equitacao92 cavalo peninsular

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O cavalo peninsular 66 REVISTA EQUITAÇÃO N. º 92 SETEMBRO/OUTUBRO 2011 NOTAS IBÉRICAS Eng.º Rodrigo Almeida O meu despertar para os cavalos ocorreu num dos antigos e célebres leilões de Rio Frio, onde o Eng.º José Lupi, por graça, soltou o Zaire MV (Nilo MV x Laranja MV por Bailador MV) para o recinto do leilão. Nesse tempo nem sequer sabia o que era um cavalo Veiga, mas, o fascínio surgiu sem contexto e explicação aparente, apenas por transmissão de sensações. Não sendo em si um cavalo de grande nota funcional, o Zaire MV imprimiu aos seus filhos uma funcionalidade toreira constantemente enaltecida pela família Lupi, e tão bem evidenciada nas praças de toros de todo o mundo. Neste artigo procuraremos de forma fidedigna, apenas com alguma actuali- zação de português, apresentar, não na íntegra, pois o mesmo é extenso, mas através de uma selecção de ex- tractos, o conteúdo de um livro que eu considero de referência – “O cavalo Portuguêz”, escrito em 1922 pelo Eng.º Manuel Tavares Veiga – provo- cando com esta selecção, o entendi- mento para algumas nuances do efec- tivo cavalar do presente. Até hoje nunca me cansei de o reler, pois ao fazê-lo descubro sempre um pormenor de intenção que me havia escapado. É espantoso descobrir neste texto Para nascer pouca terra; para morrer toda a terra. Para nascer Portugal; para morrer todo o mundo Padre António Vieira Antes de iniciar o artigo é de toda a conveniência e sentido de oportunidade, uma vez que a voz do seu mentor é uma constante no artigo, enaltecer a genialidade do Eng. Manuel Tavares Veiga, enquanto edificador de um monumento com identidade à imagem e cultura do Homem português. O cavalo Veiga tem sido zelosamente preservado por gerações de herdeiros, que tão bem o têm mantido e elevado. FUNDAMENTOS DA IDENTIDADE CULTURAL DO CAVALO PORTUGUÊS… ANTIGO Equitacao92_Equitacao_novo 20-09-2011 16:20 Página 66

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O cavalo peninsular

66 REVISTA EQUITAÇÃO � N.º 92 � SETEMBRO/OUTUBRO 2011

NOTAS IBÉRICAS

Eng.º Rodrigo Almeida

O meu despertar para os cavalosocorreu num dos antigos e célebresleilões de Rio Frio, onde o Eng.º JoséLupi, por graça, soltou o Zaire MV(Nilo MV x Laranja MV por BailadorMV) para o recinto do leilão. Nessetempo nem sequer sabia o que eraum cavalo Veiga, mas, o fascínio surgiu

sem contexto e explicação aparente,apenas por transmissão de sensações.Não sendo em si um cavalo de grandenota funcional, o Zaire MV imprimiuaos seus filhos uma funcionalidadetoreira constantemente enaltecida pelafamília Lupi, e tão bem evidenciadanas praças de toros de todo o mundo.

Neste artigo procuraremos de formafidedigna, apenas com alguma actuali-zação de português, apresentar, nãona íntegra, pois o mesmo é extenso,mas através de uma selecção de ex-tractos, o conteúdo de um livro queeu considero de referência – “O cavaloPortuguêz”, escrito em 1922 pelo

Eng.º Manuel Tavares Veiga – provo-cando com esta selecção, o entendi-mento para algumas nuances do efec-tivo cavalar do presente. Até hojenunca me cansei de o reler, pois aofazê-lo descubro sempre um pormenorde intenção que me havia escapado.É espantoso descobrir neste texto

Para nascer pouca terra; para morrer toda a terra. Para nascer Portugal; para morrer todo o mundo

Padre António Vieira

Antes de iniciar o artigo é de toda a conveniência e sentido de oportunidade, uma vez que a voz do seumentor é uma constante no artigo, enaltecer a genialidade do Eng. Manuel Tavares Veiga, enquantoedificador de um monumento com identidade à imagem e cultura do Homem português. O cavalo Veigatem sido zelosamente preservado por gerações de herdeiros, que tão bem o têm mantido e elevado.

FUNDAMENTOS DA IDENTIDADE CULTURALDO CAVALO PORTUGUÊS… ANTIGO

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pormenores de actualidade verdadei-ramente arrepiantes!!!Deixo-vos assim em 1922, com

o Eng.º Manuel Tavares Veiga, emdiscurso directo do:

Lamentava Ramalho Ortigão que oportuguês viajasse tão pouco. Aos seushábitos sedentários atribuía ele o nossoatrazo, em relação aos outros paísesda Europa. O grande crítico, cuja ba-gagem intelectual era mais completado que a que cuidadosamente arrumavanas suas malas de dandy impecável,apesar do mal que disse dos seus con-terrâneos, nunca supus que, postos acorrer mundo, eles seriam, ao regressar,os maiores inimigos da sua pátria.Faltava a muitos a preparação intelectuale, o que é pior ainda, o orgulho de serportuguês do que resulta a tineta paraachar bom e belo o que é dos outros emau, ridículo mesmo, tantas coisasque, por serem caracteristicamentenossas, devíamos olhar com desvaneci-mento e conservar com amor.

Com que saudade nos recordamos dealguns exemplares de puras raças pe-ninsulares que ainda vimos há muitosanos! Nervosos, cheios de garbo, dumaobediência que parecia feita do desejode adivinhar a vontade do cavaleiro, acabeça erguida, longas crinas ao vento,movimentos altos e duma rapidez fulmi-nante, afrontando com indómita coragemtodos os perigos, sem desdouro podiamostentar, na testeira da cabeçada, adivisa de Rolando: sem medo esem mácula.

Não seria possível restauraras velhas raças peninsularesporque a vizinha Espanha caiunos mesmos erros, (de que jácomeça a penitenciar-se) mes-clando, sem critério, o sanguedos seus nobres corcéis defama mundial, com o de re-produtores de várias prove-niências e raças?

Resumidamente vamos exporo que pensamos sobre o assunto,resumidamente porque não cabenas nossas posses nem na índoledeste trabalho, fazê-lo com de-senvolvimento. O nosso fim éprincipalmente chamar a atençãodos criadores portugueses paraum assunto que não interessasó os amadores de cavalos, oshomens de sport, pois nessecaso ele devia ser relegado aosclubes elegantes, mas que inte-ressa grandemente a sagrada de-fesa da Pátria.

Porque não se organiza uma asso-

ciação de todos os criadores portugueses?Seria a forma de nos podermos orientarnum determinado sentido e uniformizaro tipo do cavalo português em harmoniacom as exigências do país, entre asquais a todas sobreleva a remonta donosso exército.

Depois de Silvestre Bernardo Limaainda não tivemos outro zootecnista.E como podemos ter homens espe-cializados em qualquer ramo científico,se em regra os estudiosos são alheiosà politica e desamparados portantode protecções que outros, com arti-manhas demasiado conhecidas de to-

dos, sabem conquistar?Todos nós conhecemos, por expe-

riência de todos os dias, a superioridadedo cavalo peninsular como cavalo decampo, de trabalho e de passeio. Dócil,sóbrio, duma rusticidade e resistênciaque lhe permite lidar dias seguidos, naslezírias do Ribatejo, na condução ouapartamento do gado bravo e, ao anoi-tecer, coberto de suor, o campino tira-lhe o albardão, acena-lhe com a vara eele lá vai espoliar-se na terra para seenxugar e comer a erva espontânea,na primavera ou os magros restolhosda estação calmosa.

Não serão a resistência, a sobriedadee a docilidade que fazem do homemda Beira o melhor soldado português,as qualidades que devem caracterizaro melhor cavalo de guerra?

Não é com o fim de melhorar asraças equinas que as corridas de cavalosestão tão em voga em Inglaterra. Foi,sem dúvida, essa a ideia que presidiu àsua organização naquele país mas,então, em vez de 1800m o percursoera de muitos quilómetros. A selecçãoera feita com o critério de resistência,do fundo, e não da velocidade comoactualmente.

Darley Arabian, Eclipse, GodolphimArabian e outros campeões céle-bres desses tempos, eram, aocontrário dos seu ridículos des-cendentes, dum ridículo a en-testar com a teratologia (estudodas anomalias e das malfor-mações ligadas a uma pertur-bação do desenvolvimento): for-tes, largo peito, amplo perímetrotorácico, garupa larga pois osextensos e duros percursos, queeles tinham de vencer, estavam,ainda, semeados de obstácu-los.

No livro “The Points of theHorse” diz ainda Horace Hayes:Para fazer do puro-sangue umcavalo de caça, de trabalho oude remonta é preciso acabarcom as corridas de potros dedois anos de idade, diligenciaraumentar-lhes a corpulência etornar mais extensos os per-cursos, excluindo todos os ca-valos que cheguem à meta ofe-

gantes. “Adaptando esta orienta-ção, o puro-sangue não só adquiriria

força e resistência como conservaria a

Esbelto, reprodutor da raça Alter Real pertencente à Casa de Bragança (in Guia Pratica do Creador e Amador de Cavallos)

Temporal, pertencente à Sra. Marqueza de Tancos (in Ano Hípico Português 1956/57)

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saúde e o vigor durante um períodomais largo… etc.”

Utilizam ainda em Inglaterra e nonorte da Europa, o puro-sangue, nocruzamento com as raças de grandecorpulência e temperamento linfático,como o Cleveland, o normando, etc..Os produtos industrias destes cruza-mentos, dos quais o mais notável detodos é o hunter irlandez, não possuem,em elevado grau, nem o volume e o lin-fatismos das citadas raças, nem o ner-vosismo, dureza de boca e as reacçõesviolentas do puro-sangue. São estes oscavalos de guerra, de caça e de tiro; ospuro-sangue só os jockeys montam.Quando aparece, o que é raro, umcavalo desta raça com as necessáriascondições para cavalo de sela, dizo Conde de Lagondie, paga-se apeso de ouro.

Como elemento de correcção,o puro-sangue, muito prejudicouas raças peninsulares porqueas nossas éguas não têm a cor-pulência, o temperamento emorosidade de andamentos quecaracterizam as raças pesadasdos climas húmidos e pascigososdo Norte.

Das outras raças estrangeirasque aqui vieram fazer das suas,só, muito brevemente, nos re-feriremos à raça hackney. Ohackney não é ainda uma raça.Produto do cruzamento do Cle-veland com o puro-sangue, osseus caracteres não estão aindafixados. É tão vulgar ver umhackney de tipo convexo (ramoCleveland) como do tipo sub-convexo ou concavo (ramo puro-sangue). Isto bastava, se outromotivo não houvesse, para ocondenar como reprodutor por-que o melhor garanhão é sempreaquele cujos caracteres estão per-feitamente fixados por uma longa he-reditariedade.

Na opinião de Silvestre fomos nós“um dos primeiros, senão o primeiropaís da Europa, talvez, que encarnou osangue oriental nos seus cavalos”. Diffloth,no seu tratado de zootécnia, afirmatambém que, de entre todos os cavalosda Europa, é o peninsular que acusamais sangue árabe. Assim deve serpelas razões históricas de todos conhe-cidas.

Na opulenta corte de Granada, semdúvida, existiram autênticos exemplaresde raça Árabe e dizemos autênticosporque não queremos cair no erro vulgarde confundir o cavalo Àrabe de cabeça

quadrada, frontal plano e chanfro rec-tilineo, com o barbo, de perfil ligeiramenteconvexo – sub-convexo na classificaçãode Baron. Foi talvez esta pequena con-vexidade, que em grande número debarbos não atinge o chanfro, que deulugar a que se não distinguissem estesdois tipos: o árabe e o barbo.

O mesmo erro também muito vul-garmente se comete, confundindo ocavalo da Mesotopania e região limítrofes,de perfil concavo, com o árabe. Opróprio zootecnista Magne ao descrever,este cavalo disse: tem o chanfro rectoou levemente reentrante. Não; o cavaloárabe tem o perfil recto e as caracte-rísticas cefálicas são as mais persistentes,

as que mais resistência oferecem atodas as acções modificadoras e, por-tanto, aquelas a que temos sempre deatribuir maior importância.

Conhecemos, há muitos anos, doiscavalos da Coudelaria Parladé de Jerez,salvo erro, que tão bem fixámos namemória que nitidamente os estamosvendo ainda. Fronte perfeitamente plana,garupa horizontal, membros de umaprumo irrepreensível, grandes olhos arevelarem energia e inteligência, abrindodesmesuradamente as ventas logo queo cavaleiro os montava. Estes dois for-mosos animais eram sem dúvida, des-

cendentes de genuínos cavalos árabescujos caracteres o atavismo fielmentereproduzia (a um destes cavalos – oDerza – que pertenceu a Carlos Relvas,se refere Silvestre Bernardo Lima nosseus escritos sobre os equinos, publicadono Ministério do Fomento de 1913.Classifica-o, o grande mestre, de árabee assim o devia classificar quem nãoconhecesse a sua história, tal era a fi-delidade com que o atavismo reproduziaos caracteres daquela raça. O outro,mais novo, e do mesmo ferro, comodissemos, foi durante anos o reprodutorda Coudelaria da Quinta da Brôa).

O bom senso que tantas vezes subs-titui com vantagem a inteligência e o

saber, unanimemente protesta contraa desordem que veio trazer às nossascoudelarias a introdução de garanhõesestrangeiros.

E o bom cavalo peninsular – queJosé Relvas nos perdoe – é o Stradivariusdos grandes mestres de equitação.

Sempre alerta, sempre atento ao ca-valeiro, obedecendo às mais leves ajudas,sem a rigidez de alavancas que trans-formou o cavalo inglês numa máquinade correr ou saltar, o cavalo peninsularé comodo em todos os andamentos eelástico como as molas de um bommaple.

Da já citada obra de Horace Hayes,na parte em que se refere aos cavalospeninsulares, transcrevemos o seguinte:“Lemos nos tratados de Simonoff eMoeder “Races Chevalines”: Quandoos Sarracenos conquistaram Espanhano século VIII, trouxeram de Áfricamuitos cavalos de sela de tipo orientalque depois foram cruzados com raçasindígenas espanholas muito corpulentas.Deste cruzamento derivam os afamadoscavalos espanhóis do século XVI e XVII””.

A que é devida pois a decadência docavalo peninsular? A nosso ver pelosseguintes motivos: 1) Os cruzamentosdesordenados, sem orientação científica;2) Não sabemos selecionar; 3) Alimen-

tamos mal.E, ainda por uma falsa com-preensão de economia, abusa-se, com exagero mercedor demaior censura, da consangui-nidade. Lavradores há queconstantemente utilizam ca-valos, com o seu ferro, comogaranhões. Não se julgue quefantasiamos ou muito pior quecaluniamos. Muito prazer te-ríamos em dizer o contrário:que a escolha de reprodutoresse fazia com o mais severocritério.

Selecionem pois os lavradoresas suas éguas com rigorosocritério, embora isso importea redução das manadas; com-prem o reprodutor a algumcriador que também tivessesabido resistir às enganadorastentações da moda, para assimevitarem os inconvenientes daconsanguinidade muito estreita;alimentem fartamente; nãosubmetam os potros e éguasà dura pena de trabalhos for-

çados e, seguros estamos deque, em poucos anos, levantarão

o nível das suas coudelarias. E maistarde, quando lhes for possível adquirirum bom reprodutor que tanto pode serum árabe de verdade como um legitimoandaluz, em cujas veias corre ainda ogeneroso sangue do cavalo do deserto,que excelentes éguas encontrarão essesanciados restauradores do antigo cavaloportuguês.

Já dissemos o que pensávamos arespeito do cavalo árabe e do andaluz,inquestionavelmente os antepassadosdos cavalos portugueses. A introduçãodestes dois cavalos, nas coudelarias na-cionais, nunca para nós representaráportanto, um cruzamento. A propósitodo andaluz acrescentaremos que não

Cavalo berbere da tribo dos Flitas, departamento de Orão (Argélia) (in Boletim da Estação Zootécnica Nacional 1937)

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consideramos um puro representanteda raça, aquele, cuja cabeça, for acen-tuadamente convexa. Estes cavalos sócomeçaram a aparecer em Espanhadepois da importação dos cavalos di-namarqueses de tipo ultra-convexo,que um rei de França pôs em moda.

Aos estudiosos e a todos aquelesque reconhecem as vantagens e diremosmesmo a necessidade de se ilustraremneste tão interessante ramo da ciência,que é a zootécnia, aconselhamos, emprimeiro lugar, a leitura dos escritos deSilvestre Bernardo Lima, publicados emvolume, pelo Ministério do Fomento em1913. A nenhum criador de cavalos élícito desconhecer tão interessante obra.Brilhantemente escrita e cheia depreciosos ensinamentos, pois Sil-vestre Bernardo Lima, possuíauma vasta ilustração, ela é aúnica, sobre a especialidade,escrita em português, que comorgulho podemos arrumar nasnossas estantes.

Tenho de introduzir umaexplicação retirada dos textosde Silvestre Bernardo Lima(1824 – 1893), onde o autorjustifica que “não há no fundocruzamento senão antes cas-tiçamento, quando se repro-duzem entre si cavalos árabese lusitanos, porque não sãode raça diversa (e só em raçasdiversas há cruzamento) massim da mesma raça ou casta(Bernardo Lima, Estudos hyp-picos, in A agricultura Portu-gueza – 1890). Prossegue ain-da referindo que ambos per-tencem ao E. caballus asiaticus.Sans..

Obviamente que ao termi-nar esta selecção de transcri-ções do Eng.º Manuel TavaresVeiga, não posso deixar de reco-mendar a leitura na integra deste livrogenial, que facilmente pode ser en-contrado no interior do livro "CavalosVeiga - Tradição e Actualidade", deAlberto Tavares Barreto. Aproveitopara lançar três perguntas: quantoscriadores portugueses conhecem aobra de Silvestre Bernardo Lima?Quantos leram com atenção o livro“Alrededor del Caballo Espanol” –1954 – escrito pelo Dr. Ruy D’An-drade? Quantos leram o “O cavaloPortuguez” do Eng.º Manuel TavaresVeiga?

Girando a agulha do PeninsularVeiga para o Peninsular Andrade, po-deremos encontrar escrito pelo Dr.

Ruy D’Andrade: Alguns dos meuscavalos têm visível introdução de sangueárabe. Atribuo esse facto, como jádisse, ao “Guerrillero”, de Aranjuez, dagenealogia Guerrero; ou a algum as-cendente do “Nice”, de Alter; ou aindaa alguns dos ascendentes árabes do“Neapolitano”, de Lippiza. É o quepode haver de estranho; mas, conformeas notas genealógicas, tudo isto tãodistante e diluído, que pode ser des-prezado. E qual será hoje o cavalo an-daluz absolutamente puro na sua as-cendência? Quando não foram cavalosnórdicos, foram seguramente berberese árabes de tempo a tempo introduzidos.(livro Font’alva 1895-1941); Eis os mo-

tivos por que optei pela raça andaluza,na qual escolhi uma única família paraobter animais de parentesco bastantepróximo, dando preferência aos repro-dutores ruços da família Zapata porserem os que oferecem probabilidadesde mais facilmente manter o tipo ber-bere, que é o mais forte e resistentedentro da raça (O cavalo andaluz –1937 - Ruy D’Andrade). De acordocom o Dr. Ruy D’Andrade aos cavalosafricanos da orla mediterrânica, apli-ca-se geralmente o nome de raçaberbere. (Ruy D’Andrade - O cavalo

Andaluz de Perfil Convexo – 1941).Num entendimento que não é ape-

nas meu, adapto as palavras de SilvestreBernardo Lima (Silvestre BernardoLima – Equinos – Coimbra imprensada universidade - 1913), à consideraçãode que o cavalo Peninsular portuguêsde finais do séc. XIX, início do séc.XX, “reflecte em si a qualidade e ocarácter do homem que o produz eé a expressão das necessidades daépoca em que se vive”

A realidade do cavalo sempre tevepor suporte factores económicos,geográficos, e sociais. Com base nestapercepção, será fácil antever que ocavalo português do passado acom-

panhou de uma forma fiel a históriado Homem Português. A história dePortugal fala-nos de um Homem quenunca teve pruridos com a mistura,quer entre si, quer entre os animaisque produzia. Este facto é inquestio-nável, e reflecte talvez, reminiscênciasda visão de um povo de descobridores,que cruzaram e integraram as culturasdo mundo de então, “dando novosmundos ao mundo”. Cada qual à suamaneira, também as famílias Andradee Veiga, de uma forma frontal, trans-parente, e documentada, afirmaram-

se pelo pragmatismo de uma obra,onde sobressaiu o império de umavisão pessoal e genial, dando ao mundohípico português de então, um valiosocontributo para o enriquecimento dopatrimónio genético do cavalo Penin-sular ou Ibérico.

Fazendo um aparte importante re-lativo ao termo puro sangue, comonos salienta Andrés Cabrera (El CaballoMoruno – Madrid – 1921), aplicadoao Puro Sangue Inglês, diz-nos que omesmo reflecte uma enorme inexac-tidão por parte dos hipólogos queatribuíram esse nome a uma raça,cuja formação adveio da intervençãode pelo menos três raças orientais, e

uma quarta, a Inglesa, que era jáentão uma mistura de outras.

A macro visão que advémda criatividade funcional as-sociada à cultura de um povo,enquanto factor de diferen-ciação genuinamente portu-guês (com produtos impos-síveis de copiar, tais como acortiça, o azeite, e outrostais) pode-nos engrandecere distanciar do micro marke-ting do pensamento pré-em-balado, quer do corrente mitodo purismo Lusitano acen-tuadamente ariano (que sedeve restringir em exclusivoà imagem de marca – exac-tamente como no puro san-gue inglês – e nunca procurarinexistentes fundamentos depureza), quer da condicio-nante do tradicionalismo dog-mático e inquestionável da“estória sem história… apenasporque sim”, tão querida aalguns, pois projecta uma co-modidade que dispensa a re-

flecção e a pesquisa. Esta pos-tura, acéfala por falta de coerência

cultural e sentido de progresso fun-cional, acaba por encerrar o actualPuro Sangue Lusitano numa gaiola detradição dourada, que nos conduz àjá célebre frase do Francisco Cancellade Abreu: “QUANTO MAIS TRADI-ÇÃO MENOS EVOLUÇÃO”.

Fiquem-nos os exemplos da fron-talidade e clareza sustentada, de trêsreferências na importância do cavaloportuguês: Prof. Dr. Silvestre BernardoLima (1824 – 1893); Eng.º ManuelTavares Veiga (1863-1950); Dr. RuyD’Andrade (1880-1967). Um bem-haja aos três que escreveram, pes-quisaram, fundamentaram, e deixaramobra portuguesa de referência! n

Pastorcito, cavalo andaluz da casta Zapata, pertencente à antiga coudelaria de D. Vicente Romero y Gar-cia, de Jerez de la Frontera - A semelhança entre estes dois cavalos denota o estreito parentesco do ber-

bere com o andaluz (in Boletim da Estação Zootécnica Nacional 1937)

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