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  • 8/13/2019 Mudana poltica no Brasil

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    Mudana poltica no Brasil:

    aberturas, perspectivas e miragens1

    Fbio Wanderley Reis

    I

    Em maro de 1983, participando de uma reunio de cientistas sociaissobre a teoria democrtica, tive a oportunidade de assistir apresentao deum trabalho de Philippe Schmitter sob o titulo de "The Demise ofAuthoritarian Regimes".2Vendo-o formular um elaborado "modelo" do

    desaparecimento ou morte dos regimes autoritrios referido de maneiraenftica aos pases latino-americanos, lembrei-me de que apenas uns

    poucos anos haviam transcorrido desde a publicao do volumoso estudoorganizado por Juan Linz e Alfred Stepan sob o ttulo de The Breakdovm of

    Democratic Regimes, onde o caso dos pases latino-americanos ocupaigualmente lugar de relevo.3A impresso de fluidez que essa observaosimples produz com respeito ao estudo dos problemas polticos da regio serefora quando nos damos conta de que tambm entre os economistasencontramos uma sucesso de diagnsticos a ocorrerem na esteira dos

    eventos: vamos, por exemplo, da estagnao pelo esgotamento do modelode substituio de importaes aos diagnsticos de "alm da estagnao"...De outro lado, no se trata aqui de algo restrito aos temas especificamentelatino-americanos, como a voga atual do conceito de corporativismo deixaclaro. Basta lembrar que, enquanto at h pouco esta expresso era umaespcie de xingamento aplicado seja s experincias de tipo fascista, seja acertas "tradies" no muito respeitveis e peculiares a determinados pases

    1Publicado em Cadernos DCP, 7, outubro de 1985. Originariamente apresentado ao seminrioOportunidades e Limites da Sociedade Industrial Perifrica: O Caso do Brasil, promooconjunta do Stanford-Berkeley Joint Center for Latin-American Studies e do InstitutoUniversitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro, Nova Friburgo, 18 a 20 de julho de 1983, eBerkeley, Califrnia, 29 de Janeiro a 2 de fevereiro de 1984.

    2Conferncia pronunciada no Inter-University Centre, Dubrovnik, antiga Iugoslvia, em 31 de

    maro de 1983.

    3

    Juan Linz e Alfred Stepan (eds.), The Breakdovm of Democratic Regimes, Baltimore, JohnsHopkins University Press, 1978.

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    ou regies (a tradio "ibrico-latina" de Wiarda, por exemplo),4somosagora, subitamente, todos "corporativistas", apesar de certa variedade dematizes.5

    Por certo, no minha inteno sugerir que a cincia social, naAmrica Latina ou fora dela, deixe de ocupar-se dos eventos que, a cadamomento, marcam a conjuntura e assinalam possveis pontos de ruptura ereorientao do processo histrico. indispensvel, porm, que essasensibilidade aos eventos no redunde em mera flutuao de temas emmoda ao sabor deles, como parece vir ocorrendo no perodo recente. O

    presente seminrio, buscando colocar em perspectiva alguns problemas dasociedade brasileira contempornea naquilo que ela compartilha com outrassociedades industriais perifricas, parece ocasio adequada para que sedestaque a necessidade de uma postura mais proveitosa. Tal postura devernecessariamente traduzir-se num esforo em que a incorporao doseventos seja conduzida de maneira consistente e sistemtica vale dizer,teoricamente equipada e ambiciosa e, portanto, "estruturante". Isso requer,a meu ver, precisamente certo tipo de distanciamento com relao aoseventos. Se no tivermos condies de nos desincumbirmos a contento datarefa assim definida, mais vale que nos limitemospara ficar no mbitoda poltica leitura do bom jornalismo de um Carlos Castello Branco...

    Ainda duas palavras guisa de introduo. Como pretendo

    justamente destacar, no que segue, alguns aspectos polticos do tema geralque nos ocupa, no h como omitir o problema posto pelas propores dacrise econmica do momento, a qual pode talvez produzir o sentimento defutilidade diante de qualquer discusso que no privilegie diretamente asquestes econmicas supostamente as questes "bsicas". Sou da opiniode que tambm aqui temos envolvidos certos problemas terico-metodolgicos a merecerem exame por si mesmos, embora tal exame no

    possa, naturalmente, realizar-se nesta oportunidade. Cabe assinalar,contudo, que, ao invs do convite ao retraimento, as propores da crise

    econmica no devem ser tomadas seno corno razo a mais para que oanalista poltico se faa presente. E isto no apenas porque a criseeconmica, vistas as coisas de maneira convencional, tender

    provavelmente a produzir consequncias polticas de monta. Na verdade, o

    4Veja-se, por exemplo, Howard Wiarda, Toward a Framework for the Study of Political

    Change in the Iberic-Latin Tradition: The Corporative Model, World Politics, 25, 1, Janeiro de1973.

    5Veja-se, por exemplo, Suzanne D. Berger (ed.), Organizing Interests in Western Europe:

    Pluralism, Corporatism, and the Transformaton of Politics, Cambridge: Cambridge UniversityPress, 1981.

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    que est em jogo no embate de interesses materiais que configuram a crise algo no menos diretamente "poltico" do que "econmico" em suanaturezaproposio que se articula com a idia de que a "base social" dosconflitos de qualquer tipo no corresponde menos esfera prpria do

    poltico do que o plano que tem a ver com a traduo organizacional ouinstitucional ("poltico"-institucional) de tais conflitos. Isso encerra, comoparece claro, uma tentativa de redefinio das relaes entre infra-estrutura("econmica") e superestrutura ("poltica") que seria preciso elaborar.6Como no pretendo tentar aqui tal elaborao, passo diretamente ao que me

    parece o cerne da questo que me foi proposta pelos organizadores denosso seminrio, na esperana de que essa vaga sugesto possa ser deutilidade no exame dos temas especficos.

    II

    Avaliar as perspectivas do processo de transformao poltica noBrasil de hoje supe, naturalmente, que se disponha de um diagnstico denossa atualidade poltica. Procurarei esboar rapidamente o que me pareceum diagnstico adequado, desculpando-me por ter de enunciar, de permeio,certas banalidades.

    O regime autoritrio brasileiro de ps-64 me parece apresentar duascaractersticas importantes para a compreenso dos problemas que sua

    vigncia envolve.

    A) A primeira delas diz respeito s restries incorporao plenados "setores populares" vida poltica. Tal caracterstica se relaciona com a

    prpria origem do regime e seu significado "estrutural". O problema aquienvolvido encontra expresso na retomada recente do debate sobre estado esociedade no Brasil. Uma das posies a respeito provavelmente a maisfestejada e difundidasalienta a insero do pas numa tradio

    patrimonial e corporativista e pretende ver nos eventos de 1964 e seu

    desdobramento a reiterao de certas tendncias bsicas sempre presentesem nossa vida poltica, que lhe conformariam mesmo a feio peculiar ou a"essncia", embora s vezes contrariada por flutuaes superficiais. Emcontraposio, a perspectiva em que se destacam as dificuldades envolvidasna incorporao poltica dos setores populares v no autoritarismo de ps-64 uma das vicissitudes decorrentes da transformao da estrutura social

    6Essa redefinio tentada em meu Poltica e Racionalidade: Problemas de Teoria e Mtodo

    de uma Sociologia Crtica da Poltica, Belo Horizonte, UFMG/PROED/RBEP, 1984.

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    brasileira. Ao invs da mera reafirmao de padres tradicionais ouseculares de relacionamento entre "estado" e "sociedade", trata-se deapontar as mudanas ocorridas na prpria conformao da sociedade e os

    problemas que tais mudanas colocam para a estrutura e o funcionamento

    do estado. Em particular, caberia falar da emergncia do que se podedescrever como a fase da "poltica ideolgica" por oposio "polticatradicional" ou "pr-ideolgica", caracterizada pelo processo demobilizao social e pelo aparecimento de grupos tais como as classessociais, enquanto focos de solidariedade tendencialmente universalstica,em substituio ou complementarmente aos vnculos de natureza pessoalou particularstica tpicos da fase anterior.7

    Assim, o diagnstico do processo poltico vivido pelo Brasil nasdcadas recentes pode ser formulado em termos de que o pas vive umacrise constitucional em sentido sociopoltico profundo (embora,naturalmente, com ramificaes jurdico-organizacionais): o que est em

    jogo a questo de uma reacomodao no convvio de foras sociaisimportantes, correspondentes, em ltima anlise, s classes sociais. Aexpresso ou consequncia mais clara dessa crise opretorianismo quetem marcado a vida brasileira, com a presena saliente dos militares no

    processo poltico como decorrncia do debilitamento dos mecanismosinstitucionais que se revelaram aptos a enquadrar aquele processo naestrutura oligrquica tradicional. Naturalmente, possivel e necessrio

    distinguir fases no processo deflagrado pela crise constitucional e pelairrupao do pretorianismo, em correspondncia, por exemplo, com adistino proposta por Huntington entre o pretorianismo "radical" e o "demassas".8Um primeiro momento do pretorianismo brasileiro pode serdiagnosticado nas agitaes que marcam o que se tornou conhecido como omovimento tenentista, a culminar na Revoluo de 30. Esse movimentocorresponde,grosso modo, mobilizao das classes mdias, que secontrapem ao carter estritamente oligrquico do processo polticoanterior e demandam participao. A atuao poltica dos militares, como

    atores privilegiados da condio pretoriana em qualquer de suas fases ouformas, adquire nesse momento um sentido inequivocamente dinmico ou

    progressista. Socialmente vinculados sobretudo aos setores mdios,concorrem eles de maneira crucial para a ampliao dos parmetros dentro

    7Veja-se Fbio W. Reis, Brasil: 'Estado e Sociedade' em Perspectiva, Cadernos DCP, 2,

    dezembro de 1974.

    8

    Samuel P. Huntington,Political Order in Changing Societies, New Haven, YaleUniversity Press, 1968, cap. 4.

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    dos quais se desenrola o jogo poltico e para a busca de formatosinstitucionais compatveis com a participao poltica ampliada.

    Mas as coisas mudam no momento seguinte. As transformaes

    sociais que deflagram inicialmente o pretorianismo, ao se desdobrarem eaprofundarem, abrem a caixa de Pandora da mobilizao sociopoltica e dasdemandas de particio e agora a vez de trabalhadores manuais esetores populares em geral, que se expandem e concentram nas cidades emcrescimento, baterem porta de um sistema poltico construdo suarevelia. O populismo, com a emergncia de lideranas e mensagens queapelam insatisfao ideologicamente pouco articulada desses setores, uma das consequncias importantes. A atuao poltica dos militares mudade sinal: de arete em favor da mudana poltica e do alargamento da

    participao, passam eles agora a agir predominantemente como guardiesda ordem precariamente instituda, como assinala Huntington com

    propriedade. E, compondo-se num quadro de disputas poltico-ideolgicasque se ramificam no plano internacional e ganham a coloraes especiais,o autoritarismo tal como o experimentamos a partir de 1964 surge comoreao s presses crescentes de participao popular e s ameaas detransformao radical do sistema poltico que parecem resultarinexoravelmente, aos olhos das lideranas militares e demais membros doestablishment, da dinmica do populismo.

    Na crise constitucional que assim se configura, duas dimensesbsicas compem o dilema que a define em nossos dias.

    1. A primeira delas tem a ver com as caractersticas peculiaresapresentadas pelos setores populares majoritrios da populao brasileirado ponto de vista poltico-ideolgico e com as consequncias de taiscaractersticas relativamente s propenses daqueles setores em termos decomportamento eleitoral. A importncia disso bastante clara, j que partecrucial do problema da normalizao democrtica da vida brasileira passa,

    obviamente, pela possibilidade de recurso regular e sem sobressaltos amecanismos de consulta eleitoral livre e consequente.

    Ora, apesar da marcada heterogeneidade do eleitorado brasileiro,vrios estudos mais ou menos recentes apontam de maneira reiterada certostraos que parecem distinguir o eleitorado popular em sua vasta maioria.Tais traos parecem resumir-se em algo que, em certa tica, caberiadescrever como uma ambiguidade fundamental. De um lado, trata-se a deeleitores caracterizados por serem politicamente alheios, com frequncia

    propensos a atitudes de deferncia e a se deixarem mesmo impregnar, aonvel dos valores verbalizados, pela retrica empregada na propaganda de

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    um regime autoritrio como o atual. Alm de se mostrarem, em proporesavassaladoras, desinformados e indiferentes com respeito aos grandestemas do debate poltico-institucional da atualidade brasileira, mesmotemas como o custo de vida, que se presumem afetar de maneira mais

    direta o cotidiano dessa frao do eleitorado, esto longe de mostrar, dentrodela, relaes claras com o comportamento eleitoral favorvel oposio.De outro lado, contudo, essa propenso oposicionista no deixa de afirmar-se como caracterstica majoritria e consistente dos setores em questo:claramente, uma vez ultrapassado certo limiar de participao sociopolticageral (deixando-se a condio de estrita marginalidade, mais marcadamentedistinguida por hbitos de deferncia social e por total alheamento poltico,a ser encontrada nos setores populares rurais e nos extremos de pobreza das

    populaes urbanas), d-se a tendncia ao voto oposicionista.

    Assim, no eleitorado popular, em cuja percepo no se integramseno precariamente os diversos aspectos ou dimenses do universosociopoltico, a opo eleitoral oposicionista parece ligar-se antes aocontraste vagamente apreendido entre o popular e o elitista ("ricos" versus"pobres", "povo" versus "governo"), no qual se traduz urna insatisfaodifusa incapaz de articular-se por referncia a problemas especficos dequalquer natureza. Por outras palavras, votar na oposio , para o eleitorem questo, um pouco como "torcer" por uma equipe popular de futebol o Flamengo, digamos, para tomar a mais popular delas. Mas o simplismo

    mesmo das percepes e imagens em que se baseia essa propenso umdos fatores a emprestar consistncia e estabilidade aos padres de votao

    popular: assentada a poeira das perturbaes do quadro partidrio,vislumbrados, em seguida a cada rearranjo mais ou menos artificial ouimposto desse quadro, os novos contornos poltico-partidrios dacontraposio entre "povo" e "elite", volta-se, como no populismo de pr-64 ou no MDB de ps-64, ao leito "natural". Temos, assim, uma espcie de"sndrome do Flamengo" que no apenas tende a negar ao regime atual a

    possibilidade de verdadeira legitimao pela via eleitoral como tambm faz

    do populismo, na atualidade brasileira, uma fatalidade, desde que ascondies institucionais permitam um jogo poltico razoavelmente aberto esensvel ao eleitorado.

    2. A segunda dimenso da crise constitucional de nossos dias no mais do que a contrapartida da primeira no que diz respeito s percepes edisposies dos titulares do poder autoritrio, em particular as forasarmadas. Ela tem a ver diretamente com as mencionadas restries incorporao plena dos setores populares ao processo poltico, envolvendo

    o objetivo de estrita "domesticao" da participao a lhes ser consentida.Essa viso se articula com a tendncia a encarar cornosublevao, real ou

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    grupos, por certo, so um fator adicional de corroborao do complexo desublevao interiormente corporao militar.

    B) A segunda caracterstica do autoritarismo brasileiro de ps-64 diz

    respeito ao fato de que, por contraste com os casos de regimes autoritriosonde existe a figura de um caudilho que de alguma forma personifica oregime e propicia um foco de coeso, o caso brasileiro corresponde ao deum autoritarismo sem caudilho cujo ncleo representado pela corporaomilitar como tal caracterizao que afim, certamente, que fazGuilhermo O'Donnell em termos de regimes "burocrtico-autoritrios". Aocorrncia de um caso ou de outro se acha provavelmente relacionada aograu geral de desenvolvimento e complexidade alcanado pela estruturasociopoltica, bem como ao grau de profissionalizao da prpriacorporao militar (apesar de que o papel exercido pela figura do chefe nosregimes propriamente fascistas sugira padres mais complexos a esterespeito). Por sua vez, os aspectos que acabo de mencionar podemrelacionar-se de maneira no muito simples com os mecanismos associadosao desdobramento da poltica ideolgica e superao da condiomarcada pelos traos de grande heterogeneidade poltico-ideolgica de quese falava acima com referncia ao eleitorado brasileiro. Como quer queseja, a observao crucial tem a ver aqui com a aparente diversidade dos

    padres de estabilidade e crise dos dois tipos de autoritarismo.

    Assim, enquanto os regimes de caudilho parecem exibir maiorestabilidade de curto prazo ao mesmo tempo em que se vem expostos aameaas mais srias a sua prpria sobrevivncia no momento de sucesso,os regimes sem caudilho parecem debater-se de maneira continuada nasmalhas de um dilema que o caso brasileiro mostra de forma clara.Caracteriza esse dilema o fato de que o xito mesmo dos militares emexcluir a "sociedade civil" do acesso s decises polticas cruciais e emrestringir a participao em tais decises em grande medida corporaomilitar tende a fazer desta ltima um organismo exposto competio

    interna e a riscos de dissenso. Como consequncia, qualquer projeto deregularizao do processo poltico no contexto de predominnciaindisputada dos militares se torna problemtico, o que se ilustra, no caso

    brasileiro, pelo potencial de crise a ser encontrado em cada momento desucesso presidencial. A sada para a dificuldade pareceria ser a expansoda esfera dentro da qual o jogo poltico se desenvolve e a diversificao dosatores polticos relevantes, o que favoreceria a coeso da corporao militartanto ao propiciar o elemento de contraste quanto ao reduzir os prmios dasapostas envolvidas na competio interna. Ademais, a operao continuada

    do autoritarismo sem contrapesos termina por segregar, junto ao ncleointerno do "sistema", organismos e faces vinculados sua segurana, os

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    quais, exprimindo a lgica mais ntima do regime, escapam em algumamedida ao controle de sua liderana ostensiva e se erigem em guardies daortodoxia. A problemas dessa natureza se liga, sem dvida, a observao deque a retrica "aberturista" esteve sempre presente, expressa num

    vocabulrio variado, no funcionamento do regime.Contudo, a sada da abertura envolve claramente os seus prprios

    problemas. Alm de contrariar interesses criados da corporao militarcomo tal e de trazer o espectro do revanchismo, d-se o perigo de quefaces potenciais ou efetivas a serem encontradas dentro das forasarmadas venham a estabelecer coalizes com setores da "sociedade civil",ameaando agravar assim o problema mesmo da coeso que se trataria deresolver. Certamente mais importante em perspectiva de mais longo prazo,

    porm, o fato de que, quaisquer que sejam as chances de que o perigo quese acaba de mencionar possa ser evitado, nas condies prprias da polticaideolgica e diante das disposies do eleitorado popular, o objetivo deconter a estratgia "aberturista" dentro de limites compatveis com a"frmula poltica" em vigor (com seu requisito fundamental de controlesobre a incorporao poltica dos setores populares) tambmextremamente problemtico. Donde o padro de oscilaes em que fases de

    busca cuidadosa de abertura ou distenso tm se alternado com fases ouiniciativas voltadas para a recomposio "dura" da coeso.

    Duas proposies merecem destaque a partir dessa anlise. Emprimeiro lugar, a de que os esforos relacionados com o projeto de aberturaou distenso significaram basicamente, atravs dos meandros econtradies expostas, a busca de institucionalizao do regime como tal,ou de regularizao do processo poltico dentro de um arcabouoautoritrio. Ha razes para se acreditar que a avaliao da viabilidade do

    projeto de institucionalizao autoritria se modificou com o correr dotempo, e formulaes explicitas e... autorizadas dessa reavaliao se tmem manifestaes como, por exemplo, a conferncia pronunciada por

    Golberi do Couto e Silva na Escola Superior de Guerra em 1980, onde oex-ministro se refere "panela de presso" em que se teria transformado oorganismo nacional e destaca a necessidade de um "processodescentralizador" corno forma de neutralizar presses que poriam emrisco a resistncia do sistema. No creio, porm, que se justifique presumirque as disposies bsicas subjacentes busca de institucionalizao do

    prprio regime se tenham tambm alterado de forma substancial. E mesmoagora, quando passos inquestionavelmente importantes foram dados no

    processo de abertura e quando certos aspectos dos resultados das eleies

    de 1982 vieram reiterar com fora a precariedade das perspectivas de

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    legitimao eleitoral do regime, cumpre ver com reserva a possibilidade deque venhamos a ter uma real e consequente abdicao por parte dele.

    A segunda proposio a de que, precisamente pelo vigor do ethos

    bsico que permeia a corporao militar, pelos fortes interesses criados,pelo temor do revanchismo e o que tudo isso coloca em jogo do ponto devista do "sistema", este revela no fundo, de maneira paradoxal diante dasmanifestaes aparentes acima destacadas, um alto potencial de coeso,que se tem tornado efetivo sempre que a dinmica dos processos internos,em sua articulao com o jogo da sociedade civil, ameaa levar as forasarmadas ciso e ao confronto interno reais. Pondere-se, a propsito, quemesmo a intensa deteriorao do organismo nacional que se observa

    presentemente na Argentina no foi suficiente para levar as foras armadasdaquele pas efetiva ruptura da unidade. No Brasil, basta lembrar amaneira pela qual, nos momentos de sucesso, indcios de crise e ameaasde diviso interna ou mesmo de golpes tm reiteradamente dado lugar reafirmao vigorosa da coeso, se necessrio ao preo de atos de fora quese contrapem rotundamente ao discurso "distensionista" ou "aberturista".Alm disso, cumpre no minimizar o significado de que fatos da gravidadedos correspondentes ao episdio do Riocentro ou ao envolvimento do SNIem numerosos assuntos escusos fatos estes que, afinal de contas, somuito recentes, e contemporneos de alguns dos passos mais decisivos do

    processo de aberturapermaneam infensos a qualquer esforo de

    apurao e esclarecimento, ou sejam mesmo deliberadamente acobertados.

    A consequncia que parece decorrer da anlise a de que, mesmodiante das hipteses mais otimistas, em certa tica, para o desdobramentoda atual conjuntura como, por exemplo, a de que a sucesso presidencialatualmente em jogo, dadas as dificuldades acarretadas pela conjugao dacrise econmica com os problemas internos do sistema, se resolva pelaconvocao de eleies diretas para a Presidncia da Repblica, a crise

    poltico-institucional brasileira est longe de resolver-se. Os fatores

    responsveis pela caracterstica pretoriana da vida poltica brasileiracontinuam a operar, e no h qualquer razo para supor que o

    pretorianismo corno tal tenha sido superado ou esteja em vias de superar-seno refluxo do controle direto do processo poltico pelos militares queaparentemente presenciamos no momento.9 Obviamente, esse refluxo pode

    9Alguns participantes do seminrio sobre Oportunidades e Limites manifestaram estranheza

    pelo uso feito da noo de pretorianismo para designar urna condio em que, com a vignciado regime autoritrio, no se tem a presena ostensiva e algo catica de foras sociais diversasna cena poltica, presena esta apontada como caracterstica do pretorianismo. Gostaria de

    contrapor a observao de que o trao fundamental da condio pretoriana, na clssicacaracterizao de Huntington na obra citada, a debilidade dos mecanismos institucionaisdestinados a regular o jogo poltico, donde decorre que cada fora social se atire disputa

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    ser temporrioe nada, nos movimentos recentes do prprio regimebrasileiro ou na experincia de marchas e contramarchas de regimesanlogos em outros pases, parece autorizar o otimismo que permeia certasanlises da redemocratizao em andamento. Trata-se aqui

    inequivocamente, a meu ver, de uma situao em que a apreenso adequadado processo particular a desenrolar-se, mesmo em seu significado de curtoprazo, requer postura distinta da representada pela perseguio aos eventosalgo ingnua de que se falava acimabem como a obteno dodistanciamento capaz de permitir o enquadramento terico e, portanto, odiagnstico apropriado do processo em questo.

    III

    Na impossibilidade de empreender aqui a discusso que serianecessria para tentar esboar de maneira conveniente esse enquadramento,ressalte-se apenas a flexibilidade e a riqueza analticas de que se dispequando se amplia o foco para considerar, como indiquei rapidamenteacima, certas caractersticas do prprio ambiente ou contexto sociopolticogeral onde se d a variedade de autoritarismo em que se inclui o caso

    brasileiro. No apenas se reconhece no pretorianismo um dos traos bsicosdesse contexto, o que consequncia do impacto das transformaesestruturais e da ativao de novos grupos e categorias sobre a vigncia dosmecanismos institucionais que buscam canalizar de forma regular e efetiva

    o processo poltico; mais que isso, d-se nfase ao fato de que o que seencontra fundamentalmente em jogo nesse contexto, em conexo com anecessidade de reacomodao no convvio de foras sociais diversas,

    precisamente um problema de criao institucional e, portanto, desuperao do pretorianismo. Por outras palavras, trata-se precisamente deestabelecer e consolidar novas regras e mecanismos institucionais quemeream o nome isto , capazes de terem vigncia, o que redunda emnovo pacto constitucional. Falar de "pacto", porm, claramente recorrer aum eufemismo, pois tal problema na verdade se coloca e "resolve"

    sempre de maneira mais ou menos provisria no embate de interesses e

    poltica com os recursos de qualquer natureza que tenha mo. Nessa condio, a proeminnciaassumida pelos militares (a qual justificaria mesmo a utilizao de um termo que alude a forasmilitares para dar-lhe nome) tem a ver com a peculiaridade dos recursos controlados por eles, asaber, os instrumentos de coero fsica; portanto, o comando poltico exercido autoritariamentepelos militares no seno a realizao mais cabal do pretorianismo, e seria claramenteimprprio supor que a supresso violenta da manifestao das demais foras sociais redunde,por si mesma, em algo que merea ser visto como a superao do pretorianismo. Ao contrrio, amenos que se possa demonstrar, neste ou naquele caso, que o regime militar se traduz emconstruo institucional efetiva, a presuno deve ser a de que as demais foras se faro

    presentes em termos pretorianos to logo o regime relaxe seu componente autoritrio

    presuno esta que a atualidade brasileira parece justificar.

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    propostas "constitucionais" diversas, respaldadas por instrumentos de poderde natureza variada. Assim, a "soluo" do problema constitucional assumefeies histricas nas quais o esforo de institucionalizao oureinstitucionalizao de formas polticas dadas expressar inevitavelmente

    as desigualdades que caracterizam as posies relativas das diversas forasou focos de interesses. Alm disso, a particular estrutura objetiva dedesigualdade ou de relaes de poder que prevalece em determinadacircunstncia tende ela mesma a refletir-se, no plano subjetivo, na vignciamais ou menos difundida ou hegemnica de concepes ideolgicas quelhe so afins e a legitimam com frequncia em conexo com a meracapacidade de durar que o projeto institucional correspondente manifesteem decorrncia da prpria capacidade de recorrer com eficcia coero.

    Feio especial das dificuldades a envolvidas se relaciona com umparadoxo inerente prpria atividade poltica como tal, em suas ligaescom certa ambiguidade caracterstica do aspecto "institucional" ou"institucionalizado" da realidade social. Com efeito, essas expressesreferem-se, por um lado, esfera dos "procedimentos" ou "mecanismos"suscetveis de manipulao e criao artificial (isto , o institucional comoobjeto,passvel de esforos de "institution-bulding" ), esfera esta quecontrasta com a idia do "institucionalizado" em sentido sociologicamentemais denso, a qual alude antes dimenso "opaca" e pouco manipulvel darealidade social (o institucional como contexto). Ora, o drama da ao

    poltica, entendida em acepo mais ambiciosa do que a mera defesa maisou menos imediatista de interesses prprios, reside em que, visando amodificar o institucional como contexto, deve necessariamente cumprir-sena esfera do institucional como objeto e no pode, ao cumprir-se, escapardos condicionamentos e constries do seu prprio contexto("institucionalizado"...).

    De tudo isso deriva a exasperante precariedade frequentementerevelada pela caracterizao deste ou daquele caso, com base em indcios

    de prazo mais ou menos curto, como correspondendo a um esforo bemsucedido de institucionalizao. Ao lado da aparentemente exemplardemocracia chilena e sua brutal ruptura em 1973, a ilustrao mais pattica certamente a que resulta da aplicao simplista feita por Huntington aocaso paquistans do contraste entre pretorianismo e institucionalizao, queo leva a tratar o Paquisto de Ayub Khan como o exemplo por excelnciade xito institucional pouco tempo antes da sangrenta exploso popular quesacudiu o pas e terminou por comprometer mesmo sua integridadeterritorial.10 claramente conveniente, assim, que tenhamos em mente o

    10Cf.Political Order, op. cit., pp. 250 ss., especialmente p. 251.

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    que surge antes como uma dialtica entre esforos de institucionalizao erecadas pretorianas a operar no contexto geral em questo, e que

    procuremos ser sensveis fluidez mesma do processo que a se desenrolacomo algo a ser explicadoao invs de "modelar" e "explicar" cada

    trambolho ou cada mudana de curso que dela resulta.IV

    Impe-se, assim, procurar visualizar a conjuntura brasileira em ticamais abrangente e de prazo mais longo. O objetivo ltimo associado a essamudana de perspectiva , como parece claro, o de maior rigor terico, porcontraposio a certo empirismo vnementiel.No contexto de crise e dealto interesse prtico que cerca o presente seminrio, porm, quero

    beneficiar-me da exigncia assim detectada para me permitir, ao contrrio,certa "soltura"ou seja, valer-me da perspectiva menos apegada scircunstncias imediatas para reflexes que, em determinados aspectos,

    podem parecer irrealistas, especulativas ou "futuristas". Contudo, alm desua relevncia pela luz especial que pode permitir projetar sobre problemas

    prementes do presente, essa abordagem "solta" poderia talvez justificar-semesmo analiticamente como indicao tateante de dimenses a serem tidasem conta em esforos tericos mais rigorosos.

    Uma primeira ponderao que se poderia fazer, em correspondncia

    com pontos destacados anteriormente, a de que a superao dacaracterstica pretoriana que marca a atualidade brasileira envolve, demaneira mais direta, certos requisitos de ordem sociopsicolgica. Queroreferir-me com isso a um aprendizado de convivncia cvica que, exigindonecessariamente o transcurso do tempo e certo acmulo de experinciasque lhe sejam favorveis, venha a permitir, muito especialmente, asuperao do "complexo de sublevao" acima apontado nas forasarmadas. Por certo, a dimenso sociopsicolgica tem razes num substratoestrutural em que se do as relaes de poder antes salientadas, alm de que

    a relevncia daquela dimenso est longe de reduzir-se ao mbito dasforas armadas. Mas a prpria aluso a foras militares contida naexpresso "pretorianismo", como designao da condio mesma dedebilidade institucional, aponta para o que certamente o trao maisrombudo e saliente do autoritarismo que viceja na condio pretoriana: o deque, no vale-tudo da carncia de regras e mecanismos institucionaisvigorosos, prevalece, corno lembra Hobbes em passagem frequentementecitada, quem controla o trunfo representado pelos porretes ou pormodernas escopetas e bombas de gs lacrimogneo. O problema de como

    se dispem as foras armadas face ao processo poltico , portante, cruciale a preocupao de pensar em termos estrattigos (isto , instrumentais e

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    consequentes) a transio para uma democracia institucionalizada e estvelem condies como as brasileiras requer o reconhecimento preliminar deque as foras armadas tm que ser, digamos, contidas. A democracia no sefar contra a vontade de militares coesos, e apostar nas clivagens militares

    no parece, corno vimos, muito promissor, a no ser como ameaa acontribuir para as oscilaes entre ocuparem as foras armadas o primeiroplano da cena poltica ou o refluxo para uma posio de retraimentorelativoe expectativa vigilante. De outro lado, uma tradio de civismoapoltico entre os militares no se cria, por definio, da noite para o dia.Creio ser fatal admitir que precisamente a articulao do aspectosociopsicolgico com o de relaes de poder impe, nas condies prpriasda poltica pretoriana, grande ceticismo quanto soluo real do problemainstitucional em prazos previsveis com um mnimo de segurana. Tudoindica que tal soluo, com a maturao necessariamente lenta envolvidano aprendizado de convivncia cvica que a compe, algo a ser obtido nolongo prazo. Como o doente que, atravs das agruras da convalescenamais ou menos demorada, um dia pode lembrar-se de sua enfermidade edar-se conta retrospectivamente de que goza agora de boa sade, nocaberia, a rigor, seno esperar que as geraes do futuro (prximo?)viessem a ter a conscincia retrospectiva da sade poltica do pas. Taldesalento, ademais, encontra fundamento na sequncia no reversvel que

    parece existir nos casos clssicos de desenvolvimento poltico entre omomento de instaurao de um governo responsvel e constitucional (no

    sentido da tradio de constitucionalismo) e o momentoposterior demobilizao e criao de um processo eleitoral efetivo, sequncia esta noobservada nos pases que vivem hoje a experincia pretoriana.11

    Seja como for, navegar preciso e cumpre, pois, tratar de, emalguma medida, puxar-se pelos prprios cabelos, ou seja, insistir no esforode pensar em termos instrumentais e estratgicos, o qual o acicate porexcelncia mesmo da adequada delimitao analtica dos problemas. Nessa

    perspectiva, cabe salientar, a meu ver, dois conjuntos articulados de

    proposies relativamente atualidade poltica brasileira.

    O primeiro se refere ao reconhecimento da necessidade de que haja,por parte dos setores de opinio que se opem ao regime vigente e seempenham na democratizao real da vida brasileira, a disposio realistade negociao frente s foras armadas, como ator decisivo do ponto devista do objetivo de superao do autoritarismo quando nada em seusaspectos mais grosseiros. Como no se trata de institucionalizar o prprio

    11

    Cf. Giovanni Sartori,Partves and Party Systems: A Framework for Analysis, Cambridge,Cambridge University Press, 1976, vol. I, pp. 22-3.

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    autoritarismo, mas de instituir condies compatveis com a modificaode propenses e atitudes arraigadas e de inaugurar, eventualmente, umatradio cvica, igualmente indispensvel que o necessrio componentede realismo no comprometa a viso dos objetivos e de seu desdobramento

    no tempo. Parece claro que dificilmente se justificar apostar na eventualconteno definitiva das foras armadas em um quadro institucional estvelse o empenho de acomodao e aplacamento envolvido na disposio denegociar for demasiado pressuroso, comprometendo a dimensoconstitucional maior do objetivo de institucionalizao.

    A combinao dos aspectos a comporem essa dupla exignciaredunda em que a disposio de negociao deve, em primeiro lugar, estarcomplementada pela disposio de testar a cada passo a linha de resistnciado regime e de tirar proveito das dificuldades e dilemas que o autoritarismo

    prolongado acarreta para a prpria corporao militar; e, em segundo lugar,respaldar-se nos recursos mximos de poder que os setores interessados nademocratizao plena possam controlar, recursos estes em cuja ausncia a"negociao" no seria muito mais que mero apelo abdicao, apesar dosdilemas recm-mencionados.12Tais cautelas, contudo, no podemcontrariar o que seria urna decorrncia fundamental do diagnstico aquiensaiado: a de que se impe buscar "procedimentos" ou "mecanismos"institucionais que contemplem sem subterfgios a presena decisiva dasforas armadas e procurem regular "construtivamente" tal presena na

    idia de "construtivo" entrando aqui a procura de certo equilbrio entreaspectos como: 1) o reconhecimento do poder real da corporao militar e a

    busca de alguma forma mitigada de traduzi-lo institucionalmente; 2) apreocupao de eliminar o atual insulamento das foras armadas face sociedade em geral, permitindo seu convvio poltico-institucional regularcom os representantes de variados focos de interesses e opinies; 3) oempenho de neutralizar gradualmente precisamente as condies quetornam necessrios "artifcios" como estes, o que se poderia procurartraduzir, por exemplo, em dispositivos que contemplassem o reexame da

    vigncia dos mecanismos previstos ou sua reformulao em prazosdeterminados. Dado o ar rarefeito da regio em que me movo, limito-me aessas vagas sugestoes.13

    12No perodo posterior ao momento em que o presente texto foi escrito, a campanha das

    eleies presidenciais diretas representou, obviamente, a mobilizao bem sucedida de recursosdisponveis por parte das foras oposicionistas.

    13Na perspectiva de ps-15 de janeiro de 1985, no obstante a justificada euforiaou antes porcausa dela, indispensvel lembrar que a questo das foras armadas certamente subsiste

    como questo importante, sendo um dos itens salientes da agenda da Assemblia Constituinteque se espera para breve. A tendncia natural, num momento de desafogo corno o que pareceabrir-se ao cabo de 20 anos fundamente marcados pela presena poltica dos militares, a de

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    O segundo conjunto de proposies acima anunciado tem a ver coma questo dos partidos e seu papel no processo em exame. Claramente, noinstrumento partidrio-eleitoral se tem o recurso de poder por excelncia de

    que se falava h pouco como devendo respaldar a disposio negociaopor parte dos setores interessados na democratizao. Tal afirmao parecevlida sempre que se possa presumir que no basta a pura capacidade decoero com que contem os militares coesos o que, registre-se comclareza, algo conjunturalmente varivel, mesmo num quadrogeral de aparente avano dos movimentos de abertura e regularizao

    poltica: ocasionalmente basta aquela capacidade. Como quer queseja, o processo de experimentao partidria mais ou menos imposta peloqual temos passado permite, em seu confronto com a experincia

    partidria de pr-64, a observao de certas regularidades significativas.Ressalta dentre elas o que se descreveu antes como a "sndrome doFlamengo", em que certo tipo de consistncia oposicionista se conjuga,nos setores majoritrios do eleitorado popular, precisamente com traosque, do ponto de vista de padres sofisticados e coerentes de envolvimento

    poltico e de estruturao do universo poltico, seus problemas e osinteresses em jogo, no podem ser vistos seno como deficincias. Taiscaractersticas, se abrem a porta ao populismo e dificultam a legitimaoeleitoral de um regime dotado da marca antipopular que tem distinguido oatual, associam-se tambm com a vigncia, na conscincia popular, de uma

    forma singela de bipartidarismo latente que: 1) coloca problemaspeculiares aos movimentos partidrios que pretendam dirigir-se a essafrao do eleitorado, sobretudo o dilema da opo entre mensagens e

    posturas mais ideolgicas e principistas (at mesmo orientadas,

    fazer caso omisso de seu peso peculiar na realidade brasileira e retomar pura e simplesmente afico legal dos militares como meros guardies neutros e profissionais da legalidade e dasoberania nacional. Tal tendncia to natural quanto a que, na obscuridade do autoritarismoanterior s histricas eleies de 1974, e pouco tempo antes delas, chegava, em nome daavaliao realista da falta de vitalidade que ento caracterizava o Legislativo brasileiro, arecomendaes como a de transform-lo numa espcie de think tank, abrindo-se mo de ter neleum rgo de representao da coletividade. Naturalmente, o impacto dos resultados eleitorais de1974 e os eventos posteriores expuseram com clareza o irrealismo desse suposto realismo, quedeixava de lado componentes importantes (embora latentes) da realidade poltica brasileira deento. Simetricamente, preciso evitar agora o jogo de faz-de-conta que se acredita capaz deabolir o peso poltico dos militares por meio de um ato legal e arrisca com isso ver esse atomesmo atropelado pelos militares numa esquina prxima ou algo mais longnqua de nossoprocesso poltico. Seria necessrio, ao contrrio, na formulao dada por Marcus Figueiredo emreunio recente da Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Cincias Socias,procurar explicitar, em termos capazes de reclamar a aquiescncia consequente das forasarmadas, regras para o jogo real que as tem como participantes. A esperanaou a aposta

    que assim se possa chegar a efetivamente mudar tal jogo, ao invs de se continuar perdendorepetidamente a aposta de que os militares fiquem, sem mais, nos quartis.

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    eventualmente, por uma preocupao "pedaggica" de mais longo prazo,votada justamente a criar urna conscincia popular de outro tipo) e asexigncias clientelsticas ou populistas do xito eleitoral mais oumenos imediato; 2) situa como estratgia bvia do regime a de tratar de

    obter uma estrutura partidria fracionada, e sobretudo de ver multiplicadose mutuamente hostis os partidos de maior apoio popular potencial aocontrrio do que se deu com a implantao forada do

    bipartidarismo, baseada num erro de diagnstico que redundou em"vestir" institucionalmente o bipartidarismo latente e em reforar atendncia ao "plebiscitarismo" eleitoral que decorre deste. Que dizer do

    ponto de vista da articulao da questo partidria com a das perspectivasde superao do autoritarismo atual e, eventualmente, do prprio

    pretorianismo?

    Em primeiro lugar, seria importante, na atuao relacionada com aconstruo partidria, neutralizar junto aos mentores do regime a impressoou convico de que as manobras casusticas nesta rea pagameleitoralmente, e de que o regime poderia vir a desfrutar de legitimaoeleitoral estvel desde que se chegasse a encontrar a frmula adequada. Ahistria eleitoral recente do ps-64 comporta, a meu ver, mais de umaleitura a este respeito. Por um lado, patente a inclinao oposicionistamanifestada pela maioria do eleitorado, como assinalado acima. Mas, poroutro lado, so tambm fatos que a perplexidade popular perante uma nova

    estrutura partidria imposta permitiu ao regime produzir resultadoseleitorais favorveis durante vrios anos em seguida a 1965; que, mesmoem 1982, num estado como o Rio Grande do Sultalvez o mais avanadodo ponto de vista do envolvimento poltico do eleitorado, alm de ser o

    bero de algumas das lideranas mais hostilizadas pelo regimefoipossvel neutralizar o oposicionismo majoritrio e ganhar a eleio com umcandidato governista singularmente desmoralizado; que, em geral, aoposio ao regime se mostrou bastante sensvel s manobras divisionistas,sensibilidade cujos efeitos se poderiam ver agravados pela experincia de

    partilharem os partidos oposicionistas o poder no nvel estadual.Compostas com a desconfiana, por parte dos setores militares,relativamente prpria legitimidade do processo eleitoral, dada sua

    percepo da imaturidade e manipulabilidade do eleitorado e dos perigosda demagogia populista, observaes como essas persistem como estmulos espertezas casusticas, e as frmulas que da nascem continuam a enchero noticirio dos jornais.

    Creio que caberia extrair da certas prescries, que se resumiriam no

    reconhecimento do importante papel que estaria destinado a cumprir, nacena poltica brasileira, um partido de orientao popular dotado de

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    suficiente flexibilidade para acomodar matizes diversos do espectropoltico de oposio, por um lado, e capaz, por outro lado, de penetraobastante forte e estvel junto ao eleitorado popular heterogneo paradissuadir as manobras de institucionalizao autoritria via processo

    eleitoral. Sou da opinio de que esse partido (segregado, por assim dizer,pelas contradies do prprio movimento de 1964) existiu, pelo menosembrionariamente, no extinto MDB, e de que foi um erro, do ponto de vistado jogo estratgico relacionado ao objetivo de transitar eventualmente paraa superao estvel e institucionalizada do autoritarismo, a respostafaccionria dada por certas lideranas oposicionistas decisogovernamental de dissolver a estrutura bipartidria. Por certo, poltica sefaz de interesses e perspectivas mltiplas e divergentes, e a existncia e o

    potencial de atrao poltico-eleitoral das lideranas recm-mencionadas,com seus interesses e perspectivas prprias, so um dado como qualqueroutro da realidade brasileira do momentodado com o qual, precisamente,contaram desde o incio os estrategistas da reformulao partidriarecente.14

    V

    Mas, parte as consideraes diretamente estratgicas de confrontocom o "sistema" e seus objetivos prprios, o tema dos partidos situa aquesto mencionada da convivncia do "ideolgico" com outros critrios eformas de orientao e participao poltica. Ademais de seu interesse

    prprio no contexto dos problemas at aqui tratados, tal questo nospermite transitar para outros temas de alcance mais amplo e igualmente deinteresse no quadro de nosso seminrio, sobre os quais parece oportunodizer algumas palavras como fecho destas notas.

    Quanto ao primeiro aspecto, uma observao bsica. Ela se refere sdificuldades trazidas compreenso dos processos em jogo na atualidade

    brasileira pela tendncia contraposio demasiado cortante entre a esferada ideologia, por um lado, e, por outro, a do pragmatismo dos interesses em

    que vicejam fenmenos tais como mquinas polticas, clientelismo epopulismo. Tal contraposio, sempre presente, com roupagem variada, nodiscursoembora no necessariamente na prtica dos polticos

    profissionais, caracteriza tambm com frequncia o enfoque dominanteentre os analistas da poltica, includos os cientistas sociais. Via de regra

    14De novo, a campanha das eleies diretas e seu desdobramento na campanha de Tancredo

    Neves representam clara corroborao da proposta agregadora contida nessa anlise, aalguns aspectos da qual se voltar adiante. Por outro lado, a conjuntura do incio de 1985 indica

    que o PMDB conta com boas perspectivas de exercer o papel cujo potencial se atribui no textoao seu antecessor.

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    para certos trusmos da sociologia dos partidos polticosem particularpara a noo de que a estes, se lhes cabe expressar interesses mais oumenos claramente identificveis em seus contornos sociais, cabe-lhestambm, sob pena de se pulverizarem indefinidamente nessa busca de

    representatividade e "autenticidade",somar ou agregar interessesdiferenciados e dar-lhes, assim, condies de afirmao eficaz no processopoltico. Conjugada com as caractersticas das parcelas majoritrias doeleitorado popular brasileiro que se examinaram anteriormente, essanecessidade transforma em larga medida o problema, do ponto de vista daslideranas potenciais ou reais dos movimentos poltico-partidrios decunho popular, no de optar entre partidos "inautnticos" com eleitores e

    partidos "autnticos" sem eleitores. Assinale-se, ainda, no serem muitas asrazes para esperar que, mesmo em condies hipoteticamente maisfavorveis do que as que prevalecem atualmente no Brasil, um esforo"pedaggico" de longo prazo permitisse escapar interamente daqueledilema. Esta parece ser a lio contida em traos caractersticos daevoluo dos sistemas partidrios de alguns pases da Europa ocidental,onde certos autores pretendem ver mesmo um dos aspectos centrais da

    propalada "crise dos partidos": em especial, a transformao de partidosideolgicos em "catch-all parties" eleitoralmente orientados.16

    O segundo aspecto acima anunciado da questo do ideolgico temramificaes talvez ainda mais complexas: refiro-me ao tema da ideologia

    em suas conexes com o problema da articulao entre identidadeindividual e identidade coletiva.

    Tal problema por certo relevante j na perspectiva mesma dospartidos polticos. Assim, um desdobramento singularmente importante dadistino entre ideologia e pragmatismo em conexo com o tema dos

    partidos o de que os partidos ideolgicos (sob denominaes vrias)tendem a dirigir seu apelo a fatores supostamente cruciais para a prpriaconformao da identidade coletiva de categorias determinadas de eleitores

    ou, mais amplamente, atores polticos. Muito da fora desse apelo dependedo grau em que a referncia s categorias coletivas em questo(trabalhadores, determinado grupo tnico ou religioso) se revela importante

    para a definio da identidade individual de seus membros, estabelecendo-se assim uma correspondncia ou fuso entre identidades coletivas eindividuais, a qual seria mesmo a condio para que as identidadescoletivas existissem como tal.

    16Uma anlise da literatura relacionada com a crise dos partidos pode ser encontrada em

    Gianfranco Pasquino, Crisi dei Partiti e Governabilit, Bolonha, Il Mulino, 1980,especialmente cap. I.

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    Ora, um aspecto decisivo dos problemas que surgem em torno dissodiz respeito ao fato de que, em qualquer momento dado, so muito variadosos fatores ou dimenses que podem em princpio competir como pontos de

    referncia para a definio da identidade coletiva. Na linha do tipo denfase ideologia destacado no pargrafo anterior, tende-se a salientarcertos fatores que tm a ver com a insero em grupos ou coletividades"multifuncionais" de participao envolvente e largamente adscritcia ouno voluntria. Vrias dificuldades decorrem da.

    Para comear, ainda que se admita a importncia desse tipoparticular de insero social como fator de conformao da identidadeimportncia esta que se torna especial precisamente em correspondnciacom seu carter envolvente, adscritcio e "opaco" , subsistem, mesmoneste nvel, focos alternativos em competio: a classe social, o grupotnico de origem, a prpria sociedade nacional, a cada um dos quais se

    pode pretender atribuir um papel especial quanto a condicionar a identidadebsica dos indivduos. O empenho de obter, atravs da ao poltica, que talou qual foco particular venha efetivamente a prevalecer sobre os demaisacarreta o problema de transformar ipso facto a questo da identidade emobjeto de atuao estratgica e "artificial", o que se coloca em contradiocom o prprio princpio envolvido em privilegiar, na definio daidentidade, a forma de insero social em questo, com o que tem de

    "dado" e "natural". Como se percebe, estamos diante de uma faceta especialdo problema geral das ligaes e tenses (se se quiser, a dialtica) entre oinstitucional como contexto e como objeto de que se falou acima. Mastrata-se de uma faceta particularmente importante, pois toca, atravs datemtica da identidade, na questo crucial da autonomia. Em sntese, asdificuldades giram em torno do problema fundamental de como, a partir dosuposto de que certos fatores sociais dados, "opacos" e mesmo coercitivosso um componente inevitvel da definio da identidade individual e deum correspondente ideal de autonomia (o qual no teria sentido sem a

    identidade), estabelecer um equilbrio "adequado" entre a observncia doprincpio "espontanesta" a contido e as exigncias da ao polticaquepodem, no limite, redundar em manipulao e, portanto, na negao daautonomia. Acrescente-se, porm, que a idia de autonomia encerratambm a exigncia de que as decises e aes do sujeito no estejaminteiramente condicionadas pelos aspectos "dados" de sua identidade, masenvolvam opes reais e to ricas quanto possvel a partir delese

    bastante claro que a ao poltica e estratgica no s um instrumentoprecioso a este respeito, mas pode s-lo mesmo enquanto vise

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    potncia a potncia". No caso do Brasil (em parte corno decorrncia daprpria ideologia de democracia racial e do ingrediente paternalista quetem marcado as relaes raciais, apesar do que ambos envolvem tambmde mascaramento e mistificao), haveria talvez razes para esperar que

    condies de efetiva igualdade racial viessem a implantar-se sem apassagem pela fase da afirmao beligerante. Evitar a passagem por tal fasepareceria ser um requisito para que se possa aspirar a urna condio "final"em que se tivesse, alm da igualdade real, o convvio relaxado e fraternoentre as raas: note-se que, diferentemente do que ocorre com as classessociais, onde se pode conceber um processo de luta resultando naeliminao das classes como tal e na criao de uma sociedade sem classes,no caso das raas a luta dever ser seguida pela convivncia (igualitria, nomelhor dos casos) das raas que tenham lutado, se se exclui a hipteseabsurdae racistada liminao de qualquer delas. Por certo, pode dar-se o caso de que acriao de uma sociedade racialmente igualitria emnosso pas venha a exigir a neutralizao de uma identidade racial negativa

    j efetivamente existente entre os grupos de cor, caso em que se tornariainevitvel a passagem pela etapa da afirmao psicossocial de umaidentidade coletiva por parte de tais grupos. Este aspecto envolve, porm,uma questo emprica de grande complexidade e com respeito qual nocabe simplesmente supor que estejamos suficientemente esclarecidos, nemmuito menos derivar de tal suposio prescries problemticas e queencerram grandes riscos do ponto de vista do objetivo de uma sociedade

    igualitria e harmnica.

    A segunda das duas temticas referidas a da nao e da "identidadenacional". Do ponto de vista de preocupaes prticas ou normativas,dificilmente seria preciso salientar a importncia deste tema e do uso quedele feito. Sem falar de nazismo e fascismo, assinale-se de passagem amaneira pela qual, mesmo no que se refere aos pases liberal-democrticos,retricas e comportamentos truculentos e irresponsveis, que no seriamvistos normalmente seno como pueris em qualquer outro contexto, tendem

    a ser tomados com naturalidade quando adotados por lderes supostamentesrios em nome do interesse nacional ou da "dignidade" nacional. Nocontexto brasileiro, por sua vez, notrio o papel cumprido pela ideologiaoficial de "segurana nacional" corno parte do "complexo de sublevao"de que se falou antes, a qual apenas admite corno objetivos legtimos para aao de qualquer participante potencial no processo poltico aquelesobjetivos que sejam percebidos corno compatveis (segundo critriosestreitos, apesar de obscuros) com um princpio consensualista referido aos"verdadeiros interesses da nao". Como a centralizao poltico-

    administrativa e o enfraquecimento da federao ilustram relativamente ainteresses e identidades regionais, as classes sociais, apesar de sua

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    importncia, esto longe de ser o nico caso de interesses parciais ou defocos potenciais de identidade coletiva cuja pretenso de seremreconhecidos corno tal por parte do estado ou do "sistema" se vdeslegitimada no clima assim produzido.

    Mas as coisas no parecem muito melhores no campo analtico.Deixando de lado a produo acadmica "nacionalista" dos anos 50 etomando a chamada "teoria da dependncia", que pretende conter a crticado nacionalismo, possivel sustentar que a questo da nacionalidade comofoco de identidade coletiva se mostra j na posio central de que neladesfruta a prpria noo de dependncia. Pois, obviamente, falar dedependncia envolve necessariamente a idia de uma "entidade"dependente de outra. Alm disso, certamente incontestvel que o lugarcentral ocupado na teoria pela noo de dependncia se acha fortementeligado a uma prescrio ou desiderato dirigido s entidades que sotomadas como objeto de estudo, desiderato este que corresponde ao opostoda condio de dependncia, ou seja, autonomia. Ora, as entidades de quese trata so, claramente, pases. Mas se parece natural aplicar ao seu estudo,como o faz a teoria, categorias como autonomia e dependncia, issocertamente tem a ver com o fato de que se percebem tais pases comosendo, ademais de meras "sociedades", unidades coletivas caracterizadas

    por certa identidade, seja cabalmente realizada ou virtual identidade estaque o que permite fazer sentido do pleito em prol da autonomia contido

    na teoria. Pois se se tratasse apenas de considerar tais entidades ou pasescomo sociedades, caberia reconhecer que existe, afinal de contas, a

    possibilidade de se falar de "sociedade" tanto ao nvel planetrio, numextremo, quanto, no outro extremo, ao nvel de qualquer unidade reduzidade natureza tnica, territorial ou outra. O privilgio concedido aos pases es relaes entre eles pela teoria da dependncia envolve claramente,apesar da nfase dada articulao de classes e a fenmenos correlatos naanlise de tais relaes, a suposio de que os pases so as entidades quecabe tomar mais "naturalmente" como focos de identidade coletiva e

    consequentemente de autonomia. Em suma,parte-se de tomar o pas comonao, ou dopostulado da identidade nacional. E parece certo que, vista dongulo de pases como o Brasil, a "receita" prtica implcita redunda emque venham todos a reproduzir o modelo de potncia autnoma quecorresponde, digamos, aos Estados Unidos do sculo XX.

    No discutirei at que ponto existir (ou ter existido) a oportunidadehistrica de tal reproduo, embora me parea que aqui se enrazam

    problemas, decises a serem tomadas, revises a serem feitas, todos de

    transcendental importncia para as sociedades industriais perifricas cujapremncia se agrava pela dramtica evidncia de interdependncia

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    correntemente propiciada pela crise econmico-financeira, sem falar doalcance planetrio de problemas como o dos armamentos nucleares ou asquestes ambientais. Alm disso, no se pretende contestar seja acontribuio analtica da teoria da dependncia, seja a importncia ou

    legitimidade, em certa tica, dos objetivos prticos de contedoautonomista que ela envolve de forma explcita ou latente. Do ponto devista analtico, por exemplo, bvio que a literatura da dependncia ajudoua esclarecer problemas importantes, e pelo menos parte substancial do xito

    por ela obtido (representando mesmo um dos poucos produtos do trabalhode especialistas latino-americanos que terminaram por impor-se ao mundo"central" das cincias sociais) se deve a seus mritos neste plano. Mas dois

    pontos devem ser destacados. Em primeiro lugar, o de que a omisso, nonvel analtico, do tema da nao como tal na teoria da dependncia inaceitvel e injustificvel, devendo-se provavelmente apenas a certo pudorcondicionado pela baixa estima em que o tema tido na tradio marxistaque inspira a maior parte dos "dependentistas". Em segundo lugar, o de quea leitura "nacionalista" que vulgarmente se faz da teoria da dependnciano uma casualidade que nada tenha a ver com os postulados e

    proposies da prpria teoria. Pois esta, apesar do pudor e da omissorecm-mencionados, no deixa de responder a problemas substancialmenteafins aos da corrente nacionalista anterior atravs de supostos que entram

    pela porta dos fundos e do razo, em parte, crtica que neste sentido lhefoi dirigida por Francisco Weffort anos atrspondo de lado aqui a

    avaliao do acerto da perspectiva a partir da qual se formula tal crtica.18

    Isso me parece desaguar em uma observao, talvez banal quandoponderada em certa perspectiva, talvez lrica quando vista em outra, masque acredito de decisiva importncia: a de que o "modelo" em que se d acorrespondncia entre mecanismos psicossociolgicos de identidadecoletiva e mecanismos organizacionais ao feitio do estado nacionalequivale a um projeto de organizao sociopoltica geral que nada tem deinerentemente "natural", nem faz jus a ser erigido em princpio do qual se

    pretenda derivar prescries a qualquer ttulo mais "virtuosas" oudesejveis. Proponho inequivocamente, com base na idia anteriormentesugerida de que o empenho de pensar estratgica e instrumentalmenteacaba sendo o melhor teste de nossa capacidade de lidar analiticamente demaneira satisfatria com os problemas, que preciso examinar formasalternativas de organizao poltica. Se tal proposta parecer irrealista do

    18Francisco Weffort, Nota sobre a 'Teoria da Dependncia': Teoria de Classe ou IdeologiaNacional?,Estudos CEBRAP, I, 1971, onde se encontra tambm a rplica de Fernando

    Henrique Cardoso, sob o ttulo 'Teoria da Dependncia' ou Anlises Concretas de Situaesde Dependncia?.

  • 8/13/2019 Mudana poltica no Brasil

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    ponto de vista prtico, pondere-se que no h como negar a agudeza e aurgncia precisamente dos problemas prticos que giram em torno dela.

    No vejo, assim, porque ns, cientistas sociais, haveramos de deixar deconsider-la com todos os recursos mo e simplesmente confiar, como

    cidados e partes interessadas, em que as melhores solues venham abrotar ainda e sempre, como pretendia Oakeshott, do "nevoeiro mental daexperincia prtica".19

    19

    Michael Oakeshott,Experience and its Modes, Cambridge, Cambridge University Press,1966, apud Sartori,Parties and Party Systems, op. cit., p. 18.