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MOUZINHO FLORES

UM EIXO DE MUDANÇA PARA

O CENTRO HISTÓRICO

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Ficha Técnica

Título Mouzinho/Flores – Um Eixo de Mudança para o Centro Histórico

EdiçãoPorto Vivo, SRUSociedade de Reabilitação Urbana da Baixa Portuense, S.A.

CoordenaçãoPaulo de Queiroz Valença

ColaboraçãoEmpatia Arqueologia, Lda.Storibox – Conteúdos Informativos, Lda.

Coordenação da ediçãoRaquel Gomes da Costa – Busílis da Comunicação, Lda.

Créditos fotográficosFoto da capa: F. Piqueiro - Foto Engenho, Lda.Empatia Arqueologia, Lda. Gabinete Alexandre SoaresPorto Vivo, SRU Design e PaginaçãoCátia Leite de Sousa - Busílis da Comunicação, Lda.

ImpressãoBusílis da Comunicação, Lda.

Tiragem1.500 exemplares

ISBN978-989-98335-8-6

Depósito Legal384319/14

Nota: este livro foi escrito de acordo com a antiga ortografia, excepto em textos assinados

Porto, 2014

Co-Financiamento

MOUZINHO FLORES

UM EIXO DE MUDANÇA PARA

O CENTRO HISTÓRICO

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A PARCERIA PARA A REGENERAÇÃO

URBANA DO EIXO MOUZINHO / FLORES

DE ONDE SE PARTIU: A LEITURA HISTÓRICA ATRAVÉS DA ARQUEOLOGIA

O PORTO DEBAIXO DESTE PORTO

Rua de Mouzinho da Silveira

Ruas de São João e do Infante

Rua de Ferreira Borges

Largo de São Domingos e Rua das Flores

Largo dos Lóios e ruas envolventes

A ciência continua depois da obra feita

AS OPERAÇÕES:

ANTES, DURANTE E NO SEU FINAL

Estudo para a organização da mobilidade para aregeneração urbana do eixo Mouzinho / Flores

Requalificação do Espaço Público

Instalação do Museu da Santa Casa da Misericórdia

GAU – Modernização dos Ninhos de Empresas

GAU – Apoio ao Empreendedorismo

GAU – Feiras Francas

GAU – Circuito do Vinho do Porto

GAU – Valorização do Espaço e do Comércio Tradicional através da Memória

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ONDE SE CHEGOU:

UMA NOVA FORMA DE SE (RE)FAZER

O ESPAÇO PÚBLICO DE VALOR PATRIMONIAL

Lanhas e o Porto

A necessidade da abstracção: Lanhas e o modernismo

O desenho de uma obra

A pintura como processo de sedimentação

O princípio de dissemelhança e o Sistema-Lanhas

Os pequenos cosmos ou como pintar o mundo

O silêncio de uma obra

A PRU DO EIXO MOUZINHO/FLORES

E A MUDANÇA RESULTANTE

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A reabilitação urbana não é um projeto de um presidente ou de um executivo, nem se esgota num mandato ou se corporiza numa sociedade. A reabilitação urbana é um desígnio da cidade. E, sendo assim, nunca está cumprido e nunca está completo. A reabilitação urbana não é, por isso, uma obra que se comece e fique acabada, dentro ou fora de um prazo, mas antes um processo

de melhoria contínuo em que todos participam: Estado, Município, entidades privadas e, sobretudo – acima de tudo – os cidadãos.

Mas, nesse processo de melhoria e luta contra o envelhecimento da cidade, convém não perdermos de vista o que podemos chamar como “landmarks”, que no fundo não passam de faróis que nos ajudam a estabelecer metas e a fazer com que se percebam melhor as estratégias políticas de quem tem a responsabilidade de estar ao leme.

O eixo Mouzinho/Flores, e o processo de reabilitação do espaço público que atravessou, é um “landmark” importante, porquanto tem um duplo significado: do ponto de vista urbanístico representa um corredor importante de ligação da zona Histórica da Ribeira à zona dos Clérigos; do ponto de vista social, é uma zona de especial sensibilidade, graças à sua tradicional natureza comercial e ao seu tecido demográfico que se pretende preservar, rejuvenescer e desenvolver.

A intervenção pública, realizada com investimento municipal e cofinanciada pela União Europeia, é, claramente, alavancadora do investimento privado. Investimento privado que se materializa também em reabilitação, em turismo e em novos espaços comerciais que potenciam a criação de emprego e a fixação de pessoas. Isto é o que está a acontecer e é, certamente, o que irá acontecer de forma cada vez mais sustentada na Baixa do Porto, se continuarmos a investir, com o Estado e com os privados, nesse desígnio comum que é a reabilitação. Enquanto laboratório vivo, o eixo Mouzinho/Flores validou a teoria segundo a qual o investimento no espaço público fomenta um investimento em cadeia nos espaços privados adjacentes.

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O lançamento deste livro final da Parceria para a Regeneração Urbana do Eixo Mouzinho/Flores coincide com o 10.º aniversário da Porto Vivo, SRU. Uma feliz coincidência que representa o alcançar de uma primeira meta de atuação intensiva e integrada sobre o Centro Histórico do Porto.

Na sua génese, a Porto Vivo, SRU definiu um conjunto de territórios prioritários e um conjunto de objetivos para a sua missão. Foi no Centro Histórico, classificado como Património Mundial pela UNESCO em 1996, e mais concretamente no seu espaço central, constituído pelo Morro da Sé e pelo Eixo Mouzinho/Flores, que se deu o arranque da enorme tarefa de reabilitar e revitalizar o centro da cidade do Porto.

Mais tarde, aquando da elaboração do Plano de Gestão do Centro Histórico do Porto Património Mundial, em 2008, estes dois espaços territoriais centrais foram aí confirmados como duas das dez ações integradas em que o Centro Histórico foi subdividido.

Nos objetivos, a re-habitação, o desenvolvimento e promoção do negócio, a revitalização do comércio, a dinamização do turismo, cultura e lazer, e a requalificação do domínio público, foram aqueles que se estabeleceram para guiar a intervenção física e dar vida e conteúdos ao edificado renovado.

Foi a conjugação desta opção territorial com estes objetivos que se aplicou na estratégia, na dinamização e na obra, que fez mudar o perfil físico e funcional de ruas como a das Flores e de Mouzinho da Silveira, e de largos como os do Infante, de S. Domingos e dos Lóios, e também da rede mais capilar de pequenas artérias que une estes espaços.

Em boa hora foi possível mobilizar parceiros e apoios comunitários para se realizar uma operação que se sabia como imperiosa. Trata-se de um projeto que conjuga fundos públicos e fundos comunitários, mas também e sobretudo um forte investimento privado, de uma forma claramente virtuosa e exemplar.

O resultado desta importante intervenção que conjuga ações materiais, sobre o espaço público e edificado, e imateriais, em áreas como o empreendedorismo, criatividade, cultura e lazer, respeitando e valorizando o património também ele material e imaterial, demostra claramente o quão este é um território de futuro.

Neste processo de intervenção no eixo Mouzinho/Flores esteve, contudo, sempre muito presente o fator humano. As ruas e as nossas casas não podem ser feitas ou reabilitadas tendo apenas como objetivo “lavar” a cara à cidade. Se não formos capazes de criar novas dinâmicas sociais e alterar paradigmas de estagnação, dificilmente conseguiremos retirar todo o proveito do investimento realizado em reabilitação urbana. É por isso que é importante pedonalizar algumas destas artérias, como acontece já hoje na Rua das Flores, dotar a cidade de melhor transporte público e progressivamente educar os públicos para um estilo de vida mais sustentável para todos e, sobretudo, com uma componente social mais presente.

Projetos como o da colocação do painel de Fernando Lanhas junto do Túnel da Ribeira (para o qual foi concebido) ou a animação de rua, através de artes performativas, por exemplo, ou da música, como tem acontecido, são estruturantes nesse processo de reabilitação que está em curso e que, desejavelmente, nunca acabará.

Haverá sempre quem diga que se poderia ter feito diferente ou melhor. Essa é uma característica do Porto e resulta do nosso fortíssimo sentimento de pertença. Não nos podemos sentir atormentados por isso. O Porto é o que é, e é diferente de outras cidades porque, para nós, portuenses, nada do que se faz na cidade nos é indiferente.

Rui Moreira,Presidente da Câmara Municipal do Porto

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01A PARCERIA PARA A

REGENERAÇÃO URBANA DO EIXO MOUZINHO / FLORES

As novas atividades culturais e comerciais instalam-se a grande ritmo. A hotelaria promove o que hoje de melhor o Porto tem, desde uma unidade de referência nas Cardosas, até um dos melhores hostels do mundo, isto no âmbito de um conjunto alargado de oferta turística.

A oferta habitacional expande-se, ora em mais pequenas e mais simples reabilitações em que as morfologias originais dos edifícios se mantêm, ora em apostas de regeneração mais intensivas, que aportam novos conceitos e novas linguagens, com a criação de novos produtos residenciais para novos tipos de residentes do Centro Histórico.

Com isto, o Centro Histórico está revigorado e a Baixa do Porto recuperou uma centralidade perdida. A dinâmica económica afirma-se e atesta a boa decisão política, antes assumida e agora continuada, de apostar na reabilitação urbana do centro da cidade, aliando o interesse municipal com o interesse nacional que decorre da importância do Porto e dos seus enormes constrangimentos que ultrapassam a escala local, e do facto de estarmos a cuidar de um património que sendo mundial é sobretudo orgulhosamente nosso.

A Porto Vivo, SRU regozija-se por todos estes resultados ao final destes primeiros 10 anos de existência, pois cumpre-se assim a sua visão para o centro da cidade.

Ainda que no cargo de Presidente do Conselho de Administração há poucos meses, não posso deixar de dirigir um BEM-HAJA a todos aqueles que contribuíram para atingir este patamar e BEM-VINDOS a todos aqueles que poderão contribuir para novas realizações no futuro.

Álvaro Santos,Presidente Executivo do Conselho de Administração da Porto Vivo, SRU

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A Parceria para a Regeneração Urbana (PRU) do Eixo Mouzinho/Flores, é um processo gerado para executar um programa estratégico de valorização, reabilitação e revitalização de um importante território do Centro Histórico do Porto,

classificado como património mundial. Surge na sequência da assinatura de um Protocolo de Parceria em Outubro de 2008, entre diversas entidades públicas e privadas – O Município do Porto, a Porto Vivo, SRU, a Associação Porto Digital, a Santa Casa da Misericórdia do Porto, a Fundação da Juventude, a Sociedade de Transportes Colectivos do Porto, S.A., a TRENMO - Engenharia, S.A. e a SPOT - Sociedade Portuense Outras Tendências, Lda..

O Eixo Mouzinho/Flores é uma das dez áreas de acção integra da que o Plano de Gestão do Centro Histórico do Porto Património Mundial delimitou tendo em vista a reabilitação urbana deste sítio de excepcional valor sócio-cultural, urbanístico, arquitectónico e arqueológico. Assenta numa área de cerca de 11ha o que representa cerca de 22,5% da área total do Centro Histórico do Porto Património Mundial que conta com cerca de 49ha, e é estruturado por 15 quarteirões que têm 421 prédios e mais de 200.000 m2 de área bruta construída.

Este território é importante pelas suas características actuais, não o sendo menos pela carga histórica que encerra e

que se evidencia em situações específicas, mas também pela presença que sempre teve na vida da cidade e pelos momentos de mudança que corporizou ao longo dos tempos – antes como agora de novo!

A Rua das Flores é exemplo de decisão, de planeamento e de desenvolvimento urbano do século XVI, quando se definiu a necessidade de criar eixos de crescimento/saída da cidade ribeirinha, ligando a cota baixa à cota alta através de terrenos propriedade do Bispo, do Cabido e da Misericórida, não urbanizados ainda, apesar da sua localização dentro da muralha dita fernandina. Pretendeu-se ainda ligar a cidade ao Convento de S. Bento da Avé Maria, este mandado edificar por D. Manuel I em local, nessa época, bem afastado do centro da cidade, no local onde hoje se encontra a Estação de S. Bento, à qual, aquele, no final do século XIX, deu lugar.

Por outro lado, também a abertura da Rua de Mouzinho da Silveira nos últimos anos de 1800, é um outro acto de gestão e de planeamento urbano. Importou, à época, melhorar o trajecto norte/sul que tinha já 3 séculos e se fazia pela Rua das Flores, mas, essencialmente, importou resolver um problema de salubridade pública encanando o Rio de Vila que funcionava como um esgoto a céu aberto, e o conjugar destas duas situações proporcionou a definição do actual traçado da rua, exactamente sobre o leito do rio.

A PRU EIXO MOUZINHO/FLORES

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Figura 1 Figura 2

Figura 5 Figura 6

Figura 5

Figura 6 Figura 7

Figura 3 Figura 4

E para além destas questões do território, são marcantes ainda as questões da dinâmica económica deste eixo, dos mais fortes da cidade até aos inícios do século XX, albergando o que de melhor o sector do comércio tinha, as agências bancárias, os locais de venda de produtos e alfaias agrícolas que se serviam da Estação de Caminho-de-Ferro para atingirem os territórios rurais envolventes do Porto e as ourivesarias que associaram a sua imagem à imagem da Rua das Flores.

Mas observar o Eixo Mouzinho/Flores é também relembrar outras situações mais específicas como sejam os casos de vários edifícios e outras actividades aí existentes.

É o caso do Convento de S. Francisco, do qual hoje resta ape nas a magnífica Igreja de origem gótica com a sua talha barroca, agora paredes-meias com o Palácio da Bolsa que ocupou, por ordem da Rainha D. Maria II, terrenos antes pertença do Convento; do Arquivo Histórico, instalado na Casa do Infante, onde terá nascido o grande responsável pela descoberta marítima da Terra a partir do século XV; da Feitoria Inglesa, o primeiro grande edifício projectado do Porto, construído entre 1785 e 1790 pelo Consul John Witehead, local de reunião da comunidade comercial inglesa, designadamente daquela que negoceia com o Vinho do Porto; do Mercado Ferreira Borges, exemplar da arquitectura do ferro do final do século XIX, que albergou já diversas funções para além das de mercado de frescos que lhe estão na génese, até à de espaço da música como actualmente acontece; do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto onde se gere a política de uma das maiores riquezas da região; do Palácio das Artes/Fábrica de Talentos equipamento potenciador da actividade de jovens artistas, antes sede do Banco de Portugal e da Companhia de Seguros Douro que se instalaram no local onde séculos antes existira o Convento de S. Domingos; da Igreja da Misericórdia, com a sua fachada

Figura 1: Convento de S. Francisco

Figura 2: Palácio da Bolsa

Figura 3: Casa do Infante - Arquivo Histórico

Figura 4: Feitoria Inglesa

Figura 5: Mercado Ferreira Borges

Figura 6: Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto

Figura 7: Edifício Douro - Palácio das Artes / Fábrica de Talentos

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Figura 8 Figura 9

Figura 10

Figura 11

Figura 12 Figura 13

mobilidade de pessoas e veículos já não estava condizente com aquilo que se desejava para um espaço classificado como património mundial no século XXI.

Havia que mudar o estado da situação. Definiu-se portanto uma estratégia para tal, e essa veio sustentar a candidatura realizada ao Aviso de Abertura nº PRU/02/2008 no âmbito do Regulamento Específico “Política de Cidades – Parcerias para a Regeneração Urbana”, que veio a ser aprovada e enquadrou a celebração de Contrato de Financiamento entre a ON.2 e a parceria de entidades públicas e privadas, em 30 de Junho de 2009.

Constituiu-se então um Programa de Acção decorrente da estratégia, onde se estabeleceram objectivos e operações materiais e imateriais para lhes dar corpo.

O objectivo geral que enforma a mudança neste Eixo Mouzinho/Flores é a melhoria do ambiente turístico, cultural e de lazer, numa forte concertação com a re-habitação e melhoria de condições sociais, promoção do negócio, revitalização do comércio e qualificação do domínio

emblemática e desenhada por Nicolau Nasoni, onde nasceu o Museu da Misericórdia, de arte sacra, de arte contemporânea e dando relevo aos benfeitores e beneméritos da instituição; da casa dos Ferrazes, residência senhorial oitocentista; da Casa da Companhia, hoje instalações da Fundação da Juventude, mas antes residência dos Figueiroa, e onde no século XVIII se instalou a Real Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro criada pelo Marquês de Pombal, que detinha o exclusivo da produção e distribuição dos vinhos da região demarcada do Douro; da casa dos Constantinos, actualmente um espaço de uso turístico, edifício dos inícios do século XIX; do Hospital de Santa Maria de Roc’Amador do século XV, mais tarde designado de D. Lopo quando adaptado pela Santa Casa da Misericórdia, e de cujos edifícios pouco já resta hoje; do Palácio das Cardosas cuja construção se iniciou para substituir o antigo Convento de Santa Maria da Consolação dos frades Lóios, que passou a residência da família de Manuel Cardoso dos Santos, daí a sede de banco e actualmente é um dos hotéis de maior luxo da cidade; e, por fim, da Estação de S. Bento, inaugurada em 1916, após a demolição do Convento, já falado de S. Bento da Avé Maria. São, todos estes, alguns dos exemplos simbólicos que pontuam o Eixo Mouzinho/Flores.

Por todas estas razões e pelo facto de estarmos no centro do Centro Histórico e na zona de interligação da Baixa com a ribeira, e também da ligação da cidade do século XIX com a cidade medieval, houve a decisão de actuar na modernização deste tecido, na sua recuperação e revitalização, regenerando um dos corações que o Porto teve desde sempre. E a decisão assentou também no facto de o edificado, de grande qualidade individual e de conjunto, estar em forte processo de degradação, identificando-se, à época, 23% em bom estado de conservação, 30% em razoável estado de conserva ção e 42% em mau estado, estando os res tantes edifícios em ruínas, porque a ocupação dos edifícios, na íntegra, era de apenas 40%, porque as actividades comerciais iam definhando e morrendo, algumas delas, porque não se conseguia tirar o devido partido do serviço das instituições e equipamentos diversos aqui existentes, e porque o espaço público e a

Figura 8: Igreja da Misericórdia - Museu

Figura 9: Casa dos Ferrazes

Figura 10: Casa da Companhia - Fundação da Juventude

Figura 11: Casa dos Constantinos

Figura 12: Palácio das Cardosas - Hotel Intercontinental

Figura 13: Estação de São Bento

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Figura 14

Figura 15 Figura 16

Taipas3 Quarteirões

Vitória9 Quarteirões

S. Francisco6 Quarteirões

Mouzinho/Flores

11 Quarteirões

Sé11 Quarteirões

Av. da Ponte2 Quarteirões

Santa Clara5 Quarteirões

Ribeira/Barredo19 Quarteirões

Clérigos9 Quarteirões

S.Bento8 Quarteirões

pelo que se deixaram cair, prejudicando-se, assuma-se, o alcance global da meta dos objectivos gerais traçada a priori. Do que ficou por implementar destaca-se a construção de um parque de estacionamento em túnel entre o Largo de S Domingos e o Largo das Taipas, destinado, prioritariamente, a moradores e pessoas que trabalhassem na zona, cuja dimensão do investimento necessário, mesmo na sua primeira fase, impediu que se passasse à obra; a Instalação da Linha do Eléctrico entre S. Francisco e S. Bento, perfazendo a ligação do anel da baixa à linha da marginal; a Valorização da Imagem Urbana e da Eficiência Energética, dado não ter havido a decisão política do Estado português de alargar um apoio existente para habitação social ao investimento a realizar por privados no seu parque edificado habitacional; e o projecto de animação urbana Interferências Porto destinado a criar eventos sistemáticos ao longo do tempo de execução do Programa de Acção, que minimizassem o efeito de obras em curso e fossem regenerando a imagem de dinamismo económico, cultural e social do território.

Mas, muitas outras operações constaram do Programa de Acção e foram executadas ao longo dos seus quase 5 anos de desenvolvimento, e que em capítulo seguinte serão apresentadas e explicitadas. A saber:

Figura 14: Acções Integradas do Centro Histórico do Porto Património Mundial

Figura 15: Território de inserção da Rua das Flores

Figura 16: Esquema de implantação da Rua de Mouzinho da Silveira

público, objectivos que têm adesão ao estipulado pelo Masterplan desenvolvido para o processo de reabilitação e revitalização urbana do Centro Histórico e da Baixa do Porto. Desenharam-se ainda objectivos específicos para permitir implementar a mudança:

• Qualificação das condições de vivência urbana, aumentando o conforto no edificado, promovendo as condições de estacionamento para favorecer as condições dos residentes e atrair mais e novos residentes, melhorando as redes de infraestruturas, a pavimentação de arruamentos e o ambiente urbano, e apostando num sistema de transportes adequado ao meio e capaz de promover as ligações com serviços já existentes;

• Consolidação de uma centralidade ligada com a inovação e a criatividade, aproveitando as dinâmicas instaladas, a existência de procura, as condições apropriadas do local e a articulação possível entre actividade empresarial, meio académico, meios artísticos e culturais e a existência de clientes;

• Aumento da oferta de serviços de apoio ao turismo, de modo a consolidar o eixo de ligação da Baixa à Ribeira e a melhorar as condições de utilização e de fruição ao grande número de turistas que por aqui passam;

• Implementação de uma política de Gestão de Área Urbana, gerando e gerindo projectos em parceria que visem a melhoria da qualidade da vida da população residente e das condições sociais, uma melhor operacionalidade do sector económico local, a segurança urbana e a manutenção do espaço público.

Descendo no detalhe do Programa de Acção da PRU do Eixo Mouzinho/Flores, refira-se que o mesmo se corporizou num leque de operações a serem desenvolvidas pelas distintas entidades que subscreveram este caminho comum. Mas, refira-se que houve operações que não tiveram condições financeiras, técnicas e regulamentares para prosseguir,

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Figura 17

Figura 18

Figura 17: Rua das Flores antes da intervenção

Figura 18: Largo dos Lóios antes da intervenção

• Estudo para a Organização da Mobilidade para a Regeneração Urbana do Eixo Mouzinho/Flores

• Requalificação do Espaço Público

• Instalação do Museu da Santa Casa da Misericórdia

• Instalação e Operacionalização da Gestão de Área Urbana

• GAU – Modernização dos Ninhos de Empresas

• GAU – Apoio ao Empreendedorismo

• GAU – Feiras Francas

• GAU – Circuito do Vinho do Porto

• GAU – Valorização do Espaço e do Comércio Tradicional através da Memória

A oportunidade de se executar este Programa de Acção, pondo em curso a execução de um importante programa estratégico de valorização, reabilitação e revitalização de uma parte central do Centro Histórico do Porto, aconteceu pela possibilidade de se utilizarem fundos públicos de origem comunitária decorrentes da ON.2. Encontrou-se assim um apoio financeiro de cerca de M€ 6,5 que comparticipou a fundo perdido o investimento total do Programa de Acção de cerca de M€ 9,3, o que no seu conjunto permitiu, no decurso desta intervenção conjugada, realizar um investimento privado de cerca de M€120 – é uma relação de €1 de apoio para €18,5 de investimento privado. Valeu a pena!

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02DE ONDE SE PARTIU:

A LEITURA HISTÓRICAATRAVÉS DA ARQUEOLOGIA

O PORTO DEBAIXO DESTE PORTO

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Debaixo do Porto, há outro Porto. Sob esse Porto de outrora, há ainda outros Portos. Há quatro mil anos de Porto dentro do Porto dos nossos dias, camadas sobre camadas de ocupação de várias épocas, sendo essa História um tecido composto

pelos milhões de células que são as histórias dos que viveram, construíram, desconstruíram e reconstruíram o Porto durante os períodos romano, medieval e moderno.

O resultado foi a descoberta de milhares de achados arqueológicos, muitos mais do que os esperados. E ainda a descoberta de lugares únicos do Porto antigo, alguns num estado de conservação surpreendente. Além do valor científico da operação, foi também um trabalho de enorme intensidade para a equipa da empresa Empatia – Arqueologia, Lda. que levou a cabo sondagens, escavações e o acompanhamento arqueológico, possibilitando desta forma ir juntando peças mais concretas à cartografia do Porto.

Há muitos registos, teorias, suposições, mas essa cartografia tem sido um exercício de agregação de dados, uma expectativa baseada em factos, mas sempre uma expectativa. O trabalho arqueológico realizado no âmbito desta obra de requalificação urbana vai permitir avançar cientificamente no conhecimento factual do passado da cidade.

A real dimensão desse avanço está ainda por conhecer, à data da publicação deste livro: depende ainda de um grande trabalho de tratamento dos achados arqueológicos, que se prolongará muitos meses além da conclusão da empreitada. Antes de iniciar o relato sobre o desenrolar dos trabalhos de acompanhamento arqueológico da obra de Mouzinho/Flores, é preciso deixar bem claro o valor da sua oportunidade – é provável que, por muitas décadas, não se proporcionem circunstâncias semelhantes no centro histórico do Porto.

O Eixo Mouzinho/Flores engloba um território com 11 hectares, entre a Praça Almeida Garrett (junto à Estação de S. Bento) e a Praça do Infante (Ribeira). Nessa encosta densamente edificada, que liga o centro político da cidade ao rio, existem 15 quarteirões com mais de 200 mil metros quadrados de área construída, embora apenas parcialmente ocupado (cerca de 40% dos edifícios) e carente de intervenção (45% do edificado está em mau estado e 20% encontra-se devoluto.

Há casas sob as nossas casas, cursos de água e o seu burburinho, que numa determinada época alguém disciplinou entre muros. Sobre os muros, fizeram-se caminhos, estradas e mais casas. Às vezes, as ocupações antigas foram totalmente arrasadas para dar lugar a novas concepções de urbanismo. Outras vezes foram apenas parcialmente destruídas. Noutras

02DE ONDE SE PARTIU – A LEITURA HISTÓRICA ATRAVÉS DA ARQUEOLOGIA

O PORTO DEBAIXO DESTE PORTO

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Vestígios romanosVestígios medievaisVestígios modernos

Figura 19

ocasiões, o presente simplesmente estendeu a sua obra sobre o passado, como uma toalha feita de pedra dura. Sobre cada nova camada do Porto, pessoas viveram, correntes de arte e de pensamento fluíram.

Debaixo do chão do Porto actual, milhares e milhares de anos antes, outros moradores se movimentaram, deixando vestígios materiais que hoje são narrativas. Como eram as suas casas, como utilizavam o seu espaço doméstico, que objectos usavam no seu dia-a-dia, de que materiais eram feitos esses objectos, como decoravam as suas casas. Como se vestiam, com que tecidos faziam as suas roupas, com que enfeites se adornavam, como escolhiam ser enterrados quando morriam.

Além destes aspectos do quotidiano, que são fundamentais na história de uma cidade, os vestígios materiais podem mostrar--nos que relações o Porto tinha com outros lugares, como era a sua vida económica, comercial, industrial, social e política. Muita informação sobre aqueles que nos precederam e sobre cuja vivência assenta o Porto contemporâneo pode ser reve lada pelo estudo dos seus vestígios físicos. Ao relacioná-los com outros vestígios, documentais e patrimoniais, o conhecimento sobre a história da cidade vai sendo ampliado. Foi o que sucedeu neste caso.

O acompanhamento arqueológico da requalificação urbana do Eixo Mouzinho/Flores permitiu abrir mais portas de conhecimento deste passado de camadas sobrepostas do Porto e o que a seguir se descreve é sobretudo a abrangência desse acesso. Mas é também uma descrição dos momentos humanos, de partilha e entusiasmo, que marcaram o percurso científico. Porque a narrativa histórica tem esse indefetível tempero de prazer, de fascínio e de emoção da descoberta.

Nos dias de hoje, não é possível levantar as pedras de uma cidade consolidada sem um pretexto. Nesta grande intervenção, o pretexto surgiu, dando licença à equipa de arqueólogos para, em contexto de obra, fazer um mergulho sem precedentes na história do Porto, desta vez na história tangível e concreta cujos vestígios se encontram nessas camadas sobrepostas, construídas, desconstruídas e acrescentadas ao longo de muitos séculos.

Dadas as características da zona de intervenção, um lugar onde se sabia ter acontecido ocupação prévia, em várias épocas, com elevado potencial patrimonial, a empreitada de requalificação urbana do eixo viário de Mouzinho da Silveira/Flores foi condicionada ao acompanhamento arqueológico e à execução de sondagens prévias, nas zonas onde estava prevista a colocação dos contentores de resíduos sólidos urbanos (RSU).

Esse foi o ponto de partida para os trabalhos, que começaram muito antes da primeira pedra ser levantada. Foi realizado um estudo prévio, através da sobreposição da cartografia antiga com a cartografia moderna, identificando zonas de risco. Depois de feitas as sondagens nos locais planeados, com a empreitada a decorrer numa área particularmente rica do ponto de vista patrimonial e arqueológico, verificou--se a necessidade de realizar escavações arqueológicas de emergência à medida que as máquinas avançavam no terreno, de acordo com o plano de obra.

Este acompanhamento implicou a presença permanente de um arqueólogo no terreno, em todas as frentes de obra. Foi um trabalho intensivo para a equipa da Empatia – Arqueologia, Lda.

Na maior parte do tempo, a obra decorreu em três frentes simultâneas, chegando a decorrer em quatro frentes. Tais circunstâncias obrigaram a que existisse um contacto permanente entre a equipa de arqueologia, o dono da obra, o empreiteiro e a fiscalização. À medida que os trabalhos avançavam, tornou-se claro que a zona era mais complexa do que inicialmente se previa. A quantidade de ocorrências patrimoniais que obrigaram a escavações de emergência foram mais do que aquelas que se estava à espera, com a maior parte delas a acontecer nas ruas de Mouzinho da Silveira, Infante e Ferreira Borges.

Figura 19: Mapa com as ocorrências patrimoniais identificadas durante os trabalhos da “Reabilitação Urbana do Eixo Viário Mouzinho da Silveira - Flores”.

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Figura 20

Figura 21

Foi não raras vezes um trabalho a contra-relógio, o que lhe conferiu a já referida intensidade. A empreitada de requalificação tinha um calendário a executar e a arqueologia tinha protocolos científicos a cumprir. Houve sempre um grande esforço para minimizar os impactos e tentar conciliar os tempos da arqueologia com o planeamento da obra. A equipa procurou sempre assegurar a recuperação, registo e preservação da informação e vestígios encontrados durante a obra. Apesar das dificuldades inerentes aos trabalhos de arqueologia em contexto de obra, conseguiu-se sempre um bom entendimento entre as partes envolvidas.

É preciso valorizar a palavra entendimento: em muitas ocasiões, ao verificar-se a necessidade de efectuar ou de prolongar escavações de emergência, era preciso rever o plano de obra e “mudar as máquinas” para outras localizações. O acompanhamento arqueológico estava sustentado por um acordo prévio entre o dono da obra – a Gestão de Obras Públicas da Câmara Municipal do Porto, E.M. – e a Direção Regional de Cultura do Norte (DRCN), às quais cabiam decisões céleres sobre o que fazer diante da emergência de achados arqueológicos – verdadeiramente céleres, quase sempre no próprio dia da ocorrência.

Todo o trabalho se desenvolveu neste contexto, de permanente comunicação e de apreço pelo trabalho arqueológico, o que permitiu colocar a descoberto um conjunto vasto de estruturas e ocorrências que confirmam a presença humana naquele local desde o período romano. Permitiu ainda concluir que a ocupação romana se estendia por uma área maior do que a que inicialmente se pensava, estendendo-se além do Rio de Vila, até aos Lóios.

Também se descobriu que certas estruturas antigas se encontravam não só ainda parcialmente conservadas mas

em bom estado de conservação. E foram encontradas peças, como um fragmento de xisto, presumivelmente uma peça de arte de origem ou inspiração cartaginesa, que pode indicar um Porto de influência comercial mais vasta do que aquela que até agora se supunha.

A somar ao avanço do conhecimento, temos ainda a surpresa e o fascínio com que alguns moradores acolheram algumas descobertas arqueológicas – basta mencionar a necrópole da Rua de Ferreira Borges, a descoberta com maior impacto na comunidade – foram a prova disso. Habituamo-nos a percorrer esse centro histórico de encantamento com o nariz no ar, medindo a beleza das suas fachadas, adivinhando-lhe o potencial de reabilitação, lamentando tantas vezes a sua ruína. Mas nem os visitantes do centro histórico nem os seus habitantes imaginavam pisar uma cave de tais riquezas de património. Vamos, então, resumir aquilo que a requalificação do eixo Mouzinho/Flores nos trouxe em termos de reconhecimento arqueológico do centro histórico.

Figura 20: Trabalhos de limpeza e escavação na Necrópole da Igreja/Capela da Ordem dos Terceiros de São Domingos, demolida na década de 30 de oitocentos para a abertura da Rua de Ferreira Borges.

Figura 21: Sigla de pedreiro, identificada na Rua de Mouzinho da Silveira.

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Figura 22

RUA DE MOUZINHO DA SILVEIRA

Foi nesta rua de importância vital no centro histórico, pelo seu papel de ligação da cota alta à cota baixa da cidade, e de eixo viário fundamental, que foram encontrados cerca de 60% dos achados arqueológicos. Foi projetada no século XIX e a sua construção, embora seja essencial à cidade moderna, implicou a destruição de estruturas medievais. De traçado tendencialmente rectilíneo, ou pelo menos de fraca curvatura, a Rua de Mouzinho da Silveira assumiu um papel de destaque de entre vários arruamentos do centro histórico, ao assegurar a ligação entre cotas, criando a comunicação entre o centro da cidade e a zona ribeirinha.

O traçado foi da autoria de Luís António Nogueira, descrito na intitulada Planta do Projecto da Rua da Biquinha paralela à Rua das Flores, que data de 1872. A execução da nova artéria foi aprovada em 1875, com a largura de 19 metros e não de 16 metros, conforme inicialmente previsto.

Sequenciada em duas fases, a abertura do arruamento iniciou--se em 1877, com o troço entre o Largo de São Bento de Avé Maria e a Rua de São João. Prosseguiu-se, numa segunda fase, com o seu prolongamento até à actual Rua do Infante D. Henrique, tendo por princípio o alargamento e a regularização da antiga Rua de Congostas. Foram várias as dificuldades encontradas para a construção desta artéria, devido sobretudo ao encanamento do Rio de Vila e às expropriações de mais de oitenta parcelas (Monteiro de Andrade 1949:181), implicando a destruição de edifícios e das antigas ligações, de período medieval, que uniam o tecido urbano do Morro da Penaventosa ao Morro do Olival (VVAA 2012:8).

O encanamento do Rio de Vila alterou o traçado original deste curso de água, tendo desviado todo o seu curso para o eixo da actual Mouzinho da Silveira. Essa alteração levou à destruição parcial do bairro de origem medieval existente naquela zona, onde as escavações permitiram detectar um conjunto apreciável de estruturas datadas do período romano até à época contemporânea. Entre essas estruturas encontram-se, por exemplo, uma casa do século XIV.

O rio de Vila e a estrutura que o conduz ao Douro está ainda hoje em funcionamento, percorrendo o subsolo do actual traçado da rua até ao cruzamento da Rua de S. João com a do Infante. Sendo utilizado igualmente para escoamento de águas pluviais, foi possível visitá-lo durante os trabalhos, percorrendo todo este troço pelos passeios construídos junto às paredes do túnel. Essa possibilidade trouxe uma das descobertas mais interessantes.

No cruzamento com o Largo de S. Domingos, descobriu-se uma pequena abertura, que depois de explorada permitiu identificar dois arcos de volta perfeita - um deles completamente siglados - pertencentes à fundação medieval da Capela de São Crispim. Detectou-se ainda um terceiro arco sobreposto aos medievais de cronologia aparentemente moderna, talvez fruto

Figura 22: O “Encanamento” do Rio de Vila. Obra executada aquando a abertura da Rua Mouzinho da Silveira.

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Figura 24Figura 23

Figura 26Figura 25

Figura 23. Plano do arco moderno da Capela de São Crispim.

Figura 24: Arco medieval da Capela de São Crispim.

Figura 25: Arco Moderno da Capela de São Crispim.

Figura 26: Trabalhos de arqueologia, limpeza de estrutura moderna identificada na Rua de Mouzinho da Silveira, em frente ao actual n.º 180.

(Nas páginas seguintes)

Figura 27: Sobreposicão do Projecto de Abertura da Rua de Ferreira Borges da autoria de Joaquim da Costa Sampaio Lima (1835) com excerto da Planta actual da cidade do Porto.

Figura 28: Panorâmica geral das obras em curso na Rua de Mouzinho da Silveira. Nesta frente de trabalho foram identificados vários vestígios arqueológicos, datáveis da Época Moderna, Medieval e do período Romano.

de uma reformulação do edifício. No lado oposto da rua foram encontrados parte das estruturas da capela e do Hospital da Confraria de São Crispiniano, de fundação medieval.

O interesse desta descoberta prende-se com o facto de não haver certeza quanto àquilo que ainda restava dessa capela de fundação medieval, que foi parcialmente destruída pela construção da Rua de Mouzinho da Silveira. O bom estado de conservação dessas estruturas fundacionais foi acolhido com entusiasmo. E sua preservação levou a que, seguindo o plano prévio, fosse alterada a localização de uma das estruturas projectadas, um contentor para RSU previsto para aquele local.

A Rua de Congostas foi igualmente identificada em alguns lajeados encontrados em valas abertas pela obra. Na intersecção com a rua da Ponte Nova, existia ainda parte de um arco em granito que poderia ter feito parte de uma ponte que ali existiu para atravessar o rio de Vila.

O conjunto de vestígios arqueológicos encontrados no decurso da Requalificação Urbana do Eixo Viário Mouzinho da Silveira – Flores correspondem a um universo de mais de duas dezenas de estruturas. Tratam-se maioritariamente de restos de antigos edifícios de cronologia moderna, sendo que alguns remontam ao período medieval e romano.

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Figura 28Figura 27

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Figura 30Figura 29

Figura 32Figura 31

Uma das curiosidades destes vestígios arqueológicos consiste na sua confrontação directa com a documentação histórica, nomeadamente com o Livro das Expropriações e Remissões de foros e laudémios para a abertura da nova Rua de São Domingos, alinhamento da Rua dos Caldeireiros e abertura da nova Rua da Biquinha, através do qual é-nos possível estabelecer a relação entre cada ruína encontrada e o nome do seu proprietário no período de oitocentos. É o caso de um antigo armazém oitocentista edificado sobre uma casa medieval.

Esta estrutura, surpreendentemente, estava em parte bem conservada, permitindo identificar o lajeado, uma entrada e muros interiores de divisão. Identificaram-se ainda algumas pedras sigladas. Entre as várias estruturas identificadas que nos permitem percorrer a Época Moderna e a Idade Média, associam-se à Rua de Mouzinho da Silveira alguns vestígios de cronologia mais remota. É o caso de uma estrutura bastante desmantelada pelas infraestruturas actuais, cujos depósitos associados permitiram a recolha significativa de um conjunto de materiais cerâmicos de cronologia romana.

Figura 29: Trabalhos de registo arqueológico num dos edifícios medievais encontrados (Rua de Mouzinho da Silveira)

Figura 30: Pormenor do edifício medieval, sendo visível além do lajeado, a soleira e as ombreiras de porta

Figura 31: Arcaria moderna encontrada na Mouzinho da Silveira

Figura 32: Trabalhos de limpeza e de registo arqueológico no arco moderno da capela de São Crispim.

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Figura 34Figura 33

Figura 36Figura 35

Figura 33: Trabalhos de registo arqueológico na Rua de São João (muro moderno pertencente a um armazém).

Figura 34: Pormenor do muro moderno identificado na Rua de São João referente a um armazém datado de 1708.

Figura 35: Análise e registo estratigráfico na Rua do Infante.

Figura 36: Trabalhos de escavação arqueológica na Rua do Infante, da qual resultaram vários fragmentos cerâmicos datáveis das épocas medieval e romana.

RUAS DE S. JOÃO E DO INFANTE

Na rua que liga a Praça da Ribeira à rua de Mouzinho da Silveira, foram identificados vestígios da época medieval e moderna. Surgiu um muro, de um antigo armazém, de datação moderna entre o cruzamento com a Rua do Infante e a Praça da Ribeira. No cruzamento da Rua do Infante com a de S. João, em direcção a poente, verificou-se a presença de três estruturas medievais (partes de muros de antigas habitações). Na Rua do Infante, identificou-se parte do antigo piso medieval bem como níveis preservados da época tardo-romana, incluindo dois muros junto aos passeios entre o cruzamento com a Rua de S. João e o entroncamento com a Rua Mouzinho da Silveira.

Na Rua do Infante, foi possível ainda observar parte do túnel do comboio que fazia a ligação entre a Alfândega e Campanhã, bem como parte da antiga canalização que conduzia o Rio de Vila ao longo da Rua de S. João até ao Douro. Nesta zona, devido à construção do túnel do comboio, foi necessário desviar o curso de água, desactivando o encanamento original.

No entroncamento da Rua do Infante com a Rua de Mouzinho da Silveira, registou-se a presença de uma arcaria em granito, provavelmente de apoio para vários edifícios, de datação incerta (baixo medieval ou moderna), que por razões de segurança não pode ser escavada na totalidade. Foi no entanto sinalizada e protegida.

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Figura 37

lembrar à Câmara a necessidade de se concluir a Rua de Ferreira Borges (sic), demolindo-se para isso a casa no ângulo com a Rua dos Ingleses. Em 1892, através da Planta de Telles Ferreira, pode-se comprovar que a estrutura urbana daquela zona (incluindo a Rua de Ferreira Borges) estava consolidada como se encontra no presente.

Com base no levantamento histórico-cartográfico deste arruamento, o qual integra os vários resultados das intervenções arqueológicas realizadas até à data, e a sobreposição da antiga cartografia do projecto de abertura da Rua de Ferreira Borges de 1835 com o actual cartograma, foi possível desenhar uma carta de risco patrimonial para o presente arruamento.

Os trabalhos realizados nesta rua vieram comprovar o que já se suspeitava após o estudo preliminar da cartografia, encontrando-se vestígios da antiga cerca que separava os conventos de S. Domingos e S. Francisco e uma necrópole. Localizada no topo da Rua de Ferreira Borges, estava situada no interior da capela do antigo Convento de S. Domingos, tendo as sepulturas ficado soterradas pelos níveis de aterro necessários à construção da rua.

RUA DE FERREIRA BORGES

A localização da necrópole, antigo cemitério da capela da Ordem Terceira do Convento de S. Domingos, não foi uma surpresa por si, mas o seu estado de conservação sim – era superior ao esperado. A escavação foi projetada em novembro de 2012, foi realizada uma primeira fase e depois foi tapada para a circulação automóvel poder ser retomada. O trabalho foi retomado antes da empreitada avançar para aquele arruamento.

A Rua de Ferreira Borges é uma artéria central do conjunto edificado do Quarteirão Ferreira Borges e, em comparação com a malha urbana em seu redor, é relativamente recente. Resulta da remodelação urbanística da zona em volta do Palácio da Bolsa e do Jardim do Infante, decorrente da repartição dos terrenos dos antigos conventos de S. Francisco e de S. Domingos.

A abertura destas ruas foi uma das prioridades da Associação Comercial, assumindo-se como o primeiro passo para a concretização de um projecto mais vasto de urbanização daquela zona da cidade. A autorização régia para abertura da nova rua é concedida a 16 de Maio de 1835. As obras iniciaram-se a 1 de Junho do mesmo ano, obrigando à demolição da Capela da Ordem dos Terceiros.

A execução do projecto é demorada, ao qual os motivos financeiros e a polémica do seu traçado não deverão ser alheios. Em meados do século XIX a Rua de Ferreira Borges já se encontrava aberta, mas ainda não apresentava a configuração actual. Em 1878, a Associação não deixa de

Figura 37: Pormenor das lajes que compunham as sepulturas da Capela/Igreja da Ordem dos Terceiros de São Domingos.

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Figura 41Figura 40

Figura 42

Os trabalhos de arqueologia e antropologia permitiram identificar um conjunto razoável de sepulturas, tendo sido possível exumar vários indivíduos em bom estado de conservação, restos de esquifes e um conjunto de objectos pessoais (colares, anéis, terços, alfinetes, entre outros). Foi possível perceber que a necrópole se estendia para poente, tendo sido, em grande parte, destruída por uma canalização contemporânea à abertura da rua.

A necrópole, não sendo a descoberta mais importante do ponto de vista arqueológico, foi aquela que teve maior impacto junto da população e dos media. Suscitou muita curiosidade e foi encarada com surpresa pelos moradores. Foi também a escavação mais demorada. Nos anos vindouros, a imagem dos arqueólogos trabalhando na comprida vala naquela rua monumental e de sepulturas onde surgiram ossadas e esqueletos completos, será seguramente a que ficará na memória da cidade.

Figura 38: Pormenor da sepultura n.º9 em fase prévia da escavação arqueológica.

Figura 39: Aspecto de um dos indivíduos sepultados na Capela/Igreja da Ordem dos Terceiros de São Domingos.

(Na página seguinte)

Figura 40: Pormenor das lajes que compunham as sepulturas da Capela/Igreja da Ordem dos Terceiros de São Domingos.

Figura 41: Trabalhos de antropologia.

Figura 42: Panorâmica geral da área intervencionada na Capela/Igreja da Ordem dos Terceiros de São Domingos.

Figura 38

Figura 39

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Figura 45

Figura 43: Acompanhamento arqueológico dos trabalhos no Largo de São Domingos

Figura 44: Pormenor das estruturas de época moderna identificadas no Largo de São Domingos

(Na página seguinte)

Figura 45: Planta do Projecto de Estudo para o prolongamento da Rua de São João (1774)

LARGO DE S. DOMINGOS E RUA DAS FLORES

No Largo de S. Domingos, há apenas a registar quatro ocorrências da época Moderna, com destaque para um lajeado encontrado junto ao edifício da papelaria Araújo & Sobrinho. Na intersecção com Mouzinho da Silveira, vamos encontrar a Igreja de S. Crispim, que já foi abordada anteriormente.

Apesar de ser uma das ruas mais emblemáticas da cidade do Porto e uma das mais «nobres», os achados na Rua das Flores foram parcos. Destaca-se apenas a identificação de um nível da época medieval próximo do Largo de S. Domingos e um conjunto de aquedutos e condutas de água moderna e contemporâneas, alguns dos quais terão sido executados aquando da abertura da rua, como o aqueduto da Rua Martins Alho - que terá sido construído para desviar um pequeno ribeiro para o Rio de Vila.

Figura 44

Figura 43

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Figura 49

Figura 46: Trabalhos de escavação Arqueológica no Largo dos Lóios

Figura 47: Panorâmica geral do Largo dos Lóios aquando dos trabalhos repavimentação.

Figura 48: Alcatruz identificado no Largo dos Lóios.

(Na página seguinte)

Figura 49: Fragmento de placa em xisto com representação de figuras barquiformes, encontrada no Largo dos Lóios.

LARGO DOS LÓIOS E RUAS ENVOLVENTES

Nesta zona foram identificadas nove ocorrências, algumas de grande importância para a história da cidade. No Largo dos Lóios foram identificados níveis romanos em dois locais, tendo sido exumado um fragmento em xisto com a representação de um barco e outros motivos marítimos que, numa primeira análise, parecem ser datáveis da II Idade do Ferro (com mais de 2000 anos). Estes níveis indicam que a ocupação romana não estaria circunscrita a poente pelo Rio de Vila, sendo maior do que se supunha.

Do antigo Convento de Santo Elói, foi possível identificar, registar e levantar uma sepultura muito afectada pelo conjunto de infraestruturas construídas ao longo dos anos. E nesta zona, destacou-se também o alicerce da Muralha Fernandina, encontrado ao longo do cruzamento com a Rua dos Clérigos. A muralha foi devidamente escavada, registada e protegida.

Figura 48

Figura 47

Figura 46

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A CIÊNCIA CONTINUA DEPOIS DA OBRA FEITA

A evolução do acompanhamento arqueológico foi sendo transmitida ao público, através de participações em conferências dedicadas ao tema. O interesse manifestado pela população, a cujas perguntas a equipa de arqueologia sempre respondeu, enquanto trabalhava nos vários locais, permitiu aferir da validade de uma preservação mais dinâmica deste património. As escavações, nomeadamente a de maior impacto – a necrópole de Ferreira Borges – foram também alvo de interesse dos media. Foram ainda feitas, nesse local, visitas abertas à população, com explicações da equipa da Empatia – Arqueologia, Lda..

O espólio arqueológico recolhido durante as sondagens prévias e escavações de emergência está a ser preservado, tratado e catalogado. É constituído por milhares de peças, essencialmente fragmentos cerâmicos, moedas e objectos do quotidiano. Encontram-se actualmente acomodados em condições adequadas de climatização, etiquetados, sendo gradualmente tratados e catalogados. Uma vez processado e estudado todo o espólio, e feito o seu registo na actualização do conhecimento da história do Porto, cabe aos decisores políticos encontrar a melhor forma de o relacionar com a cidade e os cidadãos.

Figura 50: Visita aberta à escavação da Capela/Igreja da Ordem dos Terceiros de São Domingos.

Figura 51: Protecção de estrutura identificada na Rua de Mouzinho da Silveira.

Figura 51

Figura 50

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Bibliografia

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(Na página anterior)in Jornal de Notícias12/09/13

in Porto 2404/11/13

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03AS OPERAÇÕES

ANTES, DURANTE E NO SEU FINAL

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O Estudo para a Organização da Mobilidade para a Regeneração Urbana do Eixo Mouzinho/ Flores desenvolvido pela TRENMO-Engenharia S.A., teve como objetivo específico enquadrar o domínio da mobilidade do Eixo Mouzinho/

Flores_CH.2, designadamente servir de base orientadora para o desenho do projecto de Requalificação do Espaço Público. Propõe soluções de mobilidade para o território alvo de intervenção ao nível da dotação de infraestruturas de transporte, estacionamento e requalificação do espaço público, tratando ainda a área de influência desta mesma intervenção. Naturalmente, dado o seu cariz, nem todas as orientações foram seguidas, nomeadamente as de detalhe mais fino, mas em geral foi o suporte da mudança física e funcional em termos de tráfego deste território.

O trabalho, assentou, numa primeira fase, no levantamento de toda a informação existente para a área em estudo, ao nível da rede viária, número de vias, sentidos de tráfego, oferta de transportes públicos, contagens de tráfego, dados de modelos existentes, etc. Numa segunda fase, diagnosticou os principais problemas, por observação direta e com recurso ao conhecimento prévio da zona. Estudou soluções para a reorganização da circulação, dos fluxos pedonais, do estacionamento e do território. Por fim, depois de uma análise cuidada e em permanente articulação com as entidades envolvidas, definiu uma estratégia de intervenção e medidas reais para o desenho urbano, para o estacionamento, para a circulação do Eixo Mouzinho/Flores, em articulação com o território envolvente.

AS OPERAÇÕES: ANTES, DURANTE E NO SEU FINAL

ESTUDO PARA A ORGANIZAÇÃO DA MOBILIDADE PARA A REGENERAÇÃO URBANA DO EIXO MOUZINHO / FLORES

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5958 Figura 53

REQUALIFICAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO

O projecto de Requalificação do Espaço Público participa de uma estratégia de intervenção fundamentada no Plano Director Municipal e definida no Sistemas de Espaços Colectivos e Estrutura Verde Urbana. Segue ainda, tanto quanto possível, o Estudo para a Organização da Mobilidade para a Regeneração Urbana do Eixo Mouzinho/Flores.

O esquema de princípios que orientaram e regularam a elabo-ração do projecto, sustentaram-se em considerações sobre o espaço colectivo, traçados dos percursos, definições das características da intervenção: “A especificidade de cada um e os sistemas em que se agrupam e relacionam, constituem

Figura 52: Estudo para a Organização da Mobilidade para a Regeneração Urbana do Eixo Mouzinho/ Flores

(Na página seguinte)

Figura 53: Rua de Mouzinho da Silveira durante a intervenção

Figura 52

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6160 Figura 54

elementos referenciais da cidade, “ligantes” dos diferentes episódios que tecem a narrativa urbana. São lugares por excelência do peão, do lazer, da deambulação e das vivências, portadoras de convivialidade e de qualidade do quadro de vida urbana. São elementos fundamentais da política para a cidade “verde”, para a melhoria e caracte rização dos parâmetros ecológicos, para a leitura de unidades de paisagem, de referências visuais, de “sítios” que desenham a imagem da cidade e das suas marcas identitárias, seja pela força que o suporte físico transmite, seja pelo que de único e excepcional a história foi depositando.”

“…o Sistema de Espaços Colectivos e a Estrutura Verde Urbana são elementos estruturantes da cidade contribuindo para o seu equilíbrio e para a plena fruição da oferta urbana, por parte da sua população.”

“O Sistema de Espaços Colectivos integra todas as áreas existentes ou previstas que ofereçam condições de fruição pública tais como jardins, parques, praças, alamedas etc., bem como áreas privadas de utilização colectiva de que são exemplo quintas, jardins, galerias comerciais, etc., ou seja, as áreas que são ou podiam vir a ser utilizadas na escala directa do corpo humano.”

“…estes espaços colectivos, para além de possuírem valências próprias, valorizam o seu desempenho quando se relacionam entre si. Consequentemente, o conjunto é maior do que o somatório de cada uma das suas partes.

Além disso, esta função relacional, contribui para reestruturar o seu sentido urbano. O reforço de coesão entre estes

Figura 54: Rua das Flores durante a intervenção

espaços permite recompor uma nova verberação da cidade, garantindo continuidades, reforçando relações entre espaços, equipamentos, vias, e monumentos, criando, ainda, novas entidades urbanas.

A concretização progressiva deste sistema de espaços abertos e filamentos, potencia novas formas de usufruir a cidade, na medida em que cria percursos alternativos, diversificados, seguros e confortáveis.” (in relatório PDM)

Refere-se ainda que “Esta proposta constituiu uma referência para o desenho do espaço público, cuja beneficiação não deverá ser pontual e ensimesmada, mas ter em consideração as relações entre os diversos componentes com uma estrutura de contiguidade, o que certamente contribuirá para uma melhor leitura e usufruto da cidade.

A valorização de determinados arruamentos com potencial de requalificação urbana, entendida no propósito da harmonização da cidade, é proposta sempre que se pretende reforçar o relacionamento entre espaços públicos bem caracterizados e bem dimensionados, ou entre equipamentos estruturantes. Esta beneficiação que se pode traduzir em obras relativamente simples como, por exemplo, o seu reperfilamento, valorizando a componente pedonal, a sua arborização ou iluminação pública, atribuir-lhes-á melhores e mais confortáveis condições de utilização e possibilitará a construção do referido Sistema de Espaços Colectivos. A programação da sua progressiva execução deverá ser compatibilizada com a instalação de ciclovias e de arruamentos prioritariamente pedonais“ (in relatório PDM)

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6362 Figura 55

Concentrando a atenção nos fluxos entre a zona ribeirinha e a Estação de S. Bento, onde convergem as Ruas de Sá da Bandeira, 31 de Janeiro, Praça da Liberdade e Av. da Ponte, percebe-se, pela topografia, que a viagem mais confortável entre os dois pontos deverá ser orientada para o eixo Rua das Flores, Largo de S. Domingos e Rua Sousa Viterbo.

A este canal fez-se corresponder uma sequência de escolhas atentas à colaboração com o caminhante, incentivando esta “viagem”. A uniformização e selecção da qualidade dos pavimentos, a iluminação dedicada, a procura de zonas de estadia e descanso e o condicionamento do trânsito nas ruas envolventes, convergem para esta vontade de estímulo de um espaço urbano plenamente dedicado ao peão.

Houve ainda uma forte acção de modernização, ora por substituição de redes obsoletas ou antiquadas, ora por introdução de novos serviços, das infraestruturas.

Foi uma grande mudança aquela que se operou neste território. Quer através do desenho, quer através da nova gama de materiais e equipamentos, quer através dos novos serviços, ganhou-se uma nova qualidade funcional e ambiental completamente contemporâneas num espaço urbano de génese antiga e de características muito marcadas que serve já hoje de alavanca a um investimento privado no edificado e que confirma a bondade das decisões.

Apostou-se assim no aumento do espaço disponível e no reforço das estruturas de abrigo e conforto para o peão, estabelecendo--se uma correlação entre a estratégia programada no Plano Director e opções de desenho urbano do projecto.

A par destes fundamentos, surgiram os constrangimentos decorrentes da análise das questões de mobilidade, tendo sido determinadas as possibilidades de alteração ou manutenção dos sentidos de tráfego, o condicionamento de algumas artérias e a atribuição do espaço, configurado num perfil transversal, reservado ao trânsito automóvel.

A linha de atravessamento viário entre a Rua do Infante e a Praça Almeida Garrett é preservada pelo redesenho da Rua Mouzinho da Silveira, com manutenção de uma faixa ascendente e outra descendente, esporadicamente transformada em duas ascendentes, e uma descendente. Promoveu-se ainda a nova ligação à Rua de Sá da Bandeira que obrigou apenas a uma pequena intervenção nos separadores junto da Rua 31 de Janeiro. A alteração de sentido da Rua Trindade Coelho justificou-se pela sobrecarga a que, caso contrário, estaria sujeita a Praça Almeida Garrett, acumulando o tráfego ascendente da Rua Mouzinho da Silveira com o estreitamento de todo o trânsito gerado a Norte, “cliente” do sentido descendente em direcção à Rua do Infante.

Resolvidos os problemas viários, conclui-se que remanesce uma importante área apta a incorporar os objectivos de promoção de espaço de uso pedonal, condicionando aí a circulação automóvel e definindo um “cabaz de conforto” patenteado na diversidade de utentes.

Figura 55: Rua das Flores após a intervenção

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6564 Figura 56

INSTALAÇÃO DO MUSEU DA SANTA CASA DA MISERICÓRDIA

Fundada em 1499 por D. Manuel I, a Santa Casa da Misericórdia do Porto (SCMP) instala-se na então recém-aberta rua das Flores a partir de 1550. Pela natureza da sua missão que há mais de cinco séculos vem desenvolvendo, assume-se como uma das mais importantes instituições da cidade.

O património edificado da SCMP implantado neste local, compreende a Casa do Despacho, a primeira dependência a ser construída e que no século XX foi alvo de uma intervenção profunda da autoria de Rogério de Azevedo, a igreja privativa, edifício de interesse arquitectónico, artístico e patrimonial que testemunha a presença de Nicolau Nasoni na cidade, e a Galeria dos Benfeitores, uma estrutura de finais do século XIX inserida na corrente da “arquitectura do ferro”, espaço criado para exposição permanente dos retratos dos benfeitores.

O projecto de arquitectura do Museu da Misericórdia do Porto (MMIPO) contempla a conservação deste conjunto edificado. O Museu será inseparável da componente social da insti tuição, expressos pelos acervos enquadrados na história da ciência e da técnica, ligados à ação da SCMP nos domínios da saúde, educação e diversas componentes sociais. Igual re levância é dada aos seus beneméritos, à sociedade portuense, com particular ênfase na burguesia do século XIX. Nesse sentido, o Museu assume contornos de museu de história social e história da ciência. Porém, o maior destaque vai para a pintura “Fons Vitae”, obra maior da escola flamenga, datada de cerca de 1520. No painel está patente a imagem do Crucificado, com forte carga dramática e simbólica, assim como a de D. Manuel I e família real; convocados foram igualmente a nobreza e a burguesia do Porto do início do século XVI, sendo um testemunho da pujança da cidade e das suas ligações

com o norte europeu, período que corresponde à primeira internacionalização da cidade do Porto.

O objetivo último do Museu é a celebração da memória da ins tituição e assumir-se como mais um pólo para a animação e regeneração urbana do Centro Histórico do Porto. Para tal, e mesmo antes de se intervir na componente física que tem que ver com a adaptação e modernização do espaço aliado à Igreja, interveio-se na sua componente “imaterial”, tendo a preparação do acervo para exposição no MMIPO mobilizado várias frentes de trabalho. Realizou-se a inventariação de numerosas peças de ourivesaria e recuperaram-se diversos retratos de benfeitores. Devido à falta de meios para levar a cabo determina das intervenções de conservação e restauro, nomeadamente as pinturas sobre madeira e outras pelas dimensões e danos apresentados, procurou-se um apoio certificado nesta área, com plena cons ciência dos atuais parâmetros éticos impostos deontologicamente, acompanhados de conhecimentos técnicos de conservação e restauro. Neste contexto foi celebrado um protocolo com a Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa que executou, além das intervenções de con ser vação e restauro, exames científicos e documentação fotográfica. Algumas das obras, devido ao valor artístico e histórico, foram objeto de estudo em mestrados e doutoramentos.

Figura 56: Museu da Santa Casa da Misericórdia (durante a sua obra)

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Figura 58Figura 57

Figura 60Figura 59

GAU – MODERNIZAÇÃO DOS NINHOS DE EMPRESAS

A Fundação da Juventude, desde o seu nascimento em 1989, estabeleceu-se na actual sede na Rua das Flores, conhecida como a Casa da Companhia dado ter sido a sede da Real Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro. Para além dos serviços técnicos e administrativos da Fundação, a Casa da Companhia alberga, desde 1990, o Programa Ninho de Empresas que encerra os objetivos de incubação e de fomento do apoio ao empreendedorismo jovem e ainda de contribuir para o reforço do Auto-Emprego.

Mas, tal espaço encontrava-se antiquado e já degradado nos seus 25 anos de idade, pelo que se aproveitou a oportunidade do Programa de Acção para a Reabilitação Urbana do Eixo Mouzinho/Flores, para reabilitar estes espaços dos Ninhos de Empresas, fazendo-os tornarem-se num local privilegiado e apelativo para criar uma empresa. E essa decisão e a obra daí decorrente permitem já verificar um aumento exponencial da procura por parte de quem tem ideias de negócio numa fase embrionária e que procura um espaço para início de atividade – os 14 gabinetes disponíveis, já se encontram todos ocupados.

Estas pequenas e jovens empresas tiveram a perceção das potencialidades que advêm de se localizarem numa zona histórica reabilitada e com dinâmica, usufruindo de espaços contemporâneos e com uma vizinhança de características semelhantes que permite trocar sinergias e partilhar serviços.

O processo de transformação e modernização do espaço dos Ninhos de Empresas, sustentou-se primeiramente num concurso de ideias para jovens arquitectos que lançaram um conjunto de pistas criativas que permitiram seleccionar o caminho para um projecto de execução que se concretizou já em obra.

Figuras 57 a 60: Ninhos de Empresas

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GAU – FEIRAS FRANCAS

Aquele que foi o Edifício Douro construído no local onde outrora existiu o Convento de S. Domingos, é hoje o Palácio das Artes / Fábrica de Talentos, propriedade da Fundação da Juventude, e é um centro de excelência nas áreas da criatividade e inovação, promovendo jovens artistas em diferentes áreas de atividade. O Palácio das Artes é composto por ateliês/espaços de residências artísticas, salas para formação e workshops, salas multidisciplinares e polivalentes, laboratórios criativos, um restaurante e duas lojas. Este projeto e o seu objectivo de ser um incubador de iniciativas criativas, articula-se como uma antiga tradição da cidade do Porto, as Feiras Francas, que tiveram o seu início em 1451, no primeiro dia de cada mês e se mantive ram por 111 anos, no Convento de S. Domingos.

A Fundação da Juventude decidiu recuperar esta tradição e, até ao final de 2013, abriu as portas do actual Palácio das Artes todos os primeiros sábados de cada mês a jovens criadores e ateliers para que estes pudessem expor e/ou comercializar as suas obras e produtos.

As Feiras Francas constituiram-se como um pretexto para reavivar a história e interagir de forma dinâmica com o Centro Histórico, com a comunidade que aí vive, com o turismo e com os agentes culturais, potenciando a associação patrimonial, tradicional, económica e cultural e abrindo novos circuitos comerciais. A proximidade criativa que os participantes procuraram ao participar nas Feiras Francas, expondo a sua arte, os seus negócios, veio sendo reforçada pelas ligações estabelecidas entre um espaço nobre, jovens talentos, criadores, turistas e população em geral.

Esta iniciativa revelou-se um sucesso, com mais de 1000 criadores apoiados, abrangendo todas as áreas do cluster das indústrias culturais e criativas, sendo que se manteve para lá da data em que se deveria concluir.

GAU – CIRCUITO DO VINHO DO PORTO

Com o Circuito do Vinho do Porto, inaugurado em julho de 2011, a Fundação da Juventude teve como principal propósito servir o Centro Histórico da cidade. Parte do circuito foi promovido na Casa da Companhia, a sede da Fundação, antiga sede da Real Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, entidade que veio regular o comércio do vinho do douro. Este projecto consistiu na realização de um percurso em torno da actividade do Vinho do Porto, operação que foi desenvolvida explorando as envolvências históricas e turísticas, com a criação de núcleos museológicos temáticos que se materializaram da adapatação de espaços físicos e na produção dos conteúdos temáticos.

De entre as várias atividades destacaram-se as exposições e os workshops promovidos em parceria com diversas entidades relacionadas com a Produção, Comercialização, Distribuição, Promoção do Vinho do Porto, e o visionamento de um filme didático sobre a história do vinho do Porto. O Circuito do Vinho do Porto estimulou, desta forma, o orgulho da comunidade, incrementou a identidade de um local, proporcionou atracção e lazer e estimulou mais um episódio na visita à Zona Histórica do Porto, reforçando a sua atractividade. Permitiu também a qualificação das condições de vivência urbana e consolidou uma centralidade ligada com a inovação e a criatividade.

GAU – APOIO AO EMPREENDEDORISMO

O contexto de crise económica mundial que se instalou nos últimos anos podia ter sido percepcionado apenas como algo potenciador de desemprego e de ausência de crescimento económico. Contudo, foi neste contexto que se previu também o surgimento de novas necessidades da população que antes não se antecipavam. A exploração e o levantamento destas necessidades estimulou a criação e desenvolvimento de uma plataforma de apoio ao investimento e à instalação de novas actividades económicas no Porto.

O Gabinete de Apoio ao Empreendedorismo foi criado em Setembro de 2009 e assentou num modelo de operacionalização global e transversal conducente ao desenvolvimento económico e alicerçado no apoio a iniciativas económicas da população local e da população em geral interessada em localizar a sua actividade económica no Centro Histórico e na Baixa da cidade, e em particular nas zonas de intervenção prioritária do morro da Sé e do eixo Mouzinho/Flores, através de formas adequadas de apoio técnico e organizativo ao processo empreendedor.

Enquanto espaço de apoio e informação, relativo aos passos a dar para a criação do próprio negócio, foi um processo investido em várias etapas, da concepção à concretização da ideia, assumindo o Gabinete de Apoio ao Empreendedorismo uma função aglutinadora e mobilizadora de recursos ao longo de todo o processo empreendedor. Em parceria com outras entidades e serviços de apoio ao empreendedorismo, o Gabinete de Apoio ao Empreendedorismo procurou facilitar o processo de empreender, passo a passo, identificando as diversas formalidades associadas ao processo de criação da empresa, sejam burocráticas, financeiras, jurídicas, fiscais, entre outras, e estabelecendo os circuitos de apoio possíveis nestas várias etapas.

Nos três anos de duração total do Programa de Acção, o Gabinete de Apoio ao Empreendedorismo atendeu 1059 novos casos, estabeleceu 44 parcerias e dinamizou 120 workshops. Esta plataforma abrangeu 167 projectos no total, 28 dos quais foram concretizados, tendo resultado na criação de 55 postos de trabalho num investimento total de cerca de €800,00.

Em 2012, o Gabinete de Apoio ao Empreendedorismo foi distinguido na fase de qualificação nacional dos Prémios Europeus da Iniciativa Empresarial com o segundo prémio na categoria “Melhoria do Ambiente Empresarial”. Esta categoria reconhece as políticas inovadoras a nível regional ou local que promovam a criação e o desenvolvimento empresarial, simplifiquem os procedimentos legislativos e administrativos das empresas e implementem o princípio “Pensar primeiro em pequena escala” para as pequenas e médias empresas.

Findo o período de co-financiamento, o Gabinete de Apoio ao Empreendedorismo iniciou um novo ciclo de vida, com um novo modelo de funcionamento, mas em que permanece o objectivo de continuar a ir ao encontro das necessidades de todos os empreendedores que desejem fazer do Centro Histórico do Porto, de novo, um local para trabalhar.

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Figura 61

Figura 62

GAU – VALORIZAÇÃO DO ESPAÇO E DO COMÉRCIO TRADICIONAL ATRAVÉS DA MEMÓRIA

As ligações do comércio com o espaço urbano têm um longo passado. Apesar de nem todas as cidades serem “um lugar de mercado”, em nenhuma civilização a vida urbana floresceu sem a sua presença mais ou menos direta. Além de indispensável ao abastecimento das famílias, a sua importância está longe de se restringir ao campo de transação comercial.

Neste contexto territorial específico do Centro Histórico do Porto, o comércio tradicional faz parte da razão de ser das ruas de Mouzinho da Silveira e das Flores que são o suporte físico deste Programa de Acção: viabiliza a sua existência, explica uma parte da sua organização interna e justifica parte da mobilidade que se realiza no seu interior, efetuada tanto pelas pessoas que nelas habitam como pelas que a ela ocorrem periodicamente.

Para além disto, estas duas ruas, pela diversidade de pessoas e mercadorias que nela transitaram e transitam, constituem simultaneamente, uma fonte de informação histórica, um pólo difusor de informações, um lugar de contactos e um espaço de recreio e lazer. O que se pretendeu com esta operação não foi só valorizar os espaços comerciais destas duas ruas foi também identificar, compreender e preservar as memórias, as histórias e a vida de quem lhes está adjacente.

Este projeto, embora numa escala mais concentrada nas pessoas, procurou implementar um conjunto de iniciativas de va lori zação e promoção da oferta existente ao nível do comércio tradicional através de um sistema de informação (site). Este produto integrou uma base de dados com informação histórica, geográfica, visitas virtuais, campanhas de marketing e recolhas de memórias (histórias de vida) associadas aos espaços de comércio tradicional.

O projeto envolveu empresas, lojas, instituições e população, articulando motivações e visões em torno de um objetivo comum. Articulou-se, portanto, um conjunto de iniciativas partindo da pesquisa e trabalho directo com a população/comerciantes locais no sentido de identificar um conjunto de histórias/memórias relacionadas com o espaço/comércio tradicional local, que se utilizaram no sistema de informação criado. Estes conteúdos, de base imaterial, foram tratados com vista à criação de produtos e acções de valorização do local e de animação dos espaços de maior interesse histórico. Foi dada prioridade às acções em locais que, por disporem de um valioso património cultural, eram susceptíveis de potenciar fluxos turísticos e de contribuir para o aumento do conhecimento e da fruição pública dos mesmos.

Foram realizadas entrevistas a 40 pessoas (comerciantes ou funcionários dos estabelecimentos comerciais) onde foram exploradas questões como a relação com o estabelecimento, do estabelecimento com a rua, os clientes, os produtos, as alterações sofridas ao longo do tempo, sempre em estreita relação com as vivências dos comerciantes. A partir desta metodologia foram recolhidas informações em três suportes: áudio, vídeo e fotografia. A informação recolhida deu origem a um site (www.comerciovivomouzinhoflores.com) que integrou uma base de dados com informação histórica e geográfica das ruas, “visitas virtuais” aos estabelecimentos comerciais, campanhas de marketing, textos, áudios, vídeos e fotografias resultantes das recolhas de memórias (Histórias de Vida) associadas aos espaços de comércio tradicional.

Realizou-se ainda uma exposição de fotografia “Ruas De Pé”, que foi inaugurada no mês de Dezembro de 2009.

Figuras 61 e 62: Cartazes

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ONDE SE CHEGOUUMA NOVA FORMA DE SE (RE)FAZER

O ESPAÇO PÚBLICO DE VALOR PATRIMONIAL

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A obra de Requalificação do Espaço Público do Eixo Mouzinho/Flores, sendo representativa e fulcral para este território, por si mesma, induziu ainda outras questões que importa destacar neste documento que retrata todo o processo desta Parceria para a Regeneração Urbana, ficando também para memória futura de uma forma nova de actuar

sobre o espaço público. Uma forma que junta desenho urbano com salvaguarda e requalificação de património, com cultura e arte urbana contemporânea.

Por isso mesmo se retrata aqui neste capítulo esta situação e esta diferença face ao normal desenrolar deste tipo de situações, bem como se enaltece a figura de um artista, neste caso do Arquitecto Fernando Lanhas recentemente falecido, que juntou a esta intervenção o seu génio, com o Painel que será colocado na boca nascente do Túnel da Ribeira, onde a obra de Requalificação do Espaço Público tem um dos seus limites.

Figura 63

Painel de azulejos, intitulado À CIDADEINV.: Az.4-054-89-11Autor: Fernando LanhasData: 2012Dimensões: 700cmx500cmExecução: Cooperativa Árvore

Figura 63: Fotomontagem da inserção do painel À Cidade

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Figura 64

Figura 64: Túnel da Ribeira (nas cores originais), Fernando Lanhas

Após a exposição de obras de Dalila Gonçalves na Avenida dos Aliados, durante o mês de Abril, o Pelouro da Cultura dá continuidade ao seu Programa de Arte Pública com a colocação deste painel de azulejos da autoria de Fernando Lanhas, na fachada nascente do Túnel da Ribeira.

Executada em 2012 pela Cooperativa Árvore sob a orientação do artista, a obra foi este ano doada ao Município do Porto pelos seus filhos. Com este gesto, cumpre-se a vontade de Fernando Lanhas – expressa desde a abertura do túnel na década de 50 do século passado – de a ver colocada neste preciso local e faz-se jus ao título que lhe atribuiu: à Cidade.

A sua colocação no espaço público fez parte integrante do Plano Geral de reestruturação do espaço público do eixo Rua das Flores / Marginal do Douro, que consistiu no tratamento das infra-estruturas que têm de ser ciclicamente aumentadas, melhoradas ou renovadas, e no melhoramento das pavimentações dos passeios e ruas.

A ideia de Fernando Lanhas de integração de arte contemporânea no coração do Centro Histórico, Património da Humanidade, identifica-se plenamente com os propósitos deste Executivo: combinando o passado com o presente, preparamos o futuro.

Paulo Cunha e Silva,Vereador da Cultura da Câmara Municipal do Porto

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LANHAS E O PORTO

Nascido no Porto em 1923, interessado desde a infância, e conforme tantas vezes o testemunhou, pela observação astronómica, pela geografia, a zoologia, entre outros saberes, seria no Curso de Arquitectura que então se ministrava na Escola

de Belas Artes do Porto que faria a sua formação profissional de base, vindo a defender tese de licenciatura sobre museus de arqueologia.

Nesses anos fecundos da juventude, em que foi companheiro e amigo de outras figuras mais tarde reconhecidas como essen-ciais na renovação da arte e da cultura portuguesas, entre as quais Júlio Resende, Júlio Pomar ou Nadir Afonso, não se interessou apenas pela Arquitectura — que então predominantemente estudava e em que se tornou proficiente autor de obras de referência — mas também pela divulgação cultural, generosa e desinteressadamente empreendida, tornando- se, a partir de 1944 e até 50, no principal responsável pela organização das célebres e justamente celebradas Exposições Independentes da ESBAP.

ONDE SE CHEGOU: UMA NOVA FORMA DE SE (RE)FAZERO ESPAÇO PÚBLICO DE VALOR PATRIMONIAL

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Lembraremos ainda que nos anos seguintes colaborou com outros grandes Arquitectos seus colegas, como Vianna de Lima ou Arménio Losa, que organizou a primeira retrospectiva de Domingues Alvarez, salvando-o do injusto esquecimento; que estudou, a partir de 1963, o mapa arqueológico do Porto ou que, desde então, desenvolveu o “Mapa das ocorrências verificadas no Universo desde a Explosão inicial”; também que publicou com D. Domingos de Pinho Brandão o “Inventário de objectos e de lugares com interesse arqueológico” a partir de 1965, ou que esteve ligado à fundamental descoberta das gravuras rupestres da Tapada de Eiras, depois classificada; ou ainda que estudou Museologia em Espanha, para o que foi bolseiro da Fundação Gulbenkian, ou que desenvolveu trabalho como etnólogo que levariam, em 1973, à sua nomeação como Director do Museu de Etnologia do Porto, posto onde permaneceu durante vinte anos, angariando vasto espólio; ou que, entre 1969 e 1999, desenvolveu o estudo que conduziu à realização da “Carta das distâncias e das rotas dos planetas do sistema solar”, para invocar dados que, por breve que seja a sua enume ração, só podem surpreender quem não o

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Figura 65

conheça como artista. Já para não referir a sua constante produção como arquitecto, autor de inúmeros projectos, de complexos habitacionais e de moradias unifamiliares, ou ainda do emblemático projecto do Museu de Mineralogia da Universidade do Porto.

Muito lhe devem, assim, a Cidade e também a sua Universidade. Como lhe deve o País, para cuja cultura contribuiu sempre, com uma produção pluridisciplinar em que o rigor sobressai como traço de união. E se essas actividades múltiplas em que deu o melhor de si merecem o mais alto destaque pela sua relevância cultural na formação, por influência directa ou indirecta, de outros artistas e estudiosos e, também, de um gosto novo que se veio a reflectir em todo o País, foi porém como pintor que mais se destacou, ao iniciar a partir de 1943 actividade que não mais abandonou para, um ano depois, realizar o seu primeiro quadro abstracto, que veio a expor em 1945 na 3ª Exposição Independente que se realizou no Instituto Superior Técnico em Lisboa.

Depois disso, os mais de cinquenta anos da sua obra, de que o painel de azulejos que projectou para a zona ribeirinha é apenas um exemplo, mesmo se soberbo, são o testemunho em acto de uma continuada pesquisa que Lanhas desenvolveu sem descanso, e cujo resultado compôs, como veremos adiante, uma obra maior no contexto do que poderemos e deveremos chamar o ciclo Modernista em Portugal. É esse caminho longo e de uma extrema fidelidade que procuraremos adiante desvendar nas suas linhas mais determinantes.

Figura 65: Anjo, pintura a óleo de Fernando Lanhas

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Figura 66

A NECESSIDADE DA ABSTRACÇÃO: LANHAS E O MODERNISMO

No início da década de quarenta do século XX, a abstracção pura como forma artística não podia, natural nem culturalmente, encontrar qualquer lugar no contexto da realidade cultural e artística portuguesa, mesmo se Amadeo quase a aflorara na segunda década do século XX.

O próprio Amadeo experimentara afinal essa resistência cultural e sensível ao fundador impulso Modernista que trouxera de Paris, e podemos hoje perceber porquê. Portugal não estava em medida cultural de o aceitar. Nem como necessidade formal — porque a figuração e sobretudo o naturalismo tinham abraçado tanto a cultura portuguesa quanto esta os tinha abraçado a eles — nem, ao menos, como fantasia ou desejo crítico e estético que lhe pedisse a presença como possibilidade de um caminho a percorrer. Nenhum devaneio de reflexão a requereu por aqui. Mesmo José Augusto França, mais tarde seu paladino, só viria a referi-la muito mais tarde, o que também se entende. De facto, se pensarmos em termos internacionais — sendo certo que as experiências pioneiras de Kandinsky, de Malévich e de Mondrian, para citar os casos maiores, já se haviam afirmado pontualmente como prévias de uma futura abstracção europeia e americana, indicando o futuro caminho inevitável para o Modernismo — o facto é que, apesar da grande influência dos seus pioneiros, tais experimentações não chegaram para fazer desta uma corrente dominante logo quando do seu aparecimento no campo da arte internacional. Tolerada ou respeitada, ela foi minoritária até relativamente tarde.

Ora a Abstracção foi o desígnio estruturante e poderemos mesmo dizer a linha condutora (processual) mais típica do Modernismo. Se este nasceu, como tenho frequentemente referido, da força conjugada de um duplo impulso — o do Figura 66: Meninas e Barco, Fernando Lanhas

Expressionismo e o do Cubismo — haverá que reconhecer que, quer um quer o outro destes movimentos tendiam intrinsecamente para um sentido abstractivo que o desenvolvimento da arte moderna tornou visível.

O Expressionismo veio desfazer a figura nomeadamente por um processo às vezes estilizado da própria figuração — como o viram antes de todos Worringer na reflexão pioneira que desenvolveu sobre a Abstração (Abstraction und Einfhelung) e, logo depois, Kandinsky, que como pintor bebeu na fonte expressionista antes de iniciar historicamente a abstração. Tal como, alguns anos depois, Mondrian, que igualmente teve um perído expressionista.

E o Cubismo, por uma desconstrução progressiva daquela. Malévich foi decerto o grande continuador desse processo que o Cubismo iniciara sob influência de Cézanne. Não por acaso também, o Modernismo fechou o seu ciclo sendo, ao mesmo tempo, abstracto e expressionista nos EUA. Sabemos como Pollock, para dar apenas um exemplo, se deteve por algum tempo entre experiências espaciais cubistas e buscas no campo de uma figuração expressivista.

Historicamente sabemos também, ainda que os estudos a propósito sejam recentes, que Fernando Lanhas realizou as primeiras experiências de arte abstracta pura em Portugal. Antes dele, na década de 10-20 como vimos, tinha Amadeo

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O DESENHO DE UMA OBRA

Assim o nosso artista protagonizou uma excepcional medida de acerto com o seu tempo internacional de que, por assim dizer, foi realmente contemporâneo, e isso num momento em que as correspondências culturais permaneciam como o único laço, ténue embora, que podiam fazer de Portugal um País europeu, já que nos demais domínios o afastamento de Portugal era imenso em relação à Europa. Num texto publicado também em 1942, no nº8 da revista Horizonte, perguntava significativamente o pintor Júlio Pomar: “Existirá, de facto, uma Arte moderna? Existirá uma Arte de hoje, verdadeiramente Arte e verdadeiramente de hoje?” E embora adiante se respondesse afirmativamente à sua própria pergunta, a questão colocada pelo jovem Pomar denota uma dúvida e uma perplexidade diante do campo cultural que percorria o pensamento inquieto dos artistas mais empenhados deste tempo.

A obra de Lanhas, definiu-se pois, e apesar do contexto, em contornos nítidos de abstracção pura desde muito cedo. Logo em 1942/43 aparecem os primeiros esboços, ainda a libertar--se de códigos figurativos e, em 1944, surge o primeiro quadro totalmente abstracto. Antes disso as pinturas de Lanhas obedeciam a uma espécie de nitidez e de depuração que lembra algum Seurat, pela tranquilidade apaziguada dos seus motivos secos, e pela clareza e luminosidade dos breves tons que delicadamente os vêm colorir. Um pontilhismo difuso as percorre, como se cada zona merecesse idêntico destaque.

As paisagens dos primeiros anos têm já essa qualidade mineral, despojada, simplificada em extremo, que no plano das suas texturas muito ficou a dever à pintura de Alvarez, que Lanhas supremamente admirou contra o pouco entendimento do seu

tempo, e que terá conhecido, apesar de mais jovem, ainda na Escola de Belas Artes onde aquele se matriculou mais tarde e já feito pintor. E essa forma que poderíamos dizer quase granítica como as tintas se tornam rugosas sobre a superfície da pintura, é um sinal subtil, dado de modo menos exuberante e como não poderia deixar de ser, dessa influência que permanece como das poucas que encontramos na sua obra. Mesmo nos primeiros quadros abstractos, nomeadamente em Cais, essa textura matérica, rugosa, se revela como uma característica.

O sentido da matéria como elemento pictórico aparece então como vertente fundamental das primeiras obras e só muito mais tarde, muitos anos depois portanto, já na década de setenta, Lanhas veio a recorrer ao método subtractivo na sua aplicação, tornando-se então os seus quadros mais lisos, mais económicos quanto a esse gozo matérico que, nas obras da década de quarenta e cinquenta, fazia deles superfícies duras, agrestes, quase areadas, numa densidade inesperada em quem procurava a abstracção, e que explica aliás a sua diferença.

Curiosamente, não tendo sido nunca um pintor de explosões de cor, Lanhas surge-nos, de facto, como exímio colorista. O seu sentido do desenho, nítido e essencialista, aparece nos seus quadros naturalmente, como se nascesse de uma firmeza de pensamento que sabe exactamente o que procura. Mas o que nas suas pinturas desde cedo predomina, contidamente embora, é a cor, ainda que não por via de um processo cumulativo.

É portanto uma cor que aparece delicadamente, que se procura mais na subtil modalidade do tom (o que lhe dá uma inesperada dimensão quase musical) e cuja espessura e sentido dos

passado pela abstracção, e depois dele Júlio, já no final dos anos 20, quando havia realizado umas quantas obras experimentais no mesmo campo, que logo abandonou para seguir outras viagens, de resto do mais alto interesse e relevância. Também esse segundo fôlego abstractivo não mereceu boa recepção no clima artístico e cultural do país.

É pois nesse contexto que a obra de pintura que se assinou Fernando Lanhas se destaca como pioneira mesmo em contexto europeu e internacional, uma vez que essa era uma corrente então em plena descoberta e que, como artista, ele não mais iria abandonar essa via de investigação, antes a radicalizando cada vez mais nas décadas seguintes. Lanhas pertenceu, deste modo e de uma forma inequívoca, a esse magro contingente Modernista que de facto operou na arte portuguesa um eco singular desse primeiro surto internacionalista da arte no Ocidente. Se o Modernismo foi internacionalista no seu programa, e sabemos bem que o foi, deveremos entender como se construiu diversamente em cada lugar, ora como mero reflexo de importa ção, ora como contributo e como investigação. E nessa perspectiva destacar, destas duas linhagens, aquela que merece ser colocada no seu devido lugar histórico. Porque o Modernismo foi o mais histórico dos movimentos. Em muitos aspectos este trabalho está por fazer em relação a Portugal, já que o estudo do Modernismo nas artes (ao contrário do que aconteceu no campo da Literatura) está, ao menos no essencial, por fazer.

O papel verdadeiramente pioneiro de Lanhas, visto a esta luz, e isso deve ser aqui sublinhado, foi pois desenvolvido muito antes que a Abstracção como corrente artística — surgida como tal apenas nos finais da década de quarenta, primeiro com

carácter informalista na Europa e, depois, digamos assim, mais expressivista ou expressionista na arte americana — se fizesse opção estética dominante já nos finais da década de cinquenta do século XX, ao tornar-se movimento central da maior parte da arte mais vanguardista produzida no ocidente, onde ascendeu e se encerrou o “ciclo Modernista”, que depois de ter começado europeu foi acabar na América já na década de sessenta.

Deveremos ainda lembrar, neste contexto, que a violentíssima situação de guerra que então era vivida por toda a Europa, que a empurrara para o maior conflito de sempre na sua longa história, impedia, por razões fáceis de entender, os artistas portugueses de compreender e integrar culturalmente qualquer conhecimento forte dos caminhos que a arte ia tomando nela, apesar da Guerra, e sobretudo nos EUA. As relações culturais eram intermitentes e a comunicação reduzia-se a um mínimo.

E nada nos países em guerra permitia acolher os jovens artistas que quisessem ir aprender, segundo aquela tradição que, antesda guerra era ainda uma prática corrente para os que vinham das periferias. O que, por si só, era um forte impedimento ao desenvolvimento em Portugal dessa consciência modernista que, da Europa aos EUA, procurava agora a abstracção.

Por esses anos, recordemo-lo ainda, a arte de inspiração neorealista, que encontrava apoio ideológico e mesmo teórico nos Partidos Comunistas europeus (e assim também em Portugal), constituia o modelo alternativo mais visível e mesmo o mais forte de oposição às artes típicas de regime, como era aquela que se desenvolvia entre nós, nesse afastamento e distância que se vivia em relação ao restante ocidente.

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Figura 67

Figura 67: Óleo Antigo, Fernando Lanhas

contrastes, justamente porque parece assentar em variações mínimas, dir-se-ia subtractivas, modula as formas e marca-lhes, no essencial, os contrastes lumínicos.

Mas é uma cor que existe. que está lá, e cuja economia nos deixa diante desse fascínio que na pintura só a cor pode exercer. Uma cor que se vai insinuando, que sugere, que se deixa adivinhar, e que remete para um sentido da luz que não é vulgar. Ajuda a tornar mais evidente o programa plástico geral do pintor, que é de um rigor extremo. Na sua contenção, sublinha a procura que esta pintura transporta de um desejo de forma mínima. E enaltece-a.

Mas desde o início que esses quadros parecem obedecer ao que se poderia designar como um princípio geral de cartografia. Não foi decerto por acaso que, ao longo de toda a sua vida, Lanhas desenhou tantos mapas (mapas da evolução do Universo ou das espécies, registos cronológicos de longas durações). Tal haveria de se reflectir de algum modo na sua pintura. Daí o seu sentido cartográfico, isto é, o modo como as suas pinturas nos parecem fazer crer que, no seu mais íntimo, designam o caminho secreto para alguma outra coisa, que é afinal exterior à própria pintura, mas que no entanto passível de ser, por ela ou através dela, representado. Nenhuma obra de Lanhas parece nascida de um acaso.

A PINTURA COMO PROCESSO DE SEDIMENTAÇÃO

Na verdade, tudo se passa nesta obra como se cada quadro, em sucessivos processos de avanço sobre os anteriores, estipulasse o registo possível de um passo mais, apenas intuído, na ocorrência de um acontecimento em si mesmo não visível, senão mesmo invisível, definindo ao mesmo tempo o diagrama rigoroso desse mesmo evento. Mas isso também lhe confere uma inesperada dimensão que poderíamos designar como o seu sentido metafísico.

Lanhas parece indicar-nos quadro a quadro o mapa de um território que ele mesmo primeiramente intuiu e cuja decifração última estaria ainda por realizar. Cada nova obra avançando no sentido de o tornar mais evidente.

E também como se essa evidência, por seu turno, jamais pudesse ser verbalizada, tornada objecto de uma linguagem, mas apenas dita por imagens. Imagens quase mudas, silenciosas e graves na sua forma de (re)conhecimento. Como se fossem os mapas

possíveis de territórios que não foram antes navegados.

Ao contrário de Mondrian, de Malévich ou de Kandinsky, cujos programas plásticos são por assim dizer pré-determinados por uma programação abstracta — a negação de quaisquer outras linhas que não as ortogonais, a procura da forma pura do quadrado, ou a redução a uma geometria de ponto, linha e plano em que a própria cor pode ser ameaçadora — na obra de Lanhas não conhecemos a chave. Sabemos outrossim, do que foi deixando dito, que tinha algumas teorias mais científicas do que artísticas sobre a percepção e sobre a própria inexistência da cor. Mas, e como já o referiu Filomena Serra no seu belo ensaio sobre o artista (Fernando Lanhas — Uma vontade de mundo, ed. Caminho, Lisboa), a sua obra é antes “ditada por imperativos de ordem metafísica e a sua importância é ainda mais significante se pensarmos que não teve a sustentá-la nem o conhecimento teórico ou directo das obras dos pioneiros da arte abstracta dos anos 10 a 30, como Kandinsky, Malévich ou Mondrian, que na altura Lanhas não conhecia, nem muito menos uma tradição pictórica portuguesa que houvesse entendido o expressionismo e o cubismo.”

Ao contrário, porém, dos demais abstractos e dos princípios mais gerais que guiaram o abstraccionismo, que se jogou no plano de um afastamento das formas naturais e, mais em geral da natureza, a obra de Lanhas sinaliza uma remota reaproximação à natureza. Um pouco como ocorreu no caso de Nadir Afonso, seu amigo e companheiro nesta aventura, sente-se um desejo secreto de a reencontrar na clareza das suas leis e de a restituir na sua geometria secreta. Como se a pintura afinal obedecesse a essas mesmas leis. Esse imperativo metafísico decorre pois da suposição de que uma ordem escondida repousa no mundo e que a pintura, e talvez mesmo só ela, seria capaz de a surpreender e de a cartografar, restituindo-a na sua dimensão mais original.

Com efeito, nesta obra exemplar forja-se o que parece vir de um conhecimento de tipo esotérico, como que um desígnio secreto de dar a conhecer outra ordem, algo ditado por esses imperativos de ordem metafísica que nos levam a supor que o pintor avançava na descoberta de um mundo outro, de uma ciência nova, de que cada nova obra daria uma nova imagem, fornecendo o desenho de um novo mapa e de uma

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Figura 68

nova chave. A presença do cartográfico em Lanhas esteve decerto indissociavelmente ligada à sua necessidade de realizar mapas.

Por isso parecem estas obras habitadas por uma espécie de geometria secreta, uma meta-geometria, ou uma arquitectura secreta, aquém e além das linhas que constroem as figuras — círculos, rectas, quadrados, etc.

Evocam cartas celestes — e a relação íntima de Fernando Lanhas com a astronomia decerto passa também por aqui. Tal como, e de outras vezes, tão ténue sendo o limite da cor que separa dois espaços, quase seríamos levados a pensar que as figuras aí se incrustaram, sobre a própria superfície do quadro, como vestígios de uma sedimentação, e a exemplo do que ocorre com os processos milenares da sedimentação e da fossilização.

Poderia então dizer-se que a pintura de Lanhas é estratigráfica. É, digamos assim, uma pintura de sedimentação, em que cada figura se aloja no interior de um dado espaço e passa a integrá--lo, como se no seu interior houvesse cristalizado. Poderia dizer--se que as figuras tendem para a forma-fóssil, que estão em estado de um devir-fóssil.

As figuras vão ganhando as suas próprias distâncias, obedecendo, na maioria dos casos, a uma espécie de construção harmónica, contrapontística, parente (e como já se referiu atrás) de um processo de escrita musical e participando de um semelhante grau de abstracção. Tudo, nelas, parece obedecer a uma criteriosa observação das distâncias, como se o seu processo de construção obedecesse a uma lógica científica, matemática, mas cuja fórmula se tivesse perdido para sempre.

Ou então, como se em cada quadro se indicasse um dispositivo geográfico — um mapa, como já referi antes — capaz de designar a trajectória para o encontro de alguma coisa, os seus tamanhos e as suas distâncias relativas, a sua qualidade e a sua quantidade.

Figura 68: Óleo Antigo, Fernando Lanhas

O PRINCÍPIO DE DISSEMELHANÇA E O SISTEMA-LANHAS

Os quadros, no seu conjunto, só se parecem entre si. São aparentados, ligam-se por relações de aproximação ou de sentido de procura, mas não se sucedem numa série. Tão pouco procuram os signos distintivos de um estilo. Não evocam jamais memórias de outras coisas, sequer de outras pinturas, que não de si mesmos.

Ora a este conjunto poderíamos designá-lo como o sis tema- -Lanhas. E, tomado como tal, na acepção de um conjunto que entre si estabelece linhas de contiguidade e de relação interna, mas não de forte relação externa, a obra de Lanhas — como, naturalmente tomadas as devidas distâncias, a de Leonardo — não acaba no mero campo da pintura. Estende-se, antes, aos mais diversos domínios do saber: a astronomia, a geologia, a arquitectura, a arqueologia, etc. E a pintura é apenas testemunho de uma procura mais alargada, que incorpora estes saberes todos.

Cada parte desse projecto que poderemos supor como de investigação global do mundo vem, de algum modo, reflectir a ideia do conjunto, como se tudo estivesse ligado com tudo. Como se os saberes não fossem parcelares e descontínuos, mas integrassem antes uma relação que os determina e que, só no conjunto, os explicita. O que, naturalmente, torna impossível discorrer sobre a sua pintura como se ela se autonomizasse desse conjunto (ou desse sistema) que é o todo da sua obra.

Não é por acaso que nos seus espaços claros, abertos, se dimensiona um sentido de equilíbrio clássico. No seu sentir, como no seu agir e no seu pensar, Lanhas prolonga a herança de uma concepção renascentista. A atitude geral e pública do artista parece, de resto, conter essa concepção. Fernando Lanhas apontava os seus sonhos, escrevia-os e, para dar um exemplo concreto, no contexto da retrospectiva da sua obra, fez publicar uma série deles no catálogo, como o fez também com alguns dos seus mapas.

Tudo parece convergir no sentido de indicar que toda essa actividade se ligou, indissociavelmente, a um nível mais profundo. E que cada parte dela, por diversa que nos possa parecer, só poderia ganhar sentido pleno quando olhada e apreciada numa perspectiva de conjunto.

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O SILÊNCIO DE UMA OBRA

Diante da sua obra, vasta quando vista no seu vasto conjunto, não poderemos senão deduzir que, nela, a pintura ocupa apenas uma das múltiplas formas da sua expressão, nem maior nem menor do que as outras na sua importância, sendo que todas elas se destinam ao constante aprofundar do seu (e nosso) conhecimento do mundo e do universo em que habitamos. De onde o seu lado vertiginoso na paradoxal tranquilidade das suas formas.

Do mesmo modo que aquilo que nela se procura é, antes do mais, não um registo expressivo das suas próprias emoções, mas antes a expressão tacteante de um conhecimento que não domina inteiramente os seus termos, mas cujo destino último, ou cuja promessa, é o de poder ser reconhecido por outros, num futuro incerto e sempre desejado.

Um dia, quando aqueles que vierem muito depois de nós, muito depois de a arte ter deixado de ser para eles aquilo que para nós é ainda, talvez os quadros de Lanhas possam comunicar a sua própria intuição do que foi o seu tempo e nos termos exactos em que o seu tempo se pensou acertado com o que possa ainda definir-se segundo um princípio comunicacional.

Ou então talvez a arte de Lanhas (e de alguns mais) participe já daquele esotérico sonho hegeliano da dissolução da arte na filosofia e no pensamento, e cada obra não seja, em si mesma, mais do que o registo já da ocorrência dessa fusão. Isto é, elemento de conhecimento, forma expressa de um pensamento que não se codificou ainda em termos de sistema, especulação sobre as coisas do mundo ou intuição de um saber de que ela mesma seria um indicador ou um embraiador, designando pictograficamente o seu percurso em devir.

No silêncio extremo que convoca, esta obra indica-nos algo face ao que nos sentimos exteriores, mas de que suspeitamos poder participar. Tal como diante dos segredos da Natureza ou

do Cosmos, somos impelidos à suspeita de que um dia teremos chaves mais exactas para compreender o seu sentido, que abrirá por sua vez para outros sentidos de que nem sequer podemos ainda, por agora, adivinhar a forma.

Tal como pode acontecer com uma mensagem lançada numa garrafa, abandonada aos movimentos inesperados do oceano pelas mãos esperançadas de um náufrago sem nome, ou como as mensagens que os homens enviam para as estrelas nas suas naves de fantasia e de ciência, também esta obra nos remete para a nossa humilde condição de seres perdidos, náufragos, num Universo de que desconhecemos as leis mas que, de um modo optimista, queremos percorrer, desvendando-lhe os segredos e as dobras, guiados pelo instinto e pela vontade de conhe cimento que, desde sempre, secretamente nos habita.

Conduzindo-nos à deriva para outros mundos que existem já na nossa imaginação e que talvez sejam intuições de outros mundos ainda, nem mais nem menos reais do que este, apenas outros, contíguos e apetecendo também que alguma coisa ou alguém tenha a coragem e a ousadia de saber abrir uma porta, pondo-os entre si em comunicação mais estreita.

Talvez esse seja o destino mais profundo de todo o acto comunicativo/criativo e portanto também da arte: realizar a antecipação de uma utopia, preparar os elos de uma conexão futura, mostrar o rosto mais reconhecível àqueles que virão. Talvez seja então essa, no seu íntimo propósito, a mais crucial lição que se encerra na obra singular de pintor, de inventor e de cientista de Fernando Lanhas: apontar um, entre tantos possíveis, caminho que nem nós nem ele sabemos aonde poderá conduzir.

Para a compreender bastando então deixarmo-nos levar pela subtil musicalidade que as suas obras entretecem, pacientemente, como um fio de Ariane.

Bernardo Pinto de Almeida

OS PEQUENOS COSMOS OU COMO PINTAR O MUNDO

Neste aspecto deveremos sublinhar aqui um acontecimento determinante na sua obra. Com efeito, nos anos cinquenta, Fernando Lanhas realizou uma série de intervenções na Natureza — antecipando desse modo (pelo menos formalmente) experiências como as de Robert Smithson e outros artistas da earth art e da land-art que muito depois vieram — em que pretendeu pintar directamente sobre as próprias rochas.

Existem disso registos fotográficos e foram experiências a que não deu continuidade, senão em pequena escala, justamente através dessas pedras pintadas atrás referidas. Mas essas intervenções, que uma vez mais não poderiam ter eco por falta de contexto cultural, mas que apesar dele foram pioneiras a nivel mundial, sinalizam uma vez mais a vontade do artista de ir muito para além da(s) sua(s) arte(s) e de se abrir a um campo cosmológico vasto de todos os saberes.

Não se tratava então de partir da natureza para a pintura, mas de inscrever a ordem da pintura na ordem mais vasta da natureza, já que toda a acção do homem é portadora de um sentido natural: na concepção de Lanhas, o humanismo não tem grande sentido se for pensado num desligamento face à natureza. pelo ontrário, o seu pensamento mais profundo encerra uma dimensão antropológica implícita, que faz do homem um ser em procura constante das chaves para compreender o universo. Lanhas jamais se preocupou com o facto de não ser um cientista. pelo contrário, formulava hipóteses científicas que depois, muitas vezes, discutia com os próprios cientistas. Do mesmo modo que formulava hipóteses filosóficas e, finalmente, hipóteses artísticas.

Uma vez mais, porém, se poderia ver nesse gesto de pintar di rectamente sobre a natureza a obcessão cartográfica, como se preparasse desse modo os sinais para uma comunicação com o espaço exterior, num registo de quase chamada de atenção dirigida e voltada para hipotéticos observadores externos, habitando outros espaços.

É neste contexto de reflexão e de entendimento de um sentido geral da obra que se me afiguram particularmente relevantes as suas pedras pintadas. Nelas, como se de microcosmos se tratasse, pequenos cosmos à escala da mão humana, inscreve-se por um lado o seu interesse pela mineralogia e pela arqueologia, pela Natureza e pela sua constante observação, pelas relações entre as cores, pelas relações de escala e de medida das coisas, mas tudo isso subordinado a um princípio de pintura que serve para reunir o que nos parecia estar, aparentemente, desligado.

Nessas pinturas sobre pedras — calhaus rolados daqueles com que as crianças brincam ao acaso de os acharem na areia — e porque nelas se configura um princípio de unidade, parece cifrar-se uma espécie de suma, ou de chave, para desvendar algum do enigma que a sua obra na verdade encerra. Na verdade tudo se passa como se não houvesse verdadeiramente distinção entre a pintura como arte plástica, bidimensional, e este exercício feito sobre as pedras. Uma e outra reflectem os mesmos princípios. E, nomeadamente, no caso dos calhaus pintados, de uma ideia de que é possível completar se não mesmo aperfeiçoar o longo trabalho da Natureza. Há neste gesto uma dimensão antropológica forte. Como se Lanhas se dirigisse a uma humanidade futura, antecipando a sua surpresa diante desses objectos em que se funde a acção natural com a acção do homem relativamente ao seu envolvimento.

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Figura 70: Pedras pintadas, Fernando LanhasFigura 69: Tríptico, Fernando Lanhas

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05A PRU DO EIXO

MOUZINHO/FLORES E A MUDANÇA RESULTANTE

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O Eixo Mouzinho/Flores, tendo em conta os seus principais espaços públicos – Rua de Mouzinho da Silveira, Rua das Flores, Largo dos Lóios, Largo de S. Domingos e Praça do Infante – mudou! E mudou radicalmente, quer na morfologia urbana,

quer na imagem, quer na forma de ser usado pela cidade e por quem a visita. Mudou para melhor; está mais cosmopolita, mais percorrido, melhor utilizado!

Passou a ser um espaço atractivo de pessoas, pois passou a dispor de um espaço público confortável e amigo dos peões que passaram a ter efectivos privilégios sobre o sistema de tráfego automóvel. E com isso passou a ser um local com visibilidade para instalação de actividades empresariais dos mais diversos domínios que se aproximaram do Eixo Mouzinho/Flores sem que isso seja motivo de expulsão ou de condicionamento das actividades tradicionais que aqui, em muitos casos e felizmente, se vão mantendo. Mas um novo perfil funcional, mais moderno e requalificado; há novas actividades no Eixo Mouzinho/Flores que são aí novidades e geram novas visitas quotidianas e novas uma outra dinâmica de procuras eventuais ou turísticas.

Há assim um claro efeito de revitalização económica provocado pela intervenção no domínio público, que assentou na Operação que foi o principal pilar do Programa de Acção para a Reabilitação Urbana do Eixo Mouzinho/Flores, a Requalificação do Espaço Público. E este processo sobre o espaço público motivou impactes sobre a reabilitação do edificado. A aposta tende para estar ganha.

Interessante é perceber que houve quem antevisse esta mudança, e provavelmente em melhores condições de negócio que aquelas que hoje acontecem neste espaço territorial consolidado e reabilitado, se tenha instalado no território de Mouzinho/Flores ainda antes de estar concretizada a alavanca da mudança.

São disso caso evidente o Palácio das Artes / Fábrica dos Talentos, um pólo artístico e de grande animação situado no Largo de S Domingos, que surge aqui também como corolário da presença, já desde os finais do anos 80 do século passado, da Fundação da Juventude na Rua das Flores. Mas também o Museu das Marionetas que apresenta, neste novo espaço reabilitado na Rua das Flores, 25 anos de história do Teatro das Marionetas que funciona na Rua de Belmonte, ali bem perto. Numa outra perspectiva, foi também precursora desta mudança que se vem operando, a instalação do Hard Club, que vindo para o Porto proveniente de outra localização, encontrou no Mercado Ferreira Borges o seu espaço de acolhimento.

A PRU DO EIXO MOUZINHO/FLORESE A MUDANÇA RESULTANTE

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(Na página seguinte)

Figura 71: Palácio das Artes / Fábrica de Talentos

Figura 72: Fundação da Juventude

Figura 73: Mercado Ferreira Borges - Hard Club

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Figura 75Figura 74

Figura 76

Figura 72Figura 71

Figura 73

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Figura 79

Figura 77

Figura 78

15 fogos T2, de 4 fogos T3 e de 2 fogos T4, para além de existirem 36 outros projectos habitacionais sem que se tenha podido conhecer as tipologias obtidas, e ainda 82 espaços comerciais. Falamos de um investimento privado de cerca de M€116.

E com todo este conjunto de situações, e intervenções de alterações sustentadas, o Eixo Mouzinho/Flores, em geral, e a Rua das Flores em particular, é agora a grande centralidade do Centro Histórico, reforçando também o seu papel de percurso de ligação da Baixa à Ribeira. Os artistas de rua, as esplanadas, as animações de rua criaram lugar cativo neste território.

Voltou-se ao passado no aspecto de o Eixo Mouzinho/Flores ser transformado e mudado com base numa objectiva decisão de planeamento urbano e num acto de projecto; já assim tinha acontecido, com as necessárias diferenças de então para hoje, no século XVI e no final do século XIX. Agora, no início do século XXI, reescreve-se a história e cria-se novamente um novo futuro para o Eixo Mouzinho/Flores. Mas volta-se também ao passado, reanimando aquela que foi uma das zonas comerciais mais fortes do Porto desde sempre, e que nas últimas décadas tinha definhado de forma preocupante. E aqui há vida de novo…

O Hotel Intercontinental a par do hostel Dixo’s e do DOP, da Mercearia das Flores, do Àparte, uns no domínio da hotelaria, outros no da restauração, são também novidades no Eixo Mouzinho/Flores, tal como, por exemplo, a Essência do Vinho que nasceu como uma actividade ligada à Associação Comercial do Porto e ao Palácio da Bolsa e que entretanto se tornou autónoma e se transformou numa empresa que aqui se sediou. Este conjunto de entidades e instituições, que perceberam a mudança que haveria de chegar ao Eixo Mouzinho/Flores e que disso beneficiaram, foram também aquelas que tiveram o constrangimento de estar condicionadas pelas obras profundas que aqui acontecerem em paralelo com o seu funcionamento normal.

Outras actividades, empresas e instituições chegam depois, nestes tempos mais próximos, e outras continuam a chegar e a procurar imóveis para reabilitar e se instalarem, e com tudo isto, o Eixo Mouzinho/Flores assume uma forte característica de centralidade no seio do Centro Histórico do Porto, classificado como património mundial desde 1996 e agora em franco desenvolvimento e de uma forma generalizada.

É uma evidência de tudo isto quanto atrás se diz a dinâmica establecida no quadro da reabilitação do edificado que vem acontecendo desde 2009, fruto também da definição deste conjunto de quarteirões como área prioritária de actuação por parte da Porto Vivo, SRU que, entretanto, aqui desenvolveu um conjunto de 13 Documentos Estratégicos para outras tantas Unidades de Intervenção, de acordo com a metodologia que era imposta pelo Decreto-lei 104/2004 de 7 de Maio, hoje já substituído pela Lei nº 32/2012 que enquadra o Regime Jurídico da Reabilitação Urbana.

A dimensão daquilo que foi licenciado após Julho de 2009 até Julho de 2014, é importante, e faltando alguns casos que foram licenciados ainda pela CMPorto, antes de haver ARU do Centro Histórico e em parcelas fora de Unidades de Intervenção, atinge um total de 47 processos; diga-se ainda que, nas mesmas condições, foram reprovados 9 outros processos e que actualmente estão em curso outros 43 a tender para serem aprovados e emitidos os respectivos alvarás.

Esta circunstância provocou uma intervenção em cerca de 50.000 m2 de área bruta construída, o que equivale a cerca de 25% da área bruta construída do Eixo Mouzinho/Flores, e originou a produção de 157 fogos T0, de 32 fogos T1, de

(Na página anterior)

Figura 74: Museu das Marionetas

Figura 75: Mercearia das Flores

Figura 76: Hotel Intercontinental

Figura 77: Hostel Dixo’s

Figura 78: Àparte.

Figura 79: Essência do Vinho.

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102 Figura 81

Figura 80: Eixo Mouzinho/Flores - novas actividades (2009/2014)

(Na página seguinte)

Figura 81: Rua das Flores depois da intervenção

Figura 80

Legenda

Limite da operação Mouzinho/ Flores

Comércio existente antes do ano de 20091 - Cafetaria, Restauração, Bar2 - Comércio a retalho3 - Hoteis4 - Farmácias5 - lojas Serviços Turísticos6 - Alojamento Turístico

Comércio existente após o ano de 2009 1 - Cafetaria, Restauração, Bar2 - Comércio a retalho3 - Hoteis4 - Farmácias5 - lojas Serviços Turísticos6 - Alojamento Turístico

(116)31800310

(108)28654075

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