assentamento colonia 1

Upload: mlromarco

Post on 15-Jul-2015

206 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

UNIVERSIDADE DE BRASLIA CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL

A AGROECOLOGIA, A PERMACULTURA E O PARADIGMA ECOLGICO NA EXTENSO RURAL: UMA EXPERINCIA NO ASSENTAMENTO COLNIA I PADRE BERNARDO GOIS

Cludio Rocha dos Santos Jacintho

Orientador: Ph.D. Othon Leonardos

Dissertao de Mestrado

Braslia, janeiro de 2007

2

UNIVERSIDADE DE BRASLIA CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL

A AGROECOLOGIA, A PERMACULTURA E O PARADIGMA ECOLGICO NA EXTENSO RURAL: UMA EXPERINCIA NO ASSENTAMENTO COLNIA I PADRE BERNARDO GOIS

Cludio Rocha dos Santos JacinthoDissertao de Mestrado submetida ao Centro de Desenvolvimento Sustentvel da Universidade de Braslia, como parte dos requisitos necessrios para a obteno do Grau de Mestre em Desenvolvimento Sustentvel, rea de concentrao em Poltica e Gesto Ambiental, opo acadmica.

Aprovado por: __________________________________ Othon Henry Leonardos Ph.D./CDS-UnB (Orientador) __________________________________ Leila Chalub Martins Doutora/CDS/UnB (Examinadora interna) __________________________________ Mnica Castagna Molina - Doutora/UnB (Examinadora externa) __________________________________ Suzi de Crdova Huff Theodoro Doutora/Petrobras (Examinadora externa)

3

Ficha catalogrfica

JACINTHO, CLUDIO ROCHA DOS SANTOS A Agroecologia, a Permacultura e o Paradigma Ecolgico na Extenso Rural: Uma Experincia no Assentamento Colnia I Padre Bernardo - Gois. 139 p. ( UnB CDS, Mestre, 2007) Dissertao de mestrado Universidade de Braslia Centro de Desenvolvimento Sustentvel 1. Agroecologia 3. Extenso rural 5. Sustentabilidade I. UnB-CDS 2. Agricultura familiar 4. Reforma agrria e meio ambiente II. Ttulo

concedida Universidade de Braslia permisso para reproduzir cpias desta dissertao e emprestar ou vender tais cpias para propsitos acadmicos e cientficos. O autor reserva outros direitos de publicao e nenhuma parte desta dissertao de mestrado pode ser reproduzida sem a autorizao por escrito do autor.

Esta pesquisa teve apoio do Programa PESCO-IEB/ISPN/GEF/SGP/PNUD . Cludio Rocha dos Santos Jacintho

4

DEDICATRIA Ao tataraneto do meu tataraneto; s crianas; Ao Yan, Matheus, Luan e Mariah; Aos lutadores e lutadoras por um mundo melhor; Aos movimentos sociais da terra e da Terra; Aos homens, mulheres e crianas do campo; Aos povos ancestrais e a sua cultura viva em todo o planeta; mais generosa Me, Gaia.

Eu estou apaixonado Por uma menina terra Signo do elemento terra Do mar se diz terra vista Terra para o p, firmeza Terra para a mo, carcia Outros astros lhe so guia Terra, Terra Por mais distante o errante navegante Quem jamais te esqueceria? ... (Caetano Veloso)

5

Eu quero, quero Um canto de paz O canto da chuva O canto do vento A paz do ndio A paz do cu A paz do arco-ris A cara do Sol O sorriso da Lua Junto natureza em comunho Eu t voando feito um passarinho Ziguezagueando feito borboleta T me sentindo como um canarinho Eu t pensando em minha violeta ta, ta, ta, ta, ta ta, ta, ta, ta, ta O som da cachoeira me levando As guas desse rio me acalmando O som da cachoeira me levando As guas desse rio me acalmando (Fernando Guimares)

Alessandra in memoriam; Roberta, Yan e Mariah. Que eu possa ser, no apenas o agricultor, mas o cultivador de sonhos, paixes e realizaes, no seio desta unidade familiar, permanentemente.

6

AGRADECIMENTOSAgradeo a Grande Fora Criadora do Universo, ao Esprito de Gaia, Jah Rastafari; Agradeo Vida; minha famlia, por tudo... Muito amor e gratido por todos: Pai Cludio, Me Margarida, Camila, Thiago e Leandro, queridos irmos. Em especial minha me e ao meu irmo Leandro pelo apoio neste trabalho; minha companheira Roberta pela pacincia e compreenso e por ter estado ao meu lado em todos os momentos. Aos meus filhos Yan e Mariah, razo de minha f no trabalho, seio da transformao interior, famlia geradora de crescimento, grato por existirem e serem quem so, materializao do amor incondicional; Maria de Jesus que cuida de todos ns; Gratido tambm pelos demais familiares, minha av Altair e minha bisav Ahia; Alessandra (in memoriam) pelo encontro nesta vida; Graa e ao Leopoldo, por estarem na vida de meu filho; famlia Ipoema, em especial aos grandes irmos Poubel, Eduardo, Iber e Ju. Isabela pelo apoio no trabalho de campo e a tod@s os demais. Nanda (Fernanda Villas Boas) pela parceria no Colnia I; Aos irmos espirituais, verdadeiros amigos, aos prximos e aos distantes; comunidade do Colnia I, pela confiana e parceria, a cada um deles: Joozinho, seu Teobaldo, Wtila, Joo da F, seu Z Firmo, seu Algemiro, dona Marly, e todos (as) os demais; Aos companheir@s do GTRA_UnB, em especial Mnica Molina;. Ao Domingos Damaceno pelo trabalho que fazemos juntos e tambm ao Maranho (Z Filho); Aos povos ancestrais por toda sua sabedoria, em especial aos ndios brasileiros; A James Lovelock, pelo resgate de Gaia, e aos grandes pensadores da nova cincia, Bateson, Capra, Morin, Leff, Maturana, Boff, Margulis, e outros tantos; A Bill Mollison, David Holmgren, Miguel Altieri e Stephen Gliessman pela Cultura Ecolgica; Aos companheir@s da Rede Permear de Permacultores e a Andr Soares por praticarem o que dizem; A Ernst Gtsch, um mestre de si mesmo; A Othon Leonardos, pois, mesmo sendo um grande cientista, no perdeu a ternura.

7

RESUMO

Em meio ameaa global, derivada da superexplorao da Terra e de seus recursos naturais, a agricultura e a pecuria so destaques das aes humanas de grande impacto. Vinculada a um conhecido processo histrico, a aplicao da chamada agricultura convencional vem gerando uma srie de problemas que extrapolam os aspectos ambientais, recaindo sobre a sociedade e a economia. No Brasil a questo da agricultura remonta ao aspecto social da concentrao de riqueza e de terra. Grande parte da produo agrcola nacional, bem como a maior parte dos estabelecimentos agrcolas, pertencem categoria dos pequenos produtores, ou agricultores familiares. Entretanto estes, de modo geral, esto submetidos mesma lgica de mercado e, consequentemente, ao mesmo padro exploratrio da terra que a agricultura de larga escala, baseada em monoculturas mecanizadas e dependentes de insumos industriais. Por outro lado, a emergncia nas trs ltimas dcadas de um modo de produo agrcola de bases ecolgicas vem ganhando respaldo e se mostrando eficiente principalmente para o setor da agricultura familiar. Deve-se, ento, estabelecer novas diretrizes para a assistncia tcnica e extenso rural e demais polticas afetas a este setor, a fim de se caminhar num amplo e longo processo de transio da agricultura convencional para a agroecologia e, em nveis mais avanados, a um novo ordenamento socioespacial da ocupao humana, para o qual pode se valer das tcnicas e conceitos da permacultura. Com esta viso a presente pesquisa se utiliza dos mtodos da pesquisa-ao na aplicao e, conseqente avaliao dos resultados de um processo de capacitao em agroecologia realizada no mbito do Assentamento Rural Colnia I em Padre Bernardo Gois.

Palavras-Chave: agroecologia, agricultura familiar, extenso rural, reforma agrria e meio ambiente, sustentabilidade

8

ABSTRACT

Trough the global treat, derived from the land exploration and from its natural resources, agriculture and cattle production are outstanding from the human action that causes a lot of impact. Linked to a history process already known, the application of conventional agriculture has been causing a group of problems that overcome the environment aspects, doing the same with society and economy. In Brazil the agriculture essue comes from the social aspects of the richness and land concentration. The larger part of national production of agriculture, as the larger part of the agricultural establishment belongs to the small producers or familiar farmers. However these, in a general way, are submitted to the same market logic and because of this they are also submitted to the some standard exploratory of the land that the agriculture in a large scale based in mechanized monoculture and dependant industrial input. In other way the emergency of the last three decades of one agricultural production way based on ecology has been gaining trustiness and has been showed efficient mostly for the familiar agriculture. So, the society should establish new guidelines to the techniques attendency and rural extension and others politics linked to this sector. In order to drive in a long and wide process of transition from conventional agriculture to agroecology and in an advanced levels to a new social space order of human occupation, witch one can use techniques and concepts from the permaculture. With this point of view, this research utilizes methods of action research in the application and, therefore, evaluation of results of a process to make more people able to practice agroecology accomplished in the field of Colonia I settlement in Padre Bernardo Gois.

Key-word: agroecology, familiar agriculture, land distribution and environment, sustainability.

9

SUMRIO

LISTA DE FOTOS LISTA DE FIGURAS LISTA DE TABELAS INTRODUO ................................................................................................ 14 11.1

CAPTULO I A AGRICULTURA CONVENCIONAL E OUTRAS CULTURAS ........................................................................ 25A AGRICULTURA CONVENCIONAL ...................................................... 25 25

1.1.1 Do ponto de vista social ...........................................................................

1.1.2 Do ponto de vista agronmico .................................................................. 27 1.1.3 Do ponto de vista do Oikos .................................................................... 29 1.2 A AGROECOLOGIA ................................................................................. 31 33 35 36 37 41 1.2.1 Do ponto de vista social ........................................................................... 1.2.3 Do ponto de vista do Oikos .................................................................... 1.3 1.4 2 2.1 2.2 A AGROECOLOGIA E A PERMACULTURA ........................................... A AGROECOLOGIA, A PERMACULTURA E A GESTO AMBIENTAL . 1.3.1 A Permacultura ........................................................................................

1.2.2 Do ponto de vista agronmico .................................................................. 34

CAPTULO II AGROECOLOGIA E AGRICULTURA FAMILIAR ............................................................................................. 43UM BREVE HISTRICO DA AGRICULTURA FAMILIAR E DE SUAS SIGNIFICAES ..................................................................................... 43 O ESTADO DA ARTE .............................................................................. 52 52 65

2.2.1 Definindo Agricultura Familiar .................................................................. 2.2.3 Agroecologia e Agricultura Familiar .........................................................

2.2.2 Agricultura Familiar hoje ........................................................................... 53

3 CAPTULO III REALIZANDO PROCESSOS DE 69 CAPACITAO .............................................................................................2.3 O ASSENTAMENTO COLNIA I E A AGRICULTURA ORGNICA ....... 69 69 2.3.1 O contexto regional ..................................................................................

2.3.2 O Assentamento ....................................................................................... 72 2.3.3 O Colnia I e a Agricultura Orgnica ........................................................ 75 2.3.4 Outros desdobramentos: rumo a agroecologia ........................................ 78 3.2 A PESQUISA E A AO METODOLOGIA DA PESQUISA ................. 80

10

3.2.1 Procedimentos ... 3.3 3.4 3.5 3.6 3.7 3.8 3.9 A INTENO DO PESQUISADOR .........................................................

83 89

A INTENO DA COMUNIDADE ............................................................ 85

3.4.1 Ganhando respaldo .................................................................................. 91 CONSTRUO PARTICIPATIVA ............................................................ 92 A BASE METODOLGICA DA INTERVENO ..................................... O PROCESSO PEDAGGICO .............................................................. A PESQUISA EM MEIO AO ............................................................ PRIMEIRAS REFLEXES ....................................................................... 95 98 106 108 109

3.6.1 Adaptando realidade local ..................................................................... 97

3.8.1 Enxergando, escutando e sentindo .......................................................... 107 3.9.1 Interpretaes ..........................................................................................

3.10 A EPISTEMOLOGIA AGROECOLGICA E A CONSTRUO DO CONHECIMENTO .................................................................................... 111 3.10.1 Agroecologia e Permacultura na construo do sujeito ecolgico ........... 118 3.11 SUSTENTABILIDADE NO COLNIA I: O CAMINHO SE FAZ AO CAMINHAR .............................................................................................. 120

CONCLUSES ..............................................................................................

129

REFERNCIAS .............................................................................................. 134 ANEXOS ........................................................................................................... 139

11

LISTA DE FOTOS

Foto 3.1: Seu Teobaldo ....................................................................................... 69 Foto 3.2: Parte da placa de entrada do Assentamento ........................................ 72 Foto 3.3: rea de preservao permanente ........................................................ 73 Foto 3.4: Reserva Legal ....................................................................................... 73 Foto 3.5: Canteiros de horta no lote do seu Rui .................................................. 75 Foto 3.6: Banca de vendas .................................................................................. 78 Foto 3.7: Grupo sabor do cerrado ........................................................................ 79 Foto 3.8: Placa da entrada do assentamento: Parcerias ..................................... 90 Foto 3.9 e 3.10: Valdemir no curso em Braslia ................................................... 92 Fotos 3.11 e 3.12: Elementos permaculturais na Chcara Asa Branca............... 93 Fotos 3.13 e 3.14: Grupo uniformizado, na primeira ida a campo ....................... 94 Foto 3.15: Dinmica de grupo no incio do curso ................................................. 99 Fotos 3.16 e 3.17: Aulas expositivas ................................................................... 100 Fotos 3.18 e 3.19: Aulas circulares ...................................................................... 100 Fotos 3.20 e 3.21: Sada da gua servida da cozinha coletiva ........................... 101 Fotos 3.22 3.26: Implantao do crculo de bananeiras ............... 102 Fotos 3.27, 3.28, 3.29,e 3.30: Atividades prticas .............................................. 103 Foto 3.31: Roda de encerramento do dia de trabalho ......................................... 103 Fotos 3. 32 a 3. 41: Apresentaes dos desenhos dos lotes .............................. 104 Foto 3. 42: Encerramento .................................................................................... 105 Foto 3.43: Sobre um telhado vivo (construo ecolgica na ch. Asa Branca) ..... 105 Foto 3.44: Com os certificados ............................................................................ 106 Foto 3.45: Artesanato produzido no assentamento ............................................. 108 Fotos 3.46 e 3.47: Projeo de imagens de cultivo e de edificaes ecolgicas .......................................................................................................... 115

Foto 3.48: Aulas circulares ................................................................................... 115 Foto 3.49: Mediador ao centro ............................................................................. 116 Fotos 3.50, 3.51, 3.52 e 3.53: Atividades prticas e seus resultados (crculo de bananeiras, para aproveitamento de guas servidas da cozinha) ....................... 117 Fotos 3.54 e 3.55: Visita Chcara Asa Branca ................................................. 118 Fotos 3.56, 3.57 e 3.58: Construo do tanque de ferrocimento de 50.000 litros 122

12

LISTA FIGURAS

Figura 1.1: Elementos de um Design ................................................................... 40 Figura 2.1: Comparativo entre a agricultura familiar e a patronal ...................... Figura 2.2: Comparativo entre a agricultura familiar e a patronal ...................... 59 59

Figura 2.3: Disparidade entre as taxas de analfabetismo nos meios urbano e rural ....................................................................................................................... 60 Figura 2.4: Produo alimentar oriunda da agricultura familiar ........................... 62 Figura 2.5: Aplicao de despesas familiares, no meios urbano e rural ............. 63 Figura 3.1: Localizao do assentamento em relao ao Distrito Federal ......... 70 Figura 3.2: Localizao do assentamento em relao Braslia ....................... 71 Figura 3.3: Imagem de satlite do assentamento ............................................... 73 Figura 3.4: Disciplinas que compe o pensamento agroecolgico ..................... 113

13

LISTA DE TABELAS Tabela 1.1: Caractersticas dos sistemas industriais e dos sistemas sustentveis .......................................................................................................... 41 Tabela 2.1: Nmero de Estabelecimentos, rea e Valor Bruto da Produo Categorias Familiares por Tipo de Renda e Patronal ........................................... 54 Tabela 2.2: Receitas, Despesas, Financiamento e Investimento Categorias Familiares por Tipo de Renda e Patronal ........................................... 56 Tabela 2.3: Renda Mdia por Estabelecimento Categorias Familiares por Tipo de Renda e Patronal ........................................... 57 Tabela 2.4:Tipo de Tecnologia Empregada Categorias Familiares por Tipo de Renda e Patronal ........................................... 58 Tabela 2.5: Disparidade no acesso educao entre os meios urbano e rural ... 61

14

INTRODUO Toda e qualquer sociedade tem como base de sustentao a agricultura, haja vista que esta fonte primria do que lhe prov a vida seu alimento. Entretanto, hoje notrio que pela indissociabilidade entre os sistemas sociopolticos e socieconmicos e os sistemas produtivos, estes ltimos esto amarrados aos interesses paradigmticos daqueles. Assim, evidenciamos o fato de que o modelo agronmico vigente de intensa mecanizao, alta dependncia de insumos externos e alto grau de degradao ambiental fruto de uma excessiva artificializao dos ciclos naturais, pautados na industrializao dos sistemas produtivos (WEID, 1996), intimamente ligado a um elevado e irresponsvel padro de consumo. No apenas este setor produtivo, mas praticamente todas as atividades humanas, relativas ampliao do bem-estar e da qualidade de vida, chamadas de desenvolvimentistas, esto pautadas no referido modelo de artificializao dos processos naturais e na industrializao, como nico caminho para o crescimento socioeconmico. Este por sua vez, no leva em considerao os ciclos energticos envolvidos na elaborao de seus produtos, deixando de internalizar nas equaes econmicas, o custo ambiental dos processos artificializados, gerando uma iluso de crescimento econmico que do ponto de vista energtico se mostra absolutamente insustentvel por apresentar um balano negativo. Atendo-nos funo primria da agricultura, que vem a ser a produo alimentar, evidenciamos um balano energtico negativo, conforme Christofidis (2001) e Gliessman (2001)A dieta padro ocidental, alm de consumir altos nveis de combustvel para ser produzida, contm alta proporo de alimentos de origem animal, considerada uma estratgia pouco eficiente em termos energticos, visto que alta a quantidade de gros/energia necessria para alimentar um animal; 1kg de carne suna obtido com 5kg de gros consumidos pelo animal, 1kg de carne bovina necessita de 7 a 14kg de gros por animal (CHRISTOFIDIS, 2001). Os produtos vegetais que alimentam o gado confinado tm cerca de 0,5% de energia solar que atingiu as plantas, e a protena na carne de gado consumida contm 0,8% da energia que estava na rao, rendendo uma eficincia total de apenas 0,004% (GLIESSMAN, 2001).

No apenas o balano energtico negativo, como tambm a relao produo/rea ocupada inferior na obteno de produtos crneos, Castanho (apud GREIF, 2002) informa que enquanto 10 hectares de terra para pasto possibilitam a

15

alimentao carnvora de apenas um homem por ano, a mesma rea seria suficiente para alimentar 108 homens pelo mesmo perodo se estivesse plantada com arroz.1 Nesta equao de mensurao energtica, ainda se deve incluir a aniquilao da biodiversidade, a perda da fertilidade dos solos e o consumo de gua decorrente das grandes monoculturas. Alm da matriz energtica do petrleo e toda a sua cadeia. Como apontava, Jos Lutzemberger, nos anos 80:

[...] nossa insero numa imensa estrutura tecno-burocrtico-financeiroadministrativa que comea nos campos de petrleo e refinarias, atravessa a indstria qumica, indstria de mquinas, bancos, manipulao industrial de alimentos, at os supermercados e centros comerciais, universidades, pesquisa, extenso agrcola e uma gigantesca movimentao de transportes, social e economicamente absurda, mais uma desenfreada indstria de embalagens que a cada dia torna mais intratvel o problema do lixo e para cuja soluo, alm dos imensos lixes, so construdos gigantescos incineradores. (apud Poubel, 2006, p. 24.)

A necessria reverso deste ciclo de crescimento, atrelado degradao ambiental, passa pela adoo da viso sistmica em termos energticos planetrios, de modo que a viso economicista e mercadolgica possa ser gradualmente permeada e contagiada pela tica da ecologia, e que, desta forma, a sustentabilidade seja abordada em termos de processos e no de obteno de produtos e, conseqentemente, de lucro. Alguns autores como Leff (2002) percebem, ao analisarem os problemas ambientais referentes ao final do sculo anterior e o atual, a existncia de uma verdadeira crise de civilizao. Segundo o autor, tal crise vem sendo agravada pelo efeito da acumulao de capital e da maximizao do lucro a curto prazo, caracterstico do sistema de produo capitalista. A possibilidade de mudana na abordagem da sustentabilidade s encontrar respaldo, caso os atores responsveis pela gesto ambiental incorporem em suas misses, a necessidade de se reavaliar o significado do crescimento ou desenvolvimento sustentvel. Segundo Vandana Shiva (2005), existe um mito sobre o consenso de que se uma pessoa consome o que produz, ela no produz de verdade, pelo menos em termos econmicos. Se o agricultor produz o seu prprio alimento, e no o

1

Em sistemas agroecolgicos com grande agrobiodiversidade, esta relao ainda tende a aumentar

16

comercializa, quer dizer que no contribui para o PIB2 e, portanto, no contribui para o "crescimento".As pessoas so consideradas pobres por comerem o seu prprio alimento e no aquele comercialmente distribudo como junk food vendido por empresas de agronegcio mundiais. So vistas como pobres se viverem em casas feitas por elas mesmas com materiais ecologicamente bem ambientados como o bambu e o barro ao invs de casas de tijolo e cimento. So vistas como pobres se usarem acessrios manufaturados feitos de fibras artesanais no lugar das sintticas. (SHIVA 2005.)

Esta leitura da autora supracitada remete complexidade sociolgica que inevitavelmente circunscreve a gesto dos recursos naturais, trazendo ao bojo da problemtica a questo cultural e paradigmtica da grande sociedade globalizada. O que implica notar que mais do que tratar de arranjos organizacionais ou operacionais, mais do que fomentar instrumentos reguladores e diretrizes para o consumo dos bens naturais e indispensveis para a manuteno do equilbrio ambiental, a ocupao dos gestores ambientais deve questionar os rumos do desenvolvimento e o verdadeiro significado da sustentabilidade3. Assim, a elaborao de estratgias para a obteno de um crescimento ambientalmente sustentvel est intimamente ligada com o prprio sentido do crescimento econmico e social. No Brasil, a questo agrcola est intrinsecamente ligada ao histrico de ocupao da terra e, por conseguinte, atrelada aos fatores socioeconmicos que levaram a um esvaziamento do campo e, conseqente inchao urbano. Diversos estudos demonstram correlao entre os ndices de concentrao de renda e propriedade da terra (RANIERI apud SPAROVEK, 2003) o que leva o pas a ocupar os primeiros lugares no ranking da desigualdade. Como contraponto da concentrao fundiria, a reforma agrria reivindicada pelos movimentos socioambientais vigentes no se limita distribuio de terras, mas num processo de construo dialtica, novos enfoques ou vises passam a ser agregadas a esta, contemplando as atuais demandas planetrias, principalmente no que tange construo da sustentabilidade em todos os seus aspectos. Assim sendo, diversas correntes do pensamento voltam suas energias para a elaborao, por meio da pesquisa participativa, de mtodos e metodologias que2 3

Produto Interno Bruto, ndice que mede a riqueza de um pas. Tal discusso requer um amplo aprofundamento que no ser objetos desta pesquisa

17

levem a construo de modelos para a sustentabilidade, seja pela reorganizao socioeconmica, seja pela meta da auto-sustentabilidade dos processos produtivos ou seja pela percepo da transversalidade das questes ambientais. Entre estes novos conceitos esto a permacultura e a agroecologia. Neste sentido, a presente pesquisa pretende avaliar os processos de capacitao e extenso rural com enfoque agroecolgico, que vem sendo realizados no Projeto de Assentamento Colnia I em Padre Bernado Go.

Objetivos Esta pesquisa tem por objetivo geral avaliar a utilizao da

Permacultura/Agroecologia como instrumento metodolgico para consecuo de projetos de desenvolvimento rural sustentvel, em assentamentos da reforma agrria na regio do Distrito Federal e entorno. Objetivos especficos

Promover e acompanhar processos de capacitao de agricultores extenso rural em permacultura/agroecologia, no Projeto de Assentamento Colnia I;

Avaliar o grau de aceitabilidade e replicabilidade, bem como analisar as motivaes da aceitao ou no, por parte dos agricultores, dos mtodos de planejamento e das prticas permaculturais/agroecolgicas;

Identificar e analisar os impedimentos e as potencialidades de implantao dos referidos mtodos de planejamento, tcnicas e/ou prticas, visando a eventual melhoria da extenso rural para o desenvolvimento sustentvel;

Contribuir para o desenvolvimento, aprimoramento e aplicao de tecnologias apropriadas ao meio rural, no contexto local;

Avaliar resultados obtidos pela aplicao dos processos pedaggicos, nos mbitos socioculturais, econmico e ambiental, objetivando a compilao de elementos norteadores da elaborao de polticas pblicas para o desenvolvimento sustentvel nos assentamentos rurais;

18

Incluir a permacultura, como conceito solidificado, no mbito acadmico e de polticas para o desenvolvimento rural sustentvel.

Justificativa Muito embora o agronegcio seja comemorado hoje como o grande impulsionador da economia brasileira, sabe-se que este representa a elite do campo, segundo o IBGE (1996), 11,4 % dos estabelecimentos com sua agricultura e pecuria em larga escala, em geral, para exportao. Por outro lado cerca de 64% da alimentao domstica provm da agricultura familiar, sendo grande parte desta oriunda de assentamentos da reforma agrria. E reconhece-se o fato de que apesar da reforma agrria ser um processo associado ao campo, seu impacto na sociedade, na poltica e na economia, pode ser sentido em toda a nao (RANIERI apud SPAROVEK, 2003). Diante disso torna-se irrefutvel a demanda por pesquisas e experimentaes de modelos alternativos de produo e ocupao da terra passveis de aplicao neste contexto da reforma agrria4, pois ainda recente a incorporao, por parte do INCRA, da questo ambiental e da noo de sustentabilidade (OLIVEIRA, 2004). A agricultura familiar, sobretudo aquela vinculada a assentamentos de reforma agrria, apresenta vantagens sensveis num processo de transio para sistemas sustentveis (EHLERS, 1996) e de incorporao do conceito de tecnologias apropriadas (SCHUMACHER,1973)5. Visando uma drstica diminuio da dependncia de recursos externos sofrida pelos agricultores familiares, e sua libertao a mdio prazo do emaranhado sistema de crditos e endividamentos, a proposta agroecolgica em sua magnitude, que envolve todas as questes de ocupao humana, tais como habitaes, recursos hdricos e energia, por ora chamada permacultura, vem se mostrando como uma possibilidade plausvel de insero no mbito dos assentamentos de reforma agrria em todo o territrio nacional. (OLIVEIRA, 2004.)

A reforma agrria um tema transversal que abarca uma grande complexidade e que extrapola a mera distribuio de terras. 5 SCHUMACHER, Ernst. F. Small is beautiful: economics as if people mattered. New York: Harper and Row, 1973.

4

19

Com grande potencial de unificar num s mote a problemtica social, ambiental e econmica, a agricultura familiar agroecolgica pode vir a desencadear uma importante linha de polticas para a sustentabilidade, inclusive no que tange s questes culturais das comunidades agrcolas

Hiptese Espera-se com esta pesquisa demonstrar a viabilidade da transio agroecolgica que leve a cabo processos de construo participativa no mbito da agricultura familiar. A hiptese de que os mtodos agroecolgicos de produo, bem como a incorporao dos princpios permaculturais podem ser aceitos, replicados e apropriados pelos atores produtivos da agricultura familiar, como instrumentos para o desenvolvimento rural sustentvel, ser norteadora desta pesquisa. Evidentemente tal hiptese s ser possvel desde que resultados ou perspectivas de ganhos em qualidade de vida6 sejam verificados, porm deve-se notar que o foco da pesquisa no ser a medio de incrementos, produtivo ou de renda dos modelos de agricultura ecolgica7.

Procedimentos metodolgicos

Na fase inicial, foi verificada a inteno da comunidade rural do Colnia I de implementar e realizar processos de capacitao em sistemas agroecolgicos e sistemas permaculturais. Tal demanda foi materializada pelo Grupo de Trabalho de Apoio Reforma Agrria da Universidade de Braslia, GTRA_UnB, que de modo participativo desenvolveu um projeto para captao de recursos financeiros que viabilizassem a realizao das atividades necessrias. Tendo sido submetido e aprovado ao Programa Pequenos Projetos Ecosociais,6

PPP-Ecos,

o

referido

projeto,

denominado

A

Construo

da

A qualidade de vida tanto objetiva quanto subjetiva, cada eixo sendo o agregado de vrias dimenses, sendo elas: bem-estar material, sade, produtividade (ou trabalho), segurana e bemestar emocional, ambiente e sade. O eixo objetivo compreende medidas culturalmente relevantes do bem-estar. O eixo subjetivo compreende a satisfao promovida pelas dimenses e a avaliao da sua importncia para o indivduo (ASMUS, 2004, p. 61). 7 Tais dados no poderiam ser obtidos no curto perodo de realizao desta pesquisa.

20

Sustentabilidade no Assentamento Colnia I _ Unindo Foras Para Viver e Preservar, foi destinado comunidade o recurso necessrio para implementao de alguns elementos fomentadores dos princpios agroecolgicos e permaculturais. Como passo executivo do projeto, foi promovida pelo GTRA_UnB e a associao dos assentados do Colnia I, a Associao dos Produtores de Projeto Colnia I, APPC, a parceria com a organizao no governamental Ipoema, Instituto de Permacultura: Organizao, Ecovilas e Meio Ambiente, na qual se estabeleceu que esta ltima instituio seria executora da etapa de capacitao e implementao dos mtodos permaculturais/agroecolgicos, vindo a ser o presente pesquisador, o articulador desta ao, definido como coordenador de tal capacitao, no mbito da referida Instituio. Na etapa de campo propriamente dita, foram realizadas previamente duas reunies preparatrias com a comunidade, in loco nas quais, de modo participativo, foram definidos os enfoques desejados pelos agricultores, que deveriam ser abordados no decorrer do processo, bem como a gesto coletiva dos recursos destinados a execuo dos elementos previstos no PPP-Ecos. A capacitao agroecolgica e permacultural foi realizada, valorizando-se a troca de saberes e a circularidade das informaes, com a presena freqente dos capacitadores em quatro finais de semana, consecutivos. A pesquisa, de fato, valeu-se dos mtodos da pesquisa-ao, utilizando da escuta sensvel e da observao participante e se valendo de entrevistas informais, semi-estruturadas, que foram realizadas em trs etapas: durante o processo de capacitao; em visita ao Centro Permacultural Chcara Asa Branca8, ocorrida trs meses aps o trmino da capacitao; e, posteriormente, quatro meses aps o trmino do processo de capacitao.

8

Stio referncia em Permacultura em Braslia. Ver www.asabranca.org.br

21

Estrutura da dissertao A presente dissertao est estruturada em trs captulos, decorrentes desta introduo, apresentados da seguinte forma: O Captulo I pode ser dividido em dois blocos: no primeiro, apresentado um amplo panorama do problema em escala macro, trazendo apontamentos para a insustentabilidade, em seus diversos aspectos, do modelo agronmico hegemnico, conhecido como agricultura convencional; j o segundo bloco traz a contraposio a este sistema, pautado na explicitao dos conceitos e premissas da agroecologia e da permacultura. Neste captulo, pretende-se evidenciar a ruptura paradigmtica proposta pela agroecologia, no entendimento desta pesquisa. J o Captulo II faz uma retrospectiva do estabelecimento do sistema agrcola familiar, buscando a partir de suas razes encontrar uma identidade para os contemporneos agricultores familiares, enquadrando os assentados da reforma agrria em um espao socioeconmico definido. Demonstra ainda a importncia da agricultura familiar hoje, enquanto atividade social fundamental para o desenvolvimento da nao e culmina com a contextualizao do assentamento ao qual tal pesquisa se dedica, delineando seu caminhar rumo transio agroecolgica. Por fim, no Captulo III, so apresentadas as experincias obtidas nas etapas de campo, fazendo uma reflexo acerca da importncia dos processos construdos de modo participativo, na construo da sustentabilidade no campo, bem como se avalia a agroecologia e a permacultura como mtodos que extrapolam tcnicas agrcolas, apresentando uma epistemologia prpria pautada na construo de um novo ator social que incorpore os saberes ecolgicos nas aes cotidianas. O leitor ir notar que ao longo do texto, como introduo de alguns tpicos, encontram-se citaes que alternam entre citaes polticas e citaes poticas. Mesmo as poticas so carregadas em contedo poltico, porm poucas as polticas so recheadas com poesias.

22

Um breve relato pessoal Aqui esto os ltimos escritos desta dissertao. Conforme se pode notar, optei por fazer uma introduo que, mais do que indicasse os rumos do texto que seguir, fosse direto ao assunto, fazendo uma primeira problematizao. Porm ao chegar ao final desta, notei que seria uma perda de oportunidade no registrar aqui o contexto pessoal que me cercou no decorrer desses dois anos de estudos. Seria uma perda para mim, pois provavelmente no teria outro momento e outro objeto que pudesse guardar minhas memrias, to bons quanto este texto que se guardar pela posteridade. Seria tambm uma perda para os leitores que, conhecendo um pouco mais a realidade do autor, podero sentir-se mais afinados com a pesquisa, compartilhando os prazeres e as dificuldades inerentes a esta. Assim, brevemente farei agora um relato, no de minha trajetria at aqui, mas do incio dos estudos acadmicos de ps-graduao at a concluso desta. Recebi a confirmao de ter sido selecionado para o mestrado em outubro ou novembro de 2004, dois anos e meio aps ter me formado em engenharia florestal. Neste momento, meu filho, Yan, tinha seis anos de idade e eu estava vivendo um novo relacionamento amoroso h cerca de trs anos. Continuava atuando de forma autnoma no projeto que iniciara ainda nos tempos de universidade, que era a implementao de um stio modelo em permacultura, para a moradia de 9 famlias. Tal projeto, que hoje uma referncia em Braslia (Chcara Asa Branca), estava (e est ainda) sendo aplicado em uma chcara de propriedade familiar, porm como a maioria dos recm-formados eu no dispunha de recursos financeiros em abundncia. Como alternativa para baratear os custos e principalmente pela minha filosofia de vida, neste tempo estive realizando todo o trabalho braal referente implantao do projeto. Plantei algumas hortas, e alguns mdulos de agroflorestas, constru minha casa e a do caseiro, desenvolvi um sistema de aproveitamento de gua da chuva que nos fornece gua para todos os usos, enfim. Era um engenheiro que trabalhava bastante como peo. Para me manter realizava pequenas consultorias pontuais e contava com auxlio familiar Eis que em dezembro de 2004, aproximadamente um ms aps ser aprovado para o mestrado, recebo uma ligao de meu pai (neste exato momento estava com a mo cheia de barro, construindo uma das casas ecolgicas na chcara) que me informava que eu havia sido aprovado e chamado em um concurso que havia feito

23

h um ano e meio antes e do qual nem me lembrava mais. Desta forma no final de 2004, minha vida se intensificou. Iniciei 2005 com o compromisso do mestrado e um trabalho de 40 horas semanais no Ministrio do Meio ambiente. Porm no larguei meu projeto de vida, muito pelo contrrio, este tambm se intensificou. Com uma renda permanente, os investimentos na chcara se expandiram e mais, como decorrncia do trabalho prtico, um grupo se formou e se organizou, fundamos em maro deste mesmo ano uma ONG, que nasceu com 40 scios fundadores e da qual sou idealizador, sou diretor-geral, o Ipoema. Desta forma, no primeiro semestre de 2005 alm do mestrado, do servio pblico e da famlia, gerenciava o empreendimento Asa Branca e a instituio Ipoema. Esta situao, cada vez mais, fortalecia a minha convico do caminho a trilhar. Como no poderia deixar de ser, os estudos de Desenvolvimento Sustentvel estiveram sempre voltados para a permacultura e a agroecologia, o que culmina agora com esta dissertao. Em abril de 2005 iniciamos o maior empreendimento na Asa Branca, uma casa de 200 m construda com barro do local e com padro de qualidade alta (padro classe mdia urbana), nesta, que a casa de meu irmo, Leandro e sua famlia, assumi totalmente a responsabilidade tcnica de projeto e execuo da obra. A permacultura tem dessas coisas, Leandro, um permacultor formado em administrao, alm de financiador, foi o arquiteto; eu, engenheiro florestal, fui o engenheiro civil, hidrulico e eletricista e pedreiro (entre outros, assim como Leandro); e nosso mestre-de-obras e faz tudo nosso caseiro, um menino piauiense com 21 anos hoje, Domingos. A essas alturas j estvamos recebendo diversas visitas espontneas (no houve nenhum programa ou divulgao para tal) de pessoas interessadas em conhecer nosso trabalho. E o Ipoema realizava diversas atividades rotineiras, desde reunies de gesto a mutires educativos. Mas a vida ainda me reservava algumas surpresas neste breve perodo de dois anos. Com trs meses de incio da obra, minha companheira Roberta engravida... Neste ritmo de trabalho intenso chegamos ao ano de 2006. Tempo de ir a campo para a pesquisa, viagens a servio, demandas crescentes da ONG, difuso do trabalho na Asa Branca. A casa do Leandro ficou pronta no fim de maro, a obra durou um ano, realizada por dois trabalhadores em meio s demais atividades rotineiras da chcara.

24

Em abril nasceu minha adorada filha Mariah, linda. Esse era um novo momento, uma nova vida que chega, novos moradores na chcara, o incio da concretizao da ecovila familiar. Muitos visitantes comeam a aparecer, os cursos do Ipoema recompensam o demasiado trabalho pelo sucesso de sua realizao. Obviamente, o excesso de trabalho comea a mostrar seus efeitos colaterais. Com muito empenho consegui cumprir todas as etapas prvias ao trabalho de campo da pesquisa e mantinha uma atuao e relao satisfatria no ministrio. Porm, mais uma daquelas surpresas da vida, em 4 de setembro de 2006 morre, com 28 anos, Alessandra, me de meu amado filho Yan. Fiquei mais de um ms fora do ar, uma nova responsabilidade, uma enorme estafa mental e emocional. Entretanto, boas possibilidades para exercer aquilo que minha filosofia permacultural e espiritual me instrui, a tica do cuidado. Apenas em meados de outubro retorno a minha pesquisa, e agora aqui, a dois dias de encerrarmos este ano intenso, estou digitando as ltimas palavras de minha dissertao, so e salvo e cada vez mais forte, com amor e gratido.

25

CAPTULO I A AGRICULTURA CONVENCIONAL E OUTRAS CULTURASA civilizao se tornou to complicada/ que ficou to frgil como um computador/ que se uma criana descobrir o calcanhar de Aquiles/ com um s palito para o motor/ Buliram muito com o planeta/ e o planeta como um cachorro eu vejo/ se ele j no agenta mais as pulgas/ se livra delas num sacolejo (Raul Seixas)

1.1 A AGRICULTURA CONVENCIONAL Muito tem sido pesquisado e discutido acerca da chamada agricultura convencional, em geral procuram-se sempre meios de incrementar a produtividade desta ao menor custo econmico9 possvel. Porm pouca visibilidade se d aos autores que trazem o ponto de vista pautado em todos os ciclos energticos envolvidos na produo agrcola. No obstante a veracidade dos dados incrementais da produo agrcola mundial, fica sombreada por estes a informao referente aos elevados custos socioambientais e culturais deste setor produtivo. Um dos mais conceituados autores da cincia agroecolgica, Gliessman (2001), afirma que os aparentes sucessos do atual sistema produtivo mundial de alimentos vm minando suas prprias bases de sustentao, isto , para se obter resultados ascendentes, o modelo agrcola dominante vem exaurindo os recursos naturais dos quais depende.

1.1.1 Do ponto de vista social Tendo em vista a caracterstica exploratria do sistema agrcola largamente adotado, e referenciando este nos ciclos econmico-produtivos histricos, nota-se uma disfuno social do sistema produtivo agrcola hegemnico, a chamada agricultura convencional. Ao passo que se incrementa a agricultura para exportao, cresce o abandono do campo pelos pequenos agricultores tradicionais, e conseqentemente, se incrementa o inchao urbano desregulado, como decorrncia de um processo de artificializao dos sistemas naturais, rotulado de modernizao tecnolgica, o qual incentivado pelo estado, por meio das aes de seus governos, no que se refere a subsdios, crditos, financiamentos e assistncia tcnica

Em geral, os custos considerados so apenas aqueles referentes aos aspectos (bens e servios) valorados em termos monetrios, na cadeia produtiva. Aspectos socioambientais, praticamente, no entram na equao.

9

26

agropecuria, tendo esta fase de incentivo desenvolvimentista atingido seu auge na chamada Revoluo Verde10 iniciada a partir dos anos 60. Segundo Ehlers (1996), apesar da agricultura familiar, de pequena escala, apresentar potencial superior agricultura patronal, em capacidade de manter ou gerar novos postos de trabalho, visto que a primeira se insere em cerca de 6,5 milhes de estabelecimentos, contra 500 mil da segunda11, essa acabou sendo relegada a segundo plano, no que se refere a incentivos e acesso ao crdito. E como agravante desta patologia social, de modo geral, os pequenos produtores rurais, que no passado viviam com excedentes, deixam de produzir para si e passam a produzir para os grandes empreendimentos, vendendo sua fora de trabalho para poder comprar alimentos nem sempre suficientes e saudveis (BRANDO, 1982). Uma breve anlise comparativa entre os dados de 1992, retirados de Ehlers (1996) e os atuais, mostra, claramente, que a concentrao de terra continua aumentando no pas. De acordo com os dados, o nmero de estabelecimentos saiu de aproximadamente 6,5 milhes para 4,1 milho, ao passo que o nmero de estabelecimentos patronais subiu apenas prximo de 54 mil, passando de 500 mil para 554 mil. Infere-se, desta forma, que 54 mil empresrios rurais incorporaram s suas terras o equivalente 2,4 milhes de estabelecimentos rurais familiares. Outro aspecto socialmente nocivo deste modo de produo se refere concentrao de renda, intimamente relacionada concentrao fundiria. A faceta mais cruel deste fato diz respeito ao problema da fome que continua sendo uma das grandes mazelas da humanidade. Ziegler (2002) aponta que a Organizao das Naes Unidas para Alimentao e Agricultura, FAO, afirma que trinta milhes de pessoas morreram de fome no ano de 1999, e mais de 900 milhes de humanos sobreviveram, neste mesmo perodo, flagelados pela desnutrio grave e permanente. Porm, o autor segue informando que a mesma organizao, h mais de quinze anos, informou que o estado atual das foras de produo agrcola poderia alimentar mais do que o dobro da populao atual, o que deslegitima o argumento de que a meta da agricultura convencional incrementar a produo para alimentar a populao mundial, j que no se trata de quantidade e sim de distribuio da produo e da riqueza. O desafio que enfrentamos no uma

Vide pgina 27 nesta. Estes foram os dados retirados de Ehlers, (1996). Os dados atuais do IBGE demonstram que so 4.139.369 estabelecimentos familiares, contra 554.501 patronais.11

10

27

simples questo de atender demanda global por alimentos, quantitativamente este objetivo j foi alcanado (CONWAY, 2003).

1.1.2 Do ponto de vista agronmico Buscando-se um resgate histrico da evoluo da agricultura, verifica-se que a agricultura convencional, designao dada agricultura ps-industrial, tem sua origem em meados do sculo XIX em decorrncia da fragmentao do conhecimento em campos especficos de investigao e de estudos analticos Ehlers (1996). Com o surgimento do quimismo (Justus Von Liebig, 1803-1873), a ecologia e as relaes dos sistemas produtivos animais e agrcolas foram sendo sumariamente suprimidas pela produo industrial de insumos qumicos e pela artificializao dos processos naturais, pautados na simplificao e mecanizao destes sistemas. Como evoluo desta etapa, hoje conhecida como Segunda Revoluo Agrcola, deu-se a chamada Revoluo Verde, que segundo Ehlers (1996)[...] fundamentava-se na melhoria do desempenho dos ndices de produtividade agrcola, por meio da substituio dos moldes de produo locais, ou tradicionais, por um conjunto bem mais homogneo de prticas tecnolgicas; essas prticas incluem variedades geneticamente melhoradas, muito exigentes em fertilizantes qumicos de alta solubilidade, agrotxicos com maior poder biocida, irrigao e motomecanizao. Esse conjunto tecnolgico, tambm chamado de pacote tecnolgico , forneceu, na Europa e nos EUA, as condies necessrias adoo em larga escala dos sistemas monoculturais. (EHLERS, 1996, p.32.)

Atualmente possvel ver uma nova etapa desta linha evolutiva, a chamada transgenia, ou modificaes genticas, que parece ser a ltima fronteira da artificializao e simplificao dos sistemas agrcolas, o qual vem enfrentando intensas discusses e disputas ideolgicas em vrias esferas da sociedade 12. Do ponto de vista agronmico, ao se induzir os pases do sul, de climas tropicais, a reproduzirem tal modelo, houve um grave erro de concepo, visto que tal lgica quimicista e mecanizada se justificaria nos solos de climas temperados, aonde foi desenvolvida. Porm, sabido que nos solos evoludos de regies com climas tropicais e subtropicas, ocorre uma dinmica diferenciada dos processos que12

Nesta dissertao este tema no ser discutido.

28

regulam a umidade, a luminosidade e a temperatura, s quais,influenciam diretamente a pedofauna na ciclagem de nutrientes, que decisiva do ponto de vista agronmico. Sabe-se tambm que esta depende da manuteno da estrutura dos solos, que por sua vez depende diretamente da biomassa, alm do que, nestas condies a maior parte dos elementos assimilados pelas plantas, encontra-se na matria orgnica propriamente dita e no na parte mineral do solo. De modo que a observao dos modelos de produo nestas condies deve tratar do complexo clima-solo-vegetao.A monocultura, para ser vivel economicamente, exige grandes reas, sobrevivendo neste sistema apenas grandes produtores. Para otimizar a produo e a colheita so utilizadas grandes e pesadas mquinas que compactam o solo, danificando sua estrutura fsica, reduzindo a sua capacidade de armazenamento de gua e nutrientes, e diminuindo sua atividade biolgica. Alm destes efeitos no solo, estas mquinas substituem a mo-de-obra de milhares de trabalhadores. Como os solos se tornam degradados, so sempre necessrias novas reas, e para isto florestas so derrubadas, ameaando no somente as espcies vegetais, mas tambm animais, alm de comprometer a proteo dos rios e do solo e a qualidade do ar (PRIMAVESI13, 1987 e LEONARDOS14 , 1999, apud PEDROSO, 2001, p.35)

Tal erro induzido foi responsvel pela gerao de um ciclo vicioso ideal para reproduo do pacote tecnolgico da Revoluo Verde, no qual o agricultor ao limpar o terreno, elimina toda a matria orgnica do solo e com ela grande parte dos nutrientes naturais das plantas. Por ser uma agricultura de larga escala necessria mecanizao, deixando os solos expostos s intempries e o que restou de fertilidade natural acaba por ser erodida, favorecendo a compactao do solo. Tem-se, ento, a necessidade indispensvel de fertilizao qumica, que contribui para uma m nutrio das plantas, que associada falta de diversidade e ao desequilbrio ambiental as deixam vulnerveis ao ataque de pragas, obrigando o uso de agrotxicos em geral. Estes fatores culminam com uma colheita no diversificada, o que obriga o agricultor a comprar seu prprio alimento e, muitas vezes, obtendo sementes infrteis que o leva a dependncia do mercado de sementes. Este ciclo de dependncia em escala global ameaa a segurana e a soberania alimentar das naes pobres, uma vez aceita a definio para soberaniaPRIMAVESI, Ana Maria. Razes: a lavoura que o olho no v. Guia Rural Abril. Anurio 1988. So Paulo: Abril, 1987. p.10-28. 14 LEONARDOS, Othon Henry e THEODORO, Suzi Huff. Fertilizing Tropical Soils for sustainable development. In: FORMOSO, Milton L.L. Workshop on Tropical soils. Rio de Janeiro. Academia Brasileira de Cincias, 1999. 1443-153. 192p.13

29

alimentar cunhada no Frum Mundial sobre Soberania Alimentar, realizado em Havana, no ano 2000, que a conceitua como:O direito dos povos de definirem suas prprias prticas, polticas e estratgias sustentveis de produo, distribuio e consumo de alimentos que garantam direito alimentao adequada de toda a populao, com base na pequena e mdia produo, respeitando as prprias culturas e diversidades locais (SILIPRANDI15, 2001, apud POUBEL 2006, p.46).

Por esta definio, fica evidente que existe uma forte e direta correlao entre soberania alimentar e a autonomia dos sistemas alimentares, sua produo e comercializao e que, por conseqncia, ameaada a soberania alimentar de uma nao, fica ameaada tambm a sua soberania em sentido amplo.

1.1.3 Do ponto de vista do oikos O sufixo eco das palavras economia e ecologia tem sua origem etimolgica e derivao epistemolgica na expresso oikos cujo significado casa. A ecologia se presta a entender a casa, isto , o funcionamento do processo da vida no planeta Terra, enquanto a economia deveria tratar de organizar este funcionamento em funo da existncia humana. Porm, as prticas econmicas parecem no compreender os princpios ecolgicos bsicos. Ao tratar a economia do ponto vista do capital, o que considerado desenvolvimento, muitas vezes, o menos econmico do ponto de vista ecolgico, entendendo-se que um dos princpios bsicos das leis naturais se refere aos ciclos energticos. A gua um bom exemplo de custos ambientais. A agricultura, de modo geral dentre todas as atividades humanas, a que mais consome este elemento vital, cerca de 70% da gua consumida no planeta utilizada em sistemas de irrigao, porm a eficincia total deste uso da gua da ordem de 45% (CHRISTOFIDIS, 2001). Segundo o autor, para a produo de 1kg de soja, so necessrios 2.000l de gua, para 1kg de carne bovina, so necessrios de 7 a 14kg de gros, ou seja, para 1kg de carne utiliza-se aproximadamente 20.000l de gua. Sabendo que o cultivo apenas uma das etapas da produo de alimentos15

SILIPRANDI, E. possvel garantir a soberania de todos os povos no mundo de hoje? Porto Alegre: Revista de Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentvel, vol.2, n.4, 2001.

30

industrializados, pode-se considerar que os impactos ambientais so ainda de maior proporo e significncia. Alm do desperdcio de gua, tem-se o prejuzo ecolgicoeconmico da perda de fertilidade do solo; das espcies extintas e da perda de biodiversidade; da contaminao e assoreamento dos corpos dgua; da emisso de gases estufa e, ainda, do custo energtico de toda a cadeia produtiva, dependente do petrleo. Como afirma Hayes (1977), caso todas as pessoas do mundo se alimentassem de alimentos cultivados, processados e distribudos do modo norteamericano, praticamente todo o combustvel do mundo seria consumido pela cadeia de produo e distribuio de alimentos. Na constatao de Gliessman, 2001, a produo alimentar est usando, hoje, mais energia para produzir o alimento do que a energia que o alimento contm em si, e a maior parte desta energia provm de fontes de combustveis fsseis (finitas) e, muitas vezes, poluentes. Portanto, o modo de produo alimentar ecologicamente insustentvel, se todos os custos ambientais fossem internalizados nos preos dos produtos, certamente tambm seria economicamente insustentvel. Entretanto, no caso brasileiro o setor agrcola comemorado como grande impulsionador do desenvolvimento, isto , contribui para o crescimento do Produto Interno Bruto, PIB. A agricultura familiar nacional responsvel por cerca de 38% do PIB agrcola, sendo que produz 64 % do alimento consumido no mercado interno (IBGE) o que indica que economicamente, alimentar a populao no gera crescimento. Porm, como afirma Shiva (2005):[...] os povos indgenas na Amaznia, as comunidades na montanha do Himalaia, camponeses de toda a parte cujas terras no foram apropriadas, cuja gua e biodiversidade no foram destrudas pela agroindstria geradora de dbito, so ecologicamente ricos, mesmo ganhando menos que $ 1,00 (um dlar) por dia. (SHIVA 2005.)

No entanto nas ltimas dcadas, o Brasil tornou-se o segundo maior produtor de soja mundial, o maior exportador de farelo, o segundo maior exportador de gros e o quarto maior de leo (DUARTE, 1998). Gliessman (2001) define agroecossistema sustentvel como:[...] aquele agroecossistema que mantm a base de recursos da qual depende, conta com um uso mnimo de insumos artificiais vindo de fora do

31

sistema de produo agrcola, maneja pragas e doenas atravs de mecanismos reguladores internos e capaz de se recuperar de perturbaes causadas pelo manejo e colheita (GLIESSMAN, 2001, p. 565).

Caso seja incorporado o preceito de sustentabilidade como descrito por Gliessman (2001) em todas as aes, programas, polticas e instrumentos relativos sustentabilidade ambiental, social e econmica, tratar-se- com a devida profundidade a problemtica da gesto do meio ambiente. Do ponto de vista econmico, a questo no deveria ser como produzir mais gros?. E sim, por que e para quem produzir mais gros?. E esta indagao poderia valer para diversas atividades e setores produtivos, visto que os 20% de pases mais ricos so responsveis por 86% do consumo global e os 20% mais pobres, por apenas 1% (ISA, 2005). 1.2 A AGROECOLOGIA Visto que a atividade agrcola dentre as atividades degradadoras uma das mais impactantes, esta deve ser ponto permanente da agenda internacional pela busca da almejada sustentabilidade. A agroecologia incorpora aos conceitos da cincia agronmica, uma percepo ecolgica dos processos produtivos, esta cincia em construo traz uma abordagem transdisciplinar16, que visa complementar sua prpria evoluo, baseada na incorporao dos saberes empricos tradicionais das populaes. O fortalecimento da agroecologia, como cincia acadmica, um forte contraponto ao fato levantado por ALTIERI e NICHOLLS (2003) de que a pesquisa acadmica tem tido como o objetivo "melhorar os rendimentos de culturas alimentares e gados especficos, mas geralmente sem entender adequadamente as necessidades e opes dos pobres, nem o contexto ecolgico dos sistemas que esto sendo tratados". Pode-se considerar que os hbitos e padres de consumo de uma determinada sociedade so decorrncia de diversos aspectos que envolvem sua cultura, crena, condies ambientais e condies econmicas e tecnolgicas. Embora as grandes sociedades modernas tenham desenvolvido diversas formas de interao com o meio para se alimentar, a forma predominante de agricultura vem se mostrando degradante do meio fsico, o que aponta para a observao do fato de16

A transdisciplinaridade uma abordagem que passa entre, alm e atravs das disciplinas, numa busca de compreenso da complexidade.

32

que algumas sociedades de pequena escala, povos autctones ao redor do mundo, obtiveram melhor xito em manter sua base de recursos naturais do que as sociedades urbanas globalizadas. Segundo Bodley (2004), algumas pesquisas com enfoque em ecologia vm demonstrando uma correlao da velocidade e do grau de degradao ambiental com o crescimento das sociedades que apresentam concentrao de poder social e econmico. Deste modo, pode-se concluir que, em geral, os problemas socioeconmicos e ambientais so construdos culturalmente pela desigualdade social e no por condies naturais. A nova abordagem agroecolgica, que traz um entendimento mais profundo da ecologia de sistemas agrcolas tem mostrado que agroecossistemas produtivos e sustentveis podem ser, ao mesmo tempo, econmica, ambiental e socialmente viveis. Com efeito, esta abordagem contribui na gesto de uma agricultura sustentvel, pautada na busca pela segurana alimentar e energtica em nveis familiares, regionais e nacionais. Este enfoque vem sendo consolidado por prticas agroecolgicas, onde os ecossistemas agrcolas so manejados com a mnima dependncia de aportes de produtos qumicos agrcolas e de energia, enfatizandose culturas complexas nas quais as interaes ecolgicas e as sinergias entre componentes biolgicos proporcionam os mecanismos para que os sistemas patrocinem sua prpria proteo de fertilidade do solo e de produtividade (ALTIERI, 2003). A Agroecologia foi definida por Altieri17 (1987, apud LEFF, 2002b) como as bases cientficas para uma agricultura alternativa, um novo paradigma produtivo gerado pela fuso de diferentes disciplinas e saberes tradicionais campesinos para compreender:[...] o funcionamento dos ciclos minerais, as transformaes de energia, os processos biolgicos e as relaes socioeconmicas como um todo [...] ao mesmo tempo, introjeta princpios de eqidade na produo,de maneira que suas prticas permitam um acesso igualitrio aos meios de vida.(LEFF, 2002b, p. 38-39.)

Segundo este autor:A Agroecologia surgiu, precisamente, de uma interao entre os produtores (que se rebelaram frente deteriorao da natureza e da sociedade que 17

ALTIERI, M.A. Agroecology: the scientific basis of alternative agriculture. Colorado: Westview Press, Boulder, 1987.

33

provocada pelo modelo produtivo hegemnico) e os pesquisadores e professores mais comprometidos com a busca de estratgias sustentveis de produo. Sua ao transformadora implica a insero de suas tcnicas e suas prticas em uma nova teoria da produo (LEFF, 2002b, p.39).

Dentre os autores, Gliessman (2001, p. 54) define, de modo simples, a agroecologia como sendo "a aplicao de conceitos e princpios ecolgicos no desenho e manejo de agroecossistemas sustentveis". Para Hecht (2002), a agroecologia:[...] representa uma abordagem agrcola que incorpora cuidados especiais relativos ao ambiente, assim como aos problemas sociais, enfocando no somente a produo, mas tambm a sustentabilidade ecolgica do sistema de produo.(HECHT, 2002, p. 26)

Para que possa ser balizada a definio de agroecologia, alguns aspectos so observados pelos autores, tais como: promover uma agricultura de baixo impacto ambiental; minimizar drasticamente o uso de poluentes qumicos na forma de insumos; utilizar prticas conservacionistas de solo, da gua e da biodiversidade; intensificar o uso de insumos internos e favorecer a ciclagem de nutrientes; resguardar a soberania alimentar e obter excedentes para gerao de renda; utilizar tecnologias apropriadas s realidades locais especficas, promovendo o controle local dos recursos agrcolas. (EHLERS, 1999 e GLIESSMAN, 2001). 1.2.1 Do ponto de vista social Segundo Vivan (1998), para nada valem, em termos de consolidao de uma prtica social, as polticas pblicas que no so construdas com a participao e informao que vem a partir da base da sociedade. Assim, ao abordar-se a agroecologia, como instrumental para a elaborao destas polticas, faz-se necessrio compreend-la a partir de um prisma social. Isto significa que aspectos socioculturais e econmicos das comunidades rurais e/ou tradicionais devem ser incorporados aos aspectos a serem observados na elaborao de estratgias de fomento s prticas de agricultura sustentvel, visto que a agricultura tem relao direta com a cultura e histria dos agricultores e suas comunidades (REIJNTJES, HAVERKORT e WATERS-BAYER,1999). Ao reportar-se a meta da sustentabilidade, Altieri (1989) ressalta que a agroecologia prov as diretrizes para o desenvolvimento tecnolgico, mas no

34

processo,

as

questes

tecnolgicas

devem

servir

como

estratgia

de

desenvolvimento rural que incorpore as problemticas socioeconmicas. O que caracteriza este modelo como mtodo de construo dialgico da sustentabilidade, partindo de um nvel local para o global. Ou ainda, na viso de Weid e Altieri (2002), devem ser seriamente consideradas as necessidades, as aspiraes e as circunstncias dos pequenos agricultores e, dentre outros fatores, as inovaes devem ser congruentes com os sistemas agrcolas camponeses e melhorar a alimentao, a sade e o meio ambiente. Ao compreender-se o modelo de produo agrcola atual como elemento constituinte de um sistema poltico econmico cujo objetivo central a reproduo do capital e partir ento para um enfoque que equacione a funo social e econmica da produo agrcola, toma-se a questo da segurana alimentar, em escala local, como meta desejvel, devolvendo ao cultivo da terra o seu carter vital acima de qualquer outra funo, permitindo ao agricultor familiar um resgate do valor no financeiro, da auto-suficincia alimentar, quebrando o ciclo vicioso ao qual o pequeno produtor rural fica atrelado ao reproduzir o pacote tecnolgico da Revoluo Verde. Leff (2002b) afirma que:A Agroecologia, como reao aos modelos agrcolas depredadores, se configura atravs de um novo campo de saberes prticos para uma agricultura mais sustentvel, orientada ao bem comum e ao equilbrio ecolgico do planeta, e como uma ferramenta para a autosubsistncia e segurana alimentar das comunidades. (LEFF, 2002b, p 37.)

1.2.2 Do ponto de vista agronmico Em termos ambientais e produtivos, o grande desafio da implantao de sistemas agroecolgicos viabilizar uma produtividade que seja economicamente sustentvel, baseada nos princpios ecolgicos que regem os ecossistemas naturais. Uma premissa bsica da sustentabilidade dos agroecossistemas que estes devem manter um bom grau de estabilidade produtiva ao longo do tempo, o que, segundo Gliessman (2001), decorrncia do balano energtico entre a utilizao dos insumos externos e internos ao sistema em questo e sua produtividade. Tendo os princpios ecolgicos dos sistemas naturais como modelo de auto-regulao e sustentabilidade, Gliessman (2001) e Altieri (2002) remetem questo da agrobiodiversidade, visto que a estratgia de complexificao e diversificao dos

35

agroecossistemas, segue um princpio fundamental da ecologia dos ecossistemas tropicais, que ampliam sua rede de inter-relaes para sustentar-se nas condies de intenso intemperismo. Alm de uma estratgia ecolgica, a diversificao da produo uma estratgia econmica importante na agroecologia. Visto que sistemas diversificados podem apresentar maior produtividade total em determinada rea, comparando-se com monocultivos (ALTIERI 2002). Dentre as conseqncias da utilizao de sistemas diversificados, a estabilidade do sistema produtivo uma das que se destacam, uma vez que eventuais perdas podem ser minimizadas por outros produtos do mesmo agroecossistema. Pela observao dos sistemas naturais predominantes nos climas tropicais e subtropicais, nota-se que a estratgia da diversificao biolgica esta relacionada presena de florestas, isto , vegetao arbrea. Assim entende-se que estas devem compor os agroecossistemas como estratgia para obteno da sustentabilidade. Do ponto de vista agronmico, a influncia destas traz as seguintes vantagens: melhoria da fertilidade do solo pela absoro de nutrientes profundos para camadas mais superficiais do solo e pelo aporte de biomassa depositado por folhas e galhos que caem das rvores; formao de microclimas adequados para outras culturas ou para animais; ajudam no controle de ervas espontneas, pragas e doenas, algumas so at mesmo biorepelentes eficazes no controle biolgico desses possveis problemas; podem gerar melhor aproveitamento dos recursos de capital e mo-de-obra, pois, certas espcies podem render lucros a longo prazo e com menor aporte de insumos (ROCHA, 2006). 1.2.3 Do ponto de vista do oikos Dentro do pensamento econmico hegemnico, a sustentabilidade deve seguir a racionalidade do mercado, porm a partir de uma viso ambiental da economia, Leff (2002b) sugere que os fundamentos da sustentabilidade global devem ser estabelecidos nos processos produtivos primrios como nas economias de subsistncia que no estiveram regidas tradicionalmente pelos princpios da acumulao e produo para o mercado que afetam diretamente a fertilidade dos solos, a produtividade dos cultivos e a preservao da biodiversidade. Nesse sentido

36

no poderia haver uma economia sustentvel que no estivesse fundada em uma agricultura e uma silvicultura sustentveis. Sendo uma cincia ambiental, a agroecologia no permitiria outra viso econmica alm daquela que se pretende com a Economia Ambiental, porm esta se reconhece limitada, servindo basicamente para objetivos que mantenham a racionalidade mercadolgica. Apesar da constante evoluo e construo de novos modelos por esta nova economia, no se obteve ainda a quantificao de determinados ativos ambientais, ou seus servios, tambm chamados de capital natural (HAWKEN, LOVINS e LOVINS, 2000) servios estes agregados aos sistemas agroecolgicos, tais como proteo de solos, conservao e melhoria no ciclo das guas, manuteno da biodiversidade, recuperao de reas degradadas, sanidade ambiental, emisso zero de poluentes e sequestro de carbono. A agroecologia e os sistemas permaculturais so propriamente a insero ecolgica nos sistema produtivos humanos. Esta segunda, no se restringindo ao cultivo da terra, como se ver adiante. Alm dos aspectos acima mencionados, a agroecologia pode18 apresentar uma maior rentabilidade, ao passo que tende a diminuir os custos de produo, por priorizar recursos locais disponveis, podendo at aumentar consideravelmente a produtividade por rea, alm de oferecer mais estabilidade ao produtor, visto que a produo diversificada. 1.3 A AGROECOLOGIA E A PERMACULTURA Segundo Guzmn (2002), a agroecologia se prope no s a modificar a parcelizao disciplinar, como tambm epistemolgica da cincia, ao trabalhar mediante a orquestrao de distintas disciplinas e formas de conhecimento que compe seu pluralismo dual: metodolgico e epistemolgico. Ainda incipiente nos fruns acadmicos, a Permacultura, apesar de ser freqentemente apresentada como uma das correntes da agroecologia, pode ser compreendida como uma cincia em construo, semelhante agroecologia, visto que apresenta toda uma epistemologia prpria, seus mtodos so replicveis e composta por processos que englobam diversas reas do saber. Por ser uma metodologia de desenho eEmbora algumas pesquisas venham demonstrando isto, ainda no se pode afirmar tal fato de modo generalista. Nesta pesquisa no se pretende investigar tal hiptese.18

37

gesto ambiental pr-elaborada, esta pode ser vista como complementar aos princpios agroecolgicos, j que aborda questes no contempladas na agroecologia, com relao ocupao humana nos agroecossistemas, tais como energia, habitaes e saneamento, alm do cultivo da terra propriamente dito. Segundo seu cone, Mollison (1999, prefcio), Permacultura :A elaborao, a implantao e a manuteno de ecossistemas produtivos que mantenham a diversidade, a resilincia e a estabilidade dos ecossistemas naturais, promovendo energia, moradia e alimentao humana de forma harmoniosa com o ambiente. (MOLLISON, 1999.)

Como resultado direto da implantao de mtodos permaculturais almeja-se a integrao harmnica entre pessoas e paisagem, provendo sua comida, energia, habitaes e outros materiais e no materiais, de forma sustentvel. (MOLLISON, 1999.)

1.3.1. A Permacultura A Beleza est no olho do observador. Aqui tratar-se- de apresentar alguns aspectos conceituais da permacultura. Originalmente, no final dos anos 70, foi concebida como um mtodo de agricultura permanente, porm com seu desenvolvimento, nos dias de hoje se apresenta como sendo uma proposta para uma cultura humana permanente. Da nasce o termo cunhado pelos cientistas Bill Mollison e David Holmgren em 197419, da contrao, do ingls Permanent mais Culture, Permaculture. Rapidamente o termo surgido na Austrlia, difundiu-se pela Amrica do Norte e Europa, chegando Amrica Latina e ao Brasil em meados dos anos 80. Foi traduzida como permacultura (Permanente + cultura), porm assim como a agroecologia, ainda no consta em todos os dicionrios da Lngua Portuguesa, no Brasil. Desta construo etimolgica do termo pode-se trazer algumas consideraes importantes:

Ao abordar o conceito de cultura, esta metodologia se prope a ser uma possibilidade de organizao de diversas atividades humanas, referentes sua prpria existncia, tais como sua organizao socioespacial,

19

MOLLISON, Bill; HOLMGREN, David. Permaculture One, Corgi, Austrlia, 1978.

38

produtiva e ambiental, o que afeta e afetada diretamente pelos hbitos e padres societrios. Isto implica dizer que a permacultura pretende ser mais do que apenas uma prtica agrcola conservacionista. Ao trazer a palavra permanente, remonta a um entendimento de sustentabilidade que implica a capacidade de manter, por um longo perodo, de tempo indeterminado, a base de recursos necessrios para a sobrevivncia das futuras geraes. Uma das grandes influncias no incio da permacultura, foi a agricultura natural de Masanobu Fukuoka20, que, em linhas gerais, defendia a menor interveno possvel no solo e a recusa por insumos externos propriedade rural. Porm, com uma grande influncia da viso sistmica e sob a tica da teoria de Gaia (LOVELOCK,1979), houve a incorporao dos demais aspectos bsicos da ocupao humana no planeta, que alm da produo alimentar, so, entre outros: habitaes; oferta de gua e saneamento; gerao e oferta de energia. A percepo de que a problemtica ambiental est relacionada ao suprimento de todas as necessidades bsicas da espcie humana foi fundamental para a construo epistemolgica (ainda em processo) da permacultura. Minimamente, a permacultura apresenta uma ferramenta metodolgica de desenho ambiental em ecossistemas antrpicos, ou seja, os agroecossistemas em sentido lato. Isto implica dizer que dentre o mtodo de desenho e ocupao de solo permacultural esto embutidos os conhecimentos de diversas reas do conhecimento humano, que vo desde a arquitetura e a engenharia, bioqumica, passando pelas cincias agrrias e biolgicas. Todas fundamentadas por um prisma ecolgico que se vale objetivamente do saber emprico das comunidades tradicionais na realidade onde se aplica, bem como trs um aspecto regionalista na interveno. Em outras palavras, a permacultura: o planejamento e execuo de ocupaes humanas sustentveis, unindo prticas ancestrais aos modernos conhecimentos das reas, principalmente, de cincias agrrias, engenharias, arquitetura e cincias sociais, todas abordadas sob a tica da ecologia. Em outras palavras a elaborao, a implantao e a manuteno de ecossistemas produtivos que mantenham a20

Ver MASANOBU, Fukuoka. One Straw Revolution. Rodale Press, 1978 . Agricultura Natural: teoria e prtica da filosofia verde. Nobel, So Paulo, 1995

39

diversidade, a resistncia e a estabilidade dos ecossistemas naturais, promovendo energia, moradia e alimentao humana de forma harmoniosa com o ambiente.(MOLLISON, 1999, apud JACINTHO, 2002.)

No meio dos praticantes e dos estudantes em permacultura, um termo amplamente utilizado para definir o planejamento e o projeto executivo, propriamente dito, de um desenho de ocupao humana produtiva e sustentvel, o termo design. O design, se refere a um planejamento que envolve, alm dos aspectos tcnicos das aes necessrias, uma adequao temporal e econmica de sua implementao, alm de uma predisposio a adequar-se s condies ambientais do local onde se aplica (fazendas, assentamentos rurais, vilas, reas urbanas, lotes residenciais, etc.). Este ltimo ponto a maior diferena entre o design permacultural e outras formas de desenho/planejamento de ocupao e uso do solo, pois, de modo geral, os empreendimentos partem da premissa de alterar a realidade fsico-ambiental em prol de um determinado objetivo, enquanto que no planejamento que utilize a metodologia permacultural tratar de se adequar os objetivos desejados ao meio ambiente, respeitando sua dinmica ecolgica e se valendo positivamente dos recursos locais. Segundo Mollison (1999) e Soares (1998), apud JACINTHO (2002b)[...] comea definindo um design permacultural como "um sistema que rene componentes conceituais, materiais e estratgias em um padro que funciona para beneficiar a vida em todas as formas. Este tenta prover a sustentabilidade e um lugar seguro para todos os seres vivos do local" (Mollison, 1999). Segundo Soares, 1998, os resultados de um bom design devero ter: Estratgias para utilizao da terra sem desperdcio ou poluio; Sistema estabelecido de produo de alimento saudvel, possivelmente com excesso; Restaurao da paisagem degradada, resultando na preservao de espcies e habitat, principalmente espcies em perigo de extino; Integrao na propriedade, de todos os organismos vivos em um ambiente de interao e cooperao em ciclos naturais; Mnimo consumo de energia; (SOARES, 1998, apud JACINTHO, 2002b, p. 17.)

Mollison considera que o design composto por quatro partes: tcnicas; estratgias; recursos materiais; e organizao. E apresenta um diagrama demonstrativo dos elementos totais de um design (Figura 1.1) (MOLLISON 1998, p.36-37).

40

Componentes do local gua, terra, paisagem, clima, plantas

Componentes O Design Sociais "Uma organizao benfica Apoio legal, pessoas, cultura dos componentes comrcio e finanas. em suas interaes"

Componentes energticos Tecnologias estruturas, fontes, conexes.

Componentes abstratos Tempos, dados, tica. Figura 1.1: Elementos de um Design

Um outro aspecto fundamental, baseado em um dos princpios do funcionamento ecolgico do planeta, o qual no planejamento permacultural muito observado, se refere interao entre cada elemento do sistema que se est planejando (ou manejando). Mollison (1999) afirma que mais importante do que a definio dos elementos (tipos de cultura, atividades produtivas, edificaes, fontes de gua e energia, entre outros), que comporo ou compem um determinado agroecossistema projetado, a definio de suas interconexes, de modo que os resduos ou excedentes de um sejam reaproveitados por outros, fechando, assim, alguns ciclos internos ao agroecossistema. Um dos principais aspectos epistemolgicos da permacultura, reside na importncia dada observao do objeto (rea a ser projetada) por parte do projetista. Esta observao se refere s questes ambientais locais, aos aspectos socioculturais em meio realidade especfica, s possibilidades econmicas e s oportunidades e ameaas externas ao loco do projeto, em si. Nas palavras de David Holmgren, um dos fundadores da permacultura, Um bom design depende de uma relao harmoniosa e livre entre as pessoas e a natureza, na qual a observao cuidadosa e a interao racional provm a inspirao, o repertrio e os padres para o design. (HOLMGREN, 2002, p.13.) Como resultado desta observao, o autor afirma que, enquanto a agricultura tradicional intensiva em trabalho humano e a industrial em energia fssil, o design permacultural intensivo em informao e planejamento.

41

Holmgren (2002) apresenta a seguinte tabela, como uma sntese das caractersticas de um sistema industrial e de um sistema sustentvel (Tabela 1.1). Pela leitura desta se obtm uma clara viso da base conceitual da permacultura. Tabela 1.1- Caractersticas dos sistemas industriais e dos sistemas sustentveis Caractersticas Matriz energtica Fluxo material Recursos naturais Organizao Escala Movimento Retroalimentao Foco Ativismo Pensamento GneroFonte: HOLMGREN, 2002

Sistemas industriais No renovvel Linear Consumismo Centralizada Larga Rpido Positiva Central Mudanas espordicas Reducionista Masculino

Sistemas sustentveis Renovvel Cclico Reserva Redes distribudas Pequena Lento Negativa Perifrico Estabilidade rtmica Holstico Feminino

1.4 A AGROECOLOGIA, A PERMACULTURA E A GESTO AMBIENTAL A proposio de polticas, programas e aes para a gesto ambiental referente s atividades do setor agrcola deve estar atrelada a uma gesto territorial especfica, pautada nas caractersticas locais, devidamente observadas caso a caso, de modo que, alm do mercado, seja levada em considerao a vocao e a tradio camponesa, bem como as caractersticas ambientais. Isso faz com que a agroecologia seja a ferramenta ideal neste tipo de gesto. Outro aspecto inerente aos mtodos permaculturais e agroecolgicos condizentes com a estrutura conceitual de gesto ambiental21 a necessidade de participao da sociedade nas etapas do processo.21

Gesto ambiental : Conduo, direo, proteo da biodiversidade, controle do uso de recursos naturais, atravs de determinados instrumentos, que incluem regulamentos e normatizao, investimentos pblicos e financiamentos, requisitos interinstitucionais e jurdicos. Este conceito tem evoludo para uma perspectiva de gesto compartilhada pelos diferentes agentes envolvidos e articulados em seus diferentes papis, a partir da perspectiva de que a responsabilidade pela

42

A Agroecologia no somente uma caixa de ferramentas ecolgicas para ser aplicada pelos agricultores. Na maneira como trabalhada por Altieri, Guzmn ou Gliessman, as condies culturais e comunitrias em que esto imersos os agricultores, sua identidade local e suas prticas sociais so elementos centrais para a concretizao e apropriao social das suas prticas e mtodos. Assim, segundo Leff (2002b):A Agroecologia surge como um conjunto de conhecimentos, tcnicas e saberes que incorporam princpios ecolgicos e valores culturais s prticas agrcolas que, com o tempo, foram desecologizadas e desculturalizadas pela capitalizao e tecnificao da agricultura. A Agroecologia convoca a um dilogo de saberes e intercmbio de experincias; a uma hibridao de cincias e tcnicas, para potencializar as capacidades dos agricultores; a uma interdisciplinaridade, para articular os conhecimentos ecolgicos e antropolgicos, econmicos e tecnolgicos [...] (LEFF, 2002b, p. 42).

A construo da base cientfica da agroecologia e da permacultura assunto emergente nos meios acadmicos, podendo ser as pesquisas, por ora realizadas, vistas como iniciativas pioneiras e que certamente contribuiro com a efetiva criao de um novo paradigma socioeconmico, socioambiental e cultural, que oferea uma nova abordagem mais holstica e interdisciplinar, na qual cientistas naturais e sociais trabalhem juntos em favor do alcance de caminhos viveis para o desenvolvimento sustentvel (SACHS, 2000). Portanto, ao se tratar da gesto ambiental e de como se alcanar o ainda utpico processo de construo participativa da resoluo dos problemas, pode-se pensar na agroecologia e na permacultura como uma estrutura metodolgica eficiente e de alcance incomensurvel.

conservao ambiental de toda a sociedade e no apenas do governo, e baseada na busca de uma postura pr-ativa de todos os atores envolvidos. (texto do Glossrio ambiental do IBAMA.)

43

CAPTULO 2 AGROECOLOGIA E AGRICULTURA FAMILIAR 2.1 UM BREVE HISTRICO DA AGRICULTURA FAMILIAR E DE SUAS SIGNIFICAESA agricultura familiar brasileira apresenta dois traos que se mantm constantes durante os 500 anos de histria do Pas: sua produo ocupa papel relevante no abastecimento interno e o Estado dispensa a ela tratamento marginal ou secundrio. (ALTAFIN, 2003, p. 01.)

Muito embora o termo agricultura familiar venha sendo amplamente utilizado, tanto no meio acadmico quanto no ambiente poltico e social, seu conceito ainda rodeado por determinados dissensos, assumindo diferentes significaes de acordo com o contexto no qual est inserido (ALTAFIN, 2003, p. 6). Segundo esta autora, no meio acadmico a busca por um aprofundamento neste conceito traz um tratamento mais analtico e menos operacional do termo. No bojo deste debate, notam-se diferentes vises sobre a origem do conceito em questo. Uma das vertentes do pensamento, considera que no existe relao entre a atual agricultura familiar e a tradicional agricultura camponesa, caracterizando essa como uma nova categoria gerada pelo desenvolvimento do sistema produtivo capitalista. Para Abramovay (1992), a integrao ao mercado e a rpida incorporao dos avanos tecnolgicos fazem com que a agricultura familiar moderna se distancie das caractersticas da agricultura camponesa. social, surgido recentemente a partir dos interesses do estado. Entretanto, uma outra viso sobre a agricultura familiar moderna defende que neste conceito esto inclusas as profundas razes histricas relacionadas ao campesinato. A modernizao da agricultura familiar, para Wanderley (1999) no representa uma ruptura, pois ela:[...] guarda ainda muitos de seus traos camponeses, tanto porque ainda tem que enfrentar os velhos problemas, nunca resolvidos, como porque, fragilizado, nas condies da modernizao brasileira, continua a contar, na maioria dos casos, com suas prprias foras. (WANDERLEY, 1999, p.52)

Servolin22

(apud ALTAFIN, 2003) interpreta que o agricultor familiar de hoje um novo ator

Altafin (2003) e Porto e Siqueira (1997) afirmam ainda que data da dcada de 50 o marco da utilizao conceitual de campesinato, no debate poltico e22

Apud WANDERLEY, 1999.

44

acadmico e apontam que a partir deste momento histrico que a questo agrria aparece enquanto tema terico e poltico no Brasil. Pedroso (2000, p. 17) afirma que entre os anos 50 e 80 o desenvolvimento no campo brasileiro estava atrelado integrao do sistema produtivo agrcola, ao sistema capitalista industrial e ao advento da modernidade tecnolgica. Como conseqncia do modelo de desenvolvimento pautado na industrializao, o governo brasileiro centralizou as decises e realizou grandes investimentos em empresas estatais, alm de ter concedido isenes de impostos e crdito subsidiado quase que exclusivamente para as grandes empresas. No meio rural, a grande privilegiada foi a agricultura patronal que se modernizou e desenvolveu os grandes complexos agroindustriais. Por meio do subsdio ao crdito agrcola, o investimento em novas tecnologias foi alto. A agricultura familiar foi excluda em massa deste processo, assumindo basicamente o papel de liberar mo-de-obra. Delgado (1985) e Graziano (1997)23 (apud PEDROSO 2001, p.17) sugerem que este processo foi denominado "modernizao conservadora". Naquele momento histrico, a fundamentao terica acerca do tema foi pautada no processo europeu, sobretudo da evoluo da agricultura russa que segundo Altafin (2003) traz o conceito clssico de campons. Por este conceito entende-se como agricultura camponesa aquela que apresenta as seguintes caractersticas, reconhecidas por Cardoso (apud ALTAFIN):

Estabilidade no acesso terra, podendo ser por propriedade ou outra garantia de usufruto;

Empregar mo-de-obra predominantemente familiar, ainda que permita a utilizao de fora de trabalho externa;

A produo para subsistncia associada a uma insero no mercado visando as trocas por demais produtos de consumo familiar;

DELGADO, Guilherme. Capital financeiro e agricultura no Brasil: 1965-85 Icone UNICAMP 1985 So Paulo. 240p. GRAZIANO, Jos da Silva. Agricultura sustentvel: um novo paradigma ou um novo movimento social? In: ALMEIDA, Jacione e Zander Navarro. Reconstruindo a agricultura:idias e ideais na perspectiva do desenvolvimento rural sustentvel. 1a ed. Porto Alegre:Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1997. p.106-127.

23

45

Autonomia na gesto da produo, muito embora no seja exercida plenamente. (CARDOSO24, apud ALTAFIN, 2003.)

Pedroso (2000) cita Chayanov25 definindo o conceito de campons clssico como aquele que pertence a um sistema econmico especfico, composto por unidades familiares, na qual a famlia aplica determinados meios de produo com sua fora de trabalho, cultivando a terra e, conseqentemente obtm como produtos uma quantidade determinada de bens. Ainda segundo o autor russo, a produo campesina objetiva o suprimento das necessidades familiares, de modo que no pautada na busca da maximizao do lucro e no avaliada por clculos quantitativos. Pelo conceito puro de campesinato, a caracterstica mais especfica deste modo de produo reside no fato de no haver trabalho assalariado, esta ntida especificidade tida por Altafin (2003) como uma importante contribuio da leitura de Chayanov nos tempos atuais. Na viso de Wanderley (1999), a j citada caracterstica de autonomia na produo camponesa e a capacidade de reproduo da famlia por outras geraes mantendo sua subsistncia e ainda a centralidade na constituio do patrimnio familiar so caractersticas bsicas do campesinato clssico. Do ponto de vista do sistema produtivo, o mtodo campons se vale da diversidade na produo, como estratgia. Uma vez se reconhecendo e assumindo o conceito de campons, cunhado na experincia europia e a no verificao das mesmas caractersticas no campo brasileiro, estabeleceu-se nos anos 60 um acirrado debate sobre a existncia ou no de camponeses no Brasil (ALTAFIN, 2003). Tal questo remete a uma avaliao do processo histrico da agricultura nacional que possibilite uma correta leitura da identidade do agricultor familiar contemporneo. notrio que a estrutura fundiria no Brasil teve incio no sculo XVI com a implementao das capitanias hereditrias pela coroa portuguesa, e sua posterior diviso em Sesmarias. Estas deram origem aos primeiros latifndios do pas que foram doados aos amigos da coroa, pessoas de grande fortuna. (GRAZIANO DA

Cardoso, Ciro Flamarion. Escravo ou Campons? O Protocampesinato Nero nas Amricas. So Paulo, Brasiliense, 1987. 25 Chayanov, A. V. The theory of peasant economy. The American Economic Association. Illinois, 1966.

24

46

SILVA26, apud ASMUS, 2004, PRADO JUNIOR, 1994). Desse modo verifica-se que o modelo de colonizao portuguesa exclua radicalmente qualquer dimenso camponesa (WILKINSON27, apud ASMUS, p.51). Diferentemente da concepo clssica de campons, que segundo Prado Junior28 (apud ALTAFIN, 2003, p.7) o caracteriza como efetivo ocupante e explorador da terra independente da propriedade ou no desta, e ainda que, mesmo sendo explorado pelo senhor feudal, o campons detentor dos meios de produo. No caso brasileiro verifica-se que o sistema produtivo implantado nos latifndios foi de grandes monoculturas de cana-de-acar, num sistema conhecido como plantations, fundamentado no trabalho escravo. Partindo desta leitura histrica, o mesmo autor questiona a utilizao do conceito de campons no caso nacional. Prado Junior (1994) defende que o grande latifundirio, o senhor de engenho, era um homem de negcios, gerador de produtos para o mercado, o que para o autor demonstra que a sociedade brasileira tem um carter capitalista desde sua formao. Uma vez que reproduzia as relaes de mercado, a concorrncia entre a pequena e a grande agricultura sempre ocorreu no Brasil, para o autor, de modo que a segunda se beneficiava, e ainda hoje se beneficia, explorando a fora de trabalho da primeira. Com a evoluo da sociedade, o sistema produtivo, que at ento estava estabelecido no trip: senhor de engenho latifndio escravos, permitiu uma brecha para o surgimento de um novo ato