mulheres kaingang enquanto agentes sociopolíticas · 2016. 7. 5. · fonte: elaborado pelo...
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Mulheres Kaingang enquanto agentes sociopolíticas
Yasmin dos Santos Sagás1
Ana Lúcia Vulfe Nötzold2
Introdução
Para entendermos melhor como se dá a participação das mulheres dentro da
sociopolítica Kaingang é importante contextualizarmos um pouco sobre a história desse
povo. Os Kaingang conhecidos por muito tempo como coroados devido ao seu corte de
cabelo tradicional, são pertencentes ao tronco linguístico Jê e habitam os atuais estados
de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Um dos seus principais
alimentos era o pinhão, assim, eram as araucárias o que definia os limites das aldeias.
Ainda fazia parte de sua alimentação, a caça de animais silvestres, tais como o tatu
(prática frequente ainda hoje) e frutos da mata.
Este povo é tradicionalmente dividido em metades exogâmicas, Kamé e Kairu,
divisão presente no mito de origem; que rege a organização social, casamentos,
nomeação, pinturas corporais e rituais. Outros aspectos importantes para a pesquisa aqui
apresentada são a patrilinearidade e a matrilocalidade deste povo, ou seja, a família é
reconhecida pela linhagem paterna, mas quando os casamentos acontecem o marido vai
morar com a família da esposa, assim sua força de trabalho passa a pertencer à família
da mesma. Na etnografia de Telêmaco Borba Actualidade Indigena é realizada uma
análise sobre a forma de casamento no período por ele observado, na segunda metade
do século XIX (1863-1908), assim se refere:
os homens (...) quando encontram mulher ou menina de seo gosto, pedem-a
ao pae, fazendo-lhe algum presente; se este annue ao pedido, o noivo fica
aggregado á família da noiva, que, se é moça, fica-lhe pertencendo, sem
necessidade de cerimônia alguma; se esta é ainda menina, fica o noivo, pela
mesma forma aggregado ao sogro, a quem faz todo o serviço, como seja:
caçada, roças, lenha, etc; até que a noiva attinja de dez a doze annos
(BORBA,1908, p. 11).
1 Acadêmica do curso Licenciatura e Bacharelado em História/UFSC. Bolsista de Iniciação Científica do Obeduc/
Capes/DEB/Inep. E-mail: [email protected] 2 Orientadora da pesquisa, etno-historiadora, professora Associada IV do Departamento de História da UFSC.
Coordenadora do Observatório da Educação/UFSC. E-mail: [email protected]
Tradicionalmente as mulheres Kaingang também não exerciam cargos políticos
significativos, eram responsáveis pelo preparo dos alimentos, por prover a água e lenha,
semear, plantar e colher os campos, além do transporte dos objetos em viagens e
confecção de objetos de uso doméstico, como cestarias. Todos estes trabalhos eram
realizados pelos homens, só em casos muito específicos, como no supracitado ou em
castigos por desobediência ao cacique, sendo o individuo “forçado” a prover sua própria
alimentação e lenha, o que era visto pelos Kaingang como uma grande humilhação,
preferindo alguns a morte, por execução do que a realização destes serviços; outro caso,
não raro, era efetuar estes serviços como um presente ao cacique principal, que em
alguns casos poderia retribuir, inclusive “cedendo” uma mulher (MABILDE, 1983, p.
81). Aos homens cabia, mais especificamente às lideranças, decisões políticas a cerca
do grupo, a caça e a proteção em guerras inter tribais.
As mulheres Kaingang dentro de tal sociabilidade são conhecidas pela etnografia
como sendo submissas e subjugadas. Em Apontamentos sobre os indígenas selvagens
da nação coroados dos matos da província do Rio Grande do Sul, Mabildetambém
relata sobre os “empréstimos” de mulheres em troca de objetos como facas. Segundo
ele:
os coroados (...) não são, em geral, ciumentos, o que se pode atribuir ao amor
nulo ou quase nulo que têm às suas mulheres e à condição servil em que as
têm, considerando-as antes escravas, do que esposas ou companheiras, e
parecendo precisar delas, somente, para propagação de sua raça (MABILDE,
1983, p. 64).
No entanto, muitas mudanças ocorreram após o contato com os não índios e os
aldeamentos, o que mudou visivelmente os papéis atribuídos a partir dos gêneros.
Recentemente essas mulheres vêm se mostrando cada vez mais ativas dentro da política,
seja no âmbito local ou nacional. Segundo Pacheco, “é impossível deixar de lado a
influência de Vanuíre, a indígena que teve o grande papel no aldeamento dos Kaingang
paulistas, ou mais recentemente a heroica Fendô3 na luta pela demarcação do Toldo
Chimbangue” (PACHECO, 2004, p. 36).
3 Féndô: Ana Luz Forte do Nascimento Féndô, é um caso de liderança Kaingang feminina, que participou ativamente
das lutas pela recuperação das terras de seu povo. Com o apoio do CIMI – Conselho Indigenista Missionário os
Kaingang levaram sua causa para o plano político. Em 1985, em plena ditadura militar, integrou a comissão que foi a
Atualmente em Santa Catarina os Kaingang estão distribuídos em cinco Terras
Indígenas e uma reserva. Somando-se aos demais Kaingang do sul do Brasil
contabilizam mais de 60 mil pessoas, compondo a maior população indígena dessa
região (NÖTZOLD, 2012, p. 47). No entanto, a pesquisa aqui apresentada se insere
como um subprojeto no âmbito do Observatório da Educação/OBEDUC “Ensino,
saberes e tradição: elementos a compartilhar nas escolas da Terra Indígena Xapecó/SC”
do Laboratório de História Indígena/UFSC. Pretende abordar assim as mulheres
Kaingang, mais especificamente a sua participação política dentro de suas comunidades,
quer seja na esfera pública ou em âmbito doméstico, pois ambas influenciam nas
decisões familiares e na vida da comunidade de maneira geral. Embora este estudo
tenha como foco a Terra Indígena Xapecó e o atual Estado de Santa Catarina, traz outras
fontes e pontos de análise de outras comunidades Kaingang, pertinentes a discussão.
A referida terra indígena se localiza entre os municípios de Ipuaçu e Entre Rios,
no oeste de Santa Catarina. Possui uma população formada majoritariamente pelos
Kaingang (5.105 pessoas) e por um grupo Guarani (111 pessoas), contabilizando 5.216
pessoas. A Terra Indígena é composta por 16 aldeias: Aldeia Jacú (Sede), Olaria,
Pinhalzinho, Cerro Doce, Serrano, Baixo Samburá, Água Branca, Fazenda São José,
Matão, Paiol de Barro, Limeira, João Veloso, Manduri, Guarani, Barro Preto e Campos
Oliveira, estando distribuídas em uma área de 15.623 hectares (NÖTZOLD, 2014, p. 1).
Nos mapas abaixo podemos observar o território histórico dos Kaingang, a localização
da T. I. Xapecó e a distribuição das aldeias.
Brasília para tratar das Terras do Chimbangue, durante três meses participou de cerca de 100 reuniões com ministros
e seus assessores. Como testemunha do sofrimento do seu povo, realizava vigílias e fazia greves de fome. Na FUNAI
houve perto de uma centena de encontros, o resultado foi o reconhecimento pelo comitê Interministerial de que a área
era de ocupação imemorial dos Kaingang. Uma fonte relevante sobre sua história é o documentário FÉNDÔ -
Tributo a uma Guerreira, realizado pela Unoesc e Unisul.
Figura 1. Mapa de localização da Terra Indígena Xapecó no sul do Brasil e Território histórico dos povos
indígenas meridionais.
Fonte:Elaborado por Carina S. de Almeida, Projeto OEEI/LABHIN/UFSC. Acervo LABHIN/UFSC,
2013.
Figura 2. Localização das aldeias que compõe a Terra Indígena Xapecó em 2014.
Fonte: Elaborado pelo geógrafo Alexandre L. Rauber e Carina S. de Almeida a partir de base cartográfica
IBGE (2011). Acervo LABHIN/UFSC, 2015.
Os kófa4
Nas culturas indígenas de modo geral, os velhos e as velhas têm um grande
reconhecimento da comunidade, pois são pessoas com um grande acúmulo de
experiências e saberes, que ajudam na conservação das memórias, dos costumes,
conhecimentos medicinais e da própria língua. Entre os Kaingang não é diferente, estes
têm os kófa (idosos) como figuras fundamentais para a manutenção das tradições,
devido as suas sabedoria e ações em momentos de dificuldades. O mito Nhara, infra
citado é bastante representativo para a questão Kaingang, demonstrando a visão deste
povo a cerca de seus velhos (NÖTZOLD, 2004).
Meos antepassados alimentavam-se de fructos e mel; quando estes faltavam,
soffriam fome. Um velho de cabelos brancos, de nome Nhara, ficou com dó
delles; um dia disse a seos filhos e genros que, com cacetes, fizessem uma
roçada nos traquaraes e a queimassem. (...) disse o velho: - Agora vocês
amarrem os cipós a meopescoço, arrastem-me pela roça em todas as
direcções; quando eu estiver morto, enterrem-me no centro della e vão para
os mattos por espaços de tres luas. Quando vocês voltarem, passado esse
tempo, acharão a roça coberta de fructos que, plantados todos os annos,
4 Kofá: significa Velho na língua Kaingang, que na concepção indígena é escalado ao posto da sabedoria indígena.
livrarão vocês da fome. (...) <<E, de mais, eu já estou velho e cançado de
viver.>> Então, com muito choro e grita, fizeram o que o velho mandou e
foram para o matto comer fructas. Passadas as tres luas, voltaram e
encontraram a roça coberta de uma planta com espigas, que é o milho, feijão
grande e morangos. Quando a roça esteve madura, chamaram todos os
parentes e repartiram com eles as sementes. (...) Demos ao milho o nome
Nhara em lembrança do velho que tinha esse nome, e que, com o seo
sacrifício, o produzio (BORBA, 1908, p. 23).
A transcrição deste mito sintetiza as razões pelas quais os Kaingang valorizam
seus velhos. Existe uma relação de reciprocidade, de respeito e consideração pelo
cuidado e pela sabedoria, que estes Kofá demonstram na comunidade. Nhara deu sua
própria vida para que os mais novos pudessem se nutrir, surgindo a partir dele
alimentos, entre eles o milho. A importância desse alimento é tão significativa para os
Kaingang, que o milho recebeu o nome de Nhara. Assim os Kaingang entendem que “o
velho demonstra total desprendimento e abnegação em favor dos mais novos, pois ele já
viveu sua vida” (NÖTZOLD, 2004, p. 47).
Além disto, pelos conhecimentos acumulados durante a vida, são os velhos os
Kujá1, que conhecem os remédios do mato, realizam os benzimentos, as curas, o ritual
de culto aos mortos, chamado Kiki e os batismos indígenas, já que conhecem os nomes
tradicionais Kaingang. Fatos importantes para um povo que atualmente sente a
necessidade de preservação da identidade cultural e práticas ancestrais, pois muito se
perdeu e foi ressignificado no pós contato com os não indígenas. Então os velhos são
requisitados e tem constante participação na educação das crianças e dos mais jovens na
Terra Indígena Xapecó, e esses conhecimentos são passados através de registros orais
de geração a geração.
Nas sociedades de tradição oral, as histórias estão sempre a uma geração de
serem extintas, sempre na iminência de acabarem junto à geração que detém
a lembrança dessas histórias, por isso prezam os velhos e suas memórias (...)
‘Os velhos são as nossas bibliotecas’ (BERGAMASCHI, 2010, p. 65).
Essas elucidações explicam o motivo pelo qual na maioria dos casos as figuras
de liderança feminina são de idade avançada. Ou seja, por conta do status que as
mesmas adquiriram frente aos outros membros do seu grupo, pela sabedoria e ações
pelo bem da comunidade. Na T. I. Xapecó podemos citar algumas importantes figuras
femininas como, a professora Dona Maria Virgínia, a parteira Dona Divaldina Luiz e a
anciã Dona Emília Pacífico (NÖTZOLD, 2004, p. 52).
Figura 3. Dona Divaldina Luiz, conhecida popularmente como Dona Diva.
Fonte: Foto do acervo LABHIN/UFSC.
Figura socializadora
Em todas as sociedades humanas, salvo raras exceções, uma participação mais
ampla da cultura é permitida ou reservada aos homens (LARAIA, 2002, p. 80). Entre os
Kaingang não é diferente, desde a infância são atribuídos papéis para as meninas e
meninos,onde aprendem através da observação e participando das atividades cotidianas
da família, principal agente socializadora das crianças Kaingang. A formação da
identidade se dá pelo processo de socialização, que é sempre incompleto, pois não
abrange todo o estoque de conhecimento de uma sociedade. Assim diferentes indivíduos
absorvem diferentes conteúdos, que ajudam a constituir os múltiplos papéis, atitudes e
conhecimentos, para a formação de diversos “eu social” (PEREIRA, 1998, p. 21).
A cultura, mais do que a herança genética, determina o comportamento do
homem e justifica as suas realizações. (...) é um processo acumulativo,
resultante de toda a experiência histórica das gerações anteriores. Este
processo limita ou estimula a ação criativa do indivíduo (LARAIA, 2002, p.
48).
Portanto, a participação do sujeito em sua cultura será sempre limitada, pois
ninguém é apto para participar de todos os seus elementos.
No caso dos Kaingang o que se registra é a existência de tipos sociais
claramente definidos e um processo de incorporação precoce desses tipos
sociais. Ocorre, desta feita um processo de tolhimento, bastante acentuado,
das múltiplas possibilidades de ser mulher ou homem no mundo social a que
pertencem (PEREIRA, 1998, p. 125).
Assim a vivência destas crianças é perpassada por definições de papéis
atribuídos a mulher e ao homem. As meninas aprendem desde cedo a desempenhar
funções do lar, enquanto os meninos aprendem serviços realizados fora do âmbito
doméstico como carregar água ou lenha e levar recados (MELATTI, 1976, p. 108).
Todo o processo de aprendizagem dos papéis sociais entre os Kaingang não é brusco, é
por meio das brincadeiras e da participação na vida comunitária que estes vão sendo
interiorizados gradativamente, até que sejam incorporadas novas exigências. Mas “do
ponto de vista social impõem-se para essas meninas condições pré-definidas. Ou seja,
continuamente são levadas a ser o que muitas já o foram” (PEREIRA, 1998, p. 127).
Quanto aos meninos,
as atividades nas quais se envolvem, de modo geral, são de caráter opcional,
quer dizer, realizá-las ou não está sob o controle do menino ou do grupo.
Assim, estão desde cedo envolvidos com opções do que fazer, restritas, é
claro, as atividades existentes na área e mais especificamente relacionadas
nesse trabalho como de lazer. Embora para esse grupo não se possa
estabelecer cortes precisos entre trabalho e lazer. (PEREIRA, 1998, p. 128).
Embora as figuras principais de socialização sejam da família, principalmente os
meninos estabelecem uma grande variedade de relações sociais no seu dia-a-dia, pelo
fato de estarem grande parte do dia fora de casa, nas andanças, brincando, ajudando os
pais e olhando os irmãos mais novos5.
As mulheres são as principais mediadoras deste processo de aprendizagem e
socialização, especialmente na primeira etapa desta, pois são na maioria das vezes as
responsáveis pela educação das crianças e jovens; não podendo ser descartado, porém a
efetiva participação dos irmãos mais velhos nesse processo, especialmente das irmãs
que em alguns casos de ausência da mãe podem substituí-la quase que integralmente. A
relação pai-filho se intensifica “por volta de 10-12 anos em razão do envolvimento
destes no trabalho. A mãe continua atuando como figura central no processo de
desenvolvimento da menina” (PEREIRA, 1998, p,122). Estas são grandes conselheiras,
orientam para aprenderem a trabalhar, para arrumarem um bom casamento; e contam
aos filhos o que faziam quando pequenas e sobre os conselhos que também receberam
de seus pais.
Podemos constatar que, “a organização do trabalho na sociedade Kaingang
centrada na ‘divisão sexual do trabalho’, determinava tarefas especificas a cada um dos
gêneros” (SACCHI, 1999, p.99).Como já abordado, após o contato com a sociedade não
indígena muitos dos papéis antes atribuídos a mulheres e homens, marcados por tais
fronteiras mudaram, para a sobrevivência/subsistência do grupo e pela dinâmica cultural
(PACHECO, 2004, p. 51). Entretanto a maior responsabilidade pelos afazeres
domésticos e pelas crianças continua sendo feminina, deste modo os homens realizam
essas funções quando a mulher não pode fazê-las por conta do trabalho fora de casa.
Assim mesmo quando as mulheres possuem uma dupla jornada de trabalho, são
somente “ajudadas” pelos companheiros, pois se entende que o trabalho em questão, é
feminino.
Quando essas mulheres saem do âmbito doméstico, trabalhando fora, continuam
cuidando dos filhos e da casa, atribuindo em alguns momentos essas tarefas a outras
mulheres, seja de forma remunerada ou através de relações de reciprocidade,
5 Uma fonte interessante a respeito da Infância Kaingang, é o Trabalho de Conclusão de Curso, desenvolvido no
Curso de Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica – UFSC, de pelo professor indígena Valdemir
Pinheiro. O trabalho tem como título: INFÂNCIA KAINGANG NA TERRA INDIGENA XAPECÓ- SC: Saber e
Aprender. E encontrasse disponível no endereço eletrônico:
http://licenciaturaindigena.ufsc.br/files/2015/04/Valdemir-Pinheiro.pdf. Acesso em: 06/05/2016.
principalmente entre parentes mais velhas, como avós. Pode-se dizer que essas relações
se dão há muito tempo e que foram observadas inclusive por etnólogos como Mabilde.
Este relata por volta de 1840, que tomar conta das crianças ficava ao encargo das
mulheres mais velhas, “voltando para o colo da mãe para ser amamentada ou, quando
esta não tem o que fazer, para ser acariciada” (MABILDE, 1983, p.51).
Esta dificuldade não pode ser totalmente resolvida com a inserção de creches
como nas sociedades ocidentais, pois a socialização das crianças pela família e
comunidade é fundamental para que incorporem as ações reservadas para as mulheres e
homens indígenas; e se tornem de fato membros desse grupo. Porém, hoje a presença de
creche ou escola infantil, chamada de pré-escolar é assunto constante e em algumas
aldeias já se observa a presença desses espaços, que ficam ao encargo do município e
com profissionais Kaingang. Algumas famílias mais tradicionais não aderem à pré-
escola, outras são obrigadas a adaptar-se dependendo das circunstâncias. Visto que as
mães e os pais são demandados a trabalhar em empresas fora da aldeia, e para que a
criança não fique desamparada essa é uma das saídas.
Sendo as figuras femininas as principais responsáveis pela socialização dos
filhos, estas estão sempre ligadas às atitudes e decisões tomadas pela prole.
Mesmo quando já se tornaram adultos, os homens Kaingang devem respeito a
seus pais, em especial à mãe, que sempre exercerá certa influência e controle
sobre os atos dos/as filhos/as. Em mais de uma ocasião, em diferentes áreas
Kaingang, presenciou-se situações em que as mulheres – e na falta das mães,
as esposas – aconselharam e decidiram os rumos a serem tomados pelos
filhos ou marido. Outras vezes, foram também as mulheres que repudiaram
ações que representavam qualquer desvio de conduta dos seus entes perante
demais membros do coletivo indígena (ROCHA, 2012, p.123).
Deste ponto podemos afirmar que as mulheres tem espaço nas decisões políticas
a cerca do grupo, ainda que este espaço seja considerado por muitos periférico. A
sabedoria dessas mulheres, especialmente as mulheres velhas, é levada em conta pelo
grupo no âmbito privado, podendo se estender ao público.
As Kaingang enquanto agentes políticas
Na sociopolítica Kaingang a participação feminina é consolidada
estrategicamente no âmbito familiar, como articuladoras e conselheiras nas decisões dos
maridos e filhos, que são sem dúvida aqueles que detêm o maior poder de fala dentro de
tal organização política, atendendo os papéis de gênero estabelecidos cultural e
socialmente. Inevitavelmente as relações de gênero atravessam toda a sociedade, a
medida que organizam nossas vivências/experiências no contexto social, de acordo com
o sexo. As desigualdades e posições sociais de homens e mulheres são definidas pelo
mesmo, dialogando com outras questões como, classe e raça. Essa “oposição público:
masculino/ privado: feminino é o modelo no qual as relações de gênero estariam
inseridas nas sociedades tradicionais Jê” (SACCHI, 1999, p. 20). Assim, como em
muitas outras sociedades, sejam elas indígenas ou não.
Entre o povo Kaingang, mesmo que os homens estejam no centro das lideranças,
“é comum que (...) decisões sejam adotadas somente após a consulta das opiniões das
mulheres” (ROCHA, 2012, p. 118). Essa prática tradicional já havia sido observada por
Borba durante o século XIX, este assim se refere “os maridos tratam as mulheres com
muita brandura, consultam-as em seos negócios” (BORBA, 1908, p. 12). É quando as
reuniões são paralisadas e os homens voltam para suas casas, que as mulheres podem
dar sua opinião. Então na retomada de tais reuniões os homens expõem muitas vezes,
essas opiniões como se fossem ideias próprias. Entende-se a partir deste ponto, que
mesmo que os discursos e as ideias das mulheres não sejam ouvidos por toda
comunidade, ele se faz presente e revelado de importância na mesma. As reuniões
seriam uma maneira de ratificar o que já foi decidido em casa pela família, onde a
participação feminina é fundamental. “Mesmo que de modo velado e/ou independente
de participação em contextos institucionais ou quase institucionais como facções,
associações, partidos, Estado, as mulheres têm integrado os processos organizativos do
fazer política” (ROCHA, 2012, p. 125).
Como já referenciado de certa forma este assunto pode ser tratado de forma
velada por alguns integrantes deste grupo, inclusive pelas mulheres. Em entrevista a
Andréia Pacheco, em 2004, quando perguntadas a cerca da participação das mulheres na
política da Terra Indígena Xapecó, se são ou não ouvidas, duas professoras
entrevistadas preferiram não responder. Possivelmente por ser uma questão difícil de
tratar e de se posicionar, mesmo para figuras tão estimadas dentro da comunidade, como
os(as) professores(as). Assim como para o povo Guarani e outros povos indígenas, a
escolha dos professores Kaingang passa antes de qualquer coisa pela aprovação das
lideranças da aldeia, pois os professores serão muitas vezes mediadores da comunidade
e das antigas lideranças frente a sociedade ocidental (ROSA, 2009, p. 115).
Algumas respostas obtidas falam a cerca do trabalho coletivo, onde na maioria
das ocasiões os homens são os que expõem seus pontos de vista para as lideranças, o
que não impede que as demandas femininas sejam ouvidas e atendidas, como podemos
observar na fala de Marilde Luiz6:
Ela tem voz, mas não necessariamente. Ela ajuda o marido em casa, dá
opiniões, dá idéias, ela fala o que está certo, o que não está certo e ele é o
porta-voz. Mas hoje a mulher está tendo voz. Principalmente na política, a
mulher já está mais evoluída. (...) Se tiver alguma coisa errada, não, nós
temos o direito de discutir (ASSIS, LUIZ e SILVA; 2004, p. 5).
Se considerarmos que a vida privada é fruto da sociedade e que o pessoal é
também político, podemos perceber que a participação dessas mulheres na vida política
se dá ainda que por tabela, podendo ser entendida por muitos como uma sub-
representação, onde as mulheres não têm total autonomia e liberdade, embora tenham
interferência inegável. Assim, “a análise crítica das relações de poder nas esferas
convencionalmente entendidas como não públicas ou não políticas é necessária para se
compreenderem as consequências políticas dos arranjos privados” (MIGUEL; BIROLI,
2014,p. 33).
Faz sentido, assim, abandonar a visão de que esfera privada e esfera pública
correspondem a “lugares” e “tempos” distintos na vida dos indivíduos,
passando a discuti-las como um complexo diferenciado de relações, de
práticas e de direitos (...) permanentemente imbricados, uma vez que os
efeitos dos arranjos, das relações de poder e dos direitos garantidos em uma
das esferas serão sentidos na outra (MIGUEL; BIROLI, 2014, p. 33).
Por tanto, a vida pública e a vida privada não estão separadas, assim como a
esfera política não está separada da vida social, na medida em que a primeira pode
6 Marilde: é uma professora indígena e liderança na sua aldeia Pinhalzinho, na Terra Indígena Xapecó.
interferir na esfera da segunda e vice e versa. Sem entender tais arranjos não é possível
compreender a cerca de relações privadas que são vistas como voluntárias, mas que
podem resguardar padrões de autoridade que tem impacto no exercício da cidadania e
autonomia dos sujeitos na vida pública. Nesse sentido é que muitas mulheres vêem no
mercado de trabalho uma oportunidade de inserção na esfera pública, assim como uma
estratégia econômica para a manutenção das necessidades familiares.
Os trabalhos exercidos por essas mulheres hoje podem ser divididos em
trabalhos esporádicos e trabalhos regulares, no primeiro é comum a confecção de
artesanatos, trabalhos como lavadeiras, cuidadoras de crianças, empregadas domésticas;
nos trabalhos regulares essas mulheres assumem algumas funções, principalmente em
escolas, como professoras, auxiliares de limpeza e merendeiras, além de outros cargos
de grande importância comunitária como agentes de saúde. Sobrevindo à promulgação
da Constituição Federal de 1988, as mulheres jovens passaram a ganhar espaços
importantes na Educação Escolar Indígena e exercer a função de professoras em todos
os níveis de ensino nas escolas da Terra Indígena Xapecó. Algumas inclusive exercem
funções de liderança em direções de escolas, como a diretora da Escola I. E. B. Cacique
Vanhkrê, professora Anísia Fátima Magistrali Belino e a diretora da Escola I. E. F
Pinhalzinho, professora Creide Alípio.
Por fim, é importante enfatizar que nem sempre a fala feminina está renegada ao
espaço doméstico, como no caso emblemático de Ana Luz Forte do Nascimento Féndô,
já mencionada. Em 1985 ela integrou a comissão que foi a Brasília para tratar das Terras
do Chimbangue, obtendo como resultado o reconhecimento pelo comitê Interministerial
de que a área em questão era de ocupação imemorial dos Kaingang. Em entrevista
concedida a Clovis Antonio Brighenti, Dona Ana Féndô e sua filha Laudilina Veiga
contam sobre sua luta. Segundo Laudilina,
a mãe foi a Brasília ficou três meis sem vir pra casa, três meis. Ela sempre
ligava. Tava ela, os filhos mais velho, os irmão, tudo. Tava lá, ‘enquanto o
governo não der a decisão que a terra é nossa, é indígena, nóis não imo
vortá’. (...) Valeu muito a pena. Às vezes eu digo pros meus netinhos, que tão
brincando por ai, digo ‘óia, se a vó veia e eu e os teus tios não lidasse, não
sofresse não tinha o que vocês têm. Tem médico, tem casa pra morá, tem
terra pra morá, tem dentista, tem enfermeiro, tudo o que é cuidado!’(VEIGA,
FÉNDÔ; 2009, p. 2 e 5).
Ainda segundo Féndô “a gente fez até greve de fome, pra pode ganha! Tudo isso
passei”(VEIGA, FÉNDÔ; 2009, p. 9). Ela acabou se tornando um símbolo dessa luta,
pela maneira firme e direta, de suas colocações no campo político e para os meios de
comunicação.
Figura 3. Dona Ana Luz Forte do Nascimento, de nome indígena Féndô.
Fonte: Foto Conselho Indigenista Missionário – CIMI.
No presente momento algumas mulheres indígenas também atuam como
funcionárias da FUNAI como Azelene Kring Inácio Kaingáng; e outras atuam ou já
atuaram como lideranças políticas, como Iracema Nascimento, liderança Kaingang do
território da Borboleta e Maria Antônia Soares, que foi cacique da Terra Indígena da
Linha Glória ambas do Rio Grande do Sul.
Considerações finais
É importante salientar que são escassas as pesquisas no que se refere às mulheres
dentro da política indígena, talvez pelo olhar simplista com que observamos a questão,
sem muitas vezes enxergar as entrelinhas do processo e as estratégias dessas mulheres
para não serem excluídas do mesmo. É perceptível que as mulheres realizam
praticamente um trabalho comparado ou análogo ao trabalho de bastidores. Todos do
conjunto social, ou da sociedade sabem, inclusive ela da importância desse papel. E
pode-se arriscar afirmar de que se trata de uma característica cultural e que pelo
envolvimento e convívio com a sociedade em geral esses papéis sejam ressignificados.
Faz-se necessário um exercício constante de desconstrução etnocêntrica, tendo
em vista que a lente pela qual se enxerga o mundo é diferente em cada sociedade e
cultura, o que muitas vezes nos leva a considerar o nosso próprio modo de vida como o
mais adequado. Outro problema é que existem ainda menos fontes se levarmos em
conta apenas as mulheres Kaingang, o que exige do pesquisador uma maior
sensibilidade para identificar como o âmbito doméstico pode interferir nas esferas
públicas, já que são indissociáveis.
É preciso uma maior pesquisa e um melhor aprofundamento nas questões, para
ouvir e entender essas mulheres, suas ações políticas, os desdobramentos e implicações
deste processo dentro das comunidades indígenas. Essas questões não podem ser
esgotadas a priori, pelo problema da falta de fontes historiográficas a esse respeito e
pelo problema das fontes etnográficas, que em sua maioria foram escritas por homens,
que muitas vezes veem na figura do indígena o primitivo/atrasado, entre muitos outros
estereótipos. Importante salientar ainda, que se trata de um primeiro ensaio, pois a
pesquisa a respeito desta temática como já referido, é incipiente. Há que se realizar um
maior contato com essas mulheres através de novos e diferentes métodos de análise,
com novas entrevistas de história oral e observação em campo.
Considero que as mulheres Kaingang exercem, pois, um papel que ora pode ser
central e ora periférico dentro dos eventos políticos, decidindo sobre estratégias que
dizem respeito à família das mesmas e influenciando as decisões tomadas pelos homens
da família em âmbitos mais gerais. Contudo, nem sempre este processo se dá sem
embates das partes mais conservadoras das comunidades, o que não inviabiliza que
mudanças ocorram, dado a dinamicidade dos sistemas culturais, seja por fatores internos
ou externos.
Referências bibliográficas:
BERGAMASCHI, Maria Aparecida; MEDEIROS, Juliana Schneider. História,
memória e tradição na educação escolar indígena: o caso de uma escola Kaingang.
São Paulo: Revista Brasileira de História, v. 30, nº 60, 2010. p. 55-75.
BORBA, Telemaco. Actualidade Indigena. Coritiba: Typ e Lytog, A Vapor
Impressora Paranaense, 1908.
FÉNDÔ - Tributo a uma Guerreira. Realização de Unoesc, Unisul. Santa Catarina:
Rede Rua de Comunicação/Penna Filho Produções, 2000. (25 min.).
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: Um Conceito Antropológico. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2002.
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Entrevistas e depoimentos orais:
ASSIS, Sirlei Alves de, LUIZ, Marilde e SILVA, Cíntia Márcia da.Entrevista concedida
á Andréia Pacheco, em 2004. Terra Indígena Xapecó. Acervo: LABHIN – Laboratório
de História Indígena/UFSC. Fita cassete.
MENDES, Maria Virgínia e CAMPOS, Maria Librantina. Entrevista concedida á
Andréia Pacheco, em 2004. Terra Indígena Xapecó. Acervo: LABHIN – Laboratório de
História Indígena/UFSC. Fita cassete.
VEIGA, Laudilina da, FÉNDÔ, Ana Luz Forte do Nascimento. Entrevista concedida á
Clóvis Antônio Brighenti, em 2009. Toldo Chimbangue Chapecó. Acervo: LABHIN –
Laboratório de História Indígena/UFSC. Arquivo mp3: 40min e 16 seg.