morte culposa no transito e racha - alternativas a dupla tipificacao introduzida pela lei 12971-2014

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Trabalho apresentado ao Centro Universitário de Brasília (UniCEUB/ICPD) como pré-requisito para obtenção de Certificado de Conclusão de Curso de Pós-graduação Lato Sensu em Direito Penal e Controle Social

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  • Centro Universitrio de Braslia

    Instituto CEUB de Pesquisa e Desenvolvimento - ICPD

    MARCEL FORTES DE OLIVEIRA PORTELA

    MORTE CULPOSA NO TRNSITO E RACHA: ALTERNATIVAS DUPLA TIPIFICAO INTRODUZIDA PELA LEI N 12.971/2014

    Braslia 2015

  • MARCEL FORTES DE OLIVEIRA PORTELA

    MORTE CULPOSA NO TRNSITO E RACHA: ALTERNATIVAS DUPLA TIPIFICAO INTRODUZIDA PELA LEI N 12.971/2014

    Trabalho apresentado ao Centro Universitrio

    de Braslia (UniCEUB/ICPD) como pr-

    requisito para obteno de Certificado

    de Concluso de Curso de Ps-graduao Lato Sensu em Direito Penal e Controle Social

    Orientador: Marcelo Ferreira de Souza

    Braslia 2015

  • MARCEL FORTES DE OLIVEIRA PORTELA

    MORTE CULPOSA NO TRNSITO E RACHA: ALTERNATIVAS DUPLA TIPIFICAO INTRODUZIDA PELA LEI N 12.971/2014

    Trabalho apresentado ao Centro Universitrio

    de Braslia (UniCEUB/ICPD) como pr-

    requisito para obteno de Certificado

    de Concluso de Curso de Ps-graduao Lato Sensu em Direito Penal e Controle Social

    Orientador: Prof. Marcelo Ferreira de Souza

    Braslia, 03 de Julho de 2015.

    Banca Examinadora

    _________________________________________________

    Prof. Msc. Marcelo Ferreira de Souza

    _________________________________________________

    Profa. Dra. Tnia Cristina da Silva Cruz

    _________________________________________________

    Prof. Alex Duarte Santana Barros

  • O marche implacable des socits humaines! Pertes d'hommes et d'mes chemin faisant! Ocan o tombe tout ce que laisse tomber la loi! Disparition sinistre du secours! mort morale! La mer c'est l'inexorable nuit sociale o la pnalit jette ses damns. La mer c'est l'immense misre. L'me, vau-l'eau dans ce gouffre, peut devenir un cadavre. Qui la ressuscitera? (Victor Hugo, Les Misrables, 1re partie, II, 8)

  • RESUMO

    O objetivo desta pesquisa apresentar alternativas questo da dupla

    tipificao da morte culposa no trnsito em situao de racha, introduzida pela Lei n 12.971/2014. Optou-se por investigar a questo sob o prisma estritamente judicial, do operador do direito, que lida com problemas deduzidos em juzo, sem discutir possveis solues legislativas. No primeiro captulo foi traado o perfil dogmtico dos tipos de morte culposa em situao de racha. No segundo, procurou-se analisar a tramitao legislativa dos Projetos que resultaram na Lei n 12.971/2014, para definir qual foi a inteno do legislador (mens legislatoris), por meio de interpretao dos documentos legislativos. Buscou-se ainda equacionar o problema da dupla tipificao da morte culposa no trnsito, com base nos critrios e mtodos tradicionais de interpretao da norma penal, para definir a inteno objetivada na lei (mens legis). Por ltimo, analisou-se se as modernas discusses em torno dos limites do controle de constitucionalidade de normas penais, com fundamento no princpio da proporcionalidade, impem que se afaste a resposta proporcionada pelos mtodos tradicionais de hermenutica, com base no princpio da vedao da proteo insuficiente/deficiente de bens jurdico-penais. Em termos metodolgicos, a presente pesquisa um estudo de caso representativo do embate entre os critrios liberais clssicos de interpretao e os imperativos de garantia positiva dos bens jurdico-penais de modo proporcional a sua estatura na ordem de valores constitucional. O ncleo da pesquisa se desenrola por meio, essencialmente, de um trabalho de reviso sistemtica da bibliografia sobre o assunto. Concluiu-se que uma interpretao que leve a srio os imperativos constitucionais de tutela e segurana suficientes aos bens jurdicos exige que se opte pelo tipo mais grave, a despeito de a hermenutica penal tradicional resultar na aplicao da norma mais benfica ao ru. Palavras-chave: Dupla tipificao da morte culposa em situao de racha. Interpretao das normas penais. Princpio do in dubio pro reo. Princpio da proporcionalidade. Vedao da proteo insuficiente.

  • ABSTRACT

    The objective of this research is to present alternatives to the problem of the double criminalization of involuntary vehicular manslaughter in a situation of unauthorized speed contest, introduced by Federal Statute n 12.971/2014. We chose to investigate the issue from the perspective of the judicial operator, who handles problems deducted in court, without discussing possible legislative solutions. In the first chapter, was drawn the dogmatic profile of the two crimes of involuntary vehicular manslaughter in a situation of unauthorized speed contest. In the second, we tried to analyze the legislative process of the law proposals that resulted in Federal Statute n 12.971/2014, to define what was the intention of the legislator (mens legislatoris), by means of the interpretation of the legislative documents. It was also attempted to elucidate the problem of the double criminalization of involuntary vehicular manslaughter in a situation of unauthorized speed contest, through the employment of the traditional criteria and methods of interpreting the criminal statutes, to define the objectified intention in the law (mens legis). Finally, we analyzed whether the modern discussions about the limits of judicial review of laws on the basis of the principle of proportionality and of the prohibition of insufficient protection of legal interests require that the answer provided by the traditional methods of the hermeneutics of criminal laws be abandoned. In terms of methodology, this research is a case study of the overspread dispute between the classic liberal interpretation criteria and the positive assurance imperatives of legal interests in proportion to their status in the order of constitutional values. The core of the research unfolds through a systematic review of the literature on the subject. We concluded that an interpretation that takes the constitutional imperatives of protection and sufficient security to legal interests seriously requires that we opt for the application of the more severe offense, despite the traditional criminal hermeneutics criteria resulting in the application of the most favorable norm to the defendant. Key words: The double criminalization of involuntary vehicular manslaughter in a situation of unauthorized races. Interpretation of criminal statutes. In dubio pro reo principle. Principle of proportionality. Prohibition of insufficient protection of legal interests.

  • SUMRIO

    INTRODUO ______ 09

    1 A LEI N 12.971/2014 E O PERFIL DOGMTICO DA MORTE CULPOSA NO

    TRNSITO EM SITUAO DE RACHA ______14

    1.1 As alteraes no tipo de homicdio culposo no trnsito _______ 15

    1.2 As alteraes no tipo de participao em competio automobilstica no

    autorizada (racha) ______19

    1.3 A dupla tipificao da morte culposa em situao de racha _______24

    2 A RESPOSTA DA HERMENUTICA TRADICIONAL PARA A DUPLA

    TIPIFICAO DA MORTE CULPOSA NO TRNSITO EM SITUAO DE

    RACHA ______ 31

    2.1 O sentido e a importncia da mens legislatoris ______ 31

    2.2 O sentido e a importncia da mens legis _______32

    2.3 O sentido e a importncia do in dubio pro reo _______37

    3 A RESPOSTA DA HERMENUTICA CONSTITUCIONAL CONTEMPORNEA

    PARA A DUPLA TIPIFICAO DA MORTE CULPOSA NO TRNSITO EM

    SITUAO DE RACHA____________________________________________50

    3.1 O Direito Penal e a dupla dimenso das normas constitucionais de direitos

    fundamentais: perspectivas subjetiva e objetiva ______51

    3.2 O Direito Penal e a dupla face do princpio da proporcionalidade: a vedao

    do excesso e a proibio de proteo insuficiente_______________________54

    3.3 O controle de constitucionalidade pela via da proporcionalidade da Lei n

    12.971/2014_______________________________________________________57

    CONCLUSO _______64

    REFERNCIAS _______68

  • 9

    INTRODUO

    antiga a interveno do Direito no mbito do trnsito e dos transportes.

    A existncia das civilizaes, na forma como as conhecemos, sempre pressups

    algum nvel de circulao espacial de recursos humanos e materiais. As migraes

    populacionais, os intercmbios comerciais, as invases, as viagens e descobertas

    marcam a histria do homem. E onde h vida social, l estar o Direito ainda que em

    um nvel ainda rudimentar.

    O regime jurdico dos transportes ou o Direito de Trnsito serve no

    apenas para fixar as regras adequadas a orientar a ordinria e regular

    movimentao de pessoas, animais, mercadorias e veculos (normas de segurana,

    de proteo, de gesto), como para resolver os conflitos que emergem quando

    ocorrem inevitveis intercorrncias danosas a pessoas e/ou ao patrimnio. Os

    frequentes acidentes explicam porque o Direito de Trnsito uma rea de especial

    interface entre normas administrativas e de responsabilidade civil e penal.

    O quadro desolador, de autntica tragdia humanitria, vivenciado no

    trnsito, na maioria das naes desenvolvidas, tem produzido a percepo de que o

    conjunto normativo existente no suficiente para fazer frente ao incremento da

    complexidade das relaes de transporte, advindas do rpido crescimento

    populacional, do aumento descontrolado da frota veicular e da urbanizao

    acelerada vivenciada nas ltimas dcadas. Essa situao gerou uma crescente

    produo legislativa em matria de trnsito, tornada essa matria em pauta

    prioritria dos polticos dos mais variados espectros ideolgicos, em funo da

    visibilidade que proporciona. Essa produo legislativa alcanou tambm a esfera

    penal, do que so exemplos: a nova Lei Seca (Lei n 11.705 de 2008) e suas

    sucessoras (dentre as quais a Lei n 12.760 de 2012), que tornaram mais rgido o

    tratamento jurdico da embriaguez ao volante.

    O Cdigo de Trnsito Brasileiro possui um captulo apenas para tratar dos

    Crimes de Trnsito. L esto tipificadas diversas condutas delituosas, como o

    homicdio culposo, a leso corporal culposa, a omisso de socorro e outras que

    mereceram tratamento diferenciado quando praticadas em situao de trnsito. O

  • 10

    crime de participao em corrida no autorizada, o popular racha, delito exclusivo

    da legislao de trnsito, tambm se encontra tipificado no referido Captulo.

    Foi com vistas a punir mais severamente a prtica do racha, bem como

    a ocorrncia de leses graves e mortes no trnsito, que o legislador brasileiro editou

    a Lei n 12.971/2014 (oriunda do Projeto de Lei n 2.592/2007 da Cmara dos

    Deputados), de 09 de maio de 2014, aumentando as sanes administrativas

    (amplitude de multas) e alterando a redao tpica e as penas de alguns crimes.

    No que interessa especificamente ao problema a ser destacado na

    presente pesquisa, vale apontar que a Lei parece haver inserido, como se ir

    detalhadamente demonstrar, em dois dispositivos diferentes, mas com quase

    idnticas elementares do tipo, dois crimes de morte culposa em situao de racha,

    atribuindo a cada um deles penas diferentes.

    Assim, como se h de verificar, desde maio de 2014, existiriam dois tipos

    de morte culposa em situao de racha no Brasil. O primeiro estaria inserido como

    forma qualificada do homicdio culposo (art. 302, 2 do CTB), com a pena de dois a

    quatro anos de recluso e o segundo estaria inserido como forma qualificada do

    crime de racha (art. 308, 2 do CTB), com a pena de cinco a dez anos de

    recluso.

    O problema que concretamente se coloca, portanto, na presente pesquisa

    o seguinte: como equacionar juridicamente a questo da dupla tipificao da morte

    culposa no trnsito em situao de racha, introduzida pela Lei n 12.971/2014?

    fcil perceber que, admitindo-se que realmente ocorreu a dupla

    tipificao da mesma infrao penal, a referida Lei produziu uma situao de terrvel

    insegurana jurdica que precisa ser adequadamente enfrentada pela doutrina. A

    existncia de dois tipos criminais, com, praticamente, as mesmas elementares e com

    penas diferentes, produz um enorme risco de incrementar a j injusta seletividade do

    Direito Penal, com indiciamentos, denncias e condenaes variando drasticamente,

    conforme o perfil socioeconmico/racial do acusado, abrindo-se a possibilidade de

    que delegados, promotores e juzes acabem optando por um dos tipos criminais, e

    por sua respectiva pena, de maneira mais ou menos arbitrria e irracional, em

    autntico retorno a um Direito Penal do agente e no do fato. A garantia

    constitucional de que no h crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem

  • 11

    prvia cominao legal (art. 5, inciso XXXIX da Constituio Federal), pressupe

    que a lei penal seja certa, inteligvel, com mbito de incidncia bem definido.

    Essa questo poderia se desdobrar em dois planos, o da aplicao

    normativa, ou seja, o do momento da deciso judicial, da busca de uma soluo

    para o caso concreto e o da fundamentao normativa, ou seja, o do momento da

    produo de uma lei nova. Mas os estreitos limites desta monografia impem a

    opo pela anlise de apenas um dos planos. Optou-se por investigar a questo sob

    o prisma estritamente judicial, do operador do direito, que lida com problemas

    deduzidos em juzo.

    Assim, o que se buscar definir neste trabalho : qual dos dois tipos

    criminais de morte culposa no trnsito em situao de racha dever prevalecer,

    empregando-se os critrios e mtodos clssicos de interpretao da norma penal,

    em cotejo com as novas discusses sobre a vedao da proteo insuficiente de

    bens jurdico-penais?

    Observe-se que, com o intuito de apresentar uma fundada resposta ao

    dilema que se coloca e sem nunca perd-lo de vista, levantar-se-o discusses

    sobre temas prementes, na Teoria do Crime e na Poltica Criminal de hoje, dentre os

    quais: o princpio da proibio da proteo deficiente, bem jurdico-penal e

    controle de constitucionalidade de leis penais e princpio da proporcionalidade e

    normas penais. Tambm se passaro em revista crtica os critrios e mtodos

    tradicionais da interpretao jurdica das normas penais, cunhados no auge do

    liberalismo poltico iluminista, buscando avaliar a sua validade e utilidade presentes,

    em confronto com os modernos imperativos constitucionais de proteo suficiente

    aos bens jurdicos fundamentais e de proporcionalidade legislativa.

    Para levar a cabo essa tarefa, a presente pesquisa se divide em trs

    captulos. No primeiro, ser possvel, traando o perfil dogmtico dos crimes sob

    anlise, entender-se: como e se, efetivamente, as principais alteraes, introduzidas

    pela Lei n 12.917/2014, resultaram na dupla tipificao da morte culposa em

    situao de racha?

    No segundo, procurar-se- analisar a tramitao legislativa dos Projetos

    que resultaram na Lei n 12.971/2014 para definir, se possvel, qual foi a inteno do

    legislador (mens legislatoris). O referido trabalho factvel e no apresenta maiores

    dificuldades, uma vez que o mapeamento de todo o processo legislativo j levado

    a cabo pela assessoria tcnica de ambas as casas do Congresso Nacional e pode

  • 12

    ser acompanhado nos respectivos endereos eletrnicos. Como no se trata aqui de

    fazer anlise de discurso dos textos dos autores das proposies, mas de simples

    colheita das justificativas apresentadas nos Projetos e nos relatrios das Comisses

    de Mrito, com a finalidade de identificar eventual inteno bem definida do

    legislador penal, para apoiar a atividade de fixao do sentido da mudana

    normativa, que o foco deste trabalho, no se faz necessrio nenhum tratamento

    metodolgico prvio especial dos dados a serem coletados. Trata-se de simples

    interpretao de textos.

    Verificar-se- ainda se possvel equacionar o problema da dupla

    tipificao da morte culposa no trnsito com base nos critrios e mtodos

    tradicionais de interpretao da norma penal, para definir, se possvel, a inteno

    objetivada na lei (mens legis).

    E, por ltimo, tendo-se em vista o resultado interpretativo obtido no captulo

    anterior, ser preciso contextualizar as modernas discusses em torno dos limites do

    controle de constitucionalidade de normas penais com fundamento no princpio da

    proporcionalidade, analisando se ser possvel afastar a resposta fornecida pelos

    mtodos tradicionais de hermenutica com base no princpio da vedao da

    proteo insuficiente/deficiente de bens jurdico-penais.

    Acreditamos que o impasse interpretativo introduzido pela Lei n

    12.971/2014 apenas um exemplo significativo, e particularmente aberrante, no

    ordenamento jurdico brasileiro, do embate, que se torna cada vez mais frequente,

    entre os critrios liberais clssicos de interpretao e os imperativos de garantia

    positiva dos bens jurdico-penais de modo proporcional a sua estatura na ordem de

    valores constitucional.

    Como se props a pr em debate dois paradigmas de interpretao, com

    foco no problema anteriormente apresentado, o ncleo da pesquisa se desenrola por

    meio, essencialmente, de um trabalho de reviso sistemtica da bibliografia sobre o

    assunto. Por meio da reviso bibliogrfica, ser possvel traar um panorama de

    ambos os esquemas interpretativos cotejados e submet-los anlise crtica,

    sempre com vistas ao equacionamento da questo jurdica especfica posta em

    discusso, da dupla tipificao da morte culposa no trnsito em situao de racha.

    A seleo do material de pesquisa tambm levou em conta os estreitos limites desta

    obra, de cunho monogrfico, que no poder ter a pretenso de esgotar o assunto e

  • 13

    nem de fornecer um apanhado completo de todos os temas abordados, mas apenas

    de refletir de forma concreta, crtica e propositiva acerca do problema discutido.

    A hiptese que se pretende verificar com a presente investigao, como j

    referido : dever ser afastado o resultado interpretativo produzido pelos parmetros

    tradicionais da hermenutica penal liberal, por no ser a soluo mais adequada da

    perspectiva de uma orientao comunitarista do conceito de bem jurdico, que

    pressupe um dever do Estado de assegurar-lhe proteo suficiente na ordem de

    valores da Constituio?

  • 14

    1 A LEI N 12.971/2014 E O PERFIL DOGMTICO DA MORTE CULPOSA NO

    TRNSITO EM SITUAO DE RACHA

    A Lei n 12.971, de 09 de maio de 2014, alterou o Cdigo de Trnsito

    Brasileiro, Lei n 9.503/1997, introduzindo alteraes nos tipos de quatro delitos j

    previstos na legislao de trnsito (leso e morte culposa no trnsito, embriaguez ao

    volante e a participao em disputas automobilsticas no autorizadas, vulgarmente,

    conhecida como racha), bem como incrementando as sanes administrativas

    correspondentes s infraes associadas a esses mesmos delitos.

    A Lei n 12.971/2014 previu um perodo de vacatio legis, programando a

    sua entrada em vigor apenas a partir do dia 01 de novembro de 2014. No custa

    lembrar que a lei no teve eficcia nesse perodo de suspenso de sua vigncia

    nem mesmo para beneficiar o ru, segundo entendimento do STF1, uma vez que o

    referido interstcio de prova pressupe a possibilidade de que a norma seja

    revogada. O que no impede, no entanto, a eficcia retroativa da lex melior,

    afetando inclusive os fatos praticados no perodo de vacncia, quando efetivamente

    entrar em vigor o diploma legislativo, conforme regra corriqueira de aplicao e

    interpretao das normas penais, que reflete um dos corolrios do princpio da

    legalidade2.

    As alteraes estritamente administrativas, como j se referiu,

    correspondem a um substancioso incremento das sanes pecunirias (multas) dos

    seguintes ilcitos administrativos: disputar corrida, promover ou participar de

    competio de percia em manobra de veculo sem autorizao, ultrapassagem na

    contramo, ultrapassagem em local imprprio e passagem forada entre veculos

    que transitam em sentidos opostos (CAVALCANTE, 2014).

    1 STF - Inq: 1879 DF, Relator: ELLEN GRACIE, Data de Julgamento: 10/09/2003, Tribunal Pleno,

    Data de Publicao: DJ 07-05-2004 PP-00008 EMENT VOL-02150-01 PP-00028). 2 CONSTITUIO DA REPBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988

    Art. 5. [...] XL - a lei penal no retroagir, salvo para beneficiar o ru; DECRETO-LEI N

    o 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940.

    Art. 2 - Ningum pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execuo e os efeitos penais da sentena condenatria. (Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) Pargrafo nico - A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentena condenatria transitada em julgado. (Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984)

  • 15

    O objeto deste estudo, no entanto, analisar apenas as alteraes

    introduzidas pela Lei n 12.971/2014, nos crimes de homicdio culposo e de racha,

    em especial, para propor uma soluo jurdica para a dupla tipificao, produzida

    pelo diploma, da morte culposa no trnsito, em situao de racha.

    1.1 As alteraes no tipo de homicdio culposo no trnsito

    O crime de homicdio culposo no trnsito, previsto no artigo 302 do

    Cdigo de Trnsito, apresenta a seguinte redao, aps as recentes alteraes:

    Art. 302. Praticar homicdio culposo na direo de veculo automotor: Penas - deteno, de dois a quatro anos, e suspenso ou proibio de se obter a permisso ou a habilitao para dirigir veculo automotor. 1

    o No homicdio culposo cometido na direo de veculo automotor, a

    pena aumentada de 1/3 (um tero) metade, se o agente: (Includo pela Lei n 12.971, de 2014) I - no possuir Permisso para Dirigir ou Carteira de Habilitao; (Includo pela Lei n 12.971, de 2014) II - pratic-lo em faixa de pedestres ou na calada; (Includo pela Lei n 12.971, de 2014) III - deixar de prestar socorro, quando possvel faz-lo sem risco pessoal, vtima do acidente; (Includo pela Lei n 12.971, de 2014) IV - no exerccio de sua profisso ou atividade, estiver conduzindo veculo de transporte de passageiros. (Includo pela Lei n 12.971, de 2014) 2

    o Se o agente conduz veculo automotor com capacidade psicomotora

    alterada em razo da influncia de lcool ou de outra substncia psicoativa que determine dependncia ou participa, em via, de corrida, disputa ou competio automobilstica ou ainda de exibio ou demonstrao de percia em manobra de veculo automotor, no autorizada pela autoridade competente: (Includo pela Lei n 12.971, de 2014) Penas - recluso, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e suspenso ou proibio de se obter a permisso ou a habilitao para dirigir veculo automotor. (Includo pela Lei n 12.971, de 2014)

    Observe-se que a redao do tipo bsico, bem como a suas penas

    (deteno de dois a quatro anos e proibio ou suspenso de se obter a permisso

    ou a habilitao para dirigir veculo automotor) foram mantidas. Trata-se de um crime

    culposo, que, portanto, sempre ensejar a substituio da pena privativa de

    liberdade pela restritiva de direitos, cumpridos os outros requisitos da legislao

    penal (ser o ru primrio e fazendo-se presentes as outras circunstncias pessoais

    que recomendam a substituio). 3

    3 DECRETO-LEI N

    o 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940.

  • 16

    As causas de aumento de pena, que antes compunham o pargrafo nico

    do artigo 302 foram mantidas, passando a constituir os incisos do 1. A verdadeira

    modificao introduzida pela Lei n 12.971 consta do novo 2 do artigo 302.

    Pretendeu-se tipificar duas formas qualificadas do delito de homicdio culposo

    previsto no caput: quando o condutor do veculo se encontrar com a sua capacidade

    psicomotora alterada em razo de embriaguez alcolica ou causada por outra

    substncia entorpecente ou ainda quando o homicdio ocorrer no contexto de uma

    corrida, disputa, competio automobilstica ou demonstrao de percia em

    manobra de veculos no permitida pela autoridade de trnsito, o que caracteriza a

    situao configuradora do crime de racha.

    As formas qualificadas de homicdio culposo no trnsito, no entanto,

    receberam a mesma pena de sua forma simples: de dois a quatro anos de priso. O

    fato de o termo deteno, empregado no caput, haver sido substitudo por

    recluso no faz nenhuma diferena, a no ser de carter simblico. Com uma

    pena igual ou inferior a quatro anos de priso e um ru primrio, o regime de

    cumprimento de pena ser o aberto/domiciliar, independentemente, de se tratar de

    recluso ou deteno. Na lgica do Cdigo Penal vigente, a nica diferena

    significativa entre a recluso e a deteno que apenas para crimes aos quais se

    comine a recluso possvel se impor o regime fechado de cumprimento da pena

    privativa de liberdade. Mas tambm caber, desde o incio, para condenados no

    reincidentes a uma pena igual ou menor que quatro anos o regime aberto, at

    porque a fixao do regime aberto no guarda relao com a espcie de pena

    (recluso ou deteno), mas com a quantidade de pena (at 04 anos). 4 E essa pena

    Art. 44. As penas restritivas de direitos so autnomas e substituem as privativas de liberdade, quando: (Redao dada pela Lei n 9.714, de 1998) I aplicada pena privativa de liberdade no superior a quatro anos e o crime no for cometido com violncia ou grave ameaa pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo; (Redao dada pela Lei n 9.714, de 1998) II o ru no for reincidente em crime doloso; (Redao dada pela Lei n 9.714, de 1998) III a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstncias indicarem que essa substituio seja suficiente. (Redao dada pela Lei n 9.714, de 1998) 4 DECRETO-LEI N

    o 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940.

    Art. 33 - A pena de recluso deve ser cumprida em regime fechado, semiaberto ou aberto. A de deteno, em regime semiaberto, ou aberto, salvo necessidade de transferncia a regime fechado. (Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) 1 - Considera-se: (Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) a) regime fechado a execuo da pena em estabelecimento de segurana mxima ou mdia; b) regime semiaberto a execuo da pena em colnia agrcola, industrial ou estabelecimento similar; c) regime aberto a execuo da pena em casa de albergado ou estabelecimento adequado.

  • 17

    de priso em regime aberto ser quase sempre substituda por uma restritiva de

    direitos (art. 44 do CP) ou suspensa, nos termos do artigo 77 do Cdigo Penal5, o

    que significa que a referida alterao no representa nada em termos de incremento

    do rigor punitivo.

    Alm de no ter havido agravamento de pena, por ter sido mantida a

    mesma escala punitiva do preceito secundrio da forma simples, a previso da

    forma qualificada de homicdio culposo no trnsito em situao de embriaguez

    impede que a morte culposa e a embriaguez ao volante sejam tratadas como crimes

    autnomos, do modo que vinha fazendo parcela da jurisprudncia, ora entendendo

    que se tratava de concurso formal, ora material, entre os dois delitos, embora o

    entendimento majoritrio na jurisprudncia j fosse o de que haveria consuno, o

    crime de dano absorvendo o crime de perigo concreto6.

    Afastada a possibilidade de concurso, ao crime de homicdio que,

    ademais de ser culposo, tem pena mxima igual a quatro anos, falta base legal para

    a decretao da priso preventiva, nos termos dos artigos 312 e 313 do Cdigo de

    2 - As penas privativas de liberdade devero ser executadas em forma progressiva, segundo o mrito do condenado, observados os seguintes critrios e ressalvadas as hipteses de transferncia a regime mais rigoroso: (Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) a) o condenado a pena superior a 8 (oito) anos dever comear a cumpri-la em regime fechado; b) o condenado no reincidente, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e no exceda a 8 (oito), poder, desde o princpio, cumpri-la em regime semiaberto; c) o condenado no reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos, poder, desde o incio, cumpri-la em regime aberto. 3 - A determinao do regime inicial de cumprimento da pena far-se- com observncia dos critrios previstos no art. 59 deste Cdigo. (Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) 4

    o O condenado por crime contra a administrao pblica ter a progresso de regime do

    cumprimento da pena condicionada reparao do dano que causou, ou devoluo do produto do ilcito praticado, com os acrscimos legais. (Includo pela Lei n 10.763, de 12.11.2003) 5 DECRETO-LEI N

    o 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940.

    Art. 77 - A execuo da pena privativa de liberdade, no superior a 2 (dois) anos, poder ser suspensa, por 2 (dois) a 4 (quatro) anos, desde que: (Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) I - o condenado no seja reincidente em crime doloso; (Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) II - a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstncias autorizem a concesso do benefcio;(Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) III - No seja indicada ou cabvel a substituio prevista no art. 44 deste Cdigo. (Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) 1 - A condenao anterior a pena de multa no impede a concesso do benefcio.(Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) 2

    o A execuo da pena privativa de liberdade, no superior a quatro anos, poder ser suspensa, por

    quatro a seis anos, desde que o condenado seja maior de setenta anos de idade, ou razes de sade justifiquem a suspenso. (Redao dada pela Lei n 9.714, de 1998) 6 TJ-DF - APR: 260502720108070007 DF 0026050-27.2010.807.0007, Relator: ROBERVAL

    CASEMIRO BELINATI, Data de Julgamento: 22/03/2012, 2 Turma Criminal, Data de Publicao: 30/03/2012, DJ-e Pg. 204 e STJ Resp 629,087/MG, 5 Turma, Relator Ministro Arnaldo da Fonseca, Julgado em 7/4/2005, DJ de 9-5-2005, p. 462.

  • 18

    Processo Penal7, devendo ser o indiciado ou acusado liberado provisoriamente com

    ou sem fiana. A priso em flagrante delito cabvel, mas dificilmente pode ser

    mantida, uma vez que o suspeito, aps ser detido e conduzido Delegacia, poder

    ter a sua fiana arbitrada pela autoridade policial, segundo o disposto no artigo 322

    do diploma processual penal8.

    O crime de leso corporal culposa do artigo 303 do Cdigo de Trnsito9

    no foi modificado, apenas alterando-se a meno topogrfica s causas de

    aumento de pena (de um tero metade), que so as mesmas do homicdio

    culposo.

    O crime de embriaguez ao volante do artigo 30610 tambm sofreu

    pequenas alteraes com a Lei n 12.917/2014. Inseriu-se, em seu pargrafo

    7 DECRETO-LEI N 3.689, DE 3 DE OUTUBRO DE 1941.

    Art. 312. A priso preventiva poder ser decretada como garantia da ordem pblica, da ordem econmica, por convenincia da instruo criminal, ou para assegurar a aplicao da lei penal, quando houver prova da existncia do crime e indcio suficiente de autoria. (Redao dada pela Lei n 12.403, de 2011). Pargrafo nico. A priso preventiva tambm poder ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigaes impostas por fora de outras medidas cautelares (art. 282, 4

    o). (Includo

    pela Lei n 12.403, de 2011). Art. 313. Nos termos do art. 312 deste Cdigo, ser admitida a decretao da priso preventiva: (Redao dada pela Lei n 12.403, de 2011). I - nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade mxima superior a 4 (quatro) anos; (Redao dada pela Lei n 12.403, de 2011). II - se tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentena transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Decreto-Lei n

    o 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Cdigo

    Penal; (Redao dada pela Lei n 12.403, de 2011). III - se o crime envolver violncia domstica e familiar contra a mulher, criana, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficincia, para garantir a execuo das medidas protetivas de urgncia; (Redao dada pela Lei n 12.403, de 2011). IV - (Revogado pela Lei n 12.403, de 2011). Pargrafo nico. Tambm ser admitida a priso preventiva quando houver dvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta no fornecer elementos suficientes para esclarec-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade aps a identificao, salvo se outra hiptese recomendar a manuteno da medida. (Includo pela Lei n 12.403, de 2011). 8 DECRETO-LEI N 3.689, DE 3 DE OUTUBRO DE 1941.

    Art. 322. A autoridade policial somente poder conceder fiana nos casos de infrao cuja pena privativa de liberdade mxima no seja superior a 4 (quatro) anos. (Redao dada pela Lei n 12.403, de 2011). Pargrafo nico. Nos demais casos, a fiana ser requerida ao juiz, que decidir em 48 (quarenta e oito) horas. (Redao dada pela Lei n 12.403, de 2011). 9 LEI N 9.503, DE 23 DE SETEMBRO DE 1997.

    Art. 303. Praticar leso corporal culposa na direo de veculo automotor: Penas - deteno, de seis meses a dois anos e suspenso ou proibio de se obter a permisso ou a habilitao para dirigir veculo automotor. Pargrafo nico. Aumenta-se a pena de 1/3 (um tero) metade, se ocorrer qualquer das hipteses do 1

    o do art. 302. (Redao dada pela Lei n 12.971, de 2014)

    10 LEI N 9.503, DE 23 DE SETEMBRO DE 1997.

    Art. 306. Conduzir veculo automotor com capacidade psicomotora alterada em razo da influncia de lcool ou de outra substncia psicoativa que determine dependncia: (Redao dada pela Lei n 12.760, de 2012)

  • 19

    segundo, a possibilidade de constatao da presena de substncia psicoativa

    distinta de lcool por meio de exame toxicolgico, o que j no era vedado pelo

    ordenamento, lembrando-se que so admitidos todos os meios de prova no

    considerados ilcitos ou imorais11. A outra novidade, contida no pargrafo terceiro,

    a determinao de que o CONTRAN disponha, por meio de resolues, sobre a

    unificao e a equivalncia dos exames toxicolgicos para determinao da

    configurao do delito do art. 306.

    1.2 As alteraes no tipo de participao em competio automobilstica no

    autorizada (racha)

    O crime de participao em competio no autorizada, o racha,

    previsto no artigo 308 do Cdigo de Trnsito Brasileiro, passou a viger com a

    seguinte redao:

    Penas - deteno, de seis meses a trs anos, multa e suspenso ou proibio de se obter a permisso ou a habilitao para dirigir veculo automotor. 1

    o As condutas previstas no caput sero constatadas por: (Includo pela Lei n 12.760, de 2012)

    I - concentrao igual ou superior a 6 decigramas de lcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de lcool por litro de ar alveolar; ou (Includo pela Lei n 12.760, de 2012) II - sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo CONTRAN, alterao da capacidade psicomotora. (Includo pela Lei n 12.760, de 2012) 2

    o A verificao do disposto neste artigo poder ser obtida mediante teste de alcoolemia ou

    toxicolgico, exame clnico, percia, vdeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito contraprova. (Redao dada pela Lei n 12.971, de 2014) 3

    o O CONTRAN dispor sobre a equivalncia entre os distintos testes de alcoolemia ou

    toxicolgicos para efeito de caracterizao do crime tipificado neste artigo. (Redao dada pela Lei n 12.971, de 2014) 11

    DECRETO-LEI N 3.689, DE 3 DE OUTUBRO DE 1941. Art. 157. So inadmissveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilcitas, assim entendidas as obtidas em violao a normas constitucionais ou legais. (Redao dada pela Lei n 11.690, de 2008) 1

    o So tambm inadmissveis as provas derivadas das ilcitas, salvo quando no evidenciado o

    nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras. (Includo pela Lei n 11.690, de 2008) 2

    o Considera-se fonte independente aquela que por si s, seguindo os trmites tpicos e de praxe,

    prprios da investigao ou instruo criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova. (Includo pela Lei n 11.690, de 2008) 3

    o Preclusa a deciso de desentranhamento da prova declarada inadmissvel, esta ser inutilizada

    por deciso judicial, facultado s partes acompanhar o incidente. (Includo pela Lei n 11.690, de 2008) LEI N

    o 5.869, DE 11 DE JANEIRO DE 1973.

    Art. 332. Todos os meios legais, bem como os moralmente legtimos, ainda que no especificados neste Cdigo, so hbeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ao ou a defesa.

  • 20

    Art. 308. Participar, na direo de veculo automotor, em via pblica, de corrida, disputa ou competio automobilstica no autorizada pela autoridade competente, gerando situao de risco incolumidade pblica

    ou privada: (Redao dada pela Lei n 12.971, de 2014) Penas - deteno, de 6 (seis) meses a 3 (trs) anos, multa e suspenso ou proibio de se obter a permisso ou a habilitao para

    dirigir v eculo automotor. (Redao dada pela Lei n 12.971, de 2014)

    1o Se da prtica do crime previsto no caput resultar leso corporal de

    natureza grave, e as circunstncias demonstrarem que o agente no quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade de recluso, de 3 (trs) a 6 (seis) anos, sem prejuzo das outras penas

    previstas neste artigo. (Includo pela Lei n 12.971, de 2014) 2

    o Se da prtica do crime previsto no caput resultar morte, e as circunstncias demonstrarem que o agente no quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade de recluso de 5 (cinco) a 10 (dez) anos, sem prejuzo das outras penas previstas neste

    artigo. (Includo pela Lei n 12.971, de 2014)

    A prtica de disputas automobilsticas no autorizadas, tipificada no artigo

    308, conhecida como racha, antes era enquadrada como mera contraveno penal

    de direo perigosa (LCP, art. 34) 12, mas o crescimento do nmero de acidentes

    causados por essas competies levou o legislador do Cdigo de Trnsito a tipific-

    las especificamente como crime, j na sua redao original.

    Trata-se de crime que visa tutela da segurana viria, bem como da

    incolumidade das pessoas e de seu patrimnio, em especial, nas suas formas

    qualificadas, quando, culposamente, resultar em morte ou leso corporal grave. O

    referido delito pressupe o concurso de vrios motoristas, visto que no poderia

    haver corrida, disputa ou competio praticada por um nico agente, nem exibio

    de percia sem competidores, ainda que cada performance seja individual ou feita

    separadamente. Um sujeito isolado responderia pela contraveno da direo

    perigosa ou, a depender do contexto, pelo crime do artigo 311 do Cdigo de

    Trnsito13.

    12

    DECRETO-LEI N 3.688, DE 03 DE OUTUBRO DE 1941. Art. 34. Dirigir veculos na via pblica, ou embarcaes em guas pblicas, pondo em perigo a segurana alheia: Pena priso simples, de quinze das a trs meses, ou multa, de trezentos mil ris a dois contos de ris. 13

    LEI N 9.503, DE 23 DE SETEMBRO DE 1997. Art. 311. Trafegar em velocidade incompatvel com a segurana nas proximidades de escolas, hospitais, estaes de embarque e desembarque de passageiros, logradouros estreitos, ou onde haja grande movimentao ou concentrao de pessoas, gerando perigo de dano: Penas - deteno, de seis meses a um ano, ou multa.

  • 21

    O delito pressupe que se produza risco incolumidade pblica ou

    privada. A anterior dico legal mencionava dano potencial incolumidade pblica

    ou privada, expresso atcnica, mas que queria significar a produo de uma

    situao de perigo concreto a bens jurdicos, o que mais claramente entendido

    com a linguagem atualmente empregada. Dispensa-se a prova de que uma pessoa

    determinada foi exposta a perigo, impondo-se apenas a comprovao da

    potencialidade lesiva concreta da competio (ANDREUCCI, 2013, p. 79). Ou seja,

    no se presume o perigo, ele deve ser demonstrado, porm no preciso que se

    identifique e se indique um sujeito passivo especfico. Se h de convir que, desde o

    incio, no se poderia interpretar dano potencial como sendo algo diferente de um

    perigo de dano.

    Sobre a troca dessa fraseologia SILVA (2014) defende um entendimento

    bastante diferente. Segundo ele:

    Levando-se em conta que a inteno do legislador foi caminhar pelo enrijecimento do rigor punitivo desta norma penal, entendemos que a substituio de tais expresses teve por objetivo deixar claro que o crime do artigo 308 do CTB de perigo abstrato, pois fala em risco, e no dano potencial. Alis, dano potencial uma expresso mais forte, vale dizer, demonstra que a situao de portabilidade de dano concreta (crime de perigo concreto), e dentro do iter criminis, est mais prximo do resultado danoso, ao passo que gerar situao de risco algo que est um pouco mais longe de se concretizar (perigo abstrato).

    Em que pesem tais assertivas, convm destacar o entendimento

    jurisprudencial consolidado em sentido contrrio, refletido no seguinte julgado do

    Superior Tribunal de Justia, e ainda plenamente aplicvel, a despeito da alterao

    legislativa, como se h de justificar:

    PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. RACHA. CRIME DE PERIGO CONCRETO. DEMONSTRAO DA POTENCIALIDADE LESIVA. OCORRNCIA. SUBSTITUIO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVA DE DIREITOS. LEI N 9.714/98. AUSNCIA DE REQUISITO SUBJETIVO. I - O delito de racha previsto no art. 308 da Lei n 9.503/97, por ser de perigo concreto, necessita, para a sua configurao, da demonstrao da potencialidade lesiva, o que restou indicada na condenao guerreada. II - Para que o ru seja beneficiado com a substituio da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, indispensvel o preenchimento dos requisitos objetivos e subjetivos constantes do art. 44 do Cdigo Penal. Recurso desprovido

  • 22

    (STJ - REsp: 585345 PB 2003/0130699-1, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 16/12/2003, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicao: DJ 16.02.2004 p. 342)

    Esse precedente ainda vlido, sem dvidas, pois possvel inferir que

    as expresses dano potencial e risco so sinnimos. Dano potencial no dano

    efetivo, real e, portanto, no pode ser algo diferente do risco. O que diferencia o

    crime de perigo concreto do de perigo abstrato que o primeiro exige a

    comprovao do risco para o bem protegido e no segundo h uma presuno legal

    do perigo. Assim, mesmo com a alterao legal, dever prevalecer o entendimento

    de que o racha continua a ser crime de perigo concreto14, at mesmo porque

    emenda legislativa (de autoria do Senador Pedro Taques) que objetivava deixar

    expresso que o delito passaria a ser considerado de perigo abstrato foi rejeitada

    (CAVALCANTI, 2014).

    Em sua redao originria, o Cdigo de Trnsito Brasileiro previa que se

    aplicavam ao crime de participar em competio no autorizada os institutos da Lei

    n 9.099 de 26 de setembro de 1995, como a composio civil e a transao penal,

    bem como a necessidade de representao para a propositura da ao penal

    pblica, no caso de resultarem leses corporais culposas. Tambm, em virtude da

    aplicao da Lei dos Juizados Especiais, no eram instaurados inquritos policiais

    para a apurao desse crime, lavrando-se simples termo circunstanciado,

    assumindo o autor o compromisso de comparecer em juzo, na data designada.

    A Lei n 11.705, de 19 de junho de 2008, passou a dispor que os

    sobreditos benefcios da Lei dos Juizados Especiais j no mais teriam lugar no

    caso de crimes de leso corporal culposa que ocorressem em situao de corrida,

    disputa ou competio automobilstica, de exibio ou demonstrao de percia em

    manobra de veculo automotor, praticada em via pblica. A ao passou a ser

    pblica e incondicionada. Hoje, com a elevao da pena mxima cominada em

    abstrato da figura tpica bsica do racha para trs anos, no se est a tratar de

    delito de menor potencial ofensivo, no devendo mais ser lavrado termo

    circunstanciado de ocorrncia e sendo cabvel a priso em flagrante delito. A pena

    mnima cominada de seis meses, no entanto, continua a autorizar a suspenso

    14

    [...] O art. 308 do CTB crime doloso de perigo concreto [...] (STJ, 1 Turma. HC 101.698, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 18/10/2011).

  • 23

    condicional do processo, aps a denncia, cumpridos os requisitos da Lei n 9.099

    de 1995.

    Para o crime de racha, a lei impe a aplicao da pena principal de

    suspenso ou proibio da permisso ou habilitao para dirigir veculo, entre o

    mnimo de 02 (dois) meses e o mximo de 05 (cinco) anos, combinada com a pena

    privativa de liberdade e, a depender da hiptese concreta, tambm com a pena

    pecuniria.

    O fato delituoso de participar em competio no autorizada, tipificado no

    art. 308 do CTB, s fica configurado se ocorrer em via pblica, e no em qualquer

    via terrestre do territrio nacional aberta circulao. Assim, caso a conduta seja

    praticada em vias particulares, como por exemplo: estacionamentos privados, vias

    internas de propriedades rurais ou ptios de garagens e postos de gasolina

    (ANDREUCCI, 2013), deve ser considerada atpica.

    A Lei n 12.971/2014 introduziu ainda formas qualificadas do crime de

    racha, quando resultar leso corporal grave ou morte culposa, com penas de 03 a

    06 anos e de 05 a 10 anos de recluso, respectivamente. A introduo de duas

    figuras qualificadas preterdolosas ao art. 308 parece, primeira vista, representar

    um agravamento da punio dos condutores que participam de competies no

    autorizadas. No entanto, como a jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal estava

    se encaminhando para reconhecer, quase sempre, o tipo subjetivo de dolo eventual

    nos crimes de homicdio e leso grave praticados no contexto de um racha 15, a

    incluso de formas qualificadas pelo resultado culposo d novo flego para a tese

    dos que defendiam estar configurada nessas hipteses a culpa consciente, o que

    acaba por beneficiar os mesmos sujeitos que se queria punir mais gravemente.

    Aqui surge o maior problema da Lei n 12.971/2014: o crime de racha em

    que houver resultado morte decorrente de culpa tem hiptese ftica quase idntica

    forma qualificada de homicdio culposo do art. 302, 2. Trata-se de dupla tipificao

    da mesma hiptese ftica com penas diversas.

    15

    STF HC: 91159 MG, Relator: ELLEN GRACIE, Data de Julgamento: 02/09/2008, Segunda Turma, Data de Publicao: DJe-202 DIVULG 23-10-2008 PUBLIC 24-10-2008 EMENT VOL-02338-02 PP-00281.

  • 24

    1.3 A dupla tipificao da morte culposa em situao de racha

    De fato, com uma simples leitura dos artigos 302, 2, segunda parte e

    308, 2, do Cdigo de Trnsito Brasileiro, verifica-se que as elementares que

    compem ambos os delitos so virtualmente indistinguveis. Ambos os crimes

    acontecem em situao de racha, vale dizer, quando o condutor participar, na

    direo de veculo automotor, de corrida, disputa ou competio automobilstica no

    autorizada pela autoridade competente. As diferenas entre os descritores dos dois

    tipos no so relevantes.

    De fato, embora o pargrafo segundo do artigo 302 contenha a expresso

    ou ainda [participar] de exibio ou demonstrao de percia em manobra de

    veculo automotor, percebe-se que, muito raramente, a referida exibio de percia

    ocorrer fora do contexto de uma disputa ou competio automobilstica. No

    existe demonstrao de percia sem platia, exibio sem pblico e, dificilmente,

    essas prticas seriam realizadas por um condutor isolado, agindo sozinho,

    procurando admirao de transeuntes aleatrios. Trata-se sim de uma modalidade

    de competio no autorizada, em que no est em disputa a velocidade dos

    participantes ou o tempo em que completam um percurso, mas sim a percia em

    manobras arriscadas, conduta j includa, portanto, na previso do caput do artigo

    308. A hiptese do exibicionista isolado, praticando o delito de racha, tanto no faz

    sentido que o tipo fala de participar em exibio ou demonstrao e no em exibir

    ou demonstrar.

    Outra diferena, de pouca monta, que, enquanto o crime de racha,

    como j referido, pune a conduta praticada em via pblica, a forma qualificada do

    homicdio culposo em situao de racha, tambm se aplica s vias, sem maiores

    qualificaes. Registre-se que as disposies do Cdigo de Trnsito Brasileiro,

    como j referido, aplicam-se ao trnsito de qualquer natureza nas vias terrestres do

    territrio nacional abertas circulao. So vias terrestres urbanas e rurais as ruas,

    as avenidas, os logradouros, os caminhos, as passagens, as estradas e as rodovias,

    a elas se equiparando ainda as praias abertas circulao e as vias internas de

    condomnios constitudos por unidades autnomas. 16

    16

    LEI N 9.503, DE 23 DE SETEMBRO DE 1997

  • 25

    Percebe-se que, pela lgica do Cdigo de Trnsito, nem toda via aberta

    circulao via pblica. Existem vias particulares abertas circulao. Assim,

    quando competies automobilsticas no autorizadas ocorrerem em vias privadas,

    no estar configurado o crime de racha do artigo 308 do Cdigo de Trnsito, mas,

    caso ocorra uma morte culposa, poder incidir a forma qualificada do homicdio

    culposo em situao de racha. Uma tcnica legislativa verdadeiramente

    desastrosa. De qualquer forma, a hiptese referida, de incidncia isolada do tipo de

    homicdio culposo qualificado , por bvio, bastante rara e no diminui o fato de que,

    na imensa maioria dos casos, haver conflito entre ambos os tipos.

    Est claro tambm que, em termos de objetividade jurdica, os crimes de:

    racha com resultado morte culposa e de morte culposa em situao de racha

    tutelam o mesmo bem: a vida dos sujeitos participantes do trnsito. E, nos dois tipos

    criminais, a culpa, que provoca a produo do resultado morte, aquela cujas

    modalidades esto especificadas no artigo 18, inciso II, do Cdigo Penal

    (imprudncia, negligncia e impercia)17. A sua definio a mesma da teoria geral

    do delito: a ao humana voluntria que produz, de forma no intencional, o

    resultado tpico, por meio de uma quebra de dever de cuidado, cujas consequncias,

    embora fossem previsveis, no foram previstas pelo agente ou no foi por ele

    assumido o risco de produzi-las (DOTTI, 2003). De fato, afirmar-se que as

    circunstncias demonstram que o agente no quis o resultado nem assumiu o risco

    de produzi-lo o mesmo que se afirmar que o condutor agiu culposamente.

    Os dois crimes, por bvio, pressupem que o sujeito ativo esteja no

    comando dos mecanismos de controle e velocidade de um veculo automotor

    Art. 1 O trnsito de qualquer natureza nas vias terrestres do territrio nacional, abertas circulao, rege-se por este Cdigo. [...] Art. 2 So vias terrestres urbanas e rurais as ruas, as avenidas, os logradouros, os caminhos, as passagens, as estradas e as rodovias, que tero seu uso regulamentado pelo rgo ou entidade com circunscrio sobre elas, de acordo com as peculiaridades locais e as circunstncias especiais. Pargrafo nico. Para os efeitos deste Cdigo, so consideradas vias terrestres as praias abertas circulao pblica e as vias internas pertencentes aos condomnios constitudos por unidades autnomas. 17

    DECRETO-LEI No 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940.

    Art. 18 - Diz-se o crime: (Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) [...] Crime culposo (Includo pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) II - culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudncia, negligncia ou

    impercia. (Includo pela Lei n 7.209, de 11.7.1984)

  • 26

    (CAPEZ, 2014, p. 306). Quando o autor da imprudncia no estiver na direo de

    veculo automotor, ainda que o fato se passe no trnsito e no contexto de uma

    competio no autorizada, no estaro configuradas as elementares dos crimes do

    Cdigo de Trnsito, mas sim as do homicdio culposo do Cdigo Penal (art. 121,

    3). Observe-se que espectadores e passageiros que venham a estimular a corrida e

    promover o esprito de emulao podero vir a ser responsabilizados na condio de

    partcipes (art. 29 do CP).

    Essa situao de dupla tipificao claramente percebida por Sannini

    Neto e Moraes (2014), em artigo sobre o tema:

    Ocorre que a conduta tpica de causar a morte culposamente quando da participao em corrida, disputa ou competio automobilstica sem autorizao pela autoridade competente se subsume de igual modo ao tipo penal da nova figura qualificada do 2 do art. 302, o qual, porm, comina pena muito inferior, de 2 a 4 anos de recluso, como j apontado. Trata-se de inaceitvel falha na tcnica legislativa. O delito de perigo (racha), por bvio, deve ser absorvido pelos mais graves, de dano (homicdio ou leso corporal).

    Luiz Flvio Gomes (2014) tambm identifica de modo distinto a

    dificuldade trazida pela lei:

    O problema: aqui no art. 308 o resultado morte provocado culposamente aparece como qualificadora do delito de participao em racha. J no art. 302 (homicdio culposo), a participao em racha que o torna qualificado (mais grave). No delito de participao em racha, a morte que o qualifica. No delito de homicdio, a participao no racha que o qualifica. Mas tudo isso a mesma coisa! O mesmo fato foi descrito duas vezes. Na primeira situao (art. 302), a descrio legal foi de trs para frente (morte em virtude do racha) na segunda (art. 308), da frente para trs (racha e depois a morte). Para no haver nenhuma dvida (talvez essa tenha sido a preocupao do emrito legislador), descrevesse o mesmo fato duas vezes. Seria uma mera excrescncia legis (o que j bastante reprovvel), se no fosse o seguinte detalhe: No art. 302 (homicdio culposo em razo de racha) a pena de recluso de dois a quatro anos no art. 308 (racha com resultado morte decorrente de culpa) a pena de cinco a dez anos de recluso! Mesmo fato, com penas diferentes [...].

    Nucci (2014), por sua vez, entende que o referido conflito aparente de

    normas tem fcil soluo: inequivocamente seria aplicado o tipo do homicdio

    culposo qualificado (art. 302, 2), em vez do tipo de racha com resultado morte

    culposa (art. 308, 2), j que o crime, cuja figura tpica bsica de dano (ainda que

  • 27

    culposo), sempre absorveria o crime, cuja figura tpica bsica de perigo concreto,

    ainda que deste resultasse um dano que o agente no quis nem assumiu o risco de

    produzir (crime preterdoloso dolo com relao ao perigo concreto e culpa com

    relao ao dano).

    A resposta para esse imbrglio, no entanto, no to simples quanto

    parece. Mesmo se levando em conta as assertivas de Nucci acima resumidas, no

    h como negar que todas as circunstncias qualificadoras dos tipos so idnticas.

    Em ltima anlise, so criminalizadas duas mortes culposas em situao de racha.

    Trata-se de dois crimes de dano. O bem jurdico tutelado em ambas as formas

    qualificadas a vida, a despeito de as figuras tpicas bsicas, em que as

    qualificadoras esto inseridas, visarem defesa de bens jurdicos diversos. O crime

    de dano consumado s absorve o crime de perigo concreto que lhe anterior, para

    que no haja punio duas vezes pelo menos fato, evitando-se, por razes de

    poltica criminal, que se configurasse um concurso material ou formal de crimes. No

    entanto, tratando-se de um nico delito preterdoloso (seja ele forma qualificada de

    uma figura tpica bsica de dano ou de perigo) no cabe falar de dupla punio pelo

    mesmo fato nem de absoro de crimes. Aqui no cabe a frmula do ne bis in

    idem.

    O desastre produzido pelo legislador penal no se esgota no conflito entre

    os dois tipos. De fato, h uma incongruncia ainda entre a pena cominada ao

    homicdio culposo e a pena abstratamente prevista para a leso corporal culposa

    que resultar de racha. desproporcional cominar-se uma pena maior leso grave

    do que aquela a ser aplicada prpria perda da vida, bem indiscutivelmente mais

    importante que a integridade fsica. Esse tipo de incoerncia, que chega s raias da

    irracionalidade, no se legitima pela discricionariedade do legislador penal, para

    traar as diretrizes de poltica criminal. No extremo, ela demanda a construo de

    uma soluo, tanto quanto a dupla tipificao acima mencionada.

    Sannini Neto e Moraes (2014) sintetizaram as possveis alternativas de

    soluo desse imbrglio, conforme trecho a seguir:

    Com isso, sob um prisma tcnico-jurdico, a soluo apropriada ser aquela mais favorvel ao investigado ou ru, ou seja, o enquadramento na figura qualificada do homicdio culposo do 2, do art. 302, tornando na prtica letra morta o 2 do art. 308 contendo idntica hiptese ftica. Por outro

  • 28

    lado, pode-se argumentar, por meio de uma interpretao teleolgica, que a vontade do legislador, manifestada na Lei n 12.971/2014, foi no sentido de agravar a reprimenda para os casos em que houver morte em virtude da prtica do racha. Assim, para que a inovao legislativa no se torne letra morta, a nica soluo seria a adoo do entendimento em que o crime mais grave, qual seja, o agora previsto no artigo 308, 2, do CTB, absorvesse o crime menos grave, tipificado no artigo 302, 2, do mesmo codex. Tal entendimento pode, inclusive, ser subsidiado pelo princpio da proporcionalidade, mais especificamente na sua esfera de proteo insuficiente, afinal, a conduta daquele que causa a morte de outrem em virtude da prtica do racha de enorme gravidade, constituindo verdadeira afronta sociedade e ao prprio Estado. No mesmo sentido, podemos nos valer do princpio da especialidade para reforar esse entendimento. Ora, se o caput do artigo 308 pune o crime de racha e o seu 2 nos apresenta uma modalidade qualificada desse crime, obvio que essa conduta especfica para aquele caso, devendo, consequentemente, prevalecer sobre a conduta descrita no artigo 302, 2, que genrica. Apenas para ilustrar, caso o tipo penal do artigo 306 trouxesse uma figura qualificada envolvendo morte, esta seria especial em relao ao delito de homicdio previsto no artigo 302, at porque h uma clara distino entre os bens jurdicos em questo. De qualquer modo, tais divergncias to contundentes no ocorreriam se o legislador atuasse com o mnimo de cautela e tcnica jurdica.

    Outra alternativa de interpretao ainda apresentada por Cavalcanti

    (2014), na opinio do qual a nica maneira de valorizar as palavras da lei

    interpretando sistematicamente os seus dispositivos e evitando que caia em desuso

    o tipo mais grave do artigo 308, 2 do Cdigo de Trnsito Brasileiro. Nesse sentido,

    impor-se-ia o entendimento, nos termos da hermenutica jurdica tradicional, de que

    no havendo dispositivos inteis e nem lacunas no ordenamento, tambm no

    poderia haver dupla tipificao, tendo ocorrido, na verdade, a previso de penas

    diversas para condutas diferenciadas pelos graus de culpa. Assim haveria uma

    morte culposa em situao de racha configurada pela culpa consciente (art. 308,

    2) e, portanto, merecedora de punio mais grave e uma configurada pela culpa

    inconsciente (art. 302, 2), sendo-lhe atribuda punio menos severa.

    A referida proposta de interpretao bastante interessante, mas tambm

    apresenta dificuldades de monta. Ambas as formas qualificadas so culposas e, no

    ordenamento jurdico brasileiro, no existem tipos culposos exclusivos de culpa

    consciente ou inconsciente. Na legislao penal, s existe a previso da culpa tout

    court, sem gradaes, nos termos do artigo 18, inciso II, do Cdigo Penal, quando o

    agente der causa ao resultado por imprudncia, negligncia ou impercia, vale dizer,

    quando pelas circunstncias se verificar que ele no quis nem assumiu o risco de

    produzir o resultado.

  • 29

    Os graus de culpa (inconsciente, consciente e gravssima), no sistema da

    Nova Parte Geral do Cdigo Penal de 1984, s tm relevncia como uma das

    circunstncias judiciais do artigo 59 do Cdigo Penal18, para fundamentar, limitar e

    regular a aplicao da pena (GOMES, 2005, p. 75). Em verdade, todos os tipos

    culposos admitem, no caso concreto, a configurao do tipo subjetivo tanto na forma

    da culpa consciente quanto na forma da culpa inconsciente. No a pena

    abstratamente cominada que deve distinguir a graduao das culpas, destinando-se

    a culpa consciente para os crimes culposos mais severamente apenados.

    Atualmente, no existem tipos penais exclusivos para cada grau de culpa.

    Alis, j passou da hora de o legislador criminal prever um tipo exclusivo de culpa

    temerria ou gravssima, precisamente, para essas hipteses de crimes de trnsito

    (racha ou embriaguez) em que a punio na modalidade culposa parece

    insuficiente, produzindo uma sensao de impunidade, enquanto, por outro lado, a

    punio a ttulo de dolo eventual, para a maioria dos casos, seria desproporcionada

    e excessiva. Mas no existe ainda norma posta nesse sentido, embora j existam

    propostas de alterao legislativa semelhana do que consta do Anteprojeto do

    Novo Cdigo Penal (Projeto de Lei do Senado n 236 de 2012) e do Projeto de Lei n

    7.623/2014 da Cmara dos Deputados.

    Entender contrariamente ao aqui defendido seria negar a possibilidade de

    se verificarem homicdios culposos no trnsito em situao de racha com culpa

    consciente e admiti-lo para todas as outras hipteses de homicdio culposo no

    trnsito (embriaguez; na modalidade do tipo bsico; nas hipteses das causas de

    aumento de pena etc.). Essa interpretao no resolve o conflito de normas de uma

    forma justa e coerente e negligencia a anlise das circunstncias do caso concreto,

    nica maneira adequada de se determinar qual a configurao que foi assumida

    18

    DECRETO-LEI No 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940.

    Art. 59 - O juiz, atendendo culpabilidade, aos antecedentes, conduta social, personalidade do agente, aos motivos, s circunstncias e consequncias do crime, bem como ao comportamento da vtima, estabelecer, conforme seja necessrio e suficiente para reprovao e preveno do crime: (Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) I - as penas aplicveis dentre as cominadas; (Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) II - a quantidade de pena aplicvel, dentro dos limites previstos; (Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; (Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984) IV - a substituio da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espcie de pena, se cabvel. (Redao dada pela Lei n 7.209, de 11.7.1984)

  • 30

    pela mens rea, vale dizer, pelos elementos subjetivos do delito. impossvel negar a

    sobreposio de tipos virtualmente idnticos de morte culposa em situao de

    racha.

    As propostas dos autores anteriormente referidas, embora consistam em

    simples esboos, de fato resumem bem os caminhos que podem ser trilhados para

    equacionar a controvrsia da dupla tipificao.

    Em um primeiro momento, seria preciso verificar se, como inicialmente

    afirmado, o emprego dos mtodos tradicionais de hermenutica jurdica resultariam

    em uma resposta satisfatria para a questo. Poderia ser encontrada nos trabalhos

    legislativos a clara demarcao da vontade do legislador (mens legislatoris), a ponto

    de inspirar o intrprete/aplicador da norma? O princpio da especialidade associado

    a uma interpretao sistemtica e topogrfica das normas apresentaria uma

    resposta convincente para a questo? Ou a dificuldade apresentada deveria ser

    enfrentada com o recurso ao princpio do favor rei?

    Em um segundo momento, seria preciso verificar se caberia ao intrprete

    aplicador da norma, com o emprego do princpio da proporcionalidade, como

    parmetro para o controle de constitucionalidade concreto e difuso das normas,

    afastar a incidncia do tipo criminal que conferisse tutela insuficiente ao bem jurdico

    tutelado (a face do princpio da vedao da proteo deficiente), autorizando a

    incidncia da norma mais grave.

  • 31

    2 A RESPOSTA DA HERMENUTICA TRADICIONAL PARA A DUPLA

    TIPIFICAO DA MORTE CULPOSA NO TRNSITO EM SITUAO DE

    RACHA

    O objeto desta pesquisa, como j referido, , essencialmente, um problema

    de interpretao e aplicao da norma penal. Em verdade, a investigao que se

    coloca pode ser desenvolvida a partir do cotejo de dois paradigmas de interpretao:

    um liberal clssico e um constitucionalista de bases axiolgicas e comunitaristas.

    O debate se centra no possvel confronto a ser feito entre o resultado

    interpretativo produzido pelos parmetros tradicionais da hermenutica penal liberal

    e a soluo mais adequada da perspectiva da proteo suficiente dos bens jurdico-

    penais na ordem de valores da Constituio.

    Neste captulo, buscar-se- definir qual a importncia do processo

    legislativo e da inteno original do legislador (mens legislatoris), caso seja possvel

    identific-la, na fixao do alcance atual da norma j posta no mundo jurdico

    (MAXIMILIANO, 2011); bem como se, adotando-se os mtodos consagrados e os

    princpios tradicionais de soluo de um conflito aparente de normas, alcanvel

    uma resposta satisfatria acerca do significado da alterao introduzida pela Lei n

    12.971/2014 (a sua mens). Nesse sentido, ser preciso definir o papel e os limites

    do princpio da interpretao mais benfica (o favor rei) na aplicao de normas

    penais. Seria ele um critrio norteador de toda a hermenutica penal ou apenas

    elemento adicional de interpretao?

    2.1 O sentido e a importncia da mens legislatoris

    A Lei n 12.971/2014 tem origem no Projeto n 2.592/2007, proposto pelo

    Deputado Beto Albuquerque (PSB/RS), em 11 de dezembro de 2007. Na sua

    redao originria, a forma qualificada do homicdio culposo em situao de racha

    tinha pena de recluso de cinco a doze anos. O crime de racha deixava de ser de

    menor potencial ofensivo e passava a ser considerado inafianvel por lei. Colhe-se

    da justificativa do Projeto que:

    Mostra-se, portanto, imperioso modificar o Cdigo de Trnsito Brasileiro para aperfeio-lo com vistas a dar uma resposta adequada aos anseios e

  • 32

    reclames da sociedade pela adoo de medidas pelo Poder Pblico, inclusive na esfera legislativa, que efetivamente contribuam para a segurana no trnsito das cidades e estradas e assegurem punies severas queles que praticam crimes na direo de veculo automotor.

    19

    Fcil perceber que a inteno inicial do legislador era promover um

    incremento de pena para os casos de morte culposa no trnsito em situao de

    racha. As penas da proposta original so inclusive maiores do que as atuais.

    O referido Projeto de Lei foi apensado ao de nmero 308, tambm da

    Cmara dos Deputados, de autoria do Deputado Pompeo de Mattos PDT/RS, o qual

    procurava inserir uma forma qualificada preterdolosa no crime de racha, quando

    resultasse em morte culposa. A pena do referido delito seria de cinco a quinze anos

    de recluso. Na justificativa da referida proposta encontra-se a seguinte defesa das

    mudanas sugeridas:

    Hoje, punido de forma extremamente branda pelo art. 308 do Cdigo Nacional de Trnsito, que tambm no prev as formas qualificadas e preterdolosas desse delito. A nova redao proposta corrige tais erros e tambm permite punio rigorosa quando no h dolo eventual quanto ao resultado leso grave ou morte, sendo sabido que, hoje em dia, muitos dos praticantes de racha, se safam de punies mais severas, incidindo somente nas apenaes brandas dos crimes de homicdio culposo e leses corporais culposas, quando no se consegue provar o dolo eventual.

    20

    Essa deve ter sido a origem da dupla tipificao da morte culposa no

    trnsito em situao de racha: os Projetos apensados previam, na essncia, a

    mesma qualificadora, mas a inseriram em dispositivos distintos do Cdigo de

    Trnsito Brasileiro (artigos 302 e 308). Aqui tambm possvel perceber que a

    inteno originria do legislador era punir com maior rigor o delito.

    Os Projetos apensados foram submetidos a regime de urgncia e

    encaminhados ao Plenrio daquela casa de Leis. No h dvidas de que foi neste

    ponto, em que a discusso e a votao das propostas legislativas foram conduzidas

    em regime de urgncia, que se cometeu o equvoco da dupla tipificao.

    Em parecer apresentado em Plenrio pela Comisso de Viao e

    Transportes, elaborado pelo Deputado Hugo Leal (PSC/RJ), desaparecem as formas

    qualificadas de crime de racha (art. 308) e figura qualificada do homicdio culposo

    19

    http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=FE04CA915CC77AD7C5FAD86177B7CA9F.proposicoesWeb1?codteor=530930&filename=Tramitacao-PL+2592/2007. 20

    http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=442307&filename=Tramitacao-PL+308/2007.

  • 33

    em situao de racha foi atribuda a estranha pena de recluso de dois a quatro

    anos hoje vigente. Essa mudana inusitada foi feita apesar de no relatrio do

    parecer se insistir na ideia motriz da garantia da punio dos infratores do Cdigo

    de Trnsito e na inteno de dar um basta impunidade. Pareceram os

    congressistas no ter percebido que estavam propondo um modelo mais benfico

    que o da proposta original. 21

    No parecer apresentado em Plenrio pela Comisso de Constituio e

    Justia, elaborado pelo Deputado Alexandre Leite (DEM/SP), no foram feitas

    alteraes22. Em reformulao do parecer do relator da Comisso de Viao e

    Transportes foram restabelecidas as figuras qualificadas do crime de racha (art.

    308), momento preciso em que ocorreu o equvoco da dupla tipificao, o qual

    passou despercebido. 23

    Apenas em nova reformulao do parecer pelo Deputado Hugo Leal

    pareceu-se dar conta do equvoco cometido com o conflito de normas, tendo se

    chegado ao entendimento de que deveria cair a figura qualificada do homicdio

    culposo e ficariam as qualificadoras preterdolosas do racha, por resultado leso

    corporal e morte culposas, evitando-se a dupla tipificao. 24 o que consta da

    ltima manifestao da Cmara dos Deputados.

    Aps os referidos debates e as discusses, foi aprovada a Subemenda

    Substitutiva Global de Plenrio apresentada pelo Relator da Comisso de Viao e

    Transportes ao PL n 2.592/2007. Essa aprovao fez com que restassem

    prejudicados: a proposio inicial; a Emenda da Comisso de Constituio e Justia

    e de Cidadania; o Substitutivo da Comisso de Viao e Transportes; as Emendas

    de Plenrio; e os Projetos de Lei n 308/07 (principal) e 2.595/07, 5.006/13 e

    5.075/13, apensados 25.

    No entanto, a despeito da tempestiva constatao do equvoco,

    provavelmente por uma falha tcnica e de assessoria, a redao final da matria na

    21

    http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1081798&filename=Tramitacao-PL+2592/2007 22

    http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1081799&filename=Tramitacao-PL+2592/2007 23

    http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1081800&filename=Tramitacao-PL+2592/2007 24

    http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1081803&filename=Tramitacao-PL+2592/2007. 25

    http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=380428.

  • 34

    Cmara dos Deputados 26, concluda em 24 de abril de 2013 e que seguiu para o

    Senado Federal sob a denominao de Projeto de Lei da Cmara n 26 de 2013,

    manteve a dupla tipificao da morte culposa no trnsito com a redao hoje

    vigente. Trata-se de um erro material absurdo e de consequncias desastrosas,

    sendo quase inacreditvel que no foi feita a sua adequao na redao final. Esse

    tipo de equvoco causa de grave deslegitimao das instituies democrticas,

    enfraquecendo a confiana depositada sobre o Poder Legislativo de que ele seja

    capaz de traar as diretrizes de poltica criminal de modo minimamente racional.

    No Senado Federal, o Projeto foi encaminhado Comisso de Constituio

    e Justia, onde recebeu vrias propostas de emenda, sendo aprovado na forma do

    parecer final de autoria do Senador Vital do Rgo (PMDB/PB), o qual, na forma do

    Substitutivo apresentado, incrementou as sanes cominadas para as infraes

    administrativas previstas no Projeto, optando ainda pela retirada da parte criminal da

    proposta, com vistas a sua mais clere apreciao. Nas palavras do relator:

    preciso, no entanto, destacar que a presente proposio tramitou na Cmara dos Deputados por cerca de cinco anos e, ainda assim, seu texto contm algumas impropriedades, geradas na pressa de se concluir a apreciao. Com essa experincia em mente, propomos recortar do presente PLC os dispositivos mais controversos, os penais, com vistas pronta aprovao da parte que possui maior consenso, qual seja, o aumento das multas previstas para as infraes de trnsito mais graves, dada a ansiedade com que a populao aguarda a efetividade de tais medidas.

    27

    Com o parecer conclusivo da Comisso de Constituio e Justia, o

    Substitutivo apresentado retornou Cmara dos Deputados para nova anlise.

    Na Cmara dos Deputados, o projeto de lei foi novamente encaminhado s

    comisses de Constituio e Justia e de Viao e Transportes. Na primeira, em

    parecer da Deputada Sandra Rosado (PSB/RN), props-se que o Substitutivo do

    Senado Federal deveria ser rejeitado, uma vez que retirara do Projeto a sua parte

    criminal, considerada de suma importncia. Segundo as regras do processo

    legislativo de leis ordinrias, a rejeio do Substitutivo da Casa Revisora implica na

    aprovao do Projeto na forma em que deixou a Cmara dos Deputados, salvo

    emendas redacionais de pouca monta.

    26

    http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1082212&filename=Tramitacao-PL+2592/2007 27

    http://legis.senado.leg.br/mateweb/arquivos/mate-pdf/136750.pdf.

  • 35

    Destaque-se que, mais uma vez, neste ponto, foi indicada a aberrao da

    dupla tipificao da morte culposa em situao de racha, sendo ainda apresentada

    uma proposta de emenda supressiva para a retirada da segunda parte do pargrafo

    segundo do artigo 302 do CTB, o que corrigiria esse equvoco. Como chamou

    ateno a relatora:

    Todavia vislumbramos que no Projeto original encontra-se uma incongruncia de natureza redacional. Ora a parte final do 2 do art. 302 e o disposto no art. 308, ambos alterados pelo Projeto de Lei n 2.592-A/07, aprovado na Cmara dos Deputados em 24/4/2013, existe duplicidade de condutas tpicas, pois, em acatando emenda de Plenrio, esqueceu o Relator de verificar que o fato j estava tipificado em outro dispositivo. H, assim, conflito de penalidades nos dispositivos aprovados pela Casa, uma emenda de tcnica legislativa deve ser aprovada nesta ocasio para que no subsista qualquer dvida futura na jurisprudncia: O crime de racha no trnsito, j est contemplado de forma detalhada nos pargrafos 1 e 2 do art. 308 modificado pelo referido projeto, razo pela qual emenda deve ser apresentada.

    28

    Entretanto, mesmo tendo sido o problema identificado a tempo, por uma

    segunda vez, tambm nesse momento, no foi feita a correo necessria. Embora,

    inicialmente, o referido Substitutivo tenha sido encaminhando s Comisses de

    Viao e Transportes e de Constituio e Justia, para s depois ser submetido

    apreciao do Plenrio, com a aprovao de requerimento de urgncia, a anlise e

    discusso pelas Comisses foi feita em turno nico na ordem do dia de 16 de abril

    de 2014. Nos pareceres apresentados em plenrio, pelos relatores de ambas as

    Comisses, no mais se mencionou o erro, concluindo-se apenas pela rejeio do

    Substitutivo do Senado.

    Assim o Projeto de Lei n 2.592/2007 seguiu para a sano presidencial na

    forma em que foi aprovado na Cmara, relegando doutrina e jurisprudncia a

    tarefa de corrigir o problema da dupla tipificao.

    O que se pode extrair sobre a inteno do legislador, a partir da anlise

    detida da justificativa do projeto e dos pareceres das comisses pelas quais tramitou

    que, aparentemente, o que se buscava era um incremento da punio dos crimes

    de morte culposa em situao de corrida no autorizada e que a sobreposio de

    tipos, por mais que seja difcil de acreditar, no foi intencional, decorrendo de erro e

    de incompetncia. Esse objetivo de aumentar a punio dos condutores envolvidos

    28

    http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1245895&filename=Tramitacao-PL+2592/2007.

  • 36

    em mortes culposas, ocorridas em competies no autorizadas refletido em

    quase todas as manifestaes dos congressistas, durante a tramitao do Projeto,

    mas como j se assinalou, revelou-se frustrado pela redao final aprovada.

    Qual a importncia desta pretensa mens legislatoris para a aplicao

    presente da norma, j posta no mundo jurdico, disposio dos operadores do

    direito, para a soluo dos casos concretos?

    A remisso inteno originria do legislador, por mais que se parta do

    pressuposto de que ela pode ser aferida de modo mais ou menos certo, por

    exemplo, quando se investigam alteraes legislativas bastante recentes, como a

    ora em anlise, em verdade, no pode ter mais do que um sentido retrico, como um

    elemento adicional indicativo do correto significado da norma. J se incorporou ao

    senso comum terico dos juristas (COSTA, 2008), desde o incio do sculo passado,

    o entendimento de que no o sentido pretendido pelo legislador que vincula, na

    interpretao/aplicao de um texto normativo controvertido, mas o sentido refletido

    pela prpria norma, o qual adquire vida prpria e valor diferenciado da vontade ou

    conscincia de seus formuladores (NUNES, 2005).

    No fosse essa abertura hermenutica dos textos normativos, os quais

    esto inseridos, em um contexto dinmico e evolutivo, de ideias e de sentidos, e a

    forma do Direito, sua rigidez caracterstica na fixao da letra da lei, que serve para

    dar segurana, estorvariam as transformaes normais das sociedades e no

    dariam conta de responder, de maneira justa e adequada, s novas demandas

    surgidas nos casos concretos, refletindo relaes jurdicas cada vez mais

    complexas. nesse sentido que, na teoria da interpretao, de h muito, com o

    declnio das doutrinas subjetivistas, insiste-se na importncia de se desvelar a mens

    legis, o sentido objetivo da lei, servindo a inteno do legislador apenas como um

    recurso adicional e de importncia relativa na construo do significado vinculante

    da norma (COSTA, 2008).

    Sobre a perda pela voluntas legislatoris do seu lugar reitor na interpretao

    do Direito, ensinava Carlos Maximiliano:

    A pesquisa da inteno ou do pensamento contido no texto arrasta o intrprete a um terreno movedio, pondo-o em risco de tresmalhar-se em inundaes subjetivas. Demais restringe o campo de sua atividade: ao invs de a estender a toda a substncia do Direito, limita o elemento espiritual da norma jurdica, isto , a uma parte do objeto de exegese e eventualmente um dos instrumentos desta. Reduzir a interpretao procura do intento do

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    legislador , na verdade, confundir o todo com a parte; seria til, embora nem sempre realizvel, aquela descoberta; constitui um dos elementos da Hermenutica; mas no o nico, nem sequer o principal e o mais profcuo; existem outros e de maior valia. Serve de base, como adiante se h de mostrar ao processo histrico, de menor eficincia que o sistemtico ou teleolgico. [...] Com a promulgao, a lei adquire vida prpria e autonomia relativa; separa-se do legislador; contrape-se a ele como um produto novo; dilata e ate substitui o contedo respectivo sem tocar nas palavras; mostra-se, na pratica, mais previdente que o seu autor. [...] Logo, ao intrprete incumbe apenas determinar o sentido objetivo do texto, a vis ac potestas legis; deve ele olhar menos para o passado do que para o presente, adaptar a norma finalidade humana, sem inquirir da vontade inspiradora da elaborao primitiva. (2011, p. 24-25)

    Mas o que seria essa vontade da lei (voluntas legis) objetivada, separada

    da vontade do legislador? Onde seria possvel encontr-la?

    2.2 O sentido e a importncia da mens legis

    J Ferrara afirmava que a mens legis poderia ser identificada pela

    finalidade social, pelo escopo prtico, o resultado visado pela norma. O significado

    correto seria sempre aquele que conferisse maior eficcia e tutela teleologia da

    norma. E as finalidades da norma no esto contidas no prprio texto normativo,

    nem podem ser derivadas de um sistema abstrato de valores, mas so aquelas

    finalidades da prpria coletividade, expressas pelos interesses e exigncias

    individuais e coletivos. O que no quer dizer que o juiz possa fazer algo alm de

    executar as leis, no se admitindo que busque o direito livre fora do ordenamento.

    Nada disso, reconhecer a importncia das relaes sociais na definio do sentido

    da lei, significa apenas que o aplicador do Direito no pode tapar os olhos para

    realidade da qual a norma deriva e na qual voltar a influir (COSTA, 2008, p. 328).

    Mais especificamente, tratando-se de uma norma penal incriminadora, que

    comina uma sano penal em abstrato a um comportamento previsto em lei, na

    forma de uma hiptese ftica (um tipo criminal), as finalidades sociais, que a norma

    expressa, no podem ser algo distinto dos objetivos prprios do Direito Penal. E, no

    contexto de um Estado Democrtico de Direito, o Direito Penal se legitima,

    basicamente, por um objetivo de preveno geral de delitos associado a um objetivo

    humanitrio e de garantias (SILVA SNCHEZ, 2011, p. 58).

    importante destacar esse ponto, pois, em virtude da fora que, na

    contemporaneidade, ganhou o populismo penal, e o discurso de

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    maximizao/exacerbao de penas, bem como a insistncia na funo simblica da

    legislao penal, por vezes, esquece-se que tambm do interesse pblico o

    controle da reao punitiva do Estado s condutas consideradas delituosas,

    segundo os parmetros da dignidade humana, proporcionalidade e segurana

    jurdica. Tem sido a misso histrica do Direito Penal a reduo da violncia social

    em geral, tanto a violncia do delito, por meio da preveno, quanto a da punio

    das infraes, com a instituio de garantias ao delinquente.

    O fato de no se poder perder de vista a finalidade social da norma, que d

    os contornos do seu significado, no quer dizer que se dispense a anlise do prprio

    texto normativo. O texto da norma o ponto de partida, bem como o limite de toda a

    interpretao. No possvel, simplesmente, desconsiderar o texto de uma norma

    vigente, ainda que com o fim de alcanar os objetivos sociais realmente buscados

    pelo Direito. No possvel abrir mo dos mecanismos de segurana jurdica, dentre

    os quais, o processo legislativo constitucional de aprovao e reviso de normas. A

    atividade de aplicao do Direito, que estruturalmente distinta da normognese ou

    da legislao, nunca dispensa a forma em que a norma foi fixada, devendo sempre

    lev-la em considerao em alguma medida.

    Por isso, o primeiro nvel ou mtodo de interpretao, o gramatical, o que

    pretende esmiuar as palavras da lei, encontrar o correto significado da norma, na

    anlise lxica, bem como da ordem das palavras e de sua conexo (FERRAZ

    JUNIOR, 2007, p. 289).

    Um segundo momento da atividade jurdico-interpretativa, o lgico, o que

    lida com as palavras da lei na forma de conceitos (FERRAZ JUNIOR, 2007, p.

    290). Assim, busca-se apreender a construo de definies dos termos que so

    estipuladas pela prpria norma. O que no significa que os conceitos contidos no

    texto normativo sejam imutveis, pois se remetem a um universo material

    verificvel (FERRAZ JUNIOR, 2007, p. 292), constitudo pelo uso comum e

    constante das expresses, razo pela qual no escapam de um processo histrico

    de mutao, como as prprias instituies sociais s quais fazem meno.

    A fase subsequente, de interpretao sistemtica, enfrenta as questes de

    compatibilidade num todo estrutural (FERRAZ JUNIOR, 2007, p. 293) da norma

    jurdica. Ou seja, pe-na em cotejo com os princpios gerais do direito, e com o

    conjunto do ordenamento, levando em considerao a hierarquias entre as fontes do

    Direito e as regras para solucionar a sua aparente sobreposio. pressuposto da

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    hermenutica jurdica tradicional a negao da existncia de lacunas no

    ordenamento jurdico. Isso se explica, em parte, pelo fato de que no dado ao

    magistrado se eximir do dever de decidir, nem mesmo alegando dificuldades

    interpretativas (vedao do non liquet art. 126 do Cdigo de Processo Civil).

    Assim, j que preciso que o ordenamento jurdico apresente uma resposta para os

    problemas concretos que se colocam em juzo, tambm necessrio harmonizar as

    suas disposies, evitando contradies, incompatibilidades e fixando regras de

    sucesso de leis no tempo, de aplicao da lei no espao e de concurso aparente de

    normas.

    O concurso aparente de normas penais tem regras especficas de

    resoluo, tradicionalmente indicadas pela doutrina, que merecem anlise em

    separado. Ele aponta para uma sobreposio de infraes penais, para uma

    pluralidade de tipos, aos quais, pretensamente, subsumir-se-ia o fato concreto, se

    fossem visualizados de modo isolado. O tratamento sistemtico dessas situaes,

    no entanto, evitaria a eficcia cumulativa de um conjunto de normas incriminadoras

    incidentes sobre o mesmo fato, apontando as suas relaes de hierarquia,

    subordinao e mtua excluso (DOTTI, 2003, p. 286).

    O primeiro critrio usual para a resoluo de conflito aparente de normas

    penais o da especialidade, nos termos do qual o tipo fundamental afastado por

    outro tipo que contenha todos os elementos j contidos no primeiro acrescidos de

    circunstncias especificadoras (lex specialis derogat legi generali). J a regra da

    consuno afasta a incidncia do crime que meio necessrio, ou normal etapa de

    preparao ou de execuo de outro crime (lex