morada da terra: potenciais beneficiários da reforma agrária no projeto de assentamento rio...
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Monografia apresentada por Kerlley Diane Silva dos Santos ao Programa de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Oeste do Pará como requisito para obtenção do título de Bacharel em Direito. RESUMO: Este trabalho trata da história de uma ocupação empreitada por famílias camponesas, abrangida por um assentamento de reforma agrária: o Projeto de Assentamento Rio Trairão. O objetivo central é destacar as características da trajetória das famílias do assentamento, que nos permitem analisar seu perfil em relação à figura jurídica do beneficiário da reforma agrária. Para a compreensão da história das famílias ocupantes do Projeto de Assentamento Rio Trairão, aborda-se as transformações pelas quais a Amazônia passou, a partir da década de 1970, induzidas pelas ações do governo militares para permitir a apropriação das terras amazônicas pelo grande capital, destacando o caráter contraditório deste processo que possibilitou o acesso à terra de famílias camponesas. As famílias do assentamento são, além de testemunhas das transformações pelas quais a região passou nos últimos 40 anos, também protagonistas na ocupação da área do município de Uruará que foi alcançada pelo assentamento do Incra. Analisam-se as características da ocupação e da forma de exploração da terra para se avaliar a possibilidade de aproximação do perfil dos moradores do assentamento àquele do beneficiário da reforma agrária.TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE FEDERAL DO OESTE DO PARÁ
INSTITUTO DE CIÊNCIAS DA SOCIEDADE
PROGRAMA DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
KERLLEY DIANE SILVA DOS SANTOS
MORADA DE TERRA:
Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de
Assentamento Rio Trairão.
Santarém 2012
KERLLEY DIANE SILVA DOS SANTOS
MORADA DE TERRA:
Potenciais beneficiários da reforma agrária no Projeto de
Assentamento Rio Trairão.
Monografia apresentada ao Programa de
Ciências Jurídicas da Universidade Federal
do Oeste do Pará como requisito para
obtenção do título de Bacharel em Direito.
Orientador: Prof. Msc. Bruno Alberto
Paracampo Mileo
Santarém 2012
Às mulheres, aos homens e às crianças
do Projeto de Assentamento Rio Trairão.
À intrépida Angela Sauzen
À memoria de João da Silva e
Estelino M. da Silva
Agradecimentos
Àquele que me salvou das águas profundas e tornou todos os outros dias possíveis.
Aos moradores do Projeto de Assentamento Rio Trairão, que me acolheram em
suas casas e partilharam comigo o pão e a suas histórias e ensinaram-me que os
juristas devem aprender a ouvir o povo e a sentir as razões da luta e a vida das
populações do campo.
Ao professor Bruno Alberto Paracampo Mileo, pela dedicação, pela paciência e pela
orientação íntegra. Seus questionamentos foram imprescindíveis e luminosos para a
concretização deste trabalho.
Ao Maurício Torres, pelas lições e pela amizade. Seu compromisso afetivo com as
demandas dos povos da floresta é referência para a vida.
Aos meus amigos, especialmente Ítala Nepomuceno e Candido Cunha, pelos
edificantes debates sobre das dinâmicas agrárias do oeste do Pará.
À minha família, por entender as minhas escolhas e pelo conforto nos momentos em
que as lágrimas foram inevitáveis.
Tais dificuldades o homem do campo não
havia esperado; uma vez que a lei deveria ser
acessível a todos e sempre - ele pensa...
Franz Kafka
Porque eu quem moro dentro dela, quem
trabalho dentro dela. Tenho a legítima certeza
que ela é minha.
Morador do PA Rio Trairão, não assentado,
falando sobre a parcela ocupada por sua família.
RESUMO
Este trabalho trata da história de uma ocupação empreitada por famílias
camponesas, abrangida por um assentamento de reforma agrária: o Projeto de
Assentamento Rio Trairão. O objetivo central é destacar as características da
trajetória das famílias do assentamento, que nos permitem analisar seu perfil em
relação à figura jurídica do beneficiário da reforma agrária. Para a compreensão da
história das famílias ocupantes do Projeto de Assentamento Rio Trairão, aborda-se
as transformações pelas quais a Amazônia passou, a partir da década de 1970,
induzidas pelas ações do governo militares para permitir a apropriação das terras
amazônicas pelo grande capital, destacando o caráter contraditório deste processo
que possibilitou o acesso à terra de famílias camponesas. As famílias do
assentamento são, além de testemunhas das transformações pelas quais a região
passou nos últimos 40 anos, também protagonistas na ocupação da área do
município de Uruará que foi alcançada pelo assentamento do Incra. Analisam-se as
características da ocupação e da forma de exploração da terra para se avaliar a
possibilidade de aproximação do perfil dos moradores do assentamento àquele do
beneficiário da reforma agrária.
Palavras-chave: Amazônia; Campesinato; Assentamento da reforma agrária;
Beneficiário da reforma agrária.
ABSTRACT
This paper deals with the history of an occupation by peasant families, having
covered by an agrarian reform settlement: the Settlement Project Rio Trairão. The
central goal is to highlight the features of the trajectory of the families of the
settlement, which allow us to analyze your profile in relation to the legal concept of
agrarian reform beneficiary. For understanding the history of families occupying the
Settlement Project Rio Trairão, deals with transformations for which Amazon has
passed, from the late 1970 induced by the actions of the military Government to allow
ownership of lands in the Amazonian by big business, highlighting the contradictory
character of this process which allowed access to land of peasant families. The
families of the settlement are, in addition to witnesses of the processes by which the
region passed over the past 40 years, also starring in the occupation of the area of
the municipality of Uruará which was achieved by fixing the Incra. Analyse the
characteristic of occupation and exploitation of the land in order to assess the
possibility of approximation of the profile of the residents of the settlement that the
beneficiary of the agrarian reform.
Key Words: Amazonian; Peasantry; Settlement of the agrarian reform; Beneficiary of
the agrarian reform.
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 - Famílias beneficiárias da Reforma Agrária em outro Assentamento do
Incra.
Gráfico 2 - Local onde a família foi anteriormente assentada.
Gráfico 3 - Renda Média Mensal das famílias do PART.
Gráfico 4 - Principal fonte de renda das famílias do PART.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 - "Pista para você encontrar a mina de ouro". Anúncio veiculado na revista Veja, em
09 de dezembro de 1970. .................................................................................................... 49
Figura 2 – ―O boi é o melhor amigo do empresário‖. Anúncio da Sudam e do Banco da
Amazônia veiculado na revista Veja, em 05 de abril de 1972. ............................................. 58
LISTA DE MAPAS
Mapa 1 - Projeto de Assentamento Rio Trairão em relação ao Polígono
Desapropriado de Altamira, à área federalizada pelo Decreto-Lei n° 1.164/1971 e os
PICs Itaituba e Altamira.
Mapa 3 - A concentração de lotes provoca a descontinuidade entre as comunidades
do Projeto de Assentamento Rio Trairão.
Mapa 4 - Pontos de ocupação ao longo do Projeto de Assentamento Rio Trairão.
Mapa 5 - Famílias assentadas pelo Incra e que desenvolvem uma ocupação
compatível com a vocação de um assentamento da reforma agrária.
LISTA DE FOTOGRAFIAS
Fotografia 1 - Exemplos de moradias comumente encontradas no Projeto de
Assentamento Rio Trairão. As casas de taipa, de madeira serrada e de madeira
roliça são as formas de construção mais frequentes. As casas que seguem o modelo
do Incra são raras no PART.
Fotografia 2 – Lotes concentrados na Comunidade Nossa Senhora do Rosário A
concentração de parcelas no PART provoca áreas a descontinuidade entre as
comunidade ao longo do assentamento.
Fotografia 3 - Ponte improvisada na Comunidade Menino Jesus. Para se chegar em
determinados pontos do assentamento a travessia do Rio Trairão é necessária e
perigosa.
Fotografia 4 - Goma de tapioca secando ao sol na Comunidade Menino Jesus.
Fotografia 5 - Café e sementes de cacau secando ao sol. O cacau é o produto mais
comercializado no PART.
Fotografia 6 - Assentado pilando grãos de arroz no PART. O arroz é uma das
lavouras cultivadas pelas famílias do assentamento.
Fotografia 7 - A criação de porcos, assim coma de gado, é uma forma de
"poupança" das famílias do PART para o atendimento de necessidades das famílias.
LISTA DE SIGLAS
AI – Ato Institucional
Ceplac – Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira
Fidam – Fundo para Investimentos Privados no Desenvolvimento da Amazônia
IN – Instrução Normativa
Incra – Instituto de Colonização e Reforma Agrária
IPES – Institutos de Pesquisa e Estudos Sociais
MPF – Ministério Público Federal
NE – Norma de Execução
PART – Projeto de Assentamento Rio Trairão
PA – Projeto de Assentamento
PDS – Projeto de Desenvolvimento Sustentável
PIC – Plano Integrado de Colonização
PIN – Plano de Integração Nacional
PNRA – Plano Nacional da Reforma Agrária
RB – Relação de Beneficiários
SR – Superintendência Regional
Sudam – Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia
Ufopa – Universidade Federal do Oeste do Pará
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 14
2 CAMPESINATO: um conceito complexo ................................................................ 24
2.1 AS ABORADAGENS DA AGRICULTURA CAMPONESA .................................. 26
2.1.1 A DESTRUIÇÃO DO CAMPESINATO ............................................................. 27
2.1.2 RESQUÍCIOS DAS RELAÇÕES E DO MODO DE PRODUÇÃO FEUDAL ..... 28
2.1.3 A CRIAÇÃO E RECRIAÇÃO DO CAMPESINATO NO CAPITALISMO .......... 29
3 CAMPONESES E CAPITALISTAS NOS DESCAMINHOS DA AMAZÔNIA .......... 32
3.1 1964: um requiem à reforma agrária ................................................................... 33
3.2 OPERAÇÃO AMAZÔNIA ................................................................................... 37
3.3 ―EXPROPRIAÇÃO POR DECRETO‖ .................................................................. 40
3.4 A POMPA E A CIRCUNSTÂNCIA: o Plano de Integração Nacional e a contra
reforma agrária .......................................................................................................... 44
3.4.1 O POLÍGONO DESAPROPRIADO DE ALTAMIRA E OS PROJETOS
INTEGRADOS DE COLONIZAÇÃO .......................................................................... 51
3.5 A ―OCUPAÇÃO ESPONTÂNEA‖ ......................................................................... 59
3.6 O I PLANO NACIONAL DE REFORMA AGRÁRIA E OS PROJETOS DE
ASSENTAMENTO ..................................................................................................... 62
3.7 ―ASSENTAMENTOS DE PAPEL‖ ....................................................................... 64
4 MORADA DE TERRA: a ocupação camponesa da área hoje compreendida pelo
PART ......................................................................................................................... 68
4.1 RIO TRAIRÃO: A ocupação ............................................................................... 69
4.2 NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO .................................................................... 72
4.3 RIO TRAIRÃO: O Assentamento ....................................................................... 76
4.4 MENINO JESUS ................................................................................................. 80
5 CARACTERIZAÇÃO DAS FAMÍLIAS OCUPANTES DO PART COMO
POTENCIAIS BENEFICIÁRIAS DA REFORMA AGRÁRIA ...................................... 96
5.1 DEFINIÇÕES BÁSICAS ...................................................................................... 96
5.1.1 DEFINIÇÃO JURÍDICA DE REFORMA AGRÁRIA .......................................... 96
5.1.2 A PROPRIEDADE FAMILIAR .......................................................................... 97
5.1.3 OS PROJETOS DE ASSENTAMENTO ........................................................... 99
5.1.4 DEFINIÇÃO LEGAL DE BENEFICIÁRIO DA REFORMA AGRÁRIA ............. 100
5.2 FAMÍLIAS OCUPANTES DO PART: potenciais beneficiárias da reforma agrária
................................................................................................................................ 102
5.2.1 OCUPANTES E ASSENTADOS .................................................................... 103
5.2.2 FONTES DE RENDA ..................................................................................... 105
5.2.3 A CULTURA EFETIVA DO LOTE .................................................................. 107
5.2.3.1 Agricultura .................................................................................................. 108
5.2.2.2 Pecuária ..................................................................................................... 110
5.2.2.3 Criação de outros animais ........................................................................... 111
5.2.3 EXPLORAÇÃO DIRETA, PESSOAL E FAMILIAR DO LOTE ........................ 112
5.2.4 FAMÍLIAS OCUPANTES E O PART .............................................................. 115
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 118
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 121
14
1 INTRODUÇÃO
Era 09 de outubro de 1970, quando o então presidente general Emilio
Garrastazu Médici, durante a solenidade de implantação do marco inicial da
construção da Transamazônica realizada em Altamira, aplaudiu entusiasmado a
derrubada de uma imensa castanheira e incrustou uma placa no tronco partido, com
os seguintes dizeres: "Nestas margens do Xingu, em plena selva amazônica, o Sr.
Presidente da Republica dá inicio à construção da Transamazônica, numa arrancada
histórica para a conquista deste gigantesco mundo verde".1
Cerca de 15 anos depois, após uma longa e sofrida viagem começada no
Maranhão, uma família de migrantes nordestinos chegava a um dos travessões de
Uruará, cidade que nasceu às margens da Transamazônica. Impulsionado pelo
sonho de encontrar ―terra desocupada‖, essa família se junta a outras seis e ocupam
uma área, em uma das vicinais da ―estrada da integração nacional‖. Aos poucos
outros se juntaram a ocupação e uma comunidade foi formada.2
Uma década transcorreria até que a notícia da criação de um assentamento
de reforma agrária chegasse às vidas destes ocupantes e com ela a esperança de
melhorias na infraestrutura e no atendimento às necessidades básicas da
população. As famílias só não imaginavam que, após a implantação do
assentamento, a espera para a efetivação dos benefícios e das políticas anunciadas
seria tão longa.
A entrada destas famílias na terra, assim como a de muitos outros
camponeses que chegaram a Amazônia, principalmente, nas décadas de 1970 e
1980 foi gestada dentro de um cenário edificado a partir de ações políticas e
constructos jurídicos e ideológicos implementados para permitir a apropriação das
terras amazônicas pelo grande capital.
1 FOLHA DE SÃO PAULO. São Paulo, 10 de outubro de 1970. Arrancada para conquistar o
gigantesco mundo verde. Disponível em: http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil_10out1970.htm. Acessado em: 09 de outubro de 2011. 2 Entrevista registrada em áudio, concedida por Jesuíno Mendes de Oliveira, na Comunidade Nossa
Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 16 de julho de 2011.
15
No final da década de 1960, a Amazônia passava a ser alvo das políticas
desenvolvimentistas promovidas pelos governos militares. Associava-se, àquela
época, a região à ideia de vazio demográfico e do espaço selvagem subutilizado
economicamente e, ao mesmo tempo, promovia-se a imagem, por meio de
propaganda estatal, da terra promissora cujas vulnerabilidades ocasionadas pela
―inexistência de gente‖ deveriam ser suprimidas pela ação desbravadora de árduos
colonizadores.3
Dentro da dinâmica ―desenvolvimentista‖ que se descortinou na região, o
regime militar utilizou-se de instrumentos normativos para compatibilizar o aparato
legal aos interesses políticos e econômicos dos grupos aos quais estava associado4.
Sob o pálio da segurança nacional, da preocupação social com o Nordeste e da
necessidade de integração nacional, vieram à cena leis que incidiram diretamente
sob o espaço amazônico e, especialmente, sob o estado do Pará, como o Decreto-
Lei nº 1.164, de 01 de abril de 1971, que federalizou cerca 70% da área do estado.5
Entretanto, o mesmo processo que possibilitou a expansão capitalista na
Amazônia, trouxe em seu bojo movimentos contraditórios que permitiram o acesso
dos camponeses e demais trabalhadores do campo à fronteira aberta6. Para além da
colonização oficial promovida pelo governo, a abertura de rodovias, a propaganda
estatal que enfatizava a miríade de terras livres levou, também, à migração de
famílias camponesas vindas de diversos cantos, principalmente, do Nordeste e do
Sul.
Muitos desses migrantes se deslocavam ao Pará, para a região de influência
da recém-construída rodovia Transamazônica. Estes migrantes ocupavam áreas
localizadas fora dos projetos de colonização implementados pelo Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (Incra), abriam picadas em prolongamentos das
vicinais da rodovia e se instalavam em áreas além daquelas já ocupadas.7
3 NEAPSIDE, Daniel et al. Avança Brasil: os custos ambientais para Amazônia. Belém: Alves, 2000.
4 MONTEIRO, Maurílio de Abreu; COELHO, Maria Célia Nunes. ―As politicas federais e as
reconfigurações espaciais na Amazônia‖. In Novos Cadernos do NAEA. Belém: UFPA, 2004, p. 91-122. 5
OLIVEIRA, Ariovaldo U. de. ―BR-163 Cuiabá-Santarém: Geopolítica, grilagem, violência e mundialização‖. In: TORRES, Mauricio. Amazônia Revelada: os descaminhos ao longo da BR-163. Brasília: CNPQ, 2005, p. 68. 6 Ibidem, p. 68.
7 FEARNSIDE, Philip M. Projetos de Colonização na Amazônia Brasileira: objetivos conflitantes e
capacidade de suporte humano. Caderno de Geociências. n. 2, 1987, p. 7-25
16
Tais ocupações eram, em muitos casos, regularizadas pelo Incra por meio
da própria colonização oficial. A autarquia federal demarcava os lotes nestas áreas
já ocupadas e regularizava a situação das famílias8. Com o fim da colonização, a
ação de estender os projetos sobre áreas já ocupadas por meio da ―colonização
espontânea‖ perdurou. O instrumento de concretização dessa prática, entretanto,
era outro: os assentamentos de reforma agrária.
Entende-se como projeto de assentamento da reforma agrária o conjunto de
ações planejadas e implementadas em área destinada a reforma agrária e
integradas ao desenvolvimento territorial e regional. Tais ações são definidas com
base em diagnósticos acerca do público beneficiários e das áreas a serem
trabalhadas e orientadas para a utilização dos espaços físicos e dos recursos
naturais existentes. O objetivo é a implementação dos sistemas de vivência e de
produção sustentáveis, o cumprimento da função social da terra e da promoção
econômica, social e cultural do trabalhador rural e de sua família.9
O presente trabalho trata da história de uma ocupação empreitada por
famílias camponesas que foi compreendida por um assentamento de reforma
agrária: o Projeto de Assentamento Rio Trairão (PART). Por meio desta história,
objetiva-se, principalmente, destacar características da trajetória das famílias
camponesas envolvidas pelo assentamento que nos permitem aproximar o perfil
dessas da figura jurídica do beneficiário da reforma agrária.
Espera-se apresentar os processos sociopolíticos que consubstanciaram o
contexto no qual a área está inserida, destacando especialmente as transformações
pelas quais o espaço agrário da região passou a partir das políticas perpetradas
pelos governos militares para a Amazônia. Busca-se, também, destacar a história da
ocupação camponesa na área onde hoje está situado o PART, bem como apontar
as características das famílias ocupantes do assentamento que as aproximam do
perfil de beneficiário da reforma agrária.
8 Cf. CUNHA, Candido Neto da. ―Pintou uma chance legal: o programa Terra Legal no interior dos
Projetos Integrados de Colonização e do Polígono Desapropriado de Altamira, no Pará‖. Agrária. Laboratório de Geografia Agrária - DG/FFLCH/USP. ISSN 1808-1150. nº 10/11, 2009. p. 20-56; HAMELIN, Philipe. ―O fracasso anunciado‖. In: LÉNA, Philippe; OLIVEIRA, Adélia Engrácia (Orgs.). Amazônia: a fronteira agrícola 20 anos depois. Belém: CEJUP/ Museu Emílio Goeldi, 1992, p. 167; FEARNSIDE, Philip M. Projetos de Colonização na Amazônia Brasileira: objetivos conflitantes e capacidade de suporte humano. Caderno de Geociências. n. 2. 1987, p. 7-25. 9 INCRA. Instrução Normativa nº 15, de 30 de março de 2004. Disponível em: Acessado em: maio.
2012
17
O recorte espacial adotado neste trabalho é, essencialmente, o Projeto de
Assentamento Rio Trairão (PART), entretanto, para compreender o processo
histórico em que o assentamento se insere, será necessário, por diversos
momentos, extrapolar seus limites. Em oras, serão referidas dinâmicas do oeste do
Pará (mais precisamente, na circunscrição da Superintendência Regional 30 do
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - Incra); em outras,
remeteremos a todo o estado do Pará e, ainda, em outros momentos, serão
abordados processos pertinentes a toda a Amazônia.
O PART está localizado na Vicinal 205 Norte, em Uruará, município
pertencente ao estado do Pará, na porção norte da BR-230, a rodovia
Transamazônica (Mapa 1). O assentamento foi criado por meio da Portaria n° 67, de
07 de outubro de 1997, do Incra - Superintendência Regional do Pará (SR-01). A
criação do Projeto de Assentamento deu-se a partir dos autos do Processo
Administrativo n° 54100.001230/97-10.
O PART possui uma área total de 17.000 hectares, um perímetro de 75.500
metros e foi implantado no interior da Gleba Ouro Branco, imóvel arrecadado pelo
Incra e completamente inserido no interior do Polígono Desapropriado de Altamira10.
O Polígono Desapropriado de Altamira, como se verá no Capítulo 3, foi uma área
obtida por meio do Decreto n° 68.443/71, de 29 de março de 1971 e destinada para
fins de Reforma Agrária e implantação de Núcleos de Colonização (ver Mapa 1).
Quanto ao nome, a denominação ―Rio Trairão‖ deve-se ao fato de um rio de mesmo
nome percorrer toda a extensão do assentamento.
Temporalmente, este trabalho debruça-se, principalmente, sobre as
transformações implementadas a partir do final da década de 1970 e estende-se até
o ano de 2006. Tal delimitação justifica-se porquanto as políticas que sucederam
neste período estão ligadas as trajetórias das famílias que moram no Projeto de
Assentamento Rio Trairão.
Como se verá, estas famílias são majoritariamente procedentes da
colonização oficial, implementada pelos governos militares durante a década de
1980. Eram parentes e amigos de colonos, que, incentivadas pela ideia que lhes era
repassada de facilidade de acesso à terra, se deslocaram ao Pará. Passaram por
10
INCRA. SR30. Processo n° 54100.001230/97-10. Instaurado para a criação do Projeto de Assentamento Rio Trairão. Belém, 1997.
18
outras cidades do estado até chegar a Uruará. Neste município, trabalharam na área
de colonização antes de sair mata adentro em busca de ―terras de livres‖.
Posteriormente, as famílias ocuparam uma área que anos mais tarde foi
alcançada pela política de assentamentos da reforma agrária. Tal política passou a
ser implementada a partir da segunda metade da década de 1980, no âmbito do I
Plano Nacional de Reforma Agrária, havendo um crescimento da aplicação desta
política nos anos 90. Data deste último período a implementação do projeto de
assentamento no qual as famílias estudadas estão inseridas.
O período justifica-se, ainda, tendo em vista que recentemente algumas
famílias não assentadas que moram no PART se viram indevidamente cadastradas
nos chamados ―assentamentos fantasmas‖, produzidos em massa na área de
atuação da Superintendência Regional do Incra em Santarém, no período de 2005 a
2006. Tais assentamentos, ainda, se sobrepunham a uma área pretendida pelos
moradores para anexação ao assentamento.
Por se entender que a ocupação implementada na área onde hoje está
situado o Projeto de Assentamento Rio Trairão é consequência de um processo
contraditório e marcado por sucessivas transformações, esta pesquisa baseia em
uma compreensão dialética de elementos coletados em vários lugares. Além da
análise bibliográfica de obras relacionadas ao tema, foram consultadas legislações e
outros documentos relacionados ao projeto de assentamento onde vive a população
estudada. Foram utilizados também apurações do campo realizado em julho de
2011, junto à população do Projeto de Assentamento Rio Trairão, no qual foi
possível a observação direta e o acesso a importantes informações acerca da
história e da situação das famílias do assentamento.
Considerando o envolvimento da autora com o objeto de estudo, vale
contextualizá-lo em relação ao modo como se deu o acesso a parte dos dados que
embasam o presente trabalho. O contato da discente com as famílias do PART
iniciou-se em março de 2011, quando um representante da associação comunitária
do assentamento esteve no município de Santarém para demandar junto ao Incra e
o Ministério Público Federal (MPF) providências em relação aos conflito nos quais as
famílias do assentamento estavam envolvidos, bem como revisão ocupacional do
assentamento e anexação ao PART de uma área utilizada pelas famílias para a
coleta de sementes.
19
A associação, buscando obter um registro qualificado das situações às quais
as famílias estavam submetidas e das irregularidades que ocorriam no
assentamento, solicitou ao Núcleo Interdisciplinar Terra e Trabalho, grupo dedicado
ao estudo das dinâmicas agrárias do oeste do Pará e sem formalização junto a
nenhuma instituição ou universidade, a realização de uma atividade de pesquisa ou
extensão universitária no PART que possibilitasse a formação política das
lideranças, dos assentados e ocupantes acerca de seus direitos e que,
principalmente, resultasse na elaboração de trabalhos científicos que
fundamentassem suas denúncias e sua luta junto aos órgãos públicos.
Após se inteirar sobre os processos em curso no PART e realizar debates
sobre as questões nos quais as famílias do assentamento estavam envolvidas, um
grupo formado por quatro pesquisadores, entre eles a discente e sob a coordenação
do pesquisador Maurício Torres se deslocou, em julho de 2011, até a área do
assentamento onde foi realizado a coleta de dados in loco sob a situação
ocupacional, social e econômica do PART. As pesquisas realizadas culminaram com
a elaboração de um relatório11 que foi protocolado no Ministério Público Federal –
Procuradoria da República de Santarém.
A experiência de conviver com as famílias do PART, de ouvir as suas
demandas e sonhos, de se inteirar sobre as trajetórias de luta das famílias do
assentamento, as esperanças, as formas de resistência e as pressões e
cerceamentos pelos quais estas famílias são submetidas diariamente foi
determinante para a escolha do tema deste trabalho, mas não condicionante da
pesquisa da autora, haja vista que o trabalho realizado no PART não foi o objeto e
nem a finalidade e sim o meio de coleta de dados.
É importante ressaltar, também, que a utilização dos dados durante estes
trabalhos de campo contam com a devida vênia do coordenador da pesquisa. Frise-
se, então, que o presente trabalho não se resume a um relatório das atividades da
pesquisa realizada no PART, porém, essa é aqui citada em função de utilizar-se
agora dados de campo coletados durante suas atividades.
11
TORRES, Mauricio; SANTOS, Kerlley Diane dos; NEPOMUCENO; Ítala; CUNHA, Cândido Neto da; SILVA; Elineuza Alves da. A luta por reconhecimento em um assentamento na Amazônia: relatório resultante de estudo sobre a situação ocupacional, social e econômica do Projeto de Assentamento Rio Trairão – Uruará-PA. Santarém, 2012. [Apensado ao Procedimento Administrativo n. 1.23.02.00023/2011-60, do Ministério Público Federal, na Procuradoria da República no município de Santarém].
20
Para além da aplicação dos questionários socioeconômicos, do
levantamento da situação ocupacional dos lotes e do georreferenciamento das áreas
que eram objetivos da pesquisa maior, buscou-se registrar depoimentos por meio de
gravações de áudios e anotar no caderno de campo conversas informais sobre o
modo e os meios de vida da população e detalhes da percepção que estas famílias
têm do espaço que as cercam. A anotação dessas sutilezas foi extremamente
importante para a elaboração do presente trabalho
Cabe destacar, ainda que sinteticamente, o papel da pesquisadora no grupo.
Já nos alertava Alba Zaluar12 que o pesquisador jamais deve valer-se do ardil de
―virar nativo‖ com saída mais rápida para conquistar um lugar no grupo. Essa opção
em nada auxilia no desenvolvimento dos trabalhos de campo, mas apenas torna
suportável a presença do pesquisador na comunidade, situação que compromete a
percepção das especificidades da comunidade. Nos trabalhos no PART, jamais se
tentou qualquer espécie de encenação que refletisse uma tentativa de se tornar um
deles.
As famílias já haviam tido contato com pesquisas anteriores. Sobre essas
pesquisas os assentados sempre eram categóricos em afirmar que os grupos
passavam por ali, realizavam seus trabalhos e nunca mais retornavam ao PART.
Assim, as famílias sempre reforçavam aquelas histórias de ―promessas‖ nunca
cumpridas feitas tanto por grupos, como pelos agentes do governo que passaram
por ali, anteriormente. Em uma comunidade onde promessas são um sinal de
engodo, o cuidado com o que se fala e como se age é importante. Logo, desde o
início tomou-se o cuidado de nada promoter e de explicitar que o objetivo era
conhecer e levantar dados sobre a realidade do assentamento e elaborar trabalhos
técnicos e científicos com base nesses dados levantados.
Para além disso, tomou-se o cuidado de notar como a comunidade via a
pesquisadora, para que se pudesse compreender a suas falas e os seus silêncios.
Tal percepção é tão importante quanto à de associar a fala ao contexto no qual
essas famílias se encontram inserida. A importância da referida percepção é
ressaltada por Zaluar13 que afirma que é essa percepção de como o pesquisador é
visto pelo grupo é vital para que não se caia no ―conto nativo‖ que ao invés de contar
12
ZALUAR, Alba. ―Teoria e prática do trabalho de campo: alguns problemas‖. In: CARDOSO, Ruth C. L. (Org.). Aventura Antropológica. São Paulo: Paz e Terra, 1986, p. 111. 13
ZALUAR, Alba. Teoria e prática do trabalho de campo: alguns problemas. In: CARDOSO, Ruth C. L. (Org.). Aventura Antropológica. São Paulo: Paz e Terra, 1986, p. 119.
21
fatos sobre a sua vivência e realidade, se põe a narrar aquilo que o pesquisador
quer ouvir ou, ainda, aquilo que ele acredita que deve ser dito para o pesquisador.
Não há dúvida que trabalhos como o realizado no PART fortaleceu o
compromisso e levou a autora a estabelecer uma relação de empatia com a
comunidade, em nada comparada a noção de distância e neutralidade dos
tradicionais preceitos da cientificidade clássica que asseveram a necessidade de
nos afastar desse ―contato‖, pois, caso contrário, estaríamos contaminados por
emoções que ofuscariam a objetividade cientifica do trabalho.14 Entretanto, entende-
se, que esse comprometimento com a comunidade não significa a perda da
objetividade do trabalho, mas é uma atitude necessária frente as situação
conflituosas em que as famílias do PART estão envolvidas:
[...] o conceito mesmo de objetividade e rigor científicos devem ser redefinidos e aperfeiçoados. Diante de uma realidade marcada por relações de dominação e de privilégio entre pessoas e grupos sociais, objetividade não pode ser mais sinônimo de comprometimento e de imparcialidade sob pena de se transformar em cinismo e insensibilidade.
15
Não era razoável usar as vestes da neutralidade frente às situações de
conflito que volta e outra às famílias do PART se veem expostas. ―Numa situação de
conflito, essa pretensa neutralidade bloqueia acesso aos dados mais importantes,
ciosamente guardados por aqueles que constituem os protagonistas das ocorrências
e acontecimentos‖.16 O ato de se decidir para qual lado se carregaria os sacos de
areia não implicou a perda da objetividade e criticidade. Ao contrário, como afirma
Martins, ―a opção pela clareza e definição da presença ainda que temporária no
grupo local, ao revelar detalhes da situação e dos acontecimentos que de outro
modo ficariam ocultos, expõe também, indiretamente, as ocultações do outro lado‖.17
O comprometimento com a comunidade estudada não impediu a autora de utilizar
criticamente os instrumentos teóricos dos quais dispunha e analisar de forma
rigorosa a história das famílias do assentamento.
14
BALTZ, Ricardo. A implicação um novo sedimento ase explorar na geografia. In: Boletim Paulista de Geografia. São Paulo: Associação dos Geógrafos Brasileiros, 2006, p.28. 15
OLIVEIRA, 1988, p. 26 apud MARCOS, Valéria de. Trabalho de campo em geografia: reflexões sobre uma experiência de pesquisa. In: Boletim Paulista de Geografia. São Paulo: Associação dos Geógrafos Brasileiros, 2006, p. 113. 16
MARTINS, José de Souza. Fronteiras: a degradação do outro nos confins do humano. p. 19. 17
Ibidem. p. 21.
22
A opção pelas famílias do PART se deu em função de se acreditar que o
conhecimento produzido na universidade só se justifica se comprometido com a
sociedade e com as demandas sociais.18 Entende-se, que a pesquisa e a busca pela
compreensão da realidade vivenciada pelos assentados do Projeto de
Assentamento Rio Trairão, é importante não apenas para a qualificação individual e
atuação técnica, mas também porque os trabalhos oriundos desta são um apoio às
lutas acampadas pelas famílias do assentamento em busca do reconhecimento de
seus direitos.
Tal dedicação do acadêmico do Direito a compreensão dos processos e
especificidades que envolvem a questão agrária regional é importante para a
formação de profissionais abertos a percepção das reivindicações campesinas e
conscientes das distorções fundiárias que estão no cerne dos conflitos e das razões
que obstruem a Reforma Agrária.
Compartilha-se da ideia de Luis Alberto Warat, para quem os juristas devem
ser sensíveis as pessoas que estão envolvidas nos conflitos sociais, cientes da
necessidade de rompimento das barreiras da neutralidade sobre as quais se fundam
o imaginário dos juristas e ter o sentidos acurados não apenas às leis, mas
sobretudo à vida e aos afetos das populações sobre as quais estas recaem.19
A presente monografia está divida em seis capítulos, sendo que o primeiro e
o sexto correspondem, respectivamente a introdução e as considerações finais.
O segundo capítulo apresenta a categoria analítica utilizada para a
caracterização das famílias envolvidas na dinâmica social do Projeto de
Assentamento rio Trairão, destacando os limites conceituais utilizados para a
identificação do grupo social estudado, enquanto camponeses.
O terceiro capítulo destaca os processos sociopolíticos e o aparato jurídico
que mais diretamente respondem pelo que o espaço no qual a população estudada
está inserida. O ponto de partida é a década de 1960 e as ações intervencionistas
que pautaram as políticas adotadas pela ditadura militar para Amazônia e estende-
se até a década de 2000, com a questão dos assentamentos fantasmas. A
18
BUARQUE, Cristovam. A aventura da universidade. São Paulo: Editora da UNESP; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 167. 19
Cf. WARAT, Luis Alberto. ―Direito, sujeito e subjetividade: para uma cartografia das ilusões‖. In: Captura Críptica: direito política, atualidade. Revista Discente do Curso de Pós-Graduação em Direito. n.2., v.2. (jan/jun. 2010). Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2010; WARAT, Luis Alberto. A ciência jurídica e seus dois maridos. Santa Cruz do Sul: Faculdades Integradas de Santa Cruz do Sul, 1985.
23
percepção dessas políticas, ações e modificações induzidas pelos governos na
Amazônia durante os últimos anos é imprescindível para a compreensão das
trajetórias de luta pela terra e por reconhecimento das famílias camponesas que se
instalaram na área alcançada pelo PART.
O quarto capítulo se dedica a trajetória da ocupação camponesa na área
hoje compreendida pelo PART: a entrada na terra, as dificuldades enfrentadas, a
criação do assentamento, o surgimento das comunidades. O capítulo constrói-se
essencialmente através das memórias expressa pelos assentados e ocupantes que,
mais que lembranças nostálgicas, são reveladoras das experiências, das
fragilidades, dos sonhos, dos ganhos e perdas ocorridas no decorrer dos anos. A
percepção desta trajetória é indispensável para a caracterização das famílias como
potenciais beneficiários da reforma agrária.
No quinto capítulo se destaca as características das famílias que ocupam
irregularmente o assentamento, mas que possuem características que nos permitem
apresentá-las como um público em potencial da reforma agrária. Para a construção
desse capítulo faz-se, inicialmente, uma abordagem sintética das definições de
figuras jurídicas importantes para a compreensão da figura do beneficiário da
reforma agrária, como a de reforma agrária, propriedade familiar, projeto de
assentamento. Posteriormente, apresenta as características das famílias que nos
permitem aproximar o perfil destas últimas a figura jurídica do beneficiário da
reforma agrária.
24
2 CAMPESINATO: um conceito complexo
Para a caracterização das famílias envolvidas na dinâmica social do Projeto
de Assentamento Rio Trairão utilizou-se, no âmbito deste trabalho, o campesinato
como categoria analítica. Não é intenção adentrar na ampla discussão teórica
acerca do referido termo, mas apresentar os limites conceituais utilizados para a
identificação do grupo social estudado, enquanto camponeses.
É difícil apontar uma definição do termo camponês, haja vista o universo de
conceitos e teorias relacionados à existência campesina e do conjunto diversificado
de sujeitos sociais que esta categoria comporta. Interpretado e apresentado de
diversas maneiras ao longo de sua marcha histórica, os camponeses já foram desde
classe bárbara, a objeto de teorias que anunciaram o seu fim 20. Várias são as
palavras utilizadas para designar o camponês, bem como as por eles utilizadas para
se autodenominarem. Essas diversas designações, normalmente, estão
historicamente imbuídas de uma visão depreciativa do modo de vida desses sujeitos
e reforçam a ideia da subalternidade campesina:
Desde remotas sociedades, textos literários, religiosos e políticos expressam o modo depreciativo pelo qual o poder visualiza esses anônimos sustentáculos dos banquetes e das guerras. Em Roma paganus, [...]. Na Alemanha do século XIII a Declinatio rustica tinha seis declinações diferentes para a palavra camponês: vilão, rústico, demônio, ladrão, bandido e saqueador.
21
Algumas categorias utilizadas pelos próprios camponeses para sua própria
definição podem em determinados casos indicar a aceitação de uma visão
depreciativa acerca de seu modo de vida, em contraposição ao do grande
proprietário de terra, aos agentes estatais ou mesmo a população urbana.
Entretanto, no momento em que os camponeses passam a se identificar
socialmente, deixam de recorrer a designações que ressaltam condições
subalternas ou humilhantes e passam a utilizar termos que reforcem o seu lugar
social e as suas lutas.22
20
MOURA, Margarida Maria. Camponeses. São Paulo: Ática, 1986. 21
Ibidem, p.15. 22
MOURA, Margarida Maria. Camponeses. São Paulo: Ática, 1986, p. 14-15.
25
No Brasil, como afirma José de Sousa Martins23, os vocábulos ―camponês‖,
―campesinato‖ e ―latifundiário‖ são relativamente recentes. Passaram a ser utilizados
mais amplamente, por volta dos anos 1950, não apenas para substituir termos
regionais pejorativos como caboclo, caipira e as diversas designações dadas em
cada região aos possuidores e pequenos proprietários de terra, mas para dar conta
das diversas reinvindicações por terra e bandeiras de lutas levantadas pelos
camponeses e que irromperam, no referido período, em diversas localidades do país
e alcançaram repercussão nacional.
Dentro deste contexto de lutas e debates políticos, as expressões
campesinato e latifundiário passam a ser utilizadas como ―palavras políticas‖ e
assumem uma função inédita que vai além da identificação social e configura uma
tentativa de representar a unidade dos camponeses enquanto ―classe‖ e das lutas
por ele perpetradas. São expressões que vão além da designação do espaço
geográfico ocupado por esses grupos sociais e estão profundamente ligadas ao
lugar social desses sujeitos na estrutura da sociedade na qual estão inseridos, bem
como estão associadas à identificação de um destino histórico.24
Sendo um conceito de grande vitalidade teórica e empírica e de notável força
dentro da história, a opção por uma ou outra definição de campesinato não é uma
tarefa simples 25 . No Brasil, os estudos voltados para o campesinato foram
profundamente marcados pela adoção de uma linha de pensamento que ressaltava
a interpretação do campesinato a partir da compreensão da família camponesa
como uma unidade econômica. Dentro deste viés de compreensão, apoiados
principalmente pelos estudos de Alexander Chayanov, o núcleo familiar camponês é
apresentado como um grupo doméstico marcado pelo balanço entre produção e
consumo. Assim, Klaas Woortmann afirma ser:
[...] inegável que durante o século XX, ou boa parte dele, não só economistas, mas também sociólogos e antropólogos, voltados para o entendimento da produção e da reprodução social camponesa, inclusive no Brasil, incorporaram em suas reflexões os princípios elaborados por Chayanov em seu esforço para desvendar a lógica da economia camponesa. Com base numa série de levantamentos estatísticos realizados na Rússia desde
23
MARTINS, José de Sousa. Os camponeses e a política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político. Petrópolis: Vozes, 1981. 24
Ibidem, p. 22s. 25
MOURA, Margarida Maria. Op. Cit. São Paulo: Ática, 1986, p. 13.
26
1870, Chayanov formulou sua teoria da especificidade da economia camponesa. Haveria como que um "modo de produção doméstico", distinto do escravismo, feudalismo e capitalismo. Seu modelo partia do grupo doméstico individual, cujo objetivo básico seria garantir a satisfação de suas necessidades, e não a realização do lucro, razão pela qual o campesinato não deveria ser considerado como uma forma de capitalismo incipiente. O núcleo de sua teoria está no princípio subjetivo do equilíbrio entre necessidades de subsistência e a rejeição do trabalho manual além de determinado limite, isto é, de sua desutilidade [...]
26.
Apesar da grande contribuição de Chayanov, é impossível deixar de notar
que seus estudos não abordam um ponto essencial para a compreensão do
campesinato: o universo cultural do camponês. Consequentemente, tem-se a ampla
difusão de um viés de pensamento que se fundamenta em noções deterministas
acerca da condição e da existência camponesa e reforça o entendimento de
campesinato enquanto sinônimo de atraso, fragilidade política, ineficiência técnico-
politica e mote de uma morte constantemente anunciada e adiada.
Repleto de conteúdos culturais, tanto no plano social, como no político, não
é possível restringir o conceito de camponês à mera materialidade econômica da
troca de mercadorias ou apenas a um pequeno produtor. O referido conceito sugere
características de uma determinada organização social, do modo de vida, tais como
o comportamento político, costumes de herança, tradições de herança e o trabalho
famíliar27 e impõe uma compreensão mais ampla desse universo cultural, político,
econômico e social no qual o camponês produz e se reproduz. Assim, para a
compreensão da construção história e social do campesinato é necessário romper
com a primazia do econômico e privilegiar os aspectos ligados à cultura.28
2.1 AS ABORADAGENS DA AGRICULTURA CAMPONESA
Ao tratar das abordagens teóricas relacionadas à agricultura camponesa a
partir do processo de generalização do modo de produção capitalista, o geógrafo
Ariovaldo Umbelino de Oliveira, em seu livro Modo de Produção Capitalista,
26
WORTMANN, Klass. “O Modo de Produção Doméstico em duas perspectivas‖: Chayanov e Sahlins. In: Anuário Antropológico. Brasília: UnB, 2001, p . 27
MOURA, Margarida Maria. Camponeses. São Paulo: Ática, 1986, p.69. 28
WELCH, Cliford A. et al. (Orgs). Camponeses Brasileiros. São Paulo: Unesp, 2009.
27
Agricultura e Reforma Agrária,29 aponta três vertentes teóricas utilizadas para a
compreensão da agricultura camponesa e do modo de produção camponês: a da
destruição do campesinato, a da permanência de resquícios feudais e a da criação e
recriação do campesinato.
2.1.1 A DESTRUIÇÃO DO CAMPESINATO
A primeira vertente apresentada compreende as transformações no campo
como resultado do processo de generalização das relações de produção capitalistas,
bem como interpreta a persistência de relações não-capitalistas de produção neste
meio, como um resíduo cuja a extinção no plano econômico é inevitável. 30 A
generalização das relações de produção capitalistas no campo se daria por dois
caminhos: um, produto da destruição do campesinato e o outro, fruto da
modernização do latifúndio.
No primeiro caminho, a destruição do campesinato seria provocada pelo
processo diferenciação interna dos camponeses, acarretado pelas contradições
advindas da integração do campesinato no mercado capitalista. Assim:
[...] o camponês, ao produzir cada vez mais para o mercado, tornar-se-ia vítima ou fruto desse processo [de integração do camponês ao mercado capitalista], pois ficaria sujeito às crises decorrentes das elevadas taxas de juros (para poder ter acesso à mecanização, por exemplo) e aos baixos preços que os produtos agrícolas alcançam no momento das colheitas fartas.
31
O fruto do referido processo de inserção dos camponeses no mercado
capitalista seria surgimento de duas distintas classes sociais no campo: a dos
camponeses ricos, formada por pequenos capitalistas rurais, e a dos camponeses
pobres, que durante o processo seriam reduzidos à condição de trabalhadores
assalariados a serviço do capital industrial ou agrário.
O segundo caminho seria marcado pela modernização da agricultura, por
meio da ―introdução no processo produtivo de máquinas e insumos modernos, o que
29
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Modo de Produção Capitalista, Agricultura e Reforma Agrária. São Paulo: FFLCH/Labur Edições, 2007, p. 08-12. 30
Ibidem, p. 9. 31
Ibidem, p. 9.
28
permitiria a evolução das grandes propriedades para empresas rurais capitalistas.
Assim, os grandes proprietários de terra tornar-se-iam capitalistas do campo‖. Dentro
deste cenário, os interesses de camponeses ricos e dos grandes capitalistas do
campo estariam unificados e os camponeses pobres seriam transformados em
trabalhadores assalariados a serviço do capital agrário ou industrial.32
Em ambos os caminhos, o modo capitalista de produção se implantaria no
campo, tal como se implantou na indústria. A referida implantação não alteraria
profundamente a estrutura social existente, de modo que se estabeleceria no campo
a mesma divisão de classes existentes na cidade. Nessa linha de pensamento,
camponeses e latifundiários não são considerados classes sociais pertencentes ao
capitalismo e o seu modo de produzir 33 , mas resíduos condenados ao
desaparecimento através da sua incorporação ao capitalismo.
2.1.2 RESQUÍCIOS DAS RELAÇÕES E DO MODO DE PRODUÇÃO FEUDAL
A segunda vertente apresenta o campesinato e os latifundiários como
evidências da sobrevivência das relações feudais de produção34. Nesta corrente,
parte-se do principio da penetração das relações capitalistas no campo e na crença
da existência de uma dualidade entre a cidade, enquanto setor urbano industrial
capitalista e o campo, enquanto setor pré-capitalista marcado pelo atraso e por
resquícios feudais.
Nesse viés de pensamento, o rompimento das estruturas políticas
tradicionais de dominação e ―coerção extra-econômica‖ que marcavam as relações
feudais, possibilitaria a penetração das relações de produção capitalista no campo e
desencadearia um ―processo de separação fundamental‖ na produção camponesa
cujo resultado seria a extinção do campesinato.35 O referido processo se daria em
três etapas:
32
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Modo de Produção Capitalista, Agricultura e Reforma Agrária. São Paulo: FFLCH/Labur Edições, 2007, p. 9. 33
Segundo Oliveira (2007, p.20) Entende-se por modo de produção capitalista, o processo contraditório de reprodução ampliada do capital que pressupõe a criação de relações não-capitalistas de produção dentro do capitalismo, ―uma vez que o capital, ao reproduzir-se, reproduz também de forma ampliada as suas contradições. 34
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Op. Cit., p. 10.
29
Na primeira fase, se promoveria a liberação do camponês da hierarquia
tradicional e dos vínculos comunitários aos quais era submetido, tornando-o o
camponês um ―produtor individual‖. 36 A segunda etapa seria marcada pela
separação entre a indústria rural e a agricultura e a incorporação do camponês
(produtor individual) a agricultura de mercado, como produtor de bens agropecuários
e consumidor de mercadorias industrializadas.
A consequência dessa inserção do camponês, enquanto produtor individual,
na economia de mercado seria o seu endividamento, haja vista a contraposição
entre os baixos valores auferidos na venda dos produtos por eles produzidos, e os
altos cultos do consumo de bens industrializados. O crescente endividamento do
camponês conduziria a uma terceira etapa, marcada pela perda do seu meio de
produção, a propriedade, em decorrência da não satisfação de suas dívidas e pela
proletarização do camponês.37
2.1.3 A CRIAÇÃO E RECRIAÇÃO DO CAMPESINATO NO CAPITALISMO
Para este viés teórico, o processo de generalização do modo de produção
capitalista no campo se dá de forma contraditória. O avanço do modo de produzir do
capital não seria apenas resultado de relações especificamente capitalistas, mas
também de relações não-capitalistas necessárias à reprodução deste, ou seja, o
capitalismo cria e recria formas não-capitalistas de produção contraditoriamente
necessárias à sua expansão como, por exemplo, o campesinato38.
Assim, a expansão capitalista no campo provocaria não somente a
expropriação do camponês, como também engendraria condições para a
reprodução do campesinato e da manutenção do seu modo de trabalho. Tal situação
é possível, porquanto, dentro do desenvolvimento contraditório do capitalismo,
normalmente, a sujeição do camponês não está diretamente relacionada à
subordinação do seu trabalho, mas, da sua produção.
36
OLIVEIRA, Ariovaldo U. de. Modo de Produção Capitalista, Agricultura e Reforma Agrária. São Paulo: FFLCH/Labur Edições, 2007, p.10. 37
Ibidem, p. 10. 38
Ibidem, p. 11.
30
[...] presença significativa de camponeses na agricultura dos países capitalistas é pela via de que tais relações não-capitalistas são produto do próprio desenvolvimento contraditório do capital. A expansão do modo capitalista de produção, além de redefinir antigas relações, subordinando-as à sua produção, engendra relações não-capitalistas igual e contraditoriamente necessárias à sua reprodução.
39
Neste caso, o que se tem é um processo de sujeição da renda da terra ao
capital, por meio da qual, ao mesmo tempo, se especula a terra e se subordina a
produção camponesa. Sobre o assunto Oliveira afirma que a:
Na agricultura, esse processo de subordinação das relações não-capitalistas de produção se dá sobretudo, pela sujeição da renda da terra ao capital. O capital redefiniu a renda da terra pré-capitalista existente na agricultura. Ele agora apropria-se dela, transformando-a em renda capitalizada da terra. É neste contexto que se deve entender a produção camponesa: a renda camponesa é apropriada pelo capital monopolista, convertendo-se em capital.
40
Para a caracterização do grupo social estudado, adotamos essa vertente
teórica, que concebe o camponês como integrante do próprio processo de
desenvolvimento do modo de produção capitalista. Partilhamos da opinião de
autores como Ariovaldo Umbelino de Oliveira e José de Souza Martins, para os
quais a expansão do capitalismo no campo, ao mesmo tempo, expropria e,
contraditoriamente, promove condições para a permanência e reprodução do
campesinato no seu interior. Assim:
[...] a abertura de novas frentes de ocupação na Amazônia traz consigo o caráter contraditório da formação da estrutura fundiária brasileira. Ou seja, o processo que leva os grandes capitalistas investirem na fronteira, contém o seu contrário, a necessária abertura dessa fronteira aos camponeses e demais trabalhadores do campo
41.
39
OLIVEIRA, Ariovaldo U. de. Modo de Produção Capitalista, Agricultura e Reforma Agrária. São Paulo: FFLCH/Labur Edições, 200, p. 40. 40
Ibidem, p. 40. 41
OLIVEIRA. Ariovaldo U. de. ―BR-163 Cuiabá-Santarém: Geopolítica, grilagem, violência e mundialização‖. In TORRES, Mauricio. Amazônia Revelada: os descaminhos ao longo da BR-163. Brasília: CNPQ, 2005, p. 68.
31
A abertura de estradas, a propaganda estatal que enfatizava a abundância
das terras livres na Amazônia e a inexistência de pessoas ocupando-as levou a
migração para a região de pessoas vindas de diversos cantos, principalmente, do
Nordeste. Como se verá no Capítulo 3, a população que empreendeu a ocupação da
área hoje compreendida pelo Projeto de Assentamento Rio Trairão formou-se no
bojo destas transformações acarretadas pela expansão capitalista na Amazônia.
No entanto, a conceituação social da população do PART como camponesa
não está baseada apenas na linha de pensamento que destaca a criação e recriação
do campesinato no interior das relações capitalistas, mas também se baseia no
pensamento de autores que dedicaram ao estudo do universo cultural, das relações
de sociabilidade, as lógicas familiares e de trabalho do camponês, como Klass e
Ellen Woortmann42.
42
WOORTMANN, Ellen F.. Herdeiros, Parentes e Compadres. São Paulo: Hucitec, 1995.
32
3 CAMPONESES E CAPITALISTAS NOS DESCAMINHOS DA
AMAZÔNIA
Para a compreensão de um assentamento rural e dos sujeitos sociais nele
envolvido é necessário situá-los no contexto sociopolítico nos quais estão inseridos.
Esse contexto, normalmente, encontra-se consubstanciado em processos anteriores
ao ato de criação do assentamento, principalmente aqueles relacionados às políticas
de colonização.43
Assim, a compreensão do que hoje é o Projeto de Assentamento Rio Trairão
(PART) passa necessariamente pela percepção da ocupação camponesa que está
na sua gênese e essa última só tem sentido se consideradas as transformações
mais recentes pelas quais a Amazônia passou, especialmente a partir da década de
1960, com o advento das ações e políticas perpetradas pelos governos militares.
A percepção dessas ações e modificações induzidas pelos governos na
Amazônia durante os últimos anos é imprescindível para a compreensão das
trajetórias de luta pela terra e por reconhecimento dos camponeses que se
instalaram na região. No PART, o paralelo entre essas ações é perceptível nas
próprias narrativas das famílias que chegaram na década de 1980 na área onde
anos mais tarde o assentamento seria criado.
Delas assomam, praticamente, todos os momentos das ações que pautaram
a política de assentamento no Polígono Desapropriado de Altamira. Das políticas
que caracterizaram o Plano de Integração Nacional ao recente escândalo da criação
em massa dos chamados ―assentamentos fantasmas‖. Todos estes momentos de
alguma forma se ligam a história da região onde o assentamento foi implantado ou a
trajetória social dos moradores do Projeto de Assentamento Rio Trairão.
Cabe então, ainda que brevemente, esboçar no presente capítulo, as linhas
pelas quais se pautaram as ações governamentais na região amazônica e que mais
diretamente responde pelo que é o Projeto de Assentamento Rio Trairão. O ponto de
partida é a década de 1970 e as ações intervencionistas que pautaram a ditadura
militar, implantada no Brasil em 1964. Como se verá estas políticas possibilitaram a
expansão do grande capital, mas também a recriação de trajetórias camponesas.
43
BRENNEISEN, Eliane. Da luta pela terra a luta pela vida: entre os fragmentos do presente e as perspectivas do futuro. São Paulo: Annablume, 2004, p. 19.
33
3.1 1964: um requiem à reforma agrária
No dia 19 de março de 1964, uma multidão de pessoas de ―boa família‖ sai
às ruas de São Paulo para engrossar as fileiras da ―Marcha da Família com Deus
Pela Liberdade‖. Os manifestantes reivindicavam a intervenção no processo político
em curso no país e a derrubada do governo constitucional do Presidente João
Goulart.44 Embalada por bandas de música, a multidão ―orava‖ pelo país e repudiava
a qualquer tentativa de afronta a Constituição e aos princípios, garantias e
prerrogativas democráticas que viessem a ser perpetrados pelo governo federal.45 O
clima passeata que tomou as ruas e finalizou na frente da Catedral Metropolitana,
também saltava das páginas dos jornais da época:
A disposição de São Paulo e de todos os recantos da pátria para defender a Constituição e os princípios democráticos (...) originou ontem o maior movimento cívico já observado em nosso Estado (...) numa mobilização que envolveu meio milhão de homens, mulheres e jovens, também de outros Estados: ―A Marcha da Família com Deus pela Liberdade‖. (...) Foi a maior manifestação já vista em nosso Estado. O repúdio a qualquer tentativa de ultraje a Constituição Brasileira e a defesa dos princípios, garantias e prerrogativas democráticas constituíram a tonica de todos os discursos e mensagens dirigidos das escadarias da catedral aos brasileiros, no final da passeata.
46
Organizada na Sociedade Rural Brasileira, entidade aglutinadora dos
grandes fazendeiros paulistas alijados do poder desde a Revolução de 1930, e
articulada pelo Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES), ente comandado por
um Estado civil-militar, a marcha em nada correspondia aos anseios espirituais e de
liberdade invocados em seu nome. O que, realmente, os alarmava e os motivava ao
combate era o avanço das pressões populares em favor das reformas de base, que
incluíam a reforma agrária47 e as ações governamentais que feriam os interesses de
grupos internacionais que buscavam o monopólio de exploração dos recursos
44
DREIFUSS, René Armand. 1964: A conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 297-298 apud MARTINS, José de Souza. A militarização da Questão Agrária. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 28-29 45
FOLHA DE SÃO PAULO, sexta-feira, 20 de março de 1964. São Paulo parou ontem para defender o regime. Disponível em: http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil_20mar1964.htm. Acessado em: 10 de abril de 2012. 46
Ibidem. 47
DREIFUSS, René Armand. 1964: A conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 297-298 apud MARTINS, José de Souza. Op. Cit., p. 28-29.
34
minerais do país48. Por trás da invocação da família, de Deus e da Liberdade,
escondiam-se os interesses terrenos e materiais dos grandes proprietários de terras,
negociantes, banqueiros e industriais, nacionais e estrangeiros.49 Esses interesses
estavam, aparentemente, ameaçados pelas políticas e atitudes tomadas pelo então
Presidente da República, apesar deste, também, ser um grande proprietário de
terras.
Segundo José de Souza Martins, no dia anterior a Marcha, o Diário Oficial
da União, publicara o decreto assinado por João Goulart em praça pública, durante o
Comício da Guanabara, realizado no dia 13 de março de 1964, no Rio de Janeiro,
em favor das reformas de base. O Decreto Presidencial n° 53.700/1964, declarava
de interesse social, para fim de desapropriação, os dez quilômetros de faixas de
terra que ladeavam rodovias federais, ferrovias nacionais e terras beneficiadas por
obras da União e que estivessem inexploradas ou exploradas de forma contrária a
função social da propriedade. Antes deste decreto, sempre invocado para justificar o
início do golpe militar de 1964, já havia assinado outros atos presidenciais mais
importantes relacionados à questão agrária.50
Dois anos antes, o Congresso Nacional aprovara o Decreto n° 4.132/1962
que definia os casos ensejadores de desapropriação por interesse social,
regulamentando o Artigo 147, da Constituição Federal de 1946. Embora, ainda,
existissem os empecilhos constitucionais relacionados à indenização ―prévia, justa e
em dinheiro‖, estavam entreabertas as portas para a reforma agrária. Em abril de
1963 foram decretadas as primeiras desapropriações no estado do Rio de Janeiro e,
posteriormente, outras formam decretadas no mesmo estado, em Goiás, em Minas
Gerais e no Nordeste.51
Parecia chegada a hora da reforma agrária se tornar realidade. Os
caminhos, no entanto, foram outros. Em 31 de março de 1964, as Forças Armadas
se sublevam contra o governo federal e deflagram um golpe de Estado. João Goulart
é deposto e a ditadura militar é implantada no país. Instaurava-se um período de
chumbo, marcado por repressões em diversas escalas. No campo, mas que
48
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Integrar para não entregar: políticas públicas e Amazônia. Papirus: Campinas, 1988. 49
MARTINS, José de Souza. A militarização da Questão Agrária. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 29 50
Ibidem, p. 29 51
Ibidem, p. 29
35
arbítrios, os governos militares, apoiados em um simulacro de reforma agrária,
limparam a terra para a implantação do grande capital.
Um dos primeiros atos de governo do ditador Marechal Humberto de Alencar
Castello Branco foi liquidar o projeto de reforma agrária do presidente destituído,
revogando boa parte dos decretos assinados por Goulart. Sete meses após a
revogação dos referidos decretos, Castello Branco encaminhou ao Congresso
Nacional proposta de emenda a Constituição. Tratava-se da Emenda Constitucional
n° 10, de 09 de novembro de 1964, que modificava o texto da alínea ―a‖, do Art. 5°,
incluindo entre as competências de legislar da União as matérias de Direito Agrário,
bem como acrescentava ao Art. 147, entre outros, os seguintes parágrafos:
§ 1º Para os fins previstos neste artigo, a União poderá promover desapropriação da propriedade territorial rural, mediante pagamento da prévia e justa indenização em títulos especiais da dívida pública, com cláusula de exata correção monetária, segundo índices fixados pelo Conselho Nacional de Economia, resgatáveis no prazo máximo de vinte anos, em parcelas anuais sucessivas, assegurada a sua aceitação a qualquer tempo, como meio de pagamento de até cinqüenta por cento do Impôsto Territorial Rural e como pagamento do preço de terras públicas. [...] § 5º Os planos que envolvem desapropriação para fins de reforma agrária serão aprovados por decreto do Poder Executivo, e sua execução será da competência de órgãos colegiados, constituídos por brasileiros de notável saber e idoneidade, nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a indicação pelo Senado Federal.
52
A efetividade da Emenda n° 10/1964, fez-se sentir rapidamente com a
aprovação, pelo Congresso, da Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964, conhecida
como o Estatuto da Terra e um dos principais sustentáculos jurídicos utilizados pelos
militares para a intervenção na estrutura fundiária do país. Na gênese do Estatuto da
Terra estavam pressões sociais, mas, sobretudo a norte-americana para a
realização da reforma agrária.
O estrategista militar e economista norte-americano Walt Rostow, alguns meses após o golpe disse em palestra a grandes empresários de São Paulo que a reforma agrária iria ―integrar a imensa população rural ao
52
BRASIL. Emenda Constitucional n° 10/1964. In Coletânea de legislação e jurisprudência agrária e correlata. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário, Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2007, p. 34/35.
36
mercado e encorajar o desenvolvimento industrial‖.53
Depois da Segunda Guerra Mundial, a Coréia do Sul e o Japão, guiados pelos Estados Unidos, tiveram um grande crescimento industrial graças a divisão das grandes propriedades de terra. Tudo levava a crer na mesma pressão sobre o Brasil.
54
Tecnicamente bem constituído e detalhado, o Estatuto estabeleceu as bases
da Reforma Agrária e da Política Agrícola, bem como uma série de outros institutos
jurídicos importantes para a concretização desta Reforma. O mais destacável destes
institutos é o da propriedade familiar apontada pela Lei como a forma precípua da
distribuição das terras desapropriadas para fim de reforma agrária.55 Aparentemente
o governo militar estava disposto a implementar a sonhada reforma agrária, mas a
finalidade era outra.
A realidade passava a mostrar que, uma vez desarticulada a organização popular dos trabalhadores, o Estado, através de sua estrutura burocrática, iria realizar a tão esperada reforma agrária. Ledo engano, pois foi o próprio Ministro do Planejamento do então governo militar, Roberto Campos, quem garantiria aos congressistas latifundiários que a lei era para ser aprovada, mas não para ser colocada em prática. A história dos 20 anos de governos militares mostrou que tudo não passou de ―uma farsa histórica‖, pois, apenas na década de 1980, foi que o governo elaborou o Plano Nacional da Reforma Agrária — instrumento definidor da política de implementação da reforma agrária.
56
A velocidade da aprovação e implementação de medidas legais e
administrativas voltadas para a questão agrária impressionava. Segundo José de
Souza Martins, antes do término de 1964, o governo federal já dispunha de uma
legislação fundiária específica e de critérios definidos, instrumentos e instituições
voltadas para concretização da reforma agrária. Aparentemente, Castello Branco
fora mais persuasivo que João Goulart no encaminhamento da questão junto ao
Congresso Nacional, haja vista que o último aprovou em um mês o que se recusara
a aprovar nos 18 anos precedentes. Já em 1969, o Marechal Arthur da Costa e Silva
53
MARTINS, José de Sousa. O poder do atraso: ensaios de sociologia da história lenta. São Paulo: Huitec, 1999, p.78 apud TORRES, Mauricio. ―Fronteira, um eco sem fim: Considerações sobre a ausência do Estado e a exclusão nos municípios paraenses do eixo da BR-163‖. In: TORRES, Mauricio. Amazônia Revelada: os descaminhos ao longo da BR-163. Brasília: CNPQ, p. 272. 54
TORRES, Mauricio. Op. Cit., p. 272. 55
BRASIL. Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. In: Coletânea de legislação e jurisprudência agrária e correlata. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário, Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2007, p. 127. 56
OLIVEIRA, Ariovaldo U. de. Modo de Produção Capitalista, Agricultura e Reforma Agrária. São Paulo: FFLCH/Labur Edições, 2007, p. 121.
37
suprimiria, através do Ato Institucional n. 9, a figura da indenização prévia que havia
sido mantida na Constituição de 1967. E em 1971, o General Emílio Garrastazu
Médici, colocaria sob tutela federal, para fins de colonização os 200 quilômetros que
ladeavam as rodovias federais construídas, em construção ou planejadas na
Amazônia Legal.57 Estas ações dos militares em relação à questão agrária soavam,
aparentemente, contraditórias, mas não eram.
Grandes tensões vinham varrendo o campo nos anos anteriores ao golpe
militar, principalmente no Nordeste e no Sul. O campo era sacudido pela atuação
das Ligas Camponesas. Sujeitos ao latifúndio armado do Nordeste, expropriados
pela crise do café, pelo avanço da industrialização, pela crescente mecanização do
campo e, até mesmo, pela construção de hidrelétricas no Sul, os camponeses
ansiavam por liberdade e reforma agrária e iam à luta pela terra. Fazia-se
necessário esvaziar esses pontos de tensão. No entanto, não era interesse dos
governos militares modificar a concentrada base agrária do país. Tornava-se,
imprescindível, aos militares a efetivação de uma política e reforma agrária que,
subsidiada por um aparato legal e administrativo, que se ajustasse aos interesses
em jogo e não se valesse da redistribuição de terras. Uma reforma agrária que
mantivesse o latifúndio intocável. É neste momento que ―os militares anunciam um
ambicioso projeto para ocupar a bacia amazônica. A reforma agrária do Sul e do
Nordeste seria feita... na Amazônia‖.58
3.2 OPERAÇÃO AMAZÔNIA
A partir da década de 1960, os governos militares, através de diversas ações
e políticas, começam a colocar em prática um amplo programa de integração
econômica da região amazônica. Firmado em bases suspostamente modernas e
baseados em uma avaliação que destacava a vulnerabilidade geopolítica e a
subutilização econômica da região, os governos militares decidiram ―ocupar‖ a
Amazônia, fomentando a implantação do grande capital nacional e estrangeiro. O
57
MARTINS, José de Souza. A militarização da questão agrária no Brasil. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 29/30. 58
TORRES, Mauricio. ―Fronteira, um eco sem fim: Considerações sobre a ausência do Estado e a exclusão nos municípios paraenses do eixo da BR-163‖. In: Amazônia Revelada: os descaminhos ao longo da BR-163. Brasília: CNPQ, 2005, p. 274.
38
conjunto das medidas governamentais que daí se seguiu ficou conhecido como
―Operação Amazônia‖.
A estratégia geopolítica de ocupação da região adotada pelo Estado
baseava-se na promoção de duas alianças fundamentais para a compreensão da
faceta que a questão agrária assumiria no país e, principalmente, na Amazônia. A
primeira soldava em nível interno os interesses do capital nacional e do capital
internacional. A segunda soldava em nível nacional os interesses dos empresários
industriais e os proprietários de terra, tornado o empresariado nacional e estrangeiro
latifundiários. 59 Assim, para atrair o empresário ―inovador‖ do Centro-Sul e do
exterior, o Estado, tomando para si o papel de promotor/indutor do crescimento
econômico, estabeleceu um ―modelo de desenvolvimento amazônico" que facilitou a
expansão capitalista na região e promoveu a alteração das dinâmicas sociais da
região.60
Para implementação de suas ações na região, os militares, nos primeiros
anos de governo, criaram um amplo aparato institucional e jurídico. Já em dezembro
de 1965, veio à luz um dos dispositivos basilares da estratégia do Estado autoritário:
a Emenda Constitucional n° 18. Tal Emenda, através do seu Artigo 27, estendeu ―à
Região Amazônica todos os incentivos fiscais, favores creditícios e demais
vantagens concedidas pela legislação à Região Nordeste do Brasil‖.61
Nove meses após, é sancionada a Lei n° 5.106, de 02 de setembro de 1966,
que instituiu a concessão de incentivos fiscais sobre empreendimentos florestais em
todo o país. O advento desses dispositivos abriu caminho para a sanção
presidencial, em 27 de outubro de 1966, da Lei n° 5.173, que criou da
Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e outros mecanismos
que visavam agilizar e operacionalizar a atuação da Superintendência, como o
Fundo para Investimentos Privados no Desenvolvimento da Amazônia (Fidam).
No mesmo dia, Castello Branco sancionou a Lei n° 5.174, que dispunha
sobre a concessão de incentivos fiscais em favor da Amazônia. A Lei destacava-se
pela extrema liberalidade com as pessoas jurídicas que viessem a desenvolver
59
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Integrar para não entregar. Campinas: Papirus, 1988, p. 34. 60
MONTEIRO, Maurílio de Abreu; COELHO, Maria Célia Nunes. ―As politicas federais e as reconfigurações espaciais na Amazônia‖. In: Novos Cadernos do NAEA. Belém: UFPA, 2004, p. 91-122. 61
BRASIL. Emenda Constitucional n° 18, de 01 de dezembro de 1965. Disponível em: http://www2.camara.gov.br/legin/fed/emecon/1960-1969/emendaconstitucional-18-1- dezembro-1965-363966-publicacaooriginal-1-pl.html. Acessado em: 02.maio.2012.
39
empreendimentos econômicos considerados de interesse ao desenvolvimento
regional na área de atuação da Sudam. Além de conceder a isenção de imposto de
renda e de taxas federais para as atividades industriais, agropecuárias e de serviços
básicos, a lei isentava do pagamento de impostos e taxas as máquinas e
equipamentos sem similares no mercado local que fossem importados e os bens
doados por entidades estrangeiras.
Nesse contexto, ainda, inseriram-se o I Plano Quinquenal de
Desenvolvimento operacionalizado de 1967 a 1971 e o Plano Diretor de 1968. Neles
se estabelecia, em suma, que caberia ao governo federal promover meios de
atração de capitais para a Amazônia, tarefa que seria implementada através do
fornecimento de infraestrutura, concessão de isenções fiscais e dos créditos
necessários para a implantação dos empreendimentos capitalistas na região. Assim,
estabelecia-se na Amazônia uma política de incentivos fiscais semelhante àquela
que vinha sendo promovida no Nordeste. Tal política facilitou a apropriação de terras
por grandes empresas e fazendeiros, o surgimento de grandes fazendas destinadas
a criação de gado, especialmente no Sul e no Sudeste do Pará e um processo de
apropriação fundiária voltado para a supressão de florestas e expansão de
pastagens que repercutiu nas dinâmicas sociais e ecológicas da região e promoveu
a concentração fundiária.62
Progressivamente, os conflitos fundiários que já ocorriam no Centro-Sul e no
Nordeste se estenderam à Amazônia. Especialmente com a criação da Sudam, o
governo estimulava a maciça ocupação da terra pelos grandes grupos econômicos,
em áreas que, anteriormente, haviam sido destinadas para o assentamento de
camponeses que haviam sido expropriados e expulsos pela concentração fundiária e
pelas transformações econômicas na agricultura e na agropecuária.63 Da adesão do
grande empresariado nacional e estrangeiro a Operação Amazônia nasceram os
processos de expropriação das terras dos indígenas, dos posseiros, da Amazônia
como um todo64 e os violentos conflitos fundiários que expropriam, ceifaram e, ainda,
ceifam a vida de camponeses, indígenas, quilombolas e ribeirinhos.
62
MONTEIRO, Maurílio de Abreu; COELHO, Maria Célia Nunes. ―As politicas federais e as reconfigurações espaciais na Amazônia‖. In: Novos Cadernos do NAEA. Belém: UFPA, 2004, p. 91-122. 63
MARTINS, José de Souza. A Militarização da Questão Agrária no Brasil. 2ª. Petrópolis: Vozes, 1985. p. 15-33. 64
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Integrar para não entregar. Campinas: Papirus, 1988, p. 34.
40
3.3 “EXPROPRIAÇÃO POR DECRETO”
Para garantir o acesso à terra a grandes grupos econômicos e assegurar a
propriedade da terra ao grande capital, bem como para assegurar o regime, os
governos militares conceberam facilidades legais e promoveram alterações na
legislação existente no país, utilizando-se de dispositivos legais extraordinários e de
exceção. Estes instrumentos jurídicos serviram de sustentáculo às suas ações e
políticas e corresponderam aos anseios do regime despótico e dos grupos ao qual o
Estado associara-se. Entre esses instrumentos os mais destacáveis eram os
chamados Decretos-Lei e os Atos Institucionais.
Denominavam-se, decretos-leis, aqueles decretos que possuíam força de lei,
expedidos em momentos excepcionais, nos quais o Chefe do Estado concentrava
em suas mãos, também, o Poder Legislativo suspenso.65 Esses decretos-leis haviam
encontrado guarida na Constituição de 1937, sendo amplamente utilizados durante o
estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1947), especialmente aqueles do qual tratava
o Art. 180, do Ato das Disposições Transitórias e Finais.
Instrumentos do governo autoritário de Vargas, os decretos-leis acabaram
por ser extirpados do ordenamento jurídico pela Constituinte de 1946. Entretanto,
com o advento do regime militar e da Constituição de 1967, eles voltaram à cena. O
jurista Fábio Konder Comparato, que ao tratar da sucessão de regimes autoritários
durante a história do país afirma que
O que se viu, portanto, em todos esses episódios históricos, não foi a sucessão de um regime jurídico por outro, mas o amálgama do novo com o velho, do direito revogado com o direito revogador. Aquele, embora convidado a se retirar do proscênio, não desapareceu do teatro jurídico: foi simplesmente relegado aos bastidores, para ressurgir em cena, como personagem não esquecido, no momento oportuno.
66
O momento oportuno foi captado, os militares não apenas trouxeram de
volta a figura do decreto-lei, mas a potencializaram com o teor da Emeda
Constitucional nº 1, de 1969. O texto da referida Emenda dispunha que:
65
GLOSSÁRIO Econômico do Tesouro Nacional. Definição Oficial de Decreto-lei. Disponível em: http://www.tesouro.fazenda.gov.br/servicos/glossario/glossário_d.a sp. Acessado em: 10 de maio de 2011. 66
COMPARATO, Fábio Konder. ―O direito e o avesso‖. Estudos Avançados. [online]. 2009, vol.23, n.67, pp. 6-22. ISSN 0103-4014, p. 09.
41
Art. 55. O Presidente da República, em casos de urgência ou de interêsse público relevante, e desde que não haja aumento de despesa, poderá expedir decretos-leis sôbre as seguintes matérias: I - segurança nacional; II - finanças públicas, inclusive normas tributárias; e
III - criação de cargos públicos e fixação de vencimentos. § 1º Publicado o texto, que terá vigência imediata, o Congresso Nacional o aprovará ou rejeitará, dentro de sessenta dias, não podendo emendá-lo; se, nesse prazo, não houver deliberação, o texto será tido por aprovado.
Como se pode subsumir da leitura do próprio texto constitucional, os
referidos decretos se configuravam como válvula de escape para os arbítrios em
forma de lei.67 Não havia um controle efetivo sobre a expedição desses decretos,
tendo em vista que o mesmo tinha vigência imediata e o Congresso não possuía
poder para emendar o texto legal, podendo apenas rejeitá-lo ou aceitá-lo. Se, por
algum motivo, o decreto fosse rejeitado isso não implicava a nulidade dos atos
praticados pelo governo durante a vigência dos referidos.
Além do mais, o texto constitucional fazia referência a duas expressões que
abriam um espaço imenso para o governo, se tratando do contexto da ditadura,
quais sejam, ―casos de urgência ou interesse público relevante‖ e a ―segurança
nacional‖. Quase ou todas as ações dos militares eram justificadas pela segurança
nacional e a necessidade de combater o inimigo externo. Nesse contexto, se a
urgência possibilitava menos espaço para a interpretação e caracterização, o
relevante interesse público não, afinal sempre era possível alegar interesse público
quando se tratava da segurança nacional, do desenvolvimento e da democracia,
palavras que, normalmente, eram utilizadas para justificar o regime. Basta uma
leitura da legislação promulgada a época para a percepção disso.
E o que falar dos Atos Institucionais (AI). Além de não possuírem previsão
Constitucional, eram apresentados como vetores da democracia pelos militares.
Efetivamente, ao procurarem justificar o golpe de estado de 1964, os chefes militares não hesitaram, no chamado Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964, em se declararem representantes do povo brasileiro, para exercer em seu nome o poder constituinte. A seguir, no ato Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965, o marechal Castello Branco e seus ministros exprobaram a ação de ―agitadores de vários matizes e elementos da situação eliminada‖, os quais ―ameaçam e desafiam a própria ordem revolucionária, precisamente no momento em que esta,
67
AGUIAR, Roberto. Direito, Poder e Opressão. São Paulo, Alfa-Omega, 1984.
42
atenta aos problemas administrativos, procura colocar o povo na prática e na disciplina do exercício democrático‖. ―Democracia‖, prosseguiram os golpistas, ―supõe liberdade, mas não exclui responsabilidade nem importa em licença para contrariar a própria vocação política da nação‖; vocação política essa não explicitada no documento, mas que se supõe correspondente ao regime instituído com o golpe de estado de março do ano anterior... Essa retórica de defesa intransigente da democracia para encobrir todos os crimes atinge seu ponto culminante com o infame ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, que abriu as portas ao terrorismo de estado.
68
Desde o inicio da ditadura militar as propostas de desenvolvimento para a
Amazônia e a vida da população da região foram definidas por esses dispositivos
legais, 69 que justificados pela segurança nacional, ajustavam as questões
relacionadas à terra aos interesses de grandes grupos econômicos. As políticas
relacionadas à questão agrária já nasciam subordinadas a um processo de
reprodução ampliada do capital dos grandes grupos econômicos e a uma política
econômica que era essencialmente baseada na expropriação dos camponeses e
populações locais e na concentração de capital. A combinação desses interesses
definiu o lugar e o alcance dos instrumentos administrativos e legais, como Estatuto
da Terra. Nesse contexto, o Estatuto nada mais era que um instrumento de controle
das convulsões sociais e dos conflitos resultantes deste processo de expropriação e
concentração da propriedade e do capital.70 Segundo José de Sousa Martins:
Em nenhum momento antes ou depois do golpe durante a feitura dessa lei houve a intenção de realizar no país uma reforma agrária ampla e maciça, compatível com o ritmo das reinvindicações dos trabalhadores sem terra ou com terra insuficiente para o seu trabalho.
71
O Pará foi um dos estados que mais sofreu com o advento dos decretos-leis
que se sucederam durante a ditadura militar. As políticas adotadas e resguardadas
por estes decretos estabeleceram, no estado relações de poder e controle da terra
por meio da repressão e violência. Sobre este processo desencadeado na região
pelas ações adotadas pelos militares, Loureiro aduz:
68
COMPARATO, Fábio Konder. ―O direito e o avesso‖. Estudos Avançados. [online]. 2009, vol.23, n.67, pp. 6-22. ISSN 0103-4014, p.16. 69
LOUREIRO, Violeta Refkalefsky. Amazônia: estado, homem, natureza. Belém: Cejup, 2004, p.84. 70
MARTINS, José de Souza. A militarização da questão agrária no Brasil. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 35. 71
Ibidem, p. 25.
43
Trata-se de um processo perverso pelo qual o Estado brasileiro tem historicamente produzido, sem cessar, a miséria social, por mecanismos legais e administrativos que promovem exclusão das classes desfavorecidas num extremo, e a concentração da riqueza por grupos econômicos e setores da elite.
72
O governo foi o agente indutor da concentração fundiária de terras nas mãos
de determinados setores como o dos pecuaristas, por meio da Superintendência de
Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). 73 Neste cenário, a obscuridade da
legislação fundiária não apenas serviu de pano de fundo perfeito para o
agravamento dos conflitos fundiários na região, mas também constitui-se como um
dos obstáculos à compreensão dos tensões sociais do campo existentes no Pará e
da condição agrária do estado. Quando, por exemplo, o Decreto-Lei n° 1.164/1971
veio à luz, o estado paraense já havia alienado parte das suas terras. No entanto, o
estado não mantinha uma sistematização eficiente ou um controle efetivo sobre
estas alienações ocorridas antes da federalização.74
Além disso, as sucessivas sobreposições legislativas e as imprecisões
cartográficas trouxeram uma perigosa dificuldade para o cenário: a indefinição sobre
determinadas áreas. Assim, tornava-se difícil estabelecer efetivamente qual o status
fundiário e, consequentemente, qual o ente público com jurisdição sobre elas. A
revogação dos decretos editados no período militar trouxe problemas ainda maiores.
As situações fundiárias que haviam se consolidado foram mantidas e resultaram no
acirramento dos conflitos fundiários já existentes e o surgimento de outros.
Ressalte-se que o governo pouco fez para conter estes conflitos. Pelo
contrário, pautou suas ações na tolerância às irregularidades e desmandos e
manteve uma política de silêncio e omissão frente às inúmeras ilegalidades
existentes no Pará, situação que estimulou e manteve um quadro violento, de
iniquidade e de graves usurpações de direitos que se mantém até hoje.75 Nesse
contexto, tornou-se prática frequente das autoridades tornar obscura a dinâmica dos
conflitos e das relações violentas que se estabelecem em solo paraense e acomodar
72
LOUREIRO, Violeta Refkalefsky; GUIMARÃES, Ed Carlos. Reflexões sobre a Pistolagem e a Violência na Amazônia, citado. 73
BENATTI, José Heder. ―Questão fundiária e sucessão da terra na fronteira oeste da Amazônia. Novos Cadernos NAEA. ISSN 1516-6481, v. 11, n. 2, Belém: UFPA, 2008. p. 85-122. 74
TORRES, Maurício. ―Fronteira, um eco sem fim: Considerações sobre a ausência do Estado e a exclusão nos municípios paraenses do eixo da BR-163‖. In: Amazônia revelada: os descaminhos ao longo da BR-163. Brasília: CNPQ, p. 271-319. 75
LOUREIRO, Violeta Refkalefsky; PINTO, Jax Nildo Aragão. A questão fundiária na Amazônia. Revista de Estudos Avançados [online] vol 19, n.54. São Paulo: USP, 2005, p. 77-98.
44
os direitos de terra dos posseiros, ou de outros segmentos, e deixar que as partes
interessadas resolvam a disputa pela força e violência para depois regularizar o
suposto direito do vencedor.76
3.4 A POMPA E A CIRCUNSTÂNCIA: o Plano de Integração Nacional e a contra
reforma agrária
―Aqui vim para ver, com os olhos da minha sensibilidade, a seca deste ano,
e vi todo o drama do Nordeste. Vim ver a seca de 70, e vi o sofrimento e a miséria
de sempre‖. 77 Assim, começava o discurso proferido pelo Presidente Emílio
Garrastazu Médici, durante o encerramento da reunião do Conselho Deliberativo da
Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), realizada em Recife.
Durante a apresentação emocionada da ―visão do nordeste‖, o presidente general,
direcionando-se as vítimas e apelando a ―consciência nacional‖ prometeu promover
mudanças no Nordeste e tomar providências para diminuir o sofrimento daquele
povo ―flagelado‖.
Dez dias após a reunião, anunciava-se o Plano de Integração Nacional
(PIN). Instituído pelo presidente Médici, através do Decreto-Lei n° 1.106, de 16 de
junho de 1970 e, posteriormente, alterado pelo Decreto-Lei n° 1.243, de 30 de
outubro de 1972, o PIN previa em sua primeira etapa a construção das Rodovias
Transamazônica (BR 320) e Santarém-Cuiabá (BR163), bem como estipulava que
os 10 km das margens das referidas rodovias deveriam ser destinadas para a
―ocupação da terra e adequada e produtiva exploração econômica‖ e transferia para
aplicação no próprio programa 30% dos recursos financeiros dos incentivos fiscais
obtidos através do abatimento do imposto de renda.
Quatro meses após, realizava-se, em Altamira, a solenidade de implantação
do marco inicial da construção da Transamazônica. Conforme citado anteriormente,
durante esta cerimônia, Médici incrustou uma placa no tronco de uma castanheira
derrubada. Para além da pouca razoabilidade da inscrição na placa, a construção de
um eixo rodoviário, cortando de leste a oeste o coração da Amazônia e a
76
FEARNSIDE, Philip M. Projetos de Colonização Amazônia Brasileira: objetivos conflitantes e capacidade de suporte humano. Caderno de Geociências, n. 2, p 7-25. 77
PRONUNCIAMENTO do Presidente Médici proferido em 06.06.1970. Visão do Nordeste. Fonte: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/acervo. Acessado em: 15 de novembro de 2011.
45
colonização oficial desenvolvida nas margens da rodovia apresentava-se, realmente,
como um projeto diferente e que rompia com ocupação das margens dos rios
experimentada pelas populações e povos que habitavam a região até aquele
momento. Era
[...] como se diante da imensidão da Amazônia e das dificuldades de penetração o poder quisesse colocar em seu centro uma carga explosiva para quebra-la em pedaços e facilitar a sua conquista; isto em oposição à estratégia de ―corrosão das margens‖ que havia prevalecido até então no Brasil.
78
O PIN, principal programa das políticas territoriais do governo militar na
região amazônica, em nada fugia a característica do governo de Médici de conciliar
ao planejamento político, pompa e circunstância. A pompa dos projetos de
envergadura que compunham o plano, como a Transamazônica e as circunstâncias
sociais e políticas decorrentes da seca de 1970.79 A pobreza e a seca no Nordeste
do Brasil foram anunciadas como uma das principais razões motivadoras para as
políticas de integração. A transferência de nordestinos para Amazônia era
apresentada como a solução mais viável para os graves problemas enfrentados no
Nordeste. Problemas que, segundo os registros oficiais, estavam associados
principalmente ao excesso populacional, não sendo mencionados quadros bem mais
evidentes, como a concentração fundiária e a desigualdade no acesso e na
distribuição de terras.80 Falava-se da seca e encobriam-se as cercas do latifúndio.
Enfatizava-se, também, a segurança nacional, consubstanciada na
necessidade de proteger e neutralizar os perigos geopolíticos junto às fronteiras do
país. Falava-se da necessidade de combater os ―planos internacionais faraônicos‖ e
os ―planos de internacionalização da Amazônia‖, porquanto esses ameaçavam a
―segurança nacional‖. Assim, fazia-se necessário promover a urgente integração da
região amazônica as outras e, mais, era fundamental fazer da Amazônia a
78
HAMELIN, Philipe. ―O fracasso anunciado‖. In LÉNA, Philippe; OLIVEIRA, Adélia Engrácia (Orgs.) Amazônia: a fronteira agrícola 20 anos depois. Belém: CEJUP/ Museu Emílio Goeldi, 1992, p. 161/176. 79
MARTINS, José de Souza. A militarização da questão agrária no Brasil. 2a
ed., Petrópolis: Vozes, 1985, p. 44-45. 80
FEARNSIDE, Philip M. ―Projetos de Colonização na Amazônia Brasileira: objetivos conflitantes e capacidade de suporte humano‖. Caderno de Geociências. 1987, n. 2, p. 7-25.
46
alternativa viável para todos os ―problemas nacionais‖, inclusive, o da necessidade
de promoção da reforma agrária.81
Entretanto, o Plano que, supostamente, criaria espaços para os
trabalhadores sem terra e saciaria a fome e as necessidades do povo nordestino
vitimado pela seca, priorizava os interesses e as propostas do empresariado
nacional e estrangeiro e fomentava a expansão do setor agropecuário e dos
latifúndios.82 Por trás do inimigo externo e dos perigos que o ―vazio‖ amazônico
representavam para a segurança nacional, escondiam-se interesses relacionados a
criação de condições favoráveis à exploração dos recursos naturais da região por
grandes grupos econômicos nacionais e internacionais e a eliminação das zonas de
tensão social localizadas, principalmente, no Nordeste, de forma a manter intocável
o latifúndio.
A concentração fundiária no Nordeste era foco constante de tensões sociais,
mas os interesses em jogo impossibilitavam qualquer alternativa de reforma agrária
que significasse privação das terras das oligarquias fundiárias. Como visto
anteriormente, as oligarquias tradicionais foram uma importante base de
sustentação do Golpe de 64, e nunca foi intenção afetá-las. Assim, para garantir a
sobrevivência econômica e política do latifúndio, era necessário fazer a reforma
agrária do Nordeste na Amazônia.83
Naquela época, apesar da muito antiga ocupação amazônica, os militares
apresentavam a região como um ―vazio demográfico‖, uma terra sem homens
capazes de promover o ―desenvolvimento‖ e a utilização econômica necessária.
―Terras sem homens para homens sem terra‖ teria afirmado o Ditador General Emílio
Garrastazu Médici, prometendo conectar ―os homens sem terra do Nordeste‖ às
―terras sem homens da Amazônia‖. Ecoando com fidelidade a historia de saques e
apropriações que caracterizou a ocupação não indígena da Amazônia desde o
século XVI, o governo militar imbuído pela sanha de uma ―racionalidade
desenvolvimentista‖, relegava as populações locais a uma condição não humana.
Caboclos, ribeirinhos, seringueiros, castanheiros, populações extrativistas e os
81
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Integrar para não entregar. Campinas: Papirus, 1988, p. 70. 82
MARTINS, José de Souza. A militarização da questão agrária no Brasil. 2a
ed. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 44-45. 83
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Op.Cit, p. 74.
47
indígenas que imemoravelmente habitavam essa região não eram gente, mas
obstáculos à ânsia de lucros do grande capital, cuja eliminação era necessária.84
Não se tratava de introduzir ou integrar nada a vida dessas populações,
mas sim de tirar o que elas possuíam de vital para a sua existência: suas terras e os
seus meios e condições de vida material, social, cultural e política. Era como se elas
simplesmente não existissem ou se existissem não tivessem direito ao
reconhecimento de sua humanidade.85 Estava-se diante de uma verdadeira invasão,
em que os chamados ―pioneiros‖ expulsavam, devastavam e violavam os direitos
dos primeiros ocupantes.86 Essa situação é bem explicada por Carlos Walter Porto-
Gonçalves:
Tanto a Amazônia como os cerrados, no Brasil, são regiões que até, nos anos de 1960, se mantiveram a margem de um verdadeiro mercado de terras. A demanda por terras pela dinâmica expansiva do capital criando as condições de acessibilidade [...] comportou a apropriação privada de terras até então apropriadas de modo comunitário, coletivo ou com outras modalidades de uso comum dos recursos naturais o que, até aqui, em todo o mundo vem sempre se dando de modo violento e conflituoso [...] a propriedade privada se consagraria sob muito sangue, suor e lágrimas, privando os povos de outros modos de apropriação da terra e dos recursos naturais. Assim os direitos das gentes, dos homens e mulheres comuns [...] foram considerados inferiores.
87
O conceito de desenvolvimento, naquela época entendido como crescimento
econômico e da industrialização, reduzia as diversas trajetórias sociais a uma linha
única de evolução: ―o modo de produção industrial, destino certo e líquido da
evolução natural das potencialidades humanas‖. Apesar de nos anos 70, já estar
claro que esse ―desenvolvimento‖ não reduzia a pobreza e que até o final do século
XX seria responsável pela elevação dos níveis de miséria absoluta a até 2/5 da
população mundial, o conceito manteve ―seu valor axiomático: um caminho certo e
inequívoco que levaria sempre do pior para o melhor, mesmo quando para a maioria
das pessoas o efeito fosse exatamente o contrário‖.88
84
TORRES, Maurício. ―A Pedra Muiraquitã: O caso do Rio Uruará no enfrentamento dos povos da floresta às madeireiras da região‖. Revista de Direito Agrário. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Brasília: INCRA, 2007, p. 89-119. 85
MARTINS, José de Souza. ―A chegada do estranho‖. In: HÉBETTE, Jean. O Cerco está se fechando: o impacto do grande capital na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 15-33. 86
MARTINS, José de Souza. Expropriação e Violência. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 67. 87
PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. A globalização da natureza e a natureza da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 250/251. 88
TORRES, Maurício. Os povos da floresta e o desmatamento da Amazônia: a maior causa do desmatamento é o não reconhecimento do direito à terra dos povos da floresta. Caros Amigos, São
48
Os destinatários do ―desenvolvimento‖ e o ―progresso‖ aos quais a
propaganda oficial e as ações do governo se dirigiam não eram as populações
locais. Aliás, o pressuposto inconfessado e inconfessável deste ―desenvolvimento‖
era, em muitos casos, o aniquilamento cultural e físico das populações,
comunidades e povos que representassem algum estorvo para a consecução dos
planos governamentais, 89 como ocorreu com os índios Arara, os quais um dos
subgrupos vivia na área onde hoje está situado o município de Uruará.
A ―estrada da integração nacional‖, seus travessões, picadas e clareiras
acessórias passaram a poucos quilômetros de uma das grandes aldeias onde
subgrupos do povo Arara se reuniam no período da estiagem, cortando plantações,
trilhas e espaços de caça tradicionalmente utilizados pelo Povo e formando barreiras
que impediram o trânsito dos Arara pelas matas e impuseram limites a interação
tradicional entre os subgrupos. Os índios que, anteriormente, a passagem do leito da
rodovia mantinham uma rede comunitária coesa se viram dispersos e perseguidos.90
Dom Erwin Krautler ao relembrar de seus primeiros anos na região do Xingu narra
um episódio que ilustra o tratamento dado ao Povo Arara:
A nova rodovia passou a 3 quilômetros da aldeia dos Arara no igarapé Penetecaua. Os índios fugiam com medo do tiro das espingardas. Foram perseguidos até por cachorros. A brusca e forçada convivência com os ―brancos‖ trouxe a morte à aldeia. Sucumbiram fatalmente a surtos de gripe, tuberculose, malária [...]. O mudo lá fora [...] continuou a aplaudir a ―conquista deste gigantesco mundo verde‖. [...] Jamais me esqueço do dia que pelas ruas de Altamira corria a notícia de que, finalmente, os ―terríveis Araras‖ haviam sido dominados. Como prova de que o ―contato‖ com os Arara havia sido amistoso [...], trouxeram uns representantes daquele povo [...] Nus, tremendo de medo em cima de uma carroça, como se fossem algumas raras espécies zoológicas, foram expostos a curiosidade popular na rua principal da sociedade. O que na realidade aconteceu no coração e na alma do povo Ugorogmo, quem será capaz de descrever? Os poucos sobreviventes continuam apavorados, na insegurança, como ―estrangeiros em sua própria terra‖.
91
Paulo, Ed. Casa Amarela, Ano XI, n. 34, Especial Aquecimento Global: a busca de soluções, set. 2007 89
MARTINS, José de Souza. ―A chegada do estranho‖. In: HÉBETTE, Jean. O Cerco está se fechando: o impacto do grande capital na Amazônia. 90
POVO Arara: O contexto da atração. In: Povos Indígenas do Brasil. Disponível em: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/arara/1235. Acessado em: 10 mai. 2012 91
KRAUTLER, Erwin. ―Mensagem de Abertura‖. In: SEVÁ FILHO, A. Oswaldo. Tenotã-Mõ: Atlas sobre as consequências dos projetos hidrelétricos no rio Xingu. IRN: 2005. Disponível em: www.socioambiental.org.br/banco_imagens/pdf.s/10340.pdf#page=29.
49
Figura 1 - "Pista para você encontrar a mina de ouro". Anúncio veiculado na revista Veja, em 09 de dezembro de 1970.
Fonte: Acervo Digital Veja
50
Nada podia opor-se ou dificultar o ―desenvolvimento com segurança‖ e os
―modernos‖ empreendimentos dos grupos econômicos. O povo Arara sentiu isso ao
ver invadido os seus espaços de memórias e assim como eles inúmeros outros
povos cujo traçado das rodovias se sobrepunham a seus territórios ou as
proximidades. Exemplo disso, também, é o caso dos Waimiri Atroari que,
recentemente, tomou as páginas de alguns jornais. Este povo tentou resistir à
invasão do seu território provocada pelas obras da rodovia BR 174, e foi dizimado
pelas forças militares repressivas. ―Entre 1972 e 1975 a população Kiña
[autodenominação dos Waimiri Atroari] reduziu de 3.000 para menos de 1.000
pessoas, sem que a FUNAI e os militares apresentassem as causas dessa
diminuição de população. Esses 2.000 Kiña desapareceram sem que fosse feito um
só registro de morte‖.92
As políticas desenvolvimento e integração, também, não foram pensadas
para os migrantes que aqui desembarcaram. Ela foi pensada para o grande capital e
para as elites. Incentivou-se a migração do Nordeste e do Sul, não com a finalidade
de integrar e distribuir terras para os camponeses. Criou-se um simulacro de reforma
agrária, para evitar uma real modificação das estruturas e das oligarquias agrárias
presentes nas regiões de ocupação mais antiga.93 De um lado, o Estado promovia a
repressão dos movimentos populares de luta pelo acesso à terra presentes no
Nordeste e no Sul e se utilizava dos projetos de colonização oficial como
instrumentos de contenção das convulsões sociais relacionadas à terra que
marcavam essas regiões. Do outro, apoiava os investidores nacionais e
internacionais, por meio de vultosos programas de incentivos fiscais e fazia dos
mencionados projetos ―viveiros de mão-de-obra‖. Nesse jogo, em que os pesos e
medidas foram dados pelo grande capital, os direitos de agricultores pobres e da
população local foram ignorados.94
92
SCHAWADE, Egydio. ―Crônicas de Violência – Povos Vitimados pela Ditadura: Dois mil Waimiri Atroari desaparecidos durante a ditadura militar‖. In Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil. Brasília: CIMI, 2010, p. 145. 93
Cf., entre outros, OLIVEIRA, A. U. de. A fronteira amazônica mato-grossense: grilagem, corrupção e violência. São Paulo, 1997. Tese (Livre-docência em Geografia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo e IANNI, Octávio. Colonização e contra-reforma agrária na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1979. 94
OLIVEIRA, Ariovaldo U. de. ―BR-163 Cuiabá-Santarém: Geopolítica, grilagem, violência e mundialização‖. In: TORRES, Maurício (org.). Amazônia revelada: os descaminhos ao longo da BR-163. Brasília: CNPQ, 2005, p. 68.
51
3.4.1 O POLÍGONO DESAPROPRIADO DE ALTAMIRA E OS PROJETOS
INTEGRADOS DE COLONIZAÇÃO
Visando a efetivação das finalidades da política de integração, o governo
assina o Decreto n° 68.443, de 29 de março de 1971, que declara de interesse
social para fins de desapropriação os imóveis rurais de propriedade particular
situados em um polígono compreendido na zona prioritária. A referida área,
denominada a partir de então Polígono Desapropriado de Altamira e localizada no
trecho da Transamazônica que vai de Itaituba a Altamira, era formada por 6.341.750
hectares e destinava-se a implantação de projetos de reforma agrária e núcleos de
colonização em conformidade com estipulado no Decreto n° 68.443/1971, cabendo
ao recém criado Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) a
arrecadação destas terras.
A colonização iniciada a partir de então adotou como modelo os chamados
Projetos Integrados de Colonização (PICs). No Pará foram implantados três PICs no
trecho da Transamazônica que vai do município de Marabá a Itaituba: o PIC Marabá,
o PIC Altamira e o PIC Itaituba. Os PICs deveriam dispor a sua clientela uma
infraestrutura de apoio e um conjunto de incentivos necessários ao desenvolvimento
de atividades agrícolas. 95 Além disso, esses Projetos previam estruturação de
parcelas, sem a existência de uma cidade organizadora da área rural.96 Os lotes dos
colonos seriam servidos por núcleos dispersos em intervalos iguais no espaço da
colonização.
Teoricamente, esses centros planejados possuiriam funções específicas e
formariam uma hierarquia urbanística de acordo com a infraestrutura social, cultural
e econômica. Os referidos centros seriam de três tipos: Agrovilas, Agropólis e
Rurópolis. A Agrovila seria um vilarejo formado por cinquenta casas dispostas em
forma retangular e servido por escola, posto de saúde, armazéns e um centro
administrativo e destinada a moradia dos que se dedicavam a atividades agrícolas
ou pastoris. Os rurícolas deveriam trabalhar nos lotes rurais e residir nas agrovilas. A
Agropólis era um centro agroindustrial, cultural e administrativo destinado de apoio e
exerceria influência sob uma área de mais ou menos dez quilômetros de raio no qual
95
BENATTI, José Heder. ―Questão fundiária e sucessão da terra na fronteira oeste da Amazônia. Novos Cadernos NAEA. ISSN 1516-6481, v. 11, n. 2, Belém: UFPA, 2008. p. 116. 96
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Integrar para não entregar. Campinas: Papirus, 1988, p. 77.
52
poderiam estar situadas até doze Agrovilas. Por sua vez, a Rurópolis se constituiria
como um pequeno pólo de desenvolvimento e centro de uma comunidade rural
formada por Agrovilas e Agropólis. O seu raio de influência se estenderia até cento e
quarenta quilômetros e em seu interior se desenvolveriam atividades públicas e
privadas.97
Os lotes rurais poderiam ser quitados num período de até vinte anos. A área
das parcelas era de 100 hectares, sendo 400 metros de frente e 2.500 metros de
fundo. A frente desses lotes ficava voltada para vicinais que lhe davam acesso.
Essas vicinais dispostas, perpendicularmente, a cada cinco quilômetros da
Transamazônica, possuíam cerca de dez quilômetros de extensão. 98 Nos primeiros
anos da colonização, a agricultura e a pecuária em regime familiar eram as
atividades predominantemente desenvolvidas pelos colonos. A vistoria prévia da
área ocupada, a formalidade de um processo junto ao Incra e o desmatamento de
até 50% da área eram condições necessárias para a titulação. Esse modelo não
apenas induzia à supressão da vegetação natural, mas também à implantação de
pastagens para pecuária bovina, atividade que consolidaria com maior rapidez o uso
do lote.99
Na teoria, o projeto era bem detalhado e descrevia desde o modo como se
daria a seleção dos beneficiados, à forma como se selecionaria as mudas e
englobava uma série de políticas destinadas à permanência e à ―integração‖ ao meio
rural dos assentados. Entretanto, o projeto, aparentemente, não levava em conta as
características do meio físico – cursos de água, solo – no qual estava inserido.
Quando foi necessário abrir as vicinais, percebeu-se que algumas cortavam rios ou
áreas alagadiças ou ainda escalavam encostas. Alguns lotes ficavam sem água,
enquanto outros possuíam cursos d‘água em demasia.100 Ademais, a assistência e a
infraestrutura prometidas não foram implantadas minimamente. Essas entre outras
dificuldades resultaram numa alta rotatividade de pessoas nos lotes, haja vista que
97
INCRA apud IANNI, Octávio. Colonização e contra-reforma agrária na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1979, p.61. 98
Cf. OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Integrar para não entregar. Campinas: Papirus, 1988, p. 88; HAMELIN, Philipe. ―O fracasso anunciado‖. In: LÉNA, Philippe; OLIVEIRA, Adélia Engrácia (Orgs.) Amazônia: a fronteira agrícola 20 anos depois. Belém: CEJUP/ Museu Emílio Goeldi, 1992, p. 161-176. 99 CUNHA, Candido Neto da. ―Pintou uma chance legal: o programa Terra Legal no interior dos Projetos Integrados de Colonização e do Polígono Desapropriado de Altamira, no Pará‖. Agrária. Laboratório de Geografia Agrária - DG/FFLCH/USP. ISSN 1808-1150. nº 10/11, 2009, p. 20-56. 100
HAMELIN, Philipe. ―O fracasso anunciado‖. In: LÉNA, Philippe; OLIVEIRA, Adélia Engrácia (Orgs.) Amazônia: a fronteira agrícola 20 anos depois. Belém: CEJUP/ Museu Emílio Goeldi, 1992, p. 167.
53
os colonos fragilizados por essas dificuldades acabavam abandonando ou vendendo
as parcelas.
Segundo Hamelin, o projeto de colonização dirigida mais ―famoso‖
implantado na Transamazônica foi o PIC Altamira. Tratando-se da ―experiência
pioneira‖ o PIC era ―vitrine‖ dos demais e contava com um projeto detalhado e
―luxuoso‖.101 O referido Projeto conheceu os seus ―dias de glória‖ nos anos 1971 e
1972, quando cerca de 3.000 colonos foram assentados na área. Os anos,
entretanto, revelariam a verdadeira intenção do governo militar com os projetos de
colonização.102
Para a consecução das reais intensões dos planos de desenvolvimento, o
governo federal havia federalizado uma grande parte das terras amazônicas. O
marco legal de início deste processo foi o Decreto-Lei nº 1.164, 01 de abril de 1971,
que veio a luz três dias após o Decreto criador do Polígono Desapropriado de
Altamira. Através deste Decreto, a União retirou dos estados da região o poder de
jurisdição sobre as terras devolutas contidas nas faixas de cem quilômetros de cada
lado das rodovias federais construídas, em construção ou planejadas e as colocou
sob a tutela do Conselho de Segurança Nacional.
Com a federalização, as áreas foram incluídas entre os bens da União. Só
no Pará, o ato federalizou cerca de 70% da área do estado.103 A federalização das
terras, entretanto, não beneficiava os camponeses sem, com pouca ou expulsos da
terra. Tal federalização era:
[...] condição necessária a geopolítica da centralização. Era impossível sobrepor o poder federal ao poder local e regional sem confiscar a sua principal base de sustentação, que é a terra, e o controle dos mecanismos de distribuição de terras entre os membros das oligarquias. O combate a oligarquia implicava em expropriá-la do seu principal meio de poder, que é a terra. A federalização e a militarização das terras da Amazônia transformou-se na condição para que o desenvolvimento regional saísse das mãos da oligarquia, dos comerciantes e proprietários tradicionais, e abrisse espaço ao grande capital, cedesse
101
HAMELIN, Philipe. ―O fracasso anunciado‖. In: LÉNA, Philippe; OLIVEIRA, Adélia Engrácia (Orgs.) Amazônia: a fronteira agrícola 20 anos depois. Belém: CEJUP/ Museu Emílio Goeldi, 1992, p. 161-176. 102
Cf. OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Integrar para não entregar. Campinas: Papirus, 1988, p. 88; HAMELIM, Fracasso Anunciado; IANNI, Octávio. Colonização e contra-reforma agrária na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1979. 103
OLIVEIRA. Ariovaldo U. de. ―BR-163 Cuiabá-Santarém: Geopolítica, grilagem, violência e mundialização‖. In: TORRES, Mauricio. Amazônia Revelada: os descaminhos ao longo da BR-163. Brasília: CNPQ, 2005, p. 67-183.
54
terreno a acumulação dos grandes grupos econômicos, cuja escala de operação e de interesse faz deles justamente os efetivos agentes econômicos da centralização do poder.
104
O argumento oficial que pautou a federalização das terras devolutas foi o da
indispensabilidade das áreas que margeavam as rodovias federais à segurança
nacional e ao desenvolvimento do país. Entretanto, o discurso que enfatizava a
―segurança nacional‖ e o ―desenvolvimento‖, recorrentemente utilizado durante o
regime militar, era mais uma das formas de mascarar a abertura das terras da
Amazônia ao grande capital e o conluio deste último com o Estado. O governo
utilizou-se da federalização para ordenar o território e tornar possível o acesso à
terra, por parte dos grandes grupos econômicos e é dentro deste contexto que o PIN
e os projetos de colonização implementados pelo Incra devem ser vistos.
Como anteriormente mencionado, passados dois anos da implantação do
PIC Altamira, o Incra havia assentado pouco mais de três mil famílias, número muito
aquém da meta pretendida. Essas famílias foram, praticamente, abandonadas, haja
vista que a infraestrutura e assistência prometida jamais foi implementada em sua
totalidade. A partir de novembro de 1972, o Incra suspende o envio de camponeses
para a região e, no ano seguinte, o governo passa oficialmente a promover e
estimular a ocupação de grandes áreas da Amazônia por grupos econômicos. O
governo não poupou os limites da imaginação para justificar a abertura da região
para esses grupos, ressaltando inclusive os benefícios à proteção e ao benefício
ecológico que os grandes projetos promoveriam.105
A partir daí, os jornais começam a publicar notícias que ressaltavam a
imprestabilidade das terras amazônicas para a agricultura, ao mesmo tempo em que
ressaltava a vocação da região para pecuária.106 Iniciava-se a época dos pólos de
desenvolvimento e o convite estava lançado: ―o quarto governo da Revolução
convoca o empresário para essa nova cruzada – ocupar economicamente a
Amazônia e corrigir as deficiências da colonização dirigida‖107. A ―reformulação‖ das
104
MARTINS, José de Souza. A militarização da questão Agrária no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 50. 105
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Integrar para não entregar. Campinas: Papirus, 1988, p.86-87. 106
MARTINS, José de Souza. Op. cit, p.46. 107
BIITTENCOURT apud MONTEIRO, Maurílio de Abreu; COELHO, Maria Célia Nunes. ―As politicas federais e as reconfigurações espaciais na Amazônia‖. In: Novos Cadernos do NAEA. Belém: UFPA, 2004, p. 91-122.
55
políticas de colonização do governo e os estímulos foram bem recebidos pelo
empresariado. Como bem registrou, a época, o Jornal Opinião:
Uma viagem de três dias pela Amazônia de uma caravana integrada por três ministros (Planejamento, Interior e Agricultura) e 20 entre os maiores empresários sulistas que já investiram na região provocou o anúncio de grandes novidades. Um balanço dessa movimentada viagem mostra: 1 – Os 20 empresários, divididos em dois grupos, um de colonização e outro agropecuário, decidirão em menos de 10 dias a compra de dois milhões de hectares no entroncamento das rodovias Cuiabá-Santarém e Transamazônica, onde implantarão projetos ainda não claramente definidos mas que aprioristicamente foram definidos pelo ministro Reis Velloso como dos maiores da região. 2 – Essa tendência à formação de grandes consócios empresariais na Amazônia, aceita e estimulada pelo governo, com propriedades médias, em torno de 100 mil hectares, não ameaçará o equilíbrio ecológico, ao contrário do que se poderia supor, mas será justamente uma garantia a preservação de áreas verdes, além de significar a auto-sustentação, em termos econômicos, de uma estrada até agora de valor reduzido como a Transamazônica, segundo disse o ministro do Planejamento. 3 – Os três ministérios promotores da viagem criarão uma comissão que vai institucionalizar 11 áreas prioritárias para o desenvolvimento integral da Amazônia. São áreas localizadas sempre na região de influências de estradas construídas ou a construir [...] Na mesma ocasião, foi distribuída aos empresários um documento elaborado pelo IPEA (o Instituto de Pesquisas Econômicas do Ministério do Planejamento), onde já estão discriminadas as atividades básicas mais aconselháveis da região, com o objetivo de ‗facilitar a atração de empreendimentos privados‘, mas com ‗preferência acentuada pelos grandes empreendimentos‘. 4 – O governo planeja investir, no biênio 1973/74, um bilhão de dólares na Amazônia no sentido de ‗inaugurar uma fase nova, em termos de escala econômica, para os projetos da região amazônica‘, segundo Reis Velloso. [...] 5 – Em função disso, abre-se um nova era de ocupação da região. ‗Até aqui – disse ainda Reis Velloso – a Transamazônica deu ênfase à colonização, com um sentido social que se voltou para o pequeno colono, mas agora devemos entrar na fase dos grandes consórcios‘. 6 – Uma das justificativas para o ingresso nessa nova fase é aparentemente perturbadora: os grandes projetos, ao contrário dos pequenos, seriam essenciais ‗para evitar desmatamentos indiscriminados e assegurar o equilíbrio ecológico da região‘, disse o ministro do Planejamento.
108
Com o abandono da colonização dirigida ficou evidente que as políticas
intervencionistas do governo sempre estiveram articuladas e voltadas para os
interesses dos grandes grupos econômicos. O governo já não se apegava mais a
justificativas sociais. Pelo contrário, enfatizava que o desenvolvimento regional da
108
OPINIÃO apud OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Integrar para não entregar. Campinas: Papirus, 1988, p. 87.
56
Amazônia só seria possível através do estabelecimento do capital e que se fazia
necessário ocupar economicamente a região. A partir de 1974, começam a se
instalar na área do Polígono Desapropriado de Altamira empresas voltadas para o
desenvolvimento de projetos agropecuários. Sobre esse período Fearnside afirma:
Uma mudança importante de política ocorreu em 1974, quando a colonização por indivíduos em lotes de 100 ha foi desenfreada em favor da ―colonização‖ por grandes empresas. Essas grandes corporações, principalmente com operações de pecuária, incluíam tanto internacionais, como centenas de investimentos brasileiros das áreas urbanas do centro-sul do país. Fazendas menores eram vendidas pelo INCRA na área atrás da faixa de ocupação dos pequenos agricultores na Rodovia Transamazônica. Fazendas de 3.000 hectares eram comercializadas na área cerca de 150 km oeste de Altamira, a partir de 1974 [...] De 1977 em diante, fazendas de 500 ha chamadas de ―glebas‖ foram vendidas em faixas de cerca de 30 km de largura, além das margens da área de ocupação dos pequenos agricultores, entre 12 e 85 km oeste de Altamira.
109
A fazenda ligada trajetória das famílias fundadoras da Comunidade Menino
Jesus, que será apresentada no Capítulo 4, é um típico caso destas glebas de 3 mil
hectares, demarcadas no interior do Polígono Desapropriado de Altamira.110
O ápice desse ciclo ocorreu em 1976, quando o Conselho de Segurança
Nacional encaminhou para a apreciação do general presidente Ernesto Geisel as
Exposições de Motivos n° 005 e n° 006. Basicamente, o que propunha na Exposição
nº 005/1976 era que se promovesse, como acabou ocorrendo, a regularização
fundiária de grandes porções terra, sem a autorização do Senado, como
determinava a Constituição Federal de 1967. Já a Exposição nº 006/1976
recomendava que se estendessem as medidas à faixa de fronteira e as outras áreas
consideradas indispensáveis à segurança nacional, de modo a tornar possível a
regularização das apropriações de terras acima do módulo de 100 hectares
daqueles requerentes que tivessem posse efetiva e morada habitual a pelo menos
dez anos.111
109
FEARNSIDE, Philip M. ―Projetos de Colonização Amazônia Brasileira: objetivos conflitantes e capacidade de suporte humano‖. Caderno de Geociências, n. 2, p 7-25. 110
INCRA. Processo Administrativo n° 54501.001474/2010-37, apenso ao Processo Administrativo n° 54501.003347/2009-39. 111
SANTANA, Jeronimo Garcia de (1981) apud MARTINS, José de Souza. A militarização da questão Agrária no Brasil. Petrópolis: Vozes 1985, p. 47.
57
Mapa 1 - Projeto de Assentamento Rio Trairão em relação ao Polígono Desapropriado de Altamira, à área federalizada pelo Decreto-Lei n° 1.164/1971 e os PICs Itaituba e Altamira.
Fonte: TORRES et al, 2012.
58
Figura 2 – ―O boi é o melhor amigo do empresário‖. Anúncio da Sudam e do Banco da Amazônia veiculado na revista Veja, em 05 de abril de 1972.
Fonte: Acervo Online Veja.
Assim, a colonização dirigida oficial implementada pelo governo militar na
Amazônia se constituiu como uma política de contra reforma agrária, haja vista que
por baixo da capa da reforma agrária, o governo suprimiu a possibilidade dessa
realmente vir a concretizar-se. A esse respeito é sempre pertinente destacar o
pensamento de Octavio Ianni que, ao tratar dos programas de colonização dirigida e
oficial afirma:
[...] é uma política de contra-reforma, no sentido de que ela visa bloquear, suprimir ou reduzir às mínimas proporções a reforma agrária espontânea que os trabalhadores rurais estavam realizando [...] quando pôs em execução a política de colonização dirigida. Desse modo o governo impediu que ocorresse qualquer reforma agrária no Nordeste,
59
no sul ou em outras regiões; e, inclusive impediu que a Amazônia fosse o campo de uma reforma agrária efetiva. Ao contrário, na Amazônia o Estado foi levado a atuar de maneira a reduzir ao mínimo a distribuição de terras, a fim de preservar as maiores proporções das terras aos latifúndios, fazendas e empresas. [...] No campo a contrapartida do apoio dado pela burguesia rural ao Golpe do Estado de 1964 foi a contra-reforma agrária, apresentada e executada como colonização dirigida.
112
Para além de uma história de destruição. O deslocamento da fronteira para
Amazônia é também uma história de resistência, sonho e esperança,113 haja vista a
contradição inerente ao processo que a possibilita. O mesmo processo que permitiu
a abertura das terras amazônicas para o capital as abriu, também, para os
trabalhadores do campo.
3.5 A “OCUPAÇÃO ESPONTÂNEA”
O abando do programa oficial de colonização nos PICs a partir da década de
1980 e a desistência de muitos colonos não reduziu a chegada de novos migrantes
à fronteira aberta. As famílias continuaram se instalando nas áreas destinadas a
colonização oficial, seja em substituição a outras que abandonavam as suas
parcelas, seja nos prolongamentos das vicinais. 114 Tal ocupação feita sem o
planejamento dos órgãos governamentais ficou conhecida como ―ocupação
espontânea‖ ou ―colonização espontânea‖ em oposição a ―colonização dirigida‖
implementada pelo Incra.115
A maioria dos migrantes que chegava à área do Polígono Desapropriado de
Altamira realizava a ocupação de áreas localizadas fora dos projetos de colonização
realizados pelo Incra. Estes migrantes abriam picadas em prolongamentos das
vicinais perpendiculares à rodovia Transamazônica e se instalavam, além das áreas
112
IANNI, Octavio. Colonização e contra-reforma agrária na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1979, p.137. 113
MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: Contexto, 2009. 114 CUNHA, Candido Neto da. ―Pintou uma chance legal: o programa Terra Legal no interior dos Projetos Integrados de Colonização e do Polígono Desapropriado de Altamira, no Pará‖. Agrária. Laboratório de Geografia Agrária - DG/FFLCH/USP. ISSN 1808-1150. nº 10/11, 2009, p. 26. 115 FEARNSIDE, Philip M. 1987. ―Projetos de Colonização na Amazônia Brasileira: objetivos conflitantes e capacidade de suporte humano‖. Caderno de Geociências. n. 2, p. 7-25.
60
já ocupadas.116 Como em outras partes da Amazônia, a ―ocupação espontânea‖ foi
frequente em Uruará, município no qual está situado o Projeto de Assentamento Rio
Trairão. Hamelin ao tratar sobre a evolução, a expansão espacial e a ―colonização
espontânea‖ neste município afirma:
[...] se em 1985 a maioria dos lotes de terra liberados em 1983 estavam ociosos, em 1987 eles estão todos ocupados, e a colonização já foi além. Em 1985, falava-se de ―bichos-da-mata‖ instalados a 30 Km da beira da estrada [Transamazônica], hoje se encontram importantes grupos de colonos a 50 Km; uma vicinal possui uma extensão de 86 Km e está totalmente ocupada [...] muitos pensaram que as taxas de crescimento [demográfico] significativamente elevadas na década de 70 iriam decair na década de 80, o que não parece ser o caso hoje.
117
Esta ―colonização espontânea‖ está na gênese da ocupação que deu origem
ao Projeto de Assentamento Rio Trairão. As famílias que se instalaram na área onde
anos mais tarde foi criado o assentamento começaram a chegar ao município de
Uruará nos anos 80. Tais famílias eram sem terras provenientes, em sua maioria, do
Nordeste. Antes de chegar ao município, essas últimas já haviam passado por
outros como Rondon do Pará, Altamira, Marabá etc. Em Uruará, estes grupos
familiares migrantes trabalharam e residiram nas áreas de ―colonização velha‖ e,
posteriormente, começaram a adentrar as áreas além das ocupações já existentes
em busca de terras nas quais pudessem trabalhar e estabelecer morada, como
afirma Miguel Mendes Santos:
[...] nós viemos do Maranhão em 85. Em família, aí a gente viemos em busca de terra para sobreviver, né? Lá nós morava em terra dos outros, né? [...] Então nós... a primeira vez que nós viemos, nós entremos, né? Entremos por picada, que não tinha nem estrada aqui nesse tempo, a estrada só vinha até Jeru. Viemos arrodiando o rio, né? Através de picadas, né? Então localizamos essa terra aqui, aí passamos... fizemos um barraquinhos. Começamos a trabalhar, aí também a partir dessa emergência, que nós tiremo essa terra, também já começou a colonização. Outras pessoas que também já entraram pegando essa oportunidade e demarcando pra frente, né?
118
116
FEARNSIDE, Philip M. ―Projetos de Colonização na Amazônia Brasileira: objetivos conflitantes e capacidade de suporte humano‖. Caderno de Geociências. n. 2. 1997. p. 7-25 117
HAMELIN, Philipe. ―O fracasso anunciado‖. In LÉNA, Philippe; OLIVEIRA, Adélia Engrácia (Orgs.) Amazônia: a fronteira agrícola 20 anos depois. Belém: CEJUP/ Museu Emílio Goeldi, 1992, p. 161-176. 118
TORRES, Mauricio et al. A luta por reconhecimento em um assentamento na Amazônia: relatório resultante de estudo sobre a situação ocupacional, social e econômica do Projeto de Assentamento Rio Trairão – Uruará-PA. Santarém, 2012. [Apensado ao Procedimento Administrativo n.
61
As ―ocupações espontâneas‖ implementadas pela população migrante que
chegava a área dos projetos integrados de colonização eram, em muitos casos,
regularizadas pelo Incra por meio da própria colonização oficial. A autarquia federal,
em suma, se dedicava a demarcar os lotes nessas áreas já ocupadas, regularizando
a ocupação destes ocupantes que haviam antecipado aos geômetros.119 Cunha, ao
tratar das situações que sucederam na área do Polígono Desapropriado de Altamira
na década de 1980, afirma que:
Em 1985, por pressão dos próprios camponeses, que promoveram manifestação na Esplanada dos Ministérios, a União autoriza a expansão do PIC Altamira e do PIC Itaituba nas partes inseridas no interior do Polígono Desapropriado de Altamira para além dos 10 quilômetros definidos como área prioritária. Essa autorização significou o prolongamento, sempre precário, dos travessões já abertos e a demarcação de alguns lotes (e, mesmo nestes, apenas a frente era demarcada).
120
No entanto, enfatiza Cunha121, a região já não era a mesma dos primeiros
anos da década de 1970. Algumas parcelas já haviam sido tituladas, especialmente
aquelas mais próximas às rodovias. As agrovilas ou pontos de paragens ao longo
das rodovias experimentavam um amplo crescimento do contingente populacional,
apesar da precariedade de infraestrutura. Os colonos amargavam as consequências
da descontinuidade dos investimentos, da ausência do Estado, das flutuações de
preços agrícolas e de outras dificuldades a que camponeses abandonados estavam
sujeitos. A persistência destes problemas conduziu a degradação paulatina dos
meios de vida dos colonos, o abandono de lotes e alta rotatividade das parcelas por
simples ocupações ou por venda informal de terras.122 Entretanto, o abandono foi,
1.23.02.00023/2011-60, do Ministério Público Federal, na Procuradoria da República no município de Santarém]. 119
Cf. CUNHA, Candido Neto da. ―Pintou uma chance legal: o programa Terra Legal no interior dos Projetos Integrados de Colonização e do Polígono Desapropriado de Altamira, no Pará‖. Agrária. Laboratório de Geografia Agrária - DG/FFLCH/USP. ISSN 1808-1150. nº 10/11, 2009, p. 20-56; HAMELIN, Philipe. ―O fracasso anunciado‖. In: LÉNA, Philippe; OLIVEIRA, Adélia Engrácia (Orgs.) Amazônia: a fronteira agrícola 20 anos depois. Belém: CEJUP/ Museu Emílio Goeldi, 1992, p. 167; FEARNSIDE, Philip M. 1987. Projetos de Colonização na Amazônia Brasileira: objetivos conflitantes e capacidade de suporte humano. Caderno de Geociências. n. 2. p. 7-25. 120 CUNHA, Candido Neto da. Op.Cit., p. 34. 121
Ibidem, p. 34. 122
GODAR, Javier; TIZADO, E. Jorge; PORKORNY, Benno. 2008. A expansão da fronteira na Transamazônica: o impacto comparado da agricultura familiar e da pecuária apud CUNHA, Candido Neto da. Op. Cit., p. 20-56.
62
em muito, superado pela nova e imediata demanda das famílias que continuavam a
chegar a área.
Para além disso, com o fim da colonização oficial, a prática de estender os
projetos sobre áreas já ocupadas por meio da ―colonização espontânea‖ perdurou. O
instrumento de concretização dessa prática, entretanto, era outro instrumento como
se verá a seguir.
3.6 O I PLANO NACIONAL DE REFORMA AGRÁRIA E OS PROJETOS DE
ASSENTAMENTO
Após o fim do regime militar e o advento do período democrático, é
aprovado, no governo de José Sarney, através do Decreto n° 91.766, de 10 de
outubro de 1985, o I Plano Nacional de Reforma Agrária, para o período de 1985 a
1989. Apesar das expectativas, esse I PNRA já nasceu trazendo retrocessos aos
avanços do Estatuto da Terra, como por exemplo, o Art. 2°, §2°, no qual o legislador
expressou que se evitaria, sempre que possível, a desapropriação de latifúndios.123
Para além disso, a aprovação do I PNRA encerrava oficialmente a política
dos projetos de colonização e os Projetos de Assentamento (PAs) emergiam como
uma dos principais instrumentos da Reforma Agrária. Esses Projetos de
Assentamento eram apresentados como os instrumentos da concretização da
reforma agrária e deveriam promover e democratizar o acesso, aos trabalhadores
rurais, a terras agrícolas.
Os Projetos de Assentamento criados no âmbito do primeiro PNRA,
majoritariamente, se sobrepõe as áreas de ―colonização espontânea‖. No Polígono
Desapropriado de Altamira não foi diferente. Desde o final da década de 1980, os
assentamentos criados nas áreas abrangidas no Polígono e não demarcadas para a
colonização oficial sobrepõem-se aos espaços onde já existe ocupação. Ainda que
recebam o nome de projetos de assentamentos de reforma agrária, as famílias
instaladas pelo Estado ou por conta própria na região continuam seguindo a mesma
lógica adotadas nos PICs: lotes retangulares distribuídos em terras públicas e sem
123
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Modo Capitalista de Produção, Agricultura e Reforma Agrária. FFLCH: São Paulo, 2007, p. 126.
63
levar em conta as especificidades ambientais, desmatamento extensivo para
implantação de culturas e pastagens.124
Os resultados do I PNRA mostraram que as apenas 89.950 famílias foram
assentadas no país. A maioria dos beneficiários localizava-se na região Norte na
qual foram assentadas 41.792 famílias. Terminado o período de aplicação do I
PNRA, o número de famílias de famílias que chegaram à terra correspondia a 6,4%
da meta inicial do Plano que era de assentar 1.400.000 famílias. Nos governos que
seguiram, Fernando Collor de Melo e Itamar Franco, o número de núcleos familiares
assentados não ultrapassou a faixa dos 50 mil. 125 Já no governo de Fernando
Henrique Cardoso iniciado em 1995, a criação de assentamentos rurais foi
intensificada
Comparando-se ao governo de Fernando Henrique Cardoso com os anteriores (Sarney e Collor/Itamar) verifica-se pelos dados divulgados pelo INCRA, que nos primeiros seis anos tinha assentado 373.210 famílias em 3.505 assentamentos rurais. Entre assentamentos inclui-se as regularizações fundiárias (as posses), os remanescentes de quilombos, os assentamentos extrativistas, os projetos Casulo e Cédula Rural, e os projetos de reforma agrária propriamente dito. Analisando-se os dados gerais referentes aos assentamentos de reforma agrária divulgados pelo Incra, constatou-se que o total chegou a 90 mil famílias, distribuídas 62% na região Amazônica, 22% no Nordeste, 10% no Centro-Sudeste e 6% na região Sul.
126
Esses números também foram notados na área de abrangência do Polígono
Desapropriado de Altamira. Entre os anos de 1995 a1999 foram criados 31 Projetos
de Assentamento, número que corresponde a 51% dos 61 PAs implantados na
área.127 Foi nesse período, mais especificamente no ano 1997, que o PART foi
criado. Assim como outros, a criação do assentamento se deu sobre uma área de
ocupação espontânea e reproduzia a mesma lógica dos projetos de colonização:
lotes retangulares nos quais não eram levadas em conta as especificidades naturais.
Como se verá no Capítulo 4, quando o assentamento foi criado em 1997, já haviam
famílias instaladas na área desde a década de 80.
124 CUNHA, Candido Neto da. ―Pintou uma chance legal: o programa Terra Legal no interior dos Projetos Integrados de Colonização e do Polígono Desapropriado de Altamira, no Pará‖. Agrária.
Laboratório de Geografia Agrária - DG/FFLCH/USP. ISSN 1808-1150. nº 10/11, 2009, p.48. 125
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Modo de Produção Capitalista, Agricultura e Reforma Agrária. São Paulo: FFLCH/Labur Edições, 2007, p. 129-130. 126
Ibidem, p. 142 127 CUNHA, Candido Neto da. Op. Cit., p. 37.
64
3.7 “ASSENTAMENTOS DE PAPEL”
Um segundo momento da política agrária que, particularmente, interessa
para a compreensão do Projeto de Assentamento Rio Trairão são as ações
implementadas no âmbito do II Plano Nacional de Reforma Agrária, principalmente,
no período de 2005-2006, lapso no qual foram criados os ―assentamentos
fantasmas‖, nos quais algumas famílias moradoras do PART foram ―assentadas‖,
bem como os Projetos de Desenvolvimento Sustentáveis (PDS) sobre os quais se
sobrepõe uma área requerida pelos assentados para ampliação do assentamento.
Entre os anos de 2005 a 2006 foram criados 21 projetos de assentamentos
(34,43% do total hoje existente) na área do Polígono Desapropriado de Altamira128 e
inúmeros Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS) na área de atuação da
Superintendência Regional do Incra em Santarém (SR 30). Para além, da clara
intenção de inflar os números da reforma agrária, apontada por Oliveira129, a criação
em massa de assentamentos e, especialmente, de PDS pelo Incra destinava-se, em
sua maioria, a abastecer a indústria da madeira ilegal. 130
Segundo Torres, no ano de 2006 a SR 30 assentou no papel mais famílias
que em todo o século XX na região Sul ou Sudeste.131 No dia 27/12/2006, por
exemplo, foram criados 20 assentamentos rurais ―com destinação de terras públicas
da ordem de 528.000 ha (quinhentos e vinte e oito mil hectares) e a inclusão em
relação de beneficiários de um número de famílias equivalentes ao total de famílias
assentadas em toda a região sul no ano de 2006‖.132
Alguns desses assentamentos embora existissem no papel, com Relação de
Beneficiários (RB) e Associação de Moradores, não passavam de ficção, haja vista
que as famílias nunca foram de fato assentadas. Os PDS eram implantados em
128 CUNHA, Candido Neto da. ―Pintou uma chance legal: o programa Terra Legal no interior dos Projetos Integrados de Colonização e do Polígono Desapropriado de Altamira, no Pará‖. Agrária. Laboratório de Geografia Agrária - DG/FFLCH/USP. ISSN 1808-1150. nº 10/11, 2009, p. 41. 129
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Modo Capitalista de Produção, Agricultura e Reforma Agrária. FFLCH: São Paulo, 2007, p. 168. 130
GREENPEACE. Assentamentos de papel, madeira de lei: relatório denúncia. Pesquisa; Cirino Lobo dos Anjos. Manaus, ago. 2007. 131
TORRES (2006) apud CUNHA, Candido Neto da. Op. Cit., p. 41. 132
. Cf. BRASIL. Justiça Federal da 1ª Região. Seção Judiciária do Estado do Pará. Vara Única da Subseção Judiciária de Altamira. Cautelar Inominada n.º: 2007.39.03.00716-0.
65
áreas absolutamente inapropriadas para ocupação e a revelia de qualquer critério
técnico, mas com reconhecido potencial madeireiro.133
A parceria, que, a partir de então, se estabelecia entre a Superintendência
Regional do Incra em Santarém e as empresas do setor madeireira envolvidas
nestes atos beneficiava a ambas, em detrimento de potencias beneficiários e na
contramão do estabelecido na legislação pátria: o Incra cumpria as metas da
reforma agrária e as madeireiras lucravam com e venda de madeira retirada dos
assentamentos.134
Tais atividades protagonizadas pela SR 30, em afronta ao determinado na
legislação pátria, foram percebidas pelo Ministério Público Federal que moveu a
Ação Civil Pública n° 2007.39.02.000887-7 135 , junto a Subseção Judiciária de
Santarém, propondo a interdição da movimentação administrativa da autarquia
referentes aos projetos de assentamento instituídos no período de 2005-2007,
excluindo-se os projetos de assentamento agroextrativistas, bem como a anulação
dos projetos de assentamento criados neste período na área de atuação da
Superintendência do Incra em Santarém.
Segundo Felipe Fritz Braga, então Procurador da República no município de
Santarém e signatário da inicial da Ação processual, não se tratavam apenas de
assentamentos de papel, mas também assentamentos de madeira:
Em dois anos, foram criadas quase duas centenas de assentamentos, mas a infraestrutura mínima todo o tempo esteve fora dos planos do governo federal. O que é um assentamento sem a construção pelo menos de estradas de acesso? Fomos então trabalhar sobre os processos de criação dos assentamentos, e a situação com que nos deparamos foi desoladora – e funesta: os assentamentos foram em geral criados sem pareceres técnicos mínimos que permitissem avaliar sua viabilidade social e ambiental. Por fim, nos deparamos com a Secretaria Estadual de Meio Ambiente assinando um acordo com o Incra, pelo qual seria possível a aprovação de projetos de exploração madeireira nos assentamentos mesmo sem o licenciamento ambiental. O quadro ficou então nítido: os assentamentos foram criados sem que houvesse qualquer preocupação do Incra com comunidades assentadas, para que efetivamente pudessem ocupar e viver dignamente nas áreas, mas trabalhava-se para que o setor madeireiro
133
GREENPEACE. Assentamentos de papel, madeira de lei: relatório denúncia. Pesquisa; Cirino Lobo dos Anjos. Manaus, ago. 2007. 134
Cf. BRASIL. Justiça Federal da 1ª Região. Seção Judiciária do Estado do Pará. Vara Única da Subseção Judiciária de Altamira. Ação Civil Pública n.º: 2008.39.03.000001-0. 135 Cf. BRASIL. Justiça Federal da 1ª. Região. Seção Judiciária do Estado do Pará. Vara Única da Subseção Judiciária de Santarém. Ação Civil Pública n.º: 2007.39.02.000887-7.
66
pudesse explorar a floresta. Vimos então que, na verdade, os assentamentos não eram só papel: eram assentamentos de madeira. Pedimos a urgente suspensão dos assentamentos e do acordo com a Secretaria de Meio Ambiente, o que foi prontamente atendido pela Justiça Federal, até que o Incra regularize tudo. Em reunião posterior com o diretor nacional do Incra, Raimundo Lima, este fez uma colocação reveladora: a política de criação de assentamentos do Incra se inseria numa política mais ampla de aumento da participação brasileira no mercado internacional de madeira tropical de 2% para 10%. Só que isso, como vimos, às custas das populações da zona rural, de seus modos de vida, de sua cultura, de sua tradição.
136
Em resposta a iniciativa processual do Parquet, em 24 de agosto de 2007, a
Justiça Federal exarou decisão na Ação Civil Pública citada acolhendo o pedido de
liminar em ordem a:
Interditar todos os efeitos de dos projetos de assentamento discriminados às f. 213-243, até completa modificação, eventualmente no curso do processo, do panorama que vem de ser referido (inexistência de viabilidade material e de licenciamento ambiental prévio pelo IBAMA), e todas as licenças expedidas pela SECTAM até a notificação desta decisão, bem assim impor proibição do referido ente político (Estado do Pará) de promover novos licenciamentos em projetos de assentamento do INCRA [...].
137
Em 12 de abril de 2011, ao julgar o mérito desta mesma Ação Civil Pública,
a Justiça Federal confirmou o teor da liminar anteriormente deferida e julgou
procedente o pedido para:
a. Declarar inválidas todas as portarias de criação dos projetos de assentamento (PA), projetos de assentamento coletivo (PAC), projetos de desenvolvimento sustentável (PDS), publicadas nos anos de 2005 e 2006, inclusive, pela Superintendência Regional do INCRA em Santarém. c. Invalidar quaisquer autorizações, licenças ou permissões de atividades de exploração florestal manejada naqueles projetos de assentamento (PA), projetos de assentamento coletivo (PAC), projetos de desenvolvimento sustentável (PDS), criados pelo INCRA entre 2005 e 2006, inclusive, já emitidas pela SECTAM (atual SEMA).
136
O Liberal, 2007 apud CUNHA, Cândido de. ―Pintou uma chance legal: o programa Terra Legal no interior dos Projetos Integrados de Colonização e do Polígono Desapropriado de Altamira, no Pará‖. Agrária. Laboratório de Geografia Agrária - DG/FFLCH/USP. ISSN 1808-1150. nº 10/11, 2009, p. 42. 137
BRASIL. Justiça Federal da 1ª. Região. Seção Judiciária do Estado do Pará. Vara Única da Subseção Judiciária de Santarém. Ação Civil Pública n.º: 2007.39.02.000887-7. Disponível em: http://www.prpa.mpf.gov.br/news/2007/Incra%20-%20projetos%20de%20assentamento.pdf. Acesso em: 05 mai. 2012.
67
d. Indeferir os pedidos de desinterdição de projetos de assentamento.138
Portanto, restam cancelados os assentamentos rurais nos quais algumas
famílias moradoras do Projeto de Assentamento Rio Trairão foram impropriamente
cadastradas.
138
BRASIL. Justiça Federal da 1ª. Região. Seção Judiciária do Estado do Pará. Vara Única da Subseção Judiciária de Santarém. Ação Civil Pública n.º: 2007.39.02.000887-7. Disponível em: http://www.in.gov.br/imprensa/visualiza/index.jsp?jornal=20&pagina=889&data=14/04/2011. Acessado em: 10 de mai. 2012.
68
4 MORADA DE TERRA: a ocupação camponesa da área hoje
compreendida pelo PART
A ocupação camponesa na área hoje compreendida pelo Projeto de
Assentamento Rio Trairão (PART) foi gestada no interior das circunstâncias
apresentadas no capítulo anterior e protagonizada por migrantes oriundos,
principalmente, dos estados do Maranhão, Bahia e Piauí. A história de vida desses
camponeses que na década de 80 iniciaram a ocupação da referida área se
assemelha a história de milhares de migrantes que, assim como eles,
desembarcaram na Transamazônica em busca da ―terra boa‖ e desocupada.
Apesar da semelhança, a trajetória de cada um desses sujeitos não deixa de
possuir características ímpares e ser marcada por experiências singulares que
influenciam decisivamente na forma como eles interpretam as lutas e constroem
seus sonhos. A percepção dessa diversidade de gente é essencial para
compreensão da organização social, dos conflitos nos quais eles se envolveram no
decorrer dos anos, das suas fragilidades e da própria gênese da ocupação.
Pretende-se neste capítulo, apresentar a trajetória dessa ocupação
camponesa na área hoje compreendida pelo PART: a entrada na terra, as
dificuldades enfrentadas, a criação do assentamento, o surgimento das
comunidades. Esse capítulo constrói-se essencialmente através das memórias
expressa pelos assentados e ocupantes que, mais que lembranças nostálgicas, são
reveladoras das experiências, das fragilidades, dos sonhos, dos ganhos e perdas
ocorridas no decorrer dos anos.
As entrevistas transcritas neste capítulo foram concedidas tanto por
assentados, como por ocupantes do assentamento, majoritariamente do sexo
masculino, cuja principal atividade é a agricultura. Estas entrevistas foram coletadas
tanto na Comunidade Menino Jesus, quanto na Comunidade Nossa Senhora do
Rosário, especialmente entre aquelas pessoas envolvidas na história da ocupação
da área onde o PART foi criado: seja naquela sobre a qual o assentamento foi
sobreposto, seja na da posterior fundação da Comunidade de Menino Jesus.
69
4.1 RIO TRAIRÃO: A ocupação
A ocupação camponesa da área hoje compreendida pelo PART, data da
década de 1980, especificamente 1988, ano em que um grupo de sete migrantes
começou a se instalar na área. Esses camponeses possuíam um destacável elo em
comum: a colonização oficial. Eram colonos e seus filhos, trabalhadores das
fazendas da faixa da Transamazônica, parentes de colonos, ou mesmo migrantes
que ―livremente‖ se deslocaram para a região:
[...] nós viemos do Maranhão em 85. Em família, aí a gente viemos em busca de terra para sobreviver, né? Lá nós morava em terra dos outros, né? ´[...] E aí devido a família ir crescendo e a gente não ter terra suficiente para trabalhar, né? Então nós viemos para a transamazônica, em 85. Aí também nós chegamos aí e ficamos morando na terra do sogro, aí quando foi em 88 nós decidimos descer pra tirar essas terras aqui embaixo [...] Essa colonização aqui, a partir de 88 foi que nós começamos aqui. Nós viemos do Maranhão, mas não viemos direto pra aqui. Nós viemos lá pra cima, onde mora meu sogro. Meu sogro faleceu, mas minha sogra mora lá até hoje.
139
Esses migrantes possuíam um histórico de vida marcado por entradas e
saídas da terra. A terra era uma busca constante dessa gente e a esperança do
encontro com essa terra desocupada, boa para trabalho e que lhes proporcionaria
condições de vida, os impulsionou a colocar o pé na estrada e a enfrentar os
atoleiros da Transamazônica e as outras dificuldades que o caminho revelaria:
Eu morava lá no Maranhão, em um lugar chamado Paxiba, trabalhando mais um parente nosso, sabe? Aí o véi meu sogro veio pra cá e conseguiu essas terras aqui e aí foi e escreveu pra mim vir também porque tinha terra pra trabalhar, terra desocupada. Aí eu vim, ajeitei lá e vim mais a família. Tinha uma criancinha de um ano. Aí quando nós chega na estrada tinha muito atoleiro, mês de março, muita chuva. Nós gastou doze dias de Imperatriz até Uruará. A comida que a gente achava era um pedacinho de macaxeira, um cruzeiro cada pedacinho de macaxeira que a gente comprava. A gente trouxe o que comer, mas acabou na estrada, foi um sofrimento. Eu vinha com outra família, mais ela aqui. Com outra família... aí a casa que nós achava pra dormir era casa de palha, molhava a noite todinha. Aí ela chorava, a criança
139
Entrevista registrada em áudio, concedida por Miguel Mendes Santos, na Comunidade Nossa Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 17 de julho de 2011.
70
chorava e eu ficava calado. Era o jeito, ficava calado. Reclamava não, até que nós chegou. Gastou doze dias e chegou aqui em Uruará, do Uruará nós veio aqui pro travessão. Do travessão nós veio pra casa do Ali, da casa do Ali nós veio pro lote.
140
Vencer os atoleiros, as noites chuvosas e o caminho de chão que os
separava do sonhada morada da terra era apenas o início da prolongada e penosa
luta para permanecer na terra, mas um início que marcaria a memória individual e
coletiva daquela gente. Os pioneiros da ocupação, que ainda residem no PART,
guardam a lembrança do ano em que chegaram no travessão, dos companheiros de
ocupação, dos barracos que ajudaram a levantar, das casas onde moraram e da
dolorosa felicidade que aqueles primeiros momentos na terra lhes proporcionavam.
Nada lhes escapou da memória. Nem a felicidade e a euforia de encontrar a terra,
nem a dor provocada pelas dificuldades de permanência que se seguiriam.
―Era animado assim, parece que tava acertando na loto, ganhando muito
dinheiro. Era a animação pra mais tarde possuir a terra‖.141 O início da ocupação é
constantemente evocado e contrastado com as situações anteriormente vividas por
essas pessoas, quais sejam, não ter terra, morar de favor, pagar renda. Essas
situações anteriores são normalmente identificadas com o sofrimento. ―Eu não dou
nem conta de contar meu sofrimento quando eu nasci pra cá‖.142 Ser pobre e não ter
terra para viver é sofrer. ―Lá pra fora, quem tá pra lá que não tem terra, os fraco lá
fora sofre‖.143 Assim, a entrada na terra é apresentada como uma vitória sobre uma
vida anterior e os sofrimentos a ela relacionados.
A gente gastava mais de um dia de viajem de lá até aqui. Só a mata pura. A gente ia passando, o mato pegava a boneta da gente e jogava pra trás. Ai tinha hora que era muito peso, a gente escorregava, caia e levantava e era impossível a vida. A onça atravessava por nós na
140 Entrevista registrada em áudio, concedida por Jesuíno Mendes de Oliveira, na Comunidade Nossa
Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 16 de julho de 2011. 141 Entrevista registrada em áudio, concedida por Jesuíno Mendes de Oliveira, na Comunidade Nossa
Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, em 16 de julho de 2011. 142 Entrevista registrada em áudio, concedida por Adaílde Barros dos Santos, na Comunidade Nossa
Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 16 de julho de 2011. 143 Entrevista registrada em áudio, concedida por Jesuíno Mendes de Oliveira, na Comunidade Nossa
Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 16 de julho de 2011.
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estrada, pulava a estrada, tinha hora que queria enfrentar a gente, mas era muita gente, e venceu a batalha.
144
A entrada na terra, entretanto, era apenas uma de tantas outras batalhas
que aquele grupo inicial teria de vencer para nela permanecer. A ocupação da área
iniciou-se sem condições mínimas de instalação. Não havia escola, posto de saúde,
estradas, somente as matas e o Rio Trairão. Apesar da falta de infraestrutura e
acessibilidade, os camponeses começaram a separar, organizar e cultivar os lotes.
Inexistindo estradas, o trajeto até os lotes era feito em grupo e a pé por meio de
picadas abertas nas matas.
Então nós... a primeira vez que nós viemos, nós entremos, né? Entremos por picada, que não tinha nem estrada aqui nesse tempo, a estrada só vinha até Jeru. Viemos arrodiando o rio, né? Através de picadas, né? Então localizamos essa terra aqui, aí passamos... fizemos um barraquinhos. Começamos a trabalhar, aí também a partir dessa emergência, que nós tiremo essa terra, também já começou a colonização. Outras pessoas que também já entraram pegando essa oportunidade e demarcando pra frente, né?
145
Frente às ausências e dificuldades, esses camponeses estabeleceram
relações de solidariedade e ajuda mútua. No inicio da ocupação, estas relações não
se restringiam as longas caminhadas na mata. Elas, também, abarcavam o trabalho
em mutirão nos lotes: a construção de barracos, o fazimento de roçados.
Ia fazer a roça de fulano, nós ia lá todo mundo e um dia nós fazia. Tem um mutirão em tal lugar, ia todo mundo. Tem isso aqui pra fazer, barrear um barraquinho daquele ali ó, daquele que tá caindo lá, chegava aqui todo mundo e arrodiava ali, quando dava mais tarde e podia entrar pra dentro, tava tudo ok.
146
144 Entrevista registrada em áudio, concedida por Jesuíno Mendes de Oliveira, na Comunidade Nossa Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 16 de julho de 2011. 145
Entrevista registrada em áudio, concedida por Miguel Mendes Santos, na Comunidade Nossa Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 17 de julho de 2011. 146 Entrevista registrada em áudio, concedida por Pedro Torquato de Oliveira, na Comunidade Nossa
Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 18 de julho de 2011.
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Nos primeiros meses, a terra alcançada, ainda, não era morada desses
camponeses. As mulheres e as crianças permaneciam na área de colonização
antiga e os lotes eram apenas espaços de trabalho dos homens. Para garantir, ao
mesmo tempo, o sustento de suas famílias e obtenção de meios para instalação
definitiva na área, esses colonos dividiam suas horas de trabalho em atividades no
lote e atividades temporárias em terras de terceiros.
Aí depois a gente veio, sete posseiros juntos, com os cacai nas costa. A gente trazia as coisas e... ia ranchar no barraco do Gildo, que era parente do Moreira, muito amigo da gente. E do barraco do Gildo nós vinha pra cá, pro lote, os posseiros. [...] Lá [na faixa] eu ia pro trecho, trabalhar no trecho, pegava os bagui, o saldo eu pegava, eu pegava os bagui e trocava em casa [...] a metade pra família e a metade eu botava em um saco e trazia pra comer, aqui embaixo.
147
Apesar da persistência de algumas dificuldades, ainda em 1988, os
camponeses se transferem com suas famílias para os lotes nos quais estavam
trabalhando. A chegada das famílias nos lotes é um momento marcante na história
da ocupação da área, porquanto estabeleceu a necessidade de criação de outros
espaços de sociabilidade na área.148
4.2 NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO
A chegada das crianças, jovens e mulheres na área de ocupação é um
momento marcante. Com a chegada das famílias, a terra deixa de ser apenas o
lugar de trabalho e passa a ser também o local de morada. Local de habitação, mas,
principalmente, local no qual passam a ser vivenciadas as experiências relacionadas
ao espaço, à terra e à convivência social. Experiências essas importantes para o
fortalecimento dos laços de sociabilidade do núcleo familiar e para a reprodução da
família.
A indissociabilidade, que naquele momento se fundou, entre o ―trabalhar‖ e o
―morar‖ na terra, resultou no estabelecimento de espaços que promoveram a
147 Entrevista registrada em áudio, concedida por concedida por Jesuíno Mendes de Oliveira, na Comunidade Nossa Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 16 de julho de 2011. 148
É necessário destacar que a carência de depoimentos das mulheres do assentamento se deve, em parte, ao fato de durante a coleta das entrevistas ter se solicitado aos membros da família que apontassem a pessoa que relataria a história da vida e das vivências da família.
73
proximidade entre as famílias e o enraizamento na área, diminuindo a necessidade
de deslocamento para cidade. ―Aí também a gente decidiu fazer essa área aqui, tirar
essa área pra vila, e também de imediato a gente formou uma comunidade‖.149 A
nova comunidade ganhou o nome de Nossa Senhora do Rosário e a pequena vila
comunitária foi batizada de ―Santa Fé‖.
Na história da fundação da Comunidade, da Vila e do próprio início da
ocupação da área é recorrente a menção ao nome de uma senhora de nome Jacinta
Maria da Conceição. Segundo os relatos dos colonos mais antigos, Jacinta Maria da
Conceição era uma senhora que habitava a área, anteriormente a chegada deles e
que se intitulava dona de uma faixa de terra que incluía a área da vila e dos lotes
das famílias a época.
Aí depois que eu estava com três anos morando, dois anos morando aqui dentro, reuniu o pessoal pra nós vim marcar terra aqui embaixo, na área da véa Jacinta. Aí depois a gente veio, sete posseiros juntos, com os cacai nas costa.
150
Aqui não tinha nada, aqui tinha só mata mesmo e uma senhora por nome de Jacinta Maria da Conceição que tinha umas aberturinhas aqui, daqui a acolá ela tinha uma aberturinhazinha que ela dizia ser tudo dela, né? E aí nós precisando de terra, aí procuramos também tirar um pedacinho pra nós também.
151
Ali era de uma velha que tinha aí, ela dizia que até aqui era dela [...] era da dona Jacinta. Cê vê como é que é. Eu trabalhava aqui e quando eu passava lá numa fazendinha que tem lá em cima, ela me chamava lá, no barraco dela, lá na casa, no barraco não, uma casona bonita, e aí falava, ―Vamo tomar um cafezinho, você tá lá abrindo abrindo as minhas terra...‖ No caso ela quis dizer que eu tava trabalhando de graça pra ela. Entendeu.
152
Aparentemente, nunca houve conflitos pela terra entre Dona Jacinta e os
ocupantes. Sendo, inclusive, relatado pelos mais antigos que ela teria doado área da
149
Entrevista registrada em áudio, concedida por Miguel Mendes Santos, na Comunidade Nossa Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 17 de julho de 2011. 150 Entrevista registrada em áudio, concedida por Jesuíno Mendes de Oliveira, na Comunidade Nossa
Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio
Trairão, Uruará, em 16 de julho de 2011. 151
Entrevista registrada em áudio, concedida por Miguel Mendes Santos , na Comunidade Menino Jesus, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 17 de julho de 2011. 152 Entrevista registrada em áudio, concedida por Pedro Torquato de Oliveira, na Comunidade Nossa
Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 18 de julho de 2011.
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vila, exigindo em troca que fosse dado o seu nome a escola da comunidade. A
solicitação de Dona Jacinta foi atendida. Quando a escola da comunidade foi
inaugurada recebeu o nome de ―Jacinta Maria da Conceição‖, nome pelo qual até
hoje a escola é conhecida.
É, exatamente. Aí o nome do colégio foi [...], foi Jacinta [...] Maria da Conceição, que foi essa velhinha que eu tô falando que já habituava, antes de nós ela já... andava aí atravessando o rio cheio aí montada em burro... Aí ela tocava a vida dela, né? Aí foi colocado o nome dessa senhora que foi colocado no nome do colégio.
153
A escola da comunidade foi fundada no mesmo período em que foi aberta a
primeira estrada que ligava a comunidade a Transamazônica. Para a obtenção de
ambas, os camponeses contaram com o auxílio do vereador José Carlos Vilas Boas.
A estrada e a escola, ainda que precárias, foram recebidas com entusiasmo.
Ajudou muito. Foi um senhor, por nome de Zé Carlos, que morava lá em cima, que tinha muito interesse por isso aqui, muito interesse. O interesse dele era criar a Vila Santa Fé, fazer alguma coisa por esse povo. Aí, um certo ano, em política, candidataram ele, o povo pediram a ele pra se candidatar ele como vereador. Se candidatou, o povo votou nele e ele ganhou. Aí foi brigar por esse carreiro, entendeu? E eu não sei o que aconteceu lá, eu sei que ele conseguiu esse carreiro, com muita dificuldade, mas um dia saiu um trator na Vila Santa Fé. Um tratorzinho cinquenta, por debaixo dos matos que nem um tatu. Nós ajudando a empurrar. Nós juntava todo mundo e saia correndo, fazendo poeira na estrada. Mas era bom! Todo mundo animado.
154
É quando... quando formou a escola, né? Quer dizer, foi o... já o Zé Carlos que era o... que ele foi eleito a candidato, né? Aí em seguida ele tirou essa estradazinha até aqui, trator até aqui. O trator chegou aqui na vila, aí foi que começou, né? A professora já era daqui também, filha de colono, que foi a comadre Liene. E aí começou a dar aula, começou aumentar os trabalhos, né?
155
A inexistência de estradas que ligassem a comunidade à Transamazônica é
sempre apresentada como a principal dificuldade enfrentada naqueles primeiros
153
Entrevista registrada em áudio, concedida por Pedro Torquato de Oliveira, na Comunidade Nossa Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 18 de julho de 2011. 154 Entrevista registrada em áudio, concedida por Pedro Torquato de Oliveira, na Comunidade Nossa Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 18 de julho de 2011. 155
Entrevista registrada em áudio, concedida por Miguel Mendes Santos, na Comunidade Nossa Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 17 de julho de 2011.
75
anos, porquanto impossibilitava o escoamento da produção e, até mesmo, o
deslocamento até a cidade. A ocupação estava localizada a cerca de 70 quilômetros
da cidade. Inexistindo estradas, o transporte era ofertado de forma precária. Era
necessário vencer 45 quilômetros de picadas, para se chegar ao lugar no qual, uma
vez por semana, o carro de linha passava.
Porque eu fazia tina de arroz aí, furava um buraco por baixo para as galinhas e os porcos comer, porque não tinha pra quem vender. Porque era só uma picada daqui até lá no Simão [...]. Daqui a quarenta e cinco quilômetros é que vinha um carro, uma vez por semana. De lá pra cá era só na picadona do facão, tinha que ser dois. Era perigoso e era cansativo, era perigoso assim, por causa dos bichinhos do mato, né? E cansativo porque... mas isso era difícil, era por acaso, quando dava sorte. Botar quarenta, vinte e cinco, trinta quilos nas costas e arrastar pra cá, não era brincadeira.
156
Nos anos que seguiram a abertura da estrada patrocinada pelo vereador, o
Poder Público não promoveu nenhuma obra de infraestrutura ou de manutenção.
Abriu-se uma estrada de acesso a área, em 1995, não pelo ente público, mas por
uma empresa madeireira que atuava na região. Através das vias abertas a empresa
escoava a madeira que intensamente extraia da área. Os colonos, também,
utilizavam a estrada.
Melhorou um tempo. Entrou uma firma madeireira, fez um arrastão nessa estrada aí, fez uma estrada boa, aí melhorou. [...] Aí a gente foi começando a plantar, e foi começando a plantar, e foi começando a plantar e o que a gente produzia aqui, já levava pra cidade. Chegava lá e já vendia, mesmo que fosse pros atravessador, mas já vendia. Então melhorou, muito [...]. De 95 pra cá é que foi melhorar, pra trás... era duro, mas era duro! Não era brincadeira.
157
Normalmente, a localização dos assentamentos está intimamente ligada às
relações que os assentados estreitam com os madeireiros. Esses últimos,
normalmente, em troca da exploração da madeira da área, abrem e mantém
estradas que duram o tempo de exploração do estoque. A relação que a partir daí se
156 Entrevista registrada em áudio, concedida por Pedro Torquato de Oliveira, na Comunidade Nossa
Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 18 de julho de 2011. 157 Entrevista registrada em áudio, concedida por Pedro Torquato de Oliveira, na Comunidade Nossa
Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 18 de julho de 2011.
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estabelece é uma relação de sobrevivência. São as madeireiras que garantem, em
muitos casos, as estradas, o transporte nas situações de emergência e que
permitem um mínimo de circulação monetária nos assentamentos, através do
aviamento para a exploração de madeira.158
No Projeto de Assentamento Rio Trairão, a relação que se estabeleceu entre
o grupo e a madeireira, até onde se pode perceber, também está associada à
manutenção da estrada. A necessidade da estrada tornou suportável a presença da
madeireira. Uma relação de dependência e, em certo ponto, de sobrevivência que
perdurou por mais de dez anos.
4.3 RIO TRAIRÃO: O Assentamento
Em 1997, uma nova esperança reanimou os camponeses de Nossa Senhora
do Rosário. No referido ano, a área na qual a comunidade estava inserida foi
destinada, pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, para a criação
de um Projeto de Assentamento: o PA Rio Trairão. Entretanto, as expectativas que
cercaram a criação do assentamento logo se mostraram frustradas.
O Incra falou de vim aqui, falou de vim, disse que vinha. Até que um dia apareceu um agrimensor. O Incra veio fazer uma reunião aí, dizendo que vinha medir as terras, medir as terras, aí mandou um agrimensor vir aqui medir as terras. Só mediu a frente, nós espera botar as pedras, colocar as pedras e fazer levantamento e nunca veio, nunca veio não. E outra também, os paus que eles colocou foi vara de mato verde, de brejo, aí no outro ano a enchente levou tudo, apodreceu, acabou. Agora eu coloquei uns marco de ferro [...]. Agora eu fui em um pouco na experiência e coloquei uns marcos de ferro, tá aí. Eu sei mais ou menos. Agora tem deles que não sabe onde é a divisa deles. Sempre o Incra vem fazer reunião aí, mas não aparece pra medir. Aqui o pessoal trabalha um dentro da terra de um, um dentro da terra de outro.
159
Não são poucos os que acreditam que as questões agrárias se resolvem com
o simples ato administrativo que cria os assentamento de reforma agrária e que o
ato porá fim às necessidades dos assentados. Porém o assentar de famílias,
158
BENATTI, José Heder. ―Questão fundiária e sucessão da terra na fronteira oeste da Amazônia. Novos Cadernos NAEA. ISSN 1516-6481, v. 11, n. 2, Belém: UFPA, 2008. p. 104 e 111. 159 Entrevista registrada em áudio, concedida por Jesuíno Mendes de Oliveira, na Comunidade Nossa
Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 16 de julho de 2011.
77
supostamente, sem terra apenas encerra um drama e da inicio a outros
problemas 160 ou mesmo é marcado pela persistência dos velhos. As famílias
assentadas no PART não tardaram a perceber isso.
Os benefícios, inicialmente, anunciados pelo órgão federal não foram
implementados: os lotes não foram demarcados, a infraestrutura prometida não veio,
os créditos de habitação ―sumiram‖. O Incra passou a ser apontado como o
responsável pelos problemas decorrentes da não implementação das políticas
públicas prometidas.
[...] estrada, a questão da educação, a questão da saúde e mais outras coisinhas que eles falaram por aí... os lotes, ia demarcar tudinho, ia cortar, entregar, nada feito. Aqui eles fizeram um esqueleto de boto. Entramos em parceria com o Incra e foi feito um esqueleto de boto. Botaram umas pedras na frente, só na frente, entendeu? E aí, a gente aqui no mato não sabe fazer cimento, não dava pra comprar também, aí botou qualquer pau e acabou. E nunca mais, só promessa, promessa.
161
O não cumprimento das promessas alardeadas durante a criação do PART
despertou a descrença na capacidade de atuação da autarquia e contribuiu para a
criação de uma imagem negativa, por partes dos assentados, sobre o Incra, forjada
a partir da inoperância, das denúncias de corrupção e dos equívocos cometidos
durante o assentamento das famílias. Equívocos como aquele que deixou de fora da
lista de beneficiados do PART, um dos fundadores da ocupação que antecedeu o
assentamento.
Na época eu tirei esse lote aí, mas não consegui pegar acesso ao assentamento devido a uns atrapalho aí, que a pessoa assentou na área que era pra me assentar, outro assentou. Mas só que foi só no papel, né? Então, isso aí tem que ficar bem claro também, né? Que eu... tenho que receber ainda esse assentamento, porque eu nunca fui assentado, nunca fui assentado.
162
A descrença na autarquia se agravou, ainda mais, com as denúncias de
―sumiço‖ dos créditos da habitação. A maioria da população do PART afirmou não 160
MARTINS, José de Souza. O Sujeito Oculto: ordem e transgressão na reforma agrária. Porto Alegre: UFRGS, 2003, p. 09. 161 Entrevista registrada em áudio, concedida por Pedro Torquato de Oliveira, na Comunidade Nossa Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 18 de julho de 2011. 162
Entrevista registrada em áudio, concedida por Miguel Mendes Santos, na Comunidade Nossa Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 17 de julho de 2011.
78
ter recebido estes créditos e aqueles que dizem ter recebido, aduzem o recebimento
pela metade. A denúncia do esquema de fraude na construção das casas do PART
e acusação de uma atuação corrupta da autarquia é a narração mais recorrente
entre os assentados quando o nome do Incra é mencionado.
Apareceu um rapaz aí com um negócio de um crédito habitação, foi feita as proposta e disse que quem não assinasse não recebia o imóvel. Mas não tem jeito de assinar uma coisa sem receber, mas se não assinar não vai receber. Então a gente ficou, a gente aqui, quase no ponto obrigado a assinar, na base da pressão do próprio Incra. Incra, eu falo, assim, o Incra porque eram os funcionários. Todo mundo assinou, porque queria. Quem é que não queria uma casinha bem ajeitadinha aqui dentro desse mato? Assinei. Todos tiveram que assinar. Foi a proposta, se não assinasse não ia receber. Nunca nem tinha visto essas coisas, mas a gente acreditou, era um órgão do governo! A gente não sabia que isso podia acontecer. E depois andaram ―pipinando‖ umas pro lado e outras pra outra aí, perdeu meio mundo de material jogado por aí e pronto, acabou-se.
163
Para facilitar o acesso aos fomentos que seriam disponibilizados pelo Incra e
pela Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac), os assentados
criaram uma associação, ainda existente e atuante, denominada Associação dos
Pequenos Produtores Rurais de Santa Fé. A primeira diretoria da Associação foi
afastada, sob a suspeita de envolvimento no desvio de créditos repassados ao
PART.
Entraram créditos que foram desviados, então foi necessário que outra diretoria assumisse a associação. A Associação tem 14 anos e só teve quatro direções: [...] Meu mandato começou em 2004, desde lá comecei a ir ao Incra para pedir estrada e outras melhorias. Participei de uma manifestação no Incra de Rurópolis (em 2005), por causa dos créditos de habitação e por demarcação. Para tentar fazer a demarcação, a associação levou proposta até o Incra de garantir recursos, tendo o Incra que garantir apenas o topógrafo.
164
163
Entrevista registrada em áudio, concedida por Pedro Torquato de Oliveira, na Comunidade Nossa
Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 18 de julho de 2011. 164 Entrevista registrada em áudio, concedida por Assentado III, na Comunidade Nossa Senhora do
Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 18 de julho de 2011.
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Fotografia 1 - Exemplos de moradias comumente encontradas no Projeto de Assentamento Rio Trairão. As casas de taipa, de madeira serrada e de madeira roliça são as formas de construção mais frequentes. As casas que seguem o modelo do Incra são raras no PART.
Fotos: Kerlley Diane Santos
80
Os assentados costumam afirmar que, diferentemente da primeira, as
diretorias que se seguiram vêm encampando lutas em busca de melhorias para o
PART e buscando parcerias tanto junto ao Incra, como a organizações que prestam
assistências técnica a agricultores. A persistência dos problemas relacionados à
falta de infraestrutura e à demarcação dos lotes, os anima a lutar por melhorias para
o assentamento, porquanto sabem os prejuízos que a inexistência dessas têm
ocasionado aos assentados que permaneceram nos seus lotes no decorrer dos anos
e para aqueles outros que chegaram após a criação do assentamento.
A ausência de infraestrutura, transporte e estradas que facilitassem o
deslocamento da produção dos assentados até o município contribuíram para uma
substantiva rotatividade da população, para o abandono e para a venda dos lotes
por preços irrisórios.
Muita gente que veio e desistiu, mesmo depois desses carreiro aí, dessas estradinha aí... Muitos... Olha, tinha gente que tirava terra, eu conheço um lote aqui [...] que o cara que era dono dele, vendeu ele por uma porca. Um lote de vinte alqueire, vendeu por uma porca. Uma porquinha véia... pra botar pra fritar é obrigado comprar banha de outra pra botar nela. Outro dia ali, vendeu por uma caixa de óleo de soja. Tá entendendo?
165
Os lotes abandonados concentraram-se, principalmente, ao norte do
assentamento, principalmente, por ser a área de acesso mais precário e foi lá, que
um grupo de famílias fundou a segunda comunidade do assentamento.
4.4 MENINO JESUS
A Comunidade Menino Jesus foi fundada em 2006 por um grupo de sete
famílias sem terra que viviam na Vila Santa Fé. Oriundos de outros estados e com
passagens por várias localidades da Amazônia e do Nordeste, a experiência que
uniu as trajetórias sociais da maioria dessas famílias fundadoras, foi o período em
que trabalharam na Fazenda Santa Fé, conhecida regionalmente como Fazenda
165
Entrevista registrada em áudio, concedida por Pedro Torquato de Oliveira, na Comunidade Nossa Senhora do Rosário, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 18 de julho de 2011.
81
Vemagg e situada às proximidades do Assentamento, no Travessão 200 Norte, o
mesmo que liga o PART à Transamazônica.
Quatro das famílias fundadoras residiram e trabalharam na Fazenda Vemagg
durante um substantivo espaço de tempo. Vivendo próximos e trabalhando juntos,
esses núcleos familiares acabaram por constituir laços entre si, tendo, inclusive, uma
das famílias se formado dentro da Fazenda.
Quando a gente chegou na fazenda, eu já conhecia eu já tinha meu sogro, né? Que tava comigo já, que é o seu E. , aí a gente não se conhecia os outros. João Luís, Pipira, esses a gente não conhecia, né? Mas, aí basta que nós fizemos os barraquinhos tudo pertinho um do outro, fomos trabalhar junto, a gente se conheceu e ficou como família, hoje a gente se considera aqui na comunidade como se é uma família, faz parte da nossa família. [..] O Pipira era solteiro, né? E, aí através desses trabalhos, que a gente trabalhava junto, essa mulher chegou, a mulher dele hoje, ela veio visitar a prima dela, que é minha mulher e a outra menina que trabalhava junto com a gente [...] aí nisso o Pipira trabalhava junto com a gente, aí houve esse casamento, a gente fez um casamento.
166
As lembranças da Fazenda, entretanto, não se limitam a esses momentos de
constituição de laços, mas revelam, também, a dureza da vida e do trabalho que
estes homens e mulheres desenvolviam no imóvel. As famílias relatam,
normalmente, terem sido expostas a situações degradantes de vida e trabalho no
imóvel. Segundo o que foi possível extrair das informações e de outros documentos
consultados o imóvel no qual as famílias afirmam ter trabalhado foi autuada em
2002.167 O episódio é relatado pelas famílias:
A gente morava nuns barraquinho de lona. Assim sabe, tampado com tábua, com uns pedaços de tábua que sobrava dos viveiros e a gente ia lá e tampava pra fazer um barraquinho, cobria de lona e ficava de baixo. [...] A fazenda pagava mal, quando pagava. Era preciso plantar para sobreviver, criar galinha por conta. Uma vez, a comida não chegou no carro e nós tivemos que apanhar palmito e caçar coelhos pra dar ―de comer‖ para as criança. Quando a fiscalização veio a primeira vez, teve até um rapaz que foi com a gente lá no barraco, um dia foi com a gente se fazer que estava roçando lá e disse que era perito federal. Eu acho que era sim, porque depois ele falou ―as meninas [servidoras públicas] vão vir aí e vai dar um
166
Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante III, na Comunidade Menino Jesus, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 13 de julho de 2011. 167
INCRA. SR30. Processo n° n° 54501.001474/2010-37, apenso ao Processo n° 54501.003347/2009-39. Instaurado para tratar da vistoria do imóvel rural ―Fazenda Santa Fé‖. Santarém, 2010.
82
jeito de arrumar isso aí pra vocês‖. E aí foi que, quando as meninas chegaram, a gente passou pra elas o que estava passando, depois daí não saiu mais nada, de jeito nenhum. Fechou [a fazenda] e eles [administradores da fazenda] nem quiseram pagar a gente mais. Era pra a gente mentir, contar a história bonita que ia sair esse recurso que era pra a gente receber o salário da gente. A gente não recebeu foi nada, aí fiquemos mais uns seis meses esperando pra ver se eles pagava, né? Aí foi onde eu saí pra procurar o destino de Santa Fé.
168
Após a autuação da Fazenda Vemagg, as quatro famílias permaneceram no
imóvel à espera do pagamento do que lhes era devido ou da prestação de
assistência. Seis meses se passaram, e as famílias, descrentes do recebimento de
alguma prestação, resolveram deixar a fazenda e colocar os pés na estrada,
novamente. O ano era 2003 e o destino um assentamento de reforma agrária
localizado no mesmo travessão em que a fazenda estava situada.
Tratava-se do PA Rio Trairão. À época, as famílias solicitaram a associação
do assentamento, permissão para se instalarem na Vila. Recebida a autorização
desta última, as famílias se estabeleceram nas parcelas comunitárias da Vila Santa
Fé e ali viveram até o ano de 2006. A vida na vila tinha suas desvantagens. Além
das pequenas proporções, a área destinada ao cultivo era de uso comum, razão
pela qual as pessoas adentravam na área e ―mexiam‖ nas plantações.
Quando a gente morava na vila Santa Fé, a gente possuía uma chácara [50x25m] e plantava no lote comunitário. Mas, não era bom. Os bichos comiam as roças e as pessoas mexiam nas plantações por estarem em local público.
169
Os inconvenientes relacionadas à limitação do uso da terra, agravavam-se a
medida que os membros das quatro famílias aumentavam. A crescente necessidade
de obtenção de meios que permitissem o sustento das famílias fê-los, juntamente
com outras duas famílias que também residiam na Vila, apresentar, mais uma vez, à
associação do assentamento, a demanda por uma maior porção de terras. Frente à
requisição das famílias, a associação aventou a possibilidade de ocupação dos lotes
abandonados do PART.
168 Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante III, na Comunidade Menino Jesus,
durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 13 de julho de 2011. 169 Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante III, na Comunidade Menino Jesus,
durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 13 de julho de 2011.
83
Aí nós veio para a vila. Nos morô lá três anos. Aí nós conseguimô aí conversar [com a Associação]. Aí falamo [...] nós precisa de uma terra para trabalhar, pra nós pude nós arrumar o sustento da família, né? [..]É rapaz terra pra vocês eu não digo que vou dar não, mas se vocês tiver coragem de trabalhar pra criar a família de vocês, tem muita terra aí desocupada, né? Então vocês vão e descem aí mete a cara até onde a venta topar. No lugar que vocês achar um lote [...] qué tá desocupado, sem ter nada feito dentro lá você trabalha que lá vai ser seu, porque aí teve um assentamento velho, mas é esses assentados não precisa de terra. Nessa época já fazia um cinco, a seis anos que tinha sido assentado. O Incra tinha dado terra pra eles. Então, aí, eu digo pois, então nós vamos. Então nós chego até aqui através desta palestra.
170
As parcelas apontadas localizavam-se na parte norte do assentamento. Esses
lotes estavam há anos abandonados ou nunca haviam sido ocupados pelas pessoas
que foram formalmente neles assentadas. A escolha de lotes tão distantes da Vila e
mais ainda da Transamazônica não se deu tanto pela vontade das famílias
requerentes ou da Associação do PART, mas foi a forma encontrada para evitar
conflitos com as pessoas que concentram lotes no interior do assentamento.
A concentração de lotes acarreta graves consequências para a população do
PART que vão desde a descontinuidade entre as comunidades, como bem
exemplifica o Mapa 2, ao afloramento de intimidações contras as pessoas que se
opõem a essa forma de ocupação e se manifestam favoráveis a regularização da
situação ocupacional do assentamento. As famílias que juntas formaram a
Comunidade Menino Jesus sentiram isso na pele.
Quando a gente chegou aqui os Polaquinhos
171 já eram donos daquela
área todinha, vinte e dois lotes, sendo que a gente passou por dentro da área todinha, desocupada, e não tivemos direito de tirar nem um lote. A gente nem tentou ocupar porque eles tipo ameaçam, sabe? Se entrar lá, tem que sair. Aí, pra não criar problema a gente estava querendo se organizar, a gente estava fugindo de problema, eu nunca gostei de problema na comunidade, né? Aí a gente falou, vamos procurar um lugar que não dá tanto problema. Com eles, era problema demais. [...] Não gosto desse tipo de coisa, a gente tentou evitar ao máximo. Até porque a gente tudo era pai de família, né? Queria caçar um lugar pra ter sossego.
172
170
Entrevista registrada em áudio, concedida por Miguel da Silva Soares, na Comunidade Menino Jesus, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 13 de julho de 2011. 171
Designação dada pelos moradores do PART, durante os trabalhos de campo, a um grupo de irmãos que concentra vários lotes no assentamento, sem morar no seu interior. 172 Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante III, na Comunidade Menino Jesus,
durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 13 de julho de 2011.
84
Mapa 3 - A concentração de lotes provoca a descontinuidade entre as comunidades do Projeto de Assentamento Rio Trairão.
Fonte: TORRES et al, 2012.
85
Intimidadas e receosas das possíveis consequências de uma tentativa de
ocupação dos lotes concentrados, as famílias se distanciaram e terminaram por se
fixar no extremo norte do assentamento, em lotes que distavam a mais de 30
quilômetros de Santa Fé e estavam visivelmente abandonados. Lá fizeram as
primeiras ―aberturinhas‖, plantaram as primeiras ―coisinhas‖ e montaram o primeiro
forno de torar farinha.
Aí nós veio de lá pra cá, aí chegemo aqui. Aí tava desocupado assim, porque não tinha ninguém e não tinha nada feito nesses lotes. Aí nos entremo pra dentro e começemos a fazer a aberturinha e plantar umas coisinha e se mantendo na terra. Primeiro fizemo uma forminha de uma banda velha de geladeira e aí já torrava farinha daí mesmo aí já não trouxemos mais de lá, né? Aí começou a produzir as coisas macaxeira pra comer cozida, batata, inhame e daí por diante, macaxeira, banana. Aí foi aumentando a nossa fartura, né?
173
A tranquilidade da nova comunidade, entretanto, logo se esvaiu com a
chegada de pessoas que se intitulavam ―donas‖ das parcelas ocupadas pelas
famílias. Os lotes, apesar de jamais terem sido efetivamente ocupados, continuavam
sobre a aguda vigilância de seus supostos proprietários, que a menor suspeita da
ocupação das parcelas, retornaram ao PART para afirmar e fazer valer seus direitos
sobre as referidas parcelas. Arrazoam-se, alegando possuir direitos sobre os lotes,
sem nunca terem trabalhado a terra e estabelecido morada nos mesmos.
Neste ponto, faz-se necessário ressaltar que as normas de execução e
instruções normativas, fundamentadas na legislação pátria, estabelecem que as
parcelas em assentamentos são destinadas a famílias com vocação agrícola, que se
comprometem em morar e trabalhar no lote. A Instrução Normativa n° 71, de 17 de
maio de 2012 é clara em apontar, no Art. 10, como situação irregular em
assentamento rural aquela na qual a parcela foi abandonada pelo beneficiário
cadastrado, selecionado e assentado, sem a comunicação ou anuência da autarquia
federal.
Para além disso, o ambiente ameaçador ao qual as famílias se viram
expostas, no entanto, não as afastou dos lotes nos quais haviam se estabelecido.
173 Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante V, na Comunidade Menino Jesus,
durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 12 de julho de 2011.
86
Pelo contrário, os estimulou a criar estratégias de proteção mútua, bem como
reforçou os laços de sociabilidade entre eles. A consciência do vinculo precário que
os ligava à parcela, os fez ciente da cidadania que lhes fora continuamente negada
durante a vida e dispostos a lutar por aquelas parcelas que, mais que terras, eram a
mediação de suas vidas. Também, os fez mais unidos, porque diante da
insegurança em que se viam recorriam continuamente um a segurança do outro,
estabelecendo relações nas quais predominava e, ainda, predomina a mútua ajuda.
A gente trabalhava em mutirão, né? Porque, que nem eu te falei, a gente tinha medo de alguém chegar e tirar um de nós do meio da gente, né? Até hoje a gente trabalha nesse sistema de mutirão. Quando é tempo de fazer a roça, essas coisas, a gente faz mutirão. Nós recebia os estranhos todo mundo junto pra saber quem era, a gente tinha medo de chegar alguém desconhecido, a gente quase não conhecia as pessoas da região, né? Várias vezes chegou ―dono de lote‖, chegou dono de três lotes, a gente chegou, conversou e fez a colocação da situação da gente, que a gente precisava de uma terra pra trabalhar. Já chegou gente e olhou e disse que se tivesse fazia era dar mesmo pra nós, então uns se conformou, né? E hoje é até amigo da gente, companheiro. Só um senhor [...] que queria tomar esse lote meu à força, ele não se conformou com nada, me levou pro fórum, aí o promotor disse que não tinha jeito lá, né?
174
Nota-se, que para as famílias a ocupação de terras alheias é um ato
transgressivo. Daí a necessidade de buscar no seu próprio universo e na sua
condição valores e normas que atribuam uma legitimidade alternativa aos seus atos.
Essa legitimidade solitária em face da lei, da ordem e do dominante, têm seus
valores fundados na primazia moral do trabalho e é de difícil compreensão mesmo
para as famílias envolvidas na luta pela terra de trabalho. Tal legitimidade não se
funda estritamente no ato subjetivo que se consuma no momento da transgressão,
mas tem como referência a estrutura social injusta.175
Tendo conseguido, ainda que precariamente, permanecer nas parcelas, as
famílias empreitaram suas forças em duas urgentes demandas: a escola e a
regularização da situação ocupacional dos lotes perante o Incra. ―Surgiu a
necessidade de se unir para conseguir várias coisas. Viemos na esperança de ter
174 Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante III, na Comunidade Menino Jesus, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 13 de julho de 2011. 175
MARTINS, José de Souza. O Sujeito Oculto: ordem e transgressão na reforma agrária. Porto Alegre: UFRGS, 2003
87
um lote e escola para os filhos‖.176 Uma das primeiras medidas adotadas pelas
famílias para viabilizar uma escola no PART, foi solicitar junto a Secretaria de
Educação do Município de Uruará a implantação de uma escola.
A prefeitura acenou negativamente à demanda da comunidade justificando
ser inviável a implantação de uma escola na área, pois a demanda local era ínfima.
A escola, entretanto, foi implantada no ano de 2007, graças a intervenção da de uma
vereadora do município de Uruará, recebendo o nome de Escola Municipal Menino
Jesus. Apesar da precária infraestrutura do estabelecimento, a construção da escola
é suscitada por todos como um dos mais importantes momentos da história da
comunidade. Tanto que, a partir da fundação da mesma, o grupo passou a intitular-
se Comunidade Menino Jesus.
Fotografia 2 – Lotes concentrados na Comunidade Nossa Senhora do Rosário A concentração de parcelas no PART provoca áreas a descontinuidade entre as comunidade ao longo do assentamento.
Foto: Kerlley Diane Santos
176 Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante III, na Comunidade Menino Jesus,
durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 13 de julho de 2011.
88
Já a segunda demanda da comunidade permanece em aberto. Apesar das
requisições da Associação do PART, o Incra nunca realizou a revisão ocupacional
do assentamento. Tal revisão, apresenta-se como um conjunto de ações
operacionais perpetradas pelo Incra que objetivam à averiguação da situação
ocupacional das parcelas rurais destinadas a beneficiários assentados em projetos
de assentamento de reforma agrária. A revisão ocupacional permite a autarquia
federal: promover a atualização dos dados do projeto de assentamento e dos
beneficiários; identificar e caracterizar irregularidades e promover a retomada e
aproveitamento das parcelas ocupadas irregularmente. É a partir da realização desta
revisão que o Incra poderá sanar as situações irregulares existentes no PART.
A persistência das irregularidades afeta o assentamento como um todo e,
com mais intensidade, os comunitários de Menino Jesus. Para além do avançar da
concentração de lotes e da impossibilidade de acesso aos créditos da reforma
agrária e as políticas públicas, a precariedade do vínculo com a terra ocupada os
tornava vulneráveis ao assédio das madeireiras e de pecuaristas que, se
aproveitando da inexistência das pedras demarcatórias do Incra, avançavam os
piques para o interior do assentamento e alegavam não estarem atuando na área do
PART.
Situação que pode ser claramente observada no impasse que envolveu a
Comunidade e uma empresa madeireira da região. Em 2007, a madeireira
intensificou a extração ilegal de madeireira no entorno do assentamento e avançou
para o interior do PART, concentrando seus pontos de extração nos fundos das
áreas dos lotes. Pressionados, os comunitários se uniram e saíram em defesa de
suas parcelas.
Bem recente, em 2007, a gente já estava aqui quando a [madeireira] começou a tirar madeira ali em cima, né? A gente foi medir o lote da gente e só deu mil e quinhentos metros do rio até o pique, né? Então a gente queria que acrescentassem os outros mil pra frente, aí a gente começou a ter problemas com eles. Já era exploração velha, mas eles vieram pra tirar essa madeira logo do fundo dos lotes. Eles acharam que a gente ia brigar mesmo por isso, né? E eles já se alertaram pra tirar, mas a gente não deixou. Eles aumentaram [o pique] mais 800 metros para frente. Entramos em um acordo, juntamos a comunidade aqui de novo, né? Outra vez a comunidade se reuniu, a gente foi com o [responsável pela madeireira], conversamos com ele, ele mandou
89
chamar o [presidente da associação do assentamento] e a gente resolveu essa situação.
177
A reação dos ocupantes não poderia ser outra. A ação perniciosa das
madeireiras na região ocasiona inúmeras consequências que vão desde a
degradação do meio ambiente, à deterioração das estradas que servem o
assentamento. Os prejuízos gerados por essa ação recaem sobre os comunitários.
O trânsito de caminhões carregados de madeireira no interior do assentamento
destrói as já precárias vias de acesso ao assentamento e as comunidades, a tal
ponto que alguns trechos só podem ser feitos a pé.
O deterioramento das estradas somado ao não atendimento das demandas
relacionada a infraestrutura pelos entes públicos, resulta no estabelecimento de
relações de dependência entre as famílias e aos fazendeiros da região. Exemplo
disso é a relação que se estabeleceu, há alguns anos, entre os comunitários e um
fazendeiro conhecido pelos comunitários como Marquinho que possuía uma fazenda
as proximidades da Comunidade Menino Jesus.
Ele [Marquinho] trazia as coisas, tudo pro pessoal aqui também, né? Rancho, essas coisas, óleo, açúcar, café o que precisasse ele trazia. Ele era um cara muito gentil. A escola, ele queria que fosse feita de tábua na época, né?‖ Ele queria trazer as tábuas, mas o caminhão não chegou até aqui, ele ia doar as tábuas pra escola, né? Mas as tábuas dos bancos, foi ele quem doou [...] Ele [o Marquinho] ajudou também a gente a tirar os madeireiros da estrada aí. [...] Estavam acabando a estrada, ele foi o único que sentou com a gente e discutiu, chamou os madeireiros, no eixo, e sendo que ele também era madeireiro, mas não aceitava destruírem a estrada. Porque os madeireiros deterioravam a estrada, né? Aí virava aquelas valetonas que não tinha nem como a gente passar, nem de moto, nem de bicicleta, tinha que ser de pés. Chegava o invernão, eles iam embora e a gente ficava aqui, só na água. [...] Ele pagava pra roçar a estrada que a gente mesmo usava, trazia saco pra fazer a ponte.
178
Os comunitários sabiam que as ações ―solidárias‖ do fazendeiro não eram
gratuitas e que havia um claro interesse encobertado pelas abnegadas prestações
177 Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante III, na Comunidade Menino Jesus,
durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 13 de julho de 2011. 178 Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante III, na Comunidade Menino Jesus,
durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 13 de julho de 2011.
90
de favores. As terras concentradas por Marquinho estavam no interior do
assentamento e eram formadas pela concentração de cinco lotes. O fazendeiro
temia que a ocupação das parcelas nas proximidades de sua pretensão chamasse a
atenção do Incra e que a autarquia realizasse a revisão ocupacional do
assentamento, situação que, certamente o prejudicaria.
A preocupação do pecuarista possuía fundamento. A Instrução Normativa n.º
71/2012, do Incra, bem como as demais normativas e a legislação agrária são claras
ao destacar, como se verá no Capítulo 6, que um assentamento de reforma agrária
se destina a famílias que possuem o perfil de público da reforma agrária. A
ocupação promovida pelo pecuarista era incompatível com as finalidades de um
assentamento rural, tendo em vista a reconcentração fundiária.
A concentração de lotes promovida por Marquinho não passaria incólume
caso a autarquia federal realizasse uma supervisão ocupacional do PART. Daí o
receio do pecuarista da realização desta última:
Acho que o Marquinho tinha medo de a reforma agrária chegar e ele perder a fazenda. Ele dizia que se o Incra chegasse era preciso que a gente desse uma ajuda para ele, pra ele continuar com a fazenda dele no meio do PA. Ele sempre falou pra gente que no dia que a reforma agrária chegasse, que o Incra demarcasse esses lotes, a comunidade tinha que dar uma força, porque ele dava esse suporte pra nós. [...] A gente considerava o Marquinho da comunidade, até porque a gente tinha mais facilidade pra conversar, ter diálogo. [...] Ele era, tipo assim, familiar, né? Ele era muito familiar com a gente [...] a gente não considerava o Marquinho fazendeiro, a gente considerava ele como um colono, que nem a gente.
179
A precariedade das estradas e a quase total inexistência de serviços públicos
foi determinante para o estabelecimento dessa ―aliança‖ aviltante entre a
comunidade e o fazendeiro. Diante da ausência do Estado, o fazendeiro era visto
como aliado. Era ele que realizava a manutenção da estrada, da ponte, da escola,
―defendia‖ a comunidade e, em ―troca‖, apenas solicitava o apoio do grupo. Apesar
de conscientes do real interesse do fazendeiro, as famílias não viam a relação
estabelecida como uma relação de sujeição, porquanto o consideravam um membro
da comunidade.
179 Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante III, na Comunidade Menino Jesus,
durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 13 de julho de 2011.
91
Mapa 4 - Pontos de ocupação ao longo do Projeto de Assentamento Rio Trairão.
Fonte: TORRES, et al, 2012.
92
Mapa 5 - Famílias assentadas pelo Incra e que desenvolvem uma ocupação compatível com a vocação de um assentamento da reforma agrária.
Fonte: TORRES et al, 2012.
93
Para eles, brutal é a forma como as estâncias do poder público têm os tratado
no decorrer dos anos, principalmente a Prefeitura Municipal de Uruará. Muitos são
os relatos sobre das negativas do ente municipal às requisições da comunidade
relacionadas à construção e manutenção das pontes e construção de uma nova
escola. Para eles a mudança dos gestores municipais, não culmina com mudanças
efetivas em nível local. ―A carniça [prefeitura] ficou a mesma. A gestão continua‖.180
O poder público é sempre identificado como uma instância corruptível e aliada a
setores que são contrários aos interesses dos assentados. Daí os constantes relatos
em que os comunitários afirmam não se sentir representados pelos gestores
municipais.
A última reunião que a gente foi com a prefeitura, da minha comunidade aqui teve umas cinco pessoas. [...] A gente foi pedir a construção, porque a equipe de pontes estava no travessão, né? Então todas as pontes que a gente passava, via feitas novas. Então era pra que eles viessem fazer a da gente. Inclusive essa equipe foi embora e nós ficamos aqui como desprezados. Nós, essa relação que ele (o prefeito) tem, essa implicância é com todos nós do PA e do travessão inteiro, porque sempre o nosso travessão ele... essa parte partidária, né? Tem sido muito partidária ao PT, vota em peso no PT, então eles batem muito porque é PT, então tem que sofrer, eles fala isso: PT tem que sofrer.
181
Eles tem essa distancia de nós todinho, porque a gente vai né e eles levam como seja uma coisa que não tem nada a ver com ninguém. Aí a questão é que vai e dá até a discussão, também [...] Mas aí o que vai resolver chega lá. A eles, não, fecham a porta e pronto. Aí termina dizendo que tá pra outro lugar e não vai atendido. E a questão toda é por causa dessa ponte aí que é a nossa dificuldade, né? No tempo que é inverno, que nós só tem a estrada boa agora no verão, boa assim igualmente vocês viram aí, é? E não dizendo que tá péssima, né? Imagina o meião do inverno aí que a gente passa escurregando. Quando precisa de sair pra cidade aquela travessia alí nós precisa fazer um mutirão pra poder atrevessar as mota pro outro lado.
182
A participação da prefeitura aqui é muita pouca. Ela fala que não tem responsabilidade com a gente. O Incra jogou a gente aqui, que a gente tem que se virar, tem que se manter, se virar do jeito que a gente puder aqui. É isso a resposta que a gente atende. Até porque a gente briga
180 Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante III, na Comunidade Menino Jesus,
durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 13 de julho de 2011. 181 Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante III, na Comunidade Menino Jesus,
durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 13 de julho de 2011. 182 Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante V, na Comunidade Menino Jesus,
durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 12 de julho de 2011.
94
muito por causa daquela ponte ali. Aí as escolas que vocês vê aqui a formula, a gente tem dois anos correndo atrás de uma escola pra conseguir fazer uma escola. O ano passado que eles conseguiu liberar o material. Esses material libero tempo que viu que não tinha mesmo nem como vir mais que já tava no inverno, foi em novembro, já tava com inverno aumentando.
183
É necessário ressaltar que, para os assentados e ocupantes, a luta pela
estrada e pela ponte não se finda na construção material das mesmas. É uma luta
por algo mais que ponte e estrada. A estrada e a ponte ganham no seio das duas
comunidades o significado de melhoria de vida, de educação de qualidade, de
escoamento de produção, de transporte, de saúde. Para eles as pontes não ligam
apenas uma margem à outra do rio, assim como as vicinais não os ligam apenas à
Transamazônica, mas são o meio de travessia necessário, os caminhos pelos quais
se possibilitará o alcance do que lhes foi continuamente negado através dos anos.
Fotografia 3 - Ponte improvisada na Comunidade Menino Jesus. Para se chegar em determinados pontos do assentamento a travessia do Rio Trairão é necessária e perigosa.
Foto: Kerlley Diane Santos
183 Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante III, na Comunidade Menino Jesus,
durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 13 de julho de 2011.
95
Passados seis anos do inicio da ocupação, a Comunidade Menino Jesus
continua a lutar pela implementação efetiva e de qualidade de políticas básicas
como saúde, educação e transporte. Contando agora com 15 famílias, a
comunidade segue reivindicando, junto com a associação comunitária, a realização
da revisão ocupacional do assentamento pelo Incra, haja vista que nenhuma das
referidas famílias é formalmente assentada pela autarquia.
Sabem que a concretização de boa parte de suas reinvindicações passa,
necessariamente, pela realização da revisão ocupacional do assentamento. Sabem
que possuir a terra, em um país que historicamente privilegia os grandes
proprietários, é uma árdua tarefa e mais ainda é a de alcançar as políticas públicas
necessárias para a permanência na terra. No entanto, não desistem e nem pensam
em se afastar da terra. Pelo contrário, continuam na lida e na luta pela regularização
da situação ocupacional do PART, ―porque a terra é dada para a pessoa
trabalhar‖.184
184 Entrevista registrada em áudio, concedida por Edson Alves da Silva, na Comunidade Menino
Jesus, durante os trabalhos de campo realizados no Projeto de Assentamento Rio Trairão, Uruará, em 12 de julho de 2011.
96
5 CARACTERIZAÇÃO DAS FAMÍLIAS OCUPANTES DO PART COMO
POTENCIAIS BENEFICIÁRIAS DA REFORMA AGRÁRIA
O Projeto de Assentamento Rio Trairão é ocupado tanto por famílias
assentadas pelo Incra, como por famílias que ocupam irregularmente as parcelas do
assentamento. Essas últimas correspondem à maior parte da população do PA Rio
Trairão. Apesar de não estarem assentadas formalmente, tais famílias possuem, na
maioria das situações, um perfil e desenvolvem modos de uso do solo perfeitamente
condizentes com o exigido pelas normativas do Incra e pela legislação agrária para
serem caracterizados como público da reforma agrária.
Pretende-se neste capítulo destacar as características da população ocupante
do PART que as fazem potenciais beneficiários de um projeto de assentamento. Não
está se afirmando que essas famílias serão cadastradas e regularizadas pelo Incra
ou algo semelhante. Pretende-se apenas destacar as características encontradas
nesses núcleos familiares que as aproxima ou não do perfil de beneficiário da
reforma agrária e que virtualmente tornaria possível o reconhecimento das referidas
como tais.
Antes de adentrar no perfil da população, far-se-á a uma abordagem sintética
de algumas figuras jurídicas e administrativas importantes para a compreensão do
capítulo, como a de reforma agrária, propriedade familiar, projeto de assentamento e
beneficiário da reforma agrária.
5.1 DEFINIÇÕES BÁSICAS
5.1.1 DEFINIÇÃO JURÍDICA DE REFORMA AGRÁRIA
O Estatuto da Terra (Lei n° Lei 4.504/ 1964) em seu Artigo 1°, §1° apresenta a
seguinte definição de Reforma Agrária: ―Considera-se Reforma Agrária o conjunto
de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante
modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de
justiça social e ao aumento de produtividade‖. O mesmo Estatuto, no Art. 16, elenca
que o objetivo da Reforma Agrária é ''estabelecer um sistema de relações entre o
97
homem, a justiça social, o progresso e o bem estar do trabalhador rural e o
desenvolvimento econômico do País, com a gradual extinção do minifúndio e do
latifúndio."
Ao tratar da referida definição, Paulo Torminn Borges afirma que o fulcro da
Reforma Agrária é promover a melhor distribuição da terra. O texto legal não
expressa que a Reforma seja distribuição pura e simples de terra. Pelo contrário, ao
afirmar que deve ser a ―melhor distribuição da terra‖ o legislador envolve a ideia de
que se deve modificar o que está mal feito e as situações que atentam contra o
principio da Justiça Social e da produtividade adequada.185
A reforma agrária seria um conjunto de medidas administrativas e jurídicas
implementadas pelo poder público, visando a modificação e a regência de
determinados institutos jurídicos, a revisão das diretrizes da administração ou a
reformulação parcial das normas e medidas, objetivando sanear os vícios intrínsecos
e extrínsecos do imóvel rural e de sua exploração.186 Em outras palavras, a reforma
agrária é um conjunto de ações promovidas pelo governo com escopo em
instrumentos jurídicos voltados para a modificação da estrutura fundiária do país.
A Reforma Agrária está constitucionalmente prevista no Título VII, Capítulo III,
da Constituição Federal de 1988. As disposições elencadas no referido texto
constitucional são regulamentadas pela Lei n° 8.629, de 25 de fevereiro de 1993,
conhecida como Lei Agrária.
5.1.2 A PROPRIEDADE FAMILIAR
A propriedade familiar é um dos mais destacáveis instrumentos jurídicos
agrários, sendo apontada pelo Estatuto da Terra e pela literatura jurídica como uma
das noções fundamentais para o estabelecimento dos demais conceitos que formam
o corpo do Estatuto. Além disso, a propriedade familiar é a prima forma de
distribuição das terras desapropriadas para fim de reforma agrária, porquanto
viabiliza o acesso democrático à terra a um número maior de pessoas que dela
necessitam para produzir.
185
BORGES, Paulo Torminn. Institutos Básicos do Direito Agrário. 9a ed. São Paulo: Saraiva, 1995.
186 STEFANINI apud MARQUES, Benedito Ferreira. Direito Agrário Brasileiro. São Paulo: Atlas, 2009.
98
A definição legal de propriedade familiar está presente no corpo do Estatuto
da Terra que assim a delimita:
Art. 4º - Para os efeitos dessa lei, definem-se:
[...] II. ―Propriedade familiar‖, o imóvel rural que direta e pessoalmente, explorado pelo agricultor e sua família, lhes absorva toda a força de trabalho, garantindo-lhes a subsistência e o progresso econômico, com área máxima fixada em cada região e tipo de exploração, e eventualmente trabalho com a ajuda de terceiros;
Por exigir uma área compatível com a força de trabalho de uma família, que
garanta aos seus membros meios de subsistência e o progresso social e econômico,
a distribuição de terras no tamanho da área da propriedade familiar pode atingir um
número maior de famílias. Por esse motivo, os Planos de Reforma Agrária que já se
fizeram no país tem adotado como dimensão ideal das parcelas a da propriedade
familiar.187
A propriedade familiar pressupõem os seguintes elementos básicos
caracterizadores:
a) Titulação da área por algum dos integrantes da família;
b) Exploração direta e pessoal pelo titular do domínio, agricultor ou agricultora
e suas família, em atividade que lhes absorva toda a força de trabalho;
b) Delimitação do tamanho da área para cada tipo de exploração e cada
região do país;
c) Possibilidade eventual do grupo familiar vir a receber ajuda de terceiros no
trabalho na área.
A necessidade da existência de titulação ou não para a configuração da
propriedade familiar tem sido objeto de discussão entre os juristas. Aqueles que
levantam a necessidade do título de propriedade, normalmente, o fazem salientando
que a própria denominação de ―propriedade‖ dada ao instituto salienta a ideia de
titulação. Essa é a posição de Maya Gischkow que destaca:
A propriedade familiar, como bem salientado no período anterior deve envolver uma relação jurídica de titulação, pois a própria denominação
187
MARQUES, Benedito Ferreira. Direito Agrário Brasileiro. São Paulo: Atlas, 2009, p.57.
99
do instituto tem manifesta conotação com o critério legal de domínio, significando, ainda, uma unidade econômica agrária ou familiar.
188
Existe, ainda, a linha daqueles que, como Marques, entendem que a
obrigatoriedade de título de domínio como elemento caracterizador da propriedade
familiar não deve ser aceita pacificamente, sendo que o elemento mais importante e
indispensável é a existência efetiva do trabalho direto do conjunto familiar.
5.1.3 OS PROJETOS DE ASSENTAMENTO
Um projeto de assentamento da reforma agrária constitui-se como um
conjunto de ações planejadas e implementadas em área destinada a reforma agrária
e integradas ao desenvolvimento territorial e regional. Tais ações são definidas com
base em diagnósticos acerca do público de beneficiários e das áreas a serem
trabalhadas e orientadas para a utilização dos espaços físicos e dos recursos
naturais existentes. O objetivo é a implementação dos sistemas de vivência e de
produção sustentáveis, o cumprimento da função social da terra e da promoção
econômica, social e cultural do trabalhador rural e de sua família.189
Conforme apresentado anteriormente, os projetos de assentamento
começaram a ser criados na década de 1980, no âmbito do I PNRA e constituíram-
se, no período, como um dos principais instrumentos do referido programa.
O processo de criação de um Projeto de Assentamento (PA) exige a
consecução de uma série de regras normativas e técnicas a serem implementadas
pelo Incra. Tais procedimentos técnicos e administrativos a serem adotados pelo
governo no decorrer desse processo de criação estão detalhados em Instruções
Normativas e Normas de Execução editadas pela mencionada autarquia.
As Normativas Incra mais importantes para a compreensão do processo e
constituição de uma PA são:
a) Norma de Execução n° 45, de 25 de Agosto de 2005, que trata dos
procedimentos de seleção do Programa Nacional de Reforma Agrária.
Destaque-se que a referida norma está em processo de reformulação;
188
GISCHKOW, Emilio Alberto Maya. Princípios de Direito Agrário: desapropriação e reforma agrária. São Paulo: Saraiva, 1988, p.60. 189
INCRA. Instrução Normativa nº 15, de 30 de março de 2004. Disponível em: Acessado em: maio. 2012
100
a) Norma de Execução n° 69, de 12 de Março de 2008, que dispõe sobre o
processo de criação e reconhecimento de projetos de reforma agrária.
5.1.4 DEFINIÇÃO LEGAL DE BENEFICIÁRIO DA REFORMA AGRÁRIA
Conforme disposto na Lei n° 8.629/1993, podem vir a ser beneficiários da
reforma da agrária tanto homem, como a mulher, independente do estado do civil do
candidato, obedecendo ao estabelecido no Art. 19, do referido diploma legal, que
dispõe a seguinte ordem de preferência:
[...] I - ao desapropriado, ficando-lhe assegurada a preferência para a parcela na qual se situe a sede do imóvel; II - aos que trabalham no imóvel desapropriado como posseiros, assalariados, parceiros ou arrendatários; III – aos ex-proprietários de terra cuja propriedade de área total compreendida entre um e quatro módulos fiscais tenha sido alienada para pagamento de débitos originados de operações de crédito rural ou perdida na condição de garantia de débitos da mesma origem; IV - aos que trabalham como posseiros, assalariados, parceiros ou arrendatários, em outros imóveis; V - aos agricultores cujas propriedades não alcancem a dimensão da propriedade familiar; VI - aos agricultores cujas propriedades sejam, comprovadamente, insuficientes para o sustento próprio e o de sua família. Parágrafo único. Na ordem de preferência de que trata este artigo, terão prioridade os chefes de família numerosa, cujos membros se proponham a exercer a atividade agrícola na área a ser distribuída.
190
A Lei Agrária estabelece, também, que, o assentamento de trabalhadores
rurais deve ser efetuado de preferência na região por eles habitada e, dentre os
elencados na lista de preferencia, deve-se priorizar os chefes de famílias
numerosas, cujos membros se disponham ao exercício da atividade agrícola. A
mencionada lei estipula, ainda, em seu Art. 20 as situações em que o candidato não
pode vir a ser beneficiário:
190
BRASIL. Lei n° 8.629, de 25 de fevereiro de 1993. Dispõe sobre a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, previstos no Capítulo III, Título VII, da Constituição Federal. In: Coletânea de legislação e jurisprudência agrária e correlata. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário, Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2007, p. 396-406.
101
Não poderá ser beneficiário da distribuição de terras, a que se refere esta lei, o proprietário rural, salvo nos casos dos incisos I, IV e V do artigo anterior, nem o que exercer função pública, autárquica ou em órgão paraestatal, ou o que se ache investido de atribuição parafiscal, ou quem já tenha sido contemplado anteriormente com parcelas em programa de reforma agrária.
A seleção de candidatos ao Programa Nacional de Reforma Agrária é
realizada pelo Incra. Essa seleção é realizada durante todo o processo de
desenvolvimento do Projeto de Assentamento, sempre que houver disponibilidade
de vagas no assentamento. Os procedimentos técnicos para a referida seleção de
candidatos a beneficiários estão elencados na Norma Executiva do Incra N° 45, de
25 de agosto de 2005.
A referida NE 45/2005 estabelece, em seu Art. 9, que um assentamento deve
contemplar as seguintes categorias: (I) Agricultor e agricultora sem terra; (II)
Posseiro assalariado, parceiro ou arrendatário e (III). Agricultor e agricultora cuja
propriedade não ultrapasse a um módulo rural do município. Define, ainda, baseada
no determinado no Art. 20, da Lei Agrária, os seguintes casos nos quais as famílias
não poderão ser beneficiárias do Programa de Reforma Agrária:
I - Funcionário(a) público e autárquico, civil e militar da administração federal, estadual ou municipal, enquadrando o cônjuge e/ou companheiro(a); II - O agricultor e agricultora quando o conjunto familiar auferir renda proveniente de atividade não agrícola superior a três salários mínimos mensais; III - Proprietário(a), qüotista, acionista ou co-participante de estabelecimento comercial ou industrial, enquadrando o cônjuge e/ou companheiro(a); IV - Ex-beneficiário(a) ou beneficiários(a) de regularização fundiária executada direta ou indiretamente pelo INCRA, ou de projetos de assentamento oficiais ou outros assentamentos rurais de responsabilidade de órgãos públicos, de acordo com a Lei nº 8.629/93, enquadrando o cônjuge e/ou companheiro(a), salvo por separação judicial do casal ou outros motivos justificados, a critério do INCRA; V - Proprietário(a) de imóvel rural com área superior a um módulo rural, enquadrando o cônjuge e/ou companheiro(a); VI - Portador(a) de deficiência física ou mental, cuja incapacidade o impossibilite totalmente para o trabalho agrícola ressalvados os casos em que laudo médico garanta que a deficiência apresentada não prejudique o exercício da atividade agrícola; VII - Estrangeiro(a) não naturalizado, enquadrando o cônjuge e/ou companheiro(a); VIII - Aposentado(a) por invalidez, não enquadrando o cônjuge e/ou companheiro(a) se estes não forem aposentados por invalidez;
102
IX - Condenado (a) por sentença final definitiva transitado em julgado com pena pendente de cumprimento ou não prescrita, salvo quando o candidato faça parte de programa governamental de recuperação e reeducação social, cujo objeto seja o aproveitamento de presidiários ou ex-presidiários, mediante critérios definidos em acordos, convênios e parcerias firmados com órgãos ou entidades federais ou estaduais.
A responsabilidade de verificação e aplicação desses critérios eliminatórios é
de responsabilidade da Superintendência Regional do Incra, responsável pelo
projeto. Para aplicação desses quesitos a Superintendência deve recorrer, além de
informações declaradas pelos candidatos, a pesquisa nos sistemas de informação
de diferentes órgãos federais, estaduais e municipais.
5.2 FAMÍLIAS OCUPANTES DO PART: potenciais beneficiárias da reforma
agrária
Nesta seção se abordará apenas as ocupações implementadas no interior
do Projeto de Assentamento Rio Trairão que possuem características coerentes com
as limitações ocupacionais de um assentamento de reforma agrária e aquelas
passiveis de assim se tornarem.
Tratando-se de um assentamento de reforma agrária, as famílias não
assentadas formalmente que vivem no interior do PART enquadram-se entre as
situações caracterizadas como ocupação irregular de parcela. A Instrução Normativa
N° 71, de 17 de maio de 2012, do Incra destaca como irregular a ocupação e
exploração de área de projeto de reforma agrária empreitada sem que o ocupante
tenha se submetido ao processo de seleção realizado pela referida autarquia
federal, processo esse descrito na NE 45/2005.
No entanto, a referida IN n° 71/2012 prevê a possibilidade de cadastro e
regularização das famílias agricultoras não beneficiárias que possuam um perfil que
se enquadre com o público da reforma agrária. Essa é a principal possibilidade que
se abre à população do PART que deseja permanecer no assentamento, haja vista
que a maioria das famílias que vivem no assentamento preenchem os requisitos de
elegibilidade para serem beneficiárias da reforma agrária, estipulados na NE Incra n°
45/2005.
103
Como visto anteriormente, a NE Incra n° 45/2005 dispõe que os
assentamentos rurais devem contemplar agricultores e agricultoras sem terra;
posseiros assalariado, parceiro ou arrendatário e o agricultor ou agricultora cuja
propriedade não ultrapasse a um módulo rural do município. Entretanto, não basta
ao candidato pertencer a uma destas categorias, é necessário também que não se
enquadre em nenhuma daqueles casos listados do Art. 6°, da NE n° 45/2005, e
apresentados na seção anterior.
A percepção destes requisitos entre as famílias do PART fez-se a partir do
estabelecimento de parâmetros baseados nos critérios definidos na
supramencionada Norma de Execução 45 e em alguns elementos da propriedade
familiar. A opção por incluir elementos da propriedade familiar na caracterização dos
ocupantes baseou-se tanto pelo fato de a propriedade familiar ser a forma de
ocupação compatível com os projetos de assentamento, quanto pelo fato de ser a
forma de diferenciar da apropriação e concentração de terras empreitada por
pecuaristas na área do PART.
Assim, definiu-se para a percepção dos sujeitos com perfil de clientes da
reforma agrária os seguintes quesitos: (I) Não ser ou ter sido beneficiário da reforma
agrária; (II) Fontes de renda da família, (III) Cultura efetiva do lote e (IV) Exploração
pessoal e direta do grupo. A seguir se pormenorizará cada um dos referidos itens.
5.2.1 OCUPANTES E ASSENTADOS
Os primeiro critério destacado para a caracterização da população do PART
como público da reforma agrária foi o de não ser ou ter sido beneficiário de
programa de reforma agrário e morar no Assentamento. Esse requisito se coaduna
com a Norma de Execução n° 45/2005 que estabelece que o candidato a
beneficiário do mencionado programa não pode ser ex-beneficiário ou beneficiário
de regularização fundiária, projeto de assentamento oficial ou qualquer tipo de
assentamento rural.
Conforme as informações prestadas pelos moradores do PART e os dados
coletados, o assentamento é ocupado por 67 famílias, mas apenas 65 famílias
desenvolvem uma ocupação compatível com um assentamento de reforma agrária,
qual seja, aquela efetuada em um único lote, com cultura efetiva e que tem o
104
trabalho familiar como base de exploração. Dessas 65, somente 22 constam na
Relação de Beneficiários (RB)191, sendo que as outras 43 são famílias que ocupam
os lotes do assentamento, mas não estão assentadas formalmente pelo Incra.
A quase totalidade dessas famílias ocupantes nunca foi beneficiária em um
assentamento rural, assentamento oficial ou de regularização fundiária (90%) e a
maior parte das famílias que declarou ter sido beneficiária em outro assentamento,
nunca foram assentadas efetivamente, haja vista terem sido indevidamente
cadastradas em lotes nos chamados assentamentos fantasmas criados no âmbito
da SR 30 e cancelados pelo Judiciário, conforme destacado no Capítulo 3.
Tais famílias, portanto, respondem positivamente a esse primeiro requisito.
Ressalte-se, que em toda extensão do assentamento só foi encontrada uma família
que declarou ter sido assentada em lote da colonização e uma sobre a qual não foi
possível obter informação.
Gráfico 1 - Famílias beneficiárias da Reforma Agrária em outro Assentamento do Incra.
Fonte: TORRES et al, 2012.
191
Todas as famílias que não constam o nome na Relação de Beneficiários (RB) do Incra ocupam irregularmente o assentamento. A RB é composta pelos nomes das famílias que foram assentadas pela autarquia federal e possuem a anuência desta última para desenvolver suas atividades agrícolas no assentamento dentro dos limites por ela estabelecidos. Para além disso, somente pode ter acesso aos créditos e políticas da reforma agrária aquelas famílias listadas na Relação de Beneficiários.
Sim 7%
Não 90%
Sem informação 2%
Acha que sim 1%
Familias Beneficiárias da Reforma Agrária em outro Assentamento do Incra
105
Gráfico 2 - Local onde a família foi anteriormente assentada.
Fonte: TORRES et al, 2012.
5.2.2 FONTES DE RENDA
Outro dado importante está relacionado à renda auferida pelas famílias. A
NE Incra n° 45/2005 dispõe que para ser beneficiário da reforma agrária os
membros da família do agricultor e agricultora candidata não podem auferir renda
superior a três salários mínimos, proveniente de atividade diversa da agrícola. A
maioria das famílias do PART também se enquadra nesse requisito.
A renda mensal média das famílias do PART é inferior a um salário mínimo
(75%), não tendo sido constatado famílias que recebam mais de três salários
mínimos. Conforme apontado pelos assentados, a principal fonte de renda é a
agricultura (67%), seguida pela pecuária (21%). Algumas famílias incluíram entre as
Assentamento fantasma - não recebeu o lote
67%
Área de colonização 16%
Sem informação 17%
Local onde a família foi anteriormente assentada
106
fontes de renda o programa governamental Bolsa Família. Esse programa, no
entanto, não foi apontado por nenhuma família como fonte de renda principal.
Algumas famílias declaram, também, auferir renda do trabalho assalariado
(2%), da aposentadoria e outros benefícios previdenciários (3%). O trabalho
assalariado está, normalmente, associado a atividades desempenhadas dentro do
próprio PA, como os trabalhos por diária desempenhado nas terras dos vizinhos.
Entre todas as famílias, apenas uma citou fonte renda proveniente de emprego
público e mesmo esse, dentro do PART, como agente comunitário de saúde do
assentamento.
Gráfico 3 - Renda Média Mensal das famílias do PART.
Fonte: TORRES et al, 2012.
Até 1 75%
Entre 1 e 2 16%
Entre 2 e 3 3%
Sem informação 6%
Renda Média Mensal Familiar (em salários mínimos)
107
Gráfico 4 - Principal fonte de renda das famílias do PART.
Fonte: TORRES et al, 2012
5.2.3 A CULTURA EFETIVA DO LOTE
Segundo o estipulado na Norma de Execução n° 45/2005, para ser
beneficiário da reforma agrária não basta se tratar de família sem terra, é necessário
que os membros da família se disponham ao exercício da atividade agrícola. Para a
percepção dessa característica entre as famílias do PART, buscou-se notar a
realização de uma cultura efetiva do lote pela família, identificando as famílias que
exploram efetivamente e fazem o lote ocupado produzir e tiram da parcela os frutos
que servem para o sustento familiar.
No PART essa exploração efetiva dos lotes pelos ocupantes é verificada nas
diversas lavouras cultivadas, na pecuária e na criação de animais de pequeno porte
como galinhas e porcos. A seguir se detalhará cada um dessas formas de
exploração.
67%
4%
21%
8%
Principal fonte de renda no PA Rio Trairão
Agricultura
Aposentadoria/ Benefíciosprevidenciários/ Extrativismo
Pecuária
Outro
108
5.2.3.1 Agricultura
A agricultura é a atividade mais importante desenvolvida pelas famílias
moradoras do PART. É a agricultura que fornece boa parte do alimento servido
diariamente nas mesas do assentamento, bem como é ela que lhes garante recurso
para a compra de itens de consumo inexistentes na área do PART.
A agricultura sempre exerceu importante papel no sucesso e na segurança
alimentar da espécie humana. Segundo Carlos Walter Porto-Gonçalves
O que é a espécie humana conseguiu por meio das agriculturas foi a segurança alimentar, expressão que hoje ganhar o debate político. Afinal domesticar espécies de animais e vegetais é torna-las parte de nossa casa (em latim, domus, daí domesticar). Assim mais uma vez alimento e abrigo (domus, casa) voltam a se encontrar confrontando um conjunto de questões interligadas para oferecer maior segurança a cada grupo que, assim, se constitui por meio de sua cultura formando seus territórios (domínios).
192
O produto preponderante na lavoura dos ocupantes e assentados é a
mandioca, sendo que a área plantada varia de 0,5 a 5 ha. A mandioca é utilizada
principalmente na alimentação. Dela os referidos fazem farinha, retiram a ―goma‖
para fazer os ―bejus‖ de tapioca, entre outros alimentos, bem como a utilizam na
engorda dos animais criados. A farinha fabricada pelos assentados também é
vendida, em uma quantidade relativamente expressiva (20%).
O milho e o cacau, também, são cultivados por um expressivo número de
famílias. O milho é plantado por 43% das famílias e o cacau por 42%. O cacau é o
produto comercializado com mais frequência pelos moradores do PART, sendo
vendido no município de Uruará. Segundo dados do IBGE, em 2010 o município foi
o terceiro maior produtor de cacau em amêndoa do estado do Pará, ficando atrás
apenas de Medicilândia e Placas.193
As plantações de mandioca, milho e cacau dividem espaço com outras
lavouras cultivadas pelas famílias como a de feijão, arroz, pimenta, urucum, banana,
inhame, abacaxi, café, cupu, maracujá, manga, coco, cana e abacate.
192
PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. A globalização da natureza e a natureza da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 209 [grifos no original] 193
IBGE Cidades@. Pará Cacau (em amêndoa) – quantidade produzida. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/comparamun/compara.php?codmun=150815&oduf=15&tema=lavpe rm2010&codv=v26&lang=. Acessado em 29 abri.2012
109
Fotografia 4 - Goma de tapioca secando ao sol na Comunidade Menino Jesus.
Foto: Kerlley Diane Santos
Fotografia 5 - Café e sementes de cacau secando ao sol. O cacau é o produto mais comercializado no PART.
Foto: Kerlley Diane Santos
110
Fotografia 6 - Assentado pilando grãos de arroz no PART. O arroz é uma das lavouras cultivadas pelas famílias do assentamento.
Foto: Kerlley Diane Santos
5.2.2.2 Pecuária
A agricultura camponesa se desenvolve a partir da permanente busca de
equilíbrio entre a produção vegetal e a criação de animais com o objetivo de atender
às necessidades alimentares e econômicas das famílias.194 No PART a realidade
não é diferente. Ao lado da agricultura as famílias se dedicam a criação de diversos
animais como galinhas e porcos e a pecuária.
Praticada por 49% das famílias do PART, a pecuária é a criação mais
destacável. A maioria dos rebanhos do assentamento está localizada na
Comunidade Nossa Senhora do Rosário, sendo pouco expressivas as criações da
Comunidade Menino Jesus. Os rebanhos são pequenos não ultrapassando, em sua
maioria, a faixa de 80 cabeças por família. e, majoritariamente, compostos por vacas
de cria e de leite. Tais características da composição dos rebanhos indicam,
194
BOSERUP, 1987 apud FREIRE, Adriana Galvão. ―No inverno a gente planta, no verão agente cria‖. In Revista Agriculturas, p. 07, 2009.
111
claramente, que as famílias desenvolvem a etapa da ―cria‖ bovina e, em escala
ínfima, a da ―recria‖.
Pode-se afirmar que a manutenção dos animais nos sistemas agrícolas
camponeses se dá por duas razões principais. A primeira é ter alimentos ricos em
proteínas, como o leite e seus derivados, os ovos e a carne. A segunda é a fonte
monetária que esses animais garantem por meio da comercialização: os de pequeno
porte, como as galinhas, são vendidos para arcar com pequenas despesas e os de
grande porte, como o gado, funcionam como poupanças vivas.195
A predominância de rebanhos pequenos e a atribuição desses animais a
determinados membros da família, revelam o caráter de bem familiar que o gado
assume entre as famílias do PART. O gado é a ―poupança‖, o ―patrimônio‖ dos
assentados, cujo uso não está associado à satisfação de necessidades cotidianas,
mas à garantia de recurso em momentos de necessidades extremas da família,
como em casos de doença ou de viagens inesperadas.
5.2.2.3 Criação de outros animais
Outro dado que reforça o caráter camponês e familiar das atividades
desenvolvidas pela população do PART, bem como demonstra o cultivo efetivo dos
lotes são as criações de animais como porcos e galinhas encontradas em quase
todas as parcelas. Tal atividade é totalmente voltada à subsistência e à segurança
alimentar dos membros das famílias.
As galinhas são criadas pela maioria da população do PART (72%). Essa
ave é, normalmente, empregada na alimentação da família e, eventualmente, é
objeto de venda. São animais criados nos terreiros das casas, alimentados com
milho cultivado pelos próprios assentados em seus lotes e com as sobras das
refeições e comumente, sob a responsabilidade das mulheres e dos filhos menores.
Outra criação comum é a de porcos, praticada por 48% das famílias do
PART. São criações pequenas com não mais que 30 animais. Esses animais são
criados soltos no quintal e recolhidos à noite aos chiqueiros, que também estão
195
LIMA, Marcelo. ―Autonomia pela integração entre cultivos e criações‖. In Revista Agriculturas, 2009, p. 06.
112
situados às proximidades da casa. Aparentemente, os porcos, assim como o gado,
são uma reserva de renda famílias, haja vista a sua liquidez.
As famílias, também, criam animais destinados para o transporte de carga,
como cavalos (53,3%) e jumentos (13%). Tanto os cavalos, como jumentos são
criados majoritariamente na Comunidade Menino Jesus que tem vias de acesso
piores que a outra comunidade.
Fotografia 7 - A criação de porcos, assim coma de gado, é uma forma de "poupança" das famílias do PART para o atendimento de necessidades das famílias.
Foto: Kerlley Diane Santos
5.2.3 EXPLORAÇÃO DIRETA, PESSOAL E FAMILIAR DO LOTE
Outro importante requisito observado para a delimitação do perfil das
famílias como público da reforma agrária foi a forma de exploração empreendida nas
parcelas. Para isso buscou-se identificar entre os moradores do Projeto de
Assentamento Rio Trairão aquelas famílias que desenvolvessem a exploração
113
direta, pessoal e familiar do lote, em outras palavras, as famílias cuja base de
exploração fosse o trabalho familiar.
Para Ellen e Klaas Woortmann, o lote é por excelência o lugar do trabalho e
igualmente o resultado do trabalho. Um lugar construído por um conjunto de
espaços articulados entre si196, no qual a força essencial do trabalho é a família.
Esta imprescindibilidade do trabalho da família entre os camponeses foi destaca,
também, por José Vicente Tavares dos Santos, em seu livro Colonos Do Vinho. Para
Santos ―a condição fundamental da produção camponesa é a força de trabalho
familiar‖.197
No PART, o lote é constituído, normalmente, a partir de espaços como a
casa, o quintal, a juquira, o roçado, o pasto e a mata e são os ―braços‖ da família os
principais responsáveis pela articulação da parcela. A lida no roçado e nas lavouras
está, em boa parte das famílias, a cargo do homem e dos rapazes. As mulheres e as
filhas cuidam da casa, dos filhos menores e criam os animais. Nos períodos em que
o trabalho é mais árduo, como na época das colheitas, mulheres e crianças somam-
se ao trabalho no roçado.
Entretanto, este quadro do trabalho familiar no lote também comporta
exceções. A principal delas é a dos homens que vivem sozinhos nos lotes do
assentamento. Esses homens, majoritariamente, são casados e têm filhos em idade
escolar. A inexistência de escolas que ofertem integralmente o Ensino Fundamental
e Médio e de transporte no assentamento determinam a separação das famílias. As
mulheres acompanham os filhos e vão ―pra rua‖ residir no Município de Uruará e os
homens permanecem nos lotes. Sempre que possível e, principalmente, nas férias
eles retornam ao lote para ajudar o pai esposo.
Normalmente, essa contração da força do trabalho familiar torna necessário
o auxílio de terceiros no trabalho nos lotes. Essa característica não contradiz a
dinâmica camponesa. Pelo contrário, é um traço comum entre estas famílias recorrer
a cooperações que venham a complementar o trabalho.198 Tal característica também
não afasta a caracterização da exploração desenvolvida pelos assentados como
196
WOORTMANN, Ellen F.; WOORTMANN, Klaas. ―Etnografia do trabalho na terra‖. In: O Trabalho da terra: a lógica e a simbólica da lavoura camponesa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. p 27. 197
SANTOS, José Vicente Tavares do. Colonos do Vinho: estudo da subordinação do trabalho camponês ao capital. São Paulo: Huitec, 1978, p. 34. 198
Ibidem. 34ss
114
direta, pessoal e familiar. Aqui cabe a lição do jurista Paulo Torminn que ao tratar da
propriedade familiar afirma que:
O imóvel rural só se classifica como propriedade familiar quando é trabalhada direta e pessoalmente pelo agricultor e sua família. Auxílio de terceiro, trabalhador rural sim, mas eventual. É lógico que tal participação pode ser homogênea, constante, e, de outra parte, exigir uma concentração maior de esforços em determinados momentos da vida agrícola. Digamos no período da colheita [...] que demanda acúmulo de mão de obra.
199
Posicionamento semelhante é o adotado por Pinto Oliveira. Para o jurista:
O imóvel rural só pode ser entendido como propriedade familiar quando é trabalhado direta e pessoalmente pelo agricultor e a sua família. O auxílio de terceiras pessoas, camponeses ou trabalhadores rurais, deve ser eventual, por exemplo, em determinados tipos de colheitas que exigem aumento da mão de obra.
200
No PART, essa ajuda eventual, que complementa o trabalho da família na
parcela, aprece na forma de ajuda mútua, troca de dia e mutirões.
Sempre que a gente pode, se tem alguém que tá precisando e a gente vai lá e ajuda. Às vezes o pessoal vai fazer um serviço e inventa um mutirão. Sempre ajudo o compadre [...], que é meu cunhado também. Aí eu ajudo a fazer o roço. A gente troca diária também, a gente vai fazer a roça de fulano, aí termina a dele lá e vai fazer a do outro.
201
A referência a essas formas de ajuda mútua são muito comuns no
assentamento. Na Comunidade Nossa Senhora do Rosário ela é mais intensa entre
membros da mesma família, mas o auxílio a vizinhos também existe. Já na
Comunidade Menino Jesus, ela ocorre com frequência não apenas entre parentes,
mas também entre vizinhos, compadres, amigos. Frente a esta situação é preciso
considerar que a família concebida enquanto um núcleo familiar composto pelos pais
e filhos, não é a família que está na cabeça dos moradores do PART. ―A gente tem
esse círculo de amizade como se fosse uma família, eu tenho como uma família,
199
BORGES, Paulo Torminn. Institutos Básicos do Direito Agrário. 9a
ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 33. 200
FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Agrário. 4a ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p.216.
201 Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante IV, na Comunidade Menino Jesus, PA
Rio Trairão, Uruará, em 13 de julho de 2011.
115
todo mundo‖202, afirmou um morador de Menino Jesus. Aqui importante é a lição de
José de Souza Martins ao afirmar que:
A família que está na cabeça de acampados e assentados é uma instituição ampla e complexa e nem mesmo se limita a parentesco de sangue. É uma rede de direitos e deveres referidos às obrigações dos vínculos de sangue e também dos vínculos sagrados da afinidade e do parentesco simbólico.
203
São esses vínculos, não necessariamente sanguíneos, que determinam a
prestação da ajuda eventual no trabalho nas parcelas.
5.2.4 FAMÍLIAS OCUPANTES E O PART
Como dito, a reforma agrária visa promover a melhor distribuição de terras e
propiciar condições de trabalho aqueles que almejam terra para trabalhar, auferindo
condições dignas de sobrevivência para suas famílias e modificando o regime de
posse e uso característico dos latifúndios e minifúndios. Não qualquer distribuição de
terras, como nos alertou Borges204, mas aquela que proporcione a modificação das
situações que atentem contra os princípios de justiça social e o aumento de
produtividade. ―Justiça para com o homem sem terra é que dela precise‖.205
Partindo-se daí e apoiado nos dados coletados em campo, pode-se afirmar
que as famílias que hoje ocupam a área estudada promovem essa finalidade
precípua da reforma agrária. As referidas famílias, ainda que irregularmente,
promovem uma ocupação do PART que coaduna com a esperada de um
assentamento e se difere das distorções fundiárias provocadas pelo minifúndio e
pelo latifúndio.
Estabeleceram morada e trabalham em lotes que não ultrapassam o limite
da área da parcela do projeto de assentamento. Nos lotes que encontraram
abandonados, plantaram lavouras de mandioca, cacau, milho, feijão, arroz, pimenta,
202
Entrevista registrada em áudio, concedida por Ocupante III, na Comunidade Menino Jesus, PA Rio Trairão, Uruará, em 13 de julho de 2011. 203
MARTINS, José de Souza. O Sujeito Oculto: ordem e transgressão na reforma agrária. Porto Alegre: UFRGS, 2003, p. 55. 204
BORGES, Paulo Torminn. Institutos Básicos do Direito Agrário.9aed.São Paulo: Saraiva, 1999,
p.25. 205
Ibidem, p.22.
116
urucum, café e uma diversidade de frutas, baseando a sua exploração da terra na
força do trabalho familiar. Dedicam-se, majoritariamente, à agricultura e veem nos
seus pequenos rebanhos e nos porcos uma poupança para os dias difíceis. A renda
é baixa e eles se vêm expostos cotidianamente a todas as precariedades que a
condição de ocupantes lhes impõe. Não são atendidos pelo governo local que atribui
a responsabilidade ao Incra. Não são atendidos pelo Incra que nada faz nem mesmo
pelo beneficiários legalmente reconhecidos que residem no assentamento.
São grupos familiares sem terra que vieram de diversos lugares da
Amazônia e do Nordeste e que passaram por outras terras onde trabalharam
―pagando diária‖. Araram e trabalharam a terra que não era deles, até o dia que
chegaram ao PART. Se a lei lhes imputa a irregularidade de seu ato de ocupar um
assentamento de reforma agrária sem autorização da autarquia responsável,
também lhes abre caminho para o reconhecimento como público da reforma agrária.
Como visto, a maioria deles se enquadra naqueles requisitos necessários para esse
reconhecimento. São agricultores, não possuem imóveis rurais, nunca foram
beneficiários da reforma agrária ou foram impropriamente cadastrados com lotes em
assentamentos fantasmas, dos quais só ouviram falar o nome.
O referido reconhecimento, no entanto, passa necessariamente pela realização de
revisão ocupacional do assentamento pelo Incra. Como destacado em diversos
pontos do Capítulo 4, a realização dessa revisão do PART é urgente, haja vista a
situação das ocupações hoje existentes na área. Nos 14 anos de existência do
assentamento, a maioria dos lotes trocou irregularmente de ocupante, seja através
da venda, seja por meio do abandono e reocupação. Na maioria dos casos, a
principal causa da rotatividade de famílias nos lotes está associada à precariedade
das condições de acesso a direitos básicos e a não implementação das políticas
originariamente pensadas para o assentamento.
A instabilidade e a precariedade de um assentamento são determinantes
para a mobilidade constante das famílias. O abandono dos assentados em PAs não
assistidos com saúde e nem educação e distantes de qualquer serviço publico, sem
a infraestrutura necessária para o escoamento e a consequente obtenção da
remuneração da atividade agrícola são razões suficientes para o repasse das terras
117
por preços irrisórios que variam dependendo, entre outros pontos, da distância do
assentamento.206
As famílias do PART sofrem, também, com os problemas engendrados pelo
processo de concentração de lotes que vem se desenhando no interior do
assentamento. Dos 170 lotes originariamente destinados, 38 estão concentrados.
Essa avançar da concentração de lotes acarreta graves consequências como a
descontinuidade entre as duas comunidades que formam o assentamento,
porquanto as faixas de concentração estão distribuídas ao longo do PART (Mapa 1),
e o próprio aflorar de formas de intimidação dos demais ocupantes que reivindicam a
regularização da situação ocupacional do assentamento.
A concretização dessa revisão é medida urgente, porquanto é somente
através da referida revisão que se poderá sanear a lista de beneficiários, promover a
retomada dos lotes e fazer o levantamento das famílias com perfil de beneficiário,
para uma possível regularização da sua situação no assentamento. Somente a
concretização dessa possibilidade, tornará possível o alcance das demais
solicitações dos ocupantes e dos assentados do PART, e a efetivação dos direitos
básicos e das políticas públicas previstas, ambos necessários a garantia dos meios
de vida e a permanência no assentamento.
206
BENATTI, José Heder. ―Questão fundiária e sucessão da terra na fronteira oeste da Amazônia. Novos Cadernos NAEA. ISSN 1516-6481, v. 11, n. 2, Belém: UFPA, 2008. p. 102.
118
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As famílias moradoras do Projeto de Assentamento Rio Trairão não
assentadas continuam a lutar pelo seu reconhecimento como beneficiários da
reforma agrária. Buscam, também, junto com a minoria de assentados, a
implementação de uma infraestrutura mínima à qual têm direito: educação, saúde,
estradas e pontes.
Espera-se, ter demonstrado que a forma de ocupação, do uso do solo e das
atividades desenvolvidas por estas famílias são características compatíveis com as
do perfil do público beneficiário da reforma agrária que assoma da legislação agrária
pátria e das instruções normativas e normas de execução do Incra.
Durante as páginas que compõe esse trabalho, buscou-se demonstrar que a
história das famílias moradoras do Projeto de Assentamento Rio Trairão se
assemelha à de muitas outras que desembarcaram na Transamazônica durante os
anos 60 a 80. Impulsionadas pelo sonho do encontro com a terra livre, na qual
pudessem desenvolver seus modos e meios de vida, essas famílias vieram para o
Pará e passaram por outras cidades, onde trabalharam, até chegar ao então distrito
de Uruará. Distrito este que havia nascido às margens da Transamazônica.
Procurou-se apresentar a ligação entre a trajetória destas famílias e as
transformações pelas quais o espaço amazônico passou nos últimos anos,
advindas, principalmente, do processo de colonização, da ação e das políticas
intervencionista efetivadas pelos governos militares, a partir do final da década de
1960 e que se estenderam até os anos 80.
Verificou-se que processo que possibilitou a expansão capitalista na
Amazônia, deu-se através de movimentos contraditórios que permitiram também o
acesso de camponeses a fronteira aberta. Trazidas pela colonização oficial,
estimuladas pela abertura de estradas e pela propaganda oficial que asseverava a
facilidade de acesso a terra ou até mesmo através das notícias de parentes ou
amigos que já viviam na Transamazônica, essas famílias, nordestinas em sua
maioria, migraram para área da rodovia.
119
O objetivo era, como aponta Oliveira 207 , forçar os colonos a iniciar o
processo de abertura da região e formar contingentes de mão-de-obra a disposição
das grandes empresas que passaram a ser convidadas oficialmente a se instalar na
região a partir de 1973. No entanto, boa parte das famílias que chegaram a região
conseguiram entrar na terra, reproduzir seus modos de vida baseados no trabalho
familiar e estabelecer formas de resistência aos conflitos que se espalharam pelo
estado.
Demonstrou-se, que além das áreas ocupadas pelos projetos de colonização
oficial as famílias camponesas migrantes protagonizaram as chamadas ―ocupações
espontâneas‖. Como se viu, cedo ou tarde essas famílias eram alcançadas pelo
Incra que se limitava a demarcar e regularizar os lotes que já haviam sido tirados por
estes grupos familiares. Com o fim da colonização, esta prática de estender projetos
sobre áreas já ocupadas continuou sendo utilizada pela autarquia federal, no âmbito
do I PNRA, por meio dos assentamentos rurais. A ocupação implementada pelas
famílias moradoras do PART em meados dos 80 foi uma das que foram alcançadas
por essa prática do Incra, em 1997. Como apresentado, a área já era ocupada pelas
famílias a pelo menos uma década.
A implantação do assentamento, não veio junto da disponibilização de
infraestrutura ou de políticas que sanassem minimamente as precariedades as quais
as famílias estavam expostas. Quando se defronta com realidades como estas é que
se entendem, porque a literatura dedicada à questão agrária afirma que o objetivo
do governo com o aumento da implantação de assentamentos na década de 1990,
era apenas o de criar números para a reforma agrária, uma vez que tais projetos
desempenhavam, não a redistribuição de terras, mas a pura e simples regularização
fundiária.
Posteriormente, mostrou-se que algumas famílias moradoras do Projeto de
Assentamento Rio Trairão foram indevidamente cadastradas nos chamados
―assentamentos fantasmas‖. Destacou-se, que a criação em massa desses
assentamentos no âmbito da Superintendência Regional do Incra não visava apenas
o inflacionar dos números da Reforma Agrária, mas também envolvia um
comprometimento da SR 30 com as empresas do setor madeireiro em prol dessas
últimas.
207
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Integrar para não entregar: políticas públicas e Amazônia. Campinas: Papirus, 1988, p. 86.
120
Os assentamentos existiam apenas no papel e sua finalidade não era
beneficiar o público da reforma agrária, mas servir de área para extração de
madeira. Os moradores do PART que foram ―assentados‖ no papel, assim como a
maioria das pessoas que indevidamente constavam na Relação de Beneficiários
destes assentamentos, nunca viram os lotes que lhes estavam destinados.
A última parte desta monografia foi dedicada a demonstrar que as
características das famílias moradoras que implementam uma ocupação compatível
com o Projeto de Assentamento Rio Trairão, nos permitem identificá-las como
público da reforma agrária. Para a consecução deste verificou-se se estas famílias já
foram beneficiarias do PNRA; a principal atividade desenvolvida; a renda média
mensal auferida; a cultura efetiva da parcela e a forma de exploração do lote.
O que se extraiu desta verificação é que as famílias que hoje ocupam o
PART promovem uma ocupação compatível com aquela esperada de um
assentamento, qual seja, a exploração direta, pessoal e familiar de um único lote,
por famílias agricultoras. São famílias formadas por agricultores, que não possuem
imóveis rurais, com uma renda média mensal que não superam três salários
mínimos, nunca foram beneficiários da reforma agrária ou foram impropriamente
cadastrados em lotes nos ―assentamentos fantasmas‖.
Percebeu-se, que estas famílias estabeleceram morada nas parcelas
encontradas abandonadas, fizeram-nas produzir plantando lavouras de mandioca,
cacau, milho, feijão, arroz, pimenta, urucum, café e uma diversidade de frutas,
baseando a exploração da terra na força dos braços dos membros da família.
Observou-se, que parte das famílias possuem rebanhos e criam animais, aos quais
atribuem o sentido de ―poupança‖ para os dias difíceis.
Frente a este quadro, é possível afirmar que as famílias moradoras do
PART, que desenvolvem atividades agrícolas em um único lote e cuja exploração é
baseada na força do trabalho familiar, possuem características que as enquadram
no perfil do beneficiário da reforma agrária que emerge da legislação agrária e das
instruções normativas e normas de execução do Incra.
121
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