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Morfologia Cadernos estudos da cidade portuguesa Os Elementos Urbanos

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A Praça

“Relação entre os edifícios, os monumentos e as praças. (...) Uma parte considerável da vida pública continuou a desenvolver-se nas praças, pre-servando o essencial do seu significado, assim como uma parte das re-lações que unem naturalmente as praças e os edifícios as envolvem” |1|. Camillo Sitte

1. A praça como elemento urbano

As praças são parte integrante da estrutura, da composição e da identidade das nossas cidades. A sua diversidade é, por isso, o somatório de características urbanas distintas, formas e designações, que resultam da rela-ção entre o homem e o lugar.

Esta relação, expressa tanto nas vivências como na formação dos tecidos e do próprio edificado, singular ou monumental, proporciona espaços de diferentes tipos e condições de uso, de acordo com critérios precisos. Os espaços gerados em cada um deles são fortemente caracterizados pelos seus valores sociais e arquitectónicos nos quais as praças, enquanto elementos de destacada importância na organização da cidade, reforçam esse sentido identitário compreendido em cada acção no tempo, na singularidade do sítio e da sua história.

Neste sentido, tendo como evidência as intervenções no espaço urbano do século XX que deram origem a novas praças, é necessário com-preender a sua formação, reconhecendo os momentos precisos e quais as

|1| SITTE (1980, p.12). Tradução do autor.

A reinterpretação do espaço público na valorização dos conjuntos patrimoniais no século XX

José Miguel SilvaArquitecto; mestre em Reabilitação da Arquitectura e Núcleos Urbanos pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa; doutorando em Urbanismo com o tema de dissertação “Forma urbana, evolução vs. conservação. Relação entre o edificado monumental e o tecido urbano”; bolseiro de investiga-ção no grupo FORMA URBIS Lab.

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2.1. A praça criadaO processo de transformação do espaço pressupõe a recriação da

própria identidade do lugar. Esta faz parte do carácter contínuo da cidade e, por isso, ela própria é modificada no tempo – também se recria e reorganiza, gerando novas vivências que proporcionam a afirmação da praça enquanto centro cívico, monumental e histórico. Deste modo são identificados três casos que exprimem a capacidade de modificar o espaço, utilizando proces-sos distintos, mas com objectivos semelhantes, a criação de um novo espaço tendo como referência uma ideia tradicional de praça.

Na primeira metade do século XX, período de grande metamorfose das cidades em Portugal, a cidade do Porto sofreu um conjunto de intervenções que transformaram incisivamente partes do seu tecido consolidado. Entre ou-tras destacam-se a criação de duas praças: uma para construção de um Centro Cívico e implantação dos novos Paços do Concelho – a avenida dos Aliados; outra para monumentalização e evidenciação de um edifício monumental – o terreiro D. Afonso Henriques, fronteiro à Sé do Porto. Ambas as intervenções foram orientadas segundo três objectivos programáticos fundamentais, como a resolução de um problema de circulação criando novos acessos ao centro antigo da cidade; a afirmação dos valores simbólicos associados à nacionalidade; e a monumentalização dos elementos morfológicos dominantes restruturando ambiências urbanas a partir da criação de novos espaços públicos.

Com a implantação do novo regime Republicano, foi promovida uma operação de transformação do centro histórico do Porto, em 1915, que implicou a ampliação da praça D. Pedro, o rasgamento da avenida dos Aliados e a edificação dos Paços do Concelho, cujo plano foi desenhado pelo arqui-tecto Richard Barry Parker|4| |fig. 4.2|.

A proposta foi baseada na reestruturação do tecido construído para, através do espaço público, melhorar a circulação entre a ponte D. Luís e a praça Marquês de Pombal: “(...) Abrir e ampliar uma parte da cidade que está muito congestionada, abrir uma ampla avenida que deverá ser sobretudo muito dignificante, rasgar o centro da cidade e criar um verdadeiro centro cívico e um centro de estabelecimentos”|5|.

|4| Barry Parker, arquitecto e urbanista inglês, celebrando a sua passagem por Portugal, em particular pela cidade do Porto, entre 1912 e 1915, foi autor das “Memórias sobre a projectada avenida da cidade. Da praça da Liberdade ao largo da Trindade”. Este documento é uma síntese de ideias, contextos políticos e culturais da época, que estão na base do desenho e do programa desenvolvido para o novo espaço nobre da cidade, a avenida dos Aliados.

Para o autor, o desenho do novo espaço público portuense teria de ter em consideração a configuração do lugar na sua origem, num tempo ainda sem edifícios. Neste propósito escreve que quando “um planeador de cidades é chamado para remodelar uma área já coberta com casas, tem, primeiro, que resumir o que teria sido a configuração do terreno antes de edificado. Dali tirará guia e inspiração para o seu trabalho. Dali lhe virá a mais fecunda fonte de encantos, e para que o seu plano seja de todo feliz, preciso é que o planeador tire todo o partido possível da primitiva conformação do terreno”. In PARKER (1915, p. 8).

|5| TAVARES (2009).

|fig. 4.1| Exemplos de intervenções realizadas no século XX. a. e b. Antes e depois da intervenção de Rosendo de Araújo Carvalheira de 1912 no largo Rainha Dona Amélia em Sintra. c. e d. Antes e depois da intervenção de Mouzinho de Albuquerque na envolvente ao Mosteiro da Batalha em 1954. e. e f. Antes e depois da intervenção de Fernando Távora na “baixa” de Coimbra em 1989.

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A praça abacial é na sua história um lugar de confronto entre a abadia e a população, enfatizada nos avanços e recuos da cerca e intimamen-te ligada aos usos religiosos, ou seja um espaço aberto mas privado. A sua vertente pública é fruto da conquista da população em diferentes momentos no tempo: a primeira ocupação é no século XVII e está na origem do recuo da cerca; o segundo já no século XIX com o fim das ordens religiosas; e um terceiro período no século XX que verdadeiramente constitui e dá significado ao espaço como verdadeiramente público.

|fig. 4.4| Evolução do “rossio” de Alcobaça no século XX. a. “Alameda dos Plátanos” c. 1910. b. Intervenção de Tertuliano Lacerda Marques em 1938. c. Intervenção de João Vaz Martins em 1957. d. Intervenção de Gonçalo Byrne e João Pedro Falcão de Campos, c. 2003. e. Imagem parcial do “Jardim Tertuliano”, c.1940. f. Actual configuração da praça 25 de Abril, 2009.

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da subtracção de partes, que de um só gesto criou novos espaços públicos, acrescentou novos valores ao lugar e proporcionou novos tipos de vivências.

No entanto, esta questão da invenção de novos espaços não re-side apenas na criação por demolição do tecido construído mas também na intenção de reintegração do conjunto no seu contexto urbano, criando um espaço à imagem do que se pensa ter sido num determinado momento pas-sado. Em ambos os casos, são lhe suprimidos elementos do convívio diário, como os bancos de jardim ou o mercado de rua, fazendo da permanência e uso características pontuais ou simplesmente inexistentes.

O actual contexto urbano do “Rossio” ou praça 25 de Abril em Alcobaça, por exemplo, fruto do “Projecto de requalificação da zona envolven-te à Abadia de Santa Maria de Alcobaça” da autoria dos arquitectos Gonçalo Byrne e João Pedro Falcão de Campos (2002), é consequência da tentativa de consolidar e conservar os valores arquitectónicos e culturais sedimentados no tempo, definindo um certo revivalismo conceptual e cenográfico de um passado que efectivamente poderá nunca ter existido como espaço público.

A intervenção tinha como “intenção valorizar o monumento, reti-rando-lhe o carácter de “ínsula” desligada da forma urbana circundante, ligan-do-o à cidade que o envolve. Projecta-se [então] uma nova harmonia em que o contemporâneo para se afirmar não tenha forçosamente que se sobrepor ao passado ou disfarçá-lo, mas valorizá-lo com todo o seu peso e riqueza”|8|.

No entanto, durante quatro séculos a Abadia de Santa Maria de Alcobaça e o espaço físico envolvente estiveram confinados por uma cerca que limitava o crescimento do tecido construído e no qual o terreiro se im-punha forçosamente como espaço privado. A expansão do aglomerado foi assim limitada até ao recuo dos limites físicos da cerca abacial no século XVII.

Apesar da mudança de contexto, o uso público da Praça 25 de Abril só acontece verdadeiramente no século XIX com o fim das actividades monásticas e introdução de novas vivências sociais, das quais se pode destacar a realização da feira. A partir deste momento, e ao longo de todo o século XX, foi desencadeado um conjunto de operações de redefinição do espaço como um terreiro de convento|9| que, contextualizado à escala do social e cultural do habitante, se transformou numa praça, principal espaço público da cidade. Estas intervenções culminam em 2002 com um princípio de reaproxi-mação do monumento e da cidade a partir da ideia de criação de um “terreiro primordial” |fig. 4.4|.

|8| Gonçalo Byrne. Requalif icação da zona envolvente ao Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, Memória Descritiva, Junho de 2003, p.5 (documento cedido pelo gabinete GB Arquitectos).

|9| Durante este período o rossio Alcobacense conheceu cinco fases distintas: 1. a “alameda dos Plátanos” que ladeava a estrada nacional; 2. o terrapleno da praça que retirou os elementos arbóreos e equipamentos urbanos existentes à data; 3. o jardim desenhado pelo arquitecto Tertuliano que integrava a escola primária desenhada pelo arquitecto Raul Lino; 4. o jardim barroco do arquitecto João Vaz Martins construído para celebrar a visita da rainha D. Isabel de Inglaterra; 5. e, por último, o projecto da autoria dos arquitectos Gonçalo Byrne e João Pedro Falcão de Campos.