movimento negro e polaiticas educacionais no brasil contemporaaneo (1978 2010) 1

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MOVIMENTO NEGRO E POLÍTICAS EDUCACIONAIS NO BRASIL CONTEMPORÂNEO (1978-2010) Carla Adriana Batista da Silva Universidade de Santa Cruz do Sul UNISC E-mail: [email protected] Rafael Petry Trapp Universidade de Santa Cruz do Sul UNISC E-mail: [email protected] RESUMO Em um contexto no qual a organização moderna nacional já não dá mais conta da identidade cultural, em que a estratégia narrativa de pertença empregada pelo Estado- nação já não é a única a produzir efeito enquanto fonte de significação cultural, torna-se necessário analisar, em meio a novas combinações de espaço-tempo, os arranjos pelos quais novas formas identitárias são construídas e legitimadas. Neste artigo será realizada uma discussão acerca da construção da identidade “negra” ou “afrodescendente” no Brasil, sobretudo a partir da criação do Movimento Negro Unificado (MNU) em 1978, baseada na historicização de conceitos, na observação do avanço significativo das lutas antirracistas no contexto internacional e no acompanhamento do debate brasileiro sobre a institucionalização de políticas redistributivas de caráter “racial”. A partir daí, procurar-se-á compreender de que forma essas construções identitárias se desdobram na educação. Os resultados parciais, a partir da análise das fontes citadas, apontam para a “racialização” da sociedade brasileira, numa perspectiva multiculturalista, tendo a educação um papel estratégico na construção das narrativas identitárias. Palavras-chave: Educação. Etnicidade. Movimento Negro. Política. Multiculturalismo. Historicidade do antirracismo contemporâneo: o Movimento Negro brasileiro O Movimento Negro tem se firmado como um ator político fundamental nas discussões em torno de algumas das questões contemporâneas mais prementes, como etnicidade, identidade negra e ações afirmativas. A ação política do Movimento tem tido desdobramentos vários, que vão desde a maneira como é pensada a identidade nacional até a forma como se pensam as estratégias educacionais antirracistas. Nesse sentido, a tarefa de análise do revival das discussões concernentes à chamada “questão racial” e do revigoramento de posições e lugares identitários passa pela compreensão da historicidade da luta e das estratégias políticas do Movimento Negro no Brasil. O marco histórico mais comumente mencionado por militantes e intelectuais situa-se no final dos anos 70, mais precisamente, no ano de 1978, quando da fundação do Movimento Negro Unificado (MNU). No final da década de 70, surge, em todo o Brasil, uma série de movimentos sociais. Organizados em torno da luta comum pela

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Análise sobre as implicações educacionais do movimento negro.

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  • MOVIMENTO NEGRO E POLTICAS EDUCACIONAIS NO

    BRASIL CONTEMPORNEO (1978-2010)

    Carla Adriana Batista da Silva Universidade de Santa Cruz do Sul UNISC

    E-mail: [email protected]

    Rafael Petry Trapp

    Universidade de Santa Cruz do Sul UNISC E-mail: [email protected]

    RESUMO

    Em um contexto no qual a organizao moderna nacional j no d mais conta da

    identidade cultural, em que a estratgia narrativa de pertena empregada pelo Estado-

    nao j no a nica a produzir efeito enquanto fonte de significao cultural, torna-se

    necessrio analisar, em meio a novas combinaes de espao-tempo, os arranjos pelos

    quais novas formas identitrias so construdas e legitimadas. Neste artigo ser realizada

    uma discusso acerca da construo da identidade negra ou afrodescendente no Brasil, sobretudo a partir da criao do Movimento Negro Unificado (MNU) em 1978,

    baseada na historicizao de conceitos, na observao do avano significativo das lutas

    antirracistas no contexto internacional e no acompanhamento do debate brasileiro sobre

    a institucionalizao de polticas redistributivas de carter racial. A partir da, procurar-se- compreender de que forma essas construes identitrias se desdobram na

    educao. Os resultados parciais, a partir da anlise das fontes citadas, apontam para a

    racializao da sociedade brasileira, numa perspectiva multiculturalista, tendo a educao um papel estratgico na construo das narrativas identitrias.

    Palavras-chave: Educao. Etnicidade. Movimento Negro. Poltica.

    Multiculturalismo.

    Historicidade do antirracismo contemporneo: o Movimento Negro brasileiro

    O Movimento Negro tem se firmado como um ator poltico fundamental nas

    discusses em torno de algumas das questes contemporneas mais prementes, como

    etnicidade, identidade negra e aes afirmativas. A ao poltica do Movimento tem tido

    desdobramentos vrios, que vo desde a maneira como pensada a identidade nacional

    at a forma como se pensam as estratgias educacionais antirracistas. Nesse sentido, a

    tarefa de anlise do revival das discusses concernentes chamada questo racial e do

    revigoramento de posies e lugares identitrios passa pela compreenso da

    historicidade da luta e das estratgias polticas do Movimento Negro no Brasil.

    O marco histrico mais comumente mencionado por militantes e intelectuais

    situa-se no final dos anos 70, mais precisamente, no ano de 1978, quando da fundao

    do Movimento Negro Unificado (MNU). No final da dcada de 70, surge, em todo o

    Brasil, uma srie de movimentos sociais. Organizados em torno da luta comum pela

  • democracia, esses movimentos impem-se como atores e foras sociais. Na esteira da

    chamada abertura democrtica, a partir dos anos 70, emerge e se organiza tambm uma

    srie de movimentos e organizaes sociais de carter antirracista.

    O MNU surgiu da aglutinao de outros movimentos sociais negros e/ou

    antirracismo e configura-se qui o mais importante e paradigmtico movimento social

    antirracismo brasileiro. Mais tarde, denominado apenas por Movimento Negro

    Unificado (MNU), ser referncia para a luta antirracista em todo o Brasil. O MNU

    constituiu-se como um movimento de carter popular e democrtico, e tinha como

    principais fins o combate ao racismo, a luta contra a discriminao racial e o

    preconceito de cor. Entretanto, em que pese a importncia histrica do MNU, o

    Movimento Negro Contemporneo pode ser mais bem-compreendido como a

    pluralidade de diversos movimentos sociais negros/antirracismo. Nesse sentido, Silva

    enfatiza que

    A organizao do Movimento Negro brasileiro, no entanto, deve ser

    entendida em suas particularidades e ambiguidades. No se pode falar

    de um movimento unificado e combativo desde sua fase inicial de

    organizao (2007, p. 76).

    O Movimento Negro, ao mesmo tempo em que se caracterizava como um

    movimento de reivindicao, protesto e denncia das iniquidades sociais sofridas pelos

    negros no Brasil, procurou desconstruir o mito da chamada democracia racial. Esse

    processo de desmistificao tornou-se, a partir da, uma das principais bandeiras de luta

    do movimento, pois, na interpretao dos militantes, a ideia de que as relaes tnico-

    raciais se davam sem conflitualidade no sendo a sociedade brasileira racista, portanto

    e de que havia igualdade de oportunidades entre negros e brancos -, teria sido

    historicamente uma estratgia para encobrir as profundas desigualdades entre negros e

    brancos no Brasil.

    No bojo da desconstruo do mito da democracia racial, o Movimento Negro

    propor uma rediscusso da identidade nacional. Se essa identidade era pensada, at

    esse momento, de maneira a conformar uma democracia racial, a desconstruo deste

    mito, apoiada em novos paradigmas interpretativos e consistentes pesquisas acadmicas

    ( FERNANDES, 1965; HASENBALG, 1979), levar a uma problematizao identitria,

    posto que a realidade de desigualdade entre negros e brancos tornava a ideia de

    democracia racial insustentvel.

    A atuao do Movimento Negro, na figura de militantes como Abdias do

    Nascimento e Llia Gonzlez, levou a uma problematizao e rediscusso da identidade

    brasileira, agora pautada por um vis racial. Em contrapartida, essa articulao levou

    a um processo de ressignificao identitria, atravs da reivindicao de uma identidade

  • e de uma conscincia racial negras. A questo da conscincia negra de suma

    importncia, no sentido de que permitiu constituir mecanismos de fortalecimento do

    movimento e articular o processo de ressignificao identitria entre os militantes e a

    populao negra no Brasil, conformando uma ideia de povo unificado e coeso, que teria

    como meio de expresso o prprio Movimento Negro. Assim, para Costa (2006, p.

    144),

    Os conceitos conscincia e conscientizao passam a ocupar, desde a fundao do MNU, lugar decisivo na formulao das estratgias do

    movimento. Trata-se da tentativa de esclarecer populao negra

    sobre sua posio desvantajosa na sociedade, para, assim, constituir o

    sujeito poltico da luta antirracista.

    De uma identidade nacional ancorada na noo da no-conflitualidade tnico-

    racial passa-se reivindicao de uma identidade negra, com olhos voltados para a

    frica e para os negros da dispora decorrente do trfico de escravos nas Amricas. A

    conscincia e o sentimento de pertencimento chamada negritude e a cultura negra

    constitui-se em um contexto transnacional de lutas e experincias da populao negra,

    intermediado e perpassado pelo potencial poltico e conceitual do Atlntico Negro, que,

    de acordo com a conceituao de Paul Gilroy (2001), conforma tambm as ideias do

    antirracismo, agindo na rearticulao constante do sentido poltico da identidade e da

    cultura negra nos diversos contextos locais.

    A ligao com a frica torna-se central para o movimento negro no sentido de

    ressignificar a identidade. A designao afro, por exemplo, tornou-se adjetivo para

    prticas e adscries identitrias. Na dcada de 80, o discurso de ligao com a frica

    se popularizou, trazendo consigo uma nova concepo esttica e outros referenciais

    polticos em conjunto com prticas centradas na musicalidade, na corporalidade e na

    performaticidade cultural, atravs de um corpo de linguagens e procedimentos prprios

    a partir das matrizes africanas, com a contribuio tambm dos referenciais histricos e

    o acmulo de experincias 'afro-brasileiras'. (PEREIRA, 2008, p. 66).

    A influncia do Movimento Negro norte-americano, por sua vez, fundamental.

    Alm dos referenciais esttico-culturais, com o Black is Beautiful e a msica negra

    norte-americana, a adoo, pelo Movimento Negro brasileiro, do padro das relaes

    raciais norteamericanas como modelo, e as prticas de ao poltica comungam de

    princpios comuns. Esses princpios esto em parte ancorados em algumas experincias

    adotadas nos Estados Unidos, quais sejam, as polticas de ao afirmativa e o paradigma

    multiculturalista, mobilizado para pensar as relaes tnico-raciais no Brasil. Nesse

    sentido, Silva considera que

    O estreitamento dos laos entre os vrios Movimentos [...] com o

    Movimento Negro norte-americano foi, sem dvida, um importante

  • passo para a definio conceitual das bases unificadoras das lutas

    contra o racismo no mundo ocidental. (2010, pp. 12-13).

    O nvel e o teor da influncia poltica desses movimentos internacionais

    sobretudo o norteamericano para o contexto brasileiro motivo de dissensos, pois se

    argumenta que a conscincia racial proposta pelo Movimento Negro estabelecida de

    acordo com o padro das relaes raciais norte-americanas, do one-drop rule e do

    multiculturalismo, deslocada das especificidades da formao histrica nacional, cujas

    relaes sociais so em grande parte mediadas pelo hibridismo e pela classificao

    tnico-racial baseada no cromatismo e nos usos e abusos sociais da cor. Esse

    deslocamento de perspectiva traduzir-se-ia na racializao do ser negro e na

    polarizao das identidades sociais entre brancos e negros, tal qual pensada para o

    contexto dos Estados Unidos.

    Desta forma, o discurso identitrio do Movimento Negro acabou por negar valor

    ao hibridismo/mestiagem na constituio histrico-social brasileira, e, alm disso,

    relacionar, de maneira automtica e irrefletida, a sua existncia e dinmica poltica do

    branqueamento e ao discurso da democracia racial. A estratgia estatstica via

    IBGE perseguida pelo movimento nos anos 80 de classificar pretos e pardos sob a

    categoria negros pode ser entendida, nesse sentido, como um dispositivo que permite

    exercer o controle estatstico e o governamento da diferena, o governamento da

    populao negra/afrodescendente no Brasil, a partir do multiculturalismo e da

    bipolarizao das relaes tnico-raciais. Essa estratgia recebe contornos oficiais e

    institucionais a partir da metade da dcada de 90, como veremos em seguida.

    Movimento Negro e Estado: transformaes no discurso antirracista (1995-2010)

    Os anos 90 sero sumamente importantes para o Movimento Negro, pois a

    partir desse perodo que o Movimento passar a estabelecer um dilogo intenso com o

    governo brasileiro, ou seja, os movimentos sociais antirracismo comeam a se cercar do

    aparelho estatal e de suas instncias institucionais e de poder. neste contexto que o

    Movimento Negro tem sua agenda alada esfera pblica, galgando espaos

    institucionais e granjeando apoio internacional para a luta antirracista.

    Em 1995, (o governo federal) em mbito federal cujo presidente, Fernando

    Henrique Cardoso, foi o primeiro na histria do Brasil a reconhecer publicamente e em

    carter oficial a existncia das iniquidades raciais em relao aos negros no Brasil

    prope, em resposta s demandas do Movimento Negro apresentadas na Marcha Zumbi

    dos Palmares (1995), a criao do Grupo Interministerial para a Valorizao da

    Populao Negra (GTI), no mbito da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos

  • (SNDH). Apesar deste momento no ser frequentemente lembrado pelos militantes, este

    um ponto-chave na histria do antirracismo contemporneo, pois a partir da que

    comea a se conformar um novo contexto de relaes de poder entre Estado/Movimento

    Negro, sendo pavimentado por via institucional o caminho para a aceitao da raa

    como conceito marcador da diferena racial e de polticas pblicas de carter afirmativo

    (GRIN, 2010).

    No mbito da SNDH criado, em 2000, o Comit Nacional de preparao para a

    Conferncia de Durban. A Conferncia de Durban significativa no sentido de que, a

    partir da participao da delegao brasileira na Conferncia, houve a redefinio das

    estratgias de ao poltica para antirracismo e os movimentos antirracistas nacionais

    [passam a se articular] a partir de estratgias comuns. Convocada pela ONU em 1997, a

    Conferncia Mundial Contra o Racismo, a Discriminao Racial, a Xenofobia e a

    Intolerncia Correlata, foi realizada em Durban, na frica do Sul, em 2001. No pas de

    Nelson Mandela, que havia enfrentado dcadas de segregao oficial, o apartheid, a

    ONU, governos nacionais, ONGs e movimentos sociais de todo o planeta se reuniram

    para discutir as questes do racismo, da intolerncia e da xenofobia na

    contemporaneidade.

    Vrios so os pontos de inflexo e mudana que podem ser observados na

    constituio contempornea do Movimento Negro no contexto ps-Durban. O exemplo

    mais sintomtico nesse processo a adoo de polticas de aes afirmativas, a partir da

    Conferncia, como a principal bandeira do Movimento Negro. Observe-se tambm uma

    marcada diferenciao interna no Movimento Negro. Com o surgimento e a

    visibilizao de vrias ONGs antirracistas e o fortalecimento dos movimentos de

    mulheres negras alis, a presena brasileira mais importante na Conferncia de

    Durban, cuja relatora foi a militante do Movimento Negro brasileiro, Edna Roland ,

    amplia-se a discusso da poltica da diferena no interior do prprio Movimento, que se

    torna mais heterogneo (SANTOS, 2005).

    Alm disso, se um dos principais objetivos do Movimento Negro nos anos 70 e

    80 era a luta contra a discriminao racial e a valorizao da cultura negra, no contexto

    ps-Durban enfatiza-se a promoo da igualdade racial, mudana de foco que pe em

    debate noes importantes, tais como universalismo, particularismo e pluralidade, alm

    das discusses em torno das teorias da democracia. O reconhecimento do legado do

    dilogo entre Movimento Negro/Estado pode ser observado na avaliao de Amauri

    Mendes Pereira, militante histrico do Movimento Negro:

    No resta dvida, que a partir da Conferncia Mundial Contra o Racismo e

    da adoo de cotas e aes afirmativas e a o socilogo/estudioso das relaes raciais/presidente, Fernando Henrique Cardoso, cumpriu seu papel e na eleio de Lula e no governo do Partido dos trabalhadores e de um 'arco

  • de esquerda', que finalmente alguns segmentos mais articulados do

    Movimento Negro assumiram espaos mais consistentes de poder. E, nesse

    momento, j no a luta contra o racismo, mas a promoo da igualdade

    racial! (2008, p. 120. Grifo nosso)

    no contexto ps-Durban, que o processo de transnacionalizao do discurso do

    Movimento Negro torna-se mais intenso, deslocando-se de maneira definitiva a nfase

    de uma identidade nacional para uma identidade tnico-racial negra. Esse processo se d

    alm, obviamente, dos desdobramentos histricos da luta antirracista no plano

    nacional em funo do relacionamento constante estabelecido entre o Movimento

    Negro brasileiro com outras organizaes e movimentos sociais antirracismo

    internacionais, sobretudo latinoamericanos e norteamericanos, alm do surgimento de

    redes de cooperao binacionais e transnacionais.

    Importa, sobretudo, considerar os processos de subjetivao racial em curso

    no Brasil, no mbito das dinmicas e tenses entre o nacional e o transnacional. A

    categoria do Atlntico Negro, nesse sentido, merece uma anlise mais detida das

    significaes que o conceito pode ter quando se pensa no quadro contemporneo das

    relaes tnico-raciais. A Conferncia de Durban, entendida como um contexto

    transnacional de ao (COSTA, 2006), desponta como um evento paradigmtico, pois

    seus desdobramentos polticos, culturais, jurdicos, econmicos no Brasil colocam

    em discusso, ao nvel do debate pblico, os mbitos do global/local,

    nacional/transnacional, universal/particular. Entendido dessa maneira, o processo em

    torno de Durban funciona como um lcus de articulao de diferenas e de negociao

    poltica e cultural.

    Esta srie de transformaes no campo poltico do antirracismo teve, no

    primeiro decnio dos anos 2000 portanto, no contexto do governo Lula , uma gama

    desdobramentos institucionais, polticos e educacionais. nesse contexto que,

    paralelamente a uma maior visibilidade pblica da chamada questo racial, se observa

    a institucionalizao das polticas antirracistas, como as aes afirmativas nas

    universidades pblicas e a criao da Secretaria Especial de Promoo de Polticas de

    Igualdade Racial (SEPPIR/2003). Esse rgo constitui-se como importante instncia de

    poder e veculo institucional para a criao e promoo de polticas de corte racial

    orientadas populao negra, como, por exemplo, o Plano Nacional de Igualdade

    Racial (PLANAPIR). No que se refere s polticas educacionais, o movimento obteve

    importantes conquistas, como as cotas no ensino superior e, principalmente, a

    implementao da Lei 10.639/2003, referente disciplina de Histria e Cultura

    Afrobrasileira. interessante observar como essas polticas encontram respaldo e

    chancela da ONU, pois muitos dos conceitos e temticas tais como Educao e Ao

    Afirmativa encontram-se na Declarao Final de Durban (ONU, 2002).

  • Desdobramentos das aes do Movimento Negro Contemporneo e Educao

    Como procuramos demonstrar, h nas ltimas dcadas no Brasil uma alterao

    na forma como os enunciados antirracistas vm sendo articulados. O Movimento Negro

    contemporneo passou a proferir um discurso que prega a racializao do negro

    brasileiro, colocando em discusso a identidade nacional pautada na no-conflitualidade

    e na valorizao da mestiagem. A categoria raa, que desde a Segunda Guerra

    Mundial havia sido suprimida do debate poltico, ressignificada. Desprovida de seu

    carter biolgico, passa a ser compreendida como constructo social, como um conceito

    aglutinador do qual os movimentos sociais antirracismo lanam mo. Atravs dela

    reivindicada uma pretensa origem comum, a africana. Por meio de um retorno s

    origens, procura-se mobilizar uma srie de enunciados acerca da identidade negra.

    Chamamos a ateno, nesse sentido, para a ideia de origem, de ponto de partida comum,

    homogneo, puro, como lastro genealgico a partir do qual o negro, no caso, o negro

    brasileiro, precisa se identificar. Segundo Munanga (2004, p. 14, grifo nosso), influente

    terico do Movimento Negro,

    No que diz respeito aos movimentos negros contemporneos, eles tentam

    construir uma identidade a partir das peculiaridades do seu grupo: seu

    passado histrico como herdeiros dos escravizados africanos, sua situao

    como membros de grupo estigmatizado, racializado e excludo das posies

    de comando na sociedade cuja construo contou com seu trabalho gratuito,

    como membros de grupo tnico-racial que teve sua humanidade negada e a

    cultura inferiorizada. Essa identidade passa por sua cor, ou seja, pela

    recuperao de sua negritude, fsica e culturalmente.

    justamente essa construo identitria que reivindica uma origem comum que

    problematizamos. Como alerta Bauman (2003), nos processos de (re) criao e (re)

    atribuio de novas identidades pode ser evocado um carter conservador (volta s

    razes) e exclusivista (eles, coletivamente, constituindo uma ameaa para ns

    coletivamente) para que a comunidade imaginria gere a rede de dependncias que a

    tornar real.

    O que est em discusso, portanto, que ao recorrer ao passado em busca de

    uma essncia, na tentativa de realizar um resgate identitrio, presume-se que h uma

    identidade autntica, coerente, permanente, o que, a partir de uma anlise ps-

    estruturalista, se mostra inconcebvel, pois identidade nessa perspectiva s pode ser

    entendida como instvel, fragmentada, inconsistente, inacabada, atrelada a negociaes

    sociais, a jogos de poder. A identidade, nessa postura, entendida como um ato

    performativo, um processo em produo. Segundo Silva (2000, p. 92), o conceito de

    performatividade desloca a nfase na identidade como descrio, como aquilo que

  • uma nfase que , de certa forma, mantida pelo conceito de representao para a idia

    de tornar-se, para uma concepo da identidade como movimento e transformao. J

    as polticas multiculturalistas esto apoiadas na noo de identidade profunda e

    autntica, anterior poltica e s negociaes sociais (COSTA, 2009).

    Feitas essas consideraes, passamos a perscrutar como essas construes

    identitrias de cunho racialista se desdobram no contexto educacional brasileiro,

    analisando, para tanto, a Lei 10.639/2003, as diretrizes que a amparam e as publicaes

    do Ministrio da Educao que se propem a orientar docentes em relao s questes

    tnico-raciais.

    Dentro do contexto do multiculturalismo, entendendo a educao como um

    veculo de emancipao dos sujeitos, e, como ambiente propcio promoo de

    polticas da diferena, o governo federal promulgou em 2003 a Lei 10.639 que institui a

    obrigatoriedade da disciplina de Histria e Cultura Afrobrasileira e Africana no

    currculo da Educao Bsica brasileira. Tal fato caracteriza-se como uma grande

    conquista do Movimento Negro, visto que a insero de tais temticas nas escolas era

    uma reivindicao de longa data. Alm disso, aponta para a educao como estratgia

    poltica na construo de uma nova narrativa identitria no Brasil.

    Em seguida, em 2004, so publicadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para

    a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Histria e Cultura

    AfroBrasileira e Africana (2004), que regulamentam a alterao da Lei de Diretrizes e

    Bases (LDB) pela Lei 10.639/2003. Analisando o contedo das diretrizes, note-se que o

    discurso da valorizao da diversidade est bastante presente, como podemos observar

    nos seguintes trechos:

    Reconhecimento implica justia e iguais direitos sociais, civis, culturais e

    econmicos, bem como valorizao da diversidade daquilo que distingue os

    negros dos outros grupos que compem a populao brasileira. (DCN, 2004,

    p.11, grifo nosso) Reconhecimento requer a adoo de polticas educacionais e de estratgias

    pedaggicas de valorizao da diversidade, a fim de superar a desigualdade

    tnico-racial presente na educao escolar brasileira, nos diferentes nveis de

    ensino. (DCN, 2004, p.12, grifo nosso) importante destacar que no se trata de mudar um foco etnocntrico

    marcadamente de raiz europia por um africano, mas de ampliar o foco dos

    currculos escolares para a diversidade cultural, racial, social e econmica

    brasileira. (DCN, 2004, p.17, grifo nosso).

    Duschatzky e Skliar (2001) problematizam a retrica da diversidade e a noo

    de tolerncia que essa traz implicada. Para eles (2001, p. 121) no mundo ps-moderno a

    diversidade entende o outro como algum a tolerar, constituindo, assim, uma verso

  • discursiva sobre a alteridade. A tolerncia, nessa perspectiva, fica muito prxima da

    indiferena. Tolero, mas no dialogo!. Correndo-se o risco de fixar os sujeitos em

    determinadas identidades, materializando a morte de todo o dilogo e, portanto, a

    morte do vnculo social sempre conflitivo (DUSCHATZKY; SKLIAR, 2001, p. 136).

    Para Fleury (2000, p. 3), o multiculturalismo permite pensar alternativas para as

    minorias. Mas tambm pode justificar a fragmentao ou a criao de guetos culturais,

    que reproduzem desigualdades e discriminaes sociais.

    O entendimento dos processos de constituio de identidades tambm fica

    prejudicado, se no mbito da educao trabalhar-se com a ideia de identidades

    existentes a priori e no discutir as relaes de saber/poder que constituem

    historicamente tais construes, isto , entende-las como processos de produo social.

    Nesse sentido, como diz Tomas Tadeu da Silva (2000, p. 100), antes de tolerar,

    respeitar e admitir a diferena preciso explicar como ela ativamente produzida.

    J no livro Educao e aes afirmativas: entre a injustia simblica e a

    injustia econmica, publicado pelo MEC/INEP, realizada uma discusso a respeito

    de aes afirmativas como estratgia poltica; nela Silva Jnior (2003, p. 106, grifo

    nosso) afirma que na esfera dos instrumentos promotores da igualdade a norma jurdica

    faz mais do reprimir a discriminao; ela ocupa-se da educao para a tolerncia, do

    condicionamento de comportamentos [...]. A questo que se coloca aqui a seguinte:

    no essa uma estratgia de governamento da diferena?

    Segundo Ramos do (2009, p.102), quando Foucault se referia s tecnologias

    de governo destinadas a conduzir a conduta e isso em domnios to diferentes como a

    escola, o exrcito e o atelier [...] tinha em mente aqueles meios a que, em determinada

    poca, autoridades de tipo diverso deitam mo para moldar, instrumentalizar e

    normalizar a conduta de algum.

    As tecnologias de governo vo ganhando corpo sempre a partir dessa

    conscincia aflita que consiste em verificar que um mar de realidades lhes

    escapa, que existem sempre novos domnios a dever atrair a sua ateno, que

    a ordem e a administrao no se exercem nunca capazmente. (RAMOS DO

    , 2009, p. 104)

    Em funo desse deslize, daquilo que foge regra, daquilo que necessrio

    normatizar, que desbloqueada a arte de governar. Dessa forma, a Lei 10.639/03, que

    institui a obrigatoriedade do ensino da disciplina de Histria e Cultura Afrobrasileira e

    Africana na Educao Bsica, no poderia ser vista como uma estratgia de

    governamento?

    Alm disso, ao imputar a populao negra uma identidade racial, no se corre o

    risco de essencializ-la? Ou, anterior a essa questo, existem identidades ou deveramos

  • pensar em posies de sujeito? Reconhecer a diversidade e educar para a tolerncia de

    fato a melhor opo? Como promover um processo educacional intercultural? Como

    fazer com que os diferentes dialoguem e no, apenas, co-existam?

    Essas questes, no nosso entender, vm ao encontro das discusses que

    compem a temtica: Que docncia? Que educao? Para qual sociedade? balizadas

    pela III Jornada Acadmica do Mestrado em Educao da UNISC, que so prementes

    no contexto atual da educao brasileira.

    Consideraes finais

    No decorrer desse trabalho, tensionamos a postura racialista adotada pelo

    Movimento Negro contemporneo em diferentes dimenses. Questionamos a (re)

    interpretao feita pelo Movimento acerca do hibridismo e da mestiagem na Histria

    do Brasil. Aludimos a estratgia estatstica reivindicada pelo Movimento, no sentido de

    agrupar na categoria negros indivduos pretos e pardos, como constituinte de um

    dispositivo de governamento. Criticamos, a partir da perspectiva ps-estruturalista, a

    noo de identidade adotada pelo Movimento Negro, bem como o conceito de

    diversidade racial e seu pressuposto correlato de tolerncia. Enfim, colocamos sob

    suspeita as polticas antirracistas que se dispe(m) a condicionar comportamentos e

    nomear a alteridade, investigando a forma como essas construes identitrias se

    desdobram no educao, na legislao de 2003 (Lei 10.639), nas Diretrizes

    Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de

    Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana de 2004, bem como nas referncias

    bibliogrficas indicadas pelo Ministrio da Educao e Cultura (MEC) que se referem a

    essa temtica

    Cabe ressaltar, no entanto, que o exerccio ao qual nos propomos nesse texto se

    baseou na tentativa de pensar de outros modos, como sugeria Foucault e que foi

    definido por Veiga-Neto e Lopes (2010, p. 163) como uma prtica de liberdade

    intelectual que, se conduzida com cuidado e seriedade, capaz de sustentar a ao

    poltica com uma racionalidade conseqente e de tornar mais respirvel o ar que se

    respira. No se trata, portanto, de um ir contra; pelo contrrio, acreditamos na

    pertinncia dos movimentos sociais antirracismo, mas propomos que haja discusso e

    reflexo e que novas formas de ao possam ser pensadas e construdas.

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