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UNIVERSIDADE FEDERAL DO OESTE DO PARÁ INSTITUTO DE CIÊNCIAS DA SOCIEDADE PROGRAMA DE CIÊNCIAS JURÍDICAS KERLLEY DIANE SILVA DOS SANTOS MORADA DE TERRA: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão. Santarém 2012

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Monografia apresentada por Kerlley Diane Silva dos Santos ao Programa de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Oeste do Pará como requisito para obtenção do título de Bacharel em Direito. RESUMO: Este trabalho trata da história de uma ocupação empreitada por famílias camponesas, abrangida por um assentamento de reforma agrária: o Projeto de Assentamento Rio Trairão. O objetivo central é destacar as características da trajetória das famílias do assentamento, que nos permitem analisar seu perfil em relação à figura jurídica do beneficiário da reforma agrária. Para a compreensão da história das famílias ocupantes do Projeto de Assentamento Rio Trairão, aborda-se as transformações pelas quais a Amazônia passou, a partir da década de 1970, induzidas pelas ações do governo militares para permitir a apropriação das terras amazônicas pelo grande capital, destacando o caráter contraditório deste processo que possibilitou o acesso à terra de famílias camponesas. As famílias do assentamento são, além de testemunhas das transformações pelas quais a região passou nos últimos 40 anos, também protagonistas na ocupação da área do município de Uruará que foi alcançada pelo assentamento do Incra. Analisam-se as características da ocupação e da forma de exploração da terra para se avaliar a possibilidade de aproximação do perfil dos moradores do assentamento àquele do beneficiário da reforma agrária.

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Page 1: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

UNIVERSIDADE FEDERAL DO OESTE DO PARÁ

INSTITUTO DE CIÊNCIAS DA SOCIEDADE

PROGRAMA DE CIÊNCIAS JURÍDICAS

KERLLEY DIANE SILVA DOS SANTOS

MORADA DE TERRA:

Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de

Assentamento Rio Trairão.

Santarém 2012

Page 2: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

KERLLEY DIANE SILVA DOS SANTOS

MORADA DE TERRA:

Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de

Assentamento Rio Trairão.

Monografia apresentada ao Programa de

Ciências Jurídicas da Universidade Federal

do Oeste do Pará como requisito para

obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Msc. Bruno Alberto

Paracampo Mileo

Santarém 2012

Page 3: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

Às mulheres, aos homens e às crianças

do Projeto de Assentamento Rio Trairão.

À intrépida Angela Sauzen

À memoria de João da Silva e

Estelino M. da Silva

Page 4: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

Agradecimentos

Àquele que me salvou das águas profundas e tornou todos os outros dias possíveis.

Aos moradores do Projeto de Assentamento Rio Trairão, que me acolheram em

suas casas e partilharam comigo o pão e a suas histórias e ensinaram-me que os

juristas devem aprender a ouvir o povo e a sentir as razões da luta e a vida das

populações do campo.

Ao professor Bruno Alberto Paracampo Mileo, pela dedicação, pela paciência e pela

orientação íntegra. Seus questionamentos foram imprescindíveis e luminosos para a

concretização deste trabalho.

Ao Maurício Torres, pelas lições e pela amizade. Seu compromisso afetivo com as

demandas dos povos da floresta é referência para a vida.

Aos meus amigos, especialmente Ítala Nepomuceno e Candido Cunha, pelos

edificantes debates sobre das dinâmicas agrárias do oeste do Pará.

À minha família, por entender as minhas escolhas e pelo conforto nos momentos em

que as lágrimas foram inevitáveis.

Page 5: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

Tais dificuldades o homem do campo não

havia esperado; uma vez que a lei deveria ser

acessível a todos e sempre - ele pensa...

Franz Kafka

Porque eu quem moro dentro dela, quem

trabalho dentro dela. Tenho a legítima certeza

que ela é minha.

Morador do PA Rio Trairão, não assentado,

falando sobre a parcela ocupada por sua família.

Page 6: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

RESUMO

Este trabalho trata da história de uma ocupação empreitada por famílias

camponesas, abrangida por um assentamento de reforma agrária: o Projeto de

Assentamento Rio Trairão. O objetivo central é destacar as características da

trajetória das famílias do assentamento, que nos permitem analisar seu perfil em

relação à figura jurídica do beneficiário da reforma agrária. Para a compreensão da

história das famílias ocupantes do Projeto de Assentamento Rio Trairão, aborda-se

as transformações pelas quais a Amazônia passou, a partir da década de 1970,

induzidas pelas ações do governo militares para permitir a apropriação das terras

amazônicas pelo grande capital, destacando o caráter contraditório deste processo

que possibilitou o acesso à terra de famílias camponesas. As famílias do

assentamento são, além de testemunhas das transformações pelas quais a região

passou nos últimos 40 anos, também protagonistas na ocupação da área do

município de Uruará que foi alcançada pelo assentamento do Incra. Analisam-se as

características da ocupação e da forma de exploração da terra para se avaliar a

possibilidade de aproximação do perfil dos moradores do assentamento àquele do

beneficiário da reforma agrária.

Palavras-chave: Amazônia; Campesinato; Assentamento da reforma agrária;

Beneficiário da reforma agrária.

Page 7: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

ABSTRACT

This paper deals with the history of an occupation by peasant families, having

covered by an agrarian reform settlement: the Settlement Project Rio Trairão. The

central goal is to highlight the features of the trajectory of the families of the

settlement, which allow us to analyze your profile in relation to the legal concept of

agrarian reform beneficiary. For understanding the history of families occupying the

Settlement Project Rio Trairão, deals with transformations for which Amazon has

passed, from the late 1970 induced by the actions of the military Government to allow

ownership of lands in the Amazonian by big business, highlighting the contradictory

character of this process which allowed access to land of peasant families. The

families of the settlement are, in addition to witnesses of the processes by which the

region passed over the past 40 years, also starring in the occupation of the area of

the municipality of Uruará which was achieved by fixing the Incra. Analyse the

characteristic of occupation and exploitation of the land in order to assess the

possibility of approximation of the profile of the residents of the settlement that the

beneficiary of the agrarian reform.

Key Words: Amazonian; Peasantry; Settlement of the agrarian reform; Beneficiary of

the agrarian reform.

Page 8: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 - Famílias beneficiárias da Reforma Agrária em outro Assentamento do

Incra.

Gráfico 2 - Local onde a família foi anteriormente assentada.

Gráfico 3 - Renda Média Mensal das famílias do PART.

Gráfico 4 - Principal fonte de renda das famílias do PART.

Page 9: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - "Pista para você encontrar a mina de ouro". Anúncio veiculado na revista Veja, em

09 de dezembro de 1970. .................................................................................................... 49

Figura 2 – ―O boi é o melhor amigo do empresário‖. Anúncio da Sudam e do Banco da

Amazônia veiculado na revista Veja, em 05 de abril de 1972. ............................................. 58

Page 10: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

LISTA DE MAPAS

Mapa 1 - Projeto de Assentamento Rio Trairão em relação ao Polígono

Desapropriado de Altamira, à área federalizada pelo Decreto-Lei n° 1.164/1971 e os

PICs Itaituba e Altamira.

Mapa 3 - A concentração de lotes provoca a descontinuidade entre as comunidades

do Projeto de Assentamento Rio Trairão.

Mapa 4 - Pontos de ocupação ao longo do Projeto de Assentamento Rio Trairão.

Mapa 5 - Famílias assentadas pelo Incra e que desenvolvem uma ocupação

compatível com a vocação de um assentamento da reforma agrária.

Page 11: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

LISTA DE FOTOGRAFIAS

Fotografia 1 - Exemplos de moradias comumente encontradas no Projeto de

Assentamento Rio Trairão. As casas de taipa, de madeira serrada e de madeira

roliça são as formas de construção mais frequentes. As casas que seguem o modelo

do Incra são raras no PART.

Fotografia 2 – Lotes concentrados na Comunidade Nossa Senhora do Rosário A

concentração de parcelas no PART provoca áreas a descontinuidade entre as

comunidade ao longo do assentamento.

Fotografia 3 - Ponte improvisada na Comunidade Menino Jesus. Para se chegar em

determinados pontos do assentamento a travessia do Rio Trairão é necessária e

perigosa.

Fotografia 4 - Goma de tapioca secando ao sol na Comunidade Menino Jesus.

Fotografia 5 - Café e sementes de cacau secando ao sol. O cacau é o produto mais

comercializado no PART.

Fotografia 6 - Assentado pilando grãos de arroz no PART. O arroz é uma das

lavouras cultivadas pelas famílias do assentamento.

Fotografia 7 - A criação de porcos, assim coma de gado, é uma forma de

"poupança" das famílias do PART para o atendimento de necessidades das famílias.

Page 12: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

LISTA DE SIGLAS

AI – Ato Institucional

Ceplac – Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira

Fidam – Fundo para Investimentos Privados no Desenvolvimento da Amazônia

IN – Instrução Normativa

Incra – Instituto de Colonização e Reforma Agrária

IPES – Institutos de Pesquisa e Estudos Sociais

MPF – Ministério Público Federal

NE – Norma de Execução

PART – Projeto de Assentamento Rio Trairão

PA – Projeto de Assentamento

PDS – Projeto de Desenvolvimento Sustentável

PIC – Plano Integrado de Colonização

PIN – Plano de Integração Nacional

PNRA – Plano Nacional da Reforma Agrária

RB – Relação de Beneficiários

SR – Superintendência Regional

Sudam – Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia

Ufopa – Universidade Federal do Oeste do Pará

Page 13: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 14

2 CAMPESINATO: um conceito complexo ................................................................ 24

2.1 AS ABORADAGENS DA AGRICULTURA CAMPONESA .................................. 26

2.1.1 A DESTRUIÇÃO DO CAMPESINATO ............................................................. 27

2.1.2 RESQUÍCIOS DAS RELAÇÕES E DO MODO DE PRODUÇÃO FEUDAL ..... 28

2.1.3 A CRIAÇÃO E RECRIAÇÃO DO CAMPESINATO NO CAPITALISMO .......... 29

3 CAMPONESES E CAPITALISTAS NOS DESCAMINHOS DA AMAZÔNIA .......... 32

3.1 1964: um requiem à reforma agrária ................................................................... 33

3.2 OPERAÇÃO AMAZÔNIA ................................................................................... 37

3.3 ―EXPROPRIAÇÃO POR DECRETO‖ .................................................................. 40

3.4 A POMPA E A CIRCUNSTÂNCIA: o Plano de Integração Nacional e a contra

reforma agrária .......................................................................................................... 44

3.4.1 O POLÍGONO DESAPROPRIADO DE ALTAMIRA E OS PROJETOS

INTEGRADOS DE COLONIZAÇÃO .......................................................................... 51

3.5 A ―OCUPAÇÃO ESPONTÂNEA‖ ......................................................................... 59

3.6 O I PLANO NACIONAL DE REFORMA AGRÁRIA E OS PROJETOS DE

ASSENTAMENTO ..................................................................................................... 62

3.7 ―ASSENTAMENTOS DE PAPEL‖ ....................................................................... 64

4 MORADA DE TERRA: a ocupação camponesa da área hoje compreendida pelo

PART ......................................................................................................................... 68

4.1 RIO TRAIRÃO: A ocupação ............................................................................... 69

4.2 NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO .................................................................... 72

4.3 RIO TRAIRÃO: O Assentamento ....................................................................... 76

Page 14: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

4.4 MENINO JESUS ................................................................................................. 80

5 CARACTERIZAÇÃO DAS FAMÍLIAS OCUPANTES DO PART COMO

POTENCIAIS BENEFICIÁRIAS DA REFORMA AGRÁRIA ...................................... 96

5.1 DEFINIÇÕES BÁSICAS ...................................................................................... 96

5.1.1 DEFINIÇÃO JURÍDICA DE REFORMA AGRÁRIA .......................................... 96

5.1.2 A PROPRIEDADE FAMILIAR .......................................................................... 97

5.1.3 OS PROJETOS DE ASSENTAMENTO ........................................................... 99

5.1.4 DEFINIÇÃO LEGAL DE BENEFICIÁRIO DA REFORMA AGRÁRIA ............. 100

5.2 FAMÍLIAS OCUPANTES DO PART: potenciais beneficiárias da reforma agrária

................................................................................................................................ 102

5.2.1 OCUPANTES E ASSENTADOS .................................................................... 103

5.2.2 FONTES DE RENDA ..................................................................................... 105

5.2.3 A CULTURA EFETIVA DO LOTE .................................................................. 107

5.2.3.1 Agricultura .................................................................................................. 108

5.2.2.2 Pecuária ..................................................................................................... 110

5.2.2.3 Criação de outros animais ........................................................................... 111

5.2.3 EXPLORAÇÃO DIRETA, PESSOAL E FAMILIAR DO LOTE ........................ 112

5.2.4 FAMÍLIAS OCUPANTES E O PART .............................................................. 115

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 118

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 121

Page 15: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

14

1 INTRODUÇÃO

Era 09 de outubro de 1970, quando o então presidente general Emilio

Garrastazu Médici, durante a solenidade de implantação do marco inicial da

construção da Transamazônica realizada em Altamira, aplaudiu entusiasmado a

derrubada de uma imensa castanheira e incrustou uma placa no tronco partido, com

os seguintes dizeres: "Nestas margens do Xingu, em plena selva amazônica, o Sr.

Presidente da Republica dá inicio à construção da Transamazônica, numa arrancada

histórica para a conquista deste gigantesco mundo verde".1

Cerca de 15 anos depois, após uma longa e sofrida viagem começada no

Maranhão, uma família de migrantes nordestinos chegava a um dos travessões de

Uruará, cidade que nasceu às margens da Transamazônica. Impulsionado pelo

sonho de encontrar ―terra desocupada‖, essa família se junta a outras seis e ocupam

uma área, em uma das vicinais da ―estrada da integração nacional‖. Aos poucos

outros se juntaram a ocupação e uma comunidade foi formada.2

Uma década transcorreria até que a notícia da criação de um assentamento

de reforma agrária chegasse às vidas destes ocupantes e com ela a esperança de

melhorias na infraestrutura e no atendimento às necessidades básicas da

população. As famílias só não imaginavam que, após a implantação do

assentamento, a espera para a efetivação dos benefícios e das políticas anunciadas

seria tão longa.

A entrada destas famílias na terra, assim como a de muitos outros

camponeses que chegaram a Amazônia, principalmente, nas décadas de 1970 e

1980 foi gestada dentro de um cenário edificado a partir de ações políticas e

constructos jurídicos e ideológicos implementados para permitir a apropriação das

terras amazônicas pelo grande capital.

1 FOLHA DE SÃO PAULO. São Paulo, 10 de outubro de 1970. Arrancada para conquistar o

gigantesco mundo verde. Disponível em: http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil_10out1970.htm. Acessado em: 09 de outubro de 2011. 2 Entrevista registrada em áudio, concedida por Jesuíno Mendes de Oliveira, na Comunidade Nossa

Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 16 de julho de 2011.

Page 16: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

15

No final da década de 1960, a Amazônia passava a ser alvo das políticas

desenvolvimentistas promovidas pelos governos militares. Associava-se, àquela

época, a região à ideia de vazio demográfico e do espaço selvagem subutilizado

economicamente e, ao mesmo tempo, promovia-se a imagem, por meio de

propaganda estatal, da terra promissora cujas vulnerabilidades ocasionadas pela

―inexistência de gente‖ deveriam ser suprimidas pela ação desbravadora de árduos

colonizadores.3

Dentro da dinâmica ―desenvolvimentista‖ que se descortinou na região, o

regime militar utilizou-se de instrumentos normativos para compatibilizar o aparato

legal aos interesses políticos e econômicos dos grupos aos quais estava associado4.

Sob o pálio da segurança nacional, da preocupação social com o Nordeste e da

necessidade de integração nacional, vieram à cena leis que incidiram diretamente

sob o espaço amazônico e, especialmente, sob o estado do Pará, como o Decreto-

Lei nº 1.164, de 01 de abril de 1971, que federalizou cerca 70% da área do estado.5

Entretanto, o mesmo processo que possibilitou a expansão capitalista na

Amazônia, trouxe em seu bojo movimentos contraditórios que permitiram o acesso

dos camponeses e demais trabalhadores do campo à fronteira aberta6. Para além da

colonização oficial promovida pelo governo, a abertura de rodovias, a propaganda

estatal que enfatizava a miríade de terras livres levou, também, à migração de

famílias camponesas vindas de diversos cantos, principalmente, do Nordeste e do

Sul.

Muitos desses migrantes se deslocavam ao Pará, para a região de influência

da recém-construída rodovia Transamazônica. Estes migrantes ocupavam áreas

localizadas fora dos projetos de colonização implementados pelo Instituto Nacional

de Colonização e Reforma Agrária (Incra), abriam picadas em prolongamentos das

vicinais da rodovia e se instalavam em áreas além daquelas já ocupadas.7

3 NEAPSIDE, Daniel et al. Avança Brasil: os custos ambientais para Amazônia. Belém: Alves, 2000.

4 MONTEIRO, Maurílio de Abreu; COELHO, Maria Célia Nunes. ―As politicas federais e as

reconfigurações espaciais na Amazônia‖. In Novos Cadernos do NAEA. Belém: UFPA, 2004, p. 91-122. 5

OLIVEIRA, Ariovaldo U. de. ―BR-163 Cuiabá-Santarém: Geopolítica, grilagem, violência e mundialização‖. In: TORRES, Mauricio. Amazônia Revelada: os descaminhos ao longo da BR-163. Brasília: CNPQ, 2005, p. 68. 6 Ibidem, p. 68.

7 FEARNSIDE, Philip M. Projetos de Colonização na Amazônia Brasileira: objetivos conflitantes e

capacidade de suporte humano. Caderno de Geociências. n. 2, 1987, p. 7-25

Page 17: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

16

Tais ocupações eram, em muitos casos, regularizadas pelo Incra por meio

da própria colonização oficial. A autarquia federal demarcava os lotes nestas áreas

já ocupadas e regularizava a situação das famílias8. Com o fim da colonização, a

ação de estender os projetos sobre áreas já ocupadas por meio da ―colonização

espontânea‖ perdurou. O instrumento de concretização dessa prática, entretanto,

era outro: os assentamentos de reforma agrária.

Entende-se como projeto de assentamento da reforma agrária o conjunto de

ações planejadas e implementadas em área destinada a reforma agrária e

integradas ao desenvolvimento territorial e regional. Tais ações são definidas com

base em diagnósticos acerca do público beneficiários e das áreas a serem

trabalhadas e orientadas para a utilização dos espaços físicos e dos recursos

naturais existentes. O objetivo é a implementação dos sistemas de vivência e de

produção sustentáveis, o cumprimento da função social da terra e da promoção

econômica, social e cultural do trabalhador rural e de sua família.9

O presente trabalho trata da história de uma ocupação empreitada por

famílias camponesas que foi compreendida por um assentamento de reforma

agrária: o Projeto de Assentamento Rio Trairão (PART). Por meio desta história,

objetiva-se, principalmente, destacar características da trajetória das famílias

camponesas envolvidas pelo assentamento que nos permitem aproximar o perfil

dessas da figura jurídica do beneficiário da reforma agrária.

Espera-se apresentar os processos sociopolíticos que consubstanciaram o

contexto no qual a área está inserida, destacando especialmente as transformações

pelas quais o espaço agrário da região passou a partir das políticas perpetradas

pelos governos militares para a Amazônia. Busca-se, também, destacar a história da

ocupação camponesa na área onde hoje está situado o PART, bem como apontar

as características das famílias ocupantes do assentamento que as aproximam do

perfil de beneficiário da reforma agrária.

8 Cf. CUNHA, Candido Neto da. ―Pintou uma chance legal: o programa Terra Legal no interior dos

Projetos Integrados de Colonização e do Polígono Desapropriado de Altamira, no Pará‖. Agrária. Laboratório de Geografia Agrária - DG/FFLCH/USP. ISSN 1808-1150. nº 10/11, 2009. p. 20-56; HAMELIN, Philipe. ―O fracasso anunciado‖. In: LÉNA, Philippe; OLIVEIRA, Adélia Engrácia (Orgs.). Amazônia: a fronteira agrícola 20 anos depois. Belém: CEJUP/ Museu Emílio Goeldi, 1992, p. 167; FEARNSIDE, Philip M. Projetos de Colonização na Amazônia Brasileira: objetivos conflitantes e capacidade de suporte humano. Caderno de Geociências. n. 2. 1987, p. 7-25. 9 INCRA. Instrução Normativa nº 15, de 30 de março de 2004. Disponível em: Acessado em: maio.

2012

Page 18: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

17

O recorte espacial adotado neste trabalho é, essencialmente, o Projeto de

Assentamento Rio Trairão (PART), entretanto, para compreender o processo

histórico em que o assentamento se insere, será necessário, por diversos

momentos, extrapolar seus limites. Em oras, serão referidas dinâmicas do oeste do

Pará (mais precisamente, na circunscrição da Superintendência Regional 30 do

Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - Incra); em outras,

remeteremos a todo o estado do Pará e, ainda, em outros momentos, serão

abordados processos pertinentes a toda a Amazônia.

O PART está localizado na Vicinal 205 Norte, em Uruará, município

pertencente ao estado do Pará, na porção norte da BR-230, a rodovia

Transamazônica (Mapa 1). O assentamento foi criado por meio da Portaria n° 67, de

07 de outubro de 1997, do Incra - Superintendência Regional do Pará (SR-01). A

criação do Projeto de Assentamento deu-se a partir dos autos do Processo

Administrativo n° 54100.001230/97-10.

O PART possui uma área total de 17.000 hectares, um perímetro de 75.500

metros e foi implantado no interior da Gleba Ouro Branco, imóvel arrecadado pelo

Incra e completamente inserido no interior do Polígono Desapropriado de Altamira10.

O Polígono Desapropriado de Altamira, como se verá no Capítulo 3, foi uma área

obtida por meio do Decreto n° 68.443/71, de 29 de março de 1971 e destinada para

fins de Reforma Agrária e implantação de Núcleos de Colonização (ver Mapa 1).

Quanto ao nome, a denominação ―Rio Trairão‖ deve-se ao fato de um rio de mesmo

nome percorrer toda a extensão do assentamento.

Temporalmente, este trabalho debruça-se, principalmente, sobre as

transformações implementadas a partir do final da década de 1970 e estende-se até

o ano de 2006. Tal delimitação justifica-se porquanto as políticas que sucederam

neste período estão ligadas as trajetórias das famílias que moram no Projeto de

Assentamento Rio Trairão.

Como se verá, estas famílias são majoritariamente procedentes da

colonização oficial, implementada pelos governos militares durante a década de

1980. Eram parentes e amigos de colonos, que, incentivadas pela ideia que lhes era

repassada de facilidade de acesso à terra, se deslocaram ao Pará. Passaram por

10

INCRA. SR30. Processo n° 54100.001230/97-10. Instaurado para a criação do Projeto de Assentamento Rio Trairão. Belém, 1997.

Page 19: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

18

outras cidades do estado até chegar a Uruará. Neste município, trabalharam na área

de colonização antes de sair mata adentro em busca de ―terras de livres‖.

Posteriormente, as famílias ocuparam uma área que anos mais tarde foi

alcançada pela política de assentamentos da reforma agrária. Tal política passou a

ser implementada a partir da segunda metade da década de 1980, no âmbito do I

Plano Nacional de Reforma Agrária, havendo um crescimento da aplicação desta

política nos anos 90. Data deste último período a implementação do projeto de

assentamento no qual as famílias estudadas estão inseridas.

O período justifica-se, ainda, tendo em vista que recentemente algumas

famílias não assentadas que moram no PART se viram indevidamente cadastradas

nos chamados ―assentamentos fantasmas‖, produzidos em massa na área de

atuação da Superintendência Regional do Incra em Santarém, no período de 2005 a

2006. Tais assentamentos, ainda, se sobrepunham a uma área pretendida pelos

moradores para anexação ao assentamento.

Por se entender que a ocupação implementada na área onde hoje está

situado o Projeto de Assentamento Rio Trairão é consequência de um processo

contraditório e marcado por sucessivas transformações, esta pesquisa baseia em

uma compreensão dialética de elementos coletados em vários lugares. Além da

análise bibliográfica de obras relacionadas ao tema, foram consultadas legislações e

outros documentos relacionados ao projeto de assentamento onde vive a população

estudada. Foram utilizados também apurações do campo realizado em julho de

2011, junto à população do Projeto de Assentamento Rio Trairão, no qual foi

possível a observação direta e o acesso a importantes informações acerca da

história e da situação das famílias do assentamento.

Considerando o envolvimento da autora com o objeto de estudo, vale

contextualizá-lo em relação ao modo como se deu o acesso a parte dos dados que

embasam o presente trabalho. O contato da discente com as famílias do PART

iniciou-se em março de 2011, quando um representante da associação comunitária

do assentamento esteve no município de Santarém para demandar junto ao Incra e

o Ministério Público Federal (MPF) providências em relação aos conflito nos quais as

famílias do assentamento estavam envolvidos, bem como revisão ocupacional do

assentamento e anexação ao PART de uma área utilizada pelas famílias para a

coleta de sementes.

Page 20: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

19

A associação, buscando obter um registro qualificado das situações às quais

as famílias estavam submetidas e das irregularidades que ocorriam no

assentamento, solicitou ao Núcleo Interdisciplinar Terra e Trabalho, grupo dedicado

ao estudo das dinâmicas agrárias do oeste do Pará e sem formalização junto a

nenhuma instituição ou universidade, a realização de uma atividade de pesquisa ou

extensão universitária no PART que possibilitasse a formação política das

lideranças, dos assentados e ocupantes acerca de seus direitos e que,

principalmente, resultasse na elaboração de trabalhos científicos que

fundamentassem suas denúncias e sua luta junto aos órgãos públicos.

Após se inteirar sobre os processos em curso no PART e realizar debates

sobre as questões nos quais as famílias do assentamento estavam envolvidas, um

grupo formado por quatro pesquisadores, entre eles a discente e sob a coordenação

do pesquisador Maurício Torres se deslocou, em julho de 2011, até a área do

assentamento onde foi realizado a coleta de dados in loco sob a situação

ocupacional, social e econômica do PART. As pesquisas realizadas culminaram com

a elaboração de um relatório11 que foi protocolado no Ministério Público Federal –

Procuradoria da República de Santarém.

A experiência de conviver com as famílias do PART, de ouvir as suas

demandas e sonhos, de se inteirar sobre as trajetórias de luta das famílias do

assentamento, as esperanças, as formas de resistência e as pressões e

cerceamentos pelos quais estas famílias são submetidas diariamente foi

determinante para a escolha do tema deste trabalho, mas não condicionante da

pesquisa da autora, haja vista que o trabalho realizado no PART não foi o objeto e

nem a finalidade e sim o meio de coleta de dados.

É importante ressaltar, também, que a utilização dos dados durante estes

trabalhos de campo contam com a devida vênia do coordenador da pesquisa. Frise-

se, então, que o presente trabalho não se resume a um relatório das atividades da

pesquisa realizada no PART, porém, essa é aqui citada em função de utilizar-se

agora dados de campo coletados durante suas atividades.

11

TORRES, Mauricio; SANTOS, Kerlley Diane dos; NEPOMUCENO; Ítala; CUNHA, Cândido Neto da; SILVA; Elineuza Alves da. A luta por reconhecimento em um assentamento na Amazônia: relatório resultante de estudo sobre a situação ocupacional, social e econômica do Projeto de Assentamento Rio Trairão – Uruará-PA. Santarém, 2012. [Apensado ao Procedimento Administrativo n. 1.23.02.00023/2011-60, do Ministério Público Federal, na Procuradoria da República no município de Santarém].

Page 21: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

20

Para além da aplicação dos questionários socioeconômicos, do

levantamento da situação ocupacional dos lotes e do georreferenciamento das áreas

que eram objetivos da pesquisa maior, buscou-se registrar depoimentos por meio de

gravações de áudios e anotar no caderno de campo conversas informais sobre o

modo e os meios de vida da população e detalhes da percepção que estas famílias

têm do espaço que as cercam. A anotação dessas sutilezas foi extremamente

importante para a elaboração do presente trabalho

Cabe destacar, ainda que sinteticamente, o papel da pesquisadora no grupo.

Já nos alertava Alba Zaluar12 que o pesquisador jamais deve valer-se do ardil de

―virar nativo‖ com saída mais rápida para conquistar um lugar no grupo. Essa opção

em nada auxilia no desenvolvimento dos trabalhos de campo, mas apenas torna

suportável a presença do pesquisador na comunidade, situação que compromete a

percepção das especificidades da comunidade. Nos trabalhos no PART, jamais se

tentou qualquer espécie de encenação que refletisse uma tentativa de se tornar um

deles.

As famílias já haviam tido contato com pesquisas anteriores. Sobre essas

pesquisas os assentados sempre eram categóricos em afirmar que os grupos

passavam por ali, realizavam seus trabalhos e nunca mais retornavam ao PART.

Assim, as famílias sempre reforçavam aquelas histórias de ―promessas‖ nunca

cumpridas feitas tanto por grupos, como pelos agentes do governo que passaram

por ali, anteriormente. Em uma comunidade onde promessas são um sinal de

engodo, o cuidado com o que se fala e como se age é importante. Logo, desde o

início tomou-se o cuidado de nada promoter e de explicitar que o objetivo era

conhecer e levantar dados sobre a realidade do assentamento e elaborar trabalhos

técnicos e científicos com base nesses dados levantados.

Para além disso, tomou-se o cuidado de notar como a comunidade via a

pesquisadora, para que se pudesse compreender a suas falas e os seus silêncios.

Tal percepção é tão importante quanto à de associar a fala ao contexto no qual

essas famílias se encontram inserida. A importância da referida percepção é

ressaltada por Zaluar13 que afirma que é essa percepção de como o pesquisador é

visto pelo grupo é vital para que não se caia no ―conto nativo‖ que ao invés de contar

12

ZALUAR, Alba. ―Teoria e prática do trabalho de campo: alguns problemas‖. In: CARDOSO, Ruth C. L. (Org.). Aventura Antropológica. São Paulo: Paz e Terra, 1986, p. 111. 13

ZALUAR, Alba. Teoria e prática do trabalho de campo: alguns problemas. In: CARDOSO, Ruth C. L. (Org.). Aventura Antropológica. São Paulo: Paz e Terra, 1986, p. 119.

Page 22: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

21

fatos sobre a sua vivência e realidade, se põe a narrar aquilo que o pesquisador

quer ouvir ou, ainda, aquilo que ele acredita que deve ser dito para o pesquisador.

Não há dúvida que trabalhos como o realizado no PART fortaleceu o

compromisso e levou a autora a estabelecer uma relação de empatia com a

comunidade, em nada comparada a noção de distância e neutralidade dos

tradicionais preceitos da cientificidade clássica que asseveram a necessidade de

nos afastar desse ―contato‖, pois, caso contrário, estaríamos contaminados por

emoções que ofuscariam a objetividade cientifica do trabalho.14 Entretanto, entende-

se, que esse comprometimento com a comunidade não significa a perda da

objetividade do trabalho, mas é uma atitude necessária frente as situação

conflituosas em que as famílias do PART estão envolvidas:

[...] o conceito mesmo de objetividade e rigor científicos devem ser redefinidos e aperfeiçoados. Diante de uma realidade marcada por relações de dominação e de privilégio entre pessoas e grupos sociais, objetividade não pode ser mais sinônimo de comprometimento e de imparcialidade sob pena de se transformar em cinismo e insensibilidade.

15

Não era razoável usar as vestes da neutralidade frente às situações de

conflito que volta e outra às famílias do PART se veem expostas. ―Numa situação de

conflito, essa pretensa neutralidade bloqueia acesso aos dados mais importantes,

ciosamente guardados por aqueles que constituem os protagonistas das ocorrências

e acontecimentos‖.16 O ato de se decidir para qual lado se carregaria os sacos de

areia não implicou a perda da objetividade e criticidade. Ao contrário, como afirma

Martins, ―a opção pela clareza e definição da presença ainda que temporária no

grupo local, ao revelar detalhes da situação e dos acontecimentos que de outro

modo ficariam ocultos, expõe também, indiretamente, as ocultações do outro lado‖.17

O comprometimento com a comunidade estudada não impediu a autora de utilizar

criticamente os instrumentos teóricos dos quais dispunha e analisar de forma

rigorosa a história das famílias do assentamento.

14

BALTZ, Ricardo. A implicação um novo sedimento ase explorar na geografia. In: Boletim Paulista de Geografia. São Paulo: Associação dos Geógrafos Brasileiros, 2006, p.28. 15

OLIVEIRA, 1988, p. 26 apud MARCOS, Valéria de. Trabalho de campo em geografia: reflexões sobre uma experiência de pesquisa. In: Boletim Paulista de Geografia. São Paulo: Associação dos Geógrafos Brasileiros, 2006, p. 113. 16

MARTINS, José de Souza. Fronteiras: a degradação do outro nos confins do humano. p. 19. 17

Ibidem. p. 21.

Page 23: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

22

A opção pelas famílias do PART se deu em função de se acreditar que o

conhecimento produzido na universidade só se justifica se comprometido com a

sociedade e com as demandas sociais.18 Entende-se, que a pesquisa e a busca pela

compreensão da realidade vivenciada pelos assentados do Projeto de

Assentamento Rio Trairão, é importante não apenas para a qualificação individual e

atuação técnica, mas também porque os trabalhos oriundos desta são um apoio às

lutas acampadas pelas famílias do assentamento em busca do reconhecimento de

seus direitos.

Tal dedicação do acadêmico do Direito a compreensão dos processos e

especificidades que envolvem a questão agrária regional é importante para a

formação de profissionais abertos a percepção das reivindicações campesinas e

conscientes das distorções fundiárias que estão no cerne dos conflitos e das razões

que obstruem a Reforma Agrária.

Compartilha-se da ideia de Luis Alberto Warat, para quem os juristas devem

ser sensíveis as pessoas que estão envolvidas nos conflitos sociais, cientes da

necessidade de rompimento das barreiras da neutralidade sobre as quais se fundam

o imaginário dos juristas e ter o sentidos acurados não apenas às leis, mas

sobretudo à vida e aos afetos das populações sobre as quais estas recaem.19

A presente monografia está divida em seis capítulos, sendo que o primeiro e

o sexto correspondem, respectivamente a introdução e as considerações finais.

O segundo capítulo apresenta a categoria analítica utilizada para a

caracterização das famílias envolvidas na dinâmica social do Projeto de

Assentamento rio Trairão, destacando os limites conceituais utilizados para a

identificação do grupo social estudado, enquanto camponeses.

O terceiro capítulo destaca os processos sociopolíticos e o aparato jurídico

que mais diretamente respondem pelo que o espaço no qual a população estudada

está inserida. O ponto de partida é a década de 1960 e as ações intervencionistas

que pautaram as políticas adotadas pela ditadura militar para Amazônia e estende-

se até a década de 2000, com a questão dos assentamentos fantasmas. A

18

BUARQUE, Cristovam. A aventura da universidade. São Paulo: Editora da UNESP; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 167. 19

Cf. WARAT, Luis Alberto. ―Direito, sujeito e subjetividade: para uma cartografia das ilusões‖. In: Captura Críptica: direito política, atualidade. Revista Discente do Curso de Pós-Graduação em Direito. n.2., v.2. (jan/jun. 2010). Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2010; WARAT, Luis Alberto. A ciência jurídica e seus dois maridos. Santa Cruz do Sul: Faculdades Integradas de Santa Cruz do Sul, 1985.

Page 24: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

23

percepção dessas políticas, ações e modificações induzidas pelos governos na

Amazônia durante os últimos anos é imprescindível para a compreensão das

trajetórias de luta pela terra e por reconhecimento das famílias camponesas que se

instalaram na área alcançada pelo PART.

O quarto capítulo se dedica a trajetória da ocupação camponesa na área

hoje compreendida pelo PART: a entrada na terra, as dificuldades enfrentadas, a

criação do assentamento, o surgimento das comunidades. O capítulo constrói-se

essencialmente através das memórias expressa pelos assentados e ocupantes que,

mais que lembranças nostálgicas, são reveladoras das experiências, das

fragilidades, dos sonhos, dos ganhos e perdas ocorridas no decorrer dos anos. A

percepção desta trajetória é indispensável para a caracterização das famílias como

potenciais beneficiários da reforma agrária.

No quinto capítulo se destaca as características das famílias que ocupam

irregularmente o assentamento, mas que possuem características que nos permitem

apresentá-las como um público em potencial da reforma agrária. Para a construção

desse capítulo faz-se, inicialmente, uma abordagem sintética das definições de

figuras jurídicas importantes para a compreensão da figura do beneficiário da

reforma agrária, como a de reforma agrária, propriedade familiar, projeto de

assentamento. Posteriormente, apresenta as características das famílias que nos

permitem aproximar o perfil destas últimas a figura jurídica do beneficiário da

reforma agrária.

Page 25: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

24

2 CAMPESINATO: um conceito complexo

Para a caracterização das famílias envolvidas na dinâmica social do Projeto

de Assentamento Rio Trairão utilizou-se, no âmbito deste trabalho, o campesinato

como categoria analítica. Não é intenção adentrar na ampla discussão teórica

acerca do referido termo, mas apresentar os limites conceituais utilizados para a

identificação do grupo social estudado, enquanto camponeses.

É difícil apontar uma definição do termo camponês, haja vista o universo de

conceitos e teorias relacionados à existência campesina e do conjunto diversificado

de sujeitos sociais que esta categoria comporta. Interpretado e apresentado de

diversas maneiras ao longo de sua marcha histórica, os camponeses já foram desde

classe bárbara, a objeto de teorias que anunciaram o seu fim 20. Várias são as

palavras utilizadas para designar o camponês, bem como as por eles utilizadas para

se autodenominarem. Essas diversas designações, normalmente, estão

historicamente imbuídas de uma visão depreciativa do modo de vida desses sujeitos

e reforçam a ideia da subalternidade campesina:

Desde remotas sociedades, textos literários, religiosos e políticos expressam o modo depreciativo pelo qual o poder visualiza esses anônimos sustentáculos dos banquetes e das guerras. Em Roma paganus, [...]. Na Alemanha do século XIII a Declinatio rustica tinha seis declinações diferentes para a palavra camponês: vilão, rústico, demônio, ladrão, bandido e saqueador.

21

Algumas categorias utilizadas pelos próprios camponeses para sua própria

definição podem em determinados casos indicar a aceitação de uma visão

depreciativa acerca de seu modo de vida, em contraposição ao do grande

proprietário de terra, aos agentes estatais ou mesmo a população urbana.

Entretanto, no momento em que os camponeses passam a se identificar

socialmente, deixam de recorrer a designações que ressaltam condições

subalternas ou humilhantes e passam a utilizar termos que reforcem o seu lugar

social e as suas lutas.22

20

MOURA, Margarida Maria. Camponeses. São Paulo: Ática, 1986. 21

Ibidem, p.15. 22

MOURA, Margarida Maria. Camponeses. São Paulo: Ática, 1986, p. 14-15.

Page 26: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

25

No Brasil, como afirma José de Sousa Martins23, os vocábulos ―camponês‖,

―campesinato‖ e ―latifundiário‖ são relativamente recentes. Passaram a ser utilizados

mais amplamente, por volta dos anos 1950, não apenas para substituir termos

regionais pejorativos como caboclo, caipira e as diversas designações dadas em

cada região aos possuidores e pequenos proprietários de terra, mas para dar conta

das diversas reinvindicações por terra e bandeiras de lutas levantadas pelos

camponeses e que irromperam, no referido período, em diversas localidades do país

e alcançaram repercussão nacional.

Dentro deste contexto de lutas e debates políticos, as expressões

campesinato e latifundiário passam a ser utilizadas como ―palavras políticas‖ e

assumem uma função inédita que vai além da identificação social e configura uma

tentativa de representar a unidade dos camponeses enquanto ―classe‖ e das lutas

por ele perpetradas. São expressões que vão além da designação do espaço

geográfico ocupado por esses grupos sociais e estão profundamente ligadas ao

lugar social desses sujeitos na estrutura da sociedade na qual estão inseridos, bem

como estão associadas à identificação de um destino histórico.24

Sendo um conceito de grande vitalidade teórica e empírica e de notável força

dentro da história, a opção por uma ou outra definição de campesinato não é uma

tarefa simples 25 . No Brasil, os estudos voltados para o campesinato foram

profundamente marcados pela adoção de uma linha de pensamento que ressaltava

a interpretação do campesinato a partir da compreensão da família camponesa

como uma unidade econômica. Dentro deste viés de compreensão, apoiados

principalmente pelos estudos de Alexander Chayanov, o núcleo familiar camponês é

apresentado como um grupo doméstico marcado pelo balanço entre produção e

consumo. Assim, Klaas Woortmann afirma ser:

[...] inegável que durante o século XX, ou boa parte dele, não só economistas, mas também sociólogos e antropólogos, voltados para o entendimento da produção e da reprodução social camponesa, inclusive no Brasil, incorporaram em suas reflexões os princípios elaborados por Chayanov em seu esforço para desvendar a lógica da economia camponesa. Com base numa série de levantamentos estatísticos realizados na Rússia desde

23

MARTINS, José de Sousa. Os camponeses e a política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político. Petrópolis: Vozes, 1981. 24

Ibidem, p. 22s. 25

MOURA, Margarida Maria. Op. Cit. São Paulo: Ática, 1986, p. 13.

Page 27: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

26

1870, Chayanov formulou sua teoria da especificidade da economia camponesa. Haveria como que um "modo de produção doméstico", distinto do escravismo, feudalismo e capitalismo. Seu modelo partia do grupo doméstico individual, cujo objetivo básico seria garantir a satisfação de suas necessidades, e não a realização do lucro, razão pela qual o campesinato não deveria ser considerado como uma forma de capitalismo incipiente. O núcleo de sua teoria está no princípio subjetivo do equilíbrio entre necessidades de subsistência e a rejeição do trabalho manual além de determinado limite, isto é, de sua desutilidade [...]

26.

Apesar da grande contribuição de Chayanov, é impossível deixar de notar

que seus estudos não abordam um ponto essencial para a compreensão do

campesinato: o universo cultural do camponês. Consequentemente, tem-se a ampla

difusão de um viés de pensamento que se fundamenta em noções deterministas

acerca da condição e da existência camponesa e reforça o entendimento de

campesinato enquanto sinônimo de atraso, fragilidade política, ineficiência técnico-

politica e mote de uma morte constantemente anunciada e adiada.

Repleto de conteúdos culturais, tanto no plano social, como no político, não

é possível restringir o conceito de camponês à mera materialidade econômica da

troca de mercadorias ou apenas a um pequeno produtor. O referido conceito sugere

características de uma determinada organização social, do modo de vida, tais como

o comportamento político, costumes de herança, tradições de herança e o trabalho

famíliar27 e impõe uma compreensão mais ampla desse universo cultural, político,

econômico e social no qual o camponês produz e se reproduz. Assim, para a

compreensão da construção história e social do campesinato é necessário romper

com a primazia do econômico e privilegiar os aspectos ligados à cultura.28

2.1 AS ABORADAGENS DA AGRICULTURA CAMPONESA

Ao tratar das abordagens teóricas relacionadas à agricultura camponesa a

partir do processo de generalização do modo de produção capitalista, o geógrafo

Ariovaldo Umbelino de Oliveira, em seu livro Modo de Produção Capitalista,

26

WORTMANN, Klass. “O Modo de Produção Doméstico em duas perspectivas‖: Chayanov e Sahlins. In: Anuário Antropológico. Brasília: UnB, 2001, p . 27

MOURA, Margarida Maria. Camponeses. São Paulo: Ática, 1986, p.69. 28

WELCH, Cliford A. et al. (Orgs). Camponeses Brasileiros. São Paulo: Unesp, 2009.

Page 28: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

27

Agricultura e Reforma Agrária,29 aponta três vertentes teóricas utilizadas para a

compreensão da agricultura camponesa e do modo de produção camponês: a da

destruição do campesinato, a da permanência de resquícios feudais e a da criação e

recriação do campesinato.

2.1.1 A DESTRUIÇÃO DO CAMPESINATO

A primeira vertente apresentada compreende as transformações no campo

como resultado do processo de generalização das relações de produção capitalistas,

bem como interpreta a persistência de relações não-capitalistas de produção neste

meio, como um resíduo cuja a extinção no plano econômico é inevitável. 30 A

generalização das relações de produção capitalistas no campo se daria por dois

caminhos: um, produto da destruição do campesinato e o outro, fruto da

modernização do latifúndio.

No primeiro caminho, a destruição do campesinato seria provocada pelo

processo diferenciação interna dos camponeses, acarretado pelas contradições

advindas da integração do campesinato no mercado capitalista. Assim:

[...] o camponês, ao produzir cada vez mais para o mercado, tornar-se-ia vítima ou fruto desse processo [de integração do camponês ao mercado capitalista], pois ficaria sujeito às crises decorrentes das elevadas taxas de juros (para poder ter acesso à mecanização, por exemplo) e aos baixos preços que os produtos agrícolas alcançam no momento das colheitas fartas.

31

O fruto do referido processo de inserção dos camponeses no mercado

capitalista seria surgimento de duas distintas classes sociais no campo: a dos

camponeses ricos, formada por pequenos capitalistas rurais, e a dos camponeses

pobres, que durante o processo seriam reduzidos à condição de trabalhadores

assalariados a serviço do capital industrial ou agrário.

O segundo caminho seria marcado pela modernização da agricultura, por

meio da ―introdução no processo produtivo de máquinas e insumos modernos, o que

29

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Modo de Produção Capitalista, Agricultura e Reforma Agrária. São Paulo: FFLCH/Labur Edições, 2007, p. 08-12. 30

Ibidem, p. 9. 31

Ibidem, p. 9.

Page 29: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

28

permitiria a evolução das grandes propriedades para empresas rurais capitalistas.

Assim, os grandes proprietários de terra tornar-se-iam capitalistas do campo‖. Dentro

deste cenário, os interesses de camponeses ricos e dos grandes capitalistas do

campo estariam unificados e os camponeses pobres seriam transformados em

trabalhadores assalariados a serviço do capital agrário ou industrial.32

Em ambos os caminhos, o modo capitalista de produção se implantaria no

campo, tal como se implantou na indústria. A referida implantação não alteraria

profundamente a estrutura social existente, de modo que se estabeleceria no campo

a mesma divisão de classes existentes na cidade. Nessa linha de pensamento,

camponeses e latifundiários não são considerados classes sociais pertencentes ao

capitalismo e o seu modo de produzir 33 , mas resíduos condenados ao

desaparecimento através da sua incorporação ao capitalismo.

2.1.2 RESQUÍCIOS DAS RELAÇÕES E DO MODO DE PRODUÇÃO FEUDAL

A segunda vertente apresenta o campesinato e os latifundiários como

evidências da sobrevivência das relações feudais de produção34. Nesta corrente,

parte-se do principio da penetração das relações capitalistas no campo e na crença

da existência de uma dualidade entre a cidade, enquanto setor urbano industrial

capitalista e o campo, enquanto setor pré-capitalista marcado pelo atraso e por

resquícios feudais.

Nesse viés de pensamento, o rompimento das estruturas políticas

tradicionais de dominação e ―coerção extra-econômica‖ que marcavam as relações

feudais, possibilitaria a penetração das relações de produção capitalista no campo e

desencadearia um ―processo de separação fundamental‖ na produção camponesa

cujo resultado seria a extinção do campesinato.35 O referido processo se daria em

três etapas:

32

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Modo de Produção Capitalista, Agricultura e Reforma Agrária. São Paulo: FFLCH/Labur Edições, 2007, p. 9. 33

Segundo Oliveira (2007, p.20) Entende-se por modo de produção capitalista, o processo contraditório de reprodução ampliada do capital que pressupõe a criação de relações não-capitalistas de produção dentro do capitalismo, ―uma vez que o capital, ao reproduzir-se, reproduz também de forma ampliada as suas contradições. 34

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Op. Cit., p. 10.

Page 30: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

29

Na primeira fase, se promoveria a liberação do camponês da hierarquia

tradicional e dos vínculos comunitários aos quais era submetido, tornando-o o

camponês um ―produtor individual‖. 36 A segunda etapa seria marcada pela

separação entre a indústria rural e a agricultura e a incorporação do camponês

(produtor individual) a agricultura de mercado, como produtor de bens agropecuários

e consumidor de mercadorias industrializadas.

A consequência dessa inserção do camponês, enquanto produtor individual,

na economia de mercado seria o seu endividamento, haja vista a contraposição

entre os baixos valores auferidos na venda dos produtos por eles produzidos, e os

altos cultos do consumo de bens industrializados. O crescente endividamento do

camponês conduziria a uma terceira etapa, marcada pela perda do seu meio de

produção, a propriedade, em decorrência da não satisfação de suas dívidas e pela

proletarização do camponês.37

2.1.3 A CRIAÇÃO E RECRIAÇÃO DO CAMPESINATO NO CAPITALISMO

Para este viés teórico, o processo de generalização do modo de produção

capitalista no campo se dá de forma contraditória. O avanço do modo de produzir do

capital não seria apenas resultado de relações especificamente capitalistas, mas

também de relações não-capitalistas necessárias à reprodução deste, ou seja, o

capitalismo cria e recria formas não-capitalistas de produção contraditoriamente

necessárias à sua expansão como, por exemplo, o campesinato38.

Assim, a expansão capitalista no campo provocaria não somente a

expropriação do camponês, como também engendraria condições para a

reprodução do campesinato e da manutenção do seu modo de trabalho. Tal situação

é possível, porquanto, dentro do desenvolvimento contraditório do capitalismo,

normalmente, a sujeição do camponês não está diretamente relacionada à

subordinação do seu trabalho, mas, da sua produção.

36

OLIVEIRA, Ariovaldo U. de. Modo de Produção Capitalista, Agricultura e Reforma Agrária. São Paulo: FFLCH/Labur Edições, 2007, p.10. 37

Ibidem, p. 10. 38

Ibidem, p. 11.

Page 31: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

30

[...] presença significativa de camponeses na agricultura dos países capitalistas é pela via de que tais relações não-capitalistas são produto do próprio desenvolvimento contraditório do capital. A expansão do modo capitalista de produção, além de redefinir antigas relações, subordinando-as à sua produção, engendra relações não-capitalistas igual e contraditoriamente necessárias à sua reprodução.

39

Neste caso, o que se tem é um processo de sujeição da renda da terra ao

capital, por meio da qual, ao mesmo tempo, se especula a terra e se subordina a

produção camponesa. Sobre o assunto Oliveira afirma que a:

Na agricultura, esse processo de subordinação das relações não-capitalistas de produção se dá sobretudo, pela sujeição da renda da terra ao capital. O capital redefiniu a renda da terra pré-capitalista existente na agricultura. Ele agora apropria-se dela, transformando-a em renda capitalizada da terra. É neste contexto que se deve entender a produção camponesa: a renda camponesa é apropriada pelo capital monopolista, convertendo-se em capital.

40

Para a caracterização do grupo social estudado, adotamos essa vertente

teórica, que concebe o camponês como integrante do próprio processo de

desenvolvimento do modo de produção capitalista. Partilhamos da opinião de

autores como Ariovaldo Umbelino de Oliveira e José de Souza Martins, para os

quais a expansão do capitalismo no campo, ao mesmo tempo, expropria e,

contraditoriamente, promove condições para a permanência e reprodução do

campesinato no seu interior. Assim:

[...] a abertura de novas frentes de ocupação na Amazônia traz consigo o caráter contraditório da formação da estrutura fundiária brasileira. Ou seja, o processo que leva os grandes capitalistas investirem na fronteira, contém o seu contrário, a necessária abertura dessa fronteira aos camponeses e demais trabalhadores do campo

41.

39

OLIVEIRA, Ariovaldo U. de. Modo de Produção Capitalista, Agricultura e Reforma Agrária. São Paulo: FFLCH/Labur Edições, 200, p. 40. 40

Ibidem, p. 40. 41

OLIVEIRA. Ariovaldo U. de. ―BR-163 Cuiabá-Santarém: Geopolítica, grilagem, violência e mundialização‖. In TORRES, Mauricio. Amazônia Revelada: os descaminhos ao longo da BR-163. Brasília: CNPQ, 2005, p. 68.

Page 32: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

31

A abertura de estradas, a propaganda estatal que enfatizava a abundância

das terras livres na Amazônia e a inexistência de pessoas ocupando-as levou a

migração para a região de pessoas vindas de diversos cantos, principalmente, do

Nordeste. Como se verá no Capítulo 3, a população que empreendeu a ocupação da

área hoje compreendida pelo Projeto de Assentamento Rio Trairão formou-se no

bojo destas transformações acarretadas pela expansão capitalista na Amazônia.

No entanto, a conceituação social da população do PART como camponesa

não está baseada apenas na linha de pensamento que destaca a criação e recriação

do campesinato no interior das relações capitalistas, mas também se baseia no

pensamento de autores que dedicaram ao estudo do universo cultural, das relações

de sociabilidade, as lógicas familiares e de trabalho do camponês, como Klass e

Ellen Woortmann42.

42

WOORTMANN, Ellen F.. Herdeiros, Parentes e Compadres. São Paulo: Hucitec, 1995.

Page 33: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

32

3 CAMPONESES E CAPITALISTAS NOS DESCAMINHOS DA

AMAZÔNIA

Para a compreensão de um assentamento rural e dos sujeitos sociais nele

envolvido é necessário situá-los no contexto sociopolítico nos quais estão inseridos.

Esse contexto, normalmente, encontra-se consubstanciado em processos anteriores

ao ato de criação do assentamento, principalmente aqueles relacionados às políticas

de colonização.43

Assim, a compreensão do que hoje é o Projeto de Assentamento Rio Trairão

(PART) passa necessariamente pela percepção da ocupação camponesa que está

na sua gênese e essa última só tem sentido se consideradas as transformações

mais recentes pelas quais a Amazônia passou, especialmente a partir da década de

1960, com o advento das ações e políticas perpetradas pelos governos militares.

A percepção dessas ações e modificações induzidas pelos governos na

Amazônia durante os últimos anos é imprescindível para a compreensão das

trajetórias de luta pela terra e por reconhecimento dos camponeses que se

instalaram na região. No PART, o paralelo entre essas ações é perceptível nas

próprias narrativas das famílias que chegaram na década de 1980 na área onde

anos mais tarde o assentamento seria criado.

Delas assomam, praticamente, todos os momentos das ações que pautaram

a política de assentamento no Polígono Desapropriado de Altamira. Das políticas

que caracterizaram o Plano de Integração Nacional ao recente escândalo da criação

em massa dos chamados ―assentamentos fantasmas‖. Todos estes momentos de

alguma forma se ligam a história da região onde o assentamento foi implantado ou a

trajetória social dos moradores do Projeto de Assentamento Rio Trairão.

Cabe então, ainda que brevemente, esboçar no presente capítulo, as linhas

pelas quais se pautaram as ações governamentais na região amazônica e que mais

diretamente responde pelo que é o Projeto de Assentamento Rio Trairão. O ponto de

partida é a década de 1970 e as ações intervencionistas que pautaram a ditadura

militar, implantada no Brasil em 1964. Como se verá estas políticas possibilitaram a

expansão do grande capital, mas também a recriação de trajetórias camponesas.

43

BRENNEISEN, Eliane. Da luta pela terra a luta pela vida: entre os fragmentos do presente e as perspectivas do futuro. São Paulo: Annablume, 2004, p. 19.

Page 34: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

33

3.1 1964: um requiem à reforma agrária

No dia 19 de março de 1964, uma multidão de pessoas de ―boa família‖ sai

às ruas de São Paulo para engrossar as fileiras da ―Marcha da Família com Deus

Pela Liberdade‖. Os manifestantes reivindicavam a intervenção no processo político

em curso no país e a derrubada do governo constitucional do Presidente João

Goulart.44 Embalada por bandas de música, a multidão ―orava‖ pelo país e repudiava

a qualquer tentativa de afronta a Constituição e aos princípios, garantias e

prerrogativas democráticas que viessem a ser perpetrados pelo governo federal.45 O

clima passeata que tomou as ruas e finalizou na frente da Catedral Metropolitana,

também saltava das páginas dos jornais da época:

A disposição de São Paulo e de todos os recantos da pátria para defender a Constituição e os princípios democráticos (...) originou ontem o maior movimento cívico já observado em nosso Estado (...) numa mobilização que envolveu meio milhão de homens, mulheres e jovens, também de outros Estados: ―A Marcha da Família com Deus pela Liberdade‖. (...) Foi a maior manifestação já vista em nosso Estado. O repúdio a qualquer tentativa de ultraje a Constituição Brasileira e a defesa dos princípios, garantias e prerrogativas democráticas constituíram a tonica de todos os discursos e mensagens dirigidos das escadarias da catedral aos brasileiros, no final da passeata.

46

Organizada na Sociedade Rural Brasileira, entidade aglutinadora dos

grandes fazendeiros paulistas alijados do poder desde a Revolução de 1930, e

articulada pelo Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES), ente comandado por

um Estado civil-militar, a marcha em nada correspondia aos anseios espirituais e de

liberdade invocados em seu nome. O que, realmente, os alarmava e os motivava ao

combate era o avanço das pressões populares em favor das reformas de base, que

incluíam a reforma agrária47 e as ações governamentais que feriam os interesses de

grupos internacionais que buscavam o monopólio de exploração dos recursos

44

DREIFUSS, René Armand. 1964: A conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 297-298 apud MARTINS, José de Souza. A militarização da Questão Agrária. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 28-29 45

FOLHA DE SÃO PAULO, sexta-feira, 20 de março de 1964. São Paulo parou ontem para defender o regime. Disponível em: http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil_20mar1964.htm. Acessado em: 10 de abril de 2012. 46

Ibidem. 47

DREIFUSS, René Armand. 1964: A conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 297-298 apud MARTINS, José de Souza. Op. Cit., p. 28-29.

Page 35: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

34

minerais do país48. Por trás da invocação da família, de Deus e da Liberdade,

escondiam-se os interesses terrenos e materiais dos grandes proprietários de terras,

negociantes, banqueiros e industriais, nacionais e estrangeiros.49 Esses interesses

estavam, aparentemente, ameaçados pelas políticas e atitudes tomadas pelo então

Presidente da República, apesar deste, também, ser um grande proprietário de

terras.

Segundo José de Souza Martins, no dia anterior a Marcha, o Diário Oficial

da União, publicara o decreto assinado por João Goulart em praça pública, durante o

Comício da Guanabara, realizado no dia 13 de março de 1964, no Rio de Janeiro,

em favor das reformas de base. O Decreto Presidencial n° 53.700/1964, declarava

de interesse social, para fim de desapropriação, os dez quilômetros de faixas de

terra que ladeavam rodovias federais, ferrovias nacionais e terras beneficiadas por

obras da União e que estivessem inexploradas ou exploradas de forma contrária a

função social da propriedade. Antes deste decreto, sempre invocado para justificar o

início do golpe militar de 1964, já havia assinado outros atos presidenciais mais

importantes relacionados à questão agrária.50

Dois anos antes, o Congresso Nacional aprovara o Decreto n° 4.132/1962

que definia os casos ensejadores de desapropriação por interesse social,

regulamentando o Artigo 147, da Constituição Federal de 1946. Embora, ainda,

existissem os empecilhos constitucionais relacionados à indenização ―prévia, justa e

em dinheiro‖, estavam entreabertas as portas para a reforma agrária. Em abril de

1963 foram decretadas as primeiras desapropriações no estado do Rio de Janeiro e,

posteriormente, outras formam decretadas no mesmo estado, em Goiás, em Minas

Gerais e no Nordeste.51

Parecia chegada a hora da reforma agrária se tornar realidade. Os

caminhos, no entanto, foram outros. Em 31 de março de 1964, as Forças Armadas

se sublevam contra o governo federal e deflagram um golpe de Estado. João Goulart

é deposto e a ditadura militar é implantada no país. Instaurava-se um período de

chumbo, marcado por repressões em diversas escalas. No campo, mas que

48

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Integrar para não entregar: políticas públicas e Amazônia. Papirus: Campinas, 1988. 49

MARTINS, José de Souza. A militarização da Questão Agrária. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 29 50

Ibidem, p. 29 51

Ibidem, p. 29

Page 36: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

35

arbítrios, os governos militares, apoiados em um simulacro de reforma agrária,

limparam a terra para a implantação do grande capital.

Um dos primeiros atos de governo do ditador Marechal Humberto de Alencar

Castello Branco foi liquidar o projeto de reforma agrária do presidente destituído,

revogando boa parte dos decretos assinados por Goulart. Sete meses após a

revogação dos referidos decretos, Castello Branco encaminhou ao Congresso

Nacional proposta de emenda a Constituição. Tratava-se da Emenda Constitucional

n° 10, de 09 de novembro de 1964, que modificava o texto da alínea ―a‖, do Art. 5°,

incluindo entre as competências de legislar da União as matérias de Direito Agrário,

bem como acrescentava ao Art. 147, entre outros, os seguintes parágrafos:

§ 1º Para os fins previstos neste artigo, a União poderá promover desapropriação da propriedade territorial rural, mediante pagamento da prévia e justa indenização em títulos especiais da dívida pública, com cláusula de exata correção monetária, segundo índices fixados pelo Conselho Nacional de Economia, resgatáveis no prazo máximo de vinte anos, em parcelas anuais sucessivas, assegurada a sua aceitação a qualquer tempo, como meio de pagamento de até cinqüenta por cento do Impôsto Territorial Rural e como pagamento do preço de terras públicas. [...] § 5º Os planos que envolvem desapropriação para fins de reforma agrária serão aprovados por decreto do Poder Executivo, e sua execução será da competência de órgãos colegiados, constituídos por brasileiros de notável saber e idoneidade, nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a indicação pelo Senado Federal.

52

A efetividade da Emenda n° 10/1964, fez-se sentir rapidamente com a

aprovação, pelo Congresso, da Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964, conhecida

como o Estatuto da Terra e um dos principais sustentáculos jurídicos utilizados pelos

militares para a intervenção na estrutura fundiária do país. Na gênese do Estatuto da

Terra estavam pressões sociais, mas, sobretudo a norte-americana para a

realização da reforma agrária.

O estrategista militar e economista norte-americano Walt Rostow, alguns meses após o golpe disse em palestra a grandes empresários de São Paulo que a reforma agrária iria ―integrar a imensa população rural ao

52

BRASIL. Emenda Constitucional n° 10/1964. In Coletânea de legislação e jurisprudência agrária e correlata. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário, Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2007, p. 34/35.

Page 37: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

36

mercado e encorajar o desenvolvimento industrial‖.53

Depois da Segunda Guerra Mundial, a Coréia do Sul e o Japão, guiados pelos Estados Unidos, tiveram um grande crescimento industrial graças a divisão das grandes propriedades de terra. Tudo levava a crer na mesma pressão sobre o Brasil.

54

Tecnicamente bem constituído e detalhado, o Estatuto estabeleceu as bases

da Reforma Agrária e da Política Agrícola, bem como uma série de outros institutos

jurídicos importantes para a concretização desta Reforma. O mais destacável destes

institutos é o da propriedade familiar apontada pela Lei como a forma precípua da

distribuição das terras desapropriadas para fim de reforma agrária.55 Aparentemente

o governo militar estava disposto a implementar a sonhada reforma agrária, mas a

finalidade era outra.

A realidade passava a mostrar que, uma vez desarticulada a organização popular dos trabalhadores, o Estado, através de sua estrutura burocrática, iria realizar a tão esperada reforma agrária. Ledo engano, pois foi o próprio Ministro do Planejamento do então governo militar, Roberto Campos, quem garantiria aos congressistas latifundiários que a lei era para ser aprovada, mas não para ser colocada em prática. A história dos 20 anos de governos militares mostrou que tudo não passou de ―uma farsa histórica‖, pois, apenas na década de 1980, foi que o governo elaborou o Plano Nacional da Reforma Agrária — instrumento definidor da política de implementação da reforma agrária.

56

A velocidade da aprovação e implementação de medidas legais e

administrativas voltadas para a questão agrária impressionava. Segundo José de

Souza Martins, antes do término de 1964, o governo federal já dispunha de uma

legislação fundiária específica e de critérios definidos, instrumentos e instituições

voltadas para concretização da reforma agrária. Aparentemente, Castello Branco

fora mais persuasivo que João Goulart no encaminhamento da questão junto ao

Congresso Nacional, haja vista que o último aprovou em um mês o que se recusara

a aprovar nos 18 anos precedentes. Já em 1969, o Marechal Arthur da Costa e Silva

53

MARTINS, José de Sousa. O poder do atraso: ensaios de sociologia da história lenta. São Paulo: Huitec, 1999, p.78 apud TORRES, Mauricio. ―Fronteira, um eco sem fim: Considerações sobre a ausência do Estado e a exclusão nos municípios paraenses do eixo da BR-163‖. In: TORRES, Mauricio. Amazônia Revelada: os descaminhos ao longo da BR-163. Brasília: CNPQ, p. 272. 54

TORRES, Mauricio. Op. Cit., p. 272. 55

BRASIL. Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. In: Coletânea de legislação e jurisprudência agrária e correlata. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário, Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2007, p. 127. 56

OLIVEIRA, Ariovaldo U. de. Modo de Produção Capitalista, Agricultura e Reforma Agrária. São Paulo: FFLCH/Labur Edições, 2007, p. 121.

Page 38: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

37

suprimiria, através do Ato Institucional n. 9, a figura da indenização prévia que havia

sido mantida na Constituição de 1967. E em 1971, o General Emílio Garrastazu

Médici, colocaria sob tutela federal, para fins de colonização os 200 quilômetros que

ladeavam as rodovias federais construídas, em construção ou planejadas na

Amazônia Legal.57 Estas ações dos militares em relação à questão agrária soavam,

aparentemente, contraditórias, mas não eram.

Grandes tensões vinham varrendo o campo nos anos anteriores ao golpe

militar, principalmente no Nordeste e no Sul. O campo era sacudido pela atuação

das Ligas Camponesas. Sujeitos ao latifúndio armado do Nordeste, expropriados

pela crise do café, pelo avanço da industrialização, pela crescente mecanização do

campo e, até mesmo, pela construção de hidrelétricas no Sul, os camponeses

ansiavam por liberdade e reforma agrária e iam à luta pela terra. Fazia-se

necessário esvaziar esses pontos de tensão. No entanto, não era interesse dos

governos militares modificar a concentrada base agrária do país. Tornava-se,

imprescindível, aos militares a efetivação de uma política e reforma agrária que,

subsidiada por um aparato legal e administrativo, que se ajustasse aos interesses

em jogo e não se valesse da redistribuição de terras. Uma reforma agrária que

mantivesse o latifúndio intocável. É neste momento que ―os militares anunciam um

ambicioso projeto para ocupar a bacia amazônica. A reforma agrária do Sul e do

Nordeste seria feita... na Amazônia‖.58

3.2 OPERAÇÃO AMAZÔNIA

A partir da década de 1960, os governos militares, através de diversas ações

e políticas, começam a colocar em prática um amplo programa de integração

econômica da região amazônica. Firmado em bases suspostamente modernas e

baseados em uma avaliação que destacava a vulnerabilidade geopolítica e a

subutilização econômica da região, os governos militares decidiram ―ocupar‖ a

Amazônia, fomentando a implantação do grande capital nacional e estrangeiro. O

57

MARTINS, José de Souza. A militarização da questão agrária no Brasil. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 29/30. 58

TORRES, Mauricio. ―Fronteira, um eco sem fim: Considerações sobre a ausência do Estado e a exclusão nos municípios paraenses do eixo da BR-163‖. In: Amazônia Revelada: os descaminhos ao longo da BR-163. Brasília: CNPQ, 2005, p. 274.

Page 39: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

38

conjunto das medidas governamentais que daí se seguiu ficou conhecido como

―Operação Amazônia‖.

A estratégia geopolítica de ocupação da região adotada pelo Estado

baseava-se na promoção de duas alianças fundamentais para a compreensão da

faceta que a questão agrária assumiria no país e, principalmente, na Amazônia. A

primeira soldava em nível interno os interesses do capital nacional e do capital

internacional. A segunda soldava em nível nacional os interesses dos empresários

industriais e os proprietários de terra, tornado o empresariado nacional e estrangeiro

latifundiários. 59 Assim, para atrair o empresário ―inovador‖ do Centro-Sul e do

exterior, o Estado, tomando para si o papel de promotor/indutor do crescimento

econômico, estabeleceu um ―modelo de desenvolvimento amazônico" que facilitou a

expansão capitalista na região e promoveu a alteração das dinâmicas sociais da

região.60

Para implementação de suas ações na região, os militares, nos primeiros

anos de governo, criaram um amplo aparato institucional e jurídico. Já em dezembro

de 1965, veio à luz um dos dispositivos basilares da estratégia do Estado autoritário:

a Emenda Constitucional n° 18. Tal Emenda, através do seu Artigo 27, estendeu ―à

Região Amazônica todos os incentivos fiscais, favores creditícios e demais

vantagens concedidas pela legislação à Região Nordeste do Brasil‖.61

Nove meses após, é sancionada a Lei n° 5.106, de 02 de setembro de 1966,

que instituiu a concessão de incentivos fiscais sobre empreendimentos florestais em

todo o país. O advento desses dispositivos abriu caminho para a sanção

presidencial, em 27 de outubro de 1966, da Lei n° 5.173, que criou da

Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e outros mecanismos

que visavam agilizar e operacionalizar a atuação da Superintendência, como o

Fundo para Investimentos Privados no Desenvolvimento da Amazônia (Fidam).

No mesmo dia, Castello Branco sancionou a Lei n° 5.174, que dispunha

sobre a concessão de incentivos fiscais em favor da Amazônia. A Lei destacava-se

pela extrema liberalidade com as pessoas jurídicas que viessem a desenvolver

59

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Integrar para não entregar. Campinas: Papirus, 1988, p. 34. 60

MONTEIRO, Maurílio de Abreu; COELHO, Maria Célia Nunes. ―As politicas federais e as reconfigurações espaciais na Amazônia‖. In: Novos Cadernos do NAEA. Belém: UFPA, 2004, p. 91-122. 61

BRASIL. Emenda Constitucional n° 18, de 01 de dezembro de 1965. Disponível em: http://www2.camara.gov.br/legin/fed/emecon/1960-1969/emendaconstitucional-18-1- dezembro-1965-363966-publicacaooriginal-1-pl.html. Acessado em: 02.maio.2012.

Page 40: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

39

empreendimentos econômicos considerados de interesse ao desenvolvimento

regional na área de atuação da Sudam. Além de conceder a isenção de imposto de

renda e de taxas federais para as atividades industriais, agropecuárias e de serviços

básicos, a lei isentava do pagamento de impostos e taxas as máquinas e

equipamentos sem similares no mercado local que fossem importados e os bens

doados por entidades estrangeiras.

Nesse contexto, ainda, inseriram-se o I Plano Quinquenal de

Desenvolvimento operacionalizado de 1967 a 1971 e o Plano Diretor de 1968. Neles

se estabelecia, em suma, que caberia ao governo federal promover meios de

atração de capitais para a Amazônia, tarefa que seria implementada através do

fornecimento de infraestrutura, concessão de isenções fiscais e dos créditos

necessários para a implantação dos empreendimentos capitalistas na região. Assim,

estabelecia-se na Amazônia uma política de incentivos fiscais semelhante àquela

que vinha sendo promovida no Nordeste. Tal política facilitou a apropriação de terras

por grandes empresas e fazendeiros, o surgimento de grandes fazendas destinadas

a criação de gado, especialmente no Sul e no Sudeste do Pará e um processo de

apropriação fundiária voltado para a supressão de florestas e expansão de

pastagens que repercutiu nas dinâmicas sociais e ecológicas da região e promoveu

a concentração fundiária.62

Progressivamente, os conflitos fundiários que já ocorriam no Centro-Sul e no

Nordeste se estenderam à Amazônia. Especialmente com a criação da Sudam, o

governo estimulava a maciça ocupação da terra pelos grandes grupos econômicos,

em áreas que, anteriormente, haviam sido destinadas para o assentamento de

camponeses que haviam sido expropriados e expulsos pela concentração fundiária e

pelas transformações econômicas na agricultura e na agropecuária.63 Da adesão do

grande empresariado nacional e estrangeiro a Operação Amazônia nasceram os

processos de expropriação das terras dos indígenas, dos posseiros, da Amazônia

como um todo64 e os violentos conflitos fundiários que expropriam, ceifaram e, ainda,

ceifam a vida de camponeses, indígenas, quilombolas e ribeirinhos.

62

MONTEIRO, Maurílio de Abreu; COELHO, Maria Célia Nunes. ―As politicas federais e as reconfigurações espaciais na Amazônia‖. In: Novos Cadernos do NAEA. Belém: UFPA, 2004, p. 91-122. 63

MARTINS, José de Souza. A Militarização da Questão Agrária no Brasil. 2ª. Petrópolis: Vozes, 1985. p. 15-33. 64

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Integrar para não entregar. Campinas: Papirus, 1988, p. 34.

Page 41: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

40

3.3 “EXPROPRIAÇÃO POR DECRETO”

Para garantir o acesso à terra a grandes grupos econômicos e assegurar a

propriedade da terra ao grande capital, bem como para assegurar o regime, os

governos militares conceberam facilidades legais e promoveram alterações na

legislação existente no país, utilizando-se de dispositivos legais extraordinários e de

exceção. Estes instrumentos jurídicos serviram de sustentáculo às suas ações e

políticas e corresponderam aos anseios do regime despótico e dos grupos ao qual o

Estado associara-se. Entre esses instrumentos os mais destacáveis eram os

chamados Decretos-Lei e os Atos Institucionais.

Denominavam-se, decretos-leis, aqueles decretos que possuíam força de lei,

expedidos em momentos excepcionais, nos quais o Chefe do Estado concentrava

em suas mãos, também, o Poder Legislativo suspenso.65 Esses decretos-leis haviam

encontrado guarida na Constituição de 1937, sendo amplamente utilizados durante o

estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1947), especialmente aqueles do qual tratava

o Art. 180, do Ato das Disposições Transitórias e Finais.

Instrumentos do governo autoritário de Vargas, os decretos-leis acabaram

por ser extirpados do ordenamento jurídico pela Constituinte de 1946. Entretanto,

com o advento do regime militar e da Constituição de 1967, eles voltaram à cena. O

jurista Fábio Konder Comparato, que ao tratar da sucessão de regimes autoritários

durante a história do país afirma que

O que se viu, portanto, em todos esses episódios históricos, não foi a sucessão de um regime jurídico por outro, mas o amálgama do novo com o velho, do direito revogado com o direito revogador. Aquele, embora convidado a se retirar do proscênio, não desapareceu do teatro jurídico: foi simplesmente relegado aos bastidores, para ressurgir em cena, como personagem não esquecido, no momento oportuno.

66

O momento oportuno foi captado, os militares não apenas trouxeram de

volta a figura do decreto-lei, mas a potencializaram com o teor da Emeda

Constitucional nº 1, de 1969. O texto da referida Emenda dispunha que:

65

GLOSSÁRIO Econômico do Tesouro Nacional. Definição Oficial de Decreto-lei. Disponível em: http://www.tesouro.fazenda.gov.br/servicos/glossario/glossário_d.a sp. Acessado em: 10 de maio de 2011. 66

COMPARATO, Fábio Konder. ―O direito e o avesso‖. Estudos Avançados. [online]. 2009, vol.23, n.67, pp. 6-22. ISSN 0103-4014, p. 09.

Page 42: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

41

Art. 55. O Presidente da República, em casos de urgência ou de interêsse público relevante, e desde que não haja aumento de despesa, poderá expedir decretos-leis sôbre as seguintes matérias: I - segurança nacional; II - finanças públicas, inclusive normas tributárias; e

III - criação de cargos públicos e fixação de vencimentos. § 1º Publicado o texto, que terá vigência imediata, o Congresso Nacional o aprovará ou rejeitará, dentro de sessenta dias, não podendo emendá-lo; se, nesse prazo, não houver deliberação, o texto será tido por aprovado.

Como se pode subsumir da leitura do próprio texto constitucional, os

referidos decretos se configuravam como válvula de escape para os arbítrios em

forma de lei.67 Não havia um controle efetivo sobre a expedição desses decretos,

tendo em vista que o mesmo tinha vigência imediata e o Congresso não possuía

poder para emendar o texto legal, podendo apenas rejeitá-lo ou aceitá-lo. Se, por

algum motivo, o decreto fosse rejeitado isso não implicava a nulidade dos atos

praticados pelo governo durante a vigência dos referidos.

Além do mais, o texto constitucional fazia referência a duas expressões que

abriam um espaço imenso para o governo, se tratando do contexto da ditadura,

quais sejam, ―casos de urgência ou interesse público relevante‖ e a ―segurança

nacional‖. Quase ou todas as ações dos militares eram justificadas pela segurança

nacional e a necessidade de combater o inimigo externo. Nesse contexto, se a

urgência possibilitava menos espaço para a interpretação e caracterização, o

relevante interesse público não, afinal sempre era possível alegar interesse público

quando se tratava da segurança nacional, do desenvolvimento e da democracia,

palavras que, normalmente, eram utilizadas para justificar o regime. Basta uma

leitura da legislação promulgada a época para a percepção disso.

E o que falar dos Atos Institucionais (AI). Além de não possuírem previsão

Constitucional, eram apresentados como vetores da democracia pelos militares.

Efetivamente, ao procurarem justificar o golpe de estado de 1964, os chefes militares não hesitaram, no chamado Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964, em se declararem representantes do povo brasileiro, para exercer em seu nome o poder constituinte. A seguir, no ato Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965, o marechal Castello Branco e seus ministros exprobaram a ação de ―agitadores de vários matizes e elementos da situação eliminada‖, os quais ―ameaçam e desafiam a própria ordem revolucionária, precisamente no momento em que esta,

67

AGUIAR, Roberto. Direito, Poder e Opressão. São Paulo, Alfa-Omega, 1984.

Page 43: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

42

atenta aos problemas administrativos, procura colocar o povo na prática e na disciplina do exercício democrático‖. ―Democracia‖, prosseguiram os golpistas, ―supõe liberdade, mas não exclui responsabilidade nem importa em licença para contrariar a própria vocação política da nação‖; vocação política essa não explicitada no documento, mas que se supõe correspondente ao regime instituído com o golpe de estado de março do ano anterior... Essa retórica de defesa intransigente da democracia para encobrir todos os crimes atinge seu ponto culminante com o infame ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, que abriu as portas ao terrorismo de estado.

68

Desde o inicio da ditadura militar as propostas de desenvolvimento para a

Amazônia e a vida da população da região foram definidas por esses dispositivos

legais, 69 que justificados pela segurança nacional, ajustavam as questões

relacionadas à terra aos interesses de grandes grupos econômicos. As políticas

relacionadas à questão agrária já nasciam subordinadas a um processo de

reprodução ampliada do capital dos grandes grupos econômicos e a uma política

econômica que era essencialmente baseada na expropriação dos camponeses e

populações locais e na concentração de capital. A combinação desses interesses

definiu o lugar e o alcance dos instrumentos administrativos e legais, como Estatuto

da Terra. Nesse contexto, o Estatuto nada mais era que um instrumento de controle

das convulsões sociais e dos conflitos resultantes deste processo de expropriação e

concentração da propriedade e do capital.70 Segundo José de Sousa Martins:

Em nenhum momento antes ou depois do golpe durante a feitura dessa lei houve a intenção de realizar no país uma reforma agrária ampla e maciça, compatível com o ritmo das reinvindicações dos trabalhadores sem terra ou com terra insuficiente para o seu trabalho.

71

O Pará foi um dos estados que mais sofreu com o advento dos decretos-leis

que se sucederam durante a ditadura militar. As políticas adotadas e resguardadas

por estes decretos estabeleceram, no estado relações de poder e controle da terra

por meio da repressão e violência. Sobre este processo desencadeado na região

pelas ações adotadas pelos militares, Loureiro aduz:

68

COMPARATO, Fábio Konder. ―O direito e o avesso‖. Estudos Avançados. [online]. 2009, vol.23, n.67, pp. 6-22. ISSN 0103-4014, p.16. 69

LOUREIRO, Violeta Refkalefsky. Amazônia: estado, homem, natureza. Belém: Cejup, 2004, p.84. 70

MARTINS, José de Souza. A militarização da questão agrária no Brasil. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 35. 71

Ibidem, p. 25.

Page 44: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

43

Trata-se de um processo perverso pelo qual o Estado brasileiro tem historicamente produzido, sem cessar, a miséria social, por mecanismos legais e administrativos que promovem exclusão das classes desfavorecidas num extremo, e a concentração da riqueza por grupos econômicos e setores da elite.

72

O governo foi o agente indutor da concentração fundiária de terras nas mãos

de determinados setores como o dos pecuaristas, por meio da Superintendência de

Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). 73 Neste cenário, a obscuridade da

legislação fundiária não apenas serviu de pano de fundo perfeito para o

agravamento dos conflitos fundiários na região, mas também constitui-se como um

dos obstáculos à compreensão dos tensões sociais do campo existentes no Pará e

da condição agrária do estado. Quando, por exemplo, o Decreto-Lei n° 1.164/1971

veio à luz, o estado paraense já havia alienado parte das suas terras. No entanto, o

estado não mantinha uma sistematização eficiente ou um controle efetivo sobre

estas alienações ocorridas antes da federalização.74

Além disso, as sucessivas sobreposições legislativas e as imprecisões

cartográficas trouxeram uma perigosa dificuldade para o cenário: a indefinição sobre

determinadas áreas. Assim, tornava-se difícil estabelecer efetivamente qual o status

fundiário e, consequentemente, qual o ente público com jurisdição sobre elas. A

revogação dos decretos editados no período militar trouxe problemas ainda maiores.

As situações fundiárias que haviam se consolidado foram mantidas e resultaram no

acirramento dos conflitos fundiários já existentes e o surgimento de outros.

Ressalte-se que o governo pouco fez para conter estes conflitos. Pelo

contrário, pautou suas ações na tolerância às irregularidades e desmandos e

manteve uma política de silêncio e omissão frente às inúmeras ilegalidades

existentes no Pará, situação que estimulou e manteve um quadro violento, de

iniquidade e de graves usurpações de direitos que se mantém até hoje.75 Nesse

contexto, tornou-se prática frequente das autoridades tornar obscura a dinâmica dos

conflitos e das relações violentas que se estabelecem em solo paraense e acomodar

72

LOUREIRO, Violeta Refkalefsky; GUIMARÃES, Ed Carlos. Reflexões sobre a Pistolagem e a Violência na Amazônia, citado. 73

BENATTI, José Heder. ―Questão fundiária e sucessão da terra na fronteira oeste da Amazônia. Novos Cadernos NAEA. ISSN 1516-6481, v. 11, n. 2, Belém: UFPA, 2008. p. 85-122. 74

TORRES, Maurício. ―Fronteira, um eco sem fim: Considerações sobre a ausência do Estado e a exclusão nos municípios paraenses do eixo da BR-163‖. In: Amazônia revelada: os descaminhos ao longo da BR-163. Brasília: CNPQ, p. 271-319. 75

LOUREIRO, Violeta Refkalefsky; PINTO, Jax Nildo Aragão. A questão fundiária na Amazônia. Revista de Estudos Avançados [online] vol 19, n.54. São Paulo: USP, 2005, p. 77-98.

Page 45: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

44

os direitos de terra dos posseiros, ou de outros segmentos, e deixar que as partes

interessadas resolvam a disputa pela força e violência para depois regularizar o

suposto direito do vencedor.76

3.4 A POMPA E A CIRCUNSTÂNCIA: o Plano de Integração Nacional e a contra

reforma agrária

―Aqui vim para ver, com os olhos da minha sensibilidade, a seca deste ano,

e vi todo o drama do Nordeste. Vim ver a seca de 70, e vi o sofrimento e a miséria

de sempre‖. 77 Assim, começava o discurso proferido pelo Presidente Emílio

Garrastazu Médici, durante o encerramento da reunião do Conselho Deliberativo da

Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), realizada em Recife.

Durante a apresentação emocionada da ―visão do nordeste‖, o presidente general,

direcionando-se as vítimas e apelando a ―consciência nacional‖ prometeu promover

mudanças no Nordeste e tomar providências para diminuir o sofrimento daquele

povo ―flagelado‖.

Dez dias após a reunião, anunciava-se o Plano de Integração Nacional

(PIN). Instituído pelo presidente Médici, através do Decreto-Lei n° 1.106, de 16 de

junho de 1970 e, posteriormente, alterado pelo Decreto-Lei n° 1.243, de 30 de

outubro de 1972, o PIN previa em sua primeira etapa a construção das Rodovias

Transamazônica (BR 320) e Santarém-Cuiabá (BR163), bem como estipulava que

os 10 km das margens das referidas rodovias deveriam ser destinadas para a

―ocupação da terra e adequada e produtiva exploração econômica‖ e transferia para

aplicação no próprio programa 30% dos recursos financeiros dos incentivos fiscais

obtidos através do abatimento do imposto de renda.

Quatro meses após, realizava-se, em Altamira, a solenidade de implantação

do marco inicial da construção da Transamazônica. Conforme citado anteriormente,

durante esta cerimônia, Médici incrustou uma placa no tronco de uma castanheira

derrubada. Para além da pouca razoabilidade da inscrição na placa, a construção de

um eixo rodoviário, cortando de leste a oeste o coração da Amazônia e a

76

FEARNSIDE, Philip M. Projetos de Colonização Amazônia Brasileira: objetivos conflitantes e capacidade de suporte humano. Caderno de Geociências, n. 2, p 7-25. 77

PRONUNCIAMENTO do Presidente Médici proferido em 06.06.1970. Visão do Nordeste. Fonte: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/acervo. Acessado em: 15 de novembro de 2011.

Page 46: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

45

colonização oficial desenvolvida nas margens da rodovia apresentava-se, realmente,

como um projeto diferente e que rompia com ocupação das margens dos rios

experimentada pelas populações e povos que habitavam a região até aquele

momento. Era

[...] como se diante da imensidão da Amazônia e das dificuldades de penetração o poder quisesse colocar em seu centro uma carga explosiva para quebra-la em pedaços e facilitar a sua conquista; isto em oposição à estratégia de ―corrosão das margens‖ que havia prevalecido até então no Brasil.

78

O PIN, principal programa das políticas territoriais do governo militar na

região amazônica, em nada fugia a característica do governo de Médici de conciliar

ao planejamento político, pompa e circunstância. A pompa dos projetos de

envergadura que compunham o plano, como a Transamazônica e as circunstâncias

sociais e políticas decorrentes da seca de 1970.79 A pobreza e a seca no Nordeste

do Brasil foram anunciadas como uma das principais razões motivadoras para as

políticas de integração. A transferência de nordestinos para Amazônia era

apresentada como a solução mais viável para os graves problemas enfrentados no

Nordeste. Problemas que, segundo os registros oficiais, estavam associados

principalmente ao excesso populacional, não sendo mencionados quadros bem mais

evidentes, como a concentração fundiária e a desigualdade no acesso e na

distribuição de terras.80 Falava-se da seca e encobriam-se as cercas do latifúndio.

Enfatizava-se, também, a segurança nacional, consubstanciada na

necessidade de proteger e neutralizar os perigos geopolíticos junto às fronteiras do

país. Falava-se da necessidade de combater os ―planos internacionais faraônicos‖ e

os ―planos de internacionalização da Amazônia‖, porquanto esses ameaçavam a

―segurança nacional‖. Assim, fazia-se necessário promover a urgente integração da

região amazônica as outras e, mais, era fundamental fazer da Amazônia a

78

HAMELIN, Philipe. ―O fracasso anunciado‖. In LÉNA, Philippe; OLIVEIRA, Adélia Engrácia (Orgs.) Amazônia: a fronteira agrícola 20 anos depois. Belém: CEJUP/ Museu Emílio Goeldi, 1992, p. 161/176. 79

MARTINS, José de Souza. A militarização da questão agrária no Brasil. 2a

ed., Petrópolis: Vozes, 1985, p. 44-45. 80

FEARNSIDE, Philip M. ―Projetos de Colonização na Amazônia Brasileira: objetivos conflitantes e capacidade de suporte humano‖. Caderno de Geociências. 1987, n. 2, p. 7-25.

Page 47: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

46

alternativa viável para todos os ―problemas nacionais‖, inclusive, o da necessidade

de promoção da reforma agrária.81

Entretanto, o Plano que, supostamente, criaria espaços para os

trabalhadores sem terra e saciaria a fome e as necessidades do povo nordestino

vitimado pela seca, priorizava os interesses e as propostas do empresariado

nacional e estrangeiro e fomentava a expansão do setor agropecuário e dos

latifúndios.82 Por trás do inimigo externo e dos perigos que o ―vazio‖ amazônico

representavam para a segurança nacional, escondiam-se interesses relacionados a

criação de condições favoráveis à exploração dos recursos naturais da região por

grandes grupos econômicos nacionais e internacionais e a eliminação das zonas de

tensão social localizadas, principalmente, no Nordeste, de forma a manter intocável

o latifúndio.

A concentração fundiária no Nordeste era foco constante de tensões sociais,

mas os interesses em jogo impossibilitavam qualquer alternativa de reforma agrária

que significasse privação das terras das oligarquias fundiárias. Como visto

anteriormente, as oligarquias tradicionais foram uma importante base de

sustentação do Golpe de 64, e nunca foi intenção afetá-las. Assim, para garantir a

sobrevivência econômica e política do latifúndio, era necessário fazer a reforma

agrária do Nordeste na Amazônia.83

Naquela época, apesar da muito antiga ocupação amazônica, os militares

apresentavam a região como um ―vazio demográfico‖, uma terra sem homens

capazes de promover o ―desenvolvimento‖ e a utilização econômica necessária.

―Terras sem homens para homens sem terra‖ teria afirmado o Ditador General Emílio

Garrastazu Médici, prometendo conectar ―os homens sem terra do Nordeste‖ às

―terras sem homens da Amazônia‖. Ecoando com fidelidade a historia de saques e

apropriações que caracterizou a ocupação não indígena da Amazônia desde o

século XVI, o governo militar imbuído pela sanha de uma ―racionalidade

desenvolvimentista‖, relegava as populações locais a uma condição não humana.

Caboclos, ribeirinhos, seringueiros, castanheiros, populações extrativistas e os

81

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Integrar para não entregar. Campinas: Papirus, 1988, p. 70. 82

MARTINS, José de Souza. A militarização da questão agrária no Brasil. 2a

ed. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 44-45. 83

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Op.Cit, p. 74.

Page 48: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

47

indígenas que imemoravelmente habitavam essa região não eram gente, mas

obstáculos à ânsia de lucros do grande capital, cuja eliminação era necessária.84

Não se tratava de introduzir ou integrar nada a vida dessas populações,

mas sim de tirar o que elas possuíam de vital para a sua existência: suas terras e os

seus meios e condições de vida material, social, cultural e política. Era como se elas

simplesmente não existissem ou se existissem não tivessem direito ao

reconhecimento de sua humanidade.85 Estava-se diante de uma verdadeira invasão,

em que os chamados ―pioneiros‖ expulsavam, devastavam e violavam os direitos

dos primeiros ocupantes.86 Essa situação é bem explicada por Carlos Walter Porto-

Gonçalves:

Tanto a Amazônia como os cerrados, no Brasil, são regiões que até, nos anos de 1960, se mantiveram a margem de um verdadeiro mercado de terras. A demanda por terras pela dinâmica expansiva do capital criando as condições de acessibilidade [...] comportou a apropriação privada de terras até então apropriadas de modo comunitário, coletivo ou com outras modalidades de uso comum dos recursos naturais o que, até aqui, em todo o mundo vem sempre se dando de modo violento e conflituoso [...] a propriedade privada se consagraria sob muito sangue, suor e lágrimas, privando os povos de outros modos de apropriação da terra e dos recursos naturais. Assim os direitos das gentes, dos homens e mulheres comuns [...] foram considerados inferiores.

87

O conceito de desenvolvimento, naquela época entendido como crescimento

econômico e da industrialização, reduzia as diversas trajetórias sociais a uma linha

única de evolução: ―o modo de produção industrial, destino certo e líquido da

evolução natural das potencialidades humanas‖. Apesar de nos anos 70, já estar

claro que esse ―desenvolvimento‖ não reduzia a pobreza e que até o final do século

XX seria responsável pela elevação dos níveis de miséria absoluta a até 2/5 da

população mundial, o conceito manteve ―seu valor axiomático: um caminho certo e

inequívoco que levaria sempre do pior para o melhor, mesmo quando para a maioria

das pessoas o efeito fosse exatamente o contrário‖.88

84

TORRES, Maurício. ―A Pedra Muiraquitã: O caso do Rio Uruará no enfrentamento dos povos da floresta às madeireiras da região‖. Revista de Direito Agrário. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Brasília: INCRA, 2007, p. 89-119. 85

MARTINS, José de Souza. ―A chegada do estranho‖. In: HÉBETTE, Jean. O Cerco está se fechando: o impacto do grande capital na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 15-33. 86

MARTINS, José de Souza. Expropriação e Violência. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 67. 87

PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. A globalização da natureza e a natureza da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 250/251. 88

TORRES, Maurício. Os povos da floresta e o desmatamento da Amazônia: a maior causa do desmatamento é o não reconhecimento do direito à terra dos povos da floresta. Caros Amigos, São

Page 49: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

48

Os destinatários do ―desenvolvimento‖ e o ―progresso‖ aos quais a

propaganda oficial e as ações do governo se dirigiam não eram as populações

locais. Aliás, o pressuposto inconfessado e inconfessável deste ―desenvolvimento‖

era, em muitos casos, o aniquilamento cultural e físico das populações,

comunidades e povos que representassem algum estorvo para a consecução dos

planos governamentais, 89 como ocorreu com os índios Arara, os quais um dos

subgrupos vivia na área onde hoje está situado o município de Uruará.

A ―estrada da integração nacional‖, seus travessões, picadas e clareiras

acessórias passaram a poucos quilômetros de uma das grandes aldeias onde

subgrupos do povo Arara se reuniam no período da estiagem, cortando plantações,

trilhas e espaços de caça tradicionalmente utilizados pelo Povo e formando barreiras

que impediram o trânsito dos Arara pelas matas e impuseram limites a interação

tradicional entre os subgrupos. Os índios que, anteriormente, a passagem do leito da

rodovia mantinham uma rede comunitária coesa se viram dispersos e perseguidos.90

Dom Erwin Krautler ao relembrar de seus primeiros anos na região do Xingu narra

um episódio que ilustra o tratamento dado ao Povo Arara:

A nova rodovia passou a 3 quilômetros da aldeia dos Arara no igarapé Penetecaua. Os índios fugiam com medo do tiro das espingardas. Foram perseguidos até por cachorros. A brusca e forçada convivência com os ―brancos‖ trouxe a morte à aldeia. Sucumbiram fatalmente a surtos de gripe, tuberculose, malária [...]. O mudo lá fora [...] continuou a aplaudir a ―conquista deste gigantesco mundo verde‖. [...] Jamais me esqueço do dia que pelas ruas de Altamira corria a notícia de que, finalmente, os ―terríveis Araras‖ haviam sido dominados. Como prova de que o ―contato‖ com os Arara havia sido amistoso [...], trouxeram uns representantes daquele povo [...] Nus, tremendo de medo em cima de uma carroça, como se fossem algumas raras espécies zoológicas, foram expostos a curiosidade popular na rua principal da sociedade. O que na realidade aconteceu no coração e na alma do povo Ugorogmo, quem será capaz de descrever? Os poucos sobreviventes continuam apavorados, na insegurança, como ―estrangeiros em sua própria terra‖.

91

Paulo, Ed. Casa Amarela, Ano XI, n. 34, Especial Aquecimento Global: a busca de soluções, set. 2007 89

MARTINS, José de Souza. ―A chegada do estranho‖. In: HÉBETTE, Jean. O Cerco está se fechando: o impacto do grande capital na Amazônia. 90

POVO Arara: O contexto da atração. In: Povos Indígenas do Brasil. Disponível em: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/arara/1235. Acessado em: 10 mai. 2012 91

KRAUTLER, Erwin. ―Mensagem de Abertura‖. In: SEVÁ FILHO, A. Oswaldo. Tenotã-Mõ: Atlas sobre as consequências dos projetos hidrelétricos no rio Xingu. IRN: 2005. Disponível em: www.socioambiental.org.br/banco_imagens/pdf.s/10340.pdf#page=29.

Page 50: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

49

Figura 1 - "Pista para você encontrar a mina de ouro". Anúncio veiculado na revista Veja, em 09 de dezembro de 1970.

Fonte: Acervo Digital Veja

Page 51: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

50

Nada podia opor-se ou dificultar o ―desenvolvimento com segurança‖ e os

―modernos‖ empreendimentos dos grupos econômicos. O povo Arara sentiu isso ao

ver invadido os seus espaços de memórias e assim como eles inúmeros outros

povos cujo traçado das rodovias se sobrepunham a seus territórios ou as

proximidades. Exemplo disso, também, é o caso dos Waimiri Atroari que,

recentemente, tomou as páginas de alguns jornais. Este povo tentou resistir à

invasão do seu território provocada pelas obras da rodovia BR 174, e foi dizimado

pelas forças militares repressivas. ―Entre 1972 e 1975 a população Kiña

[autodenominação dos Waimiri Atroari] reduziu de 3.000 para menos de 1.000

pessoas, sem que a FUNAI e os militares apresentassem as causas dessa

diminuição de população. Esses 2.000 Kiña desapareceram sem que fosse feito um

só registro de morte‖.92

As políticas desenvolvimento e integração, também, não foram pensadas

para os migrantes que aqui desembarcaram. Ela foi pensada para o grande capital e

para as elites. Incentivou-se a migração do Nordeste e do Sul, não com a finalidade

de integrar e distribuir terras para os camponeses. Criou-se um simulacro de reforma

agrária, para evitar uma real modificação das estruturas e das oligarquias agrárias

presentes nas regiões de ocupação mais antiga.93 De um lado, o Estado promovia a

repressão dos movimentos populares de luta pelo acesso à terra presentes no

Nordeste e no Sul e se utilizava dos projetos de colonização oficial como

instrumentos de contenção das convulsões sociais relacionadas à terra que

marcavam essas regiões. Do outro, apoiava os investidores nacionais e

internacionais, por meio de vultosos programas de incentivos fiscais e fazia dos

mencionados projetos ―viveiros de mão-de-obra‖. Nesse jogo, em que os pesos e

medidas foram dados pelo grande capital, os direitos de agricultores pobres e da

população local foram ignorados.94

92

SCHAWADE, Egydio. ―Crônicas de Violência – Povos Vitimados pela Ditadura: Dois mil Waimiri Atroari desaparecidos durante a ditadura militar‖. In Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil. Brasília: CIMI, 2010, p. 145. 93

Cf., entre outros, OLIVEIRA, A. U. de. A fronteira amazônica mato-grossense: grilagem, corrupção e violência. São Paulo, 1997. Tese (Livre-docência em Geografia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo e IANNI, Octávio. Colonização e contra-reforma agrária na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1979. 94

OLIVEIRA, Ariovaldo U. de. ―BR-163 Cuiabá-Santarém: Geopolítica, grilagem, violência e mundialização‖. In: TORRES, Maurício (org.). Amazônia revelada: os descaminhos ao longo da BR-163. Brasília: CNPQ, 2005, p. 68.

Page 52: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

51

3.4.1 O POLÍGONO DESAPROPRIADO DE ALTAMIRA E OS PROJETOS

INTEGRADOS DE COLONIZAÇÃO

Visando a efetivação das finalidades da política de integração, o governo

assina o Decreto n° 68.443, de 29 de março de 1971, que declara de interesse

social para fins de desapropriação os imóveis rurais de propriedade particular

situados em um polígono compreendido na zona prioritária. A referida área,

denominada a partir de então Polígono Desapropriado de Altamira e localizada no

trecho da Transamazônica que vai de Itaituba a Altamira, era formada por 6.341.750

hectares e destinava-se a implantação de projetos de reforma agrária e núcleos de

colonização em conformidade com estipulado no Decreto n° 68.443/1971, cabendo

ao recém criado Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) a

arrecadação destas terras.

A colonização iniciada a partir de então adotou como modelo os chamados

Projetos Integrados de Colonização (PICs). No Pará foram implantados três PICs no

trecho da Transamazônica que vai do município de Marabá a Itaituba: o PIC Marabá,

o PIC Altamira e o PIC Itaituba. Os PICs deveriam dispor a sua clientela uma

infraestrutura de apoio e um conjunto de incentivos necessários ao desenvolvimento

de atividades agrícolas. 95 Além disso, esses Projetos previam estruturação de

parcelas, sem a existência de uma cidade organizadora da área rural.96 Os lotes dos

colonos seriam servidos por núcleos dispersos em intervalos iguais no espaço da

colonização.

Teoricamente, esses centros planejados possuiriam funções específicas e

formariam uma hierarquia urbanística de acordo com a infraestrutura social, cultural

e econômica. Os referidos centros seriam de três tipos: Agrovilas, Agropólis e

Rurópolis. A Agrovila seria um vilarejo formado por cinquenta casas dispostas em

forma retangular e servido por escola, posto de saúde, armazéns e um centro

administrativo e destinada a moradia dos que se dedicavam a atividades agrícolas

ou pastoris. Os rurícolas deveriam trabalhar nos lotes rurais e residir nas agrovilas. A

Agropólis era um centro agroindustrial, cultural e administrativo destinado de apoio e

exerceria influência sob uma área de mais ou menos dez quilômetros de raio no qual

95

BENATTI, José Heder. ―Questão fundiária e sucessão da terra na fronteira oeste da Amazônia. Novos Cadernos NAEA. ISSN 1516-6481, v. 11, n. 2, Belém: UFPA, 2008. p. 116. 96

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Integrar para não entregar. Campinas: Papirus, 1988, p. 77.

Page 53: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

52

poderiam estar situadas até doze Agrovilas. Por sua vez, a Rurópolis se constituiria

como um pequeno pólo de desenvolvimento e centro de uma comunidade rural

formada por Agrovilas e Agropólis. O seu raio de influência se estenderia até cento e

quarenta quilômetros e em seu interior se desenvolveriam atividades públicas e

privadas.97

Os lotes rurais poderiam ser quitados num período de até vinte anos. A área

das parcelas era de 100 hectares, sendo 400 metros de frente e 2.500 metros de

fundo. A frente desses lotes ficava voltada para vicinais que lhe davam acesso.

Essas vicinais dispostas, perpendicularmente, a cada cinco quilômetros da

Transamazônica, possuíam cerca de dez quilômetros de extensão. 98 Nos primeiros

anos da colonização, a agricultura e a pecuária em regime familiar eram as

atividades predominantemente desenvolvidas pelos colonos. A vistoria prévia da

área ocupada, a formalidade de um processo junto ao Incra e o desmatamento de

até 50% da área eram condições necessárias para a titulação. Esse modelo não

apenas induzia à supressão da vegetação natural, mas também à implantação de

pastagens para pecuária bovina, atividade que consolidaria com maior rapidez o uso

do lote.99

Na teoria, o projeto era bem detalhado e descrevia desde o modo como se

daria a seleção dos beneficiados, à forma como se selecionaria as mudas e

englobava uma série de políticas destinadas à permanência e à ―integração‖ ao meio

rural dos assentados. Entretanto, o projeto, aparentemente, não levava em conta as

características do meio físico – cursos de água, solo – no qual estava inserido.

Quando foi necessário abrir as vicinais, percebeu-se que algumas cortavam rios ou

áreas alagadiças ou ainda escalavam encostas. Alguns lotes ficavam sem água,

enquanto outros possuíam cursos d‘água em demasia.100 Ademais, a assistência e a

infraestrutura prometidas não foram implantadas minimamente. Essas entre outras

dificuldades resultaram numa alta rotatividade de pessoas nos lotes, haja vista que

97

INCRA apud IANNI, Octávio. Colonização e contra-reforma agrária na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1979, p.61. 98

Cf. OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Integrar para não entregar. Campinas: Papirus, 1988, p. 88; HAMELIN, Philipe. ―O fracasso anunciado‖. In: LÉNA, Philippe; OLIVEIRA, Adélia Engrácia (Orgs.) Amazônia: a fronteira agrícola 20 anos depois. Belém: CEJUP/ Museu Emílio Goeldi, 1992, p. 161-176. 99 CUNHA, Candido Neto da. ―Pintou uma chance legal: o programa Terra Legal no interior dos Projetos Integrados de Colonização e do Polígono Desapropriado de Altamira, no Pará‖. Agrária. Laboratório de Geografia Agrária - DG/FFLCH/USP. ISSN 1808-1150. nº 10/11, 2009, p. 20-56. 100

HAMELIN, Philipe. ―O fracasso anunciado‖. In: LÉNA, Philippe; OLIVEIRA, Adélia Engrácia (Orgs.) Amazônia: a fronteira agrícola 20 anos depois. Belém: CEJUP/ Museu Emílio Goeldi, 1992, p. 167.

Page 54: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

53

os colonos fragilizados por essas dificuldades acabavam abandonando ou vendendo

as parcelas.

Segundo Hamelin, o projeto de colonização dirigida mais ―famoso‖

implantado na Transamazônica foi o PIC Altamira. Tratando-se da ―experiência

pioneira‖ o PIC era ―vitrine‖ dos demais e contava com um projeto detalhado e

―luxuoso‖.101 O referido Projeto conheceu os seus ―dias de glória‖ nos anos 1971 e

1972, quando cerca de 3.000 colonos foram assentados na área. Os anos,

entretanto, revelariam a verdadeira intenção do governo militar com os projetos de

colonização.102

Para a consecução das reais intensões dos planos de desenvolvimento, o

governo federal havia federalizado uma grande parte das terras amazônicas. O

marco legal de início deste processo foi o Decreto-Lei nº 1.164, 01 de abril de 1971,

que veio a luz três dias após o Decreto criador do Polígono Desapropriado de

Altamira. Através deste Decreto, a União retirou dos estados da região o poder de

jurisdição sobre as terras devolutas contidas nas faixas de cem quilômetros de cada

lado das rodovias federais construídas, em construção ou planejadas e as colocou

sob a tutela do Conselho de Segurança Nacional.

Com a federalização, as áreas foram incluídas entre os bens da União. Só

no Pará, o ato federalizou cerca de 70% da área do estado.103 A federalização das

terras, entretanto, não beneficiava os camponeses sem, com pouca ou expulsos da

terra. Tal federalização era:

[...] condição necessária a geopolítica da centralização. Era impossível sobrepor o poder federal ao poder local e regional sem confiscar a sua principal base de sustentação, que é a terra, e o controle dos mecanismos de distribuição de terras entre os membros das oligarquias. O combate a oligarquia implicava em expropriá-la do seu principal meio de poder, que é a terra. A federalização e a militarização das terras da Amazônia transformou-se na condição para que o desenvolvimento regional saísse das mãos da oligarquia, dos comerciantes e proprietários tradicionais, e abrisse espaço ao grande capital, cedesse

101

HAMELIN, Philipe. ―O fracasso anunciado‖. In: LÉNA, Philippe; OLIVEIRA, Adélia Engrácia (Orgs.) Amazônia: a fronteira agrícola 20 anos depois. Belém: CEJUP/ Museu Emílio Goeldi, 1992, p. 161-176. 102

Cf. OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Integrar para não entregar. Campinas: Papirus, 1988, p. 88; HAMELIM, Fracasso Anunciado; IANNI, Octávio. Colonização e contra-reforma agrária na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1979. 103

OLIVEIRA. Ariovaldo U. de. ―BR-163 Cuiabá-Santarém: Geopolítica, grilagem, violência e mundialização‖. In: TORRES, Mauricio. Amazônia Revelada: os descaminhos ao longo da BR-163. Brasília: CNPQ, 2005, p. 67-183.

Page 55: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

54

terreno a acumulação dos grandes grupos econômicos, cuja escala de operação e de interesse faz deles justamente os efetivos agentes econômicos da centralização do poder.

104

O argumento oficial que pautou a federalização das terras devolutas foi o da

indispensabilidade das áreas que margeavam as rodovias federais à segurança

nacional e ao desenvolvimento do país. Entretanto, o discurso que enfatizava a

―segurança nacional‖ e o ―desenvolvimento‖, recorrentemente utilizado durante o

regime militar, era mais uma das formas de mascarar a abertura das terras da

Amazônia ao grande capital e o conluio deste último com o Estado. O governo

utilizou-se da federalização para ordenar o território e tornar possível o acesso à

terra, por parte dos grandes grupos econômicos e é dentro deste contexto que o PIN

e os projetos de colonização implementados pelo Incra devem ser vistos.

Como anteriormente mencionado, passados dois anos da implantação do

PIC Altamira, o Incra havia assentado pouco mais de três mil famílias, número muito

aquém da meta pretendida. Essas famílias foram, praticamente, abandonadas, haja

vista que a infraestrutura e assistência prometida jamais foi implementada em sua

totalidade. A partir de novembro de 1972, o Incra suspende o envio de camponeses

para a região e, no ano seguinte, o governo passa oficialmente a promover e

estimular a ocupação de grandes áreas da Amazônia por grupos econômicos. O

governo não poupou os limites da imaginação para justificar a abertura da região

para esses grupos, ressaltando inclusive os benefícios à proteção e ao benefício

ecológico que os grandes projetos promoveriam.105

A partir daí, os jornais começam a publicar notícias que ressaltavam a

imprestabilidade das terras amazônicas para a agricultura, ao mesmo tempo em que

ressaltava a vocação da região para pecuária.106 Iniciava-se a época dos pólos de

desenvolvimento e o convite estava lançado: ―o quarto governo da Revolução

convoca o empresário para essa nova cruzada – ocupar economicamente a

Amazônia e corrigir as deficiências da colonização dirigida‖107. A ―reformulação‖ das

104

MARTINS, José de Souza. A militarização da questão Agrária no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 50. 105

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Integrar para não entregar. Campinas: Papirus, 1988, p.86-87. 106

MARTINS, José de Souza. Op. cit, p.46. 107

BIITTENCOURT apud MONTEIRO, Maurílio de Abreu; COELHO, Maria Célia Nunes. ―As politicas federais e as reconfigurações espaciais na Amazônia‖. In: Novos Cadernos do NAEA. Belém: UFPA, 2004, p. 91-122.

Page 56: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

55

políticas de colonização do governo e os estímulos foram bem recebidos pelo

empresariado. Como bem registrou, a época, o Jornal Opinião:

Uma viagem de três dias pela Amazônia de uma caravana integrada por três ministros (Planejamento, Interior e Agricultura) e 20 entre os maiores empresários sulistas que já investiram na região provocou o anúncio de grandes novidades. Um balanço dessa movimentada viagem mostra: 1 – Os 20 empresários, divididos em dois grupos, um de colonização e outro agropecuário, decidirão em menos de 10 dias a compra de dois milhões de hectares no entroncamento das rodovias Cuiabá-Santarém e Transamazônica, onde implantarão projetos ainda não claramente definidos mas que aprioristicamente foram definidos pelo ministro Reis Velloso como dos maiores da região. 2 – Essa tendência à formação de grandes consócios empresariais na Amazônia, aceita e estimulada pelo governo, com propriedades médias, em torno de 100 mil hectares, não ameaçará o equilíbrio ecológico, ao contrário do que se poderia supor, mas será justamente uma garantia a preservação de áreas verdes, além de significar a auto-sustentação, em termos econômicos, de uma estrada até agora de valor reduzido como a Transamazônica, segundo disse o ministro do Planejamento. 3 – Os três ministérios promotores da viagem criarão uma comissão que vai institucionalizar 11 áreas prioritárias para o desenvolvimento integral da Amazônia. São áreas localizadas sempre na região de influências de estradas construídas ou a construir [...] Na mesma ocasião, foi distribuída aos empresários um documento elaborado pelo IPEA (o Instituto de Pesquisas Econômicas do Ministério do Planejamento), onde já estão discriminadas as atividades básicas mais aconselháveis da região, com o objetivo de ‗facilitar a atração de empreendimentos privados‘, mas com ‗preferência acentuada pelos grandes empreendimentos‘. 4 – O governo planeja investir, no biênio 1973/74, um bilhão de dólares na Amazônia no sentido de ‗inaugurar uma fase nova, em termos de escala econômica, para os projetos da região amazônica‘, segundo Reis Velloso. [...] 5 – Em função disso, abre-se um nova era de ocupação da região. ‗Até aqui – disse ainda Reis Velloso – a Transamazônica deu ênfase à colonização, com um sentido social que se voltou para o pequeno colono, mas agora devemos entrar na fase dos grandes consórcios‘. 6 – Uma das justificativas para o ingresso nessa nova fase é aparentemente perturbadora: os grandes projetos, ao contrário dos pequenos, seriam essenciais ‗para evitar desmatamentos indiscriminados e assegurar o equilíbrio ecológico da região‘, disse o ministro do Planejamento.

108

Com o abandono da colonização dirigida ficou evidente que as políticas

intervencionistas do governo sempre estiveram articuladas e voltadas para os

interesses dos grandes grupos econômicos. O governo já não se apegava mais a

justificativas sociais. Pelo contrário, enfatizava que o desenvolvimento regional da

108

OPINIÃO apud OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Integrar para não entregar. Campinas: Papirus, 1988, p. 87.

Page 57: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

56

Amazônia só seria possível através do estabelecimento do capital e que se fazia

necessário ocupar economicamente a região. A partir de 1974, começam a se

instalar na área do Polígono Desapropriado de Altamira empresas voltadas para o

desenvolvimento de projetos agropecuários. Sobre esse período Fearnside afirma:

Uma mudança importante de política ocorreu em 1974, quando a colonização por indivíduos em lotes de 100 ha foi desenfreada em favor da ―colonização‖ por grandes empresas. Essas grandes corporações, principalmente com operações de pecuária, incluíam tanto internacionais, como centenas de investimentos brasileiros das áreas urbanas do centro-sul do país. Fazendas menores eram vendidas pelo INCRA na área atrás da faixa de ocupação dos pequenos agricultores na Rodovia Transamazônica. Fazendas de 3.000 hectares eram comercializadas na área cerca de 150 km oeste de Altamira, a partir de 1974 [...] De 1977 em diante, fazendas de 500 ha chamadas de ―glebas‖ foram vendidas em faixas de cerca de 30 km de largura, além das margens da área de ocupação dos pequenos agricultores, entre 12 e 85 km oeste de Altamira.

109

A fazenda ligada trajetória das famílias fundadoras da Comunidade Menino

Jesus, que será apresentada no Capítulo 4, é um típico caso destas glebas de 3 mil

hectares, demarcadas no interior do Polígono Desapropriado de Altamira.110

O ápice desse ciclo ocorreu em 1976, quando o Conselho de Segurança

Nacional encaminhou para a apreciação do general presidente Ernesto Geisel as

Exposições de Motivos n° 005 e n° 006. Basicamente, o que propunha na Exposição

nº 005/1976 era que se promovesse, como acabou ocorrendo, a regularização

fundiária de grandes porções terra, sem a autorização do Senado, como

determinava a Constituição Federal de 1967. Já a Exposição nº 006/1976

recomendava que se estendessem as medidas à faixa de fronteira e as outras áreas

consideradas indispensáveis à segurança nacional, de modo a tornar possível a

regularização das apropriações de terras acima do módulo de 100 hectares

daqueles requerentes que tivessem posse efetiva e morada habitual a pelo menos

dez anos.111

109

FEARNSIDE, Philip M. ―Projetos de Colonização Amazônia Brasileira: objetivos conflitantes e capacidade de suporte humano‖. Caderno de Geociências, n. 2, p 7-25. 110

INCRA. Processo Administrativo n° 54501.001474/2010-37, apenso ao Processo Administrativo n° 54501.003347/2009-39. 111

SANTANA, Jeronimo Garcia de (1981) apud MARTINS, José de Souza. A militarização da questão Agrária no Brasil. Petrópolis: Vozes 1985, p. 47.

Page 58: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

57

Mapa 1 - Projeto de Assentamento Rio Trairão em relação ao Polígono Desapropriado de Altamira, à área federalizada pelo Decreto-Lei n° 1.164/1971 e os PICs Itaituba e Altamira.

Fonte: TORRES et al, 2012.

Page 59: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

58

Figura 2 – ―O boi é o melhor amigo do empresário‖. Anúncio da Sudam e do Banco da Amazônia veiculado na revista Veja, em 05 de abril de 1972.

Fonte: Acervo Online Veja.

Assim, a colonização dirigida oficial implementada pelo governo militar na

Amazônia se constituiu como uma política de contra reforma agrária, haja vista que

por baixo da capa da reforma agrária, o governo suprimiu a possibilidade dessa

realmente vir a concretizar-se. A esse respeito é sempre pertinente destacar o

pensamento de Octavio Ianni que, ao tratar dos programas de colonização dirigida e

oficial afirma:

[...] é uma política de contra-reforma, no sentido de que ela visa bloquear, suprimir ou reduzir às mínimas proporções a reforma agrária espontânea que os trabalhadores rurais estavam realizando [...] quando pôs em execução a política de colonização dirigida. Desse modo o governo impediu que ocorresse qualquer reforma agrária no Nordeste,

Page 60: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

59

no sul ou em outras regiões; e, inclusive impediu que a Amazônia fosse o campo de uma reforma agrária efetiva. Ao contrário, na Amazônia o Estado foi levado a atuar de maneira a reduzir ao mínimo a distribuição de terras, a fim de preservar as maiores proporções das terras aos latifúndios, fazendas e empresas. [...] No campo a contrapartida do apoio dado pela burguesia rural ao Golpe do Estado de 1964 foi a contra-reforma agrária, apresentada e executada como colonização dirigida.

112

Para além de uma história de destruição. O deslocamento da fronteira para

Amazônia é também uma história de resistência, sonho e esperança,113 haja vista a

contradição inerente ao processo que a possibilita. O mesmo processo que permitiu

a abertura das terras amazônicas para o capital as abriu, também, para os

trabalhadores do campo.

3.5 A “OCUPAÇÃO ESPONTÂNEA”

O abando do programa oficial de colonização nos PICs a partir da década de

1980 e a desistência de muitos colonos não reduziu a chegada de novos migrantes

à fronteira aberta. As famílias continuaram se instalando nas áreas destinadas a

colonização oficial, seja em substituição a outras que abandonavam as suas

parcelas, seja nos prolongamentos das vicinais. 114 Tal ocupação feita sem o

planejamento dos órgãos governamentais ficou conhecida como ―ocupação

espontânea‖ ou ―colonização espontânea‖ em oposição a ―colonização dirigida‖

implementada pelo Incra.115

A maioria dos migrantes que chegava à área do Polígono Desapropriado de

Altamira realizava a ocupação de áreas localizadas fora dos projetos de colonização

realizados pelo Incra. Estes migrantes abriam picadas em prolongamentos das

vicinais perpendiculares à rodovia Transamazônica e se instalavam, além das áreas

112

IANNI, Octavio. Colonização e contra-reforma agrária na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1979, p.137. 113

MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: Contexto, 2009. 114 CUNHA, Candido Neto da. ―Pintou uma chance legal: o programa Terra Legal no interior dos Projetos Integrados de Colonização e do Polígono Desapropriado de Altamira, no Pará‖. Agrária. Laboratório de Geografia Agrária - DG/FFLCH/USP. ISSN 1808-1150. nº 10/11, 2009, p. 26. 115 FEARNSIDE, Philip M. 1987. ―Projetos de Colonização na Amazônia Brasileira: objetivos conflitantes e capacidade de suporte humano‖. Caderno de Geociências. n. 2, p. 7-25.

Page 61: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

60

já ocupadas.116 Como em outras partes da Amazônia, a ―ocupação espontânea‖ foi

frequente em Uruará, município no qual está situado o Projeto de Assentamento Rio

Trairão. Hamelin ao tratar sobre a evolução, a expansão espacial e a ―colonização

espontânea‖ neste município afirma:

[...] se em 1985 a maioria dos lotes de terra liberados em 1983 estavam ociosos, em 1987 eles estão todos ocupados, e a colonização já foi além. Em 1985, falava-se de ―bichos-da-mata‖ instalados a 30 Km da beira da estrada [Transamazônica], hoje se encontram importantes grupos de colonos a 50 Km; uma vicinal possui uma extensão de 86 Km e está totalmente ocupada [...] muitos pensaram que as taxas de crescimento [demográfico] significativamente elevadas na década de 70 iriam decair na década de 80, o que não parece ser o caso hoje.

117

Esta ―colonização espontânea‖ está na gênese da ocupação que deu origem

ao Projeto de Assentamento Rio Trairão. As famílias que se instalaram na área onde

anos mais tarde foi criado o assentamento começaram a chegar ao município de

Uruará nos anos 80. Tais famílias eram sem terras provenientes, em sua maioria, do

Nordeste. Antes de chegar ao município, essas últimas já haviam passado por

outros como Rondon do Pará, Altamira, Marabá etc. Em Uruará, estes grupos

familiares migrantes trabalharam e residiram nas áreas de ―colonização velha‖ e,

posteriormente, começaram a adentrar as áreas além das ocupações já existentes

em busca de terras nas quais pudessem trabalhar e estabelecer morada, como

afirma Miguel Mendes Santos:

[...] nós viemos do Maranhão em 85. Em família, aí a gente viemos em busca de terra para sobreviver, né? Lá nós morava em terra dos outros, né? [...] Então nós... a primeira vez que nós viemos, nós entremos, né? Entremos por picada, que não tinha nem estrada aqui nesse tempo, a estrada só vinha até Jeru. Viemos arrodiando o rio, né? Através de picadas, né? Então localizamos essa terra aqui, aí passamos... fizemos um barraquinhos. Começamos a trabalhar, aí também a partir dessa emergência, que nós tiremo essa terra, também já começou a colonização. Outras pessoas que também já entraram pegando essa oportunidade e demarcando pra frente, né?

118

116

FEARNSIDE, Philip M. ―Projetos de Colonização na Amazônia Brasileira: objetivos conflitantes e capacidade de suporte humano‖. Caderno de Geociências. n. 2. 1997. p. 7-25 117

HAMELIN, Philipe. ―O fracasso anunciado‖. In LÉNA, Philippe; OLIVEIRA, Adélia Engrácia (Orgs.) Amazônia: a fronteira agrícola 20 anos depois. Belém: CEJUP/ Museu Emílio Goeldi, 1992, p. 161-176. 118

TORRES, Mauricio et al. A luta por reconhecimento em um assentamento na Amazônia: relatório resultante de estudo sobre a situação ocupacional, social e econômica do Projeto de Assentamento Rio Trairão – Uruará-PA. Santarém, 2012. [Apensado ao Procedimento Administrativo n.

Page 62: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

61

As ―ocupações espontâneas‖ implementadas pela população migrante que

chegava a área dos projetos integrados de colonização eram, em muitos casos,

regularizadas pelo Incra por meio da própria colonização oficial. A autarquia federal,

em suma, se dedicava a demarcar os lotes nessas áreas já ocupadas, regularizando

a ocupação destes ocupantes que haviam antecipado aos geômetros.119 Cunha, ao

tratar das situações que sucederam na área do Polígono Desapropriado de Altamira

na década de 1980, afirma que:

Em 1985, por pressão dos próprios camponeses, que promoveram manifestação na Esplanada dos Ministérios, a União autoriza a expansão do PIC Altamira e do PIC Itaituba nas partes inseridas no interior do Polígono Desapropriado de Altamira para além dos 10 quilômetros definidos como área prioritária. Essa autorização significou o prolongamento, sempre precário, dos travessões já abertos e a demarcação de alguns lotes (e, mesmo nestes, apenas a frente era demarcada).

120

No entanto, enfatiza Cunha121, a região já não era a mesma dos primeiros

anos da década de 1970. Algumas parcelas já haviam sido tituladas, especialmente

aquelas mais próximas às rodovias. As agrovilas ou pontos de paragens ao longo

das rodovias experimentavam um amplo crescimento do contingente populacional,

apesar da precariedade de infraestrutura. Os colonos amargavam as consequências

da descontinuidade dos investimentos, da ausência do Estado, das flutuações de

preços agrícolas e de outras dificuldades a que camponeses abandonados estavam

sujeitos. A persistência destes problemas conduziu a degradação paulatina dos

meios de vida dos colonos, o abandono de lotes e alta rotatividade das parcelas por

simples ocupações ou por venda informal de terras.122 Entretanto, o abandono foi,

1.23.02.00023/2011-60, do Ministério Público Federal, na Procuradoria da República no município de Santarém]. 119

Cf. CUNHA, Candido Neto da. ―Pintou uma chance legal: o programa Terra Legal no interior dos Projetos Integrados de Colonização e do Polígono Desapropriado de Altamira, no Pará‖. Agrária. Laboratório de Geografia Agrária - DG/FFLCH/USP. ISSN 1808-1150. nº 10/11, 2009, p. 20-56; HAMELIN, Philipe. ―O fracasso anunciado‖. In: LÉNA, Philippe; OLIVEIRA, Adélia Engrácia (Orgs.) Amazônia: a fronteira agrícola 20 anos depois. Belém: CEJUP/ Museu Emílio Goeldi, 1992, p. 167; FEARNSIDE, Philip M. 1987. Projetos de Colonização na Amazônia Brasileira: objetivos conflitantes e capacidade de suporte humano. Caderno de Geociências. n. 2. p. 7-25. 120 CUNHA, Candido Neto da. Op.Cit., p. 34. 121

Ibidem, p. 34. 122

GODAR, Javier; TIZADO, E. Jorge; PORKORNY, Benno. 2008. A expansão da fronteira na Transamazônica: o impacto comparado da agricultura familiar e da pecuária apud CUNHA, Candido Neto da. Op. Cit., p. 20-56.

Page 63: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

62

em muito, superado pela nova e imediata demanda das famílias que continuavam a

chegar a área.

Para além disso, com o fim da colonização oficial, a prática de estender os

projetos sobre áreas já ocupadas por meio da ―colonização espontânea‖ perdurou. O

instrumento de concretização dessa prática, entretanto, era outro instrumento como

se verá a seguir.

3.6 O I PLANO NACIONAL DE REFORMA AGRÁRIA E OS PROJETOS DE

ASSENTAMENTO

Após o fim do regime militar e o advento do período democrático, é

aprovado, no governo de José Sarney, através do Decreto n° 91.766, de 10 de

outubro de 1985, o I Plano Nacional de Reforma Agrária, para o período de 1985 a

1989. Apesar das expectativas, esse I PNRA já nasceu trazendo retrocessos aos

avanços do Estatuto da Terra, como por exemplo, o Art. 2°, §2°, no qual o legislador

expressou que se evitaria, sempre que possível, a desapropriação de latifúndios.123

Para além disso, a aprovação do I PNRA encerrava oficialmente a política

dos projetos de colonização e os Projetos de Assentamento (PAs) emergiam como

uma dos principais instrumentos da Reforma Agrária. Esses Projetos de

Assentamento eram apresentados como os instrumentos da concretização da

reforma agrária e deveriam promover e democratizar o acesso, aos trabalhadores

rurais, a terras agrícolas.

Os Projetos de Assentamento criados no âmbito do primeiro PNRA,

majoritariamente, se sobrepõe as áreas de ―colonização espontânea‖. No Polígono

Desapropriado de Altamira não foi diferente. Desde o final da década de 1980, os

assentamentos criados nas áreas abrangidas no Polígono e não demarcadas para a

colonização oficial sobrepõem-se aos espaços onde já existe ocupação. Ainda que

recebam o nome de projetos de assentamentos de reforma agrária, as famílias

instaladas pelo Estado ou por conta própria na região continuam seguindo a mesma

lógica adotadas nos PICs: lotes retangulares distribuídos em terras públicas e sem

123

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Modo Capitalista de Produção, Agricultura e Reforma Agrária. FFLCH: São Paulo, 2007, p. 126.

Page 64: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

63

levar em conta as especificidades ambientais, desmatamento extensivo para

implantação de culturas e pastagens.124

Os resultados do I PNRA mostraram que as apenas 89.950 famílias foram

assentadas no país. A maioria dos beneficiários localizava-se na região Norte na

qual foram assentadas 41.792 famílias. Terminado o período de aplicação do I

PNRA, o número de famílias de famílias que chegaram à terra correspondia a 6,4%

da meta inicial do Plano que era de assentar 1.400.000 famílias. Nos governos que

seguiram, Fernando Collor de Melo e Itamar Franco, o número de núcleos familiares

assentados não ultrapassou a faixa dos 50 mil. 125 Já no governo de Fernando

Henrique Cardoso iniciado em 1995, a criação de assentamentos rurais foi

intensificada

Comparando-se ao governo de Fernando Henrique Cardoso com os anteriores (Sarney e Collor/Itamar) verifica-se pelos dados divulgados pelo INCRA, que nos primeiros seis anos tinha assentado 373.210 famílias em 3.505 assentamentos rurais. Entre assentamentos inclui-se as regularizações fundiárias (as posses), os remanescentes de quilombos, os assentamentos extrativistas, os projetos Casulo e Cédula Rural, e os projetos de reforma agrária propriamente dito. Analisando-se os dados gerais referentes aos assentamentos de reforma agrária divulgados pelo Incra, constatou-se que o total chegou a 90 mil famílias, distribuídas 62% na região Amazônica, 22% no Nordeste, 10% no Centro-Sudeste e 6% na região Sul.

126

Esses números também foram notados na área de abrangência do Polígono

Desapropriado de Altamira. Entre os anos de 1995 a1999 foram criados 31 Projetos

de Assentamento, número que corresponde a 51% dos 61 PAs implantados na

área.127 Foi nesse período, mais especificamente no ano 1997, que o PART foi

criado. Assim como outros, a criação do assentamento se deu sobre uma área de

ocupação espontânea e reproduzia a mesma lógica dos projetos de colonização:

lotes retangulares nos quais não eram levadas em conta as especificidades naturais.

Como se verá no Capítulo 4, quando o assentamento foi criado em 1997, já haviam

famílias instaladas na área desde a década de 80.

124 CUNHA, Candido Neto da. ―Pintou uma chance legal: o programa Terra Legal no interior dos Projetos Integrados de Colonização e do Polígono Desapropriado de Altamira, no Pará‖. Agrária.

Laboratório de Geografia Agrária - DG/FFLCH/USP. ISSN 1808-1150. nº 10/11, 2009, p.48. 125

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Modo de Produção Capitalista, Agricultura e Reforma Agrária. São Paulo: FFLCH/Labur Edições, 2007, p. 129-130. 126

Ibidem, p. 142 127 CUNHA, Candido Neto da. Op. Cit., p. 37.

Page 65: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

64

3.7 “ASSENTAMENTOS DE PAPEL”

Um segundo momento da política agrária que, particularmente, interessa

para a compreensão do Projeto de Assentamento Rio Trairão são as ações

implementadas no âmbito do II Plano Nacional de Reforma Agrária, principalmente,

no período de 2005-2006, lapso no qual foram criados os ―assentamentos

fantasmas‖, nos quais algumas famílias moradoras do PART foram ―assentadas‖,

bem como os Projetos de Desenvolvimento Sustentáveis (PDS) sobre os quais se

sobrepõe uma área requerida pelos assentados para ampliação do assentamento.

Entre os anos de 2005 a 2006 foram criados 21 projetos de assentamentos

(34,43% do total hoje existente) na área do Polígono Desapropriado de Altamira128 e

inúmeros Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS) na área de atuação da

Superintendência Regional do Incra em Santarém (SR 30). Para além, da clara

intenção de inflar os números da reforma agrária, apontada por Oliveira129, a criação

em massa de assentamentos e, especialmente, de PDS pelo Incra destinava-se, em

sua maioria, a abastecer a indústria da madeira ilegal. 130

Segundo Torres, no ano de 2006 a SR 30 assentou no papel mais famílias

que em todo o século XX na região Sul ou Sudeste.131 No dia 27/12/2006, por

exemplo, foram criados 20 assentamentos rurais ―com destinação de terras públicas

da ordem de 528.000 ha (quinhentos e vinte e oito mil hectares) e a inclusão em

relação de beneficiários de um número de famílias equivalentes ao total de famílias

assentadas em toda a região sul no ano de 2006‖.132

Alguns desses assentamentos embora existissem no papel, com Relação de

Beneficiários (RB) e Associação de Moradores, não passavam de ficção, haja vista

que as famílias nunca foram de fato assentadas. Os PDS eram implantados em

128 CUNHA, Candido Neto da. ―Pintou uma chance legal: o programa Terra Legal no interior dos Projetos Integrados de Colonização e do Polígono Desapropriado de Altamira, no Pará‖. Agrária. Laboratório de Geografia Agrária - DG/FFLCH/USP. ISSN 1808-1150. nº 10/11, 2009, p. 41. 129

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Modo Capitalista de Produção, Agricultura e Reforma Agrária. FFLCH: São Paulo, 2007, p. 168. 130

GREENPEACE. Assentamentos de papel, madeira de lei: relatório denúncia. Pesquisa; Cirino Lobo dos Anjos. Manaus, ago. 2007. 131

TORRES (2006) apud CUNHA, Candido Neto da. Op. Cit., p. 41. 132

. Cf. BRASIL. Justiça Federal da 1ª Região. Seção Judiciária do Estado do Pará. Vara Única da Subseção Judiciária de Altamira. Cautelar Inominada n.º: 2007.39.03.00716-0.

Page 66: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

65

áreas absolutamente inapropriadas para ocupação e a revelia de qualquer critério

técnico, mas com reconhecido potencial madeireiro.133

A parceria, que, a partir de então, se estabelecia entre a Superintendência

Regional do Incra em Santarém e as empresas do setor madeireira envolvidas

nestes atos beneficiava a ambas, em detrimento de potencias beneficiários e na

contramão do estabelecido na legislação pátria: o Incra cumpria as metas da

reforma agrária e as madeireiras lucravam com e venda de madeira retirada dos

assentamentos.134

Tais atividades protagonizadas pela SR 30, em afronta ao determinado na

legislação pátria, foram percebidas pelo Ministério Público Federal que moveu a

Ação Civil Pública n° 2007.39.02.000887-7 135 , junto a Subseção Judiciária de

Santarém, propondo a interdição da movimentação administrativa da autarquia

referentes aos projetos de assentamento instituídos no período de 2005-2007,

excluindo-se os projetos de assentamento agroextrativistas, bem como a anulação

dos projetos de assentamento criados neste período na área de atuação da

Superintendência do Incra em Santarém.

Segundo Felipe Fritz Braga, então Procurador da República no município de

Santarém e signatário da inicial da Ação processual, não se tratavam apenas de

assentamentos de papel, mas também assentamentos de madeira:

Em dois anos, foram criadas quase duas centenas de assentamentos, mas a infraestrutura mínima todo o tempo esteve fora dos planos do governo federal. O que é um assentamento sem a construção pelo menos de estradas de acesso? Fomos então trabalhar sobre os processos de criação dos assentamentos, e a situação com que nos deparamos foi desoladora – e funesta: os assentamentos foram em geral criados sem pareceres técnicos mínimos que permitissem avaliar sua viabilidade social e ambiental. Por fim, nos deparamos com a Secretaria Estadual de Meio Ambiente assinando um acordo com o Incra, pelo qual seria possível a aprovação de projetos de exploração madeireira nos assentamentos mesmo sem o licenciamento ambiental. O quadro ficou então nítido: os assentamentos foram criados sem que houvesse qualquer preocupação do Incra com comunidades assentadas, para que efetivamente pudessem ocupar e viver dignamente nas áreas, mas trabalhava-se para que o setor madeireiro

133

GREENPEACE. Assentamentos de papel, madeira de lei: relatório denúncia. Pesquisa; Cirino Lobo dos Anjos. Manaus, ago. 2007. 134

Cf. BRASIL. Justiça Federal da 1ª Região. Seção Judiciária do Estado do Pará. Vara Única da Subseção Judiciária de Altamira. Ação Civil Pública n.º: 2008.39.03.000001-0. 135 Cf. BRASIL. Justiça Federal da 1ª. Região. Seção Judiciária do Estado do Pará. Vara Única da Subseção Judiciária de Santarém. Ação Civil Pública n.º: 2007.39.02.000887-7.

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66

pudesse explorar a floresta. Vimos então que, na verdade, os assentamentos não eram só papel: eram assentamentos de madeira. Pedimos a urgente suspensão dos assentamentos e do acordo com a Secretaria de Meio Ambiente, o que foi prontamente atendido pela Justiça Federal, até que o Incra regularize tudo. Em reunião posterior com o diretor nacional do Incra, Raimundo Lima, este fez uma colocação reveladora: a política de criação de assentamentos do Incra se inseria numa política mais ampla de aumento da participação brasileira no mercado internacional de madeira tropical de 2% para 10%. Só que isso, como vimos, às custas das populações da zona rural, de seus modos de vida, de sua cultura, de sua tradição.

136

Em resposta a iniciativa processual do Parquet, em 24 de agosto de 2007, a

Justiça Federal exarou decisão na Ação Civil Pública citada acolhendo o pedido de

liminar em ordem a:

Interditar todos os efeitos de dos projetos de assentamento discriminados às f. 213-243, até completa modificação, eventualmente no curso do processo, do panorama que vem de ser referido (inexistência de viabilidade material e de licenciamento ambiental prévio pelo IBAMA), e todas as licenças expedidas pela SECTAM até a notificação desta decisão, bem assim impor proibição do referido ente político (Estado do Pará) de promover novos licenciamentos em projetos de assentamento do INCRA [...].

137

Em 12 de abril de 2011, ao julgar o mérito desta mesma Ação Civil Pública,

a Justiça Federal confirmou o teor da liminar anteriormente deferida e julgou

procedente o pedido para:

a. Declarar inválidas todas as portarias de criação dos projetos de assentamento (PA), projetos de assentamento coletivo (PAC), projetos de desenvolvimento sustentável (PDS), publicadas nos anos de 2005 e 2006, inclusive, pela Superintendência Regional do INCRA em Santarém. c. Invalidar quaisquer autorizações, licenças ou permissões de atividades de exploração florestal manejada naqueles projetos de assentamento (PA), projetos de assentamento coletivo (PAC), projetos de desenvolvimento sustentável (PDS), criados pelo INCRA entre 2005 e 2006, inclusive, já emitidas pela SECTAM (atual SEMA).

136

O Liberal, 2007 apud CUNHA, Cândido de. ―Pintou uma chance legal: o programa Terra Legal no interior dos Projetos Integrados de Colonização e do Polígono Desapropriado de Altamira, no Pará‖. Agrária. Laboratório de Geografia Agrária - DG/FFLCH/USP. ISSN 1808-1150. nº 10/11, 2009, p. 42. 137

BRASIL. Justiça Federal da 1ª. Região. Seção Judiciária do Estado do Pará. Vara Única da Subseção Judiciária de Santarém. Ação Civil Pública n.º: 2007.39.02.000887-7. Disponível em: http://www.prpa.mpf.gov.br/news/2007/Incra%20-%20projetos%20de%20assentamento.pdf. Acesso em: 05 mai. 2012.

Page 68: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

67

d. Indeferir os pedidos de desinterdição de projetos de assentamento.138

Portanto, restam cancelados os assentamentos rurais nos quais algumas

famílias moradoras do Projeto de Assentamento Rio Trairão foram impropriamente

cadastradas.

138

BRASIL. Justiça Federal da 1ª. Região. Seção Judiciária do Estado do Pará. Vara Única da Subseção Judiciária de Santarém. Ação Civil Pública n.º: 2007.39.02.000887-7. Disponível em: http://www.in.gov.br/imprensa/visualiza/index.jsp?jornal=20&pagina=889&data=14/04/2011. Acessado em: 10 de mai. 2012.

Page 69: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

68

4 MORADA DE TERRA: a ocupação camponesa da área hoje

compreendida pelo PART

A ocupação camponesa na área hoje compreendida pelo Projeto de

Assentamento Rio Trairão (PART) foi gestada no interior das circunstâncias

apresentadas no capítulo anterior e protagonizada por migrantes oriundos,

principalmente, dos estados do Maranhão, Bahia e Piauí. A história de vida desses

camponeses que na década de 80 iniciaram a ocupação da referida área se

assemelha a história de milhares de migrantes que, assim como eles,

desembarcaram na Transamazônica em busca da ―terra boa‖ e desocupada.

Apesar da semelhança, a trajetória de cada um desses sujeitos não deixa de

possuir características ímpares e ser marcada por experiências singulares que

influenciam decisivamente na forma como eles interpretam as lutas e constroem

seus sonhos. A percepção dessa diversidade de gente é essencial para

compreensão da organização social, dos conflitos nos quais eles se envolveram no

decorrer dos anos, das suas fragilidades e da própria gênese da ocupação.

Pretende-se neste capítulo, apresentar a trajetória dessa ocupação

camponesa na área hoje compreendida pelo PART: a entrada na terra, as

dificuldades enfrentadas, a criação do assentamento, o surgimento das

comunidades. Esse capítulo constrói-se essencialmente através das memórias

expressa pelos assentados e ocupantes que, mais que lembranças nostálgicas, são

reveladoras das experiências, das fragilidades, dos sonhos, dos ganhos e perdas

ocorridas no decorrer dos anos.

As entrevistas transcritas neste capítulo foram concedidas tanto por

assentados, como por ocupantes do assentamento, majoritariamente do sexo

masculino, cuja principal atividade é a agricultura. Estas entrevistas foram coletadas

tanto na Comunidade Menino Jesus, quanto na Comunidade Nossa Senhora do

Rosário, especialmente entre aquelas pessoas envolvidas na história da ocupação

da área onde o PART foi criado: seja naquela sobre a qual o assentamento foi

sobreposto, seja na da posterior fundação da Comunidade de Menino Jesus.

Page 70: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

69

4.1 RIO TRAIRÃO: A ocupação

A ocupação camponesa da área hoje compreendida pelo PART, data da

década de 1980, especificamente 1988, ano em que um grupo de sete migrantes

começou a se instalar na área. Esses camponeses possuíam um destacável elo em

comum: a colonização oficial. Eram colonos e seus filhos, trabalhadores das

fazendas da faixa da Transamazônica, parentes de colonos, ou mesmo migrantes

que ―livremente‖ se deslocaram para a região:

[...] nós viemos do Maranhão em 85. Em família, aí a gente viemos em busca de terra para sobreviver, né? Lá nós morava em terra dos outros, né? ´[...] E aí devido a família ir crescendo e a gente não ter terra suficiente para trabalhar, né? Então nós viemos para a transamazônica, em 85. Aí também nós chegamos aí e ficamos morando na terra do sogro, aí quando foi em 88 nós decidimos descer pra tirar essas terras aqui embaixo [...] Essa colonização aqui, a partir de 88 foi que nós começamos aqui. Nós viemos do Maranhão, mas não viemos direto pra aqui. Nós viemos lá pra cima, onde mora meu sogro. Meu sogro faleceu, mas minha sogra mora lá até hoje.

139

Esses migrantes possuíam um histórico de vida marcado por entradas e

saídas da terra. A terra era uma busca constante dessa gente e a esperança do

encontro com essa terra desocupada, boa para trabalho e que lhes proporcionaria

condições de vida, os impulsionou a colocar o pé na estrada e a enfrentar os

atoleiros da Transamazônica e as outras dificuldades que o caminho revelaria:

Eu morava lá no Maranhão, em um lugar chamado Paxiba, trabalhando mais um parente nosso, sabe? Aí o véi meu sogro veio pra cá e conseguiu essas terras aqui e aí foi e escreveu pra mim vir também porque tinha terra pra trabalhar, terra desocupada. Aí eu vim, ajeitei lá e vim mais a família. Tinha uma criancinha de um ano. Aí quando nós chega na estrada tinha muito atoleiro, mês de março, muita chuva. Nós gastou doze dias de Imperatriz até Uruará. A comida que a gente achava era um pedacinho de macaxeira, um cruzeiro cada pedacinho de macaxeira que a gente comprava. A gente trouxe o que comer, mas acabou na estrada, foi um sofrimento. Eu vinha com outra família, mais ela aqui. Com outra família... aí a casa que nós achava pra dormir era casa de palha, molhava a noite todinha. Aí ela chorava, a criança

139

Entrevista registrada em áudio, concedida por Miguel Mendes Santos, na Comunidade Nossa Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 17 de julho de 2011.

Page 71: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

70

chorava e eu ficava calado. Era o jeito, ficava calado. Reclamava não, até que nós chegou. Gastou doze dias e chegou aqui em Uruará, do Uruará nós veio aqui pro travessão. Do travessão nós veio pra casa do Ali, da casa do Ali nós veio pro lote.

140

Vencer os atoleiros, as noites chuvosas e o caminho de chão que os

separava do sonhada morada da terra era apenas o início da prolongada e penosa

luta para permanecer na terra, mas um início que marcaria a memória individual e

coletiva daquela gente. Os pioneiros da ocupação, que ainda residem no PART,

guardam a lembrança do ano em que chegaram no travessão, dos companheiros de

ocupação, dos barracos que ajudaram a levantar, das casas onde moraram e da

dolorosa felicidade que aqueles primeiros momentos na terra lhes proporcionavam.

Nada lhes escapou da memória. Nem a felicidade e a euforia de encontrar a terra,

nem a dor provocada pelas dificuldades de permanência que se seguiriam.

―Era animado assim, parece que tava acertando na loto, ganhando muito

dinheiro. Era a animação pra mais tarde possuir a terra‖.141 O início da ocupação é

constantemente evocado e contrastado com as situações anteriormente vividas por

essas pessoas, quais sejam, não ter terra, morar de favor, pagar renda. Essas

situações anteriores são normalmente identificadas com o sofrimento. ―Eu não dou

nem conta de contar meu sofrimento quando eu nasci pra cá‖.142 Ser pobre e não ter

terra para viver é sofrer. ―Lá pra fora, quem tá pra lá que não tem terra, os fraco lá

fora sofre‖.143 Assim, a entrada na terra é apresentada como uma vitória sobre uma

vida anterior e os sofrimentos a ela relacionados.

A gente gastava mais de um dia de viajem de lá até aqui. Só a mata pura. A gente ia passando, o mato pegava a boneta da gente e jogava pra trás. Ai tinha hora que era muito peso, a gente escorregava, caia e levantava e era impossível a vida. A onça atravessava por nós na

140 Entrevista registrada em áudio, concedida por Jesuíno Mendes de Oliveira, na Comunidade Nossa

Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 16 de julho de 2011. 141 Entrevista registrada em áudio, concedida por Jesuíno Mendes de Oliveira, na Comunidade Nossa

Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, em 16 de julho de 2011. 142 Entrevista registrada em áudio, concedida por Adaílde Barros dos Santos, na Comunidade Nossa

Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 16 de julho de 2011. 143 Entrevista registrada em áudio, concedida por Jesuíno Mendes de Oliveira, na Comunidade Nossa

Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 16 de julho de 2011.

Page 72: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

71

estrada, pulava a estrada, tinha hora que queria enfrentar a gente, mas era muita gente, e venceu a batalha.

144

A entrada na terra, entretanto, era apenas uma de tantas outras batalhas

que aquele grupo inicial teria de vencer para nela permanecer. A ocupação da área

iniciou-se sem condições mínimas de instalação. Não havia escola, posto de saúde,

estradas, somente as matas e o Rio Trairão. Apesar da falta de infraestrutura e

acessibilidade, os camponeses começaram a separar, organizar e cultivar os lotes.

Inexistindo estradas, o trajeto até os lotes era feito em grupo e a pé por meio de

picadas abertas nas matas.

Então nós... a primeira vez que nós viemos, nós entremos, né? Entremos por picada, que não tinha nem estrada aqui nesse tempo, a estrada só vinha até Jeru. Viemos arrodiando o rio, né? Através de picadas, né? Então localizamos essa terra aqui, aí passamos... fizemos um barraquinhos. Começamos a trabalhar, aí também a partir dessa emergência, que nós tiremo essa terra, também já começou a colonização. Outras pessoas que também já entraram pegando essa oportunidade e demarcando pra frente, né?

145

Frente às ausências e dificuldades, esses camponeses estabeleceram

relações de solidariedade e ajuda mútua. No inicio da ocupação, estas relações não

se restringiam as longas caminhadas na mata. Elas, também, abarcavam o trabalho

em mutirão nos lotes: a construção de barracos, o fazimento de roçados.

Ia fazer a roça de fulano, nós ia lá todo mundo e um dia nós fazia. Tem um mutirão em tal lugar, ia todo mundo. Tem isso aqui pra fazer, barrear um barraquinho daquele ali ó, daquele que tá caindo lá, chegava aqui todo mundo e arrodiava ali, quando dava mais tarde e podia entrar pra dentro, tava tudo ok.

146

144 Entrevista registrada em áudio, concedida por Jesuíno Mendes de Oliveira, na Comunidade Nossa Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 16 de julho de 2011. 145

Entrevista registrada em áudio, concedida por Miguel Mendes Santos, na Comunidade Nossa Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 17 de julho de 2011. 146 Entrevista registrada em áudio, concedida por Pedro Torquato de Oliveira, na Comunidade Nossa

Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 18 de julho de 2011.

Page 73: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

72

Nos primeiros meses, a terra alcançada, ainda, não era morada desses

camponeses. As mulheres e as crianças permaneciam na área de colonização

antiga e os lotes eram apenas espaços de trabalho dos homens. Para garantir, ao

mesmo tempo, o sustento de suas famílias e obtenção de meios para instalação

definitiva na área, esses colonos dividiam suas horas de trabalho em atividades no

lote e atividades temporárias em terras de terceiros.

Aí depois a gente veio, sete posseiros juntos, com os cacai nas costa. A gente trazia as coisas e... ia ranchar no barraco do Gildo, que era parente do Moreira, muito amigo da gente. E do barraco do Gildo nós vinha pra cá, pro lote, os posseiros. [...] Lá [na faixa] eu ia pro trecho, trabalhar no trecho, pegava os bagui, o saldo eu pegava, eu pegava os bagui e trocava em casa [...] a metade pra família e a metade eu botava em um saco e trazia pra comer, aqui embaixo.

147

Apesar da persistência de algumas dificuldades, ainda em 1988, os

camponeses se transferem com suas famílias para os lotes nos quais estavam

trabalhando. A chegada das famílias nos lotes é um momento marcante na história

da ocupação da área, porquanto estabeleceu a necessidade de criação de outros

espaços de sociabilidade na área.148

4.2 NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO

A chegada das crianças, jovens e mulheres na área de ocupação é um

momento marcante. Com a chegada das famílias, a terra deixa de ser apenas o

lugar de trabalho e passa a ser também o local de morada. Local de habitação, mas,

principalmente, local no qual passam a ser vivenciadas as experiências relacionadas

ao espaço, à terra e à convivência social. Experiências essas importantes para o

fortalecimento dos laços de sociabilidade do núcleo familiar e para a reprodução da

família.

A indissociabilidade, que naquele momento se fundou, entre o ―trabalhar‖ e o

―morar‖ na terra, resultou no estabelecimento de espaços que promoveram a

147 Entrevista registrada em áudio, concedida por concedida por Jesuíno Mendes de Oliveira, na Comunidade Nossa Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 16 de julho de 2011. 148

É necessário destacar que a carência de depoimentos das mulheres do assentamento se deve, em parte, ao fato de durante a coleta das entrevistas ter se solicitado aos membros da família que apontassem a pessoa que relataria a história da vida e das vivências da família.

Page 74: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

73

proximidade entre as famílias e o enraizamento na área, diminuindo a necessidade

de deslocamento para cidade. ―Aí também a gente decidiu fazer essa área aqui, tirar

essa área pra vila, e também de imediato a gente formou uma comunidade‖.149 A

nova comunidade ganhou o nome de Nossa Senhora do Rosário e a pequena vila

comunitária foi batizada de ―Santa Fé‖.

Na história da fundação da Comunidade, da Vila e do próprio início da

ocupação da área é recorrente a menção ao nome de uma senhora de nome Jacinta

Maria da Conceição. Segundo os relatos dos colonos mais antigos, Jacinta Maria da

Conceição era uma senhora que habitava a área, anteriormente a chegada deles e

que se intitulava dona de uma faixa de terra que incluía a área da vila e dos lotes

das famílias a época.

Aí depois que eu estava com três anos morando, dois anos morando aqui dentro, reuniu o pessoal pra nós vim marcar terra aqui embaixo, na área da véa Jacinta. Aí depois a gente veio, sete posseiros juntos, com os cacai nas costa.

150

Aqui não tinha nada, aqui tinha só mata mesmo e uma senhora por nome de Jacinta Maria da Conceição que tinha umas aberturinhas aqui, daqui a acolá ela tinha uma aberturinhazinha que ela dizia ser tudo dela, né? E aí nós precisando de terra, aí procuramos também tirar um pedacinho pra nós também.

151

Ali era de uma velha que tinha aí, ela dizia que até aqui era dela [...] era da dona Jacinta. Cê vê como é que é. Eu trabalhava aqui e quando eu passava lá numa fazendinha que tem lá em cima, ela me chamava lá, no barraco dela, lá na casa, no barraco não, uma casona bonita, e aí falava, ―Vamo tomar um cafezinho, você tá lá abrindo abrindo as minhas terra...‖ No caso ela quis dizer que eu tava trabalhando de graça pra ela. Entendeu.

152

Aparentemente, nunca houve conflitos pela terra entre Dona Jacinta e os

ocupantes. Sendo, inclusive, relatado pelos mais antigos que ela teria doado área da

149

Entrevista registrada em áudio, concedida por Miguel Mendes Santos, na Comunidade Nossa Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 17 de julho de 2011. 150 Entrevista registrada em áudio, concedida por Jesuíno Mendes de Oliveira, na Comunidade Nossa

Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio

Trairão, Uruará, em 16 de julho de 2011. 151

Entrevista registrada em áudio, concedida por Miguel Mendes Santos , na Comunidade Menino Jesus, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 17 de julho de 2011. 152 Entrevista registrada em áudio, concedida por Pedro Torquato de Oliveira, na Comunidade Nossa

Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 18 de julho de 2011.

Page 75: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

74

vila, exigindo em troca que fosse dado o seu nome a escola da comunidade. A

solicitação de Dona Jacinta foi atendida. Quando a escola da comunidade foi

inaugurada recebeu o nome de ―Jacinta Maria da Conceição‖, nome pelo qual até

hoje a escola é conhecida.

É, exatamente. Aí o nome do colégio foi [...], foi Jacinta [...] Maria da Conceição, que foi essa velhinha que eu tô falando que já habituava, antes de nós ela já... andava aí atravessando o rio cheio aí montada em burro... Aí ela tocava a vida dela, né? Aí foi colocado o nome dessa senhora que foi colocado no nome do colégio.

153

A escola da comunidade foi fundada no mesmo período em que foi aberta a

primeira estrada que ligava a comunidade a Transamazônica. Para a obtenção de

ambas, os camponeses contaram com o auxílio do vereador José Carlos Vilas Boas.

A estrada e a escola, ainda que precárias, foram recebidas com entusiasmo.

Ajudou muito. Foi um senhor, por nome de Zé Carlos, que morava lá em cima, que tinha muito interesse por isso aqui, muito interesse. O interesse dele era criar a Vila Santa Fé, fazer alguma coisa por esse povo. Aí, um certo ano, em política, candidataram ele, o povo pediram a ele pra se candidatar ele como vereador. Se candidatou, o povo votou nele e ele ganhou. Aí foi brigar por esse carreiro, entendeu? E eu não sei o que aconteceu lá, eu sei que ele conseguiu esse carreiro, com muita dificuldade, mas um dia saiu um trator na Vila Santa Fé. Um tratorzinho cinquenta, por debaixo dos matos que nem um tatu. Nós ajudando a empurrar. Nós juntava todo mundo e saia correndo, fazendo poeira na estrada. Mas era bom! Todo mundo animado.

154

É quando... quando formou a escola, né? Quer dizer, foi o... já o Zé Carlos que era o... que ele foi eleito a candidato, né? Aí em seguida ele tirou essa estradazinha até aqui, trator até aqui. O trator chegou aqui na vila, aí foi que começou, né? A professora já era daqui também, filha de colono, que foi a comadre Liene. E aí começou a dar aula, começou aumentar os trabalhos, né?

155

A inexistência de estradas que ligassem a comunidade à Transamazônica é

sempre apresentada como a principal dificuldade enfrentada naqueles primeiros

153

Entrevista registrada em áudio, concedida por Pedro Torquato de Oliveira, na Comunidade Nossa Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 18 de julho de 2011. 154 Entrevista registrada em áudio, concedida por Pedro Torquato de Oliveira, na Comunidade Nossa Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 18 de julho de 2011. 155

Entrevista registrada em áudio, concedida por Miguel Mendes Santos, na Comunidade Nossa Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 17 de julho de 2011.

Page 76: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

75

anos, porquanto impossibilitava o escoamento da produção e, até mesmo, o

deslocamento até a cidade. A ocupação estava localizada a cerca de 70 quilômetros

da cidade. Inexistindo estradas, o transporte era ofertado de forma precária. Era

necessário vencer 45 quilômetros de picadas, para se chegar ao lugar no qual, uma

vez por semana, o carro de linha passava.

Porque eu fazia tina de arroz aí, furava um buraco por baixo para as galinhas e os porcos comer, porque não tinha pra quem vender. Porque era só uma picada daqui até lá no Simão [...]. Daqui a quarenta e cinco quilômetros é que vinha um carro, uma vez por semana. De lá pra cá era só na picadona do facão, tinha que ser dois. Era perigoso e era cansativo, era perigoso assim, por causa dos bichinhos do mato, né? E cansativo porque... mas isso era difícil, era por acaso, quando dava sorte. Botar quarenta, vinte e cinco, trinta quilos nas costas e arrastar pra cá, não era brincadeira.

156

Nos anos que seguiram a abertura da estrada patrocinada pelo vereador, o

Poder Público não promoveu nenhuma obra de infraestrutura ou de manutenção.

Abriu-se uma estrada de acesso a área, em 1995, não pelo ente público, mas por

uma empresa madeireira que atuava na região. Através das vias abertas a empresa

escoava a madeira que intensamente extraia da área. Os colonos, também,

utilizavam a estrada.

Melhorou um tempo. Entrou uma firma madeireira, fez um arrastão nessa estrada aí, fez uma estrada boa, aí melhorou. [...] Aí a gente foi começando a plantar, e foi começando a plantar, e foi começando a plantar e o que a gente produzia aqui, já levava pra cidade. Chegava lá e já vendia, mesmo que fosse pros atravessador, mas já vendia. Então melhorou, muito [...]. De 95 pra cá é que foi melhorar, pra trás... era duro, mas era duro! Não era brincadeira.

157

Normalmente, a localização dos assentamentos está intimamente ligada às

relações que os assentados estreitam com os madeireiros. Esses últimos,

normalmente, em troca da exploração da madeira da área, abrem e mantém

estradas que duram o tempo de exploração do estoque. A relação que a partir daí se

156 Entrevista registrada em áudio, concedida por Pedro Torquato de Oliveira, na Comunidade Nossa

Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 18 de julho de 2011. 157 Entrevista registrada em áudio, concedida por Pedro Torquato de Oliveira, na Comunidade Nossa

Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 18 de julho de 2011.

Page 77: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

76

estabelece é uma relação de sobrevivência. São as madeireiras que garantem, em

muitos casos, as estradas, o transporte nas situações de emergência e que

permitem um mínimo de circulação monetária nos assentamentos, através do

aviamento para a exploração de madeira.158

No Projeto de Assentamento Rio Trairão, a relação que se estabeleceu entre

o grupo e a madeireira, até onde se pode perceber, também está associada à

manutenção da estrada. A necessidade da estrada tornou suportável a presença da

madeireira. Uma relação de dependência e, em certo ponto, de sobrevivência que

perdurou por mais de dez anos.

4.3 RIO TRAIRÃO: O Assentamento

Em 1997, uma nova esperança reanimou os camponeses de Nossa Senhora

do Rosário. No referido ano, a área na qual a comunidade estava inserida foi

destinada, pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, para a criação

de um Projeto de Assentamento: o PA Rio Trairão. Entretanto, as expectativas que

cercaram a criação do assentamento logo se mostraram frustradas.

O Incra falou de vim aqui, falou de vim, disse que vinha. Até que um dia apareceu um agrimensor. O Incra veio fazer uma reunião aí, dizendo que vinha medir as terras, medir as terras, aí mandou um agrimensor vir aqui medir as terras. Só mediu a frente, nós espera botar as pedras, colocar as pedras e fazer levantamento e nunca veio, nunca veio não. E outra também, os paus que eles colocou foi vara de mato verde, de brejo, aí no outro ano a enchente levou tudo, apodreceu, acabou. Agora eu coloquei uns marco de ferro [...]. Agora eu fui em um pouco na experiência e coloquei uns marcos de ferro, tá aí. Eu sei mais ou menos. Agora tem deles que não sabe onde é a divisa deles. Sempre o Incra vem fazer reunião aí, mas não aparece pra medir. Aqui o pessoal trabalha um dentro da terra de um, um dentro da terra de outro.

159

Não são poucos os que acreditam que as questões agrárias se resolvem com

o simples ato administrativo que cria os assentamento de reforma agrária e que o

ato porá fim às necessidades dos assentados. Porém o assentar de famílias,

158

BENATTI, José Heder. ―Questão fundiária e sucessão da terra na fronteira oeste da Amazônia. Novos Cadernos NAEA. ISSN 1516-6481, v. 11, n. 2, Belém: UFPA, 2008. p. 104 e 111. 159 Entrevista registrada em áudio, concedida por Jesuíno Mendes de Oliveira, na Comunidade Nossa

Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 16 de julho de 2011.

Page 78: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

77

supostamente, sem terra apenas encerra um drama e da inicio a outros

problemas 160 ou mesmo é marcado pela persistência dos velhos. As famílias

assentadas no PART não tardaram a perceber isso.

Os benefícios, inicialmente, anunciados pelo órgão federal não foram

implementados: os lotes não foram demarcados, a infraestrutura prometida não veio,

os créditos de habitação ―sumiram‖. O Incra passou a ser apontado como o

responsável pelos problemas decorrentes da não implementação das políticas

públicas prometidas.

[...] estrada, a questão da educação, a questão da saúde e mais outras coisinhas que eles falaram por aí... os lotes, ia demarcar tudinho, ia cortar, entregar, nada feito. Aqui eles fizeram um esqueleto de boto. Entramos em parceria com o Incra e foi feito um esqueleto de boto. Botaram umas pedras na frente, só na frente, entendeu? E aí, a gente aqui no mato não sabe fazer cimento, não dava pra comprar também, aí botou qualquer pau e acabou. E nunca mais, só promessa, promessa.

161

O não cumprimento das promessas alardeadas durante a criação do PART

despertou a descrença na capacidade de atuação da autarquia e contribuiu para a

criação de uma imagem negativa, por partes dos assentados, sobre o Incra, forjada

a partir da inoperância, das denúncias de corrupção e dos equívocos cometidos

durante o assentamento das famílias. Equívocos como aquele que deixou de fora da

lista de beneficiados do PART, um dos fundadores da ocupação que antecedeu o

assentamento.

Na época eu tirei esse lote aí, mas não consegui pegar acesso ao assentamento devido a uns atrapalho aí, que a pessoa assentou na área que era pra me assentar, outro assentou. Mas só que foi só no papel, né? Então, isso aí tem que ficar bem claro também, né? Que eu... tenho que receber ainda esse assentamento, porque eu nunca fui assentado, nunca fui assentado.

162

A descrença na autarquia se agravou, ainda mais, com as denúncias de

―sumiço‖ dos créditos da habitação. A maioria da população do PART afirmou não 160

MARTINS, José de Souza. O Sujeito Oculto: ordem e transgressão na reforma agrária. Porto Alegre: UFRGS, 2003, p. 09. 161 Entrevista registrada em áudio, concedida por Pedro Torquato de Oliveira, na Comunidade Nossa Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 18 de julho de 2011. 162

Entrevista registrada em áudio, concedida por Miguel Mendes Santos, na Comunidade Nossa Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 17 de julho de 2011.

Page 79: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

78

ter recebido estes créditos e aqueles que dizem ter recebido, aduzem o recebimento

pela metade. A denúncia do esquema de fraude na construção das casas do PART

e acusação de uma atuação corrupta da autarquia é a narração mais recorrente

entre os assentados quando o nome do Incra é mencionado.

Apareceu um rapaz aí com um negócio de um crédito habitação, foi feita as proposta e disse que quem não assinasse não recebia o imóvel. Mas não tem jeito de assinar uma coisa sem receber, mas se não assinar não vai receber. Então a gente ficou, a gente aqui, quase no ponto obrigado a assinar, na base da pressão do próprio Incra. Incra, eu falo, assim, o Incra porque eram os funcionários. Todo mundo assinou, porque queria. Quem é que não queria uma casinha bem ajeitadinha aqui dentro desse mato? Assinei. Todos tiveram que assinar. Foi a proposta, se não assinasse não ia receber. Nunca nem tinha visto essas coisas, mas a gente acreditou, era um órgão do governo! A gente não sabia que isso podia acontecer. E depois andaram ―pipinando‖ umas pro lado e outras pra outra aí, perdeu meio mundo de material jogado por aí e pronto, acabou-se.

163

Para facilitar o acesso aos fomentos que seriam disponibilizados pelo Incra e

pela Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac), os assentados

criaram uma associação, ainda existente e atuante, denominada Associação dos

Pequenos Produtores Rurais de Santa Fé. A primeira diretoria da Associação foi

afastada, sob a suspeita de envolvimento no desvio de créditos repassados ao

PART.

Entraram créditos que foram desviados, então foi necessário que outra diretoria assumisse a associação. A Associação tem 14 anos e só teve quatro direções: [...] Meu mandato começou em 2004, desde lá comecei a ir ao Incra para pedir estrada e outras melhorias. Participei de uma manifestação no Incra de Rurópolis (em 2005), por causa dos créditos de habitação e por demarcação. Para tentar fazer a demarcação, a associação levou proposta até o Incra de garantir recursos, tendo o Incra que garantir apenas o topógrafo.

164

163

Entrevista registrada em áudio, concedida por Pedro Torquato de Oliveira, na Comunidade Nossa

Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 18 de julho de 2011. 164 Entrevista registrada em áudio, concedida por Assentado III, na Comunidade Nossa Senhora do

Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 18 de julho de 2011.

Page 80: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

79

Fotografia 1 - Exemplos de moradias comumente encontradas no Projeto de Assentamento Rio Trairão. As casas de taipa, de madeira serrada e de madeira roliça são as formas de construção mais frequentes. As casas que seguem o modelo do Incra são raras no PART.

Fotos: Kerlley Diane Santos

Page 81: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

80

Os assentados costumam afirmar que, diferentemente da primeira, as

diretorias que se seguiram vêm encampando lutas em busca de melhorias para o

PART e buscando parcerias tanto junto ao Incra, como a organizações que prestam

assistências técnica a agricultores. A persistência dos problemas relacionados à

falta de infraestrutura e à demarcação dos lotes, os anima a lutar por melhorias para

o assentamento, porquanto sabem os prejuízos que a inexistência dessas têm

ocasionado aos assentados que permaneceram nos seus lotes no decorrer dos anos

e para aqueles outros que chegaram após a criação do assentamento.

A ausência de infraestrutura, transporte e estradas que facilitassem o

deslocamento da produção dos assentados até o município contribuíram para uma

substantiva rotatividade da população, para o abandono e para a venda dos lotes

por preços irrisórios.

Muita gente que veio e desistiu, mesmo depois desses carreiro aí, dessas estradinha aí... Muitos... Olha, tinha gente que tirava terra, eu conheço um lote aqui [...] que o cara que era dono dele, vendeu ele por uma porca. Um lote de vinte alqueire, vendeu por uma porca. Uma porquinha véia... pra botar pra fritar é obrigado comprar banha de outra pra botar nela. Outro dia ali, vendeu por uma caixa de óleo de soja. Tá entendendo?

165

Os lotes abandonados concentraram-se, principalmente, ao norte do

assentamento, principalmente, por ser a área de acesso mais precário e foi lá, que

um grupo de famílias fundou a segunda comunidade do assentamento.

4.4 MENINO JESUS

A Comunidade Menino Jesus foi fundada em 2006 por um grupo de sete

famílias sem terra que viviam na Vila Santa Fé. Oriundos de outros estados e com

passagens por várias localidades da Amazônia e do Nordeste, a experiência que

uniu as trajetórias sociais da maioria dessas famílias fundadoras, foi o período em

que trabalharam na Fazenda Santa Fé, conhecida regionalmente como Fazenda

165

Entrevista registrada em áudio, concedida por Pedro Torquato de Oliveira, na Comunidade Nossa Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 18 de julho de 2011.

Page 82: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

81

Vemagg e situada às proximidades do Assentamento, no Travessão 200 Norte, o

mesmo que liga o PART à Transamazônica.

Quatro das famílias fundadoras residiram e trabalharam na Fazenda Vemagg

durante um substantivo espaço de tempo. Vivendo próximos e trabalhando juntos,

esses núcleos familiares acabaram por constituir laços entre si, tendo, inclusive, uma

das famílias se formado dentro da Fazenda.

Quando a gente chegou na fazenda, eu já conhecia eu já tinha meu sogro, né? Que tava comigo já, que é o seu E. , aí a gente não se conhecia os outros. João Luís, Pipira, esses a gente não conhecia, né? Mas, aí basta que nós fizemos os barraquinhos tudo pertinho um do outro, fomos trabalhar junto, a gente se conheceu e ficou como família, hoje a gente se considera aqui na comunidade como se é uma família, faz parte da nossa família. [..] O Pipira era solteiro, né? E, aí através desses trabalhos, que a gente trabalhava junto, essa mulher chegou, a mulher dele hoje, ela veio visitar a prima dela, que é minha mulher e a outra menina que trabalhava junto com a gente [...] aí nisso o Pipira trabalhava junto com a gente, aí houve esse casamento, a gente fez um casamento.

166

As lembranças da Fazenda, entretanto, não se limitam a esses momentos de

constituição de laços, mas revelam, também, a dureza da vida e do trabalho que

estes homens e mulheres desenvolviam no imóvel. As famílias relatam,

normalmente, terem sido expostas a situações degradantes de vida e trabalho no

imóvel. Segundo o que foi possível extrair das informações e de outros documentos

consultados o imóvel no qual as famílias afirmam ter trabalhado foi autuada em

2002.167 O episódio é relatado pelas famílias:

A gente morava nuns barraquinho de lona. Assim sabe, tampado com tábua, com uns pedaços de tábua que sobrava dos viveiros e a gente ia lá e tampava pra fazer um barraquinho, cobria de lona e ficava de baixo. [...] A fazenda pagava mal, quando pagava. Era preciso plantar para sobreviver, criar galinha por conta. Uma vez, a comida não chegou no carro e nós tivemos que apanhar palmito e caçar coelhos pra dar ―de comer‖ para as criança. Quando a fiscalização veio a primeira vez, teve até um rapaz que foi com a gente lá no barraco, um dia foi com a gente se fazer que estava roçando lá e disse que era perito federal. Eu acho que era sim, porque depois ele falou ―as meninas [servidoras públicas] vão vir aí e vai dar um

166

Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante III, na Comunidade Menino Jesus, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 13 de julho de 2011. 167

INCRA. SR30. Processo n° n° 54501.001474/2010-37, apenso ao Processo n° 54501.003347/2009-39. Instaurado para tratar da vistoria do imóvel rural ―Fazenda Santa Fé‖. Santarém, 2010.

Page 83: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

82

jeito de arrumar isso aí pra vocês‖. E aí foi que, quando as meninas chegaram, a gente passou pra elas o que estava passando, depois daí não saiu mais nada, de jeito nenhum. Fechou [a fazenda] e eles [administradores da fazenda] nem quiseram pagar a gente mais. Era pra a gente mentir, contar a história bonita que ia sair esse recurso que era pra a gente receber o salário da gente. A gente não recebeu foi nada, aí fiquemos mais uns seis meses esperando pra ver se eles pagava, né? Aí foi onde eu saí pra procurar o destino de Santa Fé.

168

Após a autuação da Fazenda Vemagg, as quatro famílias permaneceram no

imóvel à espera do pagamento do que lhes era devido ou da prestação de

assistência. Seis meses se passaram, e as famílias, descrentes do recebimento de

alguma prestação, resolveram deixar a fazenda e colocar os pés na estrada,

novamente. O ano era 2003 e o destino um assentamento de reforma agrária

localizado no mesmo travessão em que a fazenda estava situada.

Tratava-se do PA Rio Trairão. À época, as famílias solicitaram a associação

do assentamento, permissão para se instalarem na Vila. Recebida a autorização

desta última, as famílias se estabeleceram nas parcelas comunitárias da Vila Santa

Fé e ali viveram até o ano de 2006. A vida na vila tinha suas desvantagens. Além

das pequenas proporções, a área destinada ao cultivo era de uso comum, razão

pela qual as pessoas adentravam na área e ―mexiam‖ nas plantações.

Quando a gente morava na vila Santa Fé, a gente possuía uma chácara [50x25m] e plantava no lote comunitário. Mas, não era bom. Os bichos comiam as roças e as pessoas mexiam nas plantações por estarem em local público.

169

Os inconvenientes relacionadas à limitação do uso da terra, agravavam-se a

medida que os membros das quatro famílias aumentavam. A crescente necessidade

de obtenção de meios que permitissem o sustento das famílias fê-los, juntamente

com outras duas famílias que também residiam na Vila, apresentar, mais uma vez, à

associação do assentamento, a demanda por uma maior porção de terras. Frente à

requisição das famílias, a associação aventou a possibilidade de ocupação dos lotes

abandonados do PART.

168 Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante III, na Comunidade Menino Jesus,

durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 13 de julho de 2011. 169 Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante III, na Comunidade Menino Jesus,

durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 13 de julho de 2011.

Page 84: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

83

Aí nós veio para a vila. Nos morô lá três anos. Aí nós conseguimô aí conversar [com a Associação]. Aí falamo [...] nós precisa de uma terra para trabalhar, pra nós pude nós arrumar o sustento da família, né? [..]É rapaz terra pra vocês eu não digo que vou dar não, mas se vocês tiver coragem de trabalhar pra criar a família de vocês, tem muita terra aí desocupada, né? Então vocês vão e descem aí mete a cara até onde a venta topar. No lugar que vocês achar um lote [...] qué tá desocupado, sem ter nada feito dentro lá você trabalha que lá vai ser seu, porque aí teve um assentamento velho, mas é esses assentados não precisa de terra. Nessa época já fazia um cinco, a seis anos que tinha sido assentado. O Incra tinha dado terra pra eles. Então, aí, eu digo pois, então nós vamos. Então nós chego até aqui através desta palestra.

170

As parcelas apontadas localizavam-se na parte norte do assentamento. Esses

lotes estavam há anos abandonados ou nunca haviam sido ocupados pelas pessoas

que foram formalmente neles assentadas. A escolha de lotes tão distantes da Vila e

mais ainda da Transamazônica não se deu tanto pela vontade das famílias

requerentes ou da Associação do PART, mas foi a forma encontrada para evitar

conflitos com as pessoas que concentram lotes no interior do assentamento.

A concentração de lotes acarreta graves consequências para a população do

PART que vão desde a descontinuidade entre as comunidades, como bem

exemplifica o Mapa 2, ao afloramento de intimidações contras as pessoas que se

opõem a essa forma de ocupação e se manifestam favoráveis a regularização da

situação ocupacional do assentamento. As famílias que juntas formaram a

Comunidade Menino Jesus sentiram isso na pele.

Quando a gente chegou aqui os Polaquinhos

171 já eram donos daquela

área todinha, vinte e dois lotes, sendo que a gente passou por dentro da área todinha, desocupada, e não tivemos direito de tirar nem um lote. A gente nem tentou ocupar porque eles tipo ameaçam, sabe? Se entrar lá, tem que sair. Aí, pra não criar problema a gente estava querendo se organizar, a gente estava fugindo de problema, eu nunca gostei de problema na comunidade, né? Aí a gente falou, vamos procurar um lugar que não dá tanto problema. Com eles, era problema demais. [...] Não gosto desse tipo de coisa, a gente tentou evitar ao máximo. Até porque a gente tudo era pai de família, né? Queria caçar um lugar pra ter sossego.

172

170

Entrevista registrada em áudio, concedida por Miguel da Silva Soares, na Comunidade Menino Jesus, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 13 de julho de 2011. 171

Designação dada pelos moradores do PART, durante os trabalhos de campo, a um grupo de irmãos que concentra vários lotes no assentamento, sem morar no seu interior. 172 Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante III, na Comunidade Menino Jesus,

durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 13 de julho de 2011.

Page 85: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

84

Mapa 3 - A concentração de lotes provoca a descontinuidade entre as comunidades do Projeto de Assentamento Rio Trairão.

Fonte: TORRES et al, 2012.

Page 86: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

85

Intimidadas e receosas das possíveis consequências de uma tentativa de

ocupação dos lotes concentrados, as famílias se distanciaram e terminaram por se

fixar no extremo norte do assentamento, em lotes que distavam a mais de 30

quilômetros de Santa Fé e estavam visivelmente abandonados. Lá fizeram as

primeiras ―aberturinhas‖, plantaram as primeiras ―coisinhas‖ e montaram o primeiro

forno de torar farinha.

Aí nós veio de lá pra cá, aí chegemo aqui. Aí tava desocupado assim, porque não tinha ninguém e não tinha nada feito nesses lotes. Aí nos entremo pra dentro e começemos a fazer a aberturinha e plantar umas coisinha e se mantendo na terra. Primeiro fizemo uma forminha de uma banda velha de geladeira e aí já torrava farinha daí mesmo aí já não trouxemos mais de lá, né? Aí começou a produzir as coisas macaxeira pra comer cozida, batata, inhame e daí por diante, macaxeira, banana. Aí foi aumentando a nossa fartura, né?

173

A tranquilidade da nova comunidade, entretanto, logo se esvaiu com a

chegada de pessoas que se intitulavam ―donas‖ das parcelas ocupadas pelas

famílias. Os lotes, apesar de jamais terem sido efetivamente ocupados, continuavam

sobre a aguda vigilância de seus supostos proprietários, que a menor suspeita da

ocupação das parcelas, retornaram ao PART para afirmar e fazer valer seus direitos

sobre as referidas parcelas. Arrazoam-se, alegando possuir direitos sobre os lotes,

sem nunca terem trabalhado a terra e estabelecido morada nos mesmos.

Neste ponto, faz-se necessário ressaltar que as normas de execução e

instruções normativas, fundamentadas na legislação pátria, estabelecem que as

parcelas em assentamentos são destinadas a famílias com vocação agrícola, que se

comprometem em morar e trabalhar no lote. A Instrução Normativa n° 71, de 17 de

maio de 2012 é clara em apontar, no Art. 10, como situação irregular em

assentamento rural aquela na qual a parcela foi abandonada pelo beneficiário

cadastrado, selecionado e assentado, sem a comunicação ou anuência da autarquia

federal.

Para além disso, o ambiente ameaçador ao qual as famílias se viram

expostas, no entanto, não as afastou dos lotes nos quais haviam se estabelecido.

173 Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante V, na Comunidade Menino Jesus,

durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 12 de julho de 2011.

Page 87: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

86

Pelo contrário, os estimulou a criar estratégias de proteção mútua, bem como

reforçou os laços de sociabilidade entre eles. A consciência do vinculo precário que

os ligava à parcela, os fez ciente da cidadania que lhes fora continuamente negada

durante a vida e dispostos a lutar por aquelas parcelas que, mais que terras, eram a

mediação de suas vidas. Também, os fez mais unidos, porque diante da

insegurança em que se viam recorriam continuamente um a segurança do outro,

estabelecendo relações nas quais predominava e, ainda, predomina a mútua ajuda.

A gente trabalhava em mutirão, né? Porque, que nem eu te falei, a gente tinha medo de alguém chegar e tirar um de nós do meio da gente, né? Até hoje a gente trabalha nesse sistema de mutirão. Quando é tempo de fazer a roça, essas coisas, a gente faz mutirão. Nós recebia os estranhos todo mundo junto pra saber quem era, a gente tinha medo de chegar alguém desconhecido, a gente quase não conhecia as pessoas da região, né? Várias vezes chegou ―dono de lote‖, chegou dono de três lotes, a gente chegou, conversou e fez a colocação da situação da gente, que a gente precisava de uma terra pra trabalhar. Já chegou gente e olhou e disse que se tivesse fazia era dar mesmo pra nós, então uns se conformou, né? E hoje é até amigo da gente, companheiro. Só um senhor [...] que queria tomar esse lote meu à força, ele não se conformou com nada, me levou pro fórum, aí o promotor disse que não tinha jeito lá, né?

174

Nota-se, que para as famílias a ocupação de terras alheias é um ato

transgressivo. Daí a necessidade de buscar no seu próprio universo e na sua

condição valores e normas que atribuam uma legitimidade alternativa aos seus atos.

Essa legitimidade solitária em face da lei, da ordem e do dominante, têm seus

valores fundados na primazia moral do trabalho e é de difícil compreensão mesmo

para as famílias envolvidas na luta pela terra de trabalho. Tal legitimidade não se

funda estritamente no ato subjetivo que se consuma no momento da transgressão,

mas tem como referência a estrutura social injusta.175

Tendo conseguido, ainda que precariamente, permanecer nas parcelas, as

famílias empreitaram suas forças em duas urgentes demandas: a escola e a

regularização da situação ocupacional dos lotes perante o Incra. ―Surgiu a

necessidade de se unir para conseguir várias coisas. Viemos na esperança de ter

174 Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante III, na Comunidade Menino Jesus, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 13 de julho de 2011. 175

MARTINS, José de Souza. O Sujeito Oculto: ordem e transgressão na reforma agrária. Porto Alegre: UFRGS, 2003

Page 88: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

87

um lote e escola para os filhos‖.176 Uma das primeiras medidas adotadas pelas

famílias para viabilizar uma escola no PART, foi solicitar junto a Secretaria de

Educação do Município de Uruará a implantação de uma escola.

A prefeitura acenou negativamente à demanda da comunidade justificando

ser inviável a implantação de uma escola na área, pois a demanda local era ínfima.

A escola, entretanto, foi implantada no ano de 2007, graças a intervenção da de uma

vereadora do município de Uruará, recebendo o nome de Escola Municipal Menino

Jesus. Apesar da precária infraestrutura do estabelecimento, a construção da escola

é suscitada por todos como um dos mais importantes momentos da história da

comunidade. Tanto que, a partir da fundação da mesma, o grupo passou a intitular-

se Comunidade Menino Jesus.

Fotografia 2 – Lotes concentrados na Comunidade Nossa Senhora do Rosário A concentração de parcelas no PART provoca áreas a descontinuidade entre as comunidade ao longo do assentamento.

Foto: Kerlley Diane Santos

176 Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante III, na Comunidade Menino Jesus,

durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 13 de julho de 2011.

Page 89: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

88

Já a segunda demanda da comunidade permanece em aberto. Apesar das

requisições da Associação do PART, o Incra nunca realizou a revisão ocupacional

do assentamento. Tal revisão, apresenta-se como um conjunto de ações

operacionais perpetradas pelo Incra que objetivam à averiguação da situação

ocupacional das parcelas rurais destinadas a beneficiários assentados em projetos

de assentamento de reforma agrária. A revisão ocupacional permite a autarquia

federal: promover a atualização dos dados do projeto de assentamento e dos

beneficiários; identificar e caracterizar irregularidades e promover a retomada e

aproveitamento das parcelas ocupadas irregularmente. É a partir da realização desta

revisão que o Incra poderá sanar as situações irregulares existentes no PART.

A persistência das irregularidades afeta o assentamento como um todo e,

com mais intensidade, os comunitários de Menino Jesus. Para além do avançar da

concentração de lotes e da impossibilidade de acesso aos créditos da reforma

agrária e as políticas públicas, a precariedade do vínculo com a terra ocupada os

tornava vulneráveis ao assédio das madeireiras e de pecuaristas que, se

aproveitando da inexistência das pedras demarcatórias do Incra, avançavam os

piques para o interior do assentamento e alegavam não estarem atuando na área do

PART.

Situação que pode ser claramente observada no impasse que envolveu a

Comunidade e uma empresa madeireira da região. Em 2007, a madeireira

intensificou a extração ilegal de madeireira no entorno do assentamento e avançou

para o interior do PART, concentrando seus pontos de extração nos fundos das

áreas dos lotes. Pressionados, os comunitários se uniram e saíram em defesa de

suas parcelas.

Bem recente, em 2007, a gente já estava aqui quando a [madeireira] começou a tirar madeira ali em cima, né? A gente foi medir o lote da gente e só deu mil e quinhentos metros do rio até o pique, né? Então a gente queria que acrescentassem os outros mil pra frente, aí a gente começou a ter problemas com eles. Já era exploração velha, mas eles vieram pra tirar essa madeira logo do fundo dos lotes. Eles acharam que a gente ia brigar mesmo por isso, né? E eles já se alertaram pra tirar, mas a gente não deixou. Eles aumentaram [o pique] mais 800 metros para frente. Entramos em um acordo, juntamos a comunidade aqui de novo, né? Outra vez a comunidade se reuniu, a gente foi com o [responsável pela madeireira], conversamos com ele, ele mandou

Page 90: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

89

chamar o [presidente da associação do assentamento] e a gente resolveu essa situação.

177

A reação dos ocupantes não poderia ser outra. A ação perniciosa das

madeireiras na região ocasiona inúmeras consequências que vão desde a

degradação do meio ambiente, à deterioração das estradas que servem o

assentamento. Os prejuízos gerados por essa ação recaem sobre os comunitários.

O trânsito de caminhões carregados de madeireira no interior do assentamento

destrói as já precárias vias de acesso ao assentamento e as comunidades, a tal

ponto que alguns trechos só podem ser feitos a pé.

O deterioramento das estradas somado ao não atendimento das demandas

relacionada a infraestrutura pelos entes públicos, resulta no estabelecimento de

relações de dependência entre as famílias e aos fazendeiros da região. Exemplo

disso é a relação que se estabeleceu, há alguns anos, entre os comunitários e um

fazendeiro conhecido pelos comunitários como Marquinho que possuía uma fazenda

as proximidades da Comunidade Menino Jesus.

Ele [Marquinho] trazia as coisas, tudo pro pessoal aqui também, né? Rancho, essas coisas, óleo, açúcar, café o que precisasse ele trazia. Ele era um cara muito gentil. A escola, ele queria que fosse feita de tábua na época, né?‖ Ele queria trazer as tábuas, mas o caminhão não chegou até aqui, ele ia doar as tábuas pra escola, né? Mas as tábuas dos bancos, foi ele quem doou [...] Ele [o Marquinho] ajudou também a gente a tirar os madeireiros da estrada aí. [...] Estavam acabando a estrada, ele foi o único que sentou com a gente e discutiu, chamou os madeireiros, no eixo, e sendo que ele também era madeireiro, mas não aceitava destruírem a estrada. Porque os madeireiros deterioravam a estrada, né? Aí virava aquelas valetonas que não tinha nem como a gente passar, nem de moto, nem de bicicleta, tinha que ser de pés. Chegava o invernão, eles iam embora e a gente ficava aqui, só na água. [...] Ele pagava pra roçar a estrada que a gente mesmo usava, trazia saco pra fazer a ponte.

178

Os comunitários sabiam que as ações ―solidárias‖ do fazendeiro não eram

gratuitas e que havia um claro interesse encobertado pelas abnegadas prestações

177 Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante III, na Comunidade Menino Jesus,

durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 13 de julho de 2011. 178 Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante III, na Comunidade Menino Jesus,

durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 13 de julho de 2011.

Page 91: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

90

de favores. As terras concentradas por Marquinho estavam no interior do

assentamento e eram formadas pela concentração de cinco lotes. O fazendeiro

temia que a ocupação das parcelas nas proximidades de sua pretensão chamasse a

atenção do Incra e que a autarquia realizasse a revisão ocupacional do

assentamento, situação que, certamente o prejudicaria.

A preocupação do pecuarista possuía fundamento. A Instrução Normativa n.º

71/2012, do Incra, bem como as demais normativas e a legislação agrária são claras

ao destacar, como se verá no Capítulo 6, que um assentamento de reforma agrária

se destina a famílias que possuem o perfil de público da reforma agrária. A

ocupação promovida pelo pecuarista era incompatível com as finalidades de um

assentamento rural, tendo em vista a reconcentração fundiária.

A concentração de lotes promovida por Marquinho não passaria incólume

caso a autarquia federal realizasse uma supervisão ocupacional do PART. Daí o

receio do pecuarista da realização desta última:

Acho que o Marquinho tinha medo de a reforma agrária chegar e ele perder a fazenda. Ele dizia que se o Incra chegasse era preciso que a gente desse uma ajuda para ele, pra ele continuar com a fazenda dele no meio do PA. Ele sempre falou pra gente que no dia que a reforma agrária chegasse, que o Incra demarcasse esses lotes, a comunidade tinha que dar uma força, porque ele dava esse suporte pra nós. [...] A gente considerava o Marquinho da comunidade, até porque a gente tinha mais facilidade pra conversar, ter diálogo. [...] Ele era, tipo assim, familiar, né? Ele era muito familiar com a gente [...] a gente não considerava o Marquinho fazendeiro, a gente considerava ele como um colono, que nem a gente.

179

A precariedade das estradas e a quase total inexistência de serviços públicos

foi determinante para o estabelecimento dessa ―aliança‖ aviltante entre a

comunidade e o fazendeiro. Diante da ausência do Estado, o fazendeiro era visto

como aliado. Era ele que realizava a manutenção da estrada, da ponte, da escola,

―defendia‖ a comunidade e, em ―troca‖, apenas solicitava o apoio do grupo. Apesar

de conscientes do real interesse do fazendeiro, as famílias não viam a relação

estabelecida como uma relação de sujeição, porquanto o consideravam um membro

da comunidade.

179 Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante III, na Comunidade Menino Jesus,

durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 13 de julho de 2011.

Page 92: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

91

Mapa 4 - Pontos de ocupação ao longo do Projeto de Assentamento Rio Trairão.

Fonte: TORRES, et al, 2012.

Page 93: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

92

Mapa 5 - Famílias assentadas pelo Incra e que desenvolvem uma ocupação compatível com a vocação de um assentamento da reforma agrária.

Fonte: TORRES et al, 2012.

Page 94: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

93

Para eles, brutal é a forma como as estâncias do poder público têm os tratado

no decorrer dos anos, principalmente a Prefeitura Municipal de Uruará. Muitos são

os relatos sobre das negativas do ente municipal às requisições da comunidade

relacionadas à construção e manutenção das pontes e construção de uma nova

escola. Para eles a mudança dos gestores municipais, não culmina com mudanças

efetivas em nível local. ―A carniça [prefeitura] ficou a mesma. A gestão continua‖.180

O poder público é sempre identificado como uma instância corruptível e aliada a

setores que são contrários aos interesses dos assentados. Daí os constantes relatos

em que os comunitários afirmam não se sentir representados pelos gestores

municipais.

A última reunião que a gente foi com a prefeitura, da minha comunidade aqui teve umas cinco pessoas. [...] A gente foi pedir a construção, porque a equipe de pontes estava no travessão, né? Então todas as pontes que a gente passava, via feitas novas. Então era pra que eles viessem fazer a da gente. Inclusive essa equipe foi embora e nós ficamos aqui como desprezados. Nós, essa relação que ele (o prefeito) tem, essa implicância é com todos nós do PA e do travessão inteiro, porque sempre o nosso travessão ele... essa parte partidária, né? Tem sido muito partidária ao PT, vota em peso no PT, então eles batem muito porque é PT, então tem que sofrer, eles fala isso: PT tem que sofrer.

181

Eles tem essa distancia de nós todinho, porque a gente vai né e eles levam como seja uma coisa que não tem nada a ver com ninguém. Aí a questão é que vai e dá até a discussão, também [...] Mas aí o que vai resolver chega lá. A eles, não, fecham a porta e pronto. Aí termina dizendo que tá pra outro lugar e não vai atendido. E a questão toda é por causa dessa ponte aí que é a nossa dificuldade, né? No tempo que é inverno, que nós só tem a estrada boa agora no verão, boa assim igualmente vocês viram aí, é? E não dizendo que tá péssima, né? Imagina o meião do inverno aí que a gente passa escurregando. Quando precisa de sair pra cidade aquela travessia alí nós precisa fazer um mutirão pra poder atrevessar as mota pro outro lado.

182

A participação da prefeitura aqui é muita pouca. Ela fala que não tem responsabilidade com a gente. O Incra jogou a gente aqui, que a gente tem que se virar, tem que se manter, se virar do jeito que a gente puder aqui. É isso a resposta que a gente atende. Até porque a gente briga

180 Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante III, na Comunidade Menino Jesus,

durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 13 de julho de 2011. 181 Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante III, na Comunidade Menino Jesus,

durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 13 de julho de 2011. 182 Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante V, na Comunidade Menino Jesus,

durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 12 de julho de 2011.

Page 95: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

94

muito por causa daquela ponte ali. Aí as escolas que vocês vê aqui a formula, a gente tem dois anos correndo atrás de uma escola pra conseguir fazer uma escola. O ano passado que eles conseguiu liberar o material. Esses material libero tempo que viu que não tinha mesmo nem como vir mais que já tava no inverno, foi em novembro, já tava com inverno aumentando.

183

É necessário ressaltar que, para os assentados e ocupantes, a luta pela

estrada e pela ponte não se finda na construção material das mesmas. É uma luta

por algo mais que ponte e estrada. A estrada e a ponte ganham no seio das duas

comunidades o significado de melhoria de vida, de educação de qualidade, de

escoamento de produção, de transporte, de saúde. Para eles as pontes não ligam

apenas uma margem à outra do rio, assim como as vicinais não os ligam apenas à

Transamazônica, mas são o meio de travessia necessário, os caminhos pelos quais

se possibilitará o alcance do que lhes foi continuamente negado através dos anos.

Fotografia 3 - Ponte improvisada na Comunidade Menino Jesus. Para se chegar em determinados pontos do assentamento a travessia do Rio Trairão é necessária e perigosa.

Foto: Kerlley Diane Santos

183 Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante III, na Comunidade Menino Jesus,

durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 13 de julho de 2011.

Page 96: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

95

Passados seis anos do inicio da ocupação, a Comunidade Menino Jesus

continua a lutar pela implementação efetiva e de qualidade de políticas básicas

como saúde, educação e transporte. Contando agora com 15 famílias, a

comunidade segue reivindicando, junto com a associação comunitária, a realização

da revisão ocupacional do assentamento pelo Incra, haja vista que nenhuma das

referidas famílias é formalmente assentada pela autarquia.

Sabem que a concretização de boa parte de suas reinvindicações passa,

necessariamente, pela realização da revisão ocupacional do assentamento. Sabem

que possuir a terra, em um país que historicamente privilegia os grandes

proprietários, é uma árdua tarefa e mais ainda é a de alcançar as políticas públicas

necessárias para a permanência na terra. No entanto, não desistem e nem pensam

em se afastar da terra. Pelo contrário, continuam na lida e na luta pela regularização

da situação ocupacional do PART, ―porque a terra é dada para a pessoa

trabalhar‖.184

184 Entrevista registrada em áudio, concedida por Edson Alves da Silva, na Comunidade Menino

Jesus, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 12 de julho de 2011.

Page 97: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

96

5 CARACTERIZAÇÃO DAS FAMÍLIAS OCUPANTES DO PART COMO

POTENCIAIS BENEFICIÁRIAS DA REFORMA AGRÁRIA

O Projeto de Assentamento Rio Trairão é ocupado tanto por famílias

assentadas pelo Incra, como por famílias que ocupam irregularmente as parcelas do

assentamento. Essas últimas correspondem à maior parte da população do PA Rio

Trairão. Apesar de não estarem assentadas formalmente, tais famílias possuem, na

maioria das situações, um perfil e desenvolvem modos de uso do solo perfeitamente

condizentes com o exigido pelas normativas do Incra e pela legislação agrária para

serem caracterizados como público da reforma agrária.

Pretende-se neste capítulo destacar as características da população ocupante

do PART que as fazem potenciais beneficiários de um projeto de assentamento. Não

está se afirmando que essas famílias serão cadastradas e regularizadas pelo Incra

ou algo semelhante. Pretende-se apenas destacar as características encontradas

nesses núcleos familiares que as aproxima ou não do perfil de beneficiário da

reforma agrária e que virtualmente tornaria possível o reconhecimento das referidas

como tais.

Antes de adentrar no perfil da população, far-se-á a uma abordagem sintética

de algumas figuras jurídicas e administrativas importantes para a compreensão do

capítulo, como a de reforma agrária, propriedade familiar, projeto de assentamento e

beneficiário da reforma agrária.

5.1 DEFINIÇÕES BÁSICAS

5.1.1 DEFINIÇÃO JURÍDICA DE REFORMA AGRÁRIA

O Estatuto da Terra (Lei n° Lei 4.504/ 1964) em seu Artigo 1°, §1° apresenta a

seguinte definição de Reforma Agrária: ―Considera-se Reforma Agrária o conjunto

de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante

modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de

justiça social e ao aumento de produtividade‖. O mesmo Estatuto, no Art. 16, elenca

que o objetivo da Reforma Agrária é ''estabelecer um sistema de relações entre o

Page 98: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

97

homem, a justiça social, o progresso e o bem estar do trabalhador rural e o

desenvolvimento econômico do País, com a gradual extinção do minifúndio e do

latifúndio."

Ao tratar da referida definição, Paulo Torminn Borges afirma que o fulcro da

Reforma Agrária é promover a melhor distribuição da terra. O texto legal não

expressa que a Reforma seja distribuição pura e simples de terra. Pelo contrário, ao

afirmar que deve ser a ―melhor distribuição da terra‖ o legislador envolve a ideia de

que se deve modificar o que está mal feito e as situações que atentam contra o

principio da Justiça Social e da produtividade adequada.185

A reforma agrária seria um conjunto de medidas administrativas e jurídicas

implementadas pelo poder público, visando a modificação e a regência de

determinados institutos jurídicos, a revisão das diretrizes da administração ou a

reformulação parcial das normas e medidas, objetivando sanear os vícios intrínsecos

e extrínsecos do imóvel rural e de sua exploração.186 Em outras palavras, a reforma

agrária é um conjunto de ações promovidas pelo governo com escopo em

instrumentos jurídicos voltados para a modificação da estrutura fundiária do país.

A Reforma Agrária está constitucionalmente prevista no Título VII, Capítulo III,

da Constituição Federal de 1988. As disposições elencadas no referido texto

constitucional são regulamentadas pela Lei n° 8.629, de 25 de fevereiro de 1993,

conhecida como Lei Agrária.

5.1.2 A PROPRIEDADE FAMILIAR

A propriedade familiar é um dos mais destacáveis instrumentos jurídicos

agrários, sendo apontada pelo Estatuto da Terra e pela literatura jurídica como uma

das noções fundamentais para o estabelecimento dos demais conceitos que formam

o corpo do Estatuto. Além disso, a propriedade familiar é a prima forma de

distribuição das terras desapropriadas para fim de reforma agrária, porquanto

viabiliza o acesso democrático à terra a um número maior de pessoas que dela

necessitam para produzir.

185

BORGES, Paulo Torminn. Institutos Básicos do Direito Agrário. 9a ed. São Paulo: Saraiva, 1995.

186 STEFANINI apud MARQUES, Benedito Ferreira. Direito Agrário Brasileiro. São Paulo: Atlas, 2009.

Page 99: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

98

A definição legal de propriedade familiar está presente no corpo do Estatuto

da Terra que assim a delimita:

Art. 4º - Para os efeitos dessa lei, definem-se:

[...] II. ―Propriedade familiar‖, o imóvel rural que direta e pessoalmente, explorado pelo agricultor e sua família, lhes absorva toda a força de trabalho, garantindo-lhes a subsistência e o progresso econômico, com área máxima fixada em cada região e tipo de exploração, e eventualmente trabalho com a ajuda de terceiros;

Por exigir uma área compatível com a força de trabalho de uma família, que

garanta aos seus membros meios de subsistência e o progresso social e econômico,

a distribuição de terras no tamanho da área da propriedade familiar pode atingir um

número maior de famílias. Por esse motivo, os Planos de Reforma Agrária que já se

fizeram no país tem adotado como dimensão ideal das parcelas a da propriedade

familiar.187

A propriedade familiar pressupõem os seguintes elementos básicos

caracterizadores:

a) Titulação da área por algum dos integrantes da família;

b) Exploração direta e pessoal pelo titular do domínio, agricultor ou agricultora

e suas família, em atividade que lhes absorva toda a força de trabalho;

b) Delimitação do tamanho da área para cada tipo de exploração e cada

região do país;

c) Possibilidade eventual do grupo familiar vir a receber ajuda de terceiros no

trabalho na área.

A necessidade da existência de titulação ou não para a configuração da

propriedade familiar tem sido objeto de discussão entre os juristas. Aqueles que

levantam a necessidade do título de propriedade, normalmente, o fazem salientando

que a própria denominação de ―propriedade‖ dada ao instituto salienta a ideia de

titulação. Essa é a posição de Maya Gischkow que destaca:

A propriedade familiar, como bem salientado no período anterior deve envolver uma relação jurídica de titulação, pois a própria denominação

187

MARQUES, Benedito Ferreira. Direito Agrário Brasileiro. São Paulo: Atlas, 2009, p.57.

Page 100: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

99

do instituto tem manifesta conotação com o critério legal de domínio, significando, ainda, uma unidade econômica agrária ou familiar.

188

Existe, ainda, a linha daqueles que, como Marques, entendem que a

obrigatoriedade de título de domínio como elemento caracterizador da propriedade

familiar não deve ser aceita pacificamente, sendo que o elemento mais importante e

indispensável é a existência efetiva do trabalho direto do conjunto familiar.

5.1.3 OS PROJETOS DE ASSENTAMENTO

Um projeto de assentamento da reforma agrária constitui-se como um

conjunto de ações planejadas e implementadas em área destinada a reforma agrária

e integradas ao desenvolvimento territorial e regional. Tais ações são definidas com

base em diagnósticos acerca do público de beneficiários e das áreas a serem

trabalhadas e orientadas para a utilização dos espaços físicos e dos recursos

naturais existentes. O objetivo é a implementação dos sistemas de vivência e de

produção sustentáveis, o cumprimento da função social da terra e da promoção

econômica, social e cultural do trabalhador rural e de sua família.189

Conforme apresentado anteriormente, os projetos de assentamento

começaram a ser criados na década de 1980, no âmbito do I PNRA e constituíram-

se, no período, como um dos principais instrumentos do referido programa.

O processo de criação de um Projeto de Assentamento (PA) exige a

consecução de uma série de regras normativas e técnicas a serem implementadas

pelo Incra. Tais procedimentos técnicos e administrativos a serem adotados pelo

governo no decorrer desse processo de criação estão detalhados em Instruções

Normativas e Normas de Execução editadas pela mencionada autarquia.

As Normativas Incra mais importantes para a compreensão do processo e

constituição de uma PA são:

a) Norma de Execução n° 45, de 25 de Agosto de 2005, que trata dos

procedimentos de seleção do Programa Nacional de Reforma Agrária.

Destaque-se que a referida norma está em processo de reformulação;

188

GISCHKOW, Emilio Alberto Maya. Princípios de Direito Agrário: desapropriação e reforma agrária. São Paulo: Saraiva, 1988, p.60. 189

INCRA. Instrução Normativa nº 15, de 30 de março de 2004. Disponível em: Acessado em: maio. 2012

Page 101: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

100

a) Norma de Execução n° 69, de 12 de Março de 2008, que dispõe sobre o

processo de criação e reconhecimento de projetos de reforma agrária.

5.1.4 DEFINIÇÃO LEGAL DE BENEFICIÁRIO DA REFORMA AGRÁRIA

Conforme disposto na Lei n° 8.629/1993, podem vir a ser beneficiários da

reforma da agrária tanto homem, como a mulher, independente do estado do civil do

candidato, obedecendo ao estabelecido no Art. 19, do referido diploma legal, que

dispõe a seguinte ordem de preferência:

[...] I - ao desapropriado, ficando-lhe assegurada a preferência para a parcela na qual se situe a sede do imóvel; II - aos que trabalham no imóvel desapropriado como posseiros, assalariados, parceiros ou arrendatários; III – aos ex-proprietários de terra cuja propriedade de área total compreendida entre um e quatro módulos fiscais tenha sido alienada para pagamento de débitos originados de operações de crédito rural ou perdida na condição de garantia de débitos da mesma origem; IV - aos que trabalham como posseiros, assalariados, parceiros ou arrendatários, em outros imóveis; V - aos agricultores cujas propriedades não alcancem a dimensão da propriedade familiar; VI - aos agricultores cujas propriedades sejam, comprovadamente, insuficientes para o sustento próprio e o de sua família. Parágrafo único. Na ordem de preferência de que trata este artigo, terão prioridade os chefes de família numerosa, cujos membros se proponham a exercer a atividade agrícola na área a ser distribuída.

190

A Lei Agrária estabelece, também, que, o assentamento de trabalhadores

rurais deve ser efetuado de preferência na região por eles habitada e, dentre os

elencados na lista de preferencia, deve-se priorizar os chefes de famílias

numerosas, cujos membros se disponham ao exercício da atividade agrícola. A

mencionada lei estipula, ainda, em seu Art. 20 as situações em que o candidato não

pode vir a ser beneficiário:

190

BRASIL. Lei n° 8.629, de 25 de fevereiro de 1993. Dispõe sobre a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, previstos no Capítulo III, Título VII, da Constituição Federal. In: Coletânea de legislação e jurisprudência agrária e correlata. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário, Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2007, p. 396-406.

Page 102: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

101

Não poderá ser beneficiário da distribuição de terras, a que se refere esta lei, o proprietário rural, salvo nos casos dos incisos I, IV e V do artigo anterior, nem o que exercer função pública, autárquica ou em órgão paraestatal, ou o que se ache investido de atribuição parafiscal, ou quem já tenha sido contemplado anteriormente com parcelas em programa de reforma agrária.

A seleção de candidatos ao Programa Nacional de Reforma Agrária é

realizada pelo Incra. Essa seleção é realizada durante todo o processo de

desenvolvimento do Projeto de Assentamento, sempre que houver disponibilidade

de vagas no assentamento. Os procedimentos técnicos para a referida seleção de

candidatos a beneficiários estão elencados na Norma Executiva do Incra N° 45, de

25 de agosto de 2005.

A referida NE 45/2005 estabelece, em seu Art. 9, que um assentamento deve

contemplar as seguintes categorias: (I) Agricultor e agricultora sem terra; (II)

Posseiro assalariado, parceiro ou arrendatário e (III). Agricultor e agricultora cuja

propriedade não ultrapasse a um módulo rural do município. Define, ainda, baseada

no determinado no Art. 20, da Lei Agrária, os seguintes casos nos quais as famílias

não poderão ser beneficiárias do Programa de Reforma Agrária:

I - Funcionário(a) público e autárquico, civil e militar da administração federal, estadual ou municipal, enquadrando o cônjuge e/ou companheiro(a); II - O agricultor e agricultora quando o conjunto familiar auferir renda proveniente de atividade não agrícola superior a três salários mínimos mensais; III - Proprietário(a), qüotista, acionista ou co-participante de estabelecimento comercial ou industrial, enquadrando o cônjuge e/ou companheiro(a); IV - Ex-beneficiário(a) ou beneficiários(a) de regularização fundiária executada direta ou indiretamente pelo INCRA, ou de projetos de assentamento oficiais ou outros assentamentos rurais de responsabilidade de órgãos públicos, de acordo com a Lei nº 8.629/93, enquadrando o cônjuge e/ou companheiro(a), salvo por separação judicial do casal ou outros motivos justificados, a critério do INCRA; V - Proprietário(a) de imóvel rural com área superior a um módulo rural, enquadrando o cônjuge e/ou companheiro(a); VI - Portador(a) de deficiência física ou mental, cuja incapacidade o impossibilite totalmente para o trabalho agrícola ressalvados os casos em que laudo médico garanta que a deficiência apresentada não prejudique o exercício da atividade agrícola; VII - Estrangeiro(a) não naturalizado, enquadrando o cônjuge e/ou companheiro(a); VIII - Aposentado(a) por invalidez, não enquadrando o cônjuge e/ou companheiro(a) se estes não forem aposentados por invalidez;

Page 103: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

102

IX - Condenado (a) por sentença final definitiva transitado em julgado com pena pendente de cumprimento ou não prescrita, salvo quando o candidato faça parte de programa governamental de recuperação e reeducação social, cujo objeto seja o aproveitamento de presidiários ou ex-presidiários, mediante critérios definidos em acordos, convênios e parcerias firmados com órgãos ou entidades federais ou estaduais.

A responsabilidade de verificação e aplicação desses critérios eliminatórios é

de responsabilidade da Superintendência Regional do Incra, responsável pelo

projeto. Para aplicação desses quesitos a Superintendência deve recorrer, além de

informações declaradas pelos candidatos, a pesquisa nos sistemas de informação

de diferentes órgãos federais, estaduais e municipais.

5.2 FAMÍLIAS OCUPANTES DO PART: potenciais beneficiárias da reforma

agrária

Nesta seção se abordará apenas as ocupações implementadas no interior

do Projeto de Assentamento Rio Trairão que possuem características coerentes com

as limitações ocupacionais de um assentamento de reforma agrária e aquelas

passiveis de assim se tornarem.

Tratando-se de um assentamento de reforma agrária, as famílias não

assentadas formalmente que vivem no interior do PART enquadram-se entre as

situações caracterizadas como ocupação irregular de parcela. A Instrução Normativa

N° 71, de 17 de maio de 2012, do Incra destaca como irregular a ocupação e

exploração de área de projeto de reforma agrária empreitada sem que o ocupante

tenha se submetido ao processo de seleção realizado pela referida autarquia

federal, processo esse descrito na NE 45/2005.

No entanto, a referida IN n° 71/2012 prevê a possibilidade de cadastro e

regularização das famílias agricultoras não beneficiárias que possuam um perfil que

se enquadre com o público da reforma agrária. Essa é a principal possibilidade que

se abre à população do PART que deseja permanecer no assentamento, haja vista

que a maioria das famílias que vivem no assentamento preenchem os requisitos de

elegibilidade para serem beneficiárias da reforma agrária, estipulados na NE Incra n°

45/2005.

Page 104: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

103

Como visto anteriormente, a NE Incra n° 45/2005 dispõe que os

assentamentos rurais devem contemplar agricultores e agricultoras sem terra;

posseiros assalariado, parceiro ou arrendatário e o agricultor ou agricultora cuja

propriedade não ultrapasse a um módulo rural do município. Entretanto, não basta

ao candidato pertencer a uma destas categorias, é necessário também que não se

enquadre em nenhuma daqueles casos listados do Art. 6°, da NE n° 45/2005, e

apresentados na seção anterior.

A percepção destes requisitos entre as famílias do PART fez-se a partir do

estabelecimento de parâmetros baseados nos critérios definidos na

supramencionada Norma de Execução 45 e em alguns elementos da propriedade

familiar. A opção por incluir elementos da propriedade familiar na caracterização dos

ocupantes baseou-se tanto pelo fato de a propriedade familiar ser a forma de

ocupação compatível com os projetos de assentamento, quanto pelo fato de ser a

forma de diferenciar da apropriação e concentração de terras empreitada por

pecuaristas na área do PART.

Assim, definiu-se para a percepção dos sujeitos com perfil de clientes da

reforma agrária os seguintes quesitos: (I) Não ser ou ter sido beneficiário da reforma

agrária; (II) Fontes de renda da família, (III) Cultura efetiva do lote e (IV) Exploração

pessoal e direta do grupo. A seguir se pormenorizará cada um dos referidos itens.

5.2.1 OCUPANTES E ASSENTADOS

Os primeiro critério destacado para a caracterização da população do PART

como público da reforma agrária foi o de não ser ou ter sido beneficiário de

programa de reforma agrário e morar no Assentamento. Esse requisito se coaduna

com a Norma de Execução n° 45/2005 que estabelece que o candidato a

beneficiário do mencionado programa não pode ser ex-beneficiário ou beneficiário

de regularização fundiária, projeto de assentamento oficial ou qualquer tipo de

assentamento rural.

Conforme as informações prestadas pelos moradores do PART e os dados

coletados, o assentamento é ocupado por 67 famílias, mas apenas 65 famílias

desenvolvem uma ocupação compatível com um assentamento de reforma agrária,

qual seja, aquela efetuada em um único lote, com cultura efetiva e que tem o

Page 105: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

104

trabalho familiar como base de exploração. Dessas 65, somente 22 constam na

Relação de Beneficiários (RB)191, sendo que as outras 43 são famílias que ocupam

os lotes do assentamento, mas não estão assentadas formalmente pelo Incra.

A quase totalidade dessas famílias ocupantes nunca foi beneficiária em um

assentamento rural, assentamento oficial ou de regularização fundiária (90%) e a

maior parte das famílias que declarou ter sido beneficiária em outro assentamento,

nunca foram assentadas efetivamente, haja vista terem sido indevidamente

cadastradas em lotes nos chamados assentamentos fantasmas criados no âmbito

da SR 30 e cancelados pelo Judiciário, conforme destacado no Capítulo 3.

Tais famílias, portanto, respondem positivamente a esse primeiro requisito.

Ressalte-se, que em toda extensão do assentamento só foi encontrada uma família

que declarou ter sido assentada em lote da colonização e uma sobre a qual não foi

possível obter informação.

Gráfico 1 - Famílias beneficiárias da Reforma Agrária em outro Assentamento do Incra.

Fonte: TORRES et al, 2012.

191

Todas as famílias que não constam o nome na Relação de Beneficiários (RB) do Incra ocupam irregularmente o assentamento. A RB é composta pelos nomes das famílias que foram assentadas pela autarquia federal e possuem a anuência desta última para desenvolver suas atividades agrícolas no assentamento dentro dos limites por ela estabelecidos. Para além disso, somente pode ter acesso aos créditos e políticas da reforma agrária aquelas famílias listadas na Relação de Beneficiários.

Sim 7%

Não 90%

Sem informação 2%

Acha que sim 1%

Familias Beneficiárias da Reforma Agrária em outro Assentamento do Incra

Page 106: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

105

Gráfico 2 - Local onde a família foi anteriormente assentada.

Fonte: TORRES et al, 2012.

5.2.2 FONTES DE RENDA

Outro dado importante está relacionado à renda auferida pelas famílias. A

NE Incra n° 45/2005 dispõe que para ser beneficiário da reforma agrária os

membros da família do agricultor e agricultora candidata não podem auferir renda

superior a três salários mínimos, proveniente de atividade diversa da agrícola. A

maioria das famílias do PART também se enquadra nesse requisito.

A renda mensal média das famílias do PART é inferior a um salário mínimo

(75%), não tendo sido constatado famílias que recebam mais de três salários

mínimos. Conforme apontado pelos assentados, a principal fonte de renda é a

agricultura (67%), seguida pela pecuária (21%). Algumas famílias incluíram entre as

Assentamento fantasma - não recebeu o lote

67%

Área de colonização 16%

Sem informação 17%

Local onde a família foi anteriormente assentada

Page 107: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

106

fontes de renda o programa governamental Bolsa Família. Esse programa, no

entanto, não foi apontado por nenhuma família como fonte de renda principal.

Algumas famílias declaram, também, auferir renda do trabalho assalariado

(2%), da aposentadoria e outros benefícios previdenciários (3%). O trabalho

assalariado está, normalmente, associado a atividades desempenhadas dentro do

próprio PA, como os trabalhos por diária desempenhado nas terras dos vizinhos.

Entre todas as famílias, apenas uma citou fonte renda proveniente de emprego

público e mesmo esse, dentro do PART, como agente comunitário de saúde do

assentamento.

Gráfico 3 - Renda Média Mensal das famílias do PART.

Fonte: TORRES et al, 2012.

Até 1 75%

Entre 1 e 2 16%

Entre 2 e 3 3%

Sem informação 6%

Renda Média Mensal Familiar (em salários mínimos)

Page 108: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

107

Gráfico 4 - Principal fonte de renda das famílias do PART.

Fonte: TORRES et al, 2012

5.2.3 A CULTURA EFETIVA DO LOTE

Segundo o estipulado na Norma de Execução n° 45/2005, para ser

beneficiário da reforma agrária não basta se tratar de família sem terra, é necessário

que os membros da família se disponham ao exercício da atividade agrícola. Para a

percepção dessa característica entre as famílias do PART, buscou-se notar a

realização de uma cultura efetiva do lote pela família, identificando as famílias que

exploram efetivamente e fazem o lote ocupado produzir e tiram da parcela os frutos

que servem para o sustento familiar.

No PART essa exploração efetiva dos lotes pelos ocupantes é verificada nas

diversas lavouras cultivadas, na pecuária e na criação de animais de pequeno porte

como galinhas e porcos. A seguir se detalhará cada um dessas formas de

exploração.

67%

4%

21%

8%

Principal fonte de renda no PA Rio Trairão

Agricultura

Aposentadoria/ Benefíciosprevidenciários/ Extrativismo

Pecuária

Outro

Page 109: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

108

5.2.3.1 Agricultura

A agricultura é a atividade mais importante desenvolvida pelas famílias

moradoras do PART. É a agricultura que fornece boa parte do alimento servido

diariamente nas mesas do assentamento, bem como é ela que lhes garante recurso

para a compra de itens de consumo inexistentes na área do PART.

A agricultura sempre exerceu importante papel no sucesso e na segurança

alimentar da espécie humana. Segundo Carlos Walter Porto-Gonçalves

O que é a espécie humana conseguiu por meio das agriculturas foi a segurança alimentar, expressão que hoje ganhar o debate político. Afinal domesticar espécies de animais e vegetais é torna-las parte de nossa casa (em latim, domus, daí domesticar). Assim mais uma vez alimento e abrigo (domus, casa) voltam a se encontrar confrontando um conjunto de questões interligadas para oferecer maior segurança a cada grupo que, assim, se constitui por meio de sua cultura formando seus territórios (domínios).

192

O produto preponderante na lavoura dos ocupantes e assentados é a

mandioca, sendo que a área plantada varia de 0,5 a 5 ha. A mandioca é utilizada

principalmente na alimentação. Dela os referidos fazem farinha, retiram a ―goma‖

para fazer os ―bejus‖ de tapioca, entre outros alimentos, bem como a utilizam na

engorda dos animais criados. A farinha fabricada pelos assentados também é

vendida, em uma quantidade relativamente expressiva (20%).

O milho e o cacau, também, são cultivados por um expressivo número de

famílias. O milho é plantado por 43% das famílias e o cacau por 42%. O cacau é o

produto comercializado com mais frequência pelos moradores do PART, sendo

vendido no município de Uruará. Segundo dados do IBGE, em 2010 o município foi

o terceiro maior produtor de cacau em amêndoa do estado do Pará, ficando atrás

apenas de Medicilândia e Placas.193

As plantações de mandioca, milho e cacau dividem espaço com outras

lavouras cultivadas pelas famílias como a de feijão, arroz, pimenta, urucum, banana,

inhame, abacaxi, café, cupu, maracujá, manga, coco, cana e abacate.

192

PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. A globalização da natureza e a natureza da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 209 [grifos no original] 193

IBGE Cidades@. Pará Cacau (em amêndoa) – quantidade produzida. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/comparamun/compara.php?codmun=150815&oduf=15&tema=lavpe rm2010&codv=v26&lang=. Acessado em 29 abri.2012

Page 110: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

109

Fotografia 4 - Goma de tapioca secando ao sol na Comunidade Menino Jesus.

Foto: Kerlley Diane Santos

Fotografia 5 - Café e sementes de cacau secando ao sol. O cacau é o produto mais comercializado no PART.

Foto: Kerlley Diane Santos

Page 111: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

110

Fotografia 6 - Assentado pilando grãos de arroz no PART. O arroz é uma das lavouras cultivadas pelas famílias do assentamento.

Foto: Kerlley Diane Santos

5.2.2.2 Pecuária

A agricultura camponesa se desenvolve a partir da permanente busca de

equilíbrio entre a produção vegetal e a criação de animais com o objetivo de atender

às necessidades alimentares e econômicas das famílias.194 No PART a realidade

não é diferente. Ao lado da agricultura as famílias se dedicam a criação de diversos

animais como galinhas e porcos e a pecuária.

Praticada por 49% das famílias do PART, a pecuária é a criação mais

destacável. A maioria dos rebanhos do assentamento está localizada na

Comunidade Nossa Senhora do Rosário, sendo pouco expressivas as criações da

Comunidade Menino Jesus. Os rebanhos são pequenos não ultrapassando, em sua

maioria, a faixa de 80 cabeças por família. e, majoritariamente, compostos por vacas

de cria e de leite. Tais características da composição dos rebanhos indicam,

194

BOSERUP, 1987 apud FREIRE, Adriana Galvão. ―No inverno a gente planta, no verão agente cria‖. In Revista Agriculturas, p. 07, 2009.

Page 112: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

111

claramente, que as famílias desenvolvem a etapa da ―cria‖ bovina e, em escala

ínfima, a da ―recria‖.

Pode-se afirmar que a manutenção dos animais nos sistemas agrícolas

camponeses se dá por duas razões principais. A primeira é ter alimentos ricos em

proteínas, como o leite e seus derivados, os ovos e a carne. A segunda é a fonte

monetária que esses animais garantem por meio da comercialização: os de pequeno

porte, como as galinhas, são vendidos para arcar com pequenas despesas e os de

grande porte, como o gado, funcionam como poupanças vivas.195

A predominância de rebanhos pequenos e a atribuição desses animais a

determinados membros da família, revelam o caráter de bem familiar que o gado

assume entre as famílias do PART. O gado é a ―poupança‖, o ―patrimônio‖ dos

assentados, cujo uso não está associado à satisfação de necessidades cotidianas,

mas à garantia de recurso em momentos de necessidades extremas da família,

como em casos de doença ou de viagens inesperadas.

5.2.2.3 Criação de outros animais

Outro dado que reforça o caráter camponês e familiar das atividades

desenvolvidas pela população do PART, bem como demonstra o cultivo efetivo dos

lotes são as criações de animais como porcos e galinhas encontradas em quase

todas as parcelas. Tal atividade é totalmente voltada à subsistência e à segurança

alimentar dos membros das famílias.

As galinhas são criadas pela maioria da população do PART (72%). Essa

ave é, normalmente, empregada na alimentação da família e, eventualmente, é

objeto de venda. São animais criados nos terreiros das casas, alimentados com

milho cultivado pelos próprios assentados em seus lotes e com as sobras das

refeições e comumente, sob a responsabilidade das mulheres e dos filhos menores.

Outra criação comum é a de porcos, praticada por 48% das famílias do

PART. São criações pequenas com não mais que 30 animais. Esses animais são

criados soltos no quintal e recolhidos à noite aos chiqueiros, que também estão

195

LIMA, Marcelo. ―Autonomia pela integração entre cultivos e criações‖. In Revista Agriculturas, 2009, p. 06.

Page 113: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

112

situados às proximidades da casa. Aparentemente, os porcos, assim como o gado,

são uma reserva de renda famílias, haja vista a sua liquidez.

As famílias, também, criam animais destinados para o transporte de carga,

como cavalos (53,3%) e jumentos (13%). Tanto os cavalos, como jumentos são

criados majoritariamente na Comunidade Menino Jesus que tem vias de acesso

piores que a outra comunidade.

Fotografia 7 - A criação de porcos, assim coma de gado, é uma forma de "poupança" das famílias do PART para o atendimento de necessidades das famílias.

Foto: Kerlley Diane Santos

5.2.3 EXPLORAÇÃO DIRETA, PESSOAL E FAMILIAR DO LOTE

Outro importante requisito observado para a delimitação do perfil das

famílias como público da reforma agrária foi a forma de exploração empreendida nas

parcelas. Para isso buscou-se identificar entre os moradores do Projeto de

Assentamento Rio Trairão aquelas famílias que desenvolvessem a exploração

Page 114: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

113

direta, pessoal e familiar do lote, em outras palavras, as famílias cuja base de

exploração fosse o trabalho familiar.

Para Ellen e Klaas Woortmann, o lote é por excelência o lugar do trabalho e

igualmente o resultado do trabalho. Um lugar construído por um conjunto de

espaços articulados entre si196, no qual a força essencial do trabalho é a família.

Esta imprescindibilidade do trabalho da família entre os camponeses foi destaca,

também, por José Vicente Tavares dos Santos, em seu livro Colonos Do Vinho. Para

Santos ―a condição fundamental da produção camponesa é a força de trabalho

familiar‖.197

No PART, o lote é constituído, normalmente, a partir de espaços como a

casa, o quintal, a juquira, o roçado, o pasto e a mata e são os ―braços‖ da família os

principais responsáveis pela articulação da parcela. A lida no roçado e nas lavouras

está, em boa parte das famílias, a cargo do homem e dos rapazes. As mulheres e as

filhas cuidam da casa, dos filhos menores e criam os animais. Nos períodos em que

o trabalho é mais árduo, como na época das colheitas, mulheres e crianças somam-

se ao trabalho no roçado.

Entretanto, este quadro do trabalho familiar no lote também comporta

exceções. A principal delas é a dos homens que vivem sozinhos nos lotes do

assentamento. Esses homens, majoritariamente, são casados e têm filhos em idade

escolar. A inexistência de escolas que ofertem integralmente o Ensino Fundamental

e Médio e de transporte no assentamento determinam a separação das famílias. As

mulheres acompanham os filhos e vão ―pra rua‖ residir no Município de Uruará e os

homens permanecem nos lotes. Sempre que possível e, principalmente, nas férias

eles retornam ao lote para ajudar o pai esposo.

Normalmente, essa contração da força do trabalho familiar torna necessário

o auxílio de terceiros no trabalho nos lotes. Essa característica não contradiz a

dinâmica camponesa. Pelo contrário, é um traço comum entre estas famílias recorrer

a cooperações que venham a complementar o trabalho.198 Tal característica também

não afasta a caracterização da exploração desenvolvida pelos assentados como

196

WOORTMANN, Ellen F.; WOORTMANN, Klaas. ―Etnografia do trabalho na terra‖. In: O Trabalho da terra: a lógica e a simbólica da lavoura camponesa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. p 27. 197

SANTOS, José Vicente Tavares do. Colonos do Vinho: estudo da subordinação do trabalho camponês ao capital. São Paulo: Huitec, 1978, p. 34. 198

Ibidem. 34ss

Page 115: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

114

direta, pessoal e familiar. Aqui cabe a lição do jurista Paulo Torminn que ao tratar da

propriedade familiar afirma que:

O imóvel rural só se classifica como propriedade familiar quando é trabalhada direta e pessoalmente pelo agricultor e sua família. Auxílio de terceiro, trabalhador rural sim, mas eventual. É lógico que tal participação pode ser homogênea, constante, e, de outra parte, exigir uma concentração maior de esforços em determinados momentos da vida agrícola. Digamos no período da colheita [...] que demanda acúmulo de mão de obra.

199

Posicionamento semelhante é o adotado por Pinto Oliveira. Para o jurista:

O imóvel rural só pode ser entendido como propriedade familiar quando é trabalhado direta e pessoalmente pelo agricultor e a sua família. O auxílio de terceiras pessoas, camponeses ou trabalhadores rurais, deve ser eventual, por exemplo, em determinados tipos de colheitas que exigem aumento da mão de obra.

200

No PART, essa ajuda eventual, que complementa o trabalho da família na

parcela, aprece na forma de ajuda mútua, troca de dia e mutirões.

Sempre que a gente pode, se tem alguém que tá precisando e a gente vai lá e ajuda. Às vezes o pessoal vai fazer um serviço e inventa um mutirão. Sempre ajudo o compadre [...], que é meu cunhado também. Aí eu ajudo a fazer o roço. A gente troca diária também, a gente vai fazer a roça de fulano, aí termina a dele lá e vai fazer a do outro.

201

A referência a essas formas de ajuda mútua são muito comuns no

assentamento. Na Comunidade Nossa Senhora do Rosário ela é mais intensa entre

membros da mesma família, mas o auxílio a vizinhos também existe. Já na

Comunidade Menino Jesus, ela ocorre com frequência não apenas entre parentes,

mas também entre vizinhos, compadres, amigos. Frente a esta situação é preciso

considerar que a família concebida enquanto um núcleo familiar composto pelos pais

e filhos, não é a família que está na cabeça dos moradores do PART. ―A gente tem

esse círculo de amizade como se fosse uma família, eu tenho como uma família,

199

BORGES, Paulo Torminn. Institutos Básicos do Direito Agrário. 9a

ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 33. 200

FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Agrário. 4a ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p.216.

201 Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante IV, na Comunidade Menino Jesus, PA

Rio Trairão, Uruará, em 13 de julho de 2011.

Page 116: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

115

todo mundo‖202, afirmou um morador de Menino Jesus. Aqui importante é a lição de

José de Souza Martins ao afirmar que:

A família que está na cabeça de acampados e assentados é uma instituição ampla e complexa e nem mesmo se limita a parentesco de sangue. É uma rede de direitos e deveres referidos às obrigações dos vínculos de sangue e também dos vínculos sagrados da afinidade e do parentesco simbólico.

203

São esses vínculos, não necessariamente sanguíneos, que determinam a

prestação da ajuda eventual no trabalho nas parcelas.

5.2.4 FAMÍLIAS OCUPANTES E O PART

Como dito, a reforma agrária visa promover a melhor distribuição de terras e

propiciar condições de trabalho aqueles que almejam terra para trabalhar, auferindo

condições dignas de sobrevivência para suas famílias e modificando o regime de

posse e uso característico dos latifúndios e minifúndios. Não qualquer distribuição de

terras, como nos alertou Borges204, mas aquela que proporcione a modificação das

situações que atentem contra os princípios de justiça social e o aumento de

produtividade. ―Justiça para com o homem sem terra é que dela precise‖.205

Partindo-se daí e apoiado nos dados coletados em campo, pode-se afirmar

que as famílias que hoje ocupam a área estudada promovem essa finalidade

precípua da reforma agrária. As referidas famílias, ainda que irregularmente,

promovem uma ocupação do PART que coaduna com a esperada de um

assentamento e se difere das distorções fundiárias provocadas pelo minifúndio e

pelo latifúndio.

Estabeleceram morada e trabalham em lotes que não ultrapassam o limite

da área da parcela do projeto de assentamento. Nos lotes que encontraram

abandonados, plantaram lavouras de mandioca, cacau, milho, feijão, arroz, pimenta,

202

Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante III, na Comunidade Menino Jesus, PA Rio Trairão, Uruará, em 13 de julho de 2011. 203

MARTINS, José de Souza. O Sujeito Oculto: ordem e transgressão na reforma agrária. Porto Alegre: UFRGS, 2003, p. 55. 204

BORGES, Paulo Torminn. Institutos Básicos do Direito Agrário.9aed.São Paulo: Saraiva, 1999,

p.25. 205

Ibidem, p.22.

Page 117: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

116

urucum, café e uma diversidade de frutas, baseando a sua exploração da terra na

força do trabalho familiar. Dedicam-se, majoritariamente, à agricultura e veem nos

seus pequenos rebanhos e nos porcos uma poupança para os dias difíceis. A renda

é baixa e eles se vêm expostos cotidianamente a todas as precariedades que a

condição de ocupantes lhes impõe. Não são atendidos pelo governo local que atribui

a responsabilidade ao Incra. Não são atendidos pelo Incra que nada faz nem mesmo

pelo beneficiários legalmente reconhecidos que residem no assentamento.

São grupos familiares sem terra que vieram de diversos lugares da

Amazônia e do Nordeste e que passaram por outras terras onde trabalharam

―pagando diária‖. Araram e trabalharam a terra que não era deles, até o dia que

chegaram ao PART. Se a lei lhes imputa a irregularidade de seu ato de ocupar um

assentamento de reforma agrária sem autorização da autarquia responsável,

também lhes abre caminho para o reconhecimento como público da reforma agrária.

Como visto, a maioria deles se enquadra naqueles requisitos necessários para esse

reconhecimento. São agricultores, não possuem imóveis rurais, nunca foram

beneficiários da reforma agrária ou foram impropriamente cadastrados com lotes em

assentamentos fantasmas, dos quais só ouviram falar o nome.

O referido reconhecimento, no entanto, passa necessariamente pela realização de

revisão ocupacional do assentamento pelo Incra. Como destacado em diversos

pontos do Capítulo 4, a realização dessa revisão do PART é urgente, haja vista a

situação das ocupações hoje existentes na área. Nos 14 anos de existência do

assentamento, a maioria dos lotes trocou irregularmente de ocupante, seja através

da venda, seja por meio do abandono e reocupação. Na maioria dos casos, a

principal causa da rotatividade de famílias nos lotes está associada à precariedade

das condições de acesso a direitos básicos e a não implementação das políticas

originariamente pensadas para o assentamento.

A instabilidade e a precariedade de um assentamento são determinantes

para a mobilidade constante das famílias. O abandono dos assentados em PAs não

assistidos com saúde e nem educação e distantes de qualquer serviço publico, sem

a infraestrutura necessária para o escoamento e a consequente obtenção da

remuneração da atividade agrícola são razões suficientes para o repasse das terras

Page 118: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

117

por preços irrisórios que variam dependendo, entre outros pontos, da distância do

assentamento.206

As famílias do PART sofrem, também, com os problemas engendrados pelo

processo de concentração de lotes que vem se desenhando no interior do

assentamento. Dos 170 lotes originariamente destinados, 38 estão concentrados.

Essa avançar da concentração de lotes acarreta graves consequências como a

descontinuidade entre as duas comunidades que formam o assentamento,

porquanto as faixas de concentração estão distribuídas ao longo do PART (Mapa 1),

e o próprio aflorar de formas de intimidação dos demais ocupantes que reivindicam a

regularização da situação ocupacional do assentamento.

A concretização dessa revisão é medida urgente, porquanto é somente

através da referida revisão que se poderá sanear a lista de beneficiários, promover a

retomada dos lotes e fazer o levantamento das famílias com perfil de beneficiário,

para uma possível regularização da sua situação no assentamento. Somente a

concretização dessa possibilidade, tornará possível o alcance das demais

solicitações dos ocupantes e dos assentados do PART, e a efetivação dos direitos

básicos e das políticas públicas previstas, ambos necessários a garantia dos meios

de vida e a permanência no assentamento.

206

BENATTI, José Heder. ―Questão fundiária e sucessão da terra na fronteira oeste da Amazônia. Novos Cadernos NAEA. ISSN 1516-6481, v. 11, n. 2, Belém: UFPA, 2008. p. 102.

Page 119: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

118

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As famílias moradoras do Projeto de Assentamento Rio Trairão não

assentadas continuam a lutar pelo seu reconhecimento como beneficiários da

reforma agrária. Buscam, também, junto com a minoria de assentados, a

implementação de uma infraestrutura mínima à qual têm direito: educação, saúde,

estradas e pontes.

Espera-se, ter demonstrado que a forma de ocupação, do uso do solo e das

atividades desenvolvidas por estas famílias são características compatíveis com as

do perfil do público beneficiário da reforma agrária que assoma da legislação agrária

pátria e das instruções normativas e normas de execução do Incra.

Durante as páginas que compõe esse trabalho, buscou-se demonstrar que a

história das famílias moradoras do Projeto de Assentamento Rio Trairão se

assemelha à de muitas outras que desembarcaram na Transamazônica durante os

anos 60 a 80. Impulsionadas pelo sonho do encontro com a terra livre, na qual

pudessem desenvolver seus modos e meios de vida, essas famílias vieram para o

Pará e passaram por outras cidades, onde trabalharam, até chegar ao então distrito

de Uruará. Distrito este que havia nascido às margens da Transamazônica.

Procurou-se apresentar a ligação entre a trajetória destas famílias e as

transformações pelas quais o espaço amazônico passou nos últimos anos,

advindas, principalmente, do processo de colonização, da ação e das políticas

intervencionista efetivadas pelos governos militares, a partir do final da década de

1960 e que se estenderam até os anos 80.

Verificou-se que processo que possibilitou a expansão capitalista na

Amazônia, deu-se através de movimentos contraditórios que permitiram também o

acesso de camponeses a fronteira aberta. Trazidas pela colonização oficial,

estimuladas pela abertura de estradas e pela propaganda oficial que asseverava a

facilidade de acesso a terra ou até mesmo através das notícias de parentes ou

amigos que já viviam na Transamazônica, essas famílias, nordestinas em sua

maioria, migraram para área da rodovia.

Page 120: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

119

O objetivo era, como aponta Oliveira 207 , forçar os colonos a iniciar o

processo de abertura da região e formar contingentes de mão-de-obra a disposição

das grandes empresas que passaram a ser convidadas oficialmente a se instalar na

região a partir de 1973. No entanto, boa parte das famílias que chegaram a região

conseguiram entrar na terra, reproduzir seus modos de vida baseados no trabalho

familiar e estabelecer formas de resistência aos conflitos que se espalharam pelo

estado.

Demonstrou-se, que além das áreas ocupadas pelos projetos de colonização

oficial as famílias camponesas migrantes protagonizaram as chamadas ―ocupações

espontâneas‖. Como se viu, cedo ou tarde essas famílias eram alcançadas pelo

Incra que se limitava a demarcar e regularizar os lotes que já haviam sido tirados por

estes grupos familiares. Com o fim da colonização, esta prática de estender projetos

sobre áreas já ocupadas continuou sendo utilizada pela autarquia federal, no âmbito

do I PNRA, por meio dos assentamentos rurais. A ocupação implementada pelas

famílias moradoras do PART em meados dos 80 foi uma das que foram alcançadas

por essa prática do Incra, em 1997. Como apresentado, a área já era ocupada pelas

famílias a pelo menos uma década.

A implantação do assentamento, não veio junto da disponibilização de

infraestrutura ou de políticas que sanassem minimamente as precariedades as quais

as famílias estavam expostas. Quando se defronta com realidades como estas é que

se entendem, porque a literatura dedicada à questão agrária afirma que o objetivo

do governo com o aumento da implantação de assentamentos na década de 1990,

era apenas o de criar números para a reforma agrária, uma vez que tais projetos

desempenhavam, não a redistribuição de terras, mas a pura e simples regularização

fundiária.

Posteriormente, mostrou-se que algumas famílias moradoras do Projeto de

Assentamento Rio Trairão foram indevidamente cadastradas nos chamados

―assentamentos fantasmas‖. Destacou-se, que a criação em massa desses

assentamentos no âmbito da Superintendência Regional do Incra não visava apenas

o inflacionar dos números da Reforma Agrária, mas também envolvia um

comprometimento da SR 30 com as empresas do setor madeireiro em prol dessas

últimas.

207

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Integrar para não entregar: políticas públicas e Amazônia. Campinas: Papirus, 1988, p. 86.

Page 121: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

120

Os assentamentos existiam apenas no papel e sua finalidade não era

beneficiar o público da reforma agrária, mas servir de área para extração de

madeira. Os moradores do PART que foram ―assentados‖ no papel, assim como a

maioria das pessoas que indevidamente constavam na Relação de Beneficiários

destes assentamentos, nunca viram os lotes que lhes estavam destinados.

A última parte desta monografia foi dedicada a demonstrar que as

características das famílias moradoras que implementam uma ocupação compatível

com o Projeto de Assentamento Rio Trairão, nos permitem identificá-las como

público da reforma agrária. Para a consecução deste verificou-se se estas famílias já

foram beneficiarias do PNRA; a principal atividade desenvolvida; a renda média

mensal auferida; a cultura efetiva da parcela e a forma de exploração do lote.

O que se extraiu desta verificação é que as famílias que hoje ocupam o

PART promovem uma ocupação compatível com aquela esperada de um

assentamento, qual seja, a exploração direta, pessoal e familiar de um único lote,

por famílias agricultoras. São famílias formadas por agricultores, que não possuem

imóveis rurais, com uma renda média mensal que não superam três salários

mínimos, nunca foram beneficiários da reforma agrária ou foram impropriamente

cadastrados em lotes nos ―assentamentos fantasmas‖.

Percebeu-se, que estas famílias estabeleceram morada nas parcelas

encontradas abandonadas, fizeram-nas produzir plantando lavouras de mandioca,

cacau, milho, feijão, arroz, pimenta, urucum, café e uma diversidade de frutas,

baseando a exploração da terra na força dos braços dos membros da família.

Observou-se, que parte das famílias possuem rebanhos e criam animais, aos quais

atribuem o sentido de ―poupança‖ para os dias difíceis.

Frente a este quadro, é possível afirmar que as famílias moradoras do

PART, que desenvolvem atividades agrícolas em um único lote e cuja exploração é

baseada na força do trabalho familiar, possuem características que as enquadram

no perfil do beneficiário da reforma agrária que emerge da legislação agrária e das

instruções normativas e normas de execução do Incra.

Page 122: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

121

REFERÊNCIAS

AGUIAR, Roberto. Direito, Poder e Opressão. São Paulo, Alfa-Omega, 1984.

BALTZ, Ricardo. ―A implicação um novo sedimento ase explorar na geografia‖. In Boletim Paulista de Geografia. São Paulo: Associação dos Geógrafos Brasileiros, 2006, p. 25-50.

BENATTI, José Heder. ―Questão fundiária e sucessão da terra na fronteira oeste da Amazônia. Novos Cadernos NAEA. ISSN 1516-6481, v. 11, n. 2, Belém: UFPA, 2008. p. 85-122.

BORGES, Paulo Torminn. Institutos Básicos do Direito Agrário. 9a ed. São Paulo: Saraiva, 1995.

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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constitui%C3%A7ao67.htm. Acessa do em: maio de 2012.

BRASIL. Decreto-Lei n° 1.106, de 16 de junho de 1970. Cria o Programa de Integração Nacional, altera a legislação do imposto de renda das pessoas jurídicas na parte referente a incentivos fiscais e dá outras providências. Disponível em: http://www2.camara.gov.br/legin/fed/declei/1970-1979/decreto-lei-1106-16-junho-197 0-375379-publicacaooriginal-1-pe.html. Acessado em: maio de 2012.

BRASIL. Decreto-Lei n° 1.164, de, 1° de abril de 1971. Declara indispensáveis à segurança e ao desenvolvimento nacionais terras devolutas situadas na faixa de cem quilômetros de largura em cada lado do eixo de rodovias na Amazônia Legal, e dá outras providências. In: Coletânea de legislação e jurisprudência agrária e correlata. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário, Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2007, p. 670-672.

Page 123: Morada da Terra: Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de Assentamento Rio Trairão

122

BRASIL. Decreto-Lei n° 1.243, de 30 de outubro de 1972. Eleva a dotação do Programa de Integração Nacional (PIN) criado pelo Decreto-lei nº 1.106, de 16 de junho de 1970, altera o Decreto-lei nº 1.164, de 1º de abril de 1971, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del1243.htm. Acessado em: março de 2012.

BRASIL. Decreto n° 68.443/71, de 29 de março de 1971. Declara de interesse social, para fins de desapropriação, imóveis rurais de propriedade particular, situados em polígono compreendido na zona prioritária, fixada para fins de reforma agrária, no Decreto nº 67.557, de 12 de novembro de 1970, e dá outras providências. Disponível em: http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1970-1979/decreto-68443-29-marco-1971-410405-publicacaooriginal-1-pe.html. Acessado em: maio de 2012.

BRASIL. Emenda Constitucional n° 18, de 01 de dezembro de 1965. Disponível em: http://www2.camara.gov.br/legin/fed/emecon/1960-1969/emendaconstitucional-18-1- dezembro-1965-363966-publicacaooriginal-1-pl.html. Acessado em: 02.maio.2012.

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