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2º CONGRESSO BRASILEIRO DE POLÍTICA, PLANEJAMENTO E GESTÃO EM SAÚDE UNIVERSALIDADE, IGUALDADE E INTEGRALIDADE DA SAÚDE: UM PROJETO POSSÍVEL Movimentos Sociais em Saúde: uma revisão da literatura internacional e nacional na busca de estudos históricos de âmbito local André Teixeira Jacobina Lígia Maria Vieira da Silva Universidade Federal da Bahia BELO HORIZONTE 2013

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2º CONGRESSO BRASILEIRO DE POLÍTICA, PLANEJAMENTO E GESTÃO EM

SAÚDE

UNIVERSALIDADE, IGUALDADE E INTEGRALIDADE DA SAÚDE: UM

PROJETO POSSÍVEL

Movimentos Sociais em Saúde: uma revisão da literatura internacional e nacional

na busca de estudos históricos de âmbito local

André Teixeira Jacobina

Lígia Maria Vieira da Silva

Universidade Federal da Bahia

BELO HORIZONTE

2013

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MOVIMENTOS SOCIAIS EM SAÚDE: UMA REVISÃO DA LITERATURA

INTERNACIONAL E NACIONAL NA BUSCA DE ESTUDOS HISTÓRICOS

NO ÂMBITO LOCAL.

Introdução

Depois dos anos de chumbo do regime militar1, dominado pela linha dura,

Geisel, da linha castelista (seguidores da estratégia de Castelo Branco), em 1974 assume

a presidência e inicia o processo de distensão que caracterizou o contexto político de

meados dos anos 70. Existiam diferenças de posicionamento e concepção no interior do

regime militar e dos diferentes setores que influíam no processo de tomada das decisões

(OLIVEIRA, 1994). A distensão foi um projeto militar encaminhado pelo grupo

castelista. Esse grupo entendia que a estratégia de saída gradual dos militares do poder

executivo era a que melhor institucionalizaria as “conquistas da Revolução”.

O processo político da distensão e abertura, encaminhado pelos castelistas, tinha

por estratégia a saída dos militares do exercício direto do poder político sem que isso

significasse a volta dos militares aos quartéis. O que indica não somente a intenção de

dotar o processo de uma direção conservadora, mas também o desejo dos militares de

continuar participando do poder, ainda que não controlassem o executivo (MATHIAS,

1995, p.143-144). Esse processo não impedia o uso da violência, da censura, nem o uso

dos mecanismos de exceção, apenas indicava que excessos que comprometessem a

estratégia adotada por esse grupo, deveriam ser contidos, já que perder o apoio da

população maciçamente era visto como um grande risco para o regime.

O contexto da distensão foi marcado também pelo crescimento da oposição ao

regime militar, tanto no poder legislativo com crescimento eleitoral do MDB

(Movimento Democrático Brasileiro), quando nos movimentos sociais2. Embora a

maioria dos pesquisadores considere que o processo de distensão foi um projeto militar

acelerado pela mobilização civil, há debate. Bresser Pereira, por exemplo, defende que a

mobilização civil foi o principal fator desencadeador do processo argumentando que

existia uma relação dinâmica entre sociedade civil e a estratégia dos militares

1 A coalizão vitoriosa em 1964, no golpe civil-militar era composta em sua dimensão militar por quatro

categorias: os sorbonistas, a linha dura, os nacionalistas de direita e as chefias burocráticas (CRUZ,

MARTINS, 1983, p.16.). 2 Para conceituação de “movimentos sociais”, ver quadro teórico.

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(BRESSER PEREIRA, 1988, p.48). Já a interpretação de Cruz, Mathias, entre outros, é

que o projeto dos castelistas era anterior ao período em que chegaram ao poder e que

foram eles, os castelistas, que desencadearam o processo de distensão, tendo a

sociedade civil o importante papel de acelerar esse processo (JACOBINA, 2010, p.32).

Figueiredo assumiu a presidência em março de 1979 e a abertura se inicia no

mesmo ano com o fim do bipartidarismo e a reorganização partidária. O presidente

Figueiredo claramente sinalizava para a continuidade do projeto de seu antecessor,

inclusive na composição dos ministérios. O ministro chave era Mário Simonsen, que

havia sido Ministro da Fazenda de Geisel, então ministro do Planejamento, um novo

„superministério‟ encarregado da política econômica. Petrônio Portela, senador pela

Arena (Aliança Renovadora Nacional), pelo estado do Piauí, era o novo ministro da

Justiça. Portela havia conquistado destaque nas disputas eleitorais, como um dos mais

dedicados cabos eleitorais da Arena e sua capacidade para a conciliação interna do

partido era também uma qualidade destacada. A influência do general Golbery se

mantinha, pois estava no cargo de chefe da Casa Civil, o que também contribuía para a

continuação do processo de liberalização (SKIDMORE, 1988, p.49-50). O novo

governo enfrentava dois grandes problemas, um na área econômica, relacionado ao

endividamento e à inflação, e outro na área política, relacionado à mobilização de

movimentos sociais em oposição ao regime (SKIDMORE, 1988, p.51). Um elemento

central do início da abertura foi a anistia de 28 de agosto de 1979, que trouxe de volta

ao país os exilados políticos.

As eleições de 1982 foram importantes, em especial, porque pela primeira vez

desde 1965 os governadores seriam eleitos pelo voto direto. Ficou claro que a estratégia

da reorganização partidária não seria suficiente para garantir a vitória da Arena e seu

controle sobre o Colégio Eleitoral que escolheria o novo presidente. Em virtude disso,

em novembro de 1981 foi editado um conjunto de medidas conhecidas como “Pacote de

Novembro”, que proibia coligações eleitorais e determinava que os eleitores votassem

em apenas uma legenda. Essa manobra visava beneficiar o PDS que tinha se

fragmentado menos que os partidos de oposição e foi bem sucedida indicando o sucesso

da estratégia de Golbery (SKIDMORE, 1988, p.62-63).

A proposta das “Diretas já”, que ganha força nos 80 até culminar em 1984 com

maciça mobilização representava:

... um rompimento radical com a abertura limitada e pactuada que o regime vinha

implantando e levaria, através da eleição pelo voto direto , com uma Constituinte, a

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uma ruptura institucional extremamente desfavorável para as forças que

implantaram a ditadura militar no país (SILVA, 2010, p.273).

As massas tomavam as ruas e o regime parecia não ter projetos para lidar com as

transformações que ocorriam no país. Para Silva a transição final entre a ditadura e um

regime democrático-representativo organizou-se em um contexto no qual o “governo

perdia toda a iniciativa e permitia, por inércia e inapetência, que os partidos de oposição

e as ruas das grandes cidades ditassem o ritmo da abertura.” (SILVA, 2010, p.273). Essa

visão é em boa medida compartilhada por Skidmore, expressando que: nem Figueiredo,

nem a liderança do PDS (Partido Democrático Social, herdeiro da Arena) pareciam ter

formulado alguma estratégia viável em longo prazo (SKIDMORE, 1988, p.66). Tinham

apenas o objetivo de manter o controle até as eleições presidenciais de 1985, mas

mesmo esse objetivo foi problemático para o regime, pois o presidente e seus assessores

pareciam incapazes de escolher um candidato consensual. Com isso a vitória de Paulo

Maluf que disputou com Mario Andreazza a indicação pelo partido, acabou dividindo o

partido, dando origem, posteriormente, ao PFL, o que favoreceu a vitória de Tancredo

Neves que contou com apoio dos dissidentes que formariam o PFL (SKIDMORE, 1988,

p.66)

Nessa conjuntura, ganha importância os movimentos sociais, entre os quais os

movimentos que tomaram como objeto a luta pela ampliação e melhoria da assistência à

saúde, no bojo dos quais emergiu o chamado movimento sanitário (ESCOREL, 2005).

A revisão preliminar de literatura sobre estes movimentos evidenciou uma lacuna no

conhecimento disponível, especialmente a análise da relação desses movimentos com os

partidos políticos, particularmente no momento inicial, quando os partidos em atividade

na cena pública se restringiam à Arena e ao MDB. Nesse sentido, definimos como tema

de investigação a relação entre os movimentos sociais em saúde e os partidos políticos

no momento da gênese dos movimentos que se articularam em torno do projeto da

Reforma Sanitária Brasileira (PAIM, 2008).

Justificativa

Esse artigo é um resultado parcial do nosso projeto de doutorado, em processo

de construção, no Instituto de Saúde Coletiva, para ser qualificado no final de 2013.

Como propusemos a realização de um estudo sócio-histórico sobre movimentos sociais

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em saúde, é fundamental realizar o estado da arte acerca desses movimentos, e em

especial buscar estudos que se assemelhem ao nosso, para observar que lacunas no

conhecimento nosso estudo pode preencher.

Objetivos

Identificar e analisar trabalhos que abordam a temática dos movimentos sociais

em saúde, de forma a compreender o que vem sendo produzido na literatura

internacional e nacional sobre o tema, de modo a definir o recorte que conferirá

originalidade à nossa tese de doutorado, no processo de definição da pergunta de

investigação e do ângulo de abordagem ao objeto da pesquisa.

Referencial Teórico3

Ao longo do século XX, principalmente após a fundação da revista Annales, em

1929, na França e a criação da VI Seção da École Pratique des Hautes Études, tendo

como presidente Lucien Febvre, em 1948, ocorre uma crítica à historiografia do século

XIX que elegia o político como fator predominante (FERREIRA, 1992, p.265). Essa

nova tendência passou a priorizar o aspecto econômico e o cultural, além de um diálogo

com outras perspectivas como a antropológica. O estudo da dimensão política passou,

por muito tempo, a ser associada com a superada historiografia do século XIX, que não

levava em consideração os aspectos mais duradouros que, segundo essa nova corrente,

seriam os mais decisivos.

Nos últimos 25 anos, entretanto, ocorreu uma retomada da análise do fenômeno

político, não como um retorno à História Política do século XIX, descritiva e

determinista, mas uma história “que se beneficiou do enriquecimento de todas as

gerações anteriores e trouxe, não resta dúvida, o político para frente do palco.”

(REMOND, 1994, p.13). Essa história não apenas destaca a importância da dimensão

política, assim como indica a valorização dos estudos dos problemas mais relevantes

3 Esse é parte do referencial teórico do projeto de tese, que trata de articular a revisão do debate

contemporâneo no campo da História (BARROS, 2004) com a revisão dos estudos sociológicos sobre

movimentos sociais (GOHN, 1997; 2003;2010;a ; 2010b, especialmente movimentos sociais em saúde.

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para o presente. 4 O estudo da política partidária, assim como o estudo dos movimentos

sociais, são alguns dos objetos dessa renovada História Política.

Sendo fiel a perspectiva da renovada História Política, que se coloca aberta ao

enriquecimento e sofisticação de seus estudos com contribuições de outras áreas

adotamos a sociologia reflexiva de Bourdieu como uma referência teórica central, para

realização de um estudo sócio-histórico (BOURDIEU, 1994).

A fim de compreender as ferramentas teóricas que Bourdieu oferece e entender a

razão pela qual ele constantemente se remete à gênese (de qualquer objeto que se

pretenda investigar), podemos analisar um exemplo, qual seja: a razão pela qual ele

busca a gênese do Estado. Aliás, remeter a um exemplo é justamente uma técnica

constantemente utilizada por Bourdieu para explicar suas observações.

Bourdieu, ao expor que o Estado reproduz formas e categorias de pensar nos

indivíduos não é especialmente original, já que Gramsci na sua teoria ampliada do

Estado, ao defender que a sociedade civil faz parte do Estado e atua “educando o

consenso” indicou esse componente de construção das formas mentais. Uma das

contribuições de Bourdieu é que: sendo indivíduos nascidos no seio do Estado, ao

pensarmos essa instituição reproduzimos visões interiorizadas por nós na relação que

temos com essa instituição, visões essas naturalizadas. Por isso, Bourdieu defende que

um esforço inicial deve ser o de nos libertarmos dos nossos pressupostos acerca do

Estado, no intuito de minimizar esse risco, absolutamente inerente do fato de sermos

todos, indivíduos formados na “escola do Estado”, o que inclui especialmente, mas não

se restringe, ao sistema educacional (BOURDIEU, 1994, p.92). Isso é o que motiva

Bourdieu a buscar a gênese do Estado, recuando historicamente para o momento de sua

formação, quando esses elementos não estavam ainda implícitos. Esse é para Bourdieu

um método fundamental para realizar a distinção entre o que está explícito e o que está

implícito, entre o dito e o não dito.

Realizar essa distinção, partido de uma realidade muito próxima, na qual muitos

desses valores já foram naturalizados pelas contínuas relações sociais, é, para Bourdieu,

um risco demasiado grande. Especialmente por ele se preocupar não apenas com as

estruturas objetivas, o que Marx chamaria de determinantes econômicos e sociais, mas

por se preocupar especialmente com o espaço simbólico (Capital simbólico, bens

4 René Rémond comenta sobre a importância de superar o medo de pesquisar a história mais recente. No

artigo “Em defesa de uma história abandonada” de 1957, fez essas reflexões por ocasião do seu interesse

pelo estudo da Segunda Guerra Mundial. Ver também o texto “Uma história presente” (REMOND, 2003,

p.13-p.37.

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simbólicos, violência simbólica). O simbólico é justamente o que se impõe nos hábitos,

que se naturaliza e já está naturalizado no tempo do produtor de conhecimento e que por

isso, é mais difícil compreender, sem recuar para um tempo onde essa dimensão

subjetiva ainda não estava naturalizada, o momento de sua gênese.

Com efeito, refletindo sobre o fato dessa instituição se apresentar como natural,

quando na verdade foi resultado de uma longa construção social, Bourdieu afirma que

“não há instrumento mais poderoso que a reconstrução da gênese: ao fazer com que

ressurjam os conflitos e confrontos dos primeiros momentos”. Por isso, para Bourdieu, a

compreensão de uma lógica histórica é essencial ao seu modelo de emergência do

Estado (BOURDIEU, 1994, p.98).

Método

Utilizamos duas bases de dados para a revisão do estado da arte, o Portal da

Capes e o Google Acadêmico. Para a revisão na literatura internacional utilizamos o

descritor “Health Social Movements”, pois uma revisão anterior já havia apontado que

essa era a forma predominante que os estudos em inglês se referiam aos movimentos

sociais em saúde. Já na revisão da literatura nacional utilizamos os seguintes

descritores: “movimentos sociais em saúde”, “movimentos sociais saúde” e “Reforma

Sanitária Brasileira”.

Resultados e discussão

Na conjuntura da distensão, surgiu um conjunto de movimentos sociais: a

sociedade civil contou com o “novo sindicalismo” (KECK, 1988), as CEBS

(Comunidades eclesiásticas de Base) (CAVA, 1988), iniciativas de segmentos de

profissionais liberais, partidos de esquerda que estavam na ilegalidade que ainda

existiam, entre outros grupos e movimentos. Vários dos movimentos sociais em saúde

também surgiram nos anos 70, apresentando diferenças entre si e também diferentes

facções internas, dos quais destacamos o movimento sanitário, pelo seu caráter

articulador, sem com isso desprezar os demais movimentos sociais em saúde

(ESCOREL, 1998).

O MOPS (Movimento popular em saúde) era um tipo de organização composta

por associações de moradores de bairros, com foco nas questões de saúde. Originaram-

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se nas favelas ou periferias das grandes cidades e em sua fase inicial assumiram o que

Gerschman chama de “fase reivindicatória”, pois era caracterizada por demandas

específicas, ou reclamações “pontuais”, como melhores condições de saneamento,

postos de saúde, água, entre outras reivindicações (GERSCHMAN, 1995, p.52-53).

Organizavam-se através de associações comunitárias que encaminhavam essas

demandas ao Estado, contando com uma presença destacada de médicos, profissionais e

agentes de saúde. O MOPS posteriormente iria passar pela “fase de politização” na qual

se organizou em torno de Federações de associações de moradores afim de se articular

em torno dos problemas comuns e fazendo uma analise dos mesmos buscar encaminhar

uma ação política junto ao Estado, para transformações maiores do que o atendimento a

reivindicações pontuais. Isso inclusive fez com que o MOPS entrasse em contato e se

articulasse com outros movimentos do período. Nem sempre havia concordância em

torno dos projetos a serem adotados, e questões polêmicas como a estatização total da

saúde, ou expansão do sistema público, dividiam opiniões (GERSCHMAN, 1995, p.52-

53). Compreender os MOPS, quem os dirigia e quais as suas relações com os demais

movimentos sociais em saúde, assim como sua relação com os partidos, faz parte da

investigação que propomos.

O movimento de renovação médica, conhecido como REME, também surgiu

nesse período, inicialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, organizado como um

“novo sindicalismo para opor-se a direções consideradas inoperantes ou

descompromissadas com os interesses de suas bases, assegurando-se autonomia e

mobilidade para os agrupamentos assim organizados.” (CAMPOS, 1989, p.100). Esse

movimento se espalhou por outros Estados e derrotou várias lideranças tradicionais da

categoria dos médicos, nas eleições para os postos de direção nas entidades médicas.

Embora também apresentasse divisões internas e diferenças de posicionamento, foi uma

exceção dentro das forças médicas que tradicionalmente se opunham à participação

estatal na área de saúde e à ideia de uma Reforma Sanitária. O REME dialogou e

contribuiu nas lutas pela Reforma, na busca por alternativas para o setor da saúde,

mesmo que posteriormente tenha havido uma retração de sua influência (CAMPOS,

1989).

O movimento sanitário teve nos DMP (Departamentos de Medicina Preventiva)

a base institucional que produziu conhecimentos sobre a saúde da população e o modo

de organizar práticas sanitárias. Existem exemplos importantes, como a Escola Paulista

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de Medicina que tem o Instituto de Medicina Preventiva em 19615. Na Bahia,

Guilherme Rodrigues da Silva6, então professor adjunto de medicina preventiva, já

coordenava estágios no Departamento de Medicina Preventiva em 1966, algo que apesar

de ser fora do nosso recorte temporal, é de interesse temático, especialmente para

examinar os antecedentes do movimento sanitário na Bahia.

O movimento sanitário foi construído a partir dos DMP em um confronto com a

tendência preventivista de matriz liberal e americana. Foi nesse espaço que começou a

se organizar um movimento, que ao mesmo tempo em que focava na produção de

conhecimentos a partir da critica ao modelo preventivista, questionava a excessiva

medicalização incentivada pelos programas de saúde importados dos Estados Unidos e

buscava articulação com organizações da sociedade civil se engajando na defesa da

democratização do país. Em sua emergência, o movimento sanitário propunha o

desenvolvimento de uma concepção abrangente de saúde como sendo mais do que

ausência de doença levando em conta os determinantes sociais, assim como desenvolvia

a crítica aos limites das propostas de mudança no ensino médico e aos programas de

Medicina Comunitária focados na atenção primária vinculados aos DMP. Esse

processo levou posteriormente à delimitação do “campo da saúde coletiva.”, voltado

para o estudo do processo saúde-doença tendo como foco não mais o individuo ou o seu

somatório, mas a coletividade (as classes sociais e suas frações),enfatizando a análise da

dos determinantes sociais da saúde e da doença, bem como o estudo das práticas de

atenção à saúde e da crítica ao processo de privatização das políticas de saúde

(ESCOREL, 2005, p.64).

Os autores que descrevem e analisam esse processo, chamam a atenção para que

nesse âmbito, a ciência deixou de ser percebida como „neutra‟ e a teoria passou a ser

vista como um instrumento de luta política, com a realidade sanitária como seu objeto

de estudo e intervenção política. O pensamento reformista do movimento sanitário

desenvolveu “sua base conceitual a partir de um diálogo estreito com as correntes

marxistas e estruturalistas em voga” (ESCOREL, 2005, p.64). O modelo preventivista

liberal era visto como um modelo a ser superado em suas concepções acerca da saúde,

que isolavam o ser humano da sua inserção social de classe. Por isso uma reformulação

5 Acessado pela Ultima vez em 13/09/2011. http://www.unifesp.br/reitoria/75anos/cronologia.htm

6 Acessado pela Ultima vez em 13/09/2011. Currículo Lattes de Guilherme Rodrigues da Silva

http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4780524E8&mostrarNroCitacoesISI=true&

mostrarNroCitacoesScopus=true&mostrarNroCitacoesScielo=true

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teórica acerca do significado da saúde, e prática no que tange as políticas de saúde, era

central para o movimento sanitário que estava se constituindo na década de 70.

Um momento fundamental para o movimento sanitário foi a criação do Centro

Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), em julho de 1976 durante a trigésima segunda

Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, “realizada na UNB

(Brasília), trazendo para a discussão a questão da democratização da saúde e

constituindo-se como um organizador da cultura capaz de reconstruir o pensamento em

saúde.” (PAIM, 2008, p.78) O Cebes além de se constituir em um espaço para denúncia

dos problemas decorrentes da privatização dos serviços de saúde, participava da luta

pela redemocratização do país. Promoveu encontros e seminários, editou a Revista

Saúde em Debate, publicou vários livros, funcionando como um centro aglutinador do

espaço acadêmico com funções intelectuais e também políticas. Contava com a

influência de militantes do antigo Partido Comunista Brasileiro (PCB), sendo, porém

uma organização essencialmente suprapartidária e não corporativa (PAIM, 2008, p.79).

O movimento sanitário influenciou o mundo acadêmico no setor saúde e vice-

versa. Contribuiu para a implementação de políticas de saúde alternativas às do regime

militar, a exemplo do projeto Montes Claros (MOC), desenvolvido no norte de Minas

Gerais, a partir de 1972, que colocou em prática conceitos de regionalização,

hierarquização, administração democrática, integralidade da assistência à saúde, entre

outros (TEIXEIRA, 1995). Também influiu na elaboração e execução de programas

oficiais, a exemplo do Programa de Interiorização das Ações em Saúde Saneamento

(PIASS), elaborado pela equipe do setor saúde do IPEA, que propunha a interiorização

das ações de saúde não simplesmente atraindo médicos para o interior, mas através da

extensão de cobertura de ações primárias, segundo proposta divulgada pela

OMS//OPAS. O PIASS pretendia ser um programa de importância, de grande

visibilidade e legitimador do regime. Em alguns estados ele se tornou um espaço que

viabilizou e expandiu o que havia sido testado no MOC. Abrangeu dez Estados e foi

viabilizado pelo apoio de secretários de saúde e da própria Previdência Social. Já tinha

em suas diretrizes universalização, acessibilidade, integralidade, descentralização, e

forte participação comunitária, constituindo-se, portanto, em um espaço de

experimentação das idéias que germinavam no movimento sanitário. Foi a “semente que

gerou, em 1980, o Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass)”

(ESCOREL, 2005, p.70-71).

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No ano do começo da abertura política, em 1979 é criada a Associação

Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva (Abrasco) que agrega programas de

pós-graduação em saúde coletiva e saúde pública. Na época, ela deu

ênfase muito especial à Residência em Medicina Preventiva e Social, expandida no

país devido a um convenio firmado entre o Instituto Nacional de Assistência

Médica da Previdência Social (INAMPS) e várias universidades. A residência, até

então mera reprodutora de quadros para os departamentos de medicina preventiva e

social, passou a formar gestores sanitários para o Sistema Nacional de Saúde.

(ESCOREL, 2005, p.68).

A Abrasco foi, por isso, uma entidade de fundamental importância para o

movimento sanitário. Ela assumia duas funções, uma a defesa da investigação e do

ensino da saúde coletiva, esse novo campo disciplinar que costumeiramente entrava em

choque com o olhar tradicional da medicina individual curativa, e a outra era ser o

porta-voz do pensamento desta comunidade científica (ESCOREL, 2005, p.67).

O início da abertura foi palco de pressões sociais e políticas realizadas pelos

movimentos na saúde que levaram o Ministério da Saúde a elaborar um projeto para

reorganizar o setor. Sua primeira versão de julho de 1980 se chamava Pró-saúde, depois

modificada para Prev-saúde, devido à pressão do Ministério da Previdência. Parecia

inicialmente ser inspirado em programas de atenção primária como o MOC e o PIASS,

mas não tocava de forma marcante na rede hospitalar privada. Apesar disso, por

incorporar parte das bandeiras do movimento sanitário foi alvo de pressões por parte

dos setores representantes dos interesses privados no setor saúde (ESCOREL,2005,

p.72-73). A oposição foi organizada por setores do regime militar articulados com

empresários médicos. O INAMPS se posicionou contra o Prev-saúde caracterizando

como “estatizante”. Foram tentadas diferentes versões, até a versão submetida em 1981

ao Conselho de Desenvolvimento Social, que depois de debates em diferentes

instituições, foi descartado (PAIM, 2008, p. 87).

Em 1981 foi criado o Conselho Consultivo de Administração da Saúde

Previdenciária (CONASP), em um contexto de crise financeira e político-institucional

do INAMPS, no qual se tratou de elaborar propostas, configurando-se quatro

tendências: a “conservadora-privatista” defendia a manutenção do modelo assistencial,

com ampliação dos recursos de operação e melhoria da fiscalização dos gastos do

INAMPS; a “modernizante-privatista”, defendia a reorganização do sistema com base

no modelo americano, de natureza profundamente capitalista, Health Maintenance

Organizations (HMO), a atenção seria provida por essas organizações com recursos dos

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seus usuários e o Estado cuidaria exclusivamente dos marginalizados e das ações

especificas de saúde pública; A terceira tendência seria de “perspectiva estatizante”,

defendia que deveria ser responsabilidade do Estado os serviços e ações em saúde; a

quarta tendência “liberal” defendia reforçar e tornar mais eficiente o setor público e

fiscalizar o privado, sem interferir pesadamente no setor privado (ESCOREL, 2005,

p.73-74).

No caso do Prev-Saúde o movimento sanitário se limitou a denuncias das

limitações do anteprojeto do Ministério da Saúde, mas não tinham poder para realizar

mudanças. Quem “realmente fazia política, através dos „anéis tecno-burocraticos‟ e da

manipulação da imprensa eram os empresários da saúde.” (PAIM, 2008, p.95). No caso

do CONASP as lutas não ficavam restritas a área da saúde, envolvendo a Previdência e

outros setores do Estado, e, além disso, as classes trabalhadoras, que, em geral

participaram.

As eleições direitas para governador em 1982, a criação do Conselho Nacional

de Secretários da Saúde (CONASS), e o fortalecimento dos movimentos pela

democratização alteraram a dinâmica política, permitindo que um dos projetos do Plano

do Conasp, os convênios trilaterais que envolviam o INAMPS, Secretarias estaduais de

saúde e Secretarias municipais, se transformasse no ano seguinte no Programa das

Ações Integradas de Saúde (PAIS), vinculado ao INAMPS, e em “1984 se apresentasse

como „estratégia‟ das AIS (Ações integradas de Saúde), envolvendo os Ministérios da

Saúde e da Educação, além do INAMPS.” (PAIM, 2008, p.95).

Em 1985 José Sarney assumiu a presidência depois do falecimento de Tancredo

Neves, sendo que ambos haviam sido eleitos, indiretamente, vice-presidente e

presidente respectivamente. O movimento sanitário, no contexto do novo regime civil,

assume posições de destaque nas instituições responsáveis pela política de saúde no

Brasil. Diante dessa nova conjuntura se convoca a oitava Conferencia Nacional de

Saúde, cujo Relatório Final lançou os princípios da Reforma Sanitária. A questão

central em debate era a proposta de incorporação do Direito à saúde como direito de

cidadania e a configuração do novo sistema de saúde, discutindo-se se seria estatal ou

não, de implementação imediata ou progressiva. A concepção adotada foi da expansão e

fortalecimento do setor público, recusando-se a ideia de estatização (ESCOREL, 2005,

p.77-78).

Em 1987, em um contexto definido pela nova correlação de forças nos governos

estaduais, é criado o Sistema Unificado Descentralizado de Saúde (SUDS) com vários

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dos princípios defendidos pelo movimento sanitário, como universalização, equidade,

descentralização, participação comunitária entre outros. O objetivo era viabilizar que

recursos federais chegassem aos estados e municípios garantindo a ampliação e

reorganização do acesso da população às ações e serviços de saúde. Em 1988,

promulgada a Constituição é criado o Sistema Único de Saúde, combatida pela

iniciativa privada, por ser “radical demais”, e pelo movimento sindical por não ser

radical o bastante. A CF coloca a saúde como direito de todos e dever do Estado,

significando, portanto, uma grande conquista dos movimentos sociais em saúde. Mas

apenas em 1990 com a Lei Orgânica de Saúde 8.080 é que o SUS entra em vigor e

mesmo assim com cortes decorrentes dos vetos do presidente recém eleito diretamente,

Fernando Collor de Melo (ESCOREL, 2005, p.80-81).

O movimento sanitário conquistou importantes vitórias no processo constituinte,

sendo o Cebes e a Abrasco as organizações de atuação mais relevante. Apesar dessas

conquistas suas bases políticas e sociais não se ampliaram de forma significativa.

Diversas instituições acadêmicas continuaram investindo no projeto RSB. Porém o

“espaço sócio-comunitário não foi ganho, como pretendiam suas lideranças” (PAIM,

2008, p.149). O movimento sanitário teria considerado que ganhou a guerra com a

aprovação da Lei Orgânica da Saúde, no processo de implantação do SUS. Mas para

Paim, essa leitura é equivocada, na medida em que se considera que a aprovação desta

lei foi apenas uma batalha travada no espaço legislativo-parlamentar, porém a guerra

contra as forças privatizantes não havia sido vencida (PAIM, 2008, p.149).

Revisão da literatura internacional

Na literatura internacional, os trabalhos que encontramos e tratam dos

movimentos sociais em saúde (Health Social Movements descritor) podem ser incluídos

na tipologia sugerida por Brown. Nessa tipologia existem três tipos ideais de

movimentos sociais em saúde, sendo que o autor reconhece que no mundo real é

esperada a existência de intercessão entre os tipos. Movimentos de acesso a saúde

(Health Access movements) seriam aqueles que buscam acesso a cuidados de saúde e

melhoria na produção de serviços de saúde. Esses incluiriam movimentos que buscam

reforma no sistema de saúde, para, por exemplo, estender seguro de saúde aqueles que

não possuem. Movimentos de saúde corporificados (Embodied Health Movements-

EHM) buscam questionar a ciência em relação a etiologia, diagnóstico, tratamento e

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prevenção de doenças. Os EHM incluem na luta doenças cuja causa está em disputa e

existem explicações ambientais. Entre os integrantes dos EHM existem aqueles que não

estão doentes, mas entendem que são vulneráveis a doença, muitas ativistas do

movimento de combate ao câncer de mama podem ser incluídas nesse grupo (assim

como movimento contra AIDS, por controle do cigarro...). Por fim, movimentos sociais

constituintes (Constituency-based Health Movements) são aqueles que tratam de

iniquidade baseada em raça, etnia, gênero, classe, ou outra diferença. Podem ser

incluídos movimentos pelos direitos da mulher, movimento gay, entre outros (BROWN,

2004, p.52-53)

Podemos citar como exemplos artigos como os de Emily Kolker sobre o

movimento de combate ao câncer de mama (KOLKER, 2004), exemplo de EHM, assim

como o trabalho de David J. Hess que trata dos questionamentos realizados pelos

movimentos sociais ao conhecimento médico (HESS, 2004) e o trabalho de Angelique

Harris sobre o movimento de combate a AIDS (HARRIS, 2010). Um exemplo de

estudo sobre iniquidade é o trabalho de Mormot (MORMOT, 2010), portanto exemplo

de movimento constituinte. Os trabalhos que estudam movimentos que buscam realizar

uma reforma no sistema de saúde, ou melhoria em acesso, são muito escassos, um dos

poucos trabalhos que encontramos que abordam esse tipo de movimento é o livro de “A

Second Opinion: Rescuing America's Health Care” (RELMAN, 2007), que embora seja

um livro que claramente expressa uma opinião, e entra na luta política, ele examina

movimentos que reivindicam reforma, já que o livro busca examinar o sistema

americano e propor uma alternativa. Outro trabalho é o trabalho Hoffman acerca dos,

que trata justamente dos movimentos sociais que reivindicam reforma no sistema de

saúde americano (HOFFMAN, 2003).

A tipologia sugerida por Brown é útil e muitos movimentos cuja reivindicação

se encontra no setor saúde se adéquam a sua tipologia. Entretanto, os movimentos que

lutaram pela reforma sanitária brasileira, mesmo que a primeira vista seja possível

pensar em colocar esses como movimentos de acesso, tendo em vista que a proposta do

SUS surge no bojo da luta pela Reforma e o SUS é uma reforma do sistema de saúde

que visa universalizar acesso, a luta pela Reforma Sanitária é mais ampla7. Como

destaca Paim o SUS, embora uma importante reforma parcial, não engloba por completo

7 Por combater iniquidades, isso ligaria a luta pelo SUS ao tipo constituinte, porém a luta do movimento

sanitário não se restringia ao SUS.

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a RSB que lutava pela revolução no modo de viver, por uma reforma geral da sociedade

brasileira. Se opondo ao autoritarismo, patrimonialismo, e exclusão, para uma sociedade

democrática, com políticas sociais universais, e assim podendo caminhar para a

cidadania plena. Tendo isso em vista, entendemos que um estudo que focalize nos

movimentos sociais em saúde que lutavam pela Reforma Sanitária Brasileira, não se

adéqua a essa tipologia sugerida por Brown. A RSB, nos apoiando em Paim, e

realizando um contraste com a revisão da literatura internacional, possui uma

originalidade própria da conjuntura e dos agentes que a encaminharam. Por

consequência, estudos sobre movimentos sociais em saúde que lutam pela Reforma

Sanitária Brasileira têm especificidade própria e por isso originalidade, quando

confrontados com a produção internacional. Portanto, é fundamental observar o que

vem sendo produzido sobre esses movimentos sociais.

A especificidade das lutas pela Reforma Sanitária Brasileira

Vale destacar, que apesar da especificidade das lutas pela RSB, paralelos

eventuais podem ser traçados, e o diálogo com a literatura internacional é possível e até

desejável. O trabalho de Kolker, por exemplo, influenciou nossa decisão de focalizar

nas estratégias de luta política, pois seu exame dos enquadramentos realizados pelo

movimento de luta contra o câncer de mama pode ser traduzido como uma analise das

estratégias discursivas desse movimento. Além disso, como destacamos, embora

movimentos por reforma do sistema sejam mais escassos, eles existem na literatura

internacional.

Ao tratar do movimento sanitário e da luta pela Reforma Sanitária Brasileira

dois trabalhos são centrais em nosso modo de ver. A dissertação de mestrado de Sarah

Escorel, “Reviravolta na Saúde” (ESCOREL, 1998) e a tese de doutorado de Jairnilson

Paim, “Reforma sanitária brasileira: contribuição para a compreensão e crítica” (PAIM,

2008). O trabalho de Escorel buscou caracterizar as bases do movimento sanitário, e

para a autora o movimento estudantil e a atuação do Cebes seria uma vertente do

movimento sanitário que trazia uma “ideologia social e profissional, bem como uma

estratégia de luta”. A outra vertente seria o movimento médico, o movimento de

Renovação Médica que coloca essas ideias em um espaço especial da ação, a esfera do

trabalho (ESCOREL, 1998, p.87).

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O trabalho de Paim busca analisar a Reforma Sanitária Brasileira, entendida

como um fenômeno sócio-histórico no sentido de indicar que ela pode se fazer presente

em termos de fatos produzidos na atualidade e de certas acumulações de natureza

política, econômica e cultural que podem gerar novos fatos8. Desse modo, a Reforma

Sanitária, enquanto fenômeno histórico e social pode ser analisado como ideia-proposta-

projeto-movimento-processo: ideia que se expressa em percepção, representação,

pensamento inicial; proposta como conjunto articulado de princípios e proposições

políticas: movimento como articulação de práticas ideológicas, políticas e culturais;

processo enquanto encadeamento de atos, em distintos momentos e espaços que

realizam práticas sociais – econômicas, políticas, ideológicas e simbólicas (PAIM,

2008, p.36).

Demais trabalhos de relevância aparecem na introdução que fazemos ao nosso

tema. Esses artigos, de enorme importância por fornecerem base para nossa

investigação, se caracterizam por fazer um exame de caráter nacional, sem

estabelecimento de limites geográficos. De fato, a maioria se baseia em revisão de

literatura, ou em uma analise cujo conhecimento dos fatos decorre do autor ter

vivenciado e /ou participado diretamente dos debates no período analisado, sendo que

poucos se baseiam em estudos empíricos, exceto as dissertações e teses.

Revisão da recente literatura nacional

Ao revisar trabalhos sendo produzidos encontramos alguns focalizando em

movimentos específicos, como o trabalho a dissertação de Miranda, “Movimentos

sociais, AIDS e Cidadania: O direito a saúde no Brasil a partir das lutas sociais”

(MIRANDA, 2007). Ainda sobre o movimento de combate a AIDS temos o artigo de

Grangeiro, “Resposta a AIDS no Brasil: contribuições dos movimentos sociais e da

reforma sanitária” (GRANGEIRO, 2009) e a tese de doutorado de Garrido, “A Política

Nacional de luta contra AIDS e o espaço AIDS no Brasil” (GARRIDO, 2013). Essa tese

se utiliza do arcabouço teórico da sociologia reflexiva de Bourdieu.

Encontramos também estudos que focalizam movimentos específicos do setor

saúde, como por exemplo, o artigo “Saúde bucal no Sistema Único de Saúde: 20 anos

de lutas por uma política pública” (FRAZÃO, 2009). Encontramos ainda artigos

8 Paim utiliza as elaborações de Matus(1997), no que se refere acumulações de fatos.

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teóricos, outros de observações nacionais, na linha dos trabalhos de referencia já

citados, mas não encontramos nenhum estudo histórico em profundidade tratando de

uma realidade local nos bancos de dados9. Não vamos listar todos os trabalhos

encontrados, mas podemos destacar que havia diversos estudos de implantação dos

ideais da RSB, estudos sobre conselhos de saúde, e estudos, como citamos, de

movimentos sociais ligados a uma causa especifica, que reivindicavam uma política

para essa causa, como o movimento de combate a AIDS.

De fato, o único estudo focalizado em uma realidade local, de caráter histórico

que encontramos foi a tese de Joana Molesini, “A Reforma Sanitária Brasileira na

Bahia: Um Lugar na História (1987-1989)” (MOLESINI,2011) . Esse estudo, a primeira

vista, preencheria lacunas as quais nos propomos a preencher, havendo assim problemas

para garantir a originalidade do nosso trabalho, que também pretende estudar a

realidade política baiana em sua relação com os movimentos sociais em saúde que

lutaram pela RSB nos anos 70 e 80. No entanto o objetivo do trabalho de Molesini foi

analisar a implementação da Reforma Sanitária na Bahia no período de 1987 a 1989,

que trata em especial do espaço institucional da Secretaria de Saúde. Nossos objetivos,

centrados na busca da gênese dos movimentos sociais em saúde que lutaram pela

Reforma Sanitária, visando analisar a relação destes movimentos com os partidos

políticos, são distintos. Diante disso, e tendo em vista a revisão feita até o momento,

nossa proposta, contida no projeto de doutorado, de um estudo sócio-histórico,

localizado em uma realidade local, acerca da relação entre movimentos sociais em

saúde e partidos políticos, tem originalidade. Em outras palavras esse objeto, a relação

entre movimentos sociais em saúde e partidos políticos, e a pergunta: Qual a natureza

dessa relação? Ainda não foram estudados, e perguntas como essa, ainda não foram

respondidas.

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