morte de getúlio, política e rádio na bahia

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II Encontro Nacional da Rede Alfredo de Carvalho Florianópolis, de 15 a 17 de abril de 2004 GT História da Mídia Sonora Coordenação: Prof. Ana Baum (UFF) 1

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Page 1: Morte de Getúlio, política e rádio na Bahia

II Encontro Nacional da Rede Alfredo de CarvalhoFlorianópolis, de 15 a 17 de abril de 2004

GT História da Mídia SonoraCoordenação: Prof. Ana Baum (UFF)

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Morte de Getúlio, política e rádio na Bahia

Ayêska Paulafreitas1

Resumo:

Em agosto de 1954, a Bahia vivia o clima de campanha para as eleições. Salvador tinha 4 grandes jornais pertencentes a empresas comerciais, um jornal do Partido Comunista, 3 emissoras de rádio e vários serviços de alto-falantes. Como a televisão não havia chegado ao estado, o rádio era o principal meio de comunicação, atuando na área do entretenimento e do jornalismo. A programação das emissoras era variada: música, teatro, humor, esportes, noticiário, política. Os candidatos e partidos faziam uso do meio para pronunciamentos, debates e marketing político. Anunciada a morte do presidente pelo Repórter Esso, houve comoção e baderna: choro, reza, comício, passeata e pancadaria. Nessa ocasião, o rádio baiano retransmitia as notícias da capital federal, gerava a notícia local, tranqüilizava e mobilizava a população: só notícia e música erudita.

Palavras-chave: rádio, alto-falante, política, Getúlio Vargas, Bahia

O PANORAMA POLÍTICO

Bahia, agosto de 1954. Clima de campanha: as eleições iriam realizar-se a 3 de outubro.

Disputando o cargo de governador, então ocupado por Régis Pacheco, dois ilustres

baianos: Pedro Calmon (coligação PSD,PR,PL, PDC e PSP) e Antônio Balbino (Frente

Democrática Popular: UDN, PTB, PST). O deputado Pedro Calmon, historiador e

professor que veio a ser presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e reitor

da Universidade do Brasil, atual UFRJ, havia ocupado o cargo de Ministro da Educação

e Saúde no governo Dutra (1950-51). O advogado, professor e deputado Antônio

Balbino, que havia sido Ministro da Educação e Saúde no governo de Getúlio Vargas

(1953-54), é apresentado como o candidato que mais se identifica com o povo. Tem o

apoio dos Diários Associados e do jornal O Momento, do Partido Comunista, e acabará

vencendo as eleições.

No cenário político, sempre atuante, o líder udenista Octavio Mangabeira1. Adversário

histórico de Getúlio Vargas que, inclusive, lhe impusera exílio durante o Estado Novo,

Mangabeira publica no jornal A Tarde do dia 10 de agosto uma nota em que conclama a

população – “homens e mulheres, ricos e pobres, grandes e pequenos” – a um comício

1 Profa. do Curso de Comunicação Social (Rádio e TV) da Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC (Bahia)

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que seria realizado no dia seguinte, na Praça da Sé, em protesto contra o atentado a

Carlos Lacerda e o major Rubens Vaz. Dizia: “O Brasil está vivendo horas solenes, pela

sua extrema gravidade. E a Bahia precisa retomar o seu velho posto de vanguarda,

sempre que a nação apelou para suas virtudes cívicas”2. No comício, vários oradores

pedem a renúncia de Vargas. No dia seguinte, o jornal Estado da Bahia sai com a

manchete “As forças armadas exigirão a renúncia do presidente da República”. Uma

grande foto em que aparece uma multidão com faixas e cartazes traz a legenda: “O povo

bahiano solidário com a aeronáutica em memorável comício”.

O RÁDIO

Em 1954, Salvador tinha três emissoras de rádio: a pioneira Rádio Sociedade, PRA-4

(fundada em 1924 e a quarta do país como indica o prefixo), integrava o império de

Assis Chateaubriand; a Rádio Excelsior, ZYD-8, pertencia à Igreja Católica; a Rádio

Cultura, ZYN-20, era da Organização José Ribeiro Rocha, um paulista que teve

emissoras também em Poços de Caldas, em São Paulo e na ilha de Itaparica.

A Excelsior, fundada em 1940, era dirigida por frei Hildebrando e tinha direção

executiva de Cleto Araponga. De orientação católica e alheia ao burburinho político,

tinha um jornalismo pouco atuante. Ficava na Cidade Baixa, precisamente no Largo do

Papagaio, bairro de Itapagipe. A sede era chamada Palácio do Rádio, um casarão da

família Catharino. Na sala de jantar funcionava o auditório; na copa, o estúdio. Na

memória do músico e radialista Jorge Santos3, o programa de auditório Expresso D-8,

apresentado por ele e o alagoano Haroldo Miranda, com platéia formada por pessoas do

bairro.

A Cultura, ZYN-20, era apelidada de “a caçulinha” por ser a mais nova, nascida em

1950. Anunciava: “Por todo o Brasil, a Bahia é ouvida pelos três prefixos: ZYN-20,

ZYN-22 e ZYN-23”. Funcionava na Avenida Sete 311, Campo Grande, ao lado do

Palácio Arquiepiscopal. Orgulhava-se de ser a primeira no radiojornalismo e nos

esportes – nos fins-de-semana fazia transmissões ao vivo de jogos seguidas de resenhas

esportivas -, mas tinha também seus programas de auditório, a exemplo de As Grandes

Atrações Musicais, sob o comando de Jorge Santos, com a orquestra de Gilberto Batista,

levado ao ar aos domingos de manhã.

Mas as ondas sonoras locais eram dominadas pela Rádio Sociedade, “a emissora dos

bahianos”, que possuía maior potência (“falando com a força de 50.000 watts”) e

3

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capital. Situada na rua Carlos Gomes, centro da Cidade Alta, ficava no ar das 07:00 às

24:00, com uma programação variada: radionovelas, radioteatros, programas de

auditório, de calouros, audições de grandes artistas internacionais, nacionais e locais;

debates e até conferências4.

A Sociedade apresentou, no ano de 1954, os programas de auditório: Festival Martini,

às 20:30, patrocínio do vermute Martini; o Rádio Recreio A-4, comandado por Ubaldo

Câncio de Carvalho, com música, prêmios e o humorismo da Escolinha do Zazá5; o

Programa de Calouros Lavolho6, aos domingos. Ofereceu concertos com artistas

internacionais como a espanhola Soledad Martinez e Cândida Rosa, “a voz sensação de

Portugal”. Trouxe à Bahia artistas do cast da Rádio Nacional, como Homero Marques,

Sandra Samarah e Virginia de Moraes, a “cantora 18 quilates e a melhor intérprete de

‘Oh!’”. Na PRA-4 se apresentaram Salomé Parísio, “o rouxinol brasileiro”; Hélio

Chaves, “príncipe do rádio brasileiro”; a dupla Jackson do Pandeiro e Almira Castilho;

Marinês, “a rainha do xaxado da Paraíba” e Abdias, “o demônio da sanfona”, além de

artistas locais como Roberto Santos, Maria Célia, maestro Silézio Queiroz, Lina Ferreira

e Deny Moreira (Dermeval Moreira, o cantor de mambos).

A dramaturgia era um dos pontos fortes da Sociedade, e nesse ano teve destaque O

Grande Teatro Arrozina, patrocínio de Arrozina, “o alimento ideal da criança”, com a

peça Cofres de Recordações, de J. Silvestre, com “magistral interpretação do grande

cast da Rádio Sociedade”, formado por Graça Morena, Maria Célia, Valnizia Nunes,

Lívia Silva, Ernesto Alves, André Luiz, Fernando Pedreira, Costa Junior, Isnard

Pedreira, José Jorge, Maria Orquídea, Jomar Veiga, Sonia Terezinha e Sylvia Mariana,

sob a direção de Fernando Pedreira.7 Há registros do Teatro Leite de Colônia,

apresentando a peça O Fogo de uma Paixão, de Ênio Santos, e d’O Teatrinho Gessy,

que mobilizava os ouvintes com um concurso – para participar era preciso responder a

perguntas como: “Qual o sabonete cujo nome é também nome de mulher?” e “Quais os

produtos que possuem a embalagem branca e rosa?”

Mas a emissora se ocupava de outros assuntos que diziam respeito à cultura local, e

como estávamos no ano em que Martha Rocha foi Miss Brasil e quase Miss Universo,

perdendo apenas por causa de suas duas polegadas a mais nos quadris, a PRA-4

promoveu um debate, a partir da questão: “Por que Martha Rocha não venceu?”

RÁDIO & POLÍTICA

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Se a notícia é hoje um dos alicerces da programação de emissoras de rádio, na década

de 1950, quando a TV sequer havia chegado à Bahia, e nem tínhamos as FMs vitrolões,

o principal papel do rádio era informar a população sobre o que acontecia no Brasil, no

mundo e na sua cidade.

Os departamentos de jornalismo eram tão atuantes quanto os cast de dramaturgia.

Os repórteres saíam em busca da notícia, em resumo: o rádio gerava notícia. Na redação de cada jornal existia um rádio. O plantonista da redação ficava escutando rádio para ele tomar conhecimento dos fatos que estavam ocorrendo na cidade, pra ele mandar fazer a suíte da matéria e divulgar no dia seguinte. Então o rádio dava a notícia, de fato, como se dizia, em absoluta primeira mão. (Perfilino Neto, 2004)

A Cultura gabava-se de ser “a emissora bahiana que melhor informa, num melhor

trabalho de radiojornalismo”8; e, contando uma equipe de 14 pessoas, seu departamento

de jornalismo levava ao ar, de hora em hora, o Informativo Veedol. A Sociedade

apresentava informativos às 07:55, 10:00, 16:00 e 18:40, além de um Jornal Falado às

13:00 e o Grande Jornal às 22:30.

O rádio era, indiscutivelmente, o meio mais importante, pelo seu imediatismo e

abrangência, e os serviços de alto-falantes davam sua contribuição: improvisavam um

sistema de retransmissão, encostando seus microfones no aparelho que transmitia a

Rádio Nacional, ou a Sociedade, ou qualquer outra em ondas curtas, e pessoas

residentes nos lugares mais distantes dos grandes centros ficavam a par das notícias no

mesmo instante em que as moradoras das metrópoles.

Essas características faziam do meio um alvo cobiçado por políticos, especialmente em

períodos eleitorais. Como não tínhamos, como hoje, os horários gratuitos obrigatórios,

as emissoras vendiam horários aos partidos, nem sempre respeitando alguma afinidade

ideológica. Quem primeiro chegasse (com seis meses de antecedência iniciavam-se as

negociações) e melhor pagasse, usava o horário. Esses períodos de eleição foram,

muitas vezes, a salvação do bolso de radialistas. Conta-se que, em fins da década de 50,

deu-se a primeira greve de radialistas na cidade do Salvador porque os funcionários de

uma emissora sempre em débito aguardavam o dinheiro da política para atualizarem

seus salários atrasados, mas seu superintendente, por ser militante de um partido e

desejar integrar uma chapa, decidiu abrir mão do pagamento do horário, em troca da

homologação de sua candidatura.

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Às vésperas das eleições de 1954, a Rádio Sociedade tinha dois horários de 15 minutos

cada, antes da Voz do Brasil, chamados O Interior Trabalhista em Marcha e A Voz do

PTB; mas constavam também na sua programação A Palavra do PR, UDN em Marcha e

um horário do Comitê Estudantil Pró Candidatura Antônio Balbino9.

Se um fato político precisasse ter ampla repercussão, deveria ser anunciado numa

emissora de rádio. E quando Manoel Novaes renunciou à sua candidatura ao governo do

estado, em favor de Pedro Calmon, o fez diante dos microfones.

Os partidos aliados PSD, PR e PDC, nos seus horários seguidos ontem à noite, na Rádio Sociedade, reuniram o líder sertanejo Manoel Novaes e o candidato do povo bahiano Pedro Calmon (...). A audição foi iniciada com uma saudação feita ao sr. Pedro Calmon. Em seguida, ocupou o microfone o sr. Manoel Novaes, que falou aos seus amigos do sertão e aos sertanejos em geral, enumerando os problemas básicos de cada uma das regiões respectivas e as soluções adequadas que iriam constituir o seu programa de governo. (...) Falou, por fim, o sr Pedro Calmon, agradecendo as manifestações de solidariedade que lhe estavam sendo prestadas e afirmou que eleito, adotaria sem reservas o programa que Manoel Novaes, tão patrioticamente, se traçara para a solução dos magnos problemas dos sertões bahianos. (...) O auditório da rádio Sociedade se achava completamente lotado pelo povo e elementos dos partidos unidos. (A Tarde, agosto de 1954)

Há registros, ainda, da transmissão, pela Rádio Cultura, de uma homenagem prestada a

Otávio Mangabeira, no Centro Operário da Bahia. Mas nada se compara ao marketing

político obtido através do patrocínio de grandes atrações, porque atingia um público

muito mais amplo que os interessados nos meandros das disputas e conchavos

partidários. Nos jornais da época é possível verificar: a cantora Virginia de Moraes se

apresentou na Rádio Sociedade com o patrocínio da Brasilgás e de Carlos Barbosa

Romeu, candidato a prefeito de Salvador10 que apoiou também a apresentação de

Marinês e Abdias. Homero Marques e Sandra Samarah tiveram o patrocínio de

candidatos do PR: Olímpio da Costa Vargens (a deputado federal), Major Salomão

Rehem (a deputado estadual) e Oton de Teive e Argolo (a vereador)11. A dupla Jackson

do Pandeiro e Almira Castilho fez três apresentações com patrocínio de Alaim Melo,

presidente local do PTB e candidato a deputado federal, Abelardo Andréa, candidato a

prefeito da cidade do Salvador, Aristides Milton da Silveira, a deputado estadual, e

Edson Porto, a vereador12. A portuguesa Cândida Rosa contou com as Lojas Duas

Américas, as Confecções Natal e também Renato Martins, candidato a deputado

federal13.

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GETÚLIO - AMADO E ODIADO

Naquela época, na minha casa, todo mundo era getulista. Tanto que nós tínhamos na parede de casa uma foto, um quadro com uma foto do Getúlio. (Marinalva Sant’Anna, radialista)

Meu pai mantinha na sala uma foto bem grande, uma foto bonita do Getúlio. (Lourival Oliveira, radialista)

Eu pertenço a uma geração que nada tem a agradecer a Getúlio Dorneles Vargas. Para a minha geração, Getúlio Dorneles Vargas foi um ditador. Foi um tirano, foi um autoritário, foi um falso. (...) A nossa acusação a Getúlio Vargas, a acusação de minha geração, é que ele nos roubou o direito de estudar o que era preciso para conhecer o Brasil. A nossa geração só conseguiu ler Casa Grande & Senzala depois de 1945. A nossa geração só conseguiu ler os romances de Jorge Amado depois de 1945. Isso também eu refiro a alguns romances de José Lins do Rego, como Moleque Ricardo, que foi censurado, retirado das livrarias e das bibliotecas, queimado em praça pública, como também o João Miguel, de Rachel de Queirós. (Luis Henrique Dias Tavares, historiador)

Eu me criei vendo o retrato de Getúlio sobre a escrivaninha de meu pai. Depois aprendi a não gostar de Getúlio. Durante todo o tempo de minha campanha de estudante, fui vice-presidente da União Nacional dos Estudantes e me aproximei muito do Partido Comunista, e naturalmente que Getúlio representava pra mim o símbolo do poder, da ditadura. Mas a partir do segundo Getúlio, da volta de Getúlio, ele

1 Otávio Mangabeira, deputado federal por vários mandatos, foi ministro das Relações Exteriores no governo Washington Luís. Com a vitória da Revolução de 30 foi preso e obrigado a se exilar, retornando em 45, para integrar a recém-fundada UDN - União Democrática Nacional. Em 47 foi eleito governador do estado da Bahia, permanecendo no cargo até 1951. 2 A Tarde, 10/08/54, p.1.3 Jorge Santos é músico, formado pela Escola de Música da Bahia, do maestro Pedro Jatobá. Em 1946, depois de participar de um programa na Rádio Excelsior chamado Caderno de Música, que apresentava alunos de Jatobá, entrou para o rádio a convite do locutor-chefe Reinaldo Moura, que lhe impôs, como condição para ser locutor, a tarefa de vender anúncios. Trabalhou também na Sociedade e na Cultura, e dirigiu a Piatã. Em 1961, criou a gravadora JS, que inaugurou a indústria fonográfica na Bahia, lançando nomes como Maria Creuza, Tom e Dito, o trio que gerou o Quarteto em Cy e Gilberto Gil.4 A escritora e professora de artes dramáticas Luiza Barreto Leite, tratou do tema “O ator no teatro e no cinema”.5 O elenco era formado por Costa Júnior, Ernesto Alves, Maria Orquídea, Valnizia Nunes, Edith Fernandes e Isnard Pedreira. In: Diário de Notícias.6 Oferta de Lavolho, “o banho higiêncico para seus olhos”, Carboleno, “anti-ácido que torna fácil a digestão difícil”; Gargantex, “gargarejo concentrado para tratar das infecções da boca e da garganta” e Progien, “pasta dental com carvão medicinal micro-pulverizado, para clarear melhor os dentes”. In: Diário de Notícias, 10/07/54, p.5.7 Diário de Notícias, 15/07/54, p.5. Coluna de Cantinflas Neto.8 Diário da Bahia, 11/07/1954, p.2.9 Sem indicação partidária, foram encontradas referências a um programa chamado Política e Civismo, apresentado por Roschild Moreira e Omar Barros, na Rádio Cultura, e, na Sociedade, 10 minutos para Atualidades Políticas.10 Diário de Notícias, 23/07/1954, p.1.11 Diário de Notícias, 04/09/1954.12 Diário de Notícias, 30/07/1954, p.1.13 Diário de Notícias, 08/08/1954, p.2.

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veio com uma nova feição. Principalmente por essa nova feição, ele conseguiu ser apoiado pelo próprio Luiz Carlos Prestes, que pra mim sempre foi o maior ídolo do Brasil. Eu continuo sendo um prestista assim... declarado. Então, se Prestes poderia esquecer o Getúlio ditador e aliar-se a ele, eu também poderia. Eu não cheguei a me tornar um getulista, mas aprendi a conviver com Getúlio e admirá-lo. (Waldir Freitas Oliveira, historiador)

A NOTÍCIA DA MORTE DO PRESIDENTE: LEMBRANÇAS

24 de agosto de 1954. O Repórter Esso noticia a morte de Getúlio Vargas, em edição

extraordinária. Ouvintes assíduos da Rádio Nacional tratam de espalhar a notícia. (“Seu

Gegê morreu!”). As emissoras locais repetem as palavras de Heron Domingues, e

começam as especulações: suicídio ou assassinato? Mas em muitas localidades da

Bahia, mesmo na capital, as pessoas souberam do fato através de um precursor do meio:

os serviços de alto-falantes.

O radialista e pesquisador Perfilino Neto afirma que os serviços de alto-falantes de

cinqüenta anos atrás eram

organizadíssimos, tanto quanto as emissoras de rádio, até porque eles tinham horário de abrir, de encerrar suas atividades, eram controlados, inclusive, pela prefeitura, tinham publicidade com horários estabelecidos, tinham mapa, tinham grade de publicidade e até os disc-jockeis também levavam discos pra fazer lançamentos.

Ele se recorda de que na sua cidade natal, Juazeiro, localizada à margem do rio São

Francisco, na divisa com Pernambuco, havia dois serviços de alto-falantes: A Voz do

São Francisco e a Rádio Cultural, que funcionavam em dias alternados. “A Rádio

Cultural funcionava, vamos dizer assim, segundas, quartas e sextas, e A Voz do São

Francisco era terça, quinta e sábado, (...) para um não atrapalhar o outro, não só na

questão da sonorização da cidade, como também na questão da publicidade.” E na

manhã da morte de Getúlio, já morando em Salvador, o adolescente que sonhava um dia

trabalhar no rádio tinha ido a um açougue, no Largo do Tanque, a pedido de sua mãe.

Quando eu saí do açougue é que eu tomei conhecimento, através do Serviço de Alto-falante Tupi, da morte de Getúlio Vargas, e fiquei parado escutando.(...) E quando eu cheguei em casa é que eu pude me inteirar, quer dizer, completar as informações, já que eu sabia perfeitamente que, se o alto-falante divulgou, o rádio ia dar mais detalhes, como de fato ocorreu. (...) Então essas emissoras passaram a divulgar a notícia da morte de Getúlio, o que causou uma comoção social, e davam essas notícias de hora em hora, e eu me recordo que o impacto foi muito grande, porque havia a corrente getulista que predominava muito no país, e eu me recordo que tinha vizinhos até

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que, ao tomarem conhecimento, começaram a chorar, várias pessoas passaram a chorar e até sem acreditar na morte de Getúlio Vargas. Então, eu como garoto também levei aquele impacto e, dada até a repercussão que a coisa teve, eu não chorei, mas fiquei também muito emocionado, até porque o rádio tem essa força, né? (Perfilino Neto)

No interior do estado não foi diferente. Na cidade de Jequié, outro adolescente com

quase 13 anos, Lourival Oliveira, que também viria a dedicar sua vida ao rádio, voltou

para casa porque as aulas no colégio do SENAC, onde estudava, foram suspensas.

Eu tomei conhecimento da morte do velho Getúlio através do meu pai. Meu pai era ouvinte assíduo da Rádio Nacional e ele ouvia sempre Heron Domingues, no Repórter Esso. E Heron deu a notícia em edição extraordinária. E também na época, nessa época em Jequié, 54, não havia ainda emissora de rádio, só dois serviços de alto-falante: A Voz da Cidade e A Voz do Sudoeste, e ambos os serviços retransmitiam o Repórter Esso. (Lourival Oliveira, 2004)

Em primeira mão ou confirmando o que se tinha ouvido dizer, a notícia, em Salvador,

chegou mesmo através do rádio.

Alguém me disse que tinha ouvido no rádio. E eu então corri para o rádio para ter a confirmação. (...) Quase a seguir, foi lida a carta-testamento que era um verdadeiro hino de nacionalismo por parte de Getúlio. “Esse povo de quem fui escravo não será mais escravo de ninguém”... eu guardo essa frase até hoje, só tem que nós continuamos escravos até hoje, com Lula ou sem Lula.(Waldir F. Oliveira)

Imediatamente a capital ganhou feição nova. Muita movimentação nas ruas. Icélia

Caldas, então com 7 anos, foi para a escola e lhe disseram que as aulas tinham sido

suspensas. Voltando para casa, nas imediações do Largo Dois Leões, encontrou um

grupo de homens em passeata, carregando fotos do presidente e gritando “Getúlio!

Getúlio!”. Ela não sabia o que estava acontecendo e só ao chegar em casa tomou

conhecimento da morte do presidente.

O historiador Cid Teixeira era professor do Ginásio da Bahia. Estava em sala de aula

quando chegou a notícia: “suspenderam as aulas. Aí, eu vim a pé, desci a Ladeira da

Palma, subi a Ladeira da Praça e já estava um burburinho no Terreiro14. Começou um

comício.”

Na época, a locutora Marinalva Sant´Anna submetia-se aos exames de Educação Física

no Colégio Central.

Na metade da aula, a professora, com a cara muito assustada, mandou que parássemos as atividades e que fôssemos para casa, rapidamente, e que não parássemos em lugar nenhum, porque tinha acontecido uma

14 Teixeira se refere ao Terreiro de Jesus, praça localizada próximo à Praça da Sé.

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Page 10: Morte de Getúlio, política e rádio na Bahia

coisa muito séria. O presidente tinha morrido. O Colégio Central fica ali perto, na Joana Angélica, quase em frente da entrada do Quartel General e perto do bairro do Tororó, onde eu morava. E sempre vinha pela Joana Angélica, mas, ao sair pelo lado do Central, pelo lado da cantina, eu me deparei com um monte de soldado. Eu tomei um susto tão grande que dei uma marcha-a-ré, eu fui correndo por uma rua de trás, chamada Marujos do Brasil, até chegar em casa esbaforida. Chegando em casa, a minha família já sabia, o rádio já tinha noticiado. Alvoroço de vizinho, aquele comentário, ninguém sabia exatamente se ele havia morrido, se foi assassinado, diziam que foi assassinado, alguém dizia que foi um complô, que mataram ele, aquela confusão danada.

Em Santo Amaro, no Recôncavo baiano, o menino José Teles empinava arraia. A

brincadeira foi suspensa pelo grito da mãe: “Deixe essa arraia, menino, o presidente

morreu!” Brincar, ouvir música, dar risada, divertir-se eram atos condenáveis. Até

mesmo o rádio, principal fonte de entretenimento de muitas pessoas, se limitava a

veicular notícias relacionadas com a morte do presidente intercaladas com música

erudita, especialmente marchas fúnebres e réquiens. Como podia um menino ficar

alegremente soltando pipa, quando o país inteiro estava em comoção?

A MORTE DO PRESIDENTE PELA IMPRENSA

Em 1954, Salvador tinha quatro grandes jornais: os matutinos Diário da Bahia e Diário

de Notícias, e os vespertinos A Tarde e Estado da Bahia. O Diário de Notícias e Estado

da Bahia, assim como a Rádio Sociedade, pertenciam aos Diários e Emissoras

Associados. Outro veículo de grande importância, aplaudido e criticado, era o jornal O

Momento, vinculado ao Partido Comunista. A morte do presidente Getúlio Vargas foi

assim noticiada pela imprensa:

Diário da Bahia, 24/08/1954 – Edição Extraordinária“SUICIDOU-SE O PRESIDENTE GETÚLIO VARGAS”

Estado da Bahia, 24/08/1954“PESAR DE TODA A NAÇÃO COM O SUICÍDIO DO PRES. GETÚLIO VARGAS”

A Tarde, 24/08/1954 - Edição Extraordinária. “O PRESIDENTE DA REPÚBLICA suicidou-se com um tiro no coração”

Diário de Notícias, 25/08/1954 (com a ressalva: “Página de inteira responsabilidade do PTB”)“MORREU O GRANDE PRESIDENTE DO POVO E DOS HUMILDES.Nação cobre-se de luto pelo trágico desaparecimento de seu chefe. Os trabalhadores têm na alma e no coração o pesar dos que perderam seu querido líder e amigo.”

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Page 11: Morte de Getúlio, política e rádio na Bahia

COMOÇÃO E BADERNA NA CIDADE

Assim que a notícia da morte do presidente Vargas chegou à Bahia, através de edição

extraordinária do Repórter Esso da Rádio Nacional, emissora ouvida assiduamente pela

população baiana, a cidade do Salvador se transformou. Às nove horas da manhã os

colégios fecharam as portas e mandaram os alunos para casa. O governador Regis

Pacheco decretou luto oficial por oito dias. Edifícios públicos e particulares baixaram as

bandeiras a meio-pau. A Federação das Indústrias do Estado da Bahia divulgou uma

nota apelando aos industriais para que fechassem suas fábricas. O comércio cerrou as

portas. O presidente da Assembléia Legislativa, Augusto Públio, abriu uma sessão às

15:00, para comunicar o falecimento do presidente da República e determinar que,

devido ao luto oficial, as sessões estariam suspensas por três dias. A Câmara dos

Vereadores se reuniu no mesmo dia 24 e fez publicar uma nota de pesar15.

Segundo o jornal Diário da Bahia, “após a divulgação da notícia do suicídio do

presidente Vargas, a cidade mergulhou em estado de consternação. As ruas ficaram

vazias e a população se aglomerava nas portas dos jornais e emissoras à espera das

edições extraordinárias e das notícias que chegavam”16.

No interior do estado não foi diferente. Nos municípios de Cruz das Almas, Muritiba,

Cachoeira, Feira de Santana e Santo Amaro a morte do presidente foi recebida com

muito pesar, “havendo casos de ataques, crises de choro coletivo, de mulheres e homens

humildes trabalhadores que receberam sob viva emoção o infausto acontecimento.”17.

Em Feira de Santana, o médico e político Gastão Guimarães morreu, “vitimado de

15 “A Câmara Municipal da Cidade do Salvador, Capital do Estado da Bahia, interpretando o sentimento do povo desta metrópole, nesta hora conturbada da vida política nacional, que culminou com o desaparecimento do eminente presidente Getúlio Dorneles Vargas, lamenta, profundamente, a morte do inclito cidadão, cuja passagem pela mais alta magistratura do País se revelou por inestimáveis serviços ao progresso do Brasil, ao bem estar de sua população.Graças ao seu espírito progressista, o Brasil de 1930, até esta data, se ufana em possuir a mais liberal e democrática legislação social do mundo contemporâneo, tida e reconhecida como a mais avançada em favor dos trabalhadores e da gente humilde, que trabalha anonimamente pelo progresso das instituições e do regime, num clima de respeito ao direito e à justiça social. Em homenagem, pois, aos reais méritos do inclito Chefe da Nação, infelizmente desaparecido do rol dos vivos, esta Câmara manda inserir um voto de profundo pesar pelo infausto acontecimento, devendo esta deliberação ser transmitida por telegrama à família do ilustre extinto, aos Poderes constituídos da República e aos Presidentes do Senado e da Câmara, como integrantes do Poder Legislativo Nacional. Que Deus inspire aos homens públicos do Brasil, nesta hora de luto, a serenidade e o mais elevado espírito público, capazes de preservar o regime democrático e a tranqüilidade da família brasileira. Sala das sessões, em 24 de agosto de 1954. (ass) Genebaldo Figueiredo, Barbosa Romeu, Laurentina Pugas Tavares, Jayme Loureiro Costa, Paulo Fábio Dantas, Humberto Câmara, Cosme de Farias, Maria Nemur Valle Laffitte, Franca Rocha, Isidoro Bispo dos Santos, Osório Vilas Boas.” In: Diário de Notícias, 25/08/1954.16 Diário da Bahia, coluna “Nossa cidade nossa gente”, 25/08/1954, p.2.

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comoção súbita”, ao saber do suicídio do presidente18. Foram divulgadas as mortes, por

colapso cardíaco em decorrência do susto, do líder operário conhecido como Mário

Ferro Velho e da professora Sidrônia Jaqueira19, esta mais tarde desmentida.

No entanto, nem tudo foi consternação e luto. É fácil compreender que a morte do mais

importante líder político, faltando pouco mais de um mês para as eleições, viesse, se não

modificar completamente o cenário político, ao menos desestruturar os esquemas, as

negociações, os compromissos, e incitar os ânimos, estimulando os que queriam

aproveitar a confusão para confundir mais ainda e provocar a baderna. Populares se

dirigiram à Praça Municipal, centro nervoso da cidade, e, naturalmente orientados por

militantes, promoveram a desordem, causando danos a propriedades e machucando

pessoas. Pouco antes do meio-dia,

grupos de populares exaltados percorreram o centro da cidade alta exigindo o fechamento de casas comerciais que naturalmente cerrariam as suas portas em respeito ao luto de que se veste a Nação e quebrando cartazes e arrancando faixas de candidatos ao pleito eleitoral de outubro, numa manifestação que não pode exprimir o sentimento de pezar (sic) que domina a todo o País. É lamentável que, acirrando esses grupos, ainda aparecessem oradores bastante conhecidos a explorarem a exaltação dos mesmos em proveito próprio, quando o que é preciso é que se respeite a memória do Presidente morto, com a reverência que lhe é devida e que não pode ser expressa em atos políticos, em proveito de terceiros. Estas atitudes são reprováveis sob todos os aspectos e apelamos para os sentimentos cívicos e cristãos do povo bahiano que deverão guiá-lo em tão grave e pesarosa conjuntura20.

Uma passeata saiu da Praça da Sé até a sede do PTB, onde líderes discursaram. No

caminho, fizeram uma “limpeza” das faixas de Pedro Calmon e dos demais candidatos

antigetulistas. Em vários pontos da cidade houve concentração popular. Na Praça da Sé,

onde sempre culminavam os eventos de conotação política, ativistas mais exaltados

resolveram queimar o palanque do comício pela renúncia de Vargas que havia sido

realizado no dia 11. À noite, a concentração foi maior na Praça Municipal21.

Os comandantes da VI Região Militar e do Distrito Naval chegaram a se reunir, mas

afinal decidiram que o policiamento deveria ser feito pelas autoridades civis.

O DIA SEGUINTE17 Diário de Notícias, 26/08/195418 Diário de Notícias, 25/08/195419 Estado da Bahia, 25/08/2004, p.3.20 A Tarde. Edição extraordinária. 24/08/1954, p.2.

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Em 25 de agosto, foram suspensas as comemorações pelo Dia do Soldado. À noite, foi

realizada a Passeata da Saudade. O secretário de Segurança, Manoel Ribeiro, mandou

chamar os organizadores, convidando-os a colaborar com a polícia. Pedia que evitassem

demonstrações que não dissessem respeito ao pesar pela morte do presidente. Mas a

passeata transcorreu na tranqüilidade. “Da Praça da Sé, onde se realizou a concentração,

os manifestantes dirigiram-se pelas principais ruas da cidade, guardando silêncio e

empunhando velas acêsas, sendo conduzido, por senhoras bahianas, à frente do cortejo,

um enorme retrato do sr. Getúlio Vargas”22.

Segundo página oficial do PTB, publicada no Diário de Notícias, “milhares e milhares

de pessoas, partindo da Sé, empunhando velas e rezando orações pelo grande morto,

percorreram as ruas centrais da Cidade, até a sede do Partido Trabalhista Brasileiro,

numa última e sentida homenagem ao grande líder dos trabalhadores”.

SÓ SE VÊ NA BAHIA

O carisma – mais que o populismo - de Getúlio Vargas fez dele um deus, em vida, e o

transformou em santo, depois de sua morte. Mas na Bahia, como se sabe, as relações

entre o mito e o homem, a fantasia e a realidade, o sagrado e o profano, assim como as

várias faces do sagrado, se misturam e se confundem. Há coisas, como diz um jingle

institucional, que “só se vê na Bahia”, e em nenhum outro lugar Dona Flor poderia tão

tranqüilamente manter dois maridos, um vivo quase morto e um morto muito vivo, nem

se ouvir o Hino ao Senhor do Bonfim tocado no palco móvel do trio elétrico Dodô &

Osmar em plena terça-feira de carnaval, ou assistir à missa pontuada com elementos de

candomblé na igreja católica de N. Sra do Rosário dos Pretos, no Largo do Pelourinho, 21 Exemplo da intolerância entre correligionários pode ser constatada através da nota publicada pelo jornal A Tarde de 26/08/1954. “AS ARRUAÇAS DOS FALSOS AMIGOS. Entre as cenas deponentes (sic), provocadas por alguns políticos, que se aproveitaram do luto nacional motivado pela morte trágica do sr. Getúlio Vargas, uma se destacou pela selvageria com que foi praticada, e ocorreu com o dr. Hamilton Guimarães, candidato a vereador pelo Partido republicano. Seriam 13 horas e 30 minutos de anteontem quando o referido cidadão se dirigia, em seu automóvel, com destino ao Campo Grande, conduzindo o sr. Rosalvo Coelho, sr. Almir Caribé, viajante comercial, e uma criança de 12 anos. Ao chegar nas imediações da farmácia Plantão Noturno, u’a malta de cerca de vinte indivíduos cercou o carro, sendo que um deles, cabo eleitoral conhecido, com atitudes de chefe de bando, dirigiu perguntas ao dr Hamilton Guimarães acerca da política estadual. Dizendo estar sentido, mais do que ninguém com a morte do dr. Getúlio Vargas, foi instado de modo agressivo a dar vivas ao sr. Balbino. Como o prócer do PR resistisse e desse um viva ao dr. Pedro Calmon, a malta apedrejou seu carro, quebrando vidros e danificando a carrosseria (sic), até que conseguiu desvencilhar-se dos agressores, pondo em movimento o veículo. Vale dizer que o citado carro contém duas placas de propaganda eleitoral, sem nenhuma ofensa a quem quer que seja. As manifestações de pesar pelo passamento do sr. Getúlio Vargas foram revoltantemente desvirtuadas por seus “novos” e falsos amigos, que procuraram tirar partido eleitoreiro da compunção do povo humilde. É o que provam fatos como o que acima registramos”.22 A Tarde, 26/08/1954.

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nem mesmo às homenagens a Yemanjá prestadas no próprio terreno da igreja de N. Sra

Santana.

Na morte do presidente Vargas, conta o escritor Fred Souza Castro, algumas famílias

armaram verdadeiros pejis23 nas portas ou janelas de suas cartas, com o retrato do

“santo”, flores, velas e oferendas. O historiador Cid Teixeira lembra que Clemens

Sampaio, homem forte do PTB na Bahia e dono da loja C.Sampaio, comércio de alto-

falantes, montou um altar com velas na porta da empresa e passou o dia todo irradiando

a carta-testamento.

Foram muitas as homenagens, mas não faltou irreverência:

Alguém me disse que tinha ouvido no rádio a notícia do suicídio de Getúlio Vargas. Eu corri pro rádio, confirmei a notícia que estava sendo divulgada e saí pra aula, porque eu era aluno da Faculdade de Filosofia, lá em Nazaré. E lá então comentei com professor José Calazans, que fez questão de me lembrar que a morte de Getúlio tinha ocorrido no dia 24 de agosto, que era dia de São Bartolomeu, e,

23 Segundo Vagner Gonçalves da Silva, peji é um “altar onde são colocados todos os objetos sagrados das divindades do candomblé. Lugar reservado do terreiro onde os assentamentos dos orixás são todos cultuados”. In: Candomblé e umbanda. São Paulo: Ática, 1994.p.139.

REFERÊNCIAS:PUBLICAÇÕES:- A TARDE. Salvador, coleção de 01/08 a 31/08/2004. - DIÁRIO DA BAHIA. Salvador, coleção de 01/07 a 31/08/2004.- DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Salvador, coleção de 01/07 a 31/08/2004.- ESTADO DA BAHIA. Salvador, coleção de 01/07 a 04/10/2004.- SILVA, Vagner Gonçalves. Candomblé e umbanda. Caminhos da devoção brasileira. São Paulo: Ática, 1995.

DEPOIMENTOS:- CALDAS, Icélia. Rádio Educadora, Salvador, 06/02/2004.- CASTRO, Fred Souza. Salvador, janeiro de 2004.- OLIVEIRA, Lourival. Rádio Educadora, Salvador, 06/02/2004.- OLIVEIRA, Waldir Freitas. Biblioteca do Conselho Estadual de Cultura, Salvador, 11/02/2004.- PERFILINO NETO. Rádio Educadora, Salvador, 06/02/2004.- SANT’ANNA, Marinalva. Rádio Educadora, Salvador, 06/02/2004.- SANTOS, Jorge. Salvador, 09/02/2004.- TAVARES, Luis Henrique Dias. Biblioteca do Conselho Estadual de Cultura, Salvador, 04/02/2004.- TEIXEIRA,Cid. Salvador, 13/02/2004.

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segundo o folclore, o Dia de São Bartolomeu é o dia em que o diabo está solto. Porque durante todo o ano o diabo fica preso embaixo dos pés de S. Bartolomeu. No dia da festa dele, ele solta o diabo e vai festejar. E então, nesse dia tudo pode acontecer porque o diabo está solto. (Waldir Freitas Oliveira)

Na ocasião da morte de Getúlio, por não ter sido instalada ainda uma emissora de TV na

Bahia, o que só viria a acontecer em 1960, com a inauguração da TV Itapoan, o rádio foi

o meio mais atuante. Os jornais, por força mesmo do aparato para se colocar uma edição

nas ruas, deram a notícia em edição extraordinária - mesmo o vespertino A Tarde. As

pessoas souberam do incidente porque ouviram no rádio ou porque alguém ouviu e

veio contar. Quem estava na rua, ou quem não tinha condições de adquirir um aparelho

receptor, soube pelo serviço de alto-falante: próximos do poste onde estava presa a

corneta, grupos de cidadãos acompanhavam os comentários do locutor de sua

comunidade e aguardavam a próxima edição do Repórter Esso. Junto ao rádio, na sala

de jantar, famílias inteiras se comoveram, rezaram e choraram a morte do presidente. O

mesmo rádio que duas semanas antes convocara a população para um comício na Praça

da Sé, com o propósito de pedir a renúncia do presidente, agora tocava réquiens. Pelo

rádio, as autoridades pediram calma à população, apresentaram seus sentimentos de

pesar, comunicaram que a ordem estava instaurada e que, por luto, o comércio, a

indústria e as repartições públicas estariam fechadas. Através do rádio, a população foi

mobilizada para participar da Passeata da Saudade, no dia seguinte à tragédia. E foi

também o rádio que ajudou a eleger Antonio Balbino, udenista que teve o apoio do

PTB. Coisas da política.

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