mulheres do mata cavalo

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MULHERES DO MATA CAVALO: A EDUCAÇÃO NOS CAMINHOS DA RESISTÊNCIA NEGRA Barcelos, Silvânio Paulo de. Mestre em história [email protected] COMUNICAÇÃO ORAL – GT 15 Relações Raciais e Educação “Eu sou quilombola, bisneta de escravos, nós, quilombolas, não somos os invasores”. Foi com essas palavras ásperas e plenas de significados que Joana, integrante da comunidade do Mata Cavalo de Baixo, iniciou sua fala diante das autoridades e inúmeras pessoas do Quilombo 1 , em audiência pública realizada pela Comissão Federal de Combate à Violência no Campo, na cidade de Livramento, Mato Grosso, em 15 de Setembro de 2003. A manifestação dos remanescentes se deu, em parte, devido às ações de despejo realizadas pela Polícia Militar em 21 de Maio de 2003 2 , que terminou com a expulsão de trinta e cinco famílias quilombolas. Joana, como tantas outras mulheres do 1 Parte do documentário Sentinelas do Tempo: Mulheres Quilombolas contido no DVD A Terra e o Tempo: Vozes do Quilombo, produzido sob a direção de Sergio Brito, em 2006, e distribuído pela Terra do Sol Filmes. 2 De acordo com reportagem veiculada pelo jornal eletrônico Mídia Independente, o ano de 2003 foi marcado pela violência e ações de despejo no Mata Cavalo. Em 21 de maio, policiais invadiram o Quilombo para cumprir o mandado judicial expedido pelos Juízes Marcos José Siqueira e Teomaro Corrêa para reintegração de posse de duas fazendas. Foram despejadas no total trinta e cinco famílias sendo que na ação um quilombola foi preso por desobediência. Segundo o jornal “Depois de toda a opressão, ‘autoridades competentes’ como a ministra Matilde Ribeiro, da Secretaria Especial de Política da Promoção de Igualdade Racial, o governador Blairo Maggi, deputado federal Carlos Abicalil e a senadora Serys Slhessarenko, vão ao quilombo fazer vistoria e reunir-se com o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos”. Disponível em http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2003/05/255267.shtml acesso em 12 de Janeiro de 2011.

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Artigo publicado nos anais SEMIEDU 2011 UFMT (CD)

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Page 1: Mulheres do mata cavalo

MULHERES DO MATA CAVALO: A EDUCAÇÃO NOS CAMINHOS DA RESISTÊNCIA NEGRA

Barcelos, Silvânio Paulo de.Mestre em história

[email protected]

COMUNICAÇÃO ORAL – GT 15 Relações Raciais e Educação

“Eu sou quilombola, bisneta de escravos, nós, quilombolas, não somos os invasores”.

Foi com essas palavras ásperas e plenas de significados que Joana, integrante da comunidade

do Mata Cavalo de Baixo, iniciou sua fala diante das autoridades e inúmeras pessoas do

Quilombo1, em audiência pública realizada pela Comissão Federal de Combate à Violência no

Campo, na cidade de Livramento, Mato Grosso, em 15 de Setembro de 2003. A manifestação

dos remanescentes se deu, em parte, devido às ações de despejo realizadas pela Polícia Militar

em 21 de Maio de 20032, que terminou com a expulsão de trinta e cinco famílias quilombolas.

Joana, como tantas outras mulheres do Quilombo, personaliza o ideal da resistência negra à

opressão, uma voz inquieta que se destaca frente aos poderes econômicos de uma elite

fundiária acostumada a mantê-la à margem do sistema que representa os poderes constituídos

naquela região. Ao declarar que eles, os quilombolas, não eram os invasores, como foram

classificados naquela época, ela se reporta, com muita razão, à própria história da cadeia

dominial do imóvel da antiga Sesmaria Boa Vida3. Como descendentes diretos daqueles

escravos que foram beneficiados com o ato de doação das terras constituem-se,

inexoravelmente, em seus herdeiros legítimos de fato e de direito. Sua voz firme e desafiadora

revela bem mais que simples disposição de luta por ideais, no íntimo desvela toda uma

condição social moldada na têmpera de vidas forjadas pelo instinto da sobrevivência.

1 Parte do documentário Sentinelas do Tempo: Mulheres Quilombolas contido no DVD A Terra e o Tempo: Vozes do Quilombo, produzido sob a direção de Sergio Brito, em 2006, e distribuído pela Terra do Sol Filmes. 2 De acordo com reportagem veiculada pelo jornal eletrônico Mídia Independente, o ano de 2003 foi marcado pela violência e ações de despejo no Mata Cavalo. Em 21 de maio, policiais invadiram o Quilombo para cumprir o mandado judicial expedido pelos Juízes Marcos José Siqueira e Teomaro Corrêa para reintegração de posse de duas fazendas. Foram despejadas no total trinta e cinco famílias sendo que na ação um quilombola foi preso por desobediência. Segundo o jornal “Depois de toda a opressão, ‘autoridades competentes’ como a ministra Matilde Ribeiro, da Secretaria Especial de Política da Promoção de Igualdade Racial, o governador Blairo Maggi, deputado federal Carlos Abicalil e a senadora Serys Slhessarenko, vão ao quilombo fazer vistoria e reunir-se com o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos”. Disponível em http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2003/05/255267.shtml acesso em 12 de Janeiro de 2011. 3 A história da cadeia dominial do imóvel da Sesmaria Boa Vida foi pesquisada, desenvolvida e narrada pelo autor durante todo o segundo capítulo da dissertação de mestrado denominada “Quilombo Mata Cavalo: Terra, conflito e os caminhos da identidade negra”, defendida em Março de 2011 no Programa de Pós-Graduação Mestrado em História, Universidade Federal de Mato Grosso.

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Pretende-se neste artigo levantar algumas questões relacionadas à importância da

educação como fator de tomada de consciência social, econômica, política e também cultural,

para uma parte da Comunidade de remanescentes do Quilombo Mata Cavalo, como verificada

no campo da pesquisa por esse autor no decurso dos trabalhos de campo junto aos

descendentes daqueles escravos, nos anos de 2008, 2009 e 2010. Esse grupo a que nos

referimos pertence à Associação dos Pequenos Produtores Rurais da Mutuca, uma entre as

inúmeras associações que compõem o complexo desse Quilombo. Moldados pelas

dificuldades e constantes pressões advindas das lutas pela permanência em suas “próprias

terras” esses quilombolas souberam, com obstinada tenacidade, preservar o que havia de mais

significativo para suas vidas. Tradição e terra, memória e herança, um mundo afro-

referenciado constituído no centro convergente da diáspora negra4, uma reterritorialização de

uma pequena porção da África que habita fértil no imaginário dos povos que ajudaram a

construir, com os próprios braços, o Novo Mundo.

No movimento de resistência e das lutas pela liberação das terras quilombolas, ao longo

de quase um século e meio, destaca-se a força das mulheres negras numa mescla de coragem e

astucia, determinação e fé. Desta forma, trataremos aqui, também, da trajetória de algumas

dessas mulheres, seus sonhos e ideais, revelando para além das estruturas sociais baseadas,

via de regra, no sistema patriarcal, uma ativa e expressiva presença no seio daquela

comunidade. Como veremos no percurso deste artigo, para a comunidade do Mutuca, sem

dúvida, a construção da escola, marcou um dos momentos mais importantes dessa história

singular, sonhos de uma mulher que ousou acreditar na educação como forma de luta e

tomada de consciência. Hoje, a Escola Estadual Rosa Domingas de Jesus representa bem mais

que um local de construção de saberes, constitui-se em sua forma expressa no lócus

privilegiado de preservação da tradição quilombola, elemento crucial para a própria existência

do Quilombo, um elo importante na estrutura das lutas emancipadoras.

As mulheres quilombolas

4 Stuart Hall utiliza o conceito “diáspora negra” para explicar a experiência dos Africanos desterritorializados em função da escravidão racial. Afro-caribenho, vivendo em Londres, Hall entendeu sua condição de ser-no-mundo: conhecendo intimamente os dois lugares – a Jamaica e a Inglaterra - percebeu que na verdade não pertencia a nenhum deles, “e esta é exatamente a experiência diaspórica, longe o suficiente para experimentar o sentimento de exílio e perda, perto o suficiente para entender o enigma de uma chegada sempre adiada”. Hall, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Organização Liv Sovik; tradução Adelaine La Guardia Resende... [et. al.]. – Belo Horizonte: Ed. UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003. P. 415.

Page 3: Mulheres do mata cavalo

No Mata Cavalo, assim como em outros quilombos brasileiros, as mulheres assumiram

seus lugares de destaque no interior das famílias e dos grupos sociais, contrariando de certa

forma uma tradição patriarcal solidamente estruturada ao longo da história. Francisca Romana

da Silva representava uma dessas mulheres. José Gregório de Almeida5, seu descendente, a

descreve como “uma nega bonita, alta, toda cheia daqueles colares no braço, no pescoço, que

aquelas escravas usavam, vestido de roda, de senzala, não sei quantas saias tinha por baixo!”.

Com a morte de seu esposo Vicente Ferreira da Silva, relata o entrevistado, ela se vê na

obrigação de assumir o comando e o destino de sua prole em um ambiente marcado pelo

estigma da instabilidade e pela hegemonia de uma sociedade predominantemente racista. Com

firmeza e ao mesmo tempo devoção maternal manteve a coesão de seu grupo familiar extenso

graças à sua capacidade de liderança. Rebuscando na memória, Almeida lembra que graças à

força daquela mulher no seu meio familiar “não existia miséria, não existia fome, porque todo

mundo tinha, era unido. Todo mundo tinha fartura, rapadura, açúcar de barro, todo mundo

tinha porque todo mundo fazia”. Num sistema onde predominava a agricultura de

subsistência, todas as necessidades materiais do grupo dependiam exclusivamente de sua

força de trabalho, um rígido controle e a presença de alguém capaz de liderá-los. Francisca

Romana da Silva “Administrava a terra, administrava os filhos, ela era uma mulher

administrativa” assevera Almeida.

Preocupada em manter a união de seu grupo familiar ela não se furtava aos deveres da

educação dos mais jovens com os rigores e a disciplina requerida naquele ambiente rude.

Quando necessário aplicava os corretivos em forma de castigos físicos, como era

característico à época, lembra Almeida. Caso algum de seus filhos, ou parentes mais novos

sob sua responsabilidade apresentasse comportamento inadequado, de imediato ela ordenava

“marra o fulano lá pra mim, aí eles pegavam podia ser irmão, podia ser quem fosse pegava e

amarrava e ela chegava a vara, assim que era” confirma o entrevistado. Preocupada em

manter sua posição de liderança perante sua gente, fazia questão de exigir para si um

tratamento baseados no respeito e consideração, desta forma “todo mundo pedia benção pra

ela, tinha gente que até ajoelhava pra pedir benção pra ela, sabe como era a educação

antigamente não é: Sim senhor! Sim senhora! Não é como hoje”, relembra Almeida. Aliando

a seriedade que sua posição exigia à docilidade do instinto maternal ela conseguiu manter sua

5 Entrevista cedida em sua residência no Bairro Ribeirão da Ponte, em Cuiabá, na data de 30 de Setembro de 2011, cuja gravação encontra-se arquivada no acervo particular deste pesquisador.

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família de acordo com os padrões revelados na fala simples de Almeida. Nas ocasiões em que

a prática do muxirum era utilizada, afirma ele,

ela tava alegre, acho que tomava uns vinhos, aí ela dançava com os filhos, ficava alegre, fazia aquele rodão, ela ficava assim com os netos e tataranetos. Muito brava ela era, mas tinha os momentos de alegria de agradar também. [...] Quando ela recebia visita todo mundo tinha que comer tudo, ela punha a mesa: doce de leite, doce de mamão, lambari frito, carne com arroz, abóbora, feijão, tinha aquelas vasilhas de barro para colocar comida. Colocava a mesa, tinha que comer tudo, quem fosse lá visitar ela tinha que comer de tudo. Ela arrumava aquele mundo de refeição, era pra comer toda a comida, se não comesse ela era ignorante: ta fazendo pouco da comida? Tinha que ser bom de prato, depois agradecia ela aí ficava alegre, ela tinha gosto de tratar as pessoas.

Sendo os relatos de memórias escolhas conscientes que fazemos a partir da experiência

própria de nossas vidas, objetivando dotar de coerência uma narrativa qualquer a que se

proponha edificar, sempre levando-se em consideração o presente em que vivemos, conforme

Bourdieu afirma no seu artigo “A Ilusão Biográfica”, podemos tirar algumas conclusões das

falas de José Gregório de Almeida, na entrevista relatada acima. Para ele, como também para

tantos outros entrevistados durante nossa pesquisa de campo, como o caso de Antonio

Mulato6 e seu desabafo quanto ao pouco caso que a juventude do Mata Cavalo confere às

antigas tradições do Quilombo, o mundo ideal consiste naquele onde a vida comunal faz parte

das regras sociais do grupo. Ao rebuscar essas memórias do tempo da fartura, “onde não

existia miséria [...] onde todo tinha, porque todo mundo fazia”, ele relaciona a desdita vivida

no presente opressor pela desagregação daquele antigo modo de vida, concebendo-o como o

sistema social perfeito e fazendo dele um objetivo futuro, um devir dotado de racionalidade,

uma esperança vindoura. Notamos, também, a centralidade que uma liderança forte possui no

imaginário de Almeida quando ele se volta para o seu próprio passado. Para ele, a harmonia

daqueles dias felizes e fartos se devem em grande parte à capacidade de liderança de sua avó,

uma simetria, ao menos em algum nível, com o tipo ideal de dominação, postulado pela

sociologia weberiana, a “dominação tradicional”, legitimada pela força que a tradição possui

para aquela gente do Quilombo. Não se torna tão complicado, também, identificar o “ideal

puro”, ou o “tipo ideal” preconizado por Max Weber, aos recortes de memória do entrevistado

com relação ao meio social do qual expressa tanto saudosismo. Tendo como regularidade a

harmonia social daqueles dias vividos em função de ações sociais específicas, no caso o

6 Antonio Mulato, 105 anos de idade, patriarca honorário desta comunidade, em entrevista gravada no ano de 2011, em sua residência no Quilombo Mata Cavalo, conforme acervo documental deste pesquisador.

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sistema comunal apoiado por uma liderança forte, levando-se em consideração as

características fundamentais do próprio grupo do qual se lembra, pode-se identificar aí uma

variação do tipo ideal weberiano. Ou seja, uma comunidade pautada nos valores da

reciprocidade humana e nos elos de solidariedade do grupo a partir das práticas sociais

baseadas no sistema comunal, onde o maior valor a ser preservado encontra-se na própria

união do grupo, símbolo de sua fortaleza e fé.

Hilary McD Beckles e Verene A. Shepherd, da West Indies University, na obra “Las

voces de los esclavizados, los sonidos de la libertad” publicada pelo Projeto de Escolas

Associadas da UNESCO, às páginas 72 e 73, falam da vida e da obra de Harriet Tubman.

Nascida em 1821 em Bucktown, Maryland, aos 6 anos de idade foi designada por seus

proprietários a trabalhar para uma mulher chamada Miss Susan. Pouco depois é devolvida às

lavouras que abasteciam a fazenda do seu senhor. Em 1849, quando soube que iriam vendê-la

a fazendeiros do Sul dos Estados Unidos, resolve então fugir em busca de liberdade. Ao

chegar ao seu destino mal acreditava que houvera conseguido sua independência, assevera

Tubman. De acordo com suas palavras:

Me miré las manos, para ver si yo era la misma persona ahora que era libre. Había tanta gloria, el sol brillaba como oro entre los árboles y sobre los campos, y me parecía que yo estaba em el cielo...Había cruzado la línea con la cual soñaba hacía tanto tiempo. Era libre, pero no había nadie que me diera la bienvenida a la tierra de la libertad; era una extraña en una tierra extraña, y mi hogar estaba en aquel viejo barrio, con todos mis allegados y hermanos. Pero llegué a esta solemne decisión: yo era libre y ellos también debían de serlo; les prepararía un hogar en El Norte, y con la ayuda de Dios, los traería a todos aqui.

Ao perceber que havia deixado para trás não só o tormento e os horrores da escravidão,

mas também seus familiares e irmãos que compartilhavam a mesma sorte, resolve então tomar

uma solene decisão. Nascia naquele momento uma guerreira tenaz. Tubman torna-se líder de

um dos maiores movimento secretos dos Estados Unidos, o Underground Railway, que

ajudava as pessoas escravizadas a fugirem para o Norte daquele país, como também para o

Canadá, onde a escravidão racial fora erradicada para sempre. Em suas 19 viagens ao Sul

escravista ajudou a libertar um sem número de pessoas escravizadas e entre estas sua própria

família. Harriet Tubman é apenas um pequeno exemplo da tenacidade e força de vontade das

Page 6: Mulheres do mata cavalo

mulheres afro-descendentes, como o caso de Tereza Conceição de Arruda, que atuou com

grande desenvoltura na função de presidente da Associação dos Pequenos Produtores Rurais

de Mata Cavalo de Baixo, até os dias finais de sua vida em 2011. Numa entrevista gravada

por esse pesquisador em Novembro de 2009 na sua residência ela fala do sofrimento de sua

bisavó pelo lado materno:

A cabeça dela era assim: não tinha um fio de cabelo de tanto ela carregar panela quente. Não tem aquela folha de imburuçu, que dá uma folhona grande redonda e folha de Belém, não tinha pano para por, e forrava a cabeça com aquelas folhas pra levar comida pro pessoal na roça, pros escravos na roça. A folha cozinhava, queimava, sapecava, panela quente mas eles chegava lá. Caiu tudo o cabelo dela. Tinha essa mão seca dela segurar pavio. Iluminação não tinha de jeito nenhum, era as escravas que seguravam as candeias para eles jantarem. Se faziam alguma coisa errada tinham por castigo que segurar a candeia acesa a noite toda. E aí ela ficou a noite inteira com a candeia na mão, ela dormiu e o pavio queimou a sua mão toda. Pretinha, pretinha que era a mão dela.

Testemunha ativa da história de sua comunidade, muito da determinação, garra e

objetividade certamente constituiu-se a partir dessa herança familiar e comunitária de uma

vida marcada pelo instinto da preservação e sobrevivência ao meio, via de regra hostil. Sua

história, que é a história de sua família e de uma importante parte do Quilombo demonstra

com simplicidade sua ligação fecunda com os herdeiros dos antigos escravos de Anna da

Silva Tavares, fundadores do quilombo aqui referido. A minha avó Marcelina, relembra

Tereza Conceição de Arruda, ainda na mesma entrevista,

era do Mata Cavalo daqui desse pedaço, a sesmaria era todo lugar. O meu avô era da Estiva, tudo era sesmaria, só pulava o córrego. A sesmaria compunha-se de Sesmaria Boa Vida com Sesmaria Cracará, papai era da Estiva, mãe Celina, mãe de meu pai, é daqui, é povo da Mutuca, da família da Mutuca mesmo, mas tudo dentro da Sesmaria Boa Vida. Papai casando ficava lá na Estiva. Quem morava na Estiva? Era pai de papai que ficou ali na Estiva, o irmão dele Remoardo, Sabino e Marcos, tudo ficou ali na Estiva e a irmã dele Barbina. [...] Com esse negócio de expulsação saíram. A Barbina foi pra Poconé nunca voltou pra cá, mas tem o povo dela que é descendente, esse avô dela Remoardo que é bisavô dela foi pra lá ficar com o padrinho e quem ficou mesmo aqui foi o Marcos, o Mulato e o Sabino, esses que ficou aqui que não foram embora.

Em denúncia feita à Gazeta de Cuiabá a grande matriarca do Quilombo mostrou, como

sempre, sua coragem e determinação. Segundo ela em Fevereiro de 2002 os fazendeiros

Page 7: Mulheres do mata cavalo

cortaram o arame da cerca de sua plantação e o gado “invadiu cinco hectares e destruiu

culturas de milho, arroz, banana, mandioca, cana, abóbora. Ela estima que, pelo menos, oito

mil ha foram invadidos por posseiros, fazendeiros e agricultores. ‘Há oito anos estamos nesta

luta’, afirma a matriarca.”7 Na reunião promovida em 20 de Abril de 2004, no Mata Cavalo,

pelo CEDN – Conselho Estadual dos Direitos do Negro, contando com a participação de

membros de outros quilombos, como os de Vila Bela de Santíssima Trindade, bem como de

autoridades representando a Prefeitura Municipal de Livramento, Secretaria de Estado da

Casa Civil, Câmara Municipal de Livramento, Assembléia Legislativa do Estado, Ministério

Público Federal e Estadual, Tereza Conceição de Arruda exigiu dos órgãos governamentais

medidas mais efetivas para a resolução dos problemas no Mata Cavalo. De acordo com suas

palavras, “Queremos a posse da nossa terra que foi dos nossos antepassados. Queremos

propostas que saiam do papel. Chega de viver debaixo de barracos de lona”.8 Seguindo os

passos da grande matriarca do Mata Cavalo, destaca-se também pelo destemor, engajamento e

profundo amor à sua gente, Gonçalina Eva de Almeida, sua neta, professora, ativista em prol

da causa negra, uma autêntica representante da saga das mulheres do Quilombo. Com seu

olhar altivo ela se reporta à questão da tradição como um elemento importante que “mantém a

gente forte e vivo, porque uma pessoa que não tem história, não tem passado, não tem raízes,

e no nosso caso isso é bem forte.9” Consciente da importância da tradição para a própria

existência do grupo enquanto comunidade tradicional afro-referenciada, ela luta

constantemente pela paz entre os seus, mas, quase um paradoxo, percebe o lado positivo da

violência, pois no contexto das lutas vislumbra a possibilidade de evoluir rumo à legitimação

tão sonhada da propriedade das terras dos negros. De acordo com ela, sempre pensando nos

caminhos da paz,

sofremos bastante violência, mas acho que valeu a pena porque nós estávamos lutando por um direito que é nosso, não é? E quem não luta por seus direitos não é digno dele. E a gente conseguiu com essa luta acalmar a questão da violência. E a gente sempre fez uma luta pacífica, graças a Deus.

7 Disponível em: http://www.amazonia.org.br/fogo/noticias/print.cfm?id=8987 . Acesso em 09 de Fevereiro de 2011. 8 Disponível em: http://www.reporternews.com.br/noticia/29139/CEDN-debate-solu%E7%E3o-para-Mata-Cavalo Acesso em 09 de Fevereiro de 2011. 9 Entrevista gravada em sua atual residência na localidade conhecida como Ponte da Estiva, Fazenda Ourinhos no Mata Cavalo de Cima, em 21 de Janeiro de 2011.

Page 8: Mulheres do mata cavalo

Em sua visão de mundo, Gonçalina Eva de Almeida entende a escravidão como um

dos atos mais cruéis praticados contra a humanidade, mas também percebe que foi superada

pela força, determinação e vontade de vencer de sua gente, qualidades que para ela ainda são

preservadas pelos descendentes dos antigos escravos. Essa forma peculiar de entender o

mundo que a rodeia como uma constante possibilidade de superação de limitações individuais

e coletivas, certamente constitui os elementos que moldam seu caráter combativo. Com um

grande sorriso fala sobre o preconceito como uma desastrosa “burrice do ser humano, que no

fundo todo mundo é igual” afirma em sua entrevista. Sua consciência acerca dos movimentos

da história negra reflete-se quando fala da importância do 20 de Novembro, dia da

comemoração à Zumbí de Palmares, entendido por ela como uma data que foi efetivamente

criada pelos negros, uma conquista, um sonho realizado.

Rosa Domingas de Jesus e a educação quilombola.

Com a expulsão de uma boa parte dos remanescentes do Quilombo pelos fazendeiros,

a partir da segunda metade do século XX, como vimos ao longo de nossas pesquisas, aquelas

terras não ficaram totalmente abandonadas evidenciando um alto nível de resistência à

opressão por parte de muitos dos descendentes daqueles antigos escravos. Entre os que

ficaram, destacam-se pelo comportamento e atitude de obstinada tenacidade algumas de suas

mulheres mais ilustres, entre elas um símbolo, um ícone da luta dos negros do Mata Cavalo:

Rosa Domingas de Jesus. Uma mulher extraordinária que ao se ver desamparada da

segurança e da presença de seu esposo, Miguel Ferreira de Jesus, falecido em 13 de Maio de

1982, assumiu a posição de mãe e pai de seus filhos e por extensão a função nada fácil de

matriarca de sua comunidade familiar estendida, tarefa que soube realizar com desvelado

amor aos seus e à terra de seus ancestrais.

Falecida em Maio de 2005 deixou como herança aos seus dez filhos a determinação e

a coragem que sempre demonstrou em vida, mostrando que os caminhos a serem por eles

trilhados devem se pautar pela nobreza que o trabalho oferece, em comunhão com as terras

dos ancestrais, os escravos da antiga Sesmaria Boa Vida, que a ela e tantos outros foram

deixadas. Na visão de sua neta, Laura Ferreira da Silva, em entrevista gravada no dia 09 de

Fevereiro de 2011, D. Rosa “era uma guerreira”, e pelo que se percebe em sua fala, também

um símbolo de amor maternal sempre pronta a socorrer seus filhos e parentes. A terra onde,

junto com seu esposo, nasceu e morreu foi herança deixada pelo sogro Macário, descendente

Page 9: Mulheres do mata cavalo

de Vicente Ferreira Mendes10. Após a morte de seu sogro começa então para o casal uma dura

vida marcada pela violência em função do conflito fundiário pela propriedade de suas terras.

Miguel Ferreira de Jesus constantemente ameaçado pelos jagunços a serviço de fazendeiros

da região, passou a viver em clima de instabilidade, levando-o a redobrar as atenções para

com sua família. De acordo com a fala de Germano Ferreira de Jesus 11, um dos filhos de D.

Rosa, quando o pai ia fazer alguma atividade fora de suas terras, os seus filhos nem à roça

poderiam ir sem que estivessem acompanhados pela mãe, “porque ela tinha medo dos

fazendeiros mandarem jagunços pra fazer algum mal pra gente”. Meu pai sempre foi

perseguido, afirma Germano,

quando ela ia pra cidade ele tinha que voltar por uma outra estrada. Então foi assim, de 30 anos pra cá foi uma alegria vamos dizer assim uma alegria triste. Porque no mesmo tom que tava alegre ficava triste porque fazendeiro vinha, roça da gente fazendeiro começou a cortar. A gente fechava a roça eles iam lá pra cortar nosso arame e botava gado. Foi uma luta acirrada mesmo.

Incansável e determinado, Miguel Ferreira de Jesus lutou pela legitimação de sua propriedade

junto aos órgãos do governo sem obter nenhum resultado satisfatório. Com a saúde bastante debilitada

acaba perdendo sua vida sem ver a sua terra liberta. Começa então uma nova fase para a família de D.

Rosa. Os fazendeiros envolvidos no litígio aumentaram a pressão pela disputa daquelas terras, em

ações diárias de intimidação realizadas por seus jagunços contratados. De acordo com as próprias

palavras de Laura, “era capanga, às vezes era policial dia e noite, a gente não tinha paz com os

fazendeiros, e ela sempre à frente com sua fé, rezava, pedia aos santos pelos seus filhos, pelos

seus genros e noras”. Quando necessário, trocava as rezas e a devoção religiosa pelas armas

no confronto com seus opositores “ela ia colocava seu machado, seu facão debaixo do braço e

ficava lá enfrentando eles, e falava que não saia”. Sua determinação fazia com que defendesse

seus familiares e suas terras, se preciso, ao preço de sua própria vida. D. Rosa tinha

consciência plena de si mesmo, tanto que sempre repetia nos momentos mais graves dos

confrontos que “só morta e mesmo morta jamais iria sair daquele determinado lugar. Pra

tirarem ela dali só se matassem, mesmo assim ela ia dar muito trabalho para eles”, conclui

Laura.

10 Conforme nossa dissertação, dois anos após o ato de doação do Ribeirão Mutuca à Leopoldino Alves da Costa, o titular e sua esposa, em 18 de junho de 1896, venderam através de escritura pública, na forma da lei, a área de terra em questão a Vicente Ferreira Mendes, um ex-escravo libertado em função da assinatura da Lei Áurea em 1888.11 Entrevista gravada em sua residência na comunidade do Mutuca, em 09 de Fevereiro de 2011.

Page 10: Mulheres do mata cavalo

Cansados dos constantes fracassos na tentativa de expulsar D. Rosa de suas terras, os

fazendeiros mudaram suas estratégias, buscando seus objetivos através do assédio moral e da

intimidação, cortando arames das cercas de suas plantações e soltando o gado para a

destruição do que já estava plantado. Ao ver seus filhos angustiados nos momentos em que

viam o fruto dos seus trabalhos serem destruídos em questão de horas, D. Rosa simplesmente

dizia para eles que não seria dessa forma que os fazendeiros conseguiriam expulsá-los de suas

próprias terras. Com coragem e devoção dizia aos filhos que para cada hectare de plantação

destruída eles cultivariam o dobro, não se entregando jamais.

D. Rosa, ao que tudo indica, parecia haver entendido a facilidade com que seus

opositores, a maioria constituída por pessoas com certo grau de instrução e escolaridade,

lidavam com os códigos legais servindo aos seus próprios interesses. Pensando dessa forma

ela passa a cultivar um sonho, que era o de ver seus filhos, netos, genros e noras estudando.

Nas palavras simples e profundas de Laura, sua avó entendia a necessidade da educação e da

instrução como essencial à própria sobrevivência do grupo, pois

ela acreditava que toda causa daquela briga, daquela questão da terra se dava pelo fato que eles não tinham leitura, não tinham um entendimento da escrita. Por mais que eles tinham conhecimento, sabiam onde iam seus limites, terra, tudo, mas eles tinham conhecimento de outra forma, não conhecimento científico como é aplicado hoje. Então ela tinha esse sonho que todos pudessem estudar. Estudasse ali e continuasse mantendo vivo a história, a resistência, a luta aí passando de geração pra geração.

Os sonhos de D. Rosa começaram a se materializar em 2002, numa reunião no Centro

de Organização e Defesa do Adolescente, que contou com a participação de membros da

entidade não governamental Fundo do Canadá, do país de mesmo nome, ocasião em que

Laura teve a oportunidade de lhes contar a história e os sonhos de sua avó. Segundo a

entrevistada, aparentemente naquele momento os canadenses não deram muita atenção à ela.

Em uma data posterior Laura recebe uma ligação dos membros do Fundo do Canadá avisando

que eles estavam no Brasil e logo que chegassem a Mato Grosso fariam uma visita à

comunidade.

Page 11: Mulheres do mata cavalo

Rosa Domingas de Jesus recepciona membros do Fundo Canadá

Fotografia cedida por Laura Ferreira da Silva em 09/Fevereiro/2011.

Nesta ocasião D. Rosa relatou toda a trajetória da sua história de vida no interior da

comunidade, as dificuldades, o conflito, a resistência, os sonhos e os ideais. Ao se inteirarem

da real situação da comunidade os membros da organização Fundo do Canadá resolveram

então patrocinar a construção da Escola. Numa outra visita dos canadenses, antes da morte de

D. Rosa, eles disseram que em função do que representava a figura da grande matriarca para a

comunidade, nada poderia ser mais justo que a escola recém construída levasse o seu nome,

passando a ser denominada Escola Estadual Rosa Domingas de Jesus. Mais que um tributo,

um reconhecimento histórico ao que representou e que ainda representa a figura dessa mulher

notável para os destinos do seu grupo e, por extensão, do próprio Quilombo como um todo.

Uma simples visita a essa comunidade revela os ares de progresso que ali se respira,

tanto isso é visível que em tempos recentes a comunidade ganha na justiça o título da

propriedade de 200 hectares em processo de usucapião, constituindo-se na primeira grande

vitória de seu povo. Protagonistas de suas próprias histórias, as mulheres desta comunidade

representam, como assim o entendemos, o verdadeiro espírito do sentimento de unidade, que

os mantêm coesos em torno do que um dia foi o sonho de D. Rosa, uma visionária que com

amor e determinação mudou o destino de sua gente. De um estado conflituoso, permeado pelo

estigma da violência para outro desenhado em um cenário de promissoras perspectivas essa

gente simples mostrou o caminho da determinação em busca de um ideal. O mesmo ideal que

D. Rosa defendeu com os riscos de sua própria vida, e com desassombrado vigor

demonstrando que aquelas terras, pelas quais tanto lutou, representam bem mais que um lugar

de subsistência, para além da terra em seu sentido literal existe uma territorialidade negra,

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delimitando no tempo o espaço afro-referenciado constituído na diáspora. Uma terra de

negros para negros.

BIBLIOGRAFIA:

Bourdieu, Pierre. A ilusão biográfica. In: Ferreira, Marieta de Moraes; Amado, Janaína(coords.). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV 1996.

Hall, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Organização Liv Sovik; tradução Adelaine La Guardia Resende... [et. al.]. – Belo Horizonte: Ed. UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003.

Hilary McD Beckles e Verene A. Shepherd. Las voces de los esclavizados, los sonidos de la libertad. Projeto de Escolas Associadas da UNESCO, West Indies University.

Barcelos, Silvânio Paulo de. Quilombo Mata Cavalo: Terra, conflito e os caminhos da identidade negra, dissertação defendida em Março de 2011 no Programa de Pós-Graduação Mestrado em História, Universidade Federal de Mato Grosso.