26: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

2 6 . L E C O U R R I E R D E L ’ U N E S C O . H O R S S É R I E . M A R S 2 0 1 1

a uma certa forma de escravidão), o juiz

lhes perguntava: “Vocês reconhecem

esta mulher? Ela é a advogada de vocês?”

Eles estavam tão amedrontados que

acabavam negando que me conheciam.

Por pouco não fui expulsa da ordem

dos advogados, porque meus próprios

clientes af irmavam que não haviam me

contratado. Porém, com perseverança,

consegui ganhar a conf iança deles e

f iz com que se decidissem falar. Um

dia, uma trabalhadora que viera depor

perante a Corte Suprema respondeu

com toda a conf iança ao empregador

que a havia acusado de mentir: “quem

é o mentiroso: você ou eu? Vou dizer a

este Tribunal que, além de ser mentiroso,

você é um explorador”. Naquele dia,

eu disse comigo mesma que tinha

vencido a causa! Atualmente, a servidão

por dívidas não desapareceu por

completo, mas um grande número de

trabalhadores ganhou a liberdade.

Para defender seus princípios,

também se deve ter um caráter

inabalável. Lembro-me que, em 1983,

algumas pessoas propuseram, em

nome do Islã, uma lei que reduziria pela

metade o valor do testemunho das

mulheres em relação ao dos homens.

Muitas mulheres – em particular

da classe alta – saíram às ruas para

protestar, sem ter consciência do perigo

que corriam. A polícia interveio: além

de nos arrastar pelos cabelos, ela nos

espancou. Mais tarde, um mulá declarou

que nossos casamentos estavam

dissolvidos e que nossos maridos

deveriam divorciar-se, mas nenhum

deles levou isso a sério. Essa foi uma

experiência difícil, mas encheu-nos de

coragem, não só às 150 mulheres que

foram espancadas pela polícia, mas

também a muitas outras mais. Desde

então, o número de militantes femininas

tem-se multiplicado.

Quando estou em situação de

perigo, um dos meus f ilhos me diz:

“Mamãe, os direitos humanos, ainda que

a senhora não lute por eles, acabarão

chegando de qualquer forma no

momento oportuno, ainda que com

apenas um minuto de atraso!”. Eu penso

que é justamente esse minuto que justif

ica o trabalho dos ativistas dos direitos

humanos.

Qual é a sua principal preocupação

quanto à condição das mulheres?

Quando comecei minha carreira de

advogada, muitas mulheres eram

condenadas à prisão por causa de

uma lei nova que considerava crime

as relações sexuais fora do casamento.

Ainda hoje isso acontece, ainda que

de forma mais atenuada. Até mesmo

as mulheres que haviam sido vítimas

de estupro, mas que não podiam

comprová-lo, eram presas. Durante

os processos, os juízes perguntavam:

“a senhora não tem outros clientes

além dessas criminosas?”. Ao que eu

respondia: “Meritíssimo, criminosa é a lei

que as coloca atrás das grades”.

Em vários países, incluindo o meu, as

mulheres enfrentam problemas muito

graves, que podem inclusive colocar

suas vidas em perigo. As mulheres

devem comportar-se de determinada

maneira, caso contrário correm o risco

de serem mortas em nome da honra. No

início da minha carreira de advogada,

quando eu levantava a questão desses

“crimes de honra”, alguns juízes me

respondiam, dizendo que não sabiam

do que eu estava falando. Aos poucos,

nosso movimento contra esses crimes

criou raízes no Paquistão e, da mesma

forma, chamou a atenção de muitas

organizações internacionais e da

opinião pública em todo o mundo. Hoje,

contamos com um grande apoio contra

esse tipo de delito, mas, há apenas dez

anos, algumas personalidades políticas

negavam seu apoio aos defensores das

vítimas de crimes de honra, dizendo

que seus argumentos contrariavam

as normas sociais comumente aceitas.

Agora esses políticos se envergonham

por terem feito tais comentários.

O que pode ser feito para melhorar a

condição das mulheres?

Acima de tudo, deve-se promover os

direitos econômicos das mulheres, cuja

ausência é acintosa em vários países.

As mulheres não têm o mesmo status

dos homens. Mesmo as que têm uma

atividade remunerada não recebem

um salário igual ao dos homens pelo

mesmo trabalho. Além disso, a violência

contra as mulheres é crescente.

Devemos começar a fornecer às

mulheres mais e melhores informações

quanto a seus direitos, uma área em que

já houve progressos consideráveis. Em

seguida, temos de realizar um trabalho

de conscientização sobre os direitos

das mulheres junto aos diferentes

atores da vida social e política, como

o Poder Judiciário, o Poder Legislativo,

os meios de comunicação social etc. Já

conseguimos alguns avanços, mas esses

ainda são insuf icientes.

A promoção da igualdade entre os

gêneros pode contribuir para que se

alcancem os Objetivos do Milênio, em

especial a redução da pobreza?

Penso que essa aspiração das Nações

Unidas é louvável, mas é evidente

que esses objetivos não poderão ser

alcançados até o prazo f ixado, em

2015. No entanto, essa constatação

não é motivo para se baixar os braços.

Acredito que o problema das crianças

2 6 . O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 0

Esta jovem faz parte do grande grupo de deslocados internos que, em junho de 2009, abandonou no

Paquistão, fugindo dos combates. © UNICEF/NYHQ2009-0931/Marta Ramoneda

Page 27: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

e da pobreza é particularmente grave

hoje em dia, pois estou convencida de

que as primeiras vítimas da pobreza são

as crianças, sejam crianças provenientes

das camadas desfavorecidas da

sociedade, crianças vítimas de abusos

sexuais, crianças obrigadas a mendigar

(uma prática cada vez mais comum) ou

crianças que são objeto de tráf ico.

Levando em conta sua experiência

como relatora especial das Nações

Unidas sobre a liberdade religiosa ou

de crença, o que a Sra. pensa sobre as

capacidades humanas de tolerância e

de abertura?

Tenho aprendido muito no

exercício desse cargo, muito delicado,

mas também intelectualmente

estimulante. Por exemplo, em qualquer

país do mundo existem preconceitos

e, ao mesmo tempo, em todos os

países também existem pessoas que

combatem a intolerância. As diferentes

instâncias de poder, que têm como

função elaborar políticas de combate

aos preconceitos e à intolerância devem

estar conscientes dessa realidade.

A educação desempenha um papel

particularmente importante, mas

depende de que tipo de educação se

está tratando. Na região do mundo

de onde venho, algumas pessoas

têm tratado a educação como um

instrumento de radicalização e de

militarização da população como

um todo. Desejamos uma educação

de qualidade, que não seja baseada

unicamente em manuais, mas também

nas interações entre as crianças das

diversas comunidades. A educação

não deve se contentar em ensinar

tabus, mas sim um respeito verdadeiro

pela dignidade humana. Por exemplo,

ninguém ensina às crianças que as

pessoas podem vestir-se de maneira

diferente: que um homem pode se

vestir como uma mulher, sem que

seja depreciado por isso; ou que uma

mulher possa usar véu, sem que isso

signif ique que ela não possa pensar

de forma diferente. Não vejo esse tipo

de ensinamento em nenhum manual

escolar, seja no Ocidente ou no Oriente.

Por causa dos conf litos, alguns

países se isolam e cortam relações com

seus vizinhos, o que, no entanto, é uma

coisa fundamental. Ao mesmo tempo,

penso que o mundo deve conservar sua

diversidade e suas diferentes ideologias,

mas é preciso insistir que certos limites

não devem ser transpostos. Não posso

forçar uma pessoa a pensar da minha

maneira, ameaçando-lhe com uma arma.

Posso tentar convencê-la, respeitando

certos limites, sem abusos ou ameaças.

Se eu agir desse modo, estarei dando

provas de intolerância, e o mesmo

acontece com os que estabelecem

leis discriminatórias. Quanto à

justif icação das leis com base nas

normas sociais e religiosas, é algo

que deverá ser reconsiderado pelas

autoridades públicas. É um insulto ao

próprio povo dizer que ele é menos

digno do que os habitantes de outros

países. A dignidade é universal.

O trabalho dos defensores dos

direitos humanos não é nada fácil. Por

exemplo, em um país como o meu, em

que são constantes as situações de

conf lito, os militantes islâmicos que

cometem assassinatos também têm

direitos. No entanto, quando nós,

defensores dos direitos humanos,

chamamos atenção para isso, as pessoas

se perguntam se não somos partidários

dos talibãs. É claro que não estou do

lado deles, mas o fato de suspeitar que

um homem é talibã não é razão para

eliminá-lo.

Qual é o papel do Estado na promoção

do progresso social?

Penso que, entre os diversos atores

sociais, o Estado deve ser o último a se

envolver-se nesse processo. Atualmente,

a ação compete à sociedade civil, em

particular aos grupos de militantes e

aos movimentos como os que existem

na América Latina. São eles que

promoveram campanhas e levantaram

questões importantes. Por exemplo, a

sociedade civil e os grupos de ativistas

ocidentais foram os primeiros a

denunciar as prisões arbitrárias ocorridas

após os atentados de 11 de Setembro

de 2001. Esse movimento contou com

o apoio de advogados, de defensores

dos direitos humanos, de estudantes

e de muitas outras pessoas, quer dizer,

com o respaldo de todos os atores que

compõem a sociedade civil.

Qual é a relação entre a democracia e

os direitos humanos?

Os direitos humanos não podem se

desenvolver em um país que não seja

democrático, como podemos constatar

em várias ocasiões. No entanto, isso não

signif ica que um país, pelo simples fato

de ser democrático, automaticamente vá

respeitar os direitos humanos.

Os ativistas dos direitos humanos

devem esforçar-se em vincular os

direitos civis e políticos aos direitos

sociais e econômicos.

Na realidade, os movimentos a

favor dos direitos humanos estão

empenhados em consolidar a

democracia. É indispensável que esse

esforço ocorra em todas as sociedades.

Nas últimas décadas, temos assistido à

estagnação da democracia, até mesmo

nos países ocidentais que possuem uma

longa tradição democrática.

A Sra. pensa que a situação dos direitos

humanos está melhorando?

O mais difícil é fazer com que as

mentalidades evoluam. Se olharmos

30 anos para trás, devemos reconhecer

que houve mudanças. Em outras

épocas, era impossível criticar o

governo, sem que se corresse o risco

de ser preso. Atualmente, em nosso

país, já não existem mais prisões para

presos políticos. Isso não signif ica que

os direitos humanos deixaram de ser

violados, mas já foram dados alguns

passos à frente.

Também foram dados alguns

passos para trás, porque o mundo é

cada vez mais complexo e apresenta

novos desaf ios e ameaças. É preciso

buscar, conjuntamente, soluções para os

problemas comuns. Não se trata apenas

de monitorar a aplicação dos direitos

humanos, mas também determinar

em que áreas devemos manter nossos

esforços, de que formas podemos nos

aperfeiçoar e que estratégias devemos

adotar. Há muito tempo, um líder da

sociedade civil disse-me: “asma, você

não pode defender seus ideais usando

apenas as pernas para as passeatas

na rua, você também deve usar a sua

cabeça”. Atualmente, tenho consciência

de que as pernas e a cabeça devem

caminhar juntas.

Advogada e presidente da Associação

dos Advogados da Suprema Corte

do Paquistão, Asma Jahangir

também é presidente da Comissão

paquistanesa de Direitos Humanos e

relatora especial das Nações Unidas

sobre liberdade de religião e de

crença. O Prêmio UNESCO/Bilbao lhe

foi-lhe conferido como recompensa

por seu trabalho em defesa dos

direitos humanos, em particular os das

minorias religiosas, das mulheres e das

crianças.

O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 1 . 2 7

Page 28: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

No mundo árabe, o atual debate sobre

os direitos das mulheres está focalizado

na reforma do direito de família. De fato,

em nome de um Islã consagrado como

religião de Estado, as leis modernas

reservam às mulheres um status inferior

ao dos homens. Do Mashrek ao Magreb,

elaborou-se, em torno das mulheres,

sistema normativo subordinado à charia

ou ao f iqh (lei e jurisprudência islâmicas),

que legitima, sob diversas modalidades,

toda a espécie de combinação entre

religião e identidade política, entre

poder político e aplicação das leis

ditadas pela charia, entre casamento e

endogamia religiosa...

As leis sobre a família consolidam

os vínculos entre as ordens religiosa

e política, de modo que a família

é constituída como um bastião da

dominação masculina. Basta tomar

como exemplo as regras do casamento

– que vão da tutela matrimonial

à proibição da união entre uma

muçulmana e um não muçulmano – ou

as relações entre cônjuges baseadas no

dever de manutenção, o que confere

papel proeminente aos homens. Da

mesma forma, pode-se acrescentar

as regras da f iliação e do parentesco,

estabelecidas com base na genealogia

patrilinear e aplicadas às leis sobre

nacionalidade: as mulheres não podem

conceder sua nacionalidade aos maridos

nem aos f ilhos.

Direitos garantidos,

Para compreender os obstáculos que impedem a autonomia das mulheres nos países

árabes – incluindo a Tunísia, país onde o sufrágio feminino existe desde 1957 – a jurista,

Sana Ben Achour, analisa detalhes do direito de família. Ela denuncia as falsas aparências

do feminismo de Estado que estão longe de responder às exigências tanto da igualdade de

gênero quanto da indivisibilidade dos direitos.

SANA BEN ACHOURDezesseis dos 22 membros da Liga

Árabe aderiram à Convenção sobre

a Eliminação de Todas as Formas de

Discriminação contra a Mulher, em 1981.

No entanto, praticamente todos eles

introduziram reservas substanciais, de

caráter geral ou específ ico, em relação

a artigos do texto da Convenção.

Isso explica por que os movimentos

feministas, surgidos na década de 1980,

tenham orientado sua mobilização no

âmbito das políticas públicas e contra

discriminações institucionalizadas

e diferenças entre direitos humanos

universais e legislações no plano nacional.

Reféns do regime político

Convém mencionar que as reformas

econômicas, sociais e culturais foram

Milhares de pessoas, entre as quais grande número de mulheres,

desf ilaram em Túnis, em 19 de janeiro de 2011, a f im de defender

os princípios da laicidade. A Associação Tunisiana das Mulheres

Democratas, dirigida por Sana Ben Achour, foi uma das

principais organizadoras dessa manifestação

Sana Ben Achour. © A. Gabus, Tunis

2 8 . O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 0

Page 29: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

iniciadas por governos autoritários,

na maioria dos casos oriundos dos

movimentos de libertação nacional,

que exploraram o campo das

relações familiares como meio de

implementação de suas políticas

nacionais. Por conseguinte, os códigos

relativos ao estatuto pessoal e à família

– apesar de derivarem do direito

muçulmano clássico – inserem-se em

uma política legislativa que sinaliza

certo grau de inf luência do racionalismo

da época moderna. Esse foi o caso das

leis egípcias (1917, 1920 e 1929), dos

Códigos do Estatuto Pessoal da Jordânia

(1951 e 1976), da Síria (1953), da Tunísia

(1956), do Marrocos (1957 e 1958) e do

Iraque (1959). Outros países aderiram

recentemente a esse modelo: a Argélia

e o Kuwait, em 1984, e a Mauritânia, em

2001. Em todos os casos, as reformas

culminaram na

modif icação do direito e na

recomposição da normatividade

islâmica em torno das mulheres.

Com efeito, o que está em jogo, é a

elaboração de uma política legislativa

(siyassa tachrîya), levando em

consideração a arbitragem entre os

princípios de organização identitária

e as reivindicações em matéria de

igualdade das sociedades civis. Isso é

precisamente o que confere ao direito

relativo ao estatuto pessoal e à família

oscilação entre espírito da tradição e

espírito da inovação.

Além disso, nenhuma dessas

políticas foi implementada, sem a

intervenção autoritária dos poderes

centrais: decretos do chefe de Estado

(como na Tunísia, sob a presidência

do Conselho de Habib Burguiba),

imposição de estado de emergência

(como no Egito, durante a presidência

de Anwar el-Sadat) ou ato (dhahir)

do rei (como no Marrocos). Em geral,

tais políticas são acompanhadas pela

implantação de Uniões Nacionais de

Mulheres, organizações femininas

subsidiárias, fortemente ligadas à

estrutura estatal e ao partido que

detém o poder. As organizações

servem de canal para transmissão de

políticas sociais em matéria de saúde

materna e da criança, de escolarização

e alfabetização, de planejamento e

desenvolvimento rural, de divulgação

dos novos direitos relativos aos

estatutos pessoais e à família. Esses

“feminismos de Estado” resultaram

na tomada das mulheres como reféns

e transformaram-nas em garantia da

estabilidade dos regimes políticos.

Manutenção do status quo

Atualmente, nos países onde os

movimentos islâmicos e o conformismo

se fortalecem, textos legais marcados

por def icit democrático parecem

limitar-se a uma existência precária.

A qualquer momento, eles podem

ser questionados, como foi o caso, no

Egito, da Lei Jihane, de 1979 (nome da

esposa de el-Sadat), que permitia às

mulheres obter automaticamente o

divórcio, durante o ano subsequente

ao segundo casamento do marido. Essa

lei foi revogada em 1985, em razão ao

novo Artigo 2º da Constituição, que

reconhece a lei islâmica como principal

fonte legal. Esse também foi o caso na

Tunísia, onde as ameaças de “retorno às

fontes” se multiplicaram, no momento

da destituição do presidente Burguiba,

em 1987. Mais uma vez, foi necessária a

intervenção tutelar da cúpula do Estado

para impedir qualquer alteração no

Código do Estatuto Pessoal, conceder

Em dezembro de 2008, Sana Ben Achour

foi nomeada presidente da Associação

Tunisiana das Mulheres Democratas –

ATFD (Association tunisienne des femmes

démocrates), cujos objetivos principais

são: a adesão aos valores universais da

igualdade de gênero, dos direitos humanos

e das liberdades fundamentais e o

combate ao menosprezo dos direitos

econômicos e sociais das mulheres.

Professora de Direito Público e

conferencista na Faculdade de Ciências

Júridicas, Políticas e Sociais de Túnis, Sana

Ben Achour também faz parte da Liga

Tunisiana dos Direitos Humanos – LTDH

(Ligue tunisienne des droits de l’Homme).

a seus princípios reconhecimento de

direito adquirido em âmbito nacional

e, após o processo de “normalização”

do movimento islâmico, reprimi-lo

duramente, assim como os democratas.

Isso signif ica que, nos bastidores

dessas políticas legislativas sobre a

família, não está em causa a reforma do

direito tradicional, mas a manutenção

do status quo. O questionamento

da assimetria tradicional entre

os direitos dos homens e os das

mulheres constituiria ameaça para

a ordem pública vigente. Assim,

os poderes instituídos reatualizam

permanentemente essa assimetria,

ao concederem direitos e garantias

judiciais às mulheres, sem nunca

perderem de vista a superioridade

dos homens. No contexto geral das

legislações sobre família nos países

islâmicos, a Tunísia é, sem dúvida, o

Estado que mais transgrediu a lei divina:

divórcio por mútuo consentimento,

autorizado desde 1956; direito de

voto para as mulheres, conquistado

em 1957; aborto legalizado, desde

1962… Todavia, assim como outros

países, não conseguiu renunciar ao

privilégio atribuído aos homens. Daí, o

reconhecimento do marido como chefe

de família, a manutenção do dote como

condição de formação do casamento –

nem que seja simbolicamente por meio

de um dinar –, a regra segundo a qual

os homens se benef iciam de dois terços

da herança etc. Nessas condições, é

possível avaliar a enorme distância

entre o discurso dos governantes sobre

a reforma do estatuto pessoal ou sobre

a melhoria dos direitos da família e

as reivindicações feministas sobre a

autonomia da mulher, a igualdade e a

indivisibilidade dos direitos.

Solidariedade entre irmãs, obra do escultor

italiano Silvio Russo, oferecida à ONU, em 1996,

simbolizando a solidariedade das mulheres árabes

com as mulheres do mundo inteiro.

© UN Photo/Eskinder Debebe

© Sana Ben Achour

O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 1 . 2 9

Page 30: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

Agora ou nunca

As lutas empreendidas pelas feministas das décadas passadas frequentemente reduziam

os homens a inimigos que deviam ser combatidos por todos os meios. Atualmente as

italianas se mobilizam, ao lado dos homens, para conservar suas preciosas conquistas e

formular novas reivindicações, como salário igual para trabalho igual ou f lexibilidade nas

condições de trabalho que não implique precariedade.

Não esperávamos um número tão

grande de pessoas”. Foram os termos

utilizados pelas organizadoras das

passeatas de 13 de fevereiro de 2011,

como início de resposta a quem lhes

solicita um comentário sobre a iniciativa.

A organização de uma ação no plano

nacional, em um período tão curto, que

conseguiu estender-se mundialmente

poderia deixar a impressão de um

empreendimento gigantesco. Tudo

começou por um movimento de

indignação, def initivo e irrevogável,

que sensibilizou um grupo de mulheres,

muito diferentes entre si, reunidas na

associação De Novo (Di Nuovo) e, há

muito tempo, envolvidas na defesa

dos direitos das mulheres. Centenas de

milhares de pessoas responderam a seu

apelo, um milhão, de acordo com as

organizadoras: mulheres que saíram às

ruas com seus companheiros, pais, f ilhos

e irmãos para expressarem claramente

seu apoio em favor da emancipação

das mulheres italianas. “Cada uma de

nós telefonou para pessoas conhecidas,

contatou suas redes e, em uma fração

de segundo, obtivemos respostas

entusiasmadas de todos”, explica a

jovem Elisa Davoglio.

O slogan da passeata, “Agora ou

Nunca” (Se non ora quando?) – referência

ao título de um romance do famoso

escritor italiano Primo Levi (1919-1987)

– traduz claramente a cruel degeneração

das representações relativas à mulher na

mídia e na política italianas. O mal-estar

que está na origem desse protesto é

fomentado pela erosão das conquistas

que, para as mulheres italianas, haviam

sido adquiridas def initivamente na

sequência dos combates travados nas

décadas de 1960 e 1970, em favor dos

direitos civis e de igualdade de gênero.

Nesse período de lutas políticas – que

forjou uma verdadeira geração de

feministas italianas –, acreditava-se

que importantes vitórias haviam sido

conquistadas: o direito da família

foi radicalmente modif icado (com a

legalização do divórcio, em 1974) e as

mulheres obtiveram liberdade de decidir

sobre sua gravidez (graças à revogação,

em 1981, de uma lei particularmente

restritiva sobre o aborto). Os momentos

de exaltação desses anos parecem

que gradualmente foram se tornando

menos intensos no decorrer das

décadas seguintes, que assistiram ao

distanciamento entre essa primeira

geração de feministas italianas e suas

f ilhas e netas.

Recomecemos a luta juntas  

Ao comparar essa época com a recente

mobilização das mulheres italianas,

Francesca Izzo, professora de História

das Doutrinas Políticas na Universidade

de Estudos Orientais de Nápoles,

observa como esse movimento “lançou

rapidamente uma ponte que facilita

a comunicação entre as gerações”, no

termo deste duplo reconhecimento: “por

um lado, a geração reivindicadora da

década de 1970 tomou plena consciência

de que suas conquistas corriam o risco

de ser alvo de perigoso questionamento,

se não houvesse a coragem de retomar

a palavra, até mesmo para reconhecer

os erros do passado. Por outro lado, as

novas gerações compreenderam

f inalmente que os direitos e as conquistas

de que haviam usufruído, mesmo que

sem perceberem, estavam sob a ameaça

de desaparecer. A partir desse momento,

tivemos esta percepção: vamos

recomeçar a luta juntas”.

Juntas e em companhia dos homens.

Elisa Davoglio é muito incisiva no que

se refere a esse ponto: “os homens

contribuíram de forma muito

signif icativa. A mobilização surgiu em um

clima de colaboração sincera e de partilha

espontânea dos motivos de indignação”.

Francesca Izzo aprofunda o tema e

GIUSY MUZZOPAPPAjournalista italiana

Manifestação “Agora ou Nunca” na Praça do

Povo, em Roma, Itália, em 13 de fevereiro de 2011.

© Grazia Basile, Rome

3 0 . O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 0

Page 31: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

identif ica nele aspecto radicalmente

novo, em relação aos antigos

movimentos feministas: “as mais jovens,

em particular, não teriam compreendido

– com toda a razão – as reivindicações

das lutas feministas das décadas

passadas, que, muitas vezes, reduziam

os homens a inimigos que deviam

ser combatidos por todos os meios.

Atualmente, as jovens compartilham,

com os homens de sua idade, medos,

frustrações e aspirações e, muitas vezes,

sentem-se frágeis e inadequadas. Elas

nunca teriam aderido a uma mobilização

que tivesse reconhecido unicamente

às mulheres o direito de indignar-se”.

Conforme é constatado por Cristina

Comencini – cineasta e escritora que

contribuiu com a irmã, Francesca, para

organizar a manifestação –, “é a primeira

vez que os homens se encontram em

pé de igualdade com as mulheres e vão

para a rua, ao lado delas, para mostrar

conjuntamente a força política e humana

das mulheres.

Um desaf io político

“A Itália não é um país para as mulheres”

é outro slogan que se podia ler nas

faixas exibidas nas ruas da Itália e de

outros lugares. Dado conf irmado, de

forma indiferente e implacável, pelas

estatísticas. De acordo com o relatório

de 2010 sobre educação mundial da

Organização para a Cooperação e

Desenvolvimento Econômico (OCDE),

as mulheres, na Itália, estudam mais

que os homens (elas representam

61% dos diplomados), mas enfrentam

maiores dif iculdades para inserir-se no

mercado de trabalho. Os dados também

aparecem no Relatório Salários na Itália,

2000-2010: a década perdida (Salari in

Italia, 2000-2010: il decennio perduto) da

Confederação Geral Italiana do Trabalho

(CGIL), o principal sindicato italiano. Os

salários das mulheres são inferiores em

12%, em média, aos de seus homólogos

masculinos. A taxa de inatividade

feminina – o percentual de mulheres

que não trabalham ou não estudam –

atinge, segundo o relatório de 2010 do

Instituto Nacional de Estatísticas (ISTAT),

48,9%, ou seja, o nível mais elevado

da União Europeia, depois de Malta. A

presença de Susanna Camusso, primeira

mulher a ocupar o posto de secretária-

-geral da CGIL, no palanque da Praça do

Povo, em Roma, no dia 13 de fevereiro,

é fato ainda mais simbólico. Isso

porque condições de trabalho, direito

debate que não esteja submetido à

mídia tradicional. Pedimos a todos que

deixassem em casa símbolos políticos

ou de f iliação a qualquer grupo e

optamos por assumir a divulgação

da mensagem e das diretrizes com

palavras compreensíveis e simples, para

evitar que a mídia tradicional venha

a apropriar-se, de uma maneira ou de

outra, de nossa mobilização”.

Quais serão as próximas etapas, os

próximos problemas que o movimento

vai decidir enfrentar? A questão

permanece em aberto. “Objetivos

importantes não faltam”, observa

Francesca Izzo, “mas trata-se de saber

como pretendemos alcançá-los. A

democracia, no fundo, é isso mesmo:

uma tensão constante entre objetivos

e meios. A questão dos direitos das

mulheres está no centro da profunda

crise da representação democrática.

A tarefa colossal a ser enfrentada

consiste em reorganizar a democracia,

um objetivo que exige determinação

e paciência”. As mulheres do

movimento “Agora ou Nunca” desejam

reapropriar-se do 8 de março, Dia

Internacional da Mulher, cujo sentido

foi perdido na Itália. Elisa Davoglio

conclui: “trata-se de celebrar um dia não

apenas pelo fato de a mulher receber

f lores ou, até mesmo, ser convidada

ao restaurante. O dia 8 de março está

relacionado com direitos, trabalho e

emancipação”.

Cena da manifestação “Agora ou Nunca”, na Praça

do Povo, em Roma, Itália, em 13 de fevereiro de 2011.

© Grazia Basile, Rome

O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 1 . 3 1

de escolher entre carreira prof issional

e maternidade, direito à equiparação

de salários entre homens e mulheres e

direito à f lexibilidade nas condições de

trabalho que não implique precariedade

são questões impostas ao desaf io

político inaugurado pelo movimento

“Agora ou Nunca”.

A falta de consideração do papel da

mulher na sociedade é acompanhada

pela imagem grotesca e distorcida da

f igura feminina que é veiculada pelos

principais meios de comunicação social.

No ano passado, um documentário de

Lorella Zanardo, militante em favor dos

direitos das mulheres, intitulado O Corpo

das Mulheres, chamou a atenção da

opinião pública: após ter assistido a esse

f ilme, nenhuma italiana pode esquecer

o ambiente grotesco mostrado pela

montagem de trechos de programas

televisivos, transmitidos diariamente

em todas as redes de televisão na

Itália. A redução das mulheres a um

corpo para ser consumido exerce

profunda repercussão, em particular,

sobre as gerações mais jovens. É

precisamente esse ponto que permite

às instâncias que promoveram a

mobilização formularem questões

de maior amplitude. “Lançamos esse

apelo para dizer que este não é o país

que corresponde aos nossos anseios”,

sublinha Elisa Davoglio. “Para conseguir

isso”, prossegue ela, “decidimos

tomar a dianteira para evitar qualquer

manipulação de nossa mensagem,

providenciando sua circulação nas

nossas redes, por meio do Facebook,

e criando um blog para iniciar um

Page 32: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

3 2 . L E C O U R R I E R D E L ’ U N E S C O .

A P R I L J U N E 2 0 1 1

MÓNICA GONZÁLEZ MUJICAresponde às perguntas de Carolina Jerez e Lucia Iglesias (UNESCO)

Existe uma maneira feminina de fazer

jornalismo? Quais são os trunfos e os

obstáculos que teve de superar, como

mulher, no decorrer de sua carreira?

PFalemos, em primeiro lugar, sobre

as vantagens de ser mulher, porque

elas existem. Temos uma sensibilidade

que nos é peculiar e que, no meu

ponto de vista, é muito útil, quando

se faz jornalismo investigativo: há

maior facilidade para perceber quem

diz a verdade, quem mente, quem

se esconde sob uma carapaça, uma

máscara ou um disfarce. Tenho também

a impressão que, quando nós, mulheres,

nos lançamos em um empreendimento,

somos mais persistentes e não

desistimos, enquanto a tarefa não

estiver concluída. Somos obstinadas! E

digo isso sem ser feminista.

É claro que há obstáculos, em

particular, quando os torturadores, os

carrascos, abusam sexualmente de nós,

a f im de nos anular. Sob a ditadura,

descobri que o estupro visa, antes de

mais nada, a quebrar nossa resistência.

Nessas circunstâncias, ninguém pode

ter prazer, ao estuprar uma mulher. O

prazer consiste em humilhar a mulher

e em desapossá-la de sua identidade.

Porém, no meu caso, tal situação

tornou-me mais forte.

tirania

A Praça da Itália, em Santiago do Chile, em 10

de dezembro de 2006, data da morte do general

Pinochet. © Eduardo Aguayo, Santiago

Quais foram os momentos mais

importantes de sua vida prof issional?

O momento mais importante para mim

foi o fato de eu ter conseguido fazer a

transição da ditadura para a democracia,

sem abandonar o jornalismo. Durante

a ditadura, não renunciei à minha

atividade, nem na prisão, nem sob

tortura, nem quando meus amigos

foram mortos, nem quando tive de me

separar de minhas f ilhas, tampouco

quando me senti destruída pela dor

de todos os compatriotas. Quando a

democracia voltou, percebi que havia

tanto a construir! Meu mérito é o de

não ter abandonado o jornalismo e de

ter reinventado minha vida sempre

que estive desempregada. Recebi a

ajuda de muitas pessoas: não sou uma

super-mulher! Tive a sorte de encontrar

pessoas que me deram suporte e me

incentivaram a perseverar, quando eu

estava mais aterrorizada. Além disso,

nessa prof issão, somos postos à prova

todos os dias, e espero viver assim até

minha morte.

Qual é a situação atual do jornalismo

investigativo?

É, sem dúvida, o jornalismo que se

encontra em maior crise em todo o

mundo. O jornalismo investigativo foi

a primeira vítima da crise econômica

de 2008. Os jornalistas mais bem pagos

foram os primeiros a perderem seus

empregos; e eram eles mesmos que

faziam o trabalho de investigação em

profundidade. Como os serviços de

investigação constituem, muitas vezes,

fonte de problemas e conf litos, a crise

forneceu uma ótima desculpa para

que esses serviços fossem encerrados!

Eles são ainda os mais bem preparados

para aprofundar questões realmente

sensíveis que podem desempenhar

papel determinante na vida dos

cidadãos.

“Calar-se é tornar-se cúmplice”, declara Mónica González

Mújica, vencedora do Prêmio Mundial UNESCO/Guillermo

Cano de Liberdade de Imprensa 2010. Essa mulher, que

sofreu as piores torturas durante a ditadura militar no

Chile, nunca renunciou à sua liberdade de expressão.

Para ela, para além da barreira do gênero, o importante é

denunciar as injustiças.

Resistir à

3 2 . O C O R R E I O D A U N E S C O

Page 33: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

Mónica González Mujica é,

provavelmente, uma das jornalistas

investigativas mais persistentes do Chile

e mais comprometidas com o exercício

de sua prof issão. Exilada na França após

o golpe militar de 1973, ela voltou para o

Chile, em 1978, mas só conseguiu retomar

sua atividade a partir de 1983. Desde maio

de 2007, ela dirige o Centro de Informação e

Pesquisa Jornalística (Centro de Información e

Investigación Periodística – CIPER), instituição

independente e sem f ins lucrativos,

especializada em jornalismo investigativo.

Mónica González Mújica, durante sua intervenção

no Colóquio Internacional sobre a Liberdade de

Expressão, realizado na UNESCO, em 26 de janeiro

de 2011.

© UNESCO/Danica Bijeljac

O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 1 . 3 3

Apesar disso, devo salientar que,

em termos de qualidade, o jornalismo

investigativo na América Latina não

deixa a desejar, se comparado ao

jornalismo anglo-saxão. Digo isso

não apenas em relação ao cenário

atual, uma vez que chegamos a

exercê-lo sob ditaduras. No Chile,

por exemplo, os jornalistas correram

riscos impressionantes para denunciar

os crimes do regime de Pinochet.

Um jornalista deve denunciar as

irregularidades e os horrores, caso

contrário ele se torna cúmplice

dessas práticas. É verdade que o

jornalismo investigativo implica

sempre grande dose de sacrifício

pessoal. É preciso também desembolsar

dinheiro do próprio bolso, porque,

sejamos honestos, nenhum grupo de

comunicação está disposto a pagar

um jornalista, durante um longo

período, para que ele possa fazer sua

investigação com tranquilidade.

Atualmente, o jornalismo

investigativo, na América Latina,

enfrenta um grave problema: os cartéis

de narcotraf icantes, que estão prestes a

corroer nossa sociedade. O objetivo

f inal desses cartéis consiste em privar-

-nos de espaços de lazer, de felicidade e

de vida. É por isso que é tão importante

enfrentar esse tema e, então, garantir

aos jornalistas a possibilidade de

investigar e de fornecer informações, ao

contrário do que ocorre atualmente na

maior parte dos países da região.

Qual é a sua opinião sobre o panorama

da mídia na América Latina?

Dois perigos ameaçam, de forma

cada vez mais intensa – e cada vez

mais rápida –, o direito à informação.

O primeiro é a impressionante

concentração dos meios de

comunicação, que estão nas mãos de

reduzido número de proprietários.

Os grupos que controlam esses

conglomerados, comprando canais de

televisão, estações de rádio e jornais,

têm, ao mesmo tempo, interesses

em outros setores, como agricultura,

mineração, serviços, imobiliário, etc.

Um grupo de comunicação não é capaz

de informar com objetividade sobre

empresas cujos proprietários sejam

também acionistas desse grupo. Isso

é extremamente grave. Os jornalistas

estão perdendo autonomia, dignidade

equalidades, estão tornando-se simples

testas-de-ferro.

México: jornalistas protestando contra os atentados e os sequestros de que eles têm sido vítimas.

© Raul Urbina, Mexico

O segundo perigo vem de

governos autoritários que, embora

tenham chegado ao poder por

via democrática, transformam

os jornalistas em seus inimigos,

submetendo-os a ameaças

permanentes. Quanto a isso,

infelizmente ainda não há oposição

capaz de defender a liberdade de infor-

mação, como deveria ocorrer. Isso

porque, a liberdade de informação não

consiste em ser a favor do governo ou

da oposição, mas em fazer jornalismo

de qualidade. Do mesmo modo que

é inaceitável que os cartéis do crime

organizado declarem guerra contra

os jornalistas, também é inaceitável

que os governos democraticamente

eleitos se deixem envolver em práticas

autoritárias.

Tudo isso para dizer que,

objetivamente, o panorama da mídia

latino-americana é desanimador.

A precariedade do jornalismo afeta

profundamente a sociedade. A

democracia é menosprezada, porque

o cidadão, quando mal informado,

torna-se presa fácil dos tiranos.

Nós que sofremos sob ditaduras e

recuperamos a liberdade em troca

da morte de grande número de

pessoas, acreditamos que não se pode

deixar a democracia se fragilizar e ser

manipulada por poderes autoritários.

Page 34: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

as mulheres não tinham lugar no

mundo do jornalismo no Afeganistão;

essa disciplina jovem, que se

estabeleceu no país ao mesmo tempo

que a constituição, foi dominada,

durante muito tempo, exclusivamente

por homens. Foi precisamente no

momento em que as mulheres

estavam começando a participar no

desenvolvimento do jornalismo – em

particular ao redor de Cabul – que a

dominação dos talibãs ganhou terreno:

essa é a explicação para a ainda

precária experiência das mulheres

afegãs nessa área.

Se, na década de 1980, um pequeno

grupo de mulheres, entre as quais

Zakia Kohzad, havia comprovado que

as afegãs também eram capazes de

contribuir para o jornalismo, na década

de 1990, sob o regime autoritário dos

talibãs, elas estiveram praticamente

ausentes desse setor. Apesar disso,

algumas mulheres conseguiram

permanecer ativas durante esse

período, em particular, Belqais Maqiz e

Fatana Ishaq Gailani, que, em Peshawar

(Paquistão), fundaram as revistas Zan-e

Afghan (A mulher afegã) e Rozaneh (A

esperança).

O desenvolvimento, rápido e

generalizado, dos diferentes tipos de

mídia, além do apoio à liberdade de

expressão, constitui uma das principais

conquistas da era pós-talibã, iniciada

em 2001. O país pode vangloriar-se de

contar com uma dezena de estações

de rádio e redes de televisão, algumas

centenas de revistas e jornais, além

de numerosas agências de notícias e

editoras.

No decorrer dos últimos dez anos,

as mulheres têm desempenhado um

papel ativo na cena midiática e social,

atingindo um nível de participação sem

precedentes na história do país.

Paciência, vamos chegar láO Afeganistão tem, atualmente, cerca de 300 mulheres jornalistas para uma população de

25 milhões de habitantes. Após período sombrio que o país atravessou na década de 1990,

o novo milênio abriu as portas para a liberdade de expressão que começa a se af irmar.

Embora a insegurança, o peso da tradição e outros obstáculos importantes ainda devam

ser superados, ao escutar Humaira Habib percebe-se que as jornalistas afegãs estão

decididas a prosseguir nesse caminho, mesmo se ainda for necessário um longo tempo

para alcançarem seu objetivo.

HUMAIRA HABIB

“Tenho a intenção de guardar todos

os convites que recebi para entrevistas

coletivas, a f im de mostrá-los, mais

tarde, a minhas f ilhas e meus netos.

Acho que eles vão sentir orgulho de

mim”, disse-me, certo dia, Zakia Zaki,

jornalista e diretora da estação de rádio

A voz da paz, situada na província de

Parwan, no centro do Afeganistão.

Estávamos em uma coletiva na capital,

Cabul. Fiquei com a impressão de que

ela estava preocupada: há alguns dias,

estava recebendo ameaças anônimas.

Duas semanas mais tarde, foi baleada

em sua casa por homens armados. Isso

aconteceu em junho de 2007.

O Afeganistão, que se reergue de

três décadas de guerra e destruição,

encontra-se em uma fase de transição.

Nesse país afetado pela pobreza e pelas

migrações forçadas, objeto de manobras

políticas tanto no plano nacional quanto

no internacional, assiste-se atualmente

a uma expansão, sem precedentes,

da imprensa em uma sociedade

semidemocrática, na qual a liberdade

de expressão está desabrochando.

Sem nenhuma tradição histórica no

país, a mídia apareceu repentinamente

na esteira da propaganda política e

comercial. De acordo com Adela Kabiri,

jornalista e professora de Jornalismo na

Universidade de Herat, anteriormente,

Sima e Storey, jornalistas da

Rádio Sahar, preparam-se, de

manhã bem cedo, para seu

programa de rádio em Herat,

no noroeste do Afeganistão.

© www.valentinamonti.com

Em um tribunal em Herat, mulher que entrou

com pedido de divórcio responde a perguntas

de Farawia, repórter da Rádio Sahar.

© ww.valentinamonti.com

3 4 . O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L - J U N H O 2 0 1 0

Page 35: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

O Afeganistão tem, atualmente, mais de

300 mulheres jornalistas e diretoras de

publicações. Uma dezena de estações

de rádio foi criada por mulheres, e

várias províncias – em particular, Herat e

Bamiyan – abrigam centros e fundações

destinados a mulheres jornalistas.

Apesar de inúmeras restrições

sociais e políticas ainda existentes,

muitas mulheres continuam exercendo

seu ofício de jornalistas. No entanto,

Najida Ayoubi – escritora e poeta de

renome que dirige o grupo de mídia

Kilid – af irma que as jornalistas afegãs

não têm motivo para estarem satisfeitas,

porque, em relação ao número de

mulheres que vivem no Afeganistão,

a porcentagem daquelas que

desempenham um papel na imprensa é

muito limitada.

De acordo com Najida Ayoubi, as

mulheres afegãs enfrentam muitas

dif iculdades no círculo do jornalismo,

e é necessário agir para aumentar

sua participação nesse domínio. Ela

acredita que compete aos institutos

de formação e aos centros de ensino

do jornalismo fornecer-lhes mais

possibilidades de acesso à prof issão.

A baixa proporção de mulheres

presentes na mídia deve ser atribuída

ao def icit em matéria de educação e

alfabetização de que elas foram vítimas

no decorrer das três décadas de guerra

que devastaram o Afeganistão. Diante

dessa situação, somente medidas de

discriminação positiva aplicadas aos

meios de comunicação poderão fazer a

diferença. Najida Ayoubi acredita que

as mulheres afegãs dispõem de menos

possibilidades de obter emprego como

jornalistas do que seus compatriotas

masculinos, além de menor grau de

responsabilidade no setor da mídia,

um domínio dominado amplamente

por homens. Em suma, é necessário

chamar a atenção de representantes e

prof issionais da mídia afegãos sobre o

Humaira Habib, jornalista afegã,

é diretora da estação de rádio

comunitária para as mulheres

Radio Sahar, em Herat, no oeste do

Afeganistão.

Em uma aldeia, perto de Herat, mulher escuta a rádio enquanto trabalha.

© www.valentinamonti.com

problema da igualdade de gênero.

À semelhança do que se passa em

outros setores prof issionais, o jorna-

lismo representa verdadeiro desaf io

para as afegãs. As jornalistas têm de

enfrentar, em particular, preconceitos

da sociedade tradicional afegã,

discriminação social e pressões por

parte das famílias. Por demandar grande

dedicação, a prof issão de jornalista é

considerada, às vezes, como impeditivo

para que as mulheres desempenhem

seu papel no seio da família.

Na opinião de Farida Nekzad,

laureada, em 2007, com o prêmio

da Associação Canadense dos

Jornalistas pela Liberdade de Expressão

(Association canadienne des journalistes

pour la liberté d’expression), grande

número de diplomadas afegãs

renunciam à carreira de jornalista,

em razão de restrições por parte da

família, dando preferência às prof issões

de ensino. Além disso, as jornalistas

afegãs sofrem com a falta de relações

sociais (que não são muito bem vistas

no caso de mulheres) e com a ideia

preconcebida de que as ações das

mulheres são menos importantes que

as dos homens.

No entanto, para Farida, a

insegurança é o principal problema

enfrentado pelas jornalistas no

Afeganistão. Com efeito, no decorrer

dos últimos dez anos, muitas jornalistas

afegãs perderam a vida por causa de

seu ofício: além de Zakia Zaki, pode-se

citar Shaima Rezai e Shakiba Sanga

Amaj. Outras jornalistas, tais como a

própria Farida Nekzad e Najia Khodayar,

acabaram por abandonar a prof issão

por terem recebido ameaças graves.

Manizha Naderi, diretora de uma

ONG que promove os direitos das

mulheres afegãs, considera que as

ameaças e os ataques são ref lexo da

violência militar vigente no país. Ela

acredita que as mulheres, em geral,

e as jornalistas, em particular, são

atacadas, em decorrência do potencial

de que dispõem para exercer o papel

que lhes corresponde na sociedade.

Em sua opinião, os autores desses atos

de violência procuram desqualif icar

e minimizar a função da mulher na

sociedade.

De acordo com Fawzia Fakhri,

fundadora do Centro para as Mulheres

Jornalistas de Herat, para alcançar

o objetivo de atribuir às afegãs um

lugar mais importante no círculo do

jornalismo, é essencial incrementar sua

participação em entrevistas coletivas –

no plano internacional – e valorizar seu

trabalho – no âmbito nacional. Quanto ao

futuro das jornalistas, Fawzia considera

primordial que um maior número de

mulheres ingressem na prof issão.

Mais que isso, para atingir essa meta,

é necessário fornecer-lhes melhores

condições de trabalho e facilitar seu

acesso às diferentes áreas do jornalismo.

No Afeganistão, país em transição,

que passa de uma sociedade tradicional

para uma sociedade moderna, todos

os setores estão experimentando,

atualmente, um crescimento súbito

e sem precedentes, e a maior parte

dos produtos é importada. Nesse

contexto, as jornalistas afegãs acreditam

que a paciência é necessária para a

construção de um futuro melhor e que

seus problemas de segurança serão

resolvidos com o decorrer do tempo.

Elas convocam a comunidade

internacional a ajudá-las a atenuar esses

problemas e outras dif iculdades que

têm de enfrentar no exercício de sua

prof issão. Estão convencidas de que

o apoio internacional será uma etapa

essencial para o desenvolvimento

futuro de suas atividades, uma vez que

eliminará as ameaças de que são vítimas

e evitará que outras jornalistas sejam

condenadas ao mesmo destino de

Zakia Zaki.

© w

ww

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.co

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O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L - J U N H O 2 0 1 1 . 3 5

As fotos que ilustram este artigo foram tiradas do

documentário Girls on the Air, um f ilme Valentina

Monti.

Page 36: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

Como o trabalho digno se encontra no centro da celebração do Dia Internacional da

Mulher em 2011, o Correio da UNESCO apresenta o caso da Argélia, país onde, desde a

década de 1990, tem ocorrido uma rápida expansão do trabalho feminino. Atualmente,

ao enfrentarem o mercado de trabalho, as mulheres argelinas – até mesmo titulares de

diplomas universitários – deparam-se frequentemente com situações de precariedade ou são

impedidas de assumir funções de diretoria no âmbito das empresas.

Uma lenta conquista do mercado de trabalho FERIEL LALAMI

“Meu nome é Hassiba e tenho 38 anos.

Sou casada e tenho três f ilhos. Exerço

a prof issão de agente técnica em uma

empresa privada. Para chegar ao local

do meu trabalho, tenho que tomar dois

ônibus e sair de casa pelo menos uma

hora e meia antes do horário de abertura

do escritório para não chegar atrasada.

Quero evitar o risco de ser despedida,

porque nos dias de hoje, é muito difícil

encontrar trabalho. Nem me passa pela

cabeça a ideia de perder o meu salário,

pois nossa família não poderia viver apenas

com o salário do meu marido. É difícil

para minha mãe aceitar que eu esteja

empregada, uma vez que no seu tempo as

mulheres só trabalhavam em casa”.

O testemunho dessa argelina do

bairro de Ain Naaja, em Argel – coletado

por mim em novembro de 2010, no

âmbito de uma pesquisa sobre as mudan-

ças nas relações familiares –, mostra que,

apesar dos obstáculos, as mulheres na

Argélia tiveram e têm acesso de forma

duradoura ao mercado de trabalho. Essa

tendência tem-se conf irmado em ritmo

lento, mas consolidado, no decorrer

das últimas três décadas, embora

ainda não tenha produzido resultados

consideráveis. Na verdade, com as

mulheres representando apenas 15%

do total da população economicamente

ativa (porcentagem que se manteve

inalterada entre 2007 e 2010), a Argélia

Argelinas seguem treinamento de professores para

o ensino de inglês f inanciado pelo Departamento de

Estado dos Estados Unidos. © Ruth Petzold, Alexandria

está muito atrás dos países vizinhos,

Tunísia e Marrocos, cujas proporções se

elevam a 25% e 28%, respectivamente.

De qualquer modo, a taxa relativa

à atividade remunerada das mulheres

aumentou 10% entre os anos 1980 e o

início da década de 2000. Por quê? Em

primeiro lugar, em decorrência do triste

episódio da história do país designado

por alguns como “a tragédia argelina

da década de 1990” ou “a Segunda

Guerra da Argélia”. Em seguida, o f im

do controle dos preços exercido pelo

Estado, os cortes nas despesas públicas e

o consequente aumento do desemprego

deixaram as famílias em situação de

pobreza. Nessas circunstâncias, as

mulheres começaram a procurar trabalho

remunerado, sem que as famílias

ousassem impedi-las, invocando o

considerável peso da tradição: af inal, elas

tinham necessidade de alimentar-se.

Deve-se acrescentar a isso outra

especif icidade argelina: as mulheres

trabalhadoras são mais qualif icadas

do que os homens. Em 2003, mais da

metade das mulheres em atividade

remunerada eram titulares de, ao menos,

o diploma de estudos secundários,

contra apenas um quinto dos homens.

Essa situação deve-se essencialmente

à política de democratização do ensino

promovida pelo Estado, que, desde

o f im do período colonial (1962), se

traduziu em um rápido aumento da taxa

de escolarização feminina: em 2010,

meninas e adolescentes representavam

57% da população estudantil do país.

Outro dado importante: até a década

de 1990, a maioria das mulheres com

atividade remunerada tinham entre 19

e 24 anos e eram solteiras (com exceção

das viúvas e das divorciadas). Na maior

parte dos casos, o casamento ou o

nascimento de um f ilho colocava f im à

carreira prof issional dessas mulheres.

Atualmente, o número de mulheres

economicamente ativas casadas

aumentou consideravelmente, e elas são

quase tão numerosas (18%) quanto as

solteiras (20%).

No entanto, as estatísticas não

esgotam a análise desse tema. Deve-se

considerar também o amplo leque

das prof issões: embora seus setores

preferidos sejam o ensino, a saúde

e a administração, as mulheres têm

entrado cada vez mais em outros

campos de atividade, como o jornalismo.

Atualmente, 60% dos prof issionais da

mídia são mulheres.

Obstáculo intransponível e

trabalho precário

O exercício dessas prof issões também

permite que as mulheres adquiram

uma maior visibilidade na vida pública.

Contudo, não se deve ignorar o fato

de que, na evolução de suas carreiras –

incluindo as ocupações “feminizadas” – as

mulheres se deparam com um obstáculo

intransponível: os postos de trabalho

com alto nível de responsabilidades

continuam sendo um campo reservado

aos homens. Enquanto na educação

as mulheres constituem 50% dos

3 6 . O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 0

Page 37: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

pro f issionais, em 2005 elas ocupavam

apenas 9,15% dos cargos de diretoria de

estabelecimentos escolares e 5,6% das

funções de inspetor do ensino básico.

Além disso, o desemprego atinge as

mulheres de forma mais dura do que os

homens: respectivamente 19,1% contra

8,1%, em 2010, de acordo com a Agência

Nacional de Estatísticas (Of f ice National

des Statistiques – ONS). Ainda pior é o fato

de que, entre as pessoas mais

quali f icadas, as mulheres desempregadas

são três vezes mais numerosas do que

os homens: 33,6% contra 11,1%. Diante

da saturação do mercado de trabalho,

as mulheres muitas vezes preferem criar

suas próprias empresas no comércio,

nos serviços ou no artesanato. De acordo

com o Centro Nacional de Registro do

Comércio (Centre National du Registre du

Commerce), entre 2006 e 2007, o número

de mulheres comerciantes aumentou

4%. Ainda que na maioria dos casos se

trate de microempresas, a proporção de

mulheres na categoria dos empregadores

passou de 3% para 6%. Um novo fenô-

meno é o número crescente de mulheres

que exercem pro f issões como as de

agentes do ramo imobiliário e de viagens

e ainda empresárias do setor agrícola.

O aumento do número de mulheres

que exercem atividades remuneradas

também teve como consequência a

criação de empregos informais, como

os de babá e de empregada doméstica.

Essa economia informal – reservada, em

geral, às mulheres – estende-se também

ao comércio de pequeno porte e ao

setor privado, criando outros tantos

empregos precários e mal remunerados,

que não garantem uma cobertura da

seguridade social.

É certo que o acesso das mulheres

argelinas ao mercado de trabalho

acarreta novas con f igurações familiares,

graças às quais elas adquirem maior

autonomia. O modelo do “homem

provedor de recursos” está lentamente

se tornando ultrapassado. No entanto, se

no passado as mulheres tiveram que lutar

contra a cultura patriarcal para exercer

uma atividade remunerada, atualmente

elas enfrentam um obstáculo igualmente

difícil de ser superado:

a extrema escassez de

empregos.

Cientista política

argelina, Feriel Lalami,

é responsável por

curso na Universidade

de Poitiers (França).

© A

-M T

ou

rne

biz

e, P

aris

À semelhança de outros bens públicos mundiais, a

igualdade entre homens e mulheres apresenta vantagens

coletivas a longo prazo, às quais se opõem interesses

específ icos a curto prazo. A ONU Mulheres, nova entidade

das Nações Unidas dedicada à igualdade de gênero e ao

empoderamento das mulheres, tem a missão de superar

os principais obstáculos que impedem o investimento

adequado nas meninas e nas mulheres.

Em um contexto de desacelaração

do crescimento econômico mundial,

combinada com as crises dos alimentos,

da energia e do meio ambiente, a ref le-

xão sobre os “bens comuns globais” e a

busca de respostas estão passando por

um período de renovação. No entanto,

a temática da igualdade de gênero

continua sendo a grande ausência na

lista dos bens públicos mundiais (BPM)1.

Apesar disso, é impossível alcançar

metas como o crescimento econômico,

a governança responsável e a paz no

mundo, se metade da população do

planeta – as mulheres – continua sendo

excluída tanto dos processos que

def inem as prioridades mundiais,

quanto da tomada de decisão.

É importante investir em meninas

e mulheres, principalmente em um

momento de restrições orçamentárias

como o atual, em que os países

doadores estabelecem como prioridade

apenas os investimentos com alta taxa

de retorno e efeito multiplicador

signif icativo. Chegou a hora de mudar a

perspectiva no que diz respeito ao

f inanciamento do desenvolvimento e à

ajuda internacional aos países pobres.

O altruísmo e a geopolítica devem dar

lugar à utilidade para todos. Ao invés de

tratar meninas e mulheres como simples

SANIYE GÜLSER CORAT e ESTELLE RAIMONDO

Igualdade de gêneroum bem público mundial

1. Os bens públicos mundiais podem ser def inidos

como elementos importantes para a comunidade

internacional, cuja gestão só pode ocorrer de forma

satisfatória, por meio de uma ação coletiva em

escala mundial. São exemplos: a proteção ao meio

ambiente e o respeito aos direitos humanos.

vítimas da marginalização, deve-se

considerá-las como protagonistas e

agentes cruciais da mudança, capazes

de contribuir signif icativamente para

a produtividade das economias em

âmbito nacional, regional e global.

Sabe-se que as mulheres gastam,

em média, 90% de suas rendas em

educação, saúde e alimentação de suas

famílias e comunidades, enquanto os

homens utilizam apenas 40% de seus

ganhos nessas áreas. Dados recentes

mostram que o aumento do número de

mulheres em cargos de direção tem um

efeito positivo sobre o desempenho das

empresas e sobre o grau de conf iança

que lhes é atribuído pelos acionistas.

Do mesmo modo que o simples fato

de uma empresa ter mão de obra

feminina repercute positivamente

sobre a produtividade, no plano

macroeconômico.

Alcançar a igualdade de gênero na

esfera política, portanto, introduzir as

mulheres nas estruturas políticas e nos

processos de tomada de decisões ao

lado dos homens, produz igualmente

fortes efeitos de persuasão. Em âmbito

local, por exemplo, com o sistema

de cotas reservadas às mulheres em

munícipios indianos (panchayat)

comprovou-se que as mulheres são

mais ef icazes do que os homens na

administração de bens públicos, como o

abastecimento de água.

Ruanda também oferece um bom

exemplo. A reforma constitucional

impôs um mínimo de 30% de

O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 1 . 3 7

Page 38: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

3 8 . O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 0

representação feminina no parlamento.

Com isso, as mulheres parlamentares

conseguiram colocar a saúde e a

educação entre as matérias prioritárias

da agenda legislativa nacional. A

taxa de crescimento do país também

está intrinsecamente vinculada à

participação ativa da mão de obra

feminina (80%) e ao talento das

empresárias: 42% das empresas do

setor formal e 58% do setor informal são

dirigidas por mulheres.

A Ruanda também faz parte dos

raros países – ao lado da Libéria e da

Guatemala – nos quais as mulheres

participaram, em pé de igualdade com

os homens, nos processos formais

de consolidação da paz, nos quais as

negociações nesse âmbito têm sido mais

construtivas do que em outros países.

Def inir a igualdade de gênero como

um BPM se impõe ainda mais quando

os Objetivos de Desenvolvimento do

Milênio são considerados. É evidente

que a igualdade de sexos é condição

essencial para reduzir a mortalidade

infantil, para melhorar a saúde das

gestantes, para alcançar a igualdade

de gênero na educação, assim como

para diminuir a fome e a pobreza em

geral, na medida em que a maior parte

da população mundial em situação de

pobreza é constituída por mulheres.

Quanto à sustentabilidade do meio

ambiente, como seria possível atingir

tal objetivo sem as mulheres, as quais

são responsáveis, em grande parte,

pela proteção da biodiversidade?

Finalmente, como criar uma parceria

mundial para o desenvolvimento, se as

mulheres estão ausentes ou têm pouca

representatividade na formulação e na

tomada de decisões políticas?

O que se pode fazer para evitar

que a igualdade entre homens e

mulheres tenha o mesmo destino de

outros BPMs no que se refere ao def icit

de investimento? Deve-se alterar os

incentivos aos planos de ação, de modo

a superar estes três grandes obstáculos:

a falta de coordenação entre os agentes;

o chamado “problema do passageiro

clandestino” (deixar que outros lutem

por um bem do qual a pessoa vai-se

benef iciar); e a visão política de curto

prazo vinculada ao problema relativo

à escolha das políticas públicas (na

medida em que a igualdade de gênero

não é uma prioridade das plataformas

eleitorais).

Em todos esses aspectos, o Sistema

das Nações Unidas apresenta uma

vantagem comparativa real. Esse sistema

tem condições de superar o obstáculo

da falta de coordenação, pois oferece

aos Estados-membros um fórum no

qual eles podem reunir-se e tratar das

questões mundiais. Ele também é capaz

de superar o problema do passageiro

clandestino ao responsabilizar as

instituições internacionais e os governos

por seus compromissos, em particular

os relativos à aplicação da Convenção

sobre a Eliminação de Todas as Formas

de Discriminação contra a Mulher e

da Declaração e Programa de Ação de

Beijing2. Finalmente, o sistema pode

superar o obstáculo do curto prazo da

cena política, ao exercer pressão sobre

os Estados-membros para que eles

cumpram suas obrigações nos prazos

previstos.

A nova Entidade das Nações

Unidas para a Igualdade de Gênero

e o Empoderamento das Mulheres

(ONU Mulheres) tem o potencial para

desempenhar essa função crucial, desde

que tenha visão e liderança estratégicas,

no sentido de estabelecer uma agenda

e um programa de ação aprovados pelos

principais interessados, e de que seja

dotada de recursos humanos e

f inanceiros necessários para cumprir

suas responsabilidades.

© U

NES

CO

/Dan

ica

Bile

ljac

Graduada pela Universidade do Bósforo (Istambul, Turquia), Saniye Güser Corat

(à esquerda na foto) é também doutora em Ciências Políticas pela Universidade

de Carleton (Canadá), onde ela trabalhou como professora antes de dirigir o

Departamento de Igualdade de Gênero da UNESCO.

Estelle Raimondo é mestre em Economia do Desenvolvimento pela

Universidade de Columbia (EUA) e em Negócios Internacionais pelo Instituto de

Ciências Políticas de Paris (França). Atualmente, é especialista auxiliar do Serviço

de Supervisão Interna da UNESCO.

2. A Declaração e o Programa de Ação de Beijing

foram adotados na 4ª Conferência Mundial sobre a

Mulher: Ação para a Igualdade, o Desenvolvimento

e a Paz, que foi realizada na capital chinesa em

setembro de 1995.

O aumento do número de mulheres em cargos

de direção tem efeito positivo no desempenho das

empresas.

© Den_Bar pixburger.com 2011

Page 39: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

O homem de Davos é um animal

singular. Onipotente, mundano e

frequentemente muito rico, em geral,

ele sabe mais sobre as taxas aplicadas

nas bolsas de valores do que os preços

dos supermercados. Além disso, ele

dispõe de todos os acessórios dignos de

sua posição: uma villa na Côte d’Azur,

um jato particular sob medida e um

projeto f ilantrópico.

Por sua vez, a mulher de Davos é

igualmente cosmopolita, rica e

inf luente. No entanto, a presença

feminina ainda é rara.

Aquelas que assistem a essa

recepção anual da elite mundial, nos

Alpes suíços, se encontram em uma

situação um tanto particular: apesar de

pertencerem a essa esfera elitista, elas

são consideradas iniciantes com status

minoritário.

As mulheres representam apenas

16% dos participantes no Fórum

Econômico Mundial. De fato, como

a maioria das senhoras em seus

casacos de pele, abrindo caminho no

chão coberto de neve, estão aqui na

qualidade de esposas, é fácil confundi-

-las com as verdadeiras participantes

do fórum: “em um coquetel, em

Davos, é mais provável que você seja

considerada a esposa de alguém,

ao invés de empresária”, lamenta

a presidente da Manpower França,

Françoise Gri, que aparece, nos últimos

sete anos, na lista das 50 mulheres mais

poderosas do mundo, estabelecida pela

revista Fortune. Esta é a segunda vez

que ela vai a Davos.

“Este evento continua sendo como

um clube de cavalheiros”, prossegue

ela: “enquanto mulher, f ico com a

impressão de que realmente não faço

parte desse grupo”. Para Christine

Lagarde, ministra das f inanças da

França1 e frequentadora assídua de

Davos há mais de dez anos, “a química

da dominação masculina” acaba por

desestabilizar a autoconf iança: “você

sabe que é competente, conhece bem

o conteúdo dos documentos, mas, de

alguma forma, sente-se inibida”

As mulheres ricas não vivem em um

mundo à parte

OHá uma tendência de considerar

os ricos e os poderosos como uma

entidade em que não há diferença entre

os sexos, operando em um mundo à

parte de privilégios ilimitados, a anos-

-luz da vida cotidiana das classes médias

de diferentes países – uma distância

que se tornou ainda maior pela atual

crise econômica.

As mulheres da elite,

diferentemente de seus colegas

masculinos, mantêm vínculos bem

sólidos com suas irmãs menos

privilegiadas. Como observa Dominique

Reiniche, diretora da Coca-Cola Europa:

“a igualdade entre os sexos é uma

preocupação que permeia todas as

classes […]. As mulheres de todas as

camadas sociais compartilham essa

causa”.

Compreende-se a razão pela qual a

f ilantropia feminina, que está em pleno

crescimento, visa a melhorar a condição

das mulheres menos afortunadas,

explica Jacki Zehner, vice-presidente

da Rede de Captação de Fundos para

Mulheres (Women’s Funding Network)

e primeira mulher a tornar-se sócia da

Goldman Sachs. Algumas artistas, como

a norte-americana Angelina Jolie e a

britânica Annie Lennox – ambas pela

primeira vez em Davos –, promovem os

direitos da mulher em nome das Nações

Unidas e de outras organizações.

Há outras razões que explicam o

fato de as mulheres correrem, sem

dúvida, menos riscos, ao viver em um

mundo à parte.

Uma mãe, por maior que seja

sua fortuna e prosperidade, assume,

em geral, suas responsabilidades em

relação aos f ilhos, correndo o risco de

ter sua carreira estagnada ou alterar o

equilíbrio entre trabalho e vida familiar.

No entanto, ela conserva o contato

com a sociedade: com as babás – que,

na maior parte das vezes, são mulheres

menos favorecidas e, talvez, de origem

estrangeira –, com os professores e com

as mães dos amigos dos f ilhos.

As mulheres estão, frequentemente,

mais envolvidas que os homens em

atividades relacionadas com os f ilhos,

como festas de aniversário ou compras.

“Nada melhor que os adolescentes para

manter-se em contato com o mundo”,

observa Dominique Reiniche, que criou

três f ilhos.

A mulheré o futuro de Davos O Fórum Econômico Mundial reuniu, em janeiro passado, em Davos (Suíça), cerca de 35 chefes de

Estado e de governo, além de 2.500tomadores de decisão, dos quais apenas 16% eram mulheres.

Apesar disso, a participação feminina praticamente duplicou, desde 2001, e, de acordo com Ben

Verwaayen – um dos fundadores do Fórum –, o futuro de Davos vai depender delas.

KATRIN BENNHOLD, journalista alemã do International Herald Tribune

Este artigo é reproduzido, graças à autorização

do International Herald Tribune. Inicialmente, foi

publicado em inglês, com o título “Mulheres marcam

presença em Davos, embora ainda em minoria”

(Women Make Their Mark at Davos, Though Still a

Distinct Minority), no suplemento “O Fator Feminino”

(The Female Factor), de 26 de janeiro de 2011.

O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 1 . 3 9

Page 40: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

Além disso, as elites femininas

costumam ser menos engajadas em

sua função prof issional que as elites

masculinas, de acordo com a opinião

de Christine Lagarde: “por todo o

tipo de razões históricas, culturais e

econômicas, as mulheres tendem a

permanecer mais próximas do mundo

real”, insiste a ministra, que é mãe de

dois f ilhos.

“Eu não conheço muitos colegas

que vão ao supermercado fazer

compras, mas eu tenho esse costume”,

acrescenta ela. Segundo Lagarde,

o mesmo acontece com Anne

Lauvergeon, presidente da Areva, uma

gigante do setor nuclear, com Angela

Merkel, chanceler alemã; ou com Lubna

Olayan, executiva saudita.

Viver isolado da realidade é uma

das principais críticas dirigidas contra as

elites e as instituições de grande porte,

como o Fórum Econômico Mundial.

A paridade: um must

Se Davos pretende continuar

desempenhando seu papel nas

próximas décadas, o Fórum deverá

reservar mais espaço para as mulheres,

tanto no que se refere aos participantes

quanto aos conferencistas, sublinha

Zainab Salbi, fundadora da ONG

humanitária Mulheres para as Mulheres

Internacional (Women for Women

International) e apontada como uma

das Jovens Líderes Globais pelo Fórum

de Davos.

“Conheço um grande número de

mulheres que já manifestaram sua

intenção de não voltar a Davos”, declara

ela, antes da reunião deste ano. “O

Fórum foi um grande evento do século

XX, agora, ele deve provar que está à

altura do século XXI”, complementa.

Ben Verwaayen, presidente da

Alcatel-Lucent e membro fundador do

Fórum, compartilha esse ponto de vista.

De acordo com ele, “o futuro de nossa

organização apoia-se na igualdade

entre homens e mulheres: nossa

sobrevivência depende disso”.

Essa necessidade tornou-se urgente

nos últimos anos, sobretudo depois que

uma executiva francesa, “cansada” de

não ser convidada para Davos, montou

o Fórum das Mulheres de Deauville

(França).

O percentual de participantes

mulheres no Fórum praticamente

duplicou, desde 2001. As sessões

dedicadas às mulheres, antes relegadas

ao primeiro horário da manhã e fora

da sede principal, ocorrem, agora, no

Centro de Conferências e nos horários

de maior circulação de pessoas.

Há, inclusive, recepções, jantares e

coquetéis dedicados às redes femininas.

Neste ano, pela primeira vez, os

organizadores do Fórum chegaram

a um acordo com as 100 principais

empresas parceiras para adotar uma

quota de 20% de mulheres. Dentre

cinco delegados enviados pelas

empresas, pelo menos um deve ser

mulher, ou a empresa renuncia ao

envio do quinto delegado masculino. O

número de mulheres mais que dobrou.

No entanto, considerando que a medida

diz respeito a apenas 500 dos 2.500

participantes, o aumento da presença

feminina permanece pouco

signif icativo. Para os organizadores, essa

situação é satisfatória.

“Na medida em que nossa

organização seleciona seus membros

entre as mil empresas mais importantes

no mundo, é normal que ela ref lita

a distribuição de cargos”, constata

Saadia Zahidi, diretora do Programa de

Mulheres Líderes e Paridade de Gênero

(Women Leaders and Gender Parity

Program) do Fórum Econômico Mundial.

As mulheres de Davos poderão

contar, em breve, com uma importante

aliada: Nicole Schwab, f ilha do

fundador do Fórum Econômico

Mundial, prepara-se para atribuir um

certif icado de paridade entre homens

e mulheres às empresas que venham a

corresponder a critérios (ainda a serem

def inidos) de igualdade de salários, de

representação paritária das mulheres

e de satisfação das funcionárias em

relação a essa pariadade.

“O objetivo consiste em transformar

a paridade em uma vantagem

competitiva para as empresas que

tenham necessidade de atrair pessoal

qualif icado e investimentos”, ressalta

Aniela Unguresan, sócia de Nicole

Schwab no âmbito do Projeto Igualdade

de Gênero (Gender Equality Project).

Ainda falta convencer as elites para

que se disponham a transformar esse

objetivo em um must, ao lado do iate e

do professor de ioga.

Uma participante do Fórum Econômico Mundial, que ocorreu em janeiro de 2011, em Davos.

© World Economic Forum/swiss-image.ch/Michael Wuertenberg

4 0 . O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 0

Page 41: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

Por que é necessário abordar as

mudanças climáticas sob a perspectiva

de gênero? Em sua opinião, qual é a

contribuição das mulheres?

Homens e mulheres estabelecem

diferentes relações com os recursos

naturais. Sendo assim, devemos

basear-nos nesses dois pontos de

vista. Infelizmente, quando se trata de

encontrar soluções, a balança tende

a inclinar-se para um só lado. Muitas

vezes, as estratégias são implementadas

de maneira parcial, com base em um só

ponto de vista: o do homem. É também

uma questão de defesa dos direitos das

mulheres. Não devemos nos esquecer

que elas representam mais da metade

da população mundial, portanto,

elas deveriam participar na tomada

de decisões, o que nem sempre tem

acontecido, até agora.

Por outro lado, as mulheres são

detentoras de conhecimentos cruciais

para combater os efeitos das mudanças

climáticas. Um exemplo: em muitos

países e regiões do mundo, como a

Ásia, a África e a América, os homens

vêm praticando a monocultura,

enquanto as mulheres cultivam uma

grande variedade de vegetais em

seus quintais e hortas. De acordo

com o clima que preveem para um

determinado ano, elas decidem quais

sementes plantar. Essa diversidade

constitui, atualmente, uma verdadeira

mina de ouro para os cientistas

interessados em reintroduzir espécies

que haviam desaparecido em alguns

países, em decorrência da adoção de

determinadas políticas agrícolas.

Em países como Cuba, em alguns

casos, as mulheres chegaram a

Lançando as sementes

LORENA AGUILAR responde às perguntas de ALFREDO TRUJILLO FERNÁNDEZ, jornalista espanhol

do futuroEnquanto fala, agitando energicamente seus cabelos, Lorena Aguilar pronuncia distintamente

cada uma de suas palavras e pontua com a mão cada uma de suas frases. Há mais de 25 anos,

ela dedica-se ao desenvolvimento de políticas públicas destinadas a enfrentar os problemas

decorrentes das mudanças climáticas, com o objetivo de produzir novos conhecimentos sobre

temas ainda não abordados, com base em uma perspectiva de igualdade de gênero.

conservar até 250 variedades de feijão

e 75 variedades de arroz. No Peru, é

possível contar até 60 variedades de

iúca, e em Ruanda, até 600 variedades

de arroz! Essa é, pelo menos, a

informação fornecida pela Organização

das Nações Unidas para Agricultura e

Alimentação (FAO).

Essa riqueza na diversidade das

sementes e nos saberes tradicionais que

lhe são inerentes é um excelente meio

para combater as mudanças climáticas.

Em primeiro lugar, porque algumas

espécies de sementes adaptam-se

melhor às condições de variação

climática que conhecemos atualmente.

Em segundo, porque essa capacidade

de adaptação terá como resultado um

nível de produção agrícola capaz de

suprir as necessidades da população

do planeta.

Mulheres em uma

plantação na região de

Kayanza, no Burundi.

© IUCN/Intu Boedhihartono

O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 1 . 4 1

Page 42: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

De que maneira as mudanças climáticas

afetam as mulheres?

As mulheres são mais vulneráveis,

sobretudo, em casos de catástrofes

naturais associadas às mudanças

climáticas. Ao procederem à análise

de 141 catástrofes em todo o mundo,

os pesquisadores da London School

of Economics chegaram à conclusão

que, nos países em que as diferenças

entre os sexos são mais acentuadas,

se registra um número de mortes de

mulheres até quatro vezes superior

ao de homens! Esse fato não está

relacionado à fraqueza das mulheres,

mas à sua falta de formação: uma

mulher que nunca foi à escola, ao ouvir

no rádio que estão previstas rajadas

de vento de 260 km/h, não vai dar a

devida importância a essa informação.

Ela não dispõe das ferramentas nem dos

conhecimentos suf icientes para reagir a

essa ameaça.

O mesmo problema ocorre em

alguns países muçulmanos, nos quais as

mulheres, para saírem de casa, devem

estar acompanhadas por uma pessoa

do sexo masculino. Em Bangladesh, em

1991, um ciclone fez cerca de 150.000

vítimas, das quais no mínimo 90%,

eram mulheres! Em muitos casos, elas

recusaram-se a deixar suas casas sem

a companhia de um homem, ou não

sabiam nadar.

O estudo também constata que,

nos países em que as diferenças

entre homens e mulheres são menos

pronunciadas, uma catástrofe natural

causa um número semelhante de

vítimas de ambos os sexos. Nosso

trabalho na União Internacional para

a Conservação da Natureza (IUCN)

consiste em insistir no fato de que as

mulheres são agentes de mudança,

pois somos dotadas de saberes e

conhecimentos específ icos, além de

termos o direito de tomar decisões e de

participar dos processos políticos.

Quais são as suas ações no sentido de

incentivar essas mudanças?

Para começar, apresentamos o tema de

maneira diferente. Está fora de questão

dizer que as mulheres são mais sensíveis

ou melhores pelo simples fato de serem

mulheres, ou que o gesto de abraçar

as árvores é próprio de nossa natureza.

Ao contrário, o sentimentalismo não

leva a lugar nenhum! Nosso argumento

tem a ver com o desenvolvimento, é

um argumento positivo e preventivo,

com embasamento técnico e científ ico.

Trata-se de um discurso de defesa dos

direitos que tem ressonância universal.

A Liga Árabe tornou-se, por exemplo,

um dos nossos principais aliados, ao

lado de países como a Finlândia e a

Dinamarca.

Neste ano, estamos desenvolvendo

três estratégias que associam diferença

de gênero e adaptação às mudanças

climáticas, em Moçambique, na

Jordânia e na América Central. Nossa

ação consiste essencialmente em visitar

essas regiões para verif icar o que tem

sido realizado quanto às mudanças

climáticas, para assim formular

estratégias adaptadas a cada

situação particular. Não é um modelo

aplicado de maneira uniforme, uma

vez que levamos em consideração as

especif icidades regionais.

Na América Central, por exemplo,

os sete países da região (Belize, Costa

Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras,

Nicarágua e Panamá) desenvolveram

uma estratégia comum com o objetivo

de atenuar as mudanças climáticas e

adaptar-se a seus efeitos. Além de terem

sido consultadas, as mulheres foram

convidadas a compartilhar e aplicar seus

conhecimentos. Ao integrarmos suas

necessidades a essa nova estratégia,

conseguimos incorporar o aspecto

do gênero nas medidas que serão

implementadas quanto à atenuação dos

efeitos das mudanças climáticas.

Atualmente, mais de 25 países

estão dispostos a desenvolver ações

semelhantes, o que permitirá a redução

das diferenças que provocam uma

maior mortalidade entre as mulheress

Como esses novos projetos são

acolhidos pelas comunidades?

Algumas tribos indígenas da América

Central têm participado ativamente,

tanto no desenvolvimento dos

conhecimentos, quanto nos processos

de capacitação. Seus saberes são

fundamentais. No entanto, também

nos deparamos com certa relutância:

algumas comunidades têm medo de

que os erros do passado venham a se

repetir. Por exemplo, sabemos que 70%

das pessoas mais pobres do mundo

são mulheres, mas quando analisamos

os benef iciários da cooperação nos

projetos, percebemos que os recursos

quase não chegam às mulheres.

No entanto, também sabemos que,

ao receberem o benefício, 95% das

A costa-riquenha Lorena Aguilar é

a primeira latino-americana a ocupar

o cargo de conselheira mundial de

gênero na União Internacional para a

Conservação da Natureza (IUCN). ©

An

dre

a Q

ue

sad

a-A

gu

ilar

mulheres utilizam-no para melhorar

as condições de vida de suas famílias,

ao passo que essa porcentagem não

ultrapassa 15% quando os benef iciários

são homens. Essa é a razão pela qual

elas temem que esses projetos voltem

a benef iciar os homens, como ocorreu

no passado com os programas de

compensação f inanceira destinados a

comunidades rurais para o combate ao

desmatamento.

De maneira concreta, quais são os seus

temores em relação ao futuro?

Nós temos vários receios, porque

a maioria dos programas de

desenvolvimento realizados até

hoje não levam em consideração

as desigualdades entre os sexos, e

é exatamente isso o que queremos

evitar, para que não se repitam os

erros do passado. O Banco Mundial,

por exemplo, ao avaliar mais de 200

projetos relacionados ao uso dos

recursos hídricos, concluiu que os

mais ef icazes foram aqueles que

promoveram a igualdade de gênero.

O que nós desejamos é chamar a

atenção do mundo para essa realidade:

que essa é uma batalha a ser vencida

e que estamos lutando para alcançar

esse objetivo.

4 2 . O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 0

Page 43: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

“De onde você fala?”, essa era a pergunta

mais frequente feita pelas feministas da

década de 1960 às pessoas, conhecidas

ou não, que tomavam a palavra no

decorrer dos acalorados debates

da época. De onde você vem para

atrever-se, dessa maneira, a exprimir sua

opinião?

Estou falando, e não poderia ser

de outra maneira, de um território – o

meu – que, do ponto de vista da relação

entre o espaço e o tempo, já pode ser

considerado como antigo. Um território

ocupado, de uma extremidade à outra,

por um imaginário construído com base

no tesouro incomensurável que nos

é fornecido pelos livros, mas também

pela cartograf ia do real, uma vez que

a vida fez com que eu me agarrasse

à existência, em países que estavam

atravessando momentos cruciais de suas

histórias. Assim, a sorte permitiu-me sair

ilesa do continente latino-americano,

na época em que se encontrava sob

o jugo das piores ditaduras. E pude

acompanhar, com meus próprios olhos,

durante vários anos, as mudanças

vertiginosas ocorridas em países da Ásia,

como China e Japão.

Nessa caminhada, devo reconhecer

que nunca estive sozinha. Evolui em uma

galáxia de f iguras femininas, unidas por um

imperativo comum: observar, exprimir-se e

criar, contra tudo e contra todos.

Às vezes, parecia que recuávamos,

mas não, é que, nos momentos difíceis,

avançávamos como os caranguejos:

de lado.

Ao deixar meu próprio período

romântico, durante o qual fui quase

exclusivamente atraída por artistas cujas

existências foram marcadas por destinos

tristes e f ins trágicos, como Silvia Plath,

Alejandra Pizarnik, Camille Claudel ou

Charlotte Salomon, comecei a admirar

a luta de combatentes obcecadas –

embora elas não tivessem as melhores

cartas nas mãos – como Janet Frame,

Else Lasker-Schüler, Tina Modotti ou

Frida Kahlo, entre outras. Sem esquecer

as grandes viajantes, como Isabelle

Estrelas de minha galáxia pessoal

Ela deixou a Argentina,

seu país natal, em 1974,

pouco antes da tomada do

poder pela junta militar, e

viajou para os EUA, China,

Japão, Itália... antes de ter

escolhido, sete anos mais

tarde, residir na França, em

Paris. Durante todos esses

anos, dezenas de f iguras

femininas têm preenchido

sua solidão. Hoje, Luisa

Futoransky presta-lhes uma

homenagem.

LUISA FUTORANSKY

Else Lasker-Schüler : A Pantera Azul e a Sexta-feira

(Der blaue Jaguar und Freytag), por volta de 1928.

© Galerie Michael Werner, Berlin, Köln and New York

O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 1 . 4 3

Page 44: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

Eberhardt, Alexandra David-Neel, Freya

Stark ou Ella Maillart.

Ao ler estas linhas, f ico com

a impressão de que, em minhas

relações, dei preferência ao que

designei como minhas “mal-amadas”.

Se aprofundarmos esse tema, o mito

fundador da mal-amada é Lilith, a

primeira mulher rebelde de Adão,

aquela que se encontra representada

em diferentes pórticos de catedral,

reivindicada, às vezes, por alguma

superstição ou obra literária. Vou

ilustrar essa representação com duas

f iguras ambíguas e contraditórias que,

após longos sofrimentos impostos

por vicissitudes do corpo e tragédias

inacreditáveis, vivenciaram um

renascimento como o da fênix, do

tipo justiceiro e, na maioria das vezes,

anacrônico.

Eu gostaria de homenagear apenas

duas mulheres, entre as centenas a

quem eu desejaria prestar tributo. Os

limites deste texto não me permitem

fazer uma análise dessas grandes líderes

que são Golda Meir, Bandaranaike – mãe

e f ilha –, Indira e Sonia Gandhi, Benazir

Bhutto, Angela Merkel, Evita, Michelle

Bachelet ou Cristina Kirchner. Tampouco

seria possível deter-me – apesar de,

no fundo, continuar aplaudindo-as

– na tenacidade de uma Carla del

Ponte, de uma Mary Robinson, ou na

bravura de Karla Michel Salas e sua

luta incansável para instaurar, perante

a Corte Interamericana dos Direitos

Humanos, o processo relacionado

com o polêmico caso das mulheres

assassinadas em Ciudad Juárez (México).

Eu não poderia evocar, de forma mais

detalhada, Waris Dirie, primeira mulher

a denunciar publicamente a mutilação

genital feminina, prática essencialmente

africana; mas acredito que se deve

proclamar sua luta, em alto e bom

som, para que encontre eco em maior

número de pessoas. Há muito tempo,

aliás, ele tem sido reiterado por uma

centenária, dotada de invejável energia,

Rita Levi-Montalcini, apelidada “a dama

do neurônio”. Todos os dias, ela vai à

sede de sua fundação, em Roma, para

apoiar os programas de educação

destinados às mulheres africanas. Um

asteróide, descoberto em 1981, ostenta

seu nome, o que já é algo bastante

signif icativo.

O caminho da emancipação

empreendida pelas mulheres, há quase

100 anos, tem sido marcado por grandes

dif iculdades e continua permeado de

ambiguidades, contradições, armadilhas

e confrontos intermináveis entre as

forças da luz e aquelas que se obstinam

a lançar-nos no reino das trevas. Ao

testemunhar os destinos de duas

escritoras, estas estrelas fulgurantes,

eu gostaria, aqui, de resgatá-las do

esquecimento: Else Lasker-Schüler e

Janet Frame.

Else Lasker-Schüler, uma estrangeira

em seu país

Há anos que sua fotograf ia e suas cartas

estão ao meu lado. Ela reúne elementos

tão diferentes, quanto o abandono e

a arrogância, a rebelião e a submissão.

E uma imensa privação e uma grande

miséria. No entanto, acima de tudo, Else

é uma voz interior, perseguindo, até

suas últimas consequências, a poesia,

a sua poesia. Um dom e um destino.

“Todo mundo aprecia minhas poesias,

mas ninguém se apaixona por mim”, ela

costumava a af irmar com lucidez e ironia

sarcástica.

O destino de Else Lasker-Schüler

é paradoxal: na sua época, os nazistas

condenaram seus livros à fogueira, em

razão da “arte degenerada” (entartete

Kunst), pouco depois de lhe terem

concedido o Prêmio Kleist, distinção

máxima da literatura alemã. Em Israel,

ela não era apreciada, ou, dito por

outras palavras, seus livros não eram

lidos, porque ela escrevia no “idioma

do inimigo”, a língua amaldiçoada.

Atualmente, suas “pátrias malvadas” – a

Alemanha, sua terra natal, e Israel, a

terra onde se encontra sua sepultura

– disputam sua cidadania. Com efeito,

cada uma a reivindica como sua poetisa

nacional, atribuindo-lhe o qualif icativo,

nada menos que isso, de “Musa de

Berlim” e “Estrela de Weimar”.

Else nunca se contentou com o

mundo tal como ele é. Em razão disso,

ela teve de transformá-lo e renomeou

as circunstâncias à sua maneira,

começando por si mesma. Ela fantasiava

sobre a sua idade, sobre a prof issão de

seus avós, sobre o nome dos maridos

e dos amantes. A Sulamita, o príncipe

de Tebas, o príncipe Jussuf, o Tino de

Bagdá. A realidade era mais árida e,

muitas vezes, o sofrimento (a perda

precoce de um irmão e do f ilho único),

o terror (a ascensão do nazismo) e a

miséria (sua atividade como escritora

nunca lhe permitiu satisfazer suas

A poetisa alemã Else Lasker-Schüler, por volta de 1925. © Acervo particular

As obras de Else Lasker-Schüler mencionadas neste

artigo estão expostas, de 21 de janeiro a 1º de

maio de 2011, no Museu para o Presente de Berlim

(Estação de Hamburgo). Essa exposição, organizada

pelo Museu Judeu de Frankfurt-am-Main, em

cooperação com a Galeria Nacional e o Museu

Estadual de Berlim, tem o apoio da Sociedade dos

Amigos da Galeria Nacional.

4 4 . O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 0

Page 45: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

necessidades básicas) vieram aninhar-se

nas paredes de subsolos tão úmidos e

sempre precários que lhe serviam de

moradia.

Um amigo meu, livreiro já idoso de

Jerusalém, lembrava-se de um encontro

com ela, no Attara, único bar reservado

aos insones da cidade na época:

vestida grotescamente, praticamente

aos farrapos, sempre excêntrica e sem

um centavo para pagar seu precário

consumo, ela retirava do peito, à frente

dele, pedacinhos de papel dourado,

como se tratasse de pedras preciosas ou

de sóis, para entregar ao garçom, que

f icava enfurecido com tal atrevimento.

O que faço aqui?, com esse título, o

editor Salman Shocken, refugiado nos

EUA, reuniu as correspondências que

ele havia mantido com a poetisa. Nessas

cartas, ela recrimina com amargura

a Jerusalém terrena: clima rigoroso,

descortesia dos habitantes e, em geral,

indigência da vida literária e cultural.

Em Else, no que se refere ao

desgosto, prevalece a nostalgia do

expatriado. Sua obra mais importante,

Meu piano azul (Mein blaues Klavier), é

dedicada a meus inesquecíveis amigos

e amigas das cidades da Alemanha – e

àqueles que, à semelhança do que se

passou comigo, foram expulsos e, agora,

estão espalhados por todo o mundo.

Com minha f idelidade!”

O julgamento lento e tardio da

posteridade acabou por reconhecer

o valor de Else. Em 20 de novembro

de 2003, em seu discurso por ocasião

do recebimento do Prêmio Nobel de

Literatura, Elfriede Jelinek prestou-

-lhe homenagem: “enquanto aluna,

adorava a f igura extravagante, exótica

e multicolorida de Else Lasker-Schüler.

Eu desejava, a qualquer preço, escrever

poemas como ela, e, mesmo que eu não

os tenha escrito, fui consideravelmente

inf luenciada por ela”.

Janet Frame, à beira do alfabeto

Na década de 1950, os distúrbios

mentais eram tratados à base de

eletrochoques: Janet Frame foi

submetida à cerca de 200. Eles foram

aplicados por pessoas obstinadas, com

plena consciência ou indiferentes, no

entanto, esse procedimento não afetou

em nada sua paixão pela escrita.

A lenda de sua vida alimenta-se de

literatura. Em 1952, ela estava prestes

a ser operada no hospital Seaclif f de

Otago, na Nova Zelândia. Diagnóstico

(errôneo, conforme apurado mais

tarde): esquizofrenia. Chegam a

propor-lhe uma lobotomia para que ela

venha a recuperar sua “normalidade”.

Contudo, foi então que, contra todas as

expectativas, surge a fada madrinha da

literatura: sua primeira coletânea,

O lago: histórias, recebe o prêmio de

maior prestígio do país.

Foi um milagre que o cirurgião Blake

Palmer e a burocracia do hospital Otago

tenham lido na imprensa, nesse dia,

que o júri acabava de atribuir o Prêmio

Hubert Igreja de Prosa à internada Janet

Frame.

Vamos situá-la no espaço e no

tempo: ela nasceu em Dunedin, em 28

de agosto de 1924, e deixou-nos, em 29

de janeiro de 2004.

Um Anjo em Minha Mesa, f ilme de

Jane Campion, que, em 1990, se inspirou

na autobiograf ia em três volumes de

Janet Frame, recebeu o Prêmio Especial

do Júri no Festival de Veneza e suscitou

admiração internacional pela escritora.

A reação de Janet foi a seguinte :

“antes do f ilme de Jane Campion, eu

era considerada uma escritora maluca.

Agora, sou uma escritora maluca e

obesa”. Sua especialidade consiste em

analisar tudo meticulosamente, sem

medo de ser atingida em seu amor

próprio. Ela nunca deixou de pensar na

amiga Nola e em todas aquelas pessoas

que, não tendo chegado a livrar-se da

lobotomia por nenhum prêmio literário,

foram transformadas irreversivelmente

em zumbis silenciosos e dóceis.

Janet Frame é a escritora mais

penetrante e mais brilhante que se

Else Lasker-Schüler : O Príncipe Jussuf de Tebas, por volta de 1928, pastel e giz, nanquim, giz de cera e alumínio

sobre papel, 26,7 x 21,6 cm. © Jüdisches Museum Frankfurt am Main. Ursula Seitz-Gray.

Janet Frame, romancista e poetisa neozelandesa

(1924-2004).

© Janet Frame Estate/Reg Graham; Janet Frame Literary

Trust; www.janetframe.org.nz

Page 46: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

atreveu a explorar a loucura, com base

em seu interior. Em suas obras, ela

def ine-se como “a sem-teto do ego”.

Em sua obra, Rostos na água, ela

observa que a loucura def initiva ou

a morte nunca ocorrem, quando são

procuradas ou convocadas. Frame

instala sua voz em outro mundo, o dos

vencidos, no próprio avesso da trama,

por trás das grades, dos sedativos e das

camisas de força: seu testemunho é o

dos corpos e do pensamento conf inado

na prisão que é o asilo.

Como ela iria aprender por conta

própria, existe uma hierarquia entre os

pacientes: há os “bons”, os “birutas” e

os desobedientes, os que, a exemplo

dela, não renunciam a pensar. Para

estes, é reservado o eletrochoque, uma

armadilha que volta a fechar-se “nas

trevas do abismo”.

Os f ilhos da família Frame eram

cinco: um rapaz e quatro moças. O

pai era ferroviário; a mãe, empregada

doméstica, que esteve a serviço, durante

algum tempo, da família da escritora

Katherine Mansf ield.

Várias tragédias marcaram

profundamente a vida dessa família:

em um lapso 10 anos, duas meninas

morreram afogadas. Por sua vez, o rapaz

era epiléptico.

Rejeitada na infância por seu físico

pouco atrativo, Janet foi alvo de chacota,

na adolescência, por sua excessiva

timidez. Após uma tentativa de suicídio,

um professor pelo qual se apaixonara

chegou a convencê-la a internar-se.

Em decorrência disso, ela permaneceu

quase oito anos no hospital psiquiátrico,

“uma terra eterna do presente, sem

horizontes para acompanhá-la”.

Segunda intervenção notável

da fada madrinha dos escritores: na

sequência do pesadelo hospitalar, ela

conheceu Frank Sargeson, mentor

da nova safra de escritores da Nova

Zelândia, quem iria alimentar seu apetite

insaciável pela leitura, convencendo-a

a escrever em tempo integral. Com

essa f inalidade, Sargenson ofereceu-

-lhe a possibilidade de instalar-se em

um galpão de sua propriedade, em

Takapuna, ao norte de Auckland. Um

ano depois, ela concluiu seu primeiro

romance, As corujas realmente choram

(Owls do cry). Sargeson iria ajudá-la

também a juntar os recursos necessários

para uma temporada na Europa.

Londres, Paris, Barcelona, Ibiza e,

mais uma vez, Londres, cidade onde

ela não conseguiu encontrar trabalho,

em decorrência de seus antecedentes

psiquiátricos. Novamente, o estigma

da doença mental, e, novamente,

por sua própria iniciativa, ela volta a

ser internada, desta vez, no hospital

Maudsley. A fada fez sua terceira visita,

sob a f igura do médico Alan Miller, que

rejeita o diagnóstico inicial, livrando-a

de qualquer tipo de esquizofrenia. Ele

incentiva-a a fazer terapia analítica e a

exorcizar toda sua trajetória, servindo-se

das palavras para exprimir o que ela

tinha vivenciado.

Em conformidade com a força

mágica dos números, tendo escrito

sete romances, ela voltou à Nova

Zelândia sete anos mais tarde. E a vida

continuava.

A partir de então, houve uma

sucessão de prêmios, bolsas,

residências de escritores, diplomas,

viagens e doutorados honoris causa,

assim como controvérsias em torno

de sua obra e de sua pessoa, além de

indicações periódicas ao Prêmio Nobel,

que, até agora, não lhe foi atribuído.

“À beira do alfabeto, onde todas

as palavras desmoronam e todas as

formas de comunicação entre os vivos

não têm sentido”, escreve ela. Com

toda a razão!.

© T

amar

a P

ince

4 6 . O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 0

Michelle Bachelet, nascida em 1951, é diretora-

-executiva da ONU Mulheres, desde 2010. Ela foi

presidente do Chile, de 2006 a 2010.

Chandrika Bandaranaike, nascida em 1945, foi

presidente do Sri Lanka, de 1994 a 2005.

Sirimavo Bandaranaike (1916-2000) foi

primeira-ministra do Sri Lanka em três ocasiões,

entre 1960 e 2000.

Benazir Bhutto (1953-2007) foi, em duas

ocasiões, primeira-ministra do Paquistão.

Jane Campion, nascida em 1954, é cineasta e

cenarista neozelandesa.

Camille Claudel (1864-1943) artista plástica

francesa.

Alexandra David-Neel (1868-1969), orientalista

franco-belga, foi também cantora de ópera,

jornalista, escritora e exploradora.

Carla Del Ponte, nascida em 1947, é magistrada.

Ex-procuradora do Tribunal Penal Internacional

para a ex-Iugoslávia (TPIY) e do Tribunal

Penal para a Ruanda (TPIR), é, desde 2008,

embaixadora da Suíça na Argentina.

Waris Dirie, nascida em 1965, na Somália, é

embaixadora da Boa Vontade do Fundo de

População das Nações Unidas (UNFPA).

Isabelle Eberhardt (1877-1904) escritora suíça.

Janet Frame (1924 - 2004) romancista e poetisa

neozelandesa.

Indira Gandhi (1917-1984) foi primeira-ministra

da Índia, de 1966 a 1977, e, em seguida, de 1980

até sua morte.

Sonia Gandhi, nascida em 1946, na Itália,

ingressou no cenário político indiano, em 1991,

na sequência do assassinato do marido, o

primeiro-ministro Rajiv Gandhi.

Elfriede Jelinek, nascida em 1946, na Áustria,

recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, em 2004.

Frida Kahlo (1907-1954) pintora mexicana.

Cristina Kirchner, nascida em 1953, é

presidente da Argentina, desde 2007.

Else Lasker-Schüler (1969-1945) poetisa alemã.

Rita Levi-Montalcini, nascida em 1909, na Itália,

recebeu o Prêmio Nobel de Medicina, em 1986.

Ella Maillart (1903-1997) exploradora, escritora

e fotógrafa suíça.

Katherine Mansf ield (1888-1923) romancista e

poeta neozelandesa.

Golda Meir (1898-1978) foi ministra das

Relações Exteriores e primeira-ministra de Israel.

Angela Merkel, nascida em 1954, é chanceler da

Alemanha, desde 2005.

Karla Michel Salas, advogada mexicana,

recebeu o Prêmio Direitos Humanos 2010 do

Conselho Europeu dos Advogados.

Tina Modotti (1896-1942) fotógrafa italiana.

Evita, ou melhor Eva Perón (1919-1952) foi

primeira-dama da Argentina, de 1946 até sua

morte.

Alejandra Pizarnik (1936-1972) poetisa

argentina.

Silvia Plath (1932-1963) poetisa norte-

-americana.

Mary Robinson, nascida em 1944, foi a primeira

mulher presidente da Irlanda, de 1990 a 1997.

Em seguida, assumiu a função de alta comissária

das Nações Unidas para Direitos Humanos, de

1997 a 2002.

Charlotte Salomon (1917-1943) artista plástica

e pintora alemã.

Freya Stark (1893-1993) escritora e exploradora

britânica.

Luisa Futoransky, Luisa Futoransky,

nascida em Buenos Aires (Argentina),

em 1939, escreve em vários estilos:

é poetisa, romancista, tradutora,

jornalista e ensaísta. É autora, em

particular, de Contos chineses (Son

contos chinos), Partir, digo, De Pe à Pa

(De Pe a Pa) A formosa (El formosa) e

Luas de mel (Lunas de miel).

(seu site, em espanhol, é: http://www.

luisafutoransky.com.ar)

Page 47: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

Ela dedicou sua vida aos

desfavorecidos e deixou

como herança uma obra de

envergadura internacional.

Esboçado por um hindu, este

é o retrato de uma católica

albanesa nascida sob o

Império Otomano, na cidade

de Skopje1, e falecida em

Calcutá, na Índia, Prêmio

Nobel da Paz de 1979 e

beatif icada em 2003 pelo

papa João Paulo II: Madre

Teresa de Calcutá (1910-1997).

Madre Teresa, com quem mantive

contato durante 23 anos, era uma

personalidade com múltiplas facetas, ao

mesmo tempo simples e complexa. Ela

dedicava-se inteiramente àqueles que

encontrava em seu caminho – pobres,

ricos, pessoas com def iciências, pessoas

com hanseníase e indigentes – e, ao

mesmo tempo, dirigia uma poderosa

congregação religiosa, as Missionárias da

Caridade, implantada em 123 países até

1997, o ano de sua morte. Restaurantes

comunitários, escolas, hospícios,

albergues, orfanatos para crianças com

hanseníase ou abandonadas, centros

de desintoxicação e serviços de visita

a domicílio para pessoas doentes e

idosos – tudo isso representa a força de

sua obra. E tudo isso foi construído de

forma meticulosa e paciente pelas irmãs

e irmãos de sua ordem.

Foi por acidente que escrevi a

biograf ia de Madre Teresa. Eu já a

conhecia há vários anos e colaborava

com ela em suas atividades em Nova

NAVIN CHAWLA

Madre Teresaa mulher mais poderosa do mundo

1. Capital da República da Macedônia que, até 1991,

fazia parte da Iugoslávia.

Madre Teresa, rodeada por Navin Chawla e sua família. © Navin Chawla

Deli. Certo dia, ela me contou algo

muito engraçado, e ambos rimos com

a história. Foi então que me dei conta

de que esse traço de sua personalidade

ainda não havia sido relatado nos

livros já publicados sobre essa mulher.

“Talvez eu devesse escrever um livro”,

eu disse. Aparentemente, ela não

estava disposta a aceitar essa ideia: “já

existem tantos livros!”. Então, deixei

escapar estas palavras: “será que

somente católicos podem escrever a

seu respeito? Um funcionário hindu não

teria autorização para fazer isso?”. Eu

me arrependi imediatamente de minhas

palavras e me deixei invadir por um

silêncio constrangido, porque eu sabia

perfeitamente que ela nunca seria capaz

de discriminar alguém. No entanto, ela

levou minha pergunta a sério e disse:

“Tudo bem, mas não escreva sobre mim,

mas sobre as nossas ações”.

Apesar de ser profundamente

católica, Madre Teresa não tinha

uma concepção sectária da religião.

Convencida de que cada pessoa de

que cuidava era a encarnação do Cristo

sofredor, ela dispunha-se a ajudar seu

semelhante, sem qualquer distinção

de crença. Essa fé que fazia parte de

sua natureza exasperava seus críticos,

que a consideravam como o símbolo

de uma conspiração de direita, ou pior

ainda, como a porta-voz das posições do

Vaticano contra o aborto. Essa espécie

de crítica nunca repercutiu na Índia, país

no qual Madre Teresa era respeitada e

venerada por um grande número de

pessoas.

Certo dia, chamei sua atenção para

o fato de que ela era a mulher mais

poderosa do mundo. “Como assim?”,

respondeu ela. “Se isso fosse verdade, eu

traria a paz para o mundo”. Perguntei-

lhe, então, por que ela não utilizava

sua inegável inf luência para apaziguar

os conf litos, ao que ela retrucou: “as

guerras são consequências da política.

Se eu estivesse na política, eu deixaria de

amar: f icaria limitada a apoiar algumas

pessoas, quando meu dever é ser

solidária a todos”.

Os legados e os donativos recebidos

pela ordem de Madre Teresa eram

sempre bem-vindos e investidos

imediatamente para atender às

necessidades mais urgentes. Contudo,

sua lembrança mais viva era o que ela

chamava de “dinheiro sacrif icado”:

como o do mendigo de Calcutá que lhe

O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 1 . 4 7

Page 48: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

entregou algumas moedas recebidas

durante um dia inteiro, ou o do jovem

casal hindu que se amava tanto e que,

ainda assim, decidiu renunciar à festa de

casamento para lhe oferecer a quantia

que tinham poupado.

Antes de sua morte, eu manifestei

minhas preocupações sobre o futuro da

organização que ela tinha criado. Eu já

havia assistido à decadência de outras

instituições, a partir do falecimento

de seus fundadores carismáticos. Na

primeira vez em que lhe f iz a pergunta,

ela apenas levantou as mãos para o céu.

Na segunda vez, ela não me respondeu

diretamente, mas disse com um sorriso:

“em primeiro lugar, deixe-me ir embora”.

Diante da minha insistência, ela acabou

por responder: “você já visitou muitas

de nossas casas na Índia e no exterior.

Por toda parte, as irmãs vestem os

mesmos saris, comem o mesmo tipo

de comida, fazem o mesmo trabalho.

Madre Teresa não está em todos os

lugares e, no entanto, o trabalho não

deixa de ser feito.” Em seguida, ela

acrescentou: “enquanto permanecermos

comprometidos com os mais pobres dos

pobres e não estivermos a serviço dos

ricos, nossa obra irá prosperar”.

Como sou hindu e apenas um pouco

eclético, creio que precisei de mais tempo

do que outros para compreender que

Madre Teresa vivia permanentemente

com Cristo, não só durante a missa, mas

também quando ela oferecia ajuda a

alguém. No seu entender, o Cristo

crucif icado não era diferente dos

moribundos que jaziam em seu hospício

de Kalighat. Para Madre Teresa, amar

o próximo era amar a Deus. Essa era a

única coisa importante para ela, e não a

amplitude de sua obra ou o poder que os

outros lhe atribuíam. Aliás, certo dia ela

me explicou isso com palavras simples e

que falam por si: “somos chamados não

para obter sucesso, mas para ser f iéis à

nossa missão”.

O centenário de nascimento de

Madre Teresa de Calcutá está sendo

comemorado, em todo o mundo, entre

agosto de 2010 e agosto de 2011.

Alto funcionário público aposentado,

o indiano Navin Chawla manteve

contato, durante vários anos, com

Madre Teresa de Calcutá. Ele é o autor

de uma biograf ia sobre a fundadora

das Missionárias da Caridade.

© O

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ser útil. Manuela anotou em seu

diário: “(...) nós recrutamos aldeias

inteiras para a revolução, para a

pátria. Algumas mulheres costuravam

uniformes, enquanto outras tingiam

tecidos (...). Às crianças que estavam

conosco pedíamos que trouxessem

pedaços de ferro e de estanho para que

pudéssemos derretê-los e transformá-

los em espingardas, canhões, pregos,

ferraduras etc. Em suma, eu era uma

verdadeira comissária de guerra, que

não teve nenhum descanso até que a

nossa revolução triunfasse.”

Em 1824, após a batalha de Junín,

decisiva para a independência do

Peru, ela obteve a patente de capitã

de cavalaria e, em seguida, a de

coronela do exército colombiano. Essa

equatoriana incansável acabou seus

dias exilada em Paita (Peru), onde

morreu em 1856.

Entretanto, sua história ainda

teve continuidade, porque um século

e meio mais tarde, em 2007, ela foi

postumamente promovida à patente de

generala da República do Equador, pelo

presidente Rafael Correa.

Nessa época, essa lindíssima mulher,

fervorosa admiradora de Bolívar, já

havia desempenhado várias façanhas

militares. Desde 1809-1810, ainda

adolescente, ela apoiou os insurgentes

em sua cidade natal de Quito

(Equador), na qual começou a luta pela

independência de seu país. Em 1821,

ela participou da libertação de Lima

(Peru), cidade onde se casou e onde

foi condecorada como “Cavaleira da

Ordem do Sol”, pelo general San Martín.

Após o retorno a Quito, ela participou

da batalha de Pichincha, que consagrou

a independência da Colômbia.Em 24 de

maio de 1822, por ocasião da entrada

triunfal do Libertador na mesma

cidade, os dois heróis encontraram-se,

permanecendo juntos até a morte de

Bolívar, em 1830.

Em 1823, Manuela tornou-se

sua secretária e arquivista of icial.

Conselheira experiente e dotada de

apurado senso político, ela sempre

atuou nos bastidores em favor desse

homem ilustre, como conf idente e

mediadora dos grandes líderes militares,

desde Sucre até San Martín.

Acima de tudo, ela fez milagres

nos campos de batalha, ocupando-se

do recrutamento, do fornecimento de

armas e de alimentos, da organização,

do tratamento aos feridos, além de

estar presente, sem poupar esforços,

em todos os postos em que pudesse

Manuela Sáenzguerreira à serviço da América Latina

A comemoração do bicentenário

das independências latino-americanas (2009-2011) tem sido uma

oportunidade para a historiograf ia of icial exaltar heróis esquecidos

ou desconhecidos, entre eles a equatoriana Manuela Sáenz

Aizpuru. Nascida no f inal do século XVIII, aquela que Simón Bolívar

chamava de “a libertadora do Libertador”, sobreviveu em algumas

memórias apenas como a pessoa que salvou a vida de Bolívar, em

uma tentativa de atentado em Bogotá, capital da Colômbia,

em 1828.

Lautaro Pozo é embaixador

delegado permanente do Equador

junto à UNESCO.

4 8 . O C O R R E I O D A U N E S C O

LAUTARO POZO

Page 49: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

Post-scrip

tum

“Ao receber a notícia da morte de Édouard Glissant, fui invadido por grande número de

imagens que testemunham longo e fecundo companheirismo”. É com essas palavras que o

escritor guadalupiano, Ernest Pépin, começa a vibrante homenagem intitulada “Uma alma

inquieta do mundo” (Une âme inquiète du monde!). Publicamos um trecho desse texto, em

memória de Édouard Glissant, diretor de redação do Correio da UNESCO de 1982 a 1988.

A princesa Loulwah considera que a Arábia Saudita passa atualmente por “um período

fascinante”. Mais que isso, ela acredita que a verdadeira riqueza de seu país não é o petróleo,

mas a juventude. A princesa Loulwah da Arábia Saudita responde às perguntas de Linda Tinio

(do Bureau de Planejamento Estratégico da UNESCO)..

A obra de três gigantes da poesia mundial forma a trama do novo projeto da UNESCO

“Tagore, Neruda, Césaire, por um Universal Reconciliado”. Inaugurado em junho de 2011,

tem como objetivo suscitar a ref lexão sobre os valores universais da humanidade nos círculos

acadêmicos e artísticos..

Page 50: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

Pensar o Tout-Monde1

“Ao receber a notícia da

morte de Édouard Glissant,

fui invadido por grande

número de imagens que

testemunham longo e

fecundo companheirismo”.

Com essas palavras é que

o escritor guadalupiano,

Ernest Pépin, começa a

vibrante homenagem

intitulada “Uma alma

inquieta do mundo” (Une

âme inquiète du monde!).

Publicamos um trecho

desse texto, em memória

de Édouard Glissant, diretor

de redação do Correio da

UNESCO de 1982 a 1988.

No furor de suas obras poéticas,

dramáticas, romanescas e teóricas, às

vezes é difícil acompanhar as marcas

do pensamento de Édouard Glissant.

No entanto, elas atraem-nos como

esse campo de ilhas que ele pretendeu

construir no ápice do Todo-Mundo (Tout-

Monde). Ao ampliar incessantemente os

círculos concêntricos de uma escrita em

estado de alerta, ele acabou irrigando

um “sistema” proteiforme de rara

densidade [...].

Homenagem a

Édouard Glissant

Para Glissant, o Todo-Mundo não

signif icava obedecer às hipocrisias da

globalização. Ao contrário, signif ica-

va substituir o mito da identidade

imutável pelo “terremoto” do mundo.

Como expressa seu caráter inesperado

e imprevisível. Ou, dito por outras

palavras, sua “mundialidade”!

Ao questionar o mundo em seu

movimento incessante, Glissant

ensinou-nos a renunciar à idéia de

unidade nivelante e, em última instância,

imperialista.

Ele tornava impossível qualquer

assimilação e conduzia-nos a privilegiar

as fricções, os raios fulminantes,

as variações de uma heterogênea

efervescência intelectual e cultural.

Aquilo que permite a um francês ser um

chinês, a um chinês ser um caribenho,

a um caribenho ser um f inlandês, sem

que, no entanto, se renuncie a si mesmo.

Glissant ensinou-nos a plasticidade

contra a rigidez. Atualmente, basta olhar,

ouvir alguns jovens para compreender

essa forma alternativa de pensamento

do mundo e de si. Glissant ensinou-nos

que a identidade não é um rosário que

se recita, mas um risco que se enfrenta

com o imaginário do mundo; não é um

repúdio dos outros, mas uma abertura

aos outros. “Perda de si!”, gritam os

nostálgicos da “pureza”. Não, respondia

Glissant, mas autorreorganização na

instabilidade criativa do mundo!

De fato, ele deixou como legado um

pensamento habitável para o século XXI.

Outros condenariam os componentes do

ERNEST PÉPIN

mundo a um confronto sem f im e sem

objetivo. Pensamento do habitar fora de

qualquer conf inamento!

Suas obras recentes consolidaram

esse pensamento do Todo-Mundo. Os

lugares escapam aos estorvos nacionais.

As relações transcendem as fronteiras.

Os intercâmbios suprimem as solidões,

arrastando em sua esteira a identidade-

-mundo. Uma identidade sem hierarquia

de culturas, sem imperialismo, sem

exclusão nem exclusiva, capaz de aceitar

sem repugnância as formas imprevistas

da criação do homem pelo homem!

Porque este era o desaf io: a

humanização de um mundo consciente

e responsável por sua diversidade!

Podemos absorver de tal obra e de

tal questionamento a sua indisciplina.

Denomino indisciplina o não respeito

a teorias pré-fabricadas, escritas imóveis,

estéticas convencionais. Ainda não foi

suf icientemente salientado que Glissant

se situa em um pensamento dissidente

ou, se preferirmos, de ruptura.

Ruptura com o discurso europeu e

eurocêntrico.

Ruptura com o discurso

anticolonialista estático.

Ruptura com o discurso da

identidade prisioneiro do essencialismo.

Ruptura com a hegemonia

dissimulada que é a globalização.

Ruptura com as lacunas da

linguagem.

Ruptura com a ditadura das línguas

imperiais.

Enf im, ruptura com certa concepção

da literatura!

Por trás de cada ruptura, emerge a

adesão a outros valores, a outras formas

do conhecimento, a outras estéticas da

escrita, a outras funções do escritor e do

ser humano.

Glissant não nos convidava a

acompanhar o mundo; ele convidava-

-nos a passar a sua frente e a esperá-lo

em um lugar que não era seu destino!

Ao invés de convidar-nos a escrever,

ele convidava-nos a produzir uma obra.

Ao invés de convidar-nos a procurar

a transparência, ele convidava-nos a

respeitar as opacidades.

Post-scriptum

© U

N P

ho

to/

Jean

Mar

c Fe

rré

1. Título de um romance publicado em 1993 e de

uma obra teórica editada em 1997, Tout-Monde

(Todo-Mundo) tornou-se um dos conceitos

fundadores do pensamento universalista de

Édouard Glissant. O Institut du Tout-Monde foi

inaugurado em Paris com o apoio do Conselho

Regional do Departamento de Île de France e do

Ministério do Ultramar francês. Disponível em:

<www.tout-monde.com>.

5 0 . O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 0

Page 51: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

Se prestarmos bem atenção, ele

ergueu-se em total solidão, contra o mais

letal dos imperialismos: um pensamento

mutilado e mutilante a respeito do

mundo. Esse é o motivo pelo qual ele

irá permanecer como o homem que

derrubou os compartimentos estanques,

sem deixar de manter-se f iel à sua

Martinica e ao Caribe.

Ele tinha diante de si o enorme

continente da negritude, o soberano

império de um pensamento ocidental,

cujos críticos ele admirava (Rimbaud,

Breton, Arthaud, Segalen etc.). Ele

escolheu construir sua própria catedral,

recusando-se a ser colonizado. Em sua

honra, ela sempre foi erguida sobre

o alicerce da emancipação humana,

como é evidenciado pela criação do

Instituto Martinicano de Estudos (Institut

martiniquais d’études) e da revista

Acoma, por sua f iel dedicação ao Prêmio

Carbet do Caribe, pelo lançamento do

Prêmio Édouard Glissant, pela fundação

do Instituto do Todo-Mundo etc. Raros

foram aqueles que verdadeiramente

o compreenderam! Muitos tiveram

admiração por ele! É chegada a hora de

ler seus textos!

Para mim, escritor, originário de

Guadalupe, Glissant proporcionou a

amplitude de suas questões, o fervor

e a generosidade de suas respostas e

a exigência de habitar o mundo sem

qualquer chauvinismo.

Que sejamos gratos a ele por tudo

isso!

Post-scriptum

A ASSINATURA INDELÉVEL DE ÉDOUARD GLISSANT

“A miscigenação [no Caribe] não é um consentimento passivo de valores

impostos”, af irmava o escritor martinicano, Édouard Glissant, em um artigo

publicado no Correio da UNESCO, em 1981, sob o título “A vocação de

compreender o outro”. Esse texto havia sido escrito um ano antes da nomeação

de Glissant para o cargo de diretor da redação desse periódico, que ele iria

dirigir até 1988. “O Caribe aparece […] como lugar exemplar da Relação, espaço

em que várias nações e comunidades – cada uma com suas originalidades –

não deixam de compartilhar o mesmo futuro”; eis a opinião desse pensador

do universal, a quem devemos o conceito de Todo-Mundo. Ele considerava

miscigenação como encontro das diferenças, ao invés de def ini-la como simples

mistura de culturas, contribuindo assim para forjar a noção de diversidade

cultural defendida constantemente pela UNESCO.

Alguns meses depois de ter assumido a direção da redação do Correio

da UNESCO, Édouard Glissant publicou número intitulado “Guerra à guerra:

a palavra aos poetas” (novembro de 1982), com a participação de escritores

eminentes, como Adonis, Guinsberg, Labou Tan’si, Voznesensky, para citar

apenas alguns nomes.

Pouco depois, foram lançados edições dedicadas a “Teatros do mundo”,

“Civilizações do mar”, “Artes da América Latina”, “História do Universo”... O tom

tinha sido dado: o Correio da UNESCO af irmou-se internacionalmente como

fórum aberto para debates intelectuais. Esta “assinatura” de Édouard Glissant

deixa sua marca indelével nas páginas da nossa revista. – J. Šopova

Acesso aos artigos de Édouard Glissant publicados no Correio da UNESCO

http://www.unesco.org/new/fr/unesco-courier/edouard-glissant/

Visite igualmente o site de Édouard Glissant : www.edouardglissant.fr

Édouard Glissant foi sepultado em 9 de fevereiro de 2011, no cemitério do Diamante, na Ilha de Martinica, nos arredores desse memorial aos escravos, em Anse Cafard.

© Elena Spasova

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A que a Sra. atribui os avanços obtidos

pela Arábia Saudita quanto a educação

primária para todos, um dos Objetivos

de Desenvolvimento do Milênio?

Esse objetivo sempre foi planejado

com antecedência e de acordo com

as necessidades do país. Aliás, nunca

hesitamos em recorrer à assistência da

UNESCO ou das Nações Unidas para

que participem em tais esforços de

planejamento. Quanto à obtenção de um

sistema educativo perfeito, penso que se

trata de algo fora do alcance de qualquer

Estado. Entretanto, na Arábia Saudita,

conseguimos atingir o objetivo que

havíamos previamente fi xado: fornecer

serviços efi cazes à população e atender

às necessidades do país.

Há perspectivas de maior abertura

internacional para o sistema educativo

da Arábia Saudita?

Sempre houve intercâmbios com

outros países. Se observarmos a história

do nosso sistema de ensino, desde

a época do rei Abdelaziz (fundador

do reino da Arábia Saudita, no século

XIX), constatamos que, já naquela

época, estudantes eram enviados para

universidades em todo o mundo para

obter especialização em diferentes

áreas. Nosso sistema é internacional.

Neste momento, estamos construindo o

futuro em grande número de disciplinas.

Trata-se de um período fascinante para a

Arábia Saudita; com modelos formidáveis,

como a Universidade do rei Abdallah.

Atualmente, estamos concentrando

nossos esforços em pesquisa, um

setor que foi dinamizado, graças à

A PRINCESA LOULWAH da Arábia Saudita responde às perguntas de Linda Tinio, do Bureau de Planejamento Estratégico da UNESCO

criação dessa universidade, focalizada

precisamente nessa área.

Qual é o papel da Arábia Saudita

na promoção do diálogo entre as

culturas?

A iniciativa para esse diálogo partiu do

rei, tanto na Arábia Saudita quanto no

exterior. Ele é o principal incentivador.

A Arábia Saudita sempre acreditou no

diálogo. É muito importante. Não se

consegue nada sem o diálogo. Creio que

todos os projetos apresentados pelo rei –

seja em matéria religiosa, cultural, pessoal

ou política – baseiam-se nesse princípio.

Espero sinceramente que o resto do

mundo possa seguir seu exemplo.

Como a Sra. encara o futuro das

relações entre a UNESCO e a Arábia

Saudita?

Nossa colaboração com a UNESCO não

se limita à Fundação do Pensamento

Árabe: temos colaborado em várias

áreas. Espero que a universidade pela

qual sou responsável (Universidade de

Ef fat – Ef fat College) venha a colaborar

também com a UNESCO. Ainda não

somos muitos a garantir suporte às

ações da Organização, tampouco para

receber os benefícios do esplêndido

trabalho efetuado pela UNESCO no

mundo. A UNESCO é, acima de tudo,

um espaço para o diálogo, assim como

a política da Arábia Saudita. E isso só

pode melhorar.

Qual é, atualmente, o lugar da geração

jovem na Arábia Saudita??

A juventude é a nossa verdadeira

riqueza, e não o petróleo. Devemos,

com isso, orientar nossa ação em

favor de seu pleno desenvolvimento.

Pertenço a uma geração que fez

tudo por seu país. A geração que me

precedeu e que havia construído o

país também se dedicou inteiramente

à sua pátria. Agora, portanto, devemos

permitir que a próxima geração venha a

fazer o mesmo.

Esta seção, lançada pelo Bureau de

Planejamento Estratégico (BSP), no âmbito do

Programa de Prospecção da UNESCO aborda

temas de interesse para o público em geral e

para os Estados--membros da Organização. Ela

expõe opiniões, a f im de fortalecer a ref lexão,

o planejamento e a ação da UNESCO em suas

diferentes esferas de atuação.

Em perspectivaA nossa riquezaé a juventudeA princesa Loulwah considera que a Arábia Saudita passa

atualmente por “um período fascinante”. Mais que isso,

ela acredita que a verdadeira riqueza de seu país não é o

petróleo, mas a juventude.

Sua Alteza Real, a princesa Loulwah

Al-Faysal dedica-se à educação das

mulheres, assim como à ação social e

familiar. Desde 1994, ela dirige o Centro

Cognitivo e de Desenvolvimento de

Habilidades Al-Maharat (Al-Maharat

Cognitive and Skill Development

Center) de Jedá. E, desde 1999, ocupa

cargos proeminentes no Conselho

de Administração da Dar Al-Hanan

School e da Universidade de Eff at (Eff at

College), dois estabelecimentos de

ensino reservados às mulheres.

“Neste momento, estamos

construindo o futuro em grande

número de disciplinas. Trata-se

de um período fascinante para a

Arábia Saudita.”

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Post-scriptum

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A obra desses três gigantes da poesia

mundial – nascidos, respectivamente,

na Índia, no Chile e em Martinica –

constitui a trama de um novo projeto da

UNESCO: Tagore, Neruda, Césaire, por

um Universal Reconciliado. Inaugurado

em junho de 2011, tem como objetivo

suscitar a ref lexão sobre os valores

universais da humanidade nos círculos

acadêmicos e artísticos.

“A ideia do projeto foi lançada, em

2008, por Olabiyi Babalola Joseph Yai,

delegado-permanente de Benin junto

à UNESCO e presidente do Conselho

Executivo da Organização”, explica

Françoise Rivière, que, na ocasião,

exercia a função de subdiretora-geral da

UNESCO para a Cultura. “Ele foi apoiado

pelas delegações permanentes do

Chile, da França e da Índia”, acrescenta

ela, antes de abordar o objetivo

propriamente dito: “tratava-se, acima

de tudo, de estabelecer um vínculo

entre esses escritores – que haviam

marcado sua época – e o atual contexto

mundial, observando os problemas

contemporâneos, à luz da obra de cada

um deles”.

Entre as questões que atualmente

se formulam com maior acuidade

está a temática relativa à alteridade,

que chama particularmente a atenção

desse projeto, como é sublinhado por

uma de suas criadoras, Annick Thébia-

Pensamento universal Tagore, Neruda, Césairea poesia a serviço

de um novo humanismo

-Melsan. “A relação com o outro deixou

de ser uma questão teórica”, af irma

essa especialista em Aimé Césaire,

que publicou uma entrevista com o

criador do movimento da Negritude,

no Correio da UNESCO, em maio de

1997. “Nunca chegamos a conceber

nossa singularidade como o oposto

e a antítese da universalidade […].

Nosso pensamento predominante

foi sempre uma preocupação

humanista, e pretendemos que ela

criasse raízes”, assim af irmava o poeta

martinicano, que acrescentava: “pelo

aprofundamento do singular é que

se vai ao universal”. Rabindranath

Tagore já tinha feito tal af irmação,

com palavras que lhe são peculiares,

na carta enviada a um amigo, datada

de 1921: “em sua essência, todos os

homens são dwija, nascidos duas

vezes... eles nascem, em primeiro lugar,

para sua comunidade e, em seguida,

para sua plena realização, eles devem

nascer para o vasto mundo”(Correio

da UNESCO, dezembro de 1961). Em

carta para outro amigo, redigida em

1934, ele indicava: “a individualidade

é preciosa; é unicamente por seu

intermédio que somos capazes de

realizar a universalidade” (Correio da

UNESCO, janeiro de 1994). Por sua vez,

Pablo Neruda, em discurso na UNESCO,

em 1972, no momento em que era

delegado-permanente do Chile junto

à Organização, af irmava o seguinte:

“estou longe de ser um individualista:

creio que o homem só é livre, na

medida em que é coletivista”. Em

termos poéticos, essa idéia traduz-se em

seu poema “Canto ao Exército Vermelho

NOÉMIE ANTONY e JASMINA ŠOPOVA

em sua chegada às portas da Prússia”

(Canto al Ejército Rojo a su llegada a

las puertas de Prusia): “tive vontade de

cantar para vocês, para toda a terra, esta

canção de palavras obscuras, a f im de

que sejamos dignos da luz que chega”.

Outros temas de convergência

foram identif icados no âmbito do

projeto Tagore, Neruda, Césaire, por

um Universal Reconciliado, que visa a

desenvolver a ref lexão, em particular,

sobre cinco tópicos: a poesia como

mediadora entre o homem e o mundo;

um novo pacto entre o homem e a

natureza; a emancipação contra todas

as formas de opressão; uma visão das

relações entre a ciência, o homem e a

ética; a herança pedagógica dos três

autores. A f im de criar um laboratório

de pesquisa e de criação voltado para

essas formas de ref lexão, a UNESCO

estuda constituir um comitê de

patrocínio composto por intelectuais,

cientistas e artistas, com a incumbência

de pensar a evolução do projeto.

“Uma verdadeira rede de parceiros foi

criada para implementar esse projeto”,

explica Edmond Moukala, coordenador

do programa. “Conseguimos criar

vínculos com universidades, centros

de investigação, ONGs, associações,

festivais e, até mesmo, com a

mídia, com o objetivo de organizar

“Mesmo que cada um tenha evoluído em esferas culturais distintas e sem praticamente

se terem encontrado no decorrer de suas vidas, esses três gigantes do pensamento e

da poesia desenvolveram visões convergentes “, af irma Irina Bokova, diretora-geral da

UNESCO, ao falar de Rabindranath Tagore, Pablo Neruda e Aimé Césaire.

“A revolução a se fazer na

Martinica será em nome do pão,

é claro, mas também em nome

do ar e da poesia.”

Aimé Césaire

Post-scriptum

O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 1 . 5 3

“A poesia é sempre um ato de

paz. O poema nasce da paz

como o pão nasce da farinha.”

Pablo Neruda

Page 54: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

conferências e exposições ou de

incentivar projetos de pesquisas

científ icas e documentários.

Como escritores comprometidos

e atores da história, Rabindranath

Tagore, Pablo Neruda e Aimé Césaire

compartilharam visão ao mesmo tempo

humanista e poética do mundo. O

desaf io do projeto que lhes é dedicado

consiste em questionar as consciências

no mundo contemporâneo,

mobilizando atores dispostos a ref letir

sobre o humanismo que se constrói

hoje. Desaf io sutilmente def inido

pelo poeta haitiano, René Depestre:

“essa viagem de exploração deveria

nos conduzir do universo particular

de cada um dos três autores a outras

áreas culturais e a um todo unif icado

universo”.

RABINDRANATH TAGORE

(1861-1941)

aristocrata indiano, poeta,

dramaturgo, músico, artista plástico

e educador, é Prêmio Nobel de

Literatura de 1913. Sua obra

preconiza o respeito pela identidade

cultural e linguística, assim como

o diálogo com o Ocidente. Ele

aborda as questões fundamentais

formuladas pelos povos que lutaram

pela independência política.

PABLO NERUDA

(1904-1973)

poeta chileno, diplomata e

dramaturgo em favor da defesa e

do reconhecimento das civilizações

ameríndias. Ele lutou contra a

ditadura, a opressão, a exclusão social

e racial, a injustiça e a exploração

econômica. Sua obra foi agraciada

com o Prêmio Nobel, em 1971, dois

anos antes de sua morte e do golpe

militar no Chile.

AIMÉ CÉSAIRE

(1913-2008)

poeta, dramaturgo e político

originário de Martinica, é um dos

fundadores do movimento da

Negritude. Sua obra constitui uma

forte crítica ao colonialismo, ao

imperialismo e à escravidão. Ele

fi gura entre os principais pensadores

da libertação política e cultural dos

povos colonizados, em particular,

na África.

LER:

“Uma arma milagrosa contra o mundo amordaçado” (Une arme miraculeuse

contre le monde bâillonné), entrevista com Aimé Césaire, Correio da UNESCO,

maio de 1997, p. 4-7.

http://unesdoc.unesco.org/images/0010/001059/105969fo.pdf#105954

“Rabindranath Tagore: a verdade, fundamento do ser” (Rabindranath Tagore: la

vérité, soutien de l’être), Correio da UNESCO, janeiro de 1994, p. 44-45.

http://unesdoc.unesco.org/images/0009/000969/096900fo.pdf#96898

“Rabindranath Tagore: uma voz universal” (Rabindranath Tagore: une voix

universelle), Correio da UNESCO, dezembro de 1961, p. 4-27.

http://unesdoc.unesco.org/images/0006/000643/064331fo.pdf

“Rabindranath Tagore: fui seduzido pelo encantamento das linhas”

(Rabindranath Tagore: Je suis tombé sous l’enchantement des lignes), Correio da

UNESCO, agosto de 1957, p. 16-20.

http://unesdoc.unesco.org/images/0006/000676/067651fo.pdf#67668

“Rabindranath Tagore: sentinela do Leste” (Rabindranath Tagore, sentinelle de

l’Est), Correio da UNESCO, Supplemento, maio de 1949, p. 7.

http://unesdoc.unesco.org/images/0007/000739/073970fo.pdf#73982

Para outras informações sobre o projeto, entre

em contato com Emond Moukala, especialista em

diálogo intercultural e coordenador do programa:

[email protected] ;

“Cada um de nós é como um verso isolado em um poema, ele sente perfeitamente que rima com outro

verso e deve encontrá-lo, sob pena de nunca alcançar sua própria realização.”

Rabindranath Tagore

5 4 . O C O R R E I O D A U N E S C O . A B R I L J U N H O 2 0 1 0

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Post-scriptum

Page 56: Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade; The

Cinco eminentes

mulheres de

ciência – uma

por continente

– receberam,

em 3 de março,

na sede da

UNESCO, em

Paris, o Prêmio

L’Oréal/UNESCO

para Mulheres

na Ciência 2011.

Silvia Torres-Peimbert (México) Astrofísica © V. Durruty e P. Guedj para a

Fundação L’Oréal

Vivian Wing-Wah Yam(China)Química © V. Durruty e P. Guedj para a

Fundação L’Oréal

Faiza Al-Kharaf i (Kuwait) Química© V. Durruty e P. Guedj para a

Fundação L’Oréal

Anne L’Huillier (Suécia)Física atômica© V. Durruty e P. Guedj para a

Fundação L’Oréal

Jillian Banf ield (Estados Unidos) Ciências da terra© V. Durruty e P. Guedj para a

Fundação L’Oréal